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Antonio José Saraiva Oscar Lopes Historia da Literatura Portuguesa 17.* Edigéo, Corrigida e Actualizada € PORTO EDITORA Luts de Camaes - Capitulo VAIL Janeta se perderem num mundo cad: rio pl mm “vez mais vasto, talvez infinito ¢ sem ’ a mecfnica da ra i . q cent, quando a Terra e do Céu deixarem de diferenciar-se, ¢ 0 espago, 0 tempo, causalidade jé nao couberem em imagens visuais simples. E que as vibragGes da angtistia meditativa de Camoes excedem esses qua- gros cosmoldgicos € sociais onde © Poeta ainda se situa, Como veremos, Os Lusfadas exaltam uma divindade ainda essencialmente concebida a luz de uma ética de cruzada cavaleirosa, mas também exaltam a intrusio humana nos «agminos vedados» do espago divino, Na sua litica, o verbo doba-se-nos palpi- tante porque as vias segundo as quais uma dnsia, ou uma razio intima, acaba por passar a ansia, ou a uma razio diferente, nem sempre sao as do formuldrio de tradi¢ao petrarquista; hé um senso agudissimo, e sem precedentes, de como «odo 0 mundo € composto de mudanga», composto de sim e niio, até ao ponto de que nem sequer «muda como sofa», infringindo as proprias leis ou ritmos jé conhecidos de mudanga; as esperangas, sem as quais «nao pode haver des- gosto» auténtico, sfio detectadas até a inefabilidade ou subconsciéncia de um «no sei qué, que nasce nao sei onde/vem nio sei como, e déi nao sei porqué»; © apego petrarquiano e bernardiniano a propria dor desvenda fundas rafzes, «porque essa mesma imagem, que na mente/me representa o bem de que carego/mo faz de um certo modo ser presente». O mundo geometricamente fixo da perspectiva linear renascentista e 0 da dogmiatica tridentina esto ambos, nesta lirica, j4 despercebidamente abalados por um violento sismo, embora a localizagéo aparente do seu epicentro apenas apreenda uma dialéctica que quase se restringe as Ansias do amor e seus objectos distantes. 0 ideal renascentista da Epopeia A ideia de realizar um poema herdico sobre a expansiio portuguesa mani- festa-se jé desde o século XV, dentro ¢ fora de Portugal. O humanista italiano Angelo Policiano ofereceu-se a D. Joo II para cantar em verso latino os seus feitos, © Luis Vives exaltou os Descobrimentos numa dedicatéria a D, Jodo Ill. No prélogo do Cancioneiro Geral, Garcia de Resende lamenta que os feitos dos nugueses nio estejam condignamente cantados. Ant6nio Ferreira, apesar da ‘U8 aversdio — varias vezes manifesta — pela vida guerreira e maritima, enco- "ou mais de um confrade a escrever a epopeia, ¢ cle mesmo ensaiou o estilo *rSico em mais de uma ode ¢ nos Epitafios de varios personagens hist6ricos, “mo D. Afonso Henriques, D. Dinis, D. Jodo I, regente D, Pedro, Este projecto 325 paca Renascinentoe Mancrismo 326 e com a ambigiio de ressuscitar um dos mais nobre iagens dos Portugueses prestavam-se a uma S$ Ulisses, dos Argonautas e de Eneias, as dos Humanistas relaciona- géneros greco-romanos. AS vi paragao emuladora com as de a 0s seus feitos guerreiros com os dos Gregos ¢ Troianos. O género épico, isto é, narrativo, tinha para o classicismo do Renascimenty certas regras abstrafdas de modelos, que eram sobretudo alliadaea Odisseig homéricas, a Argondutica de Apol6nio de Rodes e a Eneida de Virgilio, Assim se impusera o esquema de uma intriga dos deuses, divididos em partidos, numa determinada acco humana (uma guerra, uma viagem marftima...). A Eneida, embora se tenha destacado muito de entre os poemas heréicos em latim, deve considerar-se uma fonte j4 secundaria destas regras, porque surgiu como repto imitativo aos poemas homéricos. Ora estes correspondem a uma fase civilizacional de que Virgilio e os poe- tas do Renascimento jé estavam muito afastados. Para Homero, os deuses cons- titufam entidades reais, forgas superiormente vivas, e por isso voluntdrias e antropomérficas, que irrompiam da realidade e que participavam nas lutas dos bandos dos guerreiros ou piratas dos arquipélagos e costas do Mediterrineo oriental, varios séculos antes de Cristo. Cada qual deles esta pessoalmente empenhado em alcangar a vit6ria para o seu bando de adoradores, e portanto 0 seu critério do justo é 0 de um cla. Os homens, por sua vez, pondo a prova os seus misculos em combates singulares, ou a sua astticia em enganar o adversé- tio, € até os deuses adversos, ganham proporgdes sobre-humanas, candidatam- -se a imortalidade. Por isso os poemas homéricos caracterizam-se pelo relevo impressionante ¢ inesquecivel dos seus heréis. Se quisermos um paralelo, deve- mos procurd-lo nas epopeias barbaras de civilizagdes até certo ponto compan veis A que precedeu e originou o das cidades gregas: os Niebelungos: * Chanson de Roland, 0 Cantar de Mio Cid, as Sagas islandesas, com 0s quais aparenta a tradigdo herdica de Afonso Henriques. Aquiles o iracundo, Ulisses das muitas manhas, Roldio o bravo, Oliveiro o prudente, e ainda Cid o camped dor, embora mais complexo porque mais histérico, constituem uma galeria & Bae ee Spopeic na sua fase prépria, Notemos ave see menos importante do ee som Te eeu ec oul a vist do mundo era mais oe $ Poemas homéricos e, em geral, arcaicos: ® pes ‘mente unitaria (monotefsta). Se que estes poemas, cram tidos como relatos de aconteciment s6es, culminando na cada vez mai com. iM como 0 srs onth ver" yando felt? , Surgidos na fase da literal 108 veridicos, que as sucessivas © na que acabou por ganhar a forma escrita, foram 0m Tosimeis. Mas j4 a Eneida é um poema de esol Las dle Camoes - Capitulo VII segundo um modelo literirio, e deve o interesse a sua cuidada f repetigdes & unilinearidades «primitivas», ao t igico amor de Dido a Encias, a oposigao oratdria entre personagens, ¢ a outras qualidades do mesmo teor. As personalidades dos herdis viio-se apagando, destituidas de mola interior, como éflagrante no caso do «pio» Eneias, joguete nas mios dos deuses, que de resto jina época de Virgilio tendiam a converter-se em alegorias filoséficas ¢ politi- cas. O Estado juridicamente definido absorvera o destino d antigos herdis gentilicos, mais individualizados, Ressuscitar a epopeia homérica na €poca do Renascimento — quando 0 espirito abstractor de um mundo j& muito mercantil Ppouco se prestava 4 admira- gio de herdis semidivinos; e quando a mitologia clssica, caracterfstica do género, era uma expressio irrecuperdvel, salvo para um certo naturalismo de insinuagao estética — constitufa um nobilitante desafio ao engenho dos poetas. Os poemas épicos do Renascimento ou sio romances cavaleirescos versifi- clura, jé sem cados, como 0 Orlando Enamorado de Boiardo e 0 Orlando Furioso de Ariosto, ou procuram reflorir, com grande margem de alego! s jd sem a forca dantesca, a grandiosidade da histéria teolégica cristé, como a Jerusalém Libertada de Torquato Tasso. Na verdade, desde 0 século XII formas narrativas modernas (0 conto, a novela e sobretudo 0 romance) sobrepunham-se ao género épico. A narragio oral antiga (para audiéncia de pragas ou festins) de um mundo animado e maravilhoso, onde cada heréi vai talhando a sua prépria lei, Por entre as intrigas de uma outra humanidade superior, a dos deuses, dé lugar, em geral, 4 leitura (muda, ou em pequenos grupos) de enredos em cendrios bem mais limitados, num mundo de coisas inertes, desprovido de qualquer maravi- Ihoso capaz de enquadrar as aspiragdes de um certo individualismo (que afinal Se reajusta transferindo-se de condigées gentilicas para condigdes cada vez mais burguesas). CriagGes eruditas e arti as, fora de tempo, os poemas Fenascentistas em que se procurou ressuscitar a epopeia classica dentro dos canones homéricos e virgilianos malograram-se, como a Franciade de Ronsard, Cujo canto Ie Gnico saiu no mesmo ano que Os Lusiadas. Foi precisamente o desiderato da ressurreigdio da epopeia clissica segundo o Padrio homérico que Cam@es procurou satisfazer, levando a cabo um objectivo 0 dos escritores humanistas. O ambiente maritimo do assunto cen- "ral aponta para a filiagdio do poema sobretudo na linhagem da Odisseia, da pri- Meira metade da Eneida e dos poemas sobre os Argonautas escritos pelo grego Apolénio de Rodes ¢ pelo romano Valério Flaco. E de facto alguns investigado- 8S salientam algum débito de Camdes a0 poema Argondutica (Feitos dos Argonautas) deste titimo. 327 448 poca = Renascinento Manco 328 A ideia da epopeia patria andava associada certa ideologia nascida da expansiio, e cujas raizes encontramos jaé em Zurara. Segundo essa ideologia, os Portugueses cumpriam uma missiio providencial, dilatando tanto o Impéri + eram os Cruzados por exceléncia. As lutas internas entre Cristios ‘asa de Franga ¢ Casa de Austria), coincidindo com o avango turco nos Baleds, que chegara até Viena (1529) dois anos depois do saque de Roma por tropas luteranas do catélico Carlos V, vinham tornar mais actual esta missio divina atribufda ao Reino Lusitano, exemplo que envergo- nharia o resto da Cristandade. como a F (Catélicos e Reformados, Cc. [Intencées inerentes a forma de «Os Lusiadas» © tema escolhido por Camées para 0 seu poema foi toda a historia de Portugal, como se vé pelo préprio titulo: Os Lusfadas. Esta palavra (neolo- gismo inventado por André de Resende) designa os Portugueses, que a erudigio humanistica assim nobilitava como descendentes de Luso, filho ou compa- nheiro de Baco. O proprio autor explicita 0 seu propésito, ao afirmar que canta «o peito ilustre lusitano». Para acco nodal, escolheu Camées a viagem de Vasco da Gama, uma rota maritima como as de Ulisses e Eneias. Havia dela relatos pormenorizados — 0 do roteiro de Alvaro Velho, o de Castanheda na Histéria do Descobrimento ¢ Conquista da india, 0 de Jotio de Barros nas Décadas, além das verses orais que certamente corriam. Era a propésito da viagem do Gama que Camdes pre- tendia evocar toda a hist6ria de Portugal, sendo 0 préprio Gama e um dos seus companheiros aproveitados (a imitagdio dos poemas clissicos) para narradores principais da hist6ria. Mas a viagem do Gama nao bastava a Cam@es para estruturar uma epopelt sica, Uma obra de arte narrativa deste tipo exige uma unidade de acgio, ist i Asam ait Para uma situagiio crucial, ¢ seu oa ee ee um enredo. Na viagem do Gama mal des cobrit! ann ainda, num pocne na uma sequéncia cronolégica de aconteitet™ fansreinaicses aie steel podem dispensar-s ccaracteres pit também Camdes no viu — Eee! e entre OS protagonistas da Maa poemas homéricos, wrens tes ou paradigmas flagrantes, como so OC, aa » apesar da sua proporgio sobre-humana. Os hersis 4 Cam@es raramente parecem de carne: falta : cea re; faltam-lhes carfcter e paixdes- cla ), en Luts de Cambes - Caputo VII geral, estituas processionais, soleni ssiv s Na resolugiio desta dificul- 40 seu poema, 0 Pocta encontrou a seu favor certas praxes greco-romanas do género, que Ihe forneceram prototi- pos de uma intriga entre deuses apaixonados. O dinamismo aparente de Os Lustadas nio r Je tanto nas dificuldades ¢ peripécias da viagem do Gama como na rivalidade que opde Vénus, protectora dos Portugueses, a Baco, ini- miga deles. Desta intriga resultam os obstéculos que a esquadra encontra na costa oriental africana, a tempestade no fndico (alids ficticia, desconhecida dos cronistas, ou antes, deslocada do principio para o fim da viagem) e as intrigas que indispdem contra os Portugueses o Samorim. Baco é quem, disfargado, pre- para, onde pode, mau ambiente aos Lusos, quem em sonhos langa a descon- fianga contra os recém-vindos, quem leva os deuses maritimos a desencadear a tempestade. E Vénus, por outro lado, quem intercede por eles junto de Jupiter, quem se serve das ninfas para relaxar o esforgo dos deuses maritimos que agitam as ondas, etc. Os deuses desejam, palpitam, lutam, tém nervos, em con- traste com os homens histéricos, que (A excepgio de Veloso e dos amorosos) parecem de bronze ou de mérmore. Tudo se passa como se os deuses desenca- deassem ainda todas as forgas, fisicas ou psiquicas, que movimentam 0 mundo sublunar — ou fossem eles essas mesmas forcas ignotas, mas, ao mesmo tempo, e com certa ironia, neles se traduzissem os mais secretos mdbeis huma- nos. E certo que, por sob a sua hist6ria imaginaria de inspiragao cli procura ressalvar a possibilidade de uma interpretagaio positiva: os contactos de Baco e Merctirio com os homens passam-se em sonho ou em encarnagGes humanas. Os préprios deuses poderiam ser forgas angélicas, demonfacas ou astrolégicas, muito aceites no tempo ¢ pelo proprio Camées, numa palavra, «Causas segundas», intermediarias entre a causa primordial eos icontecimentos Visiveis. Mas 0 facto é que todo 0 peso da sugestio poética vai cair no maravi- lhoso, Com 0 desfecho do poema, a ficgio mitol6gica dissolve-se, Na Iha dos Amores as deusas marinhas concedem aos nautas, entdio de regresso, todas as Voldpias, ¢ com elas a imortalidade; 0 Gam: substitui Neptuno no amor de Tétis, senhora das Aguas. E neste ponto a mesma Tétis, declarando que os deu- Ses servem §6 para fazer poemas, esclarece que tal mitologia é meramente ale- 86rica. Sem ela, contudo, 0 poema perderia muito da sua palpitagiio e encanto. Formalmente, a mitologia desempenha portanto. uma fungd io central "’'0s Lustadas: a de Ihe dar uma unidade de acgo ¢ um enredo dinaimico. Mas CamBes procurou tirar dela um partido concepcional ¢ estético mais original, jhde de dar unidade dindmica e caracteres ica, 0 Poeta ine MO jd veremos. ca. Renascimenta e Mancirism™? amente Os Lusfadas niio sao, pois, as qualidades pro. io afectiva do leitor com herdéis. Sao, em pri- meira evidéncia, as qualidades textuais com que recria uma visao luminosa da vida: 0 verso oratério em que se vazam os discursos do Velho do Restelo, de Nun’Alvares, do Gama, da prépria Inés de Castro; as formulas cantantes e den. sas que se fixaram na tradigéo nacional letrada; a evocagao majestosa dos esplendores do Olimpo, a da beleza feminina (a «bela forma humana», que as redondilhas Sobre os rios acabario por esconjurar); a nitidez e precisao da frase, por vezes enredada com transposigdes & liberdades sintacticas modeladas sobre 0 latim e com a sobrecarga de alusdes mitolégicas; a prodigiosa arte do ritmo, que ja tivemos ocasifio de apreciar na obra lirica, e que aqui se adapta, ‘ora 4 movimentagiio, ao pandeménio das batalhas (classicamente sugerido por formas onomatopeicas), ora a lentiddo tediosa das calmarias, ora ao paraiso luxurioso da ilha de Vénus, A majestade olfmpica, ao pitoresco maritimo ou etnografico, As situagdes mais picantes. estetic O que anim: priamente épicas, a identifica Mas Os Lusiadas opdem as inverosimilhangas dos poemas antigos o seu préprio realismo, e exprimem deveras um senso novo do mundo e das maravi- Ihas reais («Que estranheza, que grandes qualidades!; E tudo sem mentir, puras verdades.»). Isso confere, afinal, como veremos, uma fung&o nova aos mitos antigos. Camées nao quis apenas fazer uma enciclopédia histérica, mas também uma enciclopédia naturalista, contrapartida quanto possfvel real do antigo maravi- Ihoso homérico. Para isso, descreveu impressivamente regides, situagdes estra- nhas ¢ fenémenos naturais mal conhecidos, enquadrando tudo numa variante ainda entdo corrente da cosmologia ptolemaica. Por vezes estas descrigdes sugerem a mintcia e precisio dos grandes pintores naturalistas do Renascimento, como Diirer ou Miguel Angelo; 0 Poeta procura avivi-las recor rendo a imagen flagrantes: tal a descrigiio do escorbuto, doenga tipica da nova navegagao transocednica, , a da tromba maritima, comparada nas suas varias fases a uma Sanguessuga chupando o sangue, a um «vaporzinho», uma coluna, um pé, um cano. Esta notagio do mundo faz também de Os Lusiadas a obt mais elaborada da literatura naturalista Portuguesa de Quinhentos, com 0 sel Ponto de partida ¢ o seu ponto de chegada bem caracterizados: de um lado, como ponto de partida, comparagoes cos, dos bestidrios medievais, dos emblema como meros simbolos de qualidades valente moderno da tensio épica, a n que, na peugada dos autores cli de Alciato, usam as coisas da naturezt ou defeitos morais; do outro lado, o eau naravilha dos novos mundos que se abrem™ Lal de Camées Cap) go mundo ja banalizado, uma surpresa pitoresco comuns aos relatos postos em cronica por Zaurara, & Carta de Vaz de Caminha, a tantos passos dos itinerd- ios e didrios de bordo, e & Peregrinagdo de Mendes Pinto. Apesar de algumas. imagens maritimas se inspirarem em poemas narrativos italianos, 0 marav' Ihoso ocedinico de Os Lusfadas & reconhecido como 0 «grande predecessor» de Moby Dick, 1851, 0 famoso romance realista alegorizado da vida no mar, pelo seu proprio autor, Herman Melville, Outra caracteristica também tipicamente renascentista de Os Lusfadas, e em oposi¢ao & severa moral medieva, é — jé 0 vimos a outro respeito — a palpita- ¢i0 afrodisiaca que vibra em todo o poema, exaltagiio do «amoroso ajunta~ mento», lei do universo que ndo somente dé vida aos malferidos, mas poe em vida os inda néo nascidos. Vénus, por cujas «lisas colunas» os desejos se enrolam como hera, quando, despida, pretende amolecer o poderoso Jipiter, seu pai, é a rainha irresistivel do mundo: no ar lascivos beijos se vdo dando. Ela, por onde passa, 0 ar e vento sereno faz, com brando movimento. Nao se trata de uma ou outra nota erética a condimentar a narrativa: € uma tensio permanente, ressumante a cada pretexto, distendendo-se e repousando finalmente na ilha de Vénus, coroamento do poema, a ilha Afortunada, a utopia onde Camées transfigura a sua mais aguda percepgaio do maravilhoso real, 0 maravilhoso do amor, A Ilha dé a imagem de um possivel regresso ao Eden biblico, através de um desejo sensual que, por mediagiio das ninfas e de Tétis, se ergue até a uma visio transparente de toda a maquina do mundo — vista de fora, num arrebatamento de gnose mistica. A expressio sugestiva e nobilitante deste pan-erotismo & uma das razdes ee do ane pags fio de Os Lusfadas, O mito antigo, ao assumir Dai corpo visivel a um impulso 1 de uma forga vital. Neste nao racionali: indo, éa ntropomorf Sentido © maravilhoso pagdo nao se edu a um ornamento retérico; compraz a Curiosidade do Poeta, faminto de todas as apeténcias de amor e violgncia que Mio se cansa de registar em anedotas miticas ou histori antigas, S, porluguesas ou so alterna com a daquele outro maravilhoso real, meteoroldgico ou etnogr: Essa esfera do maravilho Scografico, restritamente corografico, ico que os. 332 3.* Epoca - Renascimento ¢ Maneirismo 10 da cosmografia ptolemaica; ao marayj- Descobrimentos proporcionavan Thoso guerreiro, quer das proczas cavaleirescas de recorte novelistico, quer desse novo espanto, o da artilharia naval; e até ao maravilhoso cristao, alias em grande parte destinado a sagrar em Ourique 0 direito divino do fundador da monarquia, a sagrar também D. Joao I por indicios celestes, ¢ a sobrenaturalizar varios corajosos feitos no ultramar. O poema realiza a proeza ret6rica de con- gracar todas estas maravilhas tao dispares. ‘Assim, nos casos de amor alcangam Os Lusfadas a sua maior pulsagio emo- tiva; o temperamento amoroso é inerente & nova concepgio de herdi, o heréi lusfada camoniano, que no chega a encarnar de todo numa personagem do poema, mas se desprende do conjunto. Nota-se isto na hist6ria do gigante Adamastor, que pretende ser ameagador e terrivel, e acaba por se tornar como- vente ¢ deploravel no choro disforme com que lamenta a irremediavel faléncia da sua paixao por Tétis. Sente-se no Adamastor 0 simbolo de uma experiéncia amorosa, 0 desejo desiludido pelo dissipar de uma miragem: que te custava ter-me neste engano (ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada? Dir-se-ia que para Camées, como ja para a novela arturiana da fase cortés, € para os redactores do Amadis, a virilidade da coragem bélica se liga tio intima- mente ao temperamento amoroso como ao aristocritico desprezo dos bens monetarios. Idedrio de «Os Lusiadas» N’Os Lusfadas combinam-se ou coexistem idcologias e idedrios hetero- géneos, além do sentimento da vida mais palpitante e mais congénito # poeta, que acabémos de indicar. Lé encontramos ideias pessoais ou cole! tie vas, ou até oficiais; de origem cavaleiresca feudal ou de origem human! Assim, 0 autor recolheu e lapidou muitos lugares-comuns oficializados au ja tinham sido expressos por Zurara, Gil Vicente, Jodo de Barros & {ntes outros. Vé a histéria de Portugal como uma cruzada, iniciada por Afons? Henriques, que deveria servir de exemplo nse em luta fratricida $ outros estados cristios, © como os dentes de Cadmo desparzidos. Luts de Camber -Captialo VIE A famosa exortagdo aos estados cristiios — ebelados contra 0 «sucessor de Pedro» «soberbo gado», > «duro Inglés» que «nova maneira faz da Cristandade», 20 «Galo indigno» que desonra o titulo de «cristianis- simo» atacando o Papa, a Itilia «submersa em vicios mil» — para que se unam contra os Turcos, reproduz com maior cloquéncia exortagées andlogas de Gil Vicente, Ant6nio Ferreira, Joao de Barros ¢ outros, inspirados pela politica dos reis de Portugal, interessados numa cruzada contra os Turcos que propiciasse a sua expansiio no Oriente. Tem-se querido interpretar esta concepgio fazendo de Camées 0 paladino da «cultura ocidental», contra a barbdrie, Mas, falando de barbarie ¢ de cultura ocidental, cumpre nao ignorar a ideologia guerreira, de conquista, frequente- mente exaltada n’Os Lusfadas, Se julgarmos pelo sonho de D. Manuel e por outros passos, a nenhuma honra mais alta poderiam os povos do Oriente aspirar do que a de sofrer 0 «jugo» ou o «freio» portugués, imagens que alias também caracterizam 0 dominio régio sobre os seus stibditos. E ao iniciar o seu discurso perante o rei de Melinde, Vasco da Gama anuncia o assunto nestes termos: aos Alen Primeiro tratarei da larga terra, depois direi da sanguinosa guerra. A uma «sanguinosa guerra» se reduziria com efeito toda a hist6ria de Portugal, segundo Camées, tirando os amores de Fernando, os de Inés de Castro, € pouco mais. Poderfamos dizer das suas estrofes 0 que 0 mesmo Camées diz das bandeiras que Paulo da Gama explicou aos Indianos: Nelas estdo pintadas as guerreiras obras que o forte braco ja fizera, batalhas tém campais, aventureiras, desafios cruéis, pintura fera. Em vao procuraremos n’Os Lusiadas 0 elogio dos reis «lavradores», tio queridos de S4 de Miranda; ou a evocagio dos «oficios mecAnicos», para os quais Antonio Ferreira chama a atengiio. Camdes exprime fielmente a ideologia da nobreza guerreira, é certo que também letrada, dentro da qual ele proprio se inclui, nia mao sempre a espada ¢ noutra a pena. Nao admira, por isso, que 0 poeta censure a ganancia mercantil quando se lhe ferece a ocasido. Fé-lo, por exemplo, a propésito das negociagdes do Gama om os de Calecut, para obter a entrada, no porto, de mercadoria portuguesa. em embargo de ja se ter dito de Os Lusfadas que so a «epopeia do comércio» 3.1 poca Renasciment e Mancino 334 como préprio de viléo, burgués, o dinheiro — 0 autor qualifica de «vil», isto é, i iniciador do comércio transoceanico, inten. que intervém nesse memordvel acto cionalmente aberto pela viagem do Gama: Veja agora o juézo curioso quanto no rico, assi como no pobre, pode o vil interesse e sede imiga do dinheiro, que a tudo nos obriga. ‘Aliado a este sentimento aristocratico e guerreiro, detecta-se n’Os Lusiadas um individualismo abstracto. Embora nao haja herdis de carne e osso no poema, todo ele é um friso de nomes aristocraticos em constante paralelo emu- lador com outros da Antiguidade; e nao resta lugar para a acco anénima dou- tras camadas nacionais. Nada mais frisante a este respeito do que a narrativa dos acontecimentos de 1383-1385, sobretudo se a confrontarmos com a sua fonte, Fernio Lopes. Camées omite o episédio central da luta contra os Castelhanos, 0 cerco de Lisboa, cujo herofsmo colectivo Fernio Lopes narrow com uma vibragio autenticamente herdica. Omite a acgdo dos «povos do reino», das «unides», e fala apenas de Nuno Alvares, D. Jodo I e Antio Vasques de Almada, protagonista da batalha de Aljubarrota, na qual resume toda a resisténcia, Desta maneira fica, afinal, apoucada essa luta em que a na- cionalidade se manifestou como um todo, precisamente contra uma minoria aristocratica que ainda a nao reconhecia. Isso nado impede, é certo, que n’Os Lusfadas encontremos as tinicas criticas sociais, e até politicas, realmente desassombradas, de Camées, feitas evidentemente sob o ponto de vista de uma ética aristocratica e mondrquica ideal: no desfecho do canto VII recusa-se 4 exaltar todo aquele que «veio / por contentar rei, no oficio novo / a despit © roubar 0 pobre povo», ou que nao «pague o suor da servil gente»; no canto X vemos Cupido preparar uma campanha contra amores desencaminhados, com? © dos que as mulheres preferem a caca (D. Sebastidio), o dos egofstas adulado- res, 0 dos amantes de mandos e riquezas; quase no final do poema, hd uma ce” sura clara ao desprezo beato das Letras, e repete-se uma ja jnsistente condenagio dos conselheiros inexperientes, nomeadamente dos clérigos 4° cnet leant as ‘a dos feitos de guerra, esta concepgio da histori nacional como uma sequéncia de proezas de herdis militares — caracteristicas significativas da ideologia dominante em Portugal na segunda metade do século XVI — constituem hoje 0 peso morto conceptual d’Os Lusiadas. No entan!®s Encontramos no poema outro miolo mais vivo, na reacc”o dos deuses & auddcia Lats de Comdex - Capitulo VTE gos descobridores portugueses: por um lado, a ideia de Patria, entendida sob a forma de comunidade lingufstica e independéncia dinastica, dé um sentido novo i antiga exaltagado das linhagens ¢ seus bardes assinalados, como reflexo da centralizaga quica e do culto do idioma nacional, difundido no Renascimento pelos humanistas de estatuto cortés; por outro lado, esse senti- mento patridtico, entio reforgado por historiadores, gramaticos e gedgrafos, liga-se n’Os Lusfadas a uma apologia dos poderes humano: Assim, na sua significativa alocugdo no canto VI aos deuses marinhos, 0s mais directamente ameagados pelas navegagées transocedinicas que culminam com a do Gama, e por isso mais ficeis de alertar, Baco resume, e impugna, um ousado ideal de futura di ‘agiio colectiva da Humanidade, a custa dos anti- gos deuses, pois receia que, de progresso em progresso, os homens venham a deuses ser, e nds humanos. Do mesmo modo, Adamastor promete vingar-se dos Portugueses, por esta razio que declara ao Gama: pois os vedados términos quebrantas e navegar meus longos mares ousas. Esta vitéria dos homens sobre os deuses é uma ideia adequada ao impulso do Renascimento, que assistiu a um importante avango no dominio do planeta por parte do Homem. E, alias, também um mais vago ideal antigo, simbolizado pelo mito de Prometeu, 0 heréi que roubou o lume divino para erguer os homens ao nivel dos deuses. Camdes realga-o, contrastando a heroicidade revo~ luciondria com a sensatez do Velho do Restelo, que exprime o ponto de vista oposto, segundo lugares-comuns dos coros tragicos clissicos: 0 Velho alude ao mito de fearo, castigado pela ambigdio de querer elevar-se nos ares, a0 mito de Prometeu, e o que é mais (e seria extremamente audacioso se nao fosse feito Por forma tao hdbil), aproxima tudo isto, aproxima a prépria viagem de Vas da Gama, tema central da epopeia, da desobediéneia de Adio. A viagem do Gama, os Descobrimentos em geral aparecem assim, num relance, como reno- Vago do Pecado Original: 0 da autodeterminagiio humana, Este orgulho huma- nista, de que a seguir encontraremos outros aspectos, verifica-se sobretudo nos lineamentos gerais do poema: repare-se que 0 humano Gama al Posse de Tétis, simbolo do dominio dos mares, aquilo que fora negado a a Adamastor, um tita semidivino. Resumindo, Camdes pouco tem que ver com a ideologia burgues “vango na Europa, com o comércio transocednico encarado como tal; Aut pawn vaca eM Ao Oy Luviaday oxattam una expanstio que, ta sun fie deeinivit, f04 eonduzida ony moldes mondrquicos a favor da classe entio dominante, 6 nile me 4 CONCOrEEY ci capitatista privaca, & maneina da Holanda, No entinto, a ariitocriela que g Epico se propde imortatizar tem a conseidneia de proceder 8 una revolugio jg imnndo, revolugdo de que 0 pocta nil veo resultado noel, embora the snificado politico, religioxo, clentffico & estético, que j4 basta para ye eyrado numa comunidude nacional, Talvex possa, © da dignidade tribua um sip onguthar como individuo int por isso, falirsse de unit tensio entre dois scntimentos opostor ‘ do Homem, quebrantador impenitente de todos os vedados términos, colectivas mente candidato A divinizagho, ¢ 0 da sua insignifichncia de bicho da terra tdo entimentos alimentaese da maravilha de todo um éncia carnal camo- pequeno, O primeira deste 20 recém-descoberto ¢ de toda a funda ape tera, apagada ¢ vil tristeza» em que o poeta asfi- » se atribui ao Velho do mundo geogri niana; © segundo, daquela xia, daquela decadéneia nacional euja hicida previ quia do cosmos ptolemaico, cujas esferas o Homem Restelo, ¢ da rfgida hit ‘guiria mun der a divindade, Podem descobrir-se ainda outras implic: ‘ mitolégica do poema, Assim, em primeiro lugar, a exaltaga nacionais, a deformagio que consiste em a eles restringir afinal a representa do povo lusiada (povo que, dentro de outro ambiente histérico, pudera fazer-se globalmente sentir em Ferniio Lopes), toda es génio poético ao mecenato que de gente de linhagem ou de cor nao con ravessar sem se dividir em corpo ¢ alma, € sem se ren- $ ideolbgicas na efabulagio 10 dos. préceres sa subalternizagao, enfim, do wz. de Os Lusfadas uma gloriticagio versitics vem trair-se naquela referida alienagio esté- fica em que o concreto da psicologia humana transita para as paixdes mitologi- cas, como contrapeso do hicratismo oficial sob que pretende impor-se o grupo dirigente. Por outro lado, a finsia de Camées por um amor sem barreiras sociais nem convengdes hipdcritas, ¢ a consciéneia que tem do seu direito a um galt dio terreno pela obra de poeta (ndio menos importante © mascula, a seu ve @ guerreira) traduzem No poema, como vimos, pelo patrocinio de Venus, pelo relevo atribufdo A deusa em todas as ac Ges dos nautas © dos outros herdis hist6ricos, ¢ pelo modo como sublinha e censura caso: le inaratl Hao regia & Senhoril,¢, ainda mais vivamente, a falta do apoio decile ween setouram gloria das armas com a al6rla, ba , i" do apoio devido aos que redouran Outro conceit, | Orla, Pe Mais permanente, das letras, > concello importante a relevar W’Os Lin fadas 6 w contraposigho “aperigncia ¢ du observagio directa A cigncia livresen dn Anticudhate Tt ivresca da Antiguidade, Tr de uma ideia caracteristi cterfstica dos prunos i nomen srs Tistica dos grupos ligados j actividades maritima = ” Construtores de barcos, viajantes ibititar que que, para pos Luis de Camder -Capttuto VII 337 navegagio no alto mar, tiveram de criar uma técni taperigncia, Visto que nos livros no encontravam por outro lado, puderam veri fica medieval e antiga, tai apropriada com base na achave dos problemas; e que. a falsidade de hogdes correntes na literatura geogrt val Como as da impossibilidade de antipodas ou ge vida na zona torrida, do prolongamento da Africa até ao polo sul, da existén- cia de seres com configur: mianimalesca, etc, Esta mentali- dade experimental, precursora do empirismo cientifico de Bacon, teve representantes como Duarte Pacheco Pereira, D. Joiio de Castro, o Dr. Pedro Nunes e 0 Dr. Garcia de Orta, que Camées conheceu na fndia. N’Os Lusfadas encontra-se, mais de uma vez, a observagio de que os Antigos ignoravam regides descobertas pelos Portugueses, e registam-se fenémenos a que os livros nio se referem, como a tromba maritima, cuja descrigao termina com este repto: 0 semi-humana Vejam agora os sdébios na escritura que segredos sdo estes de natura No entanto, o saber experimental portugués do século XV nao chegou a ultra- passar a fase do empirismo, nao chegou a converter-se em atitude cientifica for- malizada. Esta tiltima veio a nascer de uma aproximacio entre as descobertas de Arquimedes e outros precursores da mecanica ¢ 0 desenvolvimento da técnica fabril, que entretanto se verifica em regides como Veneza ou a Holanda, mas niio em Portugal. A verdade é que as descrigdes camonianas de fenémenos meteoro- l6gicos, regides geograficas ou da cosmologia ptolemaica subentendem uma ati- tude no fundo mais pritica do que inquisitiva, as suas referéncias ao escorbuto ou operagées nduticas insinuam um sentimento de impoténcia humana ou de desinteresse pelo trabalho especializado, confiado ao saber mecdnico. Nao sabe- Mos exactamente que significado Ihes atribuia Camdes, Mas (observemos) 0 empirismo, nesta fase, tanto podia conduzir a um estado mais adiantado na hist- tia da ciéncia, como a uma simples negagio da inteligéncia, quer escolastica, quer Mecanicista: a experiéncia, na medida em que parece negar a razao, pode levar, quer 4 divida metédica e A elaboragio de modelos cientificos, quer ao mi: cismo, que desiste da explicagiio e da transformagaio hum ante do universo, ieee 4s comédias camonianas ei Seleuco e __ O teatro de Camées, constituido pelas comédias Anfitride: ‘lodemo, ocupa um lugar A parte no teatro portugues quinhentista, K dificil More »

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