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José Carlos Reis Historia & Teoria Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade 3 Edigao Ne Fev Ispw — 85-225-0424-5 Copyright © 2006 José Carlos Reis Direitos desta edigao reservados EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231010 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil ‘Tels.: 080-021-7777 — 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 e-mail: editora@fgy.br — pedidoseditora@fgv.br web site: www.fgy:brfeditora Impresso no Brasil | Printed in Brazil “Todos os direitos reservados. A reprodusio nao autorizada desta publicagao, no todo ou em parte, constitui violagio do copyright (Lei n° 9.610/98). fade do autor. Os conceitos emitidos nest livro sao de intera responsabi 1 edigao — 2003; 2 edigo — 2005; 3* edi¢do — 2006; 1* reimpressio — 2007. 2* reimpressio — 2008; 3* reimpressio — 2008; 4* reimpressio — 2010; 5* reimpressio — 2011; 6 reimpressio — 2012; 7* reimpressio — 2014 ReVisAo DE ORIGINAIS: Maria Lucia Leio Velloso de Magalhaes Projero EDITORIAL: Editora FGV Revisio; Fatima Caroni, Marcia Cara: Leonardo Carvalho Tuusrracdo De Cara: Estatueta feminina em terracota, Chipre antigo © Birmingham Museums and Art Gallery ignataro Ficha catalogrifica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Reis, José Carlos HHistéria & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade € verdade f José Carlos Reis. — 3. ed. — Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 2p. Inch bibliografia, 1. Histiria — Filosofia, I. Fundagio Getulio Vargas 1. Titulo cpp — 901 Sumario Apresentagdo 7 1. Histria da histéria civilizagio ocidental e sentido histérico 15 Meaafisica e histéria 15 A modernidade 22 Modernidade ¢ histéria-conhecimento 36 A pos-modernidade 42 Pés-modernidade ¢ histéria-conhecimento 53 Breve levantamento bibliogréfico 62 2. Da istéria global & histéria em migalhas: ‘que se ganha, 0 que se perde? 67 Modernidade iluminista versus pés-modernidade estruturalista ¢ pés-estruturalista 68 F. Dosse: da histdria global & histria em migalhas 73 O conccito de ciéncia histérica dos Annales 80 Ahistéria global 85. A histéria em migalhas (em miestes ow eclarée) 88 O que se ganhae 0 que se perde? 9 Bibliografia 95 3. A especificidade ldgica da histéria 97 O conhecimento histérico bl 7 como problema 97 © modelo nomolégico 106 O modelo compreensivo 116 © modelo conceiual 124 modelo narrative 132 Bibliografia 145 4, Historia e verdade: posigaes 147 Introdugio 147 O problema 149 Qual 0 aleance da verdade histérica? Posighes 155 Pardgrafos de transigio Conelusdes 175 Bibliografia 176 5. O conceito de tempo histé 166 ‘enos Annales: uma articulagio possivel 179 Discursando sobre o tempo: 0 fisico, tempo historico seria um terceiro tempo entte 2 natureza ea consciéncia? Conclusio: uma articulago po! Bibliografia 205 6. Dilthey ¢ 0 historicismo, ‘A Revolucio Francesa ¢ 183 1 201 rico em Ricoeur, Koselleck 0 fildsofo € 0 historiador 179 a redescoberta da historia 207 redescoberta da histéria Historicismo: um conceito? 214 hey ¢ 0 historicismo Bibliografia 244 226 207 Apresentagao Este livro reiine seis ensaios sobre teoria da histéria. Inspirado em Gilberto Freyre, inticulei-o Histéria & teoria, quetendo dizer o mesmo que Freyre com Casa-grande & senzala: que nao so termos separiveis, em opo- sigzo ouexcludentes, esim que, embora paregam assimétricos,sio associados, remetem-se um ao outro, estio ligados implicita ¢ profundamente, inex cavelmente imbricados. A pesquisa historica maneém com a tcoria da histé- ria uma relagao de fecunda tensio: por um lado, toma-a como direcionadiora do seu olhar, por outro, nega-a, para sustentar que o vivido é sempre novo calheio a toda teoria. A teoria também mantém coma pesquisa uma relagio igualmente fecunda e tensa: quer se impor sobre a documentasio e sistema tizar a experiéncia vivida, mas aceita a pluralidade de perspectivas possiveis e considera necessaria ¢ desejével a resisténcia do vivido as suas orientagies. Dessa ressténcia depende a sua renovagio, a criagao de novas interpretagbes. Portanto, a relagao entre teoria histérica ¢ experiéncia vivida é tensa, uma relacio ao mesmo tempo de aceitacio e de recusa reciprocas. Nao ha pesqt sa histérica empitica sem 0 apoio implicito ou explicito da teoria ¢ a teoria éestéril sem a pesquisa hist6rica. Uma se articula com a outra ese consticuem, seciprocamente. ‘As reflexes tedricas deste liveo aspiram a estimular a pesquise em- inspirando-lhe probleméticas, caminhos metodolégicos, as opgdes e decisdes de critério c valor, E infecundo o desdém de historiadores pela discussio redrica e igualmence infrutifera a discussio teérica sem documentais. Pode-se priorizar 1 desvi ae historiador nao ter ideias? Para Veyne, “é mais na ou outra, mas nao é poss car(ruLo 1 Historia da historia: civilizagao ocidental e sentido histérico Metafisica e historia ‘Ao longo do iiltimo milénio, os historiadores ocidentais m. taram preocupacio constante com o destino de uma “humanidade uni- versal”, Aterrorizados com as experiéncias cada vez mais frequentes € brutais de guerras € invasbes, injustigas sociais, epidemias, f nes, catés- versal, sobre o scu sentido, sobre o dever ser da humanidade, sobre a perfectibi- trofes naturais, intertogaram-se obsessivamente sobre a historia lidade humana, que poderia se realizar na histéria, Perguntas metafisicas orientaram as reflexdes € pesquisas histéricas no Ocidente: “quem so- mos2”, “para onde vamos?”, “para que viemos ¢ qual serd 0 nosso dest no2”, “como obter a salvacao2”. Essas perguntas revelam uma angiistia fundamental, a experiéncia de um permanente mal-estar de ser-no-tem- po. O Ocidente sofre com a propria auséncia e procura construir uma imagem global, reconhecivel e accitivel, de si mesmo, A cultura aciden- tal se interroga sobre a sta identidade, que generaliza como problema do homem universal. Esse esforo obsessivo para atribuir um sentido inte- dental nao possuir uma identidade sem fissuras e de precisar justificar sew expa nismo pelo mundo, Ela se esforga para se integrar, luta para se reconhecer em sua totalidade, para poder se expandir com a legitimagio de um discurso claro e distinto, irretorquivel. Hisroma & Teoma Este capftulo pretende contribuir com uma teflexio critica sobre esse esforgo ocidental, procurando reconstruir 0 percurso da sua problemética — a das relagies entre a “ideia de hist6ria universal ¢ de sentido hist6rico”. ‘Ao refazera histéria dessa histéria, tem por objetivo produs o levantamento as articulagGes entre as diversas representagdes da vida e do seu sentido ao longo da histéria do Ocidente. Trata-se de uma “sintese autocritica” da cul- tura ocidental, uma forma de busca da identidade, que procura percorter, reconstruir, elaborar, integrar ¢ autocriticar as experiéncias vividas de modo disperso e desarticulado. A hist6ria tem um papel primordial nessa busca ocidental de autointegracéo ¢ autorreconhecimento. [A fragmentagio da identidade ocidental comegou com os gregos, que, a0 mesmo tempo, tinham uma cultura anti-histérica ¢ invencaram a histéria. Eles jd oscilavam entre o sagrado e 0 profano, entre a eternidade ‘co tempo, com forte atracio pelo profano e pelo tempo. Bra estranha 20s criadores da histéria essa ideia abstrata e genérica de uma “humanidade Esta nao foi construida pelos gregos, os fundadores da (Os historiadores gregos no pretenderam revelar o destino da ocident: humanidade. Bles criaram um conhecimento dos homens estranho a toda ideia de evolugio, progresso, restringindo-se ao registro ¢ 4 interpretagio das ages humanas de alcance limitado, apoiados em documentos visuais « orais (s6 quem presenciava 0 evento podia relaté-lo de modo confia Sua histéria apenas ensinava, em relagio 20 futuro, a necessidade da me méria, da prudéncia, da cautela, da resignagao. Eles nao tinham uma id dda unidade e da solidariedade da espécie humana. A vida grega era frag mentada em pequenos todos, divididos e em guerra. Suas especulagdes sobre o fim tltimo da vida humana eram sébrias. Nao esperavam que, no final, a histéria pudesse trazer a felicidade humana. O historiador s6 podia oferecer aos homens a felicidade individual, atribuindo a eles uma repu- tagio de herdis, a fama eterna, a lembranga do seu nome ¢ dos seus feitos Contudo, apesar de sua nova ciéncia — a historia —, eles também procuraram dar um sentido metafisico a0 mundo. E o procuraram na contemplagio da ordem e da beleza estéveis do universo, Os gregos no buscavam o sentido do ser na histéria. Para pensarem © cosmo, faziam abstracio da histéria, que, para eles, era o lugar sublunar da mudanca, da desordem. Aboliam 0 tempo, submetendo o universo a uma explicagio natural e racional, © logos, a ordem, que a mudanga esconde. Seu olhar sobre o mundo buscava a perfeigio do movimento circular. Os gregos se sé Cantos Ress interessavam pelo imutavel, perceptivel na ordem fixa dos corpos celestes. evar ao ser, pois um ser que muda jé néo é. O ser-que-é é alhcio & mudanca, in sente. humana”, que passa por ciclos, mas é permanente aos olhos da razio. O futuro teria os mesmos eventos do passado ¢ os homens teriam sempre as ‘A mudanga nao pod ave, escével, permanente, sempre pre- 's procuravam reconhecer nas mudangas humanas uma “natureza ‘mesmas pulsGes © necessidades. A vida humana se move em repetigoes, como 0 sol, as estages. Os gregos tinham uma visio ciclica e repetitiva da histdria: crescimento e decadéncia, vida ¢ morte. A ordem que existe no univetso, acessivel ao pensamento, nao revela uma sucessio légica, mas a estabilidade do ser. Pela contemplagio e pelo discurso, s- tabeleciam a ordem racional do cosmo. A mudanga no podia ser tema da losofia. A mudanga seria da ordem do irracional, incognoscive pativel com ui jue buscasse a verdade. A mudanca é “for- "ss Pode-se mudar da near e teleo- ‘acaso’ tuna’, , “viissitud riqueza para a pobreza, da vitéria para a derrota, da escravidio para a li- berdade e vice-versa. A mudanga deve ser encarada virilmente, sabiamente. Na hora do triunfo, pensar na derrora, Deve-se aprender com a desgraga e ser moderado na prosperidade. O sentido nao era procurado na mudan- Ga, na historia, como o faria 0 historiador ocidental posterior. A histsria, que entio nascia, nao gozava de nenhum apreco filoséfico. Uma “filosofia da histéria” seria um contrassenso. Diante da mudanga histérica, os ho- mens deveriam apenas encaré-la com coragem e serenidade. O filésofo, que queria ser uma ideia eterna e jamais retornar ao tempo. (Os gregos se inceressavam pelo eterno, pelo que no precisa da his- ‘6ria para set. Seus historiadores, 20 fundarem a hist6ria, desafiaram a prépria cultura anti-hist6rica, A histéria que fundaram nao se interessava pelo futuro, apenas pelo presente e pelo passado. Bles no se perguntavam “o que fazer2”, ‘questio que indica o futuro, mas “o que aconteceu?”, questo que aponta para o passado, que preferiam recente. Nao se interessavam historicamente pelo futuro como “humanizacio”, nem pelo longinquo passado, que tatavam, miticamente, Acreditavam que o futuro individual ja estava dado e podia ser antevisto pelos oriculos. Os homens do futuro nfo seriam melhores do que 0s passados ¢ 8 atuais. Os oriculos tinham o dom de vera vida predestinada dos individuos que as musas thes sopravam. Estas conheciam tudo: 0 passado €0 futuro. Os eventos presentes ¢ passados tinham as mesmas caracteristicas. s6 tinha uma esperanga: abandonar a histéria, tornar-se Herddoto s6 queria evitar 0 esquecimento das singularidades humanas. O ;cado dos eventos Ihes era implicito € no os transcendia. A narragio ‘no conduzia a um fim, revelando apenas eventos, periodes, ciclos. Ahistéria, 20 se repetir, se compensava, Suas mudangas revelavam o equilibrio das forgas historico-naturais. Os historiadores fizeram um vio esforgo para climinar toda lenda ou divindade, pois estas estavam integradas 4 sua cultura mitica. Em Tucidides isso se radi cheias de oréculos, adivinhagées, interferéncias de forgas miticas. FE uma historia que procura tatar daslueas politicas, romando por base uma “natureza yutdvel, iza, também em vo, Suas narrativas si0 humana’. Para os gregos, a ideia de universal era a ordem c6s Para os historiadores gregos, uma “humanidade universal” seria uma natureza humana jé feita, eterna, A natureza das coisas seria ctescer ¢ declinar e nada de novo ocorreria sob o sol. A ideia que os gregos faziam da unidade ¢ da solidariedade da espécie humana tinha a ver com “natureza humana” ¢ no com “histéria universal” Entre os gregos, a ideia de uma histéria universal ndo era ainda formulivel, pelo menos nao com a forca que seria formulada pelos roma no-ctistios. Eles nfo viam o barbaro (0 no grego) como um humano completo. Embora Herédoto tenha-se referido, com simpatia, a povos nao sgregos, para a cultura grega estes no podiam ter “histéria”. ‘A ideia de “histéria universal” sé comegou a ser formulada e a ser central numa cultura com os romanos. E isso representou uma ruptura com a consciéncia histrica grega e uma fissura na cultura ocidental. O jimétricos ¢ 0 futuro passou a ser 0 cen- passado ¢ 0 futuro tornaram-se tro de gravidade da histéria, Em Polio, aideia de uma “hist6ria universal” se confundia e se restringia & do Império Romano, cujo fim era a romani- zagio de todo 0 mundo. O fim da histéria era o dominio de Roma sobre © mundo. Roma era a reunio de todos os povos mais avangados do mun- do, Mas, dessa comunidade “universal A ideia de uma “humanidade” que ind ainda nio existia. Os romanos a conceberam movides por uma incoercivel motivacao expansionista, Sua enorme vontade de poténcia os fez pensar em uma humanidade universal”, conquistada ¢ romanizada. Em Roma, fo sentido da unidade humana era politico: 0 controle de todos os povos por um tinico povo. Faltava um discurso — pois os romanos eram her ros dos gregos — que oferecesse legitimidade merafisica a essa vontade de poténcia universal, O cristianismo, inicialmente combatido, foi depois reconhecido e incorporado como religiio oficial, pois apoiaria com o sentimento religio- s0 € 0 discurso teoldgico a conquista romana do mundo. Havia uma apa- rente tensio entre os projetos de histéria universal dos romanos ¢ dos cristos. Os romanos queriam subjugar politicamente os povos nao roma- depois de despojé-los de sua diferen- ai 08 cristios, por serem originariamente “re uma ideia mais radical de “humanidade”: para eles, a ela também perten- ceriam os pagios, que mereciam conhecer a Verdade. Essa tensio se dissol veu no curso da conquista do mundo pelos romanos, que se apresentavam como cristios e portadores da Verdade, tendo portanto o dircito divino de subjugar e catequizar os “pagios”, que, coincidentemente, cram todos os povos nao romanos. A Igteja Romana e 0 Império Romano formaram 0 vero co anverso de uma mesma ( primer) idea de histria univers” como vontade de poténcia universal legitimada por um discurso de salvagio seen eps legitimada por um discurso de salvagao da Os romanos identificaram no cristianismo que surgia a nova ideia a que os faria imbativeis por mil anos: a de uma histéria universal, ano como um todo, incluindo os nao romanos 10 definiam os “bérbaros”. A humanidade teria entéo uma histéria comum e uma ditegio tnica: a vitéria romana e a salvagio crista. A histéria da salvacio romano-crista retine tempo e eternidade, his- ‘ria ¢ Cristo. Foi uma ideia absolutamente nova, que nem os judeus ha- viam chegado a formula, obcecados com a ideia de “povo eleito”. Os ju- deus, porém, ji tinham formulado a ideia de historia como caminho near para a salvagio humana. Judeus e cristios buscavam um sentido, inham {é em um fim diltimo. Sua revolugio cultural consistiu em aceitar © tempo ¢ a histéria como meio de salvagao. Os eventos histéricos eram ‘manifestagdes de Deus, cuja vontade devia ser decifrada. O destino das nagbes, as lutas ps cron hina nova — a iti wives. © final — a Sabagio — confer nos ¢ s6 encaré-los como “humanos idade ¢ sentido a todos os eventos personagens do passado, do presente ¢ do futuro. — Os romanos iniciaram a aventura ocidental de conquista do mut do imbuidos da fé de que iriam salvé-lo! A idcia de “his universal” & 38; ¢ Collingwood, 1981 de um sentido histérico tinico para toda a humanidade comegou a se CIaborat como conquista, por um povo, de todos os povos. Os romanos sc atribufram essa missio divina e nao poderiam falhar. Bles sintetizaram ddaica do “povo eleito” com o universalism cristo do pagio-tam- bém-filho-de-Deus. Eles, povo eleito, tinham a missio de levar aos pagios ssa verdade Ginica da histria universal: “somos todos filhos do nico Deus t nds, o povo eleito de Deus, seu filhodileto, pois Ele velo 20 nosso mun~ dove nos revelou a Verdade; temos 0 dircito divino de lideri-los na hist6ria da salvagac ( cristianismo romano representava a histéria universal como pos suindo uma causalidade teleol6gica. A histéria tinha uma meta, um telos, dima finalidade. A salvaglo eterna ao mesmo cempo convivia e adviria apés a sucesséo de todos os eventos histéricos. (Os fatos nao tinham um sentido cm si mesmos, mas um sentido transcendente. Os cristios romanos, 20 coneritio dos historiadores gregos, se interessavam sobretudo pelo futuro, Togar da experanga. © passado era apenas o lugar da promessa de uma realizago ficura. Passado e futuro seria assimétricos como o pecado ¢ & redengio, O passado ea 0 lugar do mal, do pecado, da queda, que apare- Gam nos softimentos humanos. F era também onde estavam os profetas fs manifestacées de Deus aos homens, a experiéncia de Cristo, que Pro rctiam a redencio iminente. O futuro seraavitéria de Cristo (ede Roma!) os fim do calvério humano. Como Cristo, os homens deviam suportar os ofrimentos impostos pela experiéncia da temporalidade e esperar pela gra- far de Deus. O futuro pertencia a Deus, 0 nico capse de revel-lo, Aos Feenens nao era dado conhecé-lo antecipadamente. Os profetas o conhe- iam, pois Deus o revelara a eles. O fuuro dependia da fE¢ nto de leis naturals ou histéricas. Seria incalculivel teoricamente. A histéria estava dominada pelo designio de Deus, pela Providéncia Divina. & humanidade teria uma hist6ria comum, com uma diregao tinica: a Salvagao, aRedengio. Cristo reunira tempo e eternidade e viera prometer aos homens sus safda do tempo € 0 retorno 2 eternidade. O reino de Deus era a biissola dos homens no tempo. Essa ropresentagio religiosa da histéria ao mesmo tempo 2 valo- rica como meio de salvacio e a deprecia profundamente, Nesse mundo temporal, softimento, a injustiga, a infelicidade no encontram solu- (Go. Os padres os explicavam pelo pecado ¢ como punigéo e meio de de imnerfeito, este mundo é efémero, ¢ 0 ser perfeito na0 ost Cantos Res pode ser efémero. Os valores religiosos intemporais aumentavam o des- prestigio das coisas eemporais. O pecado mortal envolvia tudo, cortom- pia tudo. Neste mundo, predomina 2 forga brutal ¢ a nao fraternidade. Este mundo é pecado, corrupcio. E efémero, sem sentido. Absurdo! A morte torna vao todo actimulo de riqueza, de cultura, de desejo, de for- a. O camponés podia se sentir vingado: o senhor morreré! Do ponto de vista ético, s6 um sentido divino para este mundo o impediria de ser um absurdo absoluto. A necessidade de salvagao levava a religiao a se tornar intemporal, estranha a todo interesse pela vida neste mundo.” Essa representagio da vida humana no Ocidente, teprimindo todas as representagGes miticas arcaicas ¢ se articulando penosamente com o racionalismo grego, predominou de mancira quase absoluta na Europa até os séculos XIII-XVI. Nesse periodo, o cristianismo perdeu sua base politica, tornando-se muito vulnerivel as heresias ¢ hetero~ doxias. Ocorreu uma profunda revolugao cultural no Ocidente: apare- cceram outtos “novos tempos novos”, outra “nova histéria nova", outra representagio do tempo e da histéria, por muitos nomeada de “moder- nidade”, Nesse novo mundo histéico, era forte a tensio com a tradigto do universalismo cristéo da salvacio, que perdera sua base feudal de sustentagio politica. Os poderes nacionais emergentes ainda se utiliza- vam da argumentagio religiosa da salvagio, os reis ainda reivindicavam uuma legitimidade divina para o seu poder, 0 papa ainda exercia seu poder espiritual universal, mas, com a afirmagio da especificidade de valores diferenciados nas diversas esferas da vida social, ocorreu uma nova e profunda fragmentacéo na cultura ocidental. Houve um movi- mento de recusa da concepgao magico-religiosa como legitimagio da acdo ¢ a busca da legitimidade pela racionalizagao sistemstica e pratica ds realidades da vida. A rcionalizacao das esferasespecficaslevou a0 ‘desencantamento do mundo”. Este obrigou a ética religiosa a radical zar sua racionalidade moral. Os movimentos da Reforma e da Contrar reforma representaram esforsos do cristianismo para resgatar a forga universal de legitimagao que havia perdido. Mas, nas condigées técnicas e sociais da cultura racional que emergia, a proposta religiosa de se levar uma vida de Jesus ou Francisco de Assis conduzia ao fracasso na vida mundana? * Patraro, 1975; Weber, 1974, Em face dessas tenses — fraturas novas da identidade ociden- tal —, a busca mistica de salvag3o da humanidade u \iversal sucumbiu & poténcia profana da nao fraternidade. Numa cultura organizada racional- mente nio havia lugar para a fraternidade universal. As preocupagdes € as vantagens deste mundo levaram a Europa ocidental a rearticular seu dis- curso religioso. A heranga romana, que favorecera a expansio de Roma, devia passar por ajustes para continuar apoiando a Europa ocidental em 1 como estava, depreciando sua expansio, agora por todo o mundo. 1 tanto 2 agio ¢ 0 sucesso neste mundo, desvalorizando tanto as novas € enormes conquistas europcias, tornara-se um entrave ao expansionismo ocidental. Os europeus continuaram (¢ até mais radicalmente), como os romanos, a agir em nome da fé cristi. Mas a hora era de reinvengio da teologia, de recriagao do discurso sobre Deus, a fim de que os apoiassem cficazmente na continuidade da produgio da histria universal, ou seja, na ae na salvagio da humanidade universal.* conqui A modernidade Entre os séculos XII e XVI, na Europa ocidental, surgiu uma nova conscigncia do sentido histérico, © conceito de modernidade, com o qual se procuta definir esse novo corte na identidade ocidental, revela a nova re presentagio da temporalidade histérica, claborada por esse novo A6rico, Essa representagao do tempo é marcada fundamentalmente pela re- ceusa da metafisica, A metafisica, entio, “comegou a se derreter como a neve sob 0 sol” (Dilthey). E também a se reorganizar, ase reescrever, a se reinventar. [A “modernidade” significou uma revolugio cultural, corrida apenas no Oci- dlente, que acompanhou ¢ tornou possivel a expansio europeia pelo mundo «, internamente, a constituigio de uma nova ordem politica (Estado buro- crético), uma nova ordem econsmica (éica do trabalho © empresa capitalis- ta) e uma nova ordem social (no fraternidade religiosa). Esse conceito de- signa uma conscigncia secularizada, mais fascinada do que atemorizada pela experiéncia do tempo sublunar. © tempo profano veio desafiar © tempo sagrado cristio. Uma histéria deste mundo veio desafiar ¢ conviver com a hist6ria universal sagrada, Deus nfo seria abandonado, mas nao reinaria mais sozinho ¢ de modo absoluto, Ocorte entdo uma novidade, um ev Jost Cantos Revs fascinagio por esse mundo sublunar, por suas riqueas, glérias e prazeres. © axtase material desafia o éxtase religioso. A rejeicio merafisica do mundo & revogada. A historicidade nao mais € vista como um fardo, uma prova, uma pena. Emerge um novo personagem na histéria: 0 homem da cidade, 0 burgués, o comerciante, que avanga pelos oceanos na conquista desse mun- do, Aquele didlogo biblico entre Jesus ¢ 0 deménio, em que este promete a Jesus todas as riquezas deste mundo em troca de sua alma e submissio, ganha uuma nova versio. A conquista do mundo nio significava necessariamente a perda da alma e a accitagio do diabo, mas a colaboragio dos homens na restauragio da criagio divina, Os europeus retomam a légica imperialsta dos romano-cristios e se sentem a servigo da salvagio da humanidade quando vvencem e submetem os pagios nio europeus do mundo intciro. Ao faré-lo, acreditam que 0s estio incluindo no caminho da Verdade e da Vida (da Civilizagio) e que os pagios deveriam ter para com eles, europeus, um sen- timento de profunda gratidao! Para Le Goff, 0 conflito entre 0 tempo da Igreja ¢ 0 tempo do mercador fundou a nova mentalidade do mundo moderno. Por continuar ficl a Deus ¢ ser conquistador deste mundo, o burgués possui objet diferentes e incompativeis: o lucro e a salvacao! Ainda cristao, ele des cecernidade, a salvagio; burgués, deseja os prazeres miiltiplos deste mundo. Ai se fortalece a ideia da modernidade como um aprofundamento da frag- mentacio da consciéncia ocidental. Ao procurar realizar fins contradité- rios, a consciéncia burguesa perde a unidade que ances a religito garantia O ccristao reformado até confunde seu sucesso nos negécios com a graca de Deus, misturando esferas que nao se articulam. O esforgo de racion izagdo geralmente ocorre quando ha a frag- mentagio da consciéncia. E um esforco de reunit, organizar gestos sen- timentos contraditérios. As ages apoiadas em valores tio contraditérios como a salvagio, que exige a fraternidade, ¢ 0 lucro, que impée a reducio uaa eliminagio da alteridade, exigem um trabalho continuo e vio de reu- nificagio racional de uma identidade reconhecivel e aceitivel, A recusa da metafisica nfo se realizou plenamente. A metafisica que sobrevive obscu- rece com a culpa o desejo de fruigio deste mundo. Essa fragmentacio da identidade ocidental, que na modernidade se radicaliza, na verdade sempre ‘existiu, na medida em que o gos grego dificilmente se compatibilizou com a fé crista ¢ jamais se livrou do mito. O que ocorreu na “modernidade” foi uma agudizaco desse confronto interno, mantido latente pela vitéria me- 4 burn a Teonta dieval do cristianismo, que levou 0 homem ocidental a um tipo de “surto psicolégico ¢ cultural”? ‘Weber tematizou essa questo de modo insuperavel em sua obra A Arica protestante e 0 espirito do capitalismo e no artigo “Rejeigées religiosas do mundo e suas direg6es”, Sua pergunta era: “por que o desenvolvimento ‘cientifico, artistico, politico, econdmico nao se dirigiu, fora da Europa, pela via da racionalizagio que se deu no Ocidente? Por que o processo da ‘modernidade’ ocorreu somente na Europa ocidental?” Para el “moderni- dade” representou o renascimento do racionalismo greco-romano, Na Eu- ropa, houve um processo de desencantamento das concepgées religiosas do mundo que, por um lado, restaurou formas antigas ¢, por outro, engendrou formas novas de cultura profana, Esse processo de racionalizasao institucio- nalizow atividades racionais com relagio a fins. A cultura se laicizou, as sociedades passaram a ser movidas pelo Fstado burocritico ¢ pela empresa capitalista, Essa racionalizagao da cultura repercutiu também na vida cotidiana, aque passou a manter uma relacio reflexiva com a tradigao, perdendo sua espontaneidade natural. Com o Renascimento, a Reforma ¢ as Grandes Na- vegacdes, o tempo se pluralizou. A religiéo no mais explicava todas as ordens da vida, Antes, no mundo mégico medieval, as esferas da vida eram indife- renciadas, dominadas pela vida religiosa. Aquele mundo unificado da lugar a um mundo descentrado em diversas esferas, com suas légicas especificas. Nao ha mais um sistema monolitico de valores. O mundo religioso nao salva ¢ nio explica mais todas as esferas do mundo profano. © mundo se “desencantou”, ou seja, se fragmentou em esferas de valores distintos, com racionalidade interna espectfica. Cada esfera possui a sua légica interna, que cde modo préprio meios e fin. Os fins e meios econdmicos sio es- pecificos da esfera econdmica, assim como os fins ¢ meios das outras esferas ‘io autnomos. O agir politico nao se reduz. a0 agir econdmico ou social ou igiosos nao influem politico ou estético e vice-versa, E os antigos valores 1 na légiea da eficécia © de acumulagio de poténcia das esferas auténomas. Nao se deve esperar moralidade na esfera politica, pots i Nio se deve pedir piedade ou fratcrnidade na esfera econémica, pois nao sio valores dessa esfera. O novo homem ocidental € um homem estranho a si indo de forma contraditéria, dividido entre valores ¢ légicas dis- Cantos Revs tintos, inconciliéveis. A cultura profana retoma seu combate & cultura sagra- da, apés ter sido vencida por mais de um milénio. Desencontrado, contra- ditério, o coracio desabotoado de um lado, a r2z40 afiada de outro, 0 proprio homem europeu se contesta! Essas esferas diferenciadas mantém entre si ¢ com a religido rela- ‘gGes tensas. Elas coexistem, mas sob tensio. Essa tensio entre as esferas de valores diferentes — a econémica, a soc acest ca, a intelectual, a erdtica — constitui, para Weber, o espirito do mundo capitalista. O es- pirito capicalista, 0 espirito da modernidade, é desencantado, seculariza- do, racional, imanente, autolegitimado, sujeito de si, tenso, contradité- rio, O homem renascentista vive uma fragmentagio da vida que, nesse pai valores religiosos ¢ a recusa religiosa do mundo tinham-se tornado uma camisa de forga, um entrave sua iniciativa hist6rica. Superado o tempo magico da religiio, ele se vorna senhor do seu tempo e se fragmenta, articulando com dificuldade as suas diferentes esferas de valores. Als, nese primeiro momento, ele vive as suas contradigdes com alegria, sem lagrimas. Antes, abrira mio ou submetera todas as suas iniciativas ¢ in teresses mundanos ao seu desejo de Salvagio. Trocara todos os éxtases terrenos pelo éxtase religioso. Agora, embora ainda deseje a Salvacio, afrouxou um pouco esse fieio sagrado ¢ no quer mais desdenhar e: mundo, Preferiu entregar-se aos até entio proibidos “pecados capitai Quer éxtase neste mundo transitério: avarento e cobigoso, quer o éxito econdmico (acumular riquezas); ambicioso e arrogante, quer o éxtase polit co (acumular forsa); invejoso ¢ orgulhoso, quer 0 éxtase social (0 prestigio, a honra, o reconhecimento de todos); luxurioso © obsceno, quer o éxtase erético (0 prazer egofsta e antifraternal do sexo); vaidoso, quer o éxtase esté- tico (a fruigio da forma sem submeté-la ao contetido); pretensioso € arro- gante, quer o éxtase intelectual (formular prineipias ligicos alheios e con- correntes da fé).* Este € o comportamento do homem ocidental na modernidade. O Oriente, que nunca se deixara seduzir pelo mundo temporal, mantinha-se dominado pela ética mistica da recusa do mundo. E acabou sendo dessa revolucio cultural europeia. Os outros eo \eito momento, sente como uma liberagio, O universalismo dos ima antes viram desembar- car em seus litorais ess estranho homem curopeu moderno, enlouquecido, 26 articulando um discurso religioso fanético e agindo furiosamente contra a sua propria salvacao! re Webes na dar sentido a esse processo cultural, procura distinguir «0s tipos ideas da ética religiosa: de um lado, na “ascese age segundo a vontade de Deus, como seu inserumento, para rformar a sua ciiagao, estaurando-a por seu trabalho, encarado como “missio”. Ele exerce sua profssio como “vocacio”, reriando @ mundo como um zeloso servidor do Criador. De outro lado, na “contemplagao mistica’, ele busca a salvasio fora da acio intramundana, na recusa absoluta do mundo. O individuo se sente tum recepticulo do divino, Apesar de se aproximarem em alguns as- pectos, para Weber essas duas éticas religiosas se distinguem. Para o mistico, crente deve se calar para deixar que Deus se manifeste. Seu estado de graga, cle 0 preserva afastando-se das coisas mundanas. Ele nZo dé impor- tincia& agitacéo do mundo, mantendo-se incégnito, distance. A ascese ativa, intramundana, a0 contrério, se testa na agio. Agir no mundo é executar 0 plano divino, preservando a criagio de Deus contra o mal. O individuo nao fecha os olhos 20 mundo. Ele o considera o caminho da sua salvagio. No entanto, ambas as éticas religiosas tém 0 mesmo objetivo: recusar 0 mundo « buscar a salvacio. Os ocidentais preferiram o caminho da “ascese ativa’ e ‘atribufram um sentido & sua agZo contraditdria 20 se considerarem parceiros de Deus na criagio. Fles estavam convencidos de que eram os seus pedreiros, marceneiros, restauradores, prepostos de todo tipo. Segundo Weber, embora a concepcao de um deus criador seja im- portante para as étcas religosas de recusa do mundo, nfo foi a transcen- Uencia divina enquanto tal que definiu a “ascese ativa’ ocidental. Para pode-se dizer que a Trindade Cristi, com seu Salvador humano divino € seus santos, representava uma concepgao de Deus fundamenralmente me- nos transcendence do que seriam Jeové ou Ali. O Ocidente foi sempre mais profano do que o Oriente, por isso a sua identidade trincada e a sua fome dleste mundo e de tempo. Partindo sempre de Weber, a hipétese aqui € que nunca houve uma religiéo autenticamente ocidental. O Ocidente nfo criou uma religiéo que viesse a predominar ou, pelo menos, a concorret com a sua importagio romana do Oriente — 0 cristianismo. Apropriando-se dessa tal, 0 Ocidente a helenizou, ou seja, a transformou em discurso, em teo- logia. O sentimento propriamente religioso dispensa 0 discurso e se dirige \eFivel. E, quando passa a necessitar de discurso, perde a sua densida- igido orien- Jost Cantos Revs de mistica. A pergunta weberiana “por que s6 no Ocidente ocorreu esse processo de racionalizasio2”, talvez a hipétese mais provivel seja esta: por- que o Ocidente nunca foi densa e sinceramente religioso, mas profunds- mente greco-romano, discursivo ¢ expansionista. A cultura ocidental nao uma cultura mistica, no sentido de valorizar a contemplagao e 0 lencio, ‘mas racional c laica, “pag”, no sentido de valorizar 0 discurso, 0 raciocinio demonstrativo ¢ a ago intramundana, Na “modernidade’”, a sua face gre- co-romana venceu a sua face crist, 0 que provocou uma crise ao mesmo tempo assustadora e fecunda. Assustadora, pois foi a perda da representagio unificada do mundo; fecunda, porque a mult idade das representagGes do mundo que decorreram dessa fratura propiciou uma “redescoberta do mundo”. O sentido da histra, tal como representado pelo Ocidente cris- reve de ser rearticulado e ressignificado. Quanto 4 relagio custo/bene- ficio dessa revolugio cultural, quanto ao célculo do seu aleance € dos seus ganhos ¢ perdas, estes se tornaram o tema predominante dos escritos filo- s6ficos, teoldgicos, das ciéncias humanas e dos coléquios nas universidades ocidentais. Essa revolugio moderna tornou-se o grande tema da esfera cultural ocidental desde 0 século XVI. Uns, assustados com a toleraincia com a pritica de tantos “pecados”, defendiam o retorno A tradigZ0; outros, maravilhados, preferiam mergulhar © mais fundo possivel em todos os recantos, dobras ¢ pelos do século! G. Gusdorf fez uma avaliagio muito otimista dessa mudanga mo- derma, Ele descreve a irrupgio do tempo humano contra o absolutismo do tempo divino com cuforia, como uma emancipagio. O homem, da religido, se multiplica em vérios: a histéria se pluraliza; as ages e expresses humanas se diferenciam ¢ se multi icam. Koselleck, por seu ‘uimno, no é tio entusiasta assim dos novos tempos. Ble faz. uma avaliagio mais cética, embora nio seja contririo Aquela mudanga. Ele revela as dificuldades trazidas pela perda da unidade religiosa da consciéncia. Para cle, como nao havia mais uma referéncia universal para a ago, como reinava a tensio ¢ a contradigio, esse tempo se tornara perigoso: cisbes, conflitos, guerras civis. A fragmentagio interna da religiio trouxe guerras religiosas sangrentas. A auséncia de Deus significou a auséncia de limites a vigéncia do crime. No século XVII, a ordem teve de ser restabelecida pela forca do Estado absolutista, que, sem poder apelar de modo eficaz anenhum valor cultural universal, unificador e legitimador da ordem, sé podia administrar os conflitos, calculando-os, prevendo-os e reprimindo-os. Para substituir a eficécia conciliadora da f& absoluta, que foi perdida, impos-se a eficdcia repressora do Estado absolutista. Contra a unidade interna da fé, estabeleceu-se a unidade externa da forga. A eficacia da forca, no entanto, por ser apenas externa, é limitada e dispendiosa. A for- ‘ca nao consegue manter a ordem sozinha. Retornava entio a necessidade de um principio interno, unificador e legitimador da ordem. Foi preciso de certa forma “reencantar 0 mundo”, isto é, criar um principio interno, unificador, que legitimasse e orientasse as ag6es humanas, Esse novo prin~ cipio unificador nao pod poderia fazé-lo, mas em outtos termos. Nos termos da conquista moder- na — a Razio secularizada —, que deseja este mundo, que quer se rea lizar nele e, a0 mesmo tempo, harmonizar-se consigo mesma, encontran- do em mundo” se deu em termos filosdficos.” O conceito de “modernidade”, portanto, assim como 0 préprio processo que ele designa revelam uma tensio: no inicio, nos séculos XIII- XVI, representara a ruptura com o passado de universalismo cristio ¢ abri- ra um presente secularizado, com suas consequéncias — racionalizagio da ago ¢ fragmentagio da vida interna do homem ocidental. No inicio, essa recusa radical das vis6es religiosas do mundo representou 0 aprofunda- mento da fissura congénita do espirito ocidental, a luta permanente tensa entre a cultura profana ¢ a cultura sagrada. A recusa da tradigéo rmetafisica fer emergir representagoes arcaicas do mundo, como a fetigaria, diversas novas formas de representagdes raciona josas do mundo, como a ciéncia ¢ os movimentos de reforma religiosa. Esse primeiro pe- rfodo — 0 do “desencantamento do mundo” — foi vivido de forma oti- mista, alegre. Depois, no século XVII, apés tantos conflitos religiosos, guerras civis, tiranias, que exigitam a forga externa para controlé-los e que, para isso, impuscram a proibicao da liberdade de consciéncia e restringiram a expressio piiblica das convicgses privadas, foi necessirio o retorno 3 idea de histéria universal com a qual antes se rompera. Kant produzit a sua utopia racional, a sua salvasao neste mundo, em seu belo texto “Ideia de histéria universal de um ponto de vista cos- ‘mopolita’. A Razio traria a reunificagao da humanidade, substituindo a rcligido, ao se dar como finalidade a construgao de uma sociedade moral. apelar mais para Deus e para a fé. Ou até mesma o seu fundamento. O esforgo de “reencantamento do Jost Cantos Reis A harmonia ¢ a estabilidade da ordem celeste deveriam ser implantadas no mundo dos homens pelos préprios homens. Essa ordem celeste, para Kant, estava instalada na subjetividade humana como ordem moral. O imperativo categérico de fazer sempre 0 bem podia ser contemplado dentro dos préprios homens. O caminho da humanidade unida era tini- co ¢ levava 8 sociedade moral universal. O século XVIII, europeu, passou a pensar filosoficamente a histéria universal da humanidade, a elaborar 0s direitos universais do homem, atribuindo-lhe o s de uma finalidade moral Para Habermas, 0 século XVIII criou 0 pensamento especifico da modernidade, as flosofias da histéria, que setiam uma nova legitimago da histéria universal nao mais baseada na fé. Elas so modernas porque tém a forma de uma elaboracio racional da histéria, de uma interpreta- fo sistemdtica da histéria da humanidade universal, estabelecendo um principio que procurava reunificar a sucessio dos acontecimentos em um sentido fundamental. Em sua segunda fase, a modernidade, através das filosofias da hist6ria, recolocaria & hist6ria a questao do sentido histérico e da hist6ria universal, que retornaria ainda com implicagbes teolégicas, mas oferecendo a perfectibilidade moral neste mundo profano no lugar lo da realizagio da salvagio no outro. ‘A Europa ocidental voltou a pensar a histéria de uma humanidade universal, novamente tinica e singular. Houve um esforgo de reunificagio da humanidade sob o prinefpio da Razao. A “Razio que governa o mundo” seria 0 esforgo moderno, profano, de talvez “teencantar 0 mundo”: este recomaria sentido, diresio, unidade, sob um prinefpio interno de valor universal — a busca da autoconsciéncia, isto é, da liberdade. A histéria torna-se novamente meio de salvagio. Ela é a “marcha do Espfrito em busca da liberdade”. A redengio se encontra no futuro, assim como a re Presentara também a teleologia judeo-crista da histéria. Mas a escatologia ctista cede lugar & utopia racional-profana. A ideia de progresso, antes restrita ao conhecimento, se generaliza. Todos os aspectos da vida humana caminhariam em uma mesma diregao: a perfeigio futura. A crenga filosé- fica é que o préprio homem iria se resgatar, e no tempo ainda, pela cons- tug de uma sociedade moral ¢ racional e pela acumulagio de conheci- mentos sobre este mundo. A ideia de progresso exprime a nova situagio do homem como criador, produtor do futuro. A profecia previa 0 fim da historia; a utopia prevé a realizagio da histéria. O fim da histéria no seria » fa Hesrones « © seu término, mas a “realizagio” humana no rempo. O éxtase profano pid) venceu o extase religioso (parusia) da outra vida eterna. O fururo no é mais o fim do mundo. Agora, a espera ¢ outra: a realizagio da his- t6ria, do progresso, como obra dos homens, que se tornam competidores de Deus na ctiagio do mundo.* dernos": uma sede radical de nidade universal”, fraterna, u agora este impunha a sua necessidade de sentido vencedores de ontem, os homens do carpe diem, a so. Os gregos preferiam néo pensar 0 futuro, mas 0 eterno; da salvagio fururas os renas- +; as filosofias (Gao € a histéria como seu meio, A modernidade renascentista se abrira ao presente; a do século XVII rompia com 0 passado eo presente e se abria ao futuro. Ao romperem com, amente, isto é superando € con- ergencia do stos se nutriam do sentime © passado, procuravam negar di servando, a fragmentagio ocorrida com a mem renas- 1c também tinha rompido com o passado, mas sem um projeto para o futuro. ‘As filosofias da histéria mostram com cransparéncia toda a tensio tema & cultura ocidental. Elas sio ambiguas: greco-modernas, pois sio uma elaboracio racional-profana sobre a hi 20 futuro, prosseguem a espera metafsica da Redengio. As expoem a fratura da identidade ocidental: “Fé na Rarao"! ‘0 pensamento religioso, cm busca da unificagio que ele oferecera. Mas, nesse esforco de reunificagio © de retorno, prevalecia a face moderna, a Razao, centista, cria so um pensamento Censo, qui las ignoram pulsoes, dominadas pela transparéncia absoluta da Razio. A s que se tornou uma obsessio, é de que a agio racional dos homer ep mao acceada do futuro com o present. O presen mente. O espago-daesperiéncia (0 presente que contém passado) é abreviado ¢ interrompido para que 0 nte-de-espera (0 fururo pela ideia de revolugo permanente, isto é, de ruptura com 0 pace ce consigo mesmo, como realizagao da utopia. A moder io esclarece 0 futuro, pois no Ihe dé ligdes. A como um sujeito universal, um singular coletivo, auténomo ¢ poderoso, realiza € que ele se abre ao futuro e a0 novo, Os tempos passados idos. O presente nao tem o direito de durar. O passado € 0 futuro ndo se recobrem jamais — sio assi 3s. No presente, a histéria é inovagio constante. Ela € um processo coerente, unificado ¢ acelerado da humanidade em direcao ao futuro ut6pico. Os filésofos da histéria definem «esse proceso com termos novos: progress, revolugdo, emancipagio, crise, eri utopia? sobretudo a da pés-Revolugio Francesa, a das filosofias da histér idade, refere-se somente a el no. Ela procura ser auténoma, autoconscicnte, fandada sobre os seus préprios meios. Recusando modelos, a modernidade procura encontrar em si mesma suas préprias garantias, buscando 0 equi- las rupturas que pr Ela se apresenta como inquictu- rento acelerado para a frente, para se manter de io dos tempos novos: a subjetividade. Esse prin- pela reflexio. E pel ade. Para Hegel, o que faz a grandeza desse fempo moderno € 0 reconhecimento da liberdade, a tendéncia do es a0 seu centro, 0 fato de que cle “é em si e a0 pé de si". Como sub TORI + 1085 » Hisronsa & Teoma de, para Habermas, os tempos modernos sio marcados por quatro princt- pios: 2) o individ valer as suas pretens6es); b) 0 dircito & critica (cada um s6 pode accitar 0 que Ihe parecer justificado); ©) a autonomia da agio (somos responsiveis por nossa a¢i0); d) a filosofiaidealista (que apreende a ideia que a conscién- cia tem dela mesma). O sujcito é soberano, critico, livre reflexive ¢ faz valer seu discernimento individual. ‘A-cultura moderna se assenta na liberdade e na reflexio da subjeri- vidade, que deve agit de acordo com a Raro, que, se ousar saber, saberd 6 que deve moralmente fazer. O que os homens devem fazer & a Razio que lhes responde nao a transcendéncia. O sujeito adentra em si mesmo, para se aprender de modo especulativo, seguindo Descartes e Kant. Para Habermas, a modernidade se exprimiu nas trés criticas kantianas como em um espelho. Kant é a sua “imagem refletida’, pois nao percebe como cisbes as diferenciagdes da Razio que cle proprio expos. Hegel represen- taria o “esforco reflexivo”, autocritico, da modernidade, procurando rein- tegrar a Razdo pura, a Razio pritica e a Razdo estérica. Ele foi o primei- mo (a singularidade infinieamente particular que faz ro a pensé-la como insatisfagio radical com 0 seu modo atual, como crise permanente e busca acelerada de sua forma absoluta no futuro. Ele pergunta se seria possivel a subjetividade excrair de si mesma as suas préprias normas, garantias e orientagées, sem nenhuma referéncia a0 pas- sado, A subjetividade poderia se reunificar de forma tio eficiente como foi a representagio de Deus? Essa questio revela que talvez ele proprio duvidasse de que a subjerividade, que teve forga para produzir a rupeura com a religiao como poténcia unificadora, pudesse ser forte o bastante para regenerar pela Razdo a sua poténcia unificadora, As Luzes se sepa- raram da religido por cisio, colocando-se ao lado dela. Houve uma cisto da fé e do saber que as Luzes sio incapazes de superar por seus préprios meios. O mundo do espirito tornou-se estranho a si. A cultura se expan- de, mas ndo consegue se integrar como consciéncia de si. A vida frag- mentada tem necessidade da filosofia, que se tornou herdeira do absolu- to teoldgico. A filosofia deve demonstrar que a Razio tem a mesma capacidade unificadora da religiao, que deve reunit 0 que o principio da dade cindiu. Hegel, a “modernidade reflexiva”, quer radicalizar na busca da integracdo da subjetividade cindida, da reunificagio da vida subjetiva fragmentada."” Jous Cantos Ruts Os eventos hist6ricos que caracterizam a modemnidade, que impu- io moderno da subjetividade, foram a Reforma, as Luzes, a Revolucio Francesa. Em Lutero, a féreligiosa tomnou.se reflexiva. © mundo divino transformou-se em uma realidade instaurada por nés mesmos. O protestantismo jé recusara a autoridade da tradigao e afirmara a soberania do sujeito individual. Depois, com os iluministas, a histéria seria feita por um sujeito singular-coletivo, de forma r nda, & luz da Razio. Ha um culto da hist6ria, que nao € percebida como retrospeccio, retorno € conhecimento do passado, mas como prospecgio e producio do futuro. A ‘modernidade é marcada pela busca do novo, do melhor ¢ mais perfeito, que siio criagSes do homem. O futuro é o lugar da realizasio, da perfeigio, da humanizagio. Versio secularizada da teologia cristé, a histéria universal € vista como cransito, passagem das trevas as luzes, do passado obscuro 20 futuro esclarecido, Por isso, a pressa ¢ a aceleragio do tempo. A histéria € 0 resultado da ago pritico-critica do presente. O sujeito que produ a histéria produz também consciéncia hist6rica, pois ele sabe © que faz. A histéria racio- nal volta a ter sentido conhecidos antecipadamente pela filoso- fia, Esta afirma que “o real racional”. Para a filosofia da hist6ria, ingenua- mente, a histéria € representada como transparente, acessivel a0 conhecimento © & consciéncia. © processo histérico real coincide com a ‘marcha do espirito em busca da liberdade. As flosofias da histéria, os discursos da modernidade, sio consideradas por Lyotard “grandes narrativas”, pois se referem & sujeito universal ¢ pretendem produzir uma descrigao completa do desenvol- vimento histérico, Sao “grandes narrativas” porque totais (abordam o pasado! presente/futuro ¢ todos os eventos), de um objeto universal (a humanidade). Sio narrativas ¢ ao mesmo tempo a propria historia, pois a agio executa a narrativa, que € saber, consciéncia da agio. Nao hi distingio entre conhe- cimento ¢ ago. A narrativa € um mapa vivo e verdadeiro da histéria, ea agio 2 confirma, A narrativa 60 acontecer histérico em seu conceito. Se a nar oferece um conhecimento antecipado da histéria e do seu sentido, a agéo deve apenas realzé-lo. A ideia moderna de histéria esti dominada pelos conceitos de nazao, consciinca, sujito, verdade e universal. A histéria est’ disponivel & ago, Para Koselleck, a ideia de que se pode fazer a histéria era impensivel antes da Revolugio Francesa. A partir dela, a histéria passou a existir em sie ‘como uma substincia singular, imanente, auténoma e universal. O co tnhecimento histérico torna-se prospeccio, previsio, planejamento da agio. A |, revolt B M consideracio do passado — 0 que aconteceu? — é substituida pela conside- ragio do fururo — o que vamos fazer? A modernidade, em suas duas fases, entende a histéria como fabricacéo humana, autoconstrugio da humanidade, ‘que se realiza através do tempo." Para Lyotard, nessas filosofias que expressam 0 pensamento mo- derno, duas orientagées principais se destacam: uma mais politica ¢ outra mais filoséfica. As duas convergem enquanto discursos emancipa~ dores, que véem no fim da histéria a conquista da liberdade. Mas diver- gem quanto aos sujeitos dessa emancipagio. Para a orientagao politica, da qual o Huminismo francés € a maior expressio, os produtores dessa liberdade futura sao 0 povo e seus herdis, que defendem o dircito de todos ao conhecimento, justica, a liberdade e & igualdade. A abater: a Igreja € 0 Estado absolutista, que promovem a ignorincia, a injustica, a desi- gualdade e limitam a liberdade da consciéncia ¢ oprimem o povo. Para 2 orientagao filoséfica, da qual o Idealismo alemao, e especialmente He- gel, €a maior expresso, 0 sujeito da liberdade ndo € 0 povo, mas o es- pirito. O espirito nao se encarnaria no Estado, Estado ocupa posigao central, mas do qual é apenas uma figura. Lyotard apresenta essa segunda posiga0 como filoséfica, especulaciva, mas ela & também politica. A outra é apresentada como politica, mas é também especulativa. As filosofias da hist6ria so a0 mesmo tempo especulagio sobre 0 futuro e sobre 0 sentido da histéria — filosofia — e opgdes por valores determinados e orientadores da ago — politica. Ambas desejam ar o “reencantamento do mundo”, reconciliando politica e moral Ambas transformam a histéria em Tribunal da Razdo, do qual nada e ninguém escapam. O século XVIII tornou-se o século da Para Koselleck, a critica se apresenta como apolitica, pois exercida em nome da Razio universal. Mas scu poder representa o fim de todos os as no sistema, onde o ica racional poderes até entio dominantes. O passado ¢ 0 presente sio destruidos pelo futuro utdpico, Absoluta, a critica se torna crise permanente, revo- lugio. universalista, absolutista. A racional e moral, contra a vi histéria garantem a legitimidade da la, a Razio, € 0 novo sobcrano absoluto: intolerante, totalitéria, jléncia revolucionéria € inocente, pois pura do Estado, As filosofias da Reis opdem a Razdo moral ao rei, & Igreja e a0 passado. Mas toda critica moral esconde intengoes politicas, alerta Koselleck. O novo sujeito poli fico, que se revela e se esconde nas filosofias da histéria, que defendia ‘os seus interesses, era a burguesia europeia. Empunhando a Razio, a burguesia impunha o terror p ico, condenando e destruindo, com legitima e justa crueldade, todos que obstruam o avango da soberania indiscutivel da sua utopia.'? Enfim, em sintese, 0 projeto moderno & 0 de uma historia que se fragmentou e se descentralizou e que busca se reunificar ese reuniversa- izat. E a representacao ocidental da “civilizacdo” como busca da liberda- isto é, da coincidéncia absoluta da subjetividade consigo mesma, A hipétese de base do Iluminismo é hegeliana: a histéria nao pode nao ter sentido, nao pode ser mudanga sem direcio e significado. A hist6ria é governada pela Razio e esta sé pode produzir a moralidade, a liberdade, a justica, a igualdade e jamais a violéncia e a pura vontade de poténcia. Critica do passado ¢ autocritica do presente, a Razio utépica acelera a istéria em diregao ao futuro de liberdade. A histéria volrou a ser meio de salvacio no futuro, secularizando a utopia judeo-crista. A salvacio no € 0 fim do mundo, mas a realizagao absoluta de todas as possibili- dades humanas. Predomina a ideia de progresso: codos os aspectos da vida caminhariam em uma mesma diregio — a perfeigio furura. O homem se resgata pela construgio de uma sociedade moral e racional ¢ pela acumulagio de conhecimentos sobre 0 mundo. O Iluminismo é revolucions nista, O presente perde o dircito de existir enquan- to presente, Ele estd dominado pela ideia de revolugao permanente, de ruptura com o passado ¢ realizagio da utopia. A modernidade é uma cragio de toda referencia a0 passado. A histéria é um sujeito autno- mo e poderoso que realiza 0 trabalho de autoprodusio. E um singular-co- letivo que reiine todos os eventos em um plano tinico. A histéria € um processo coerente, unificado ¢ acelerado da humanidade em diregio a0 futuro racional, & liberdade, & sociedade mor disposigao de um sujeito-singular-coletivo, a humanidade universal, que Se constrdi, construindo-a, A his livre. A histéria esta 3 36 Jost Cantos Ress Modernidade e histéria-conhecimento No século XIX, paradoxalmente, a histéria-conhecimento preten- deu emancipar-se da influéncia da filosofia da hist6ria e tornar-se “cien- hegara-se & conclusio de que a metafisica era impossivel, que cra um pseudoconhecimento, pois seus enunciados eram inverificéveis € incontroliveis. Acreditava-se que s6 seria posstvel conhecer os fatos apreendidos pela sen considerava que as filosofias racionalistas e metafisicas nao revelam nada ici. Um pensamento radicalmente historicista téria cientifica” mais discutir o sentido um conhecimento positive, observando os fatos e constarando as suas relag6es. A influéncia metafisica da filosofia sobre o conhecimento his- Grico foi substicuida por uma atitude realista. Acreditou-se que 0 co- nnhecimento hist6rico tinha finalmente se estruturado em bases positivas a0 encontrar um método seguro, objetivo, confidvel, empirico. O método histérico nao poderia oferecer “cientificamente” 0 co- nhecimento de um principio geral, dado a priori, que conduzisse a his- téria em sua totalidade, apagando as suas diferencas temporais. Ele ape- nas podia oferecer 0 conhecimento das diferengas humanas no tempo, ade passivel de um conhecimento controlivel por documen- tos € técnicas. A histéria daria énfase ao evento irrepetivel, singular, in- inico. Hi um culto do fato realmente acontecido. © objeto do historiador ¢ localizado € datado e recusam-se prineipios essencia variances, submete a principios absolutos. Os historicistas sustentavam que nao ha um modelo imutdvel, supremo e transcendence de Razio. A Razio se teduz 4 histéria. A consciéncia hist6rica é finita, limitada, Ela se organi- que surgia, parecia ndo pretender istorico, nem a histéria universal, mas produzit ie determinem a realidade humana. O fato individual nao se za temporalmente sem se referir ao intemporal. Esse espirito historicista recusa as filosofias da histéria hegeliana c lum universal, a raxio que governa 0 mundo, o progresso. As relagbes entre filosofia e histéria se invertem. Fa filosofia que se revela histérica, O historiador sustenta uma nova atitude, positiva ¢ eritica. O conhecimen- to histérico aspira 4 objetividade cientifica. Nao se quer mais discutir a universalidade ontolégica da histéria, mas a pos versalidade epistemoldgica. A questao da universalidade passa do objeco ao conhecimento. A ridade se consi dade universal, No século XIX, retorna-se & 0 sistema, a histéria ia em enunciados de vi ntuicio dos fundadores gregos: fibulas e lendas so inverossimeis, itreais. A historia procura co- nhecer fatos reais, concretos, verossimeis, isto é, que nao contradizem a marcha natural das coisas, e se distancia da ficgao e da especulacio. Essa ambigéo da histéria cientifica de se separar da filosofia da his- t6ria de faco ocorteu, tornou-se uma realidade concreta? A histéria cien- tifica, que quer conhecer o passado pelo passado, que néo quer especular sobre o futuro, que exclui o presente do seu campo cognitivo, teria sido jé uma primeira rupcura com o projeto moderno, em sua busca acelerada do fururo? A histéria cientifica seria uma nova fratura na identidade ocidental? A histéria realista do século XIX teria de fato abandonado a busca judeo- cristé-luminista do “sentido histérico”, retornando &s suas origens gregas? Se, por um lado, Herédoto ¢ sobretudo Tuefdides voltaram a ser a referén- cia desta histéria, por outro, essa histéria cientifica conservava a ambigui- dade ocidental em relagao a0 conhecimento hist6rico, Era 20 mesmo tem- po grega realise e ainda judeo-crist, a0 manter uma filosofia da hiscéria implicita. Mesmo querendo se diferenciar de Hegel ¢ dos iluministas fran- ceses, procurando resgatar 0 real talcomo se passou, os historiadores-cientistas estavam impregnados de metafisica. Eles no podiam abordar seu material sem pressuposigdes, que continuavam ainda a ter uma origem filosdfica, especulativa. Os historiadores-cientistas s6 eram antifilos6ficos em suas declaragdes. Na pritica, ocultavam sua dependéncia das ideias e conceitos da filosofia da histéria. O que fizeram foi um esforco de rompimento com a metafisica, procurando inspirar-se nas resultados parciais. Tentou-se uma histéria objetiva, nao especulativa, que obteve sucessos significativos, mas parciais. Pois, se 0 evento enquanto puro evento é impensivel, como pen: ria? Como ultrapassé-lo, articulando-o em um sentido que o sustente, inserindo-o em quadros mais amplos? Na histéria cientifica, o evento era organizado ainda pelas grandes narrativas filos6ficas, marcas da cultura moderna, que exerceram enorme influéncia sobre a historiografia do século XIX, apesar do seu p € do seu historicismo. Comte, por exemplo, antes de ser um filésofo da ciéncia positivista, era um filésofo da histéria. Marx, outro exemplo, em- bora tenha sido um dos inauguradores da nova perspectiva das ciéncias sociais, pode também ser visto como fildsofo da histéria, em uma determi- nada leitura, Dilthey, embora critico histérico da razio, era de certo modo nieokantiano ¢ neohegeliano, No entanto, tifca do século XIX, sem recair em uma filosofia da histé- ‘em suas vérias orientagées, sustentava que nao queria pensar a histéria es- peculativamente, com a prion() inverificiveis; nfo queria falar sobre 0 dever-ser histérico, sobre o futuro, sobre 0 que fazer, sobre o sentido final da histéria, mas sobre a histéria tal como aconteceu, como fato, como ocorréncia, como pasado, como conhecimento de eventos tinicos € ite- petiveis, singulares, situados documentalmente em uma data ¢ lugar. Ins- pirados nos gregos, foi isso que os historiadores-cientistas do século XIX pretenderam fazer. Mas a tradigao judeo-crista mesmo tempo, minava essa atitude cientificista e, de modo implicito, a sustentava. Para o historiador-cientista, a questo era: haveria uma ordem para os eventos, um principio organizador e unificador? Se no houvesse, como organizar ¢ coordenar os eventos histéricos, como construir a nar- rativa histérica? Bles acabaram recaindo, sem explicité-lo, na hipétese das filosofias da histéria sobre o sentido todos os eventos sto a sua expresso. Os historiadores-cientistas também con- mento progressive, racional e continuo do povo e do espitito em busca da liberdade. Eles usavam expresses como “espirito do tempo”, “espirito de uma época’, ¢ faziam do Estado — 0 universal determinado, segundo Hegel — o principal personage de sua ‘como dos individuos histérico-césmicos, os herdis. A his- t6ria politica predominante no século XIX era feita com a priori(s) f- los6ficos, apesar das declaragées antifilos6ficas. A hist6ria torna-se continua ‘¢ com um sentido final tinico. E continua sendo representada como a ex- pressio do Espirito universal ¢ dos dirigentes do povo. Os historiadores procurariam encontrar, inconfessadamente, nos eventos particulares, uma diresio universal invisivel. A obra histérica tinha a pretensio de ser a cons- ciéncia de uma época. Defendendo a mesma ra70 e 0 mesmo progresso, sta continuava presente €, a0 rico: a Razdo governa o mundo € sideram a histéria como desenvol histéria, © conhecimento histérico passara de filoséfico a “cientifico"! A histéria continuava inteligivel, pois submetida a uma ordem racional. A dispersio dos eventos ganha um fio condutor considera a histéria como o desenvolvimento progressivo, racional e con- tinuo do Espirito ou do Estado-nasio, do povo, em direcio & liberdade. Ele faz. do Estado sintese do particular e do universal, e de seus herdis, 0s principais personagens da histér Quais seriam as relagées dessa histé1 atifica ¢ ainda filo- séfica com a modernidade, tal como foi definida antes? Esse historiador vive uma fecunda ambiguidade: ainda esti dominado pelas filosofias da historia e quer se referir a0 real enquanto tal! O historiador-cientista a0 ‘mesmo tempo se apoia numa especulagio sobre o sentido histérico ¢ bus- uma representagio realista do que de fato ocorreu ino seria uma reconstrugao, pelo historiador, do processo histérico, mas a sua reconstituigao verdadeira. Nessa perspectiva, a hist6ria efetiva c 0 conhecimento histérico se recobrem: 0 segundo re- presenta ficlmente 0 seu objeto-processo, © que antes fora questionado ¢ descartado como “especulagio” tornou-se uma representacio adequada do {fica apenas recusa nas filosofias da histéria 0 seu ca- réter especulativo. Ese apropria delas, ressignificando-as. © olhar cientifico do século XIX significou a radicalizagio da fianga no projeto moderno. As filosofias da histéria perderam seu cardter n- ‘metafisco para se tornar a prépria légica, “cientifica’, da dinamica histérica real. E por isso continuam valendo como nunca! Elas se tornaram a “ver- dade” dos eventos. Com 0 seu apoio, agora considerado cientifico, o his- toriador pode diferenciar povos inferiorcs ¢ povos superiores, povos mais ‘e menos livres, povos mais avancados € mais atrasados. Em relagio a qué? Em relagio & filosofia da histéria, moderna, que sustenta que a Razo go- jéncia ¢ da liberdade. A verdade histérica cientifica continuava politica ¢ moral. A “ciéncia histérica” a0 ‘mesmo tempo recusa ¢ exccuta uma verdade moral: hd povos mais morais mais livres, superiores. Essa verdade moral, alerta Koselleck, ao mesmo tempo esconde e executa um projeto politico: os povos mais morais fém dircito a0 poder ¢ até a violéncia. Esses povos morais ¢ livres s40 as nagies curopeias. A histéria cientifica prossegue, reinventando o projeto moderno europeu de conquista da histéria universal e de controle do sentido histé- rico, adaptando-o &s novas citcunstincias do século XIX e radicalizando-o. Para a histéria cientfica, a Europa continua sendo o centro e a vanguarda da histéria universal. Ela & a guardia e a executora do “sentido histérico entifico”, conera 0 qual nfo hé apelagio nem rel [As nagies europeias sio apresentadas como a incontestavel expresso su- petior do Espirito universal. Blas realizaram suas determinagbes mais avan- adas ¢ livres, mais civilizadas. Elas esto espirito-atualizadas. O seu papel civilizador, espirito-atualizador das outras partes do mundo, que elas “des- cobriram”, é legitimo. Se sio obrigadas & violencia é por obra da “asticia da RazSo”, que faz o bem através da violéncia. Baseada nas filosofias da historia, no discurso da modernidade, agora tido como o segredo revelado verna 0 mundo em busca da autocons jiosa, nem especulativa. 4 ismo, oferecendo argumentos, documentos, informagdes ¢ legi- timacio ética a das ico — uma concordincia de discordancias, uma ordem, uma intriga completa, 1m sujeito em que os eventos possuem um mas a narragio real ¢ verdadecira do drama da reproducéo, um mapa vivo da marcha do espitito. “O real a autoconsciéncia de si da humanidade em marcha. O ico no € exterior ao real, mas o prdprio real em movimento. yento no se € vivid € transparente jonal. A aco executa a narrativa, que € consciéncia, endida como portadora do a liberdade, como um processo que leva das trevas irracionais do passado a luz da Razao no futuro. Conhecedor do segredo da histéria, do seu sentido final, o historiador, segundo a Razio, seria juiz, cr!- ico. Juiz, 0 histo- sor dos valores modernos — burgueses, europeus ociden- icamente — serve aos gru- pos em luta pelo “controle moral” do sentido histérico universal. Ela se torna “cientificamente” a expressio da vontade do Estado ¢ das instituigées da sociedade A ideologizacao do discurso cei interesses particulates dos Estados ¢ dos pressio da liberdade ceresse particular. O Ocidente, ido de que é portador da ver- lo da dinamica da vida humana, de no século XIX, esté cientificamente ct dade de que comhece o s sminista francés, expresses da moder- ico e da agio ca. Eles legitimariam ambos de modo diferente. Na perspectiva das Luzes francesas, h4 duas o1 Wa e a revolucionaria. A pri- meira defende o progresso gradual ¢ inevitavel para a perfeigdo, pela re- forma do Estado e da sociedade atravé racional, pelo esclare- cimento do princi representa melhor, defende lizagdo da aqui e agora, contra o presente-passado. O historiador gradualista seria 0 juiz portador dos valores modernos: condenaria ¢ absolveria; 0 historiador io, mais convencido ainda da verdade dos valores oc ‘e, politicamente. Ele seria m soldado do futuro, © marxismo prosseguiu e aprofundou essa segunda :minista. As Luzes geraram dois tipos de conhecimento his- de uma época, reformista € ia critico-prética”, uma arma de combate. Na perspectiva hegeliana, a legitimagao dos atores histéricos e do Estado é progressista. Nao se percebe o progresso, nesse caso, como um. desenvol vidade do espitito, violenta e tragicamente ¢ de modo nao linear, No en- tanto, por maior que seja a tragédia vivida, o final serd feliz. © espirito estar mais livre, superior, autoc egrado, apés a tormenta, O espirito se objetiva no tempo, se pde, se ope € se repde. Parece transcorter jo tempo, pois cle nfo saiu realmente de si, nao evolui nao progride. Os individuos agem por ele, sofrem nele, passam. Mas ele continua sendo o que sempre foie integra em si, em um presente continuo, todas as suas objetivagoes passadas. O espirito vive em lum eterno retorno a si mesn © gradual c tranquilo, mas como produzido pela negati- ‘concepgio moderna da histé © evento. Ela levou & produgio controlar, pois supunha-se que o seu sentido era antecipada e apriorstca ‘mente conhecido, Ela levou a uma revolucio permanente do vivido, a uma aceleragio vertiginosa da histéria. Levou ao terror da utopia, a um mundo social dominado pela Razio absoluta, total, universal, homogenea, transpa- rente, autoconsciéncia integral de si. Sob a influéncia moderna das flosofias da hist6ria, a histéria buscou uma explicagéo racional para os processos hu- manos ¢ voltou-se para a produgio da utopia. Essa utopia seria a realizacio histérica da RazZo em uma sociedade em que todos os “desvios irracionais” Cetiam sido dissolvidos. Uma sociedade dominada absolutamente pela Razio justa, gualicdria elivee, A pos-modernidade um dos primeizos a recusar a titania da Razéo sobre o sentido histérico, abrindo outra profunda fissura na identidade ocidental. Ele é 0 mais radical formulador da crise do racion moderno. Se uma cultura vive de crengas ¢ valores, para ele os valores dos quais vive o homem ocidental — cris racionalismo, moral dé dever, democracia, socialismo — sio sintomas smo ismo, pessimismo, ciéncia, de decadéncia, de uma vida que se empobrece ¢ se apaga. Ele quer quebrar esses valores que revelam cansago de viver ¢ par em primeiro plano a vontade de poténcia, a alegria de ser. A obra de Nietesche & um esforgo para vencer a Razio, a “frente fria’ da cultura ocidental, que- brando aqueles valores e reestimulando uma “corrente quente”, que cle denomina “Vida”. Ele defende um eterno retorno ao principio, a cria- Gao, ao antes da ‘dria da Razdo, a0 momento em que sc tinha toda a vontade de viver. Ele defende a eternidade do efémero contra a etet- nidade atemporal, 0 agora eterno contra a utopia no futuro. Para ele, deve-se esquecer 0 passado ¢ ealegri iar a vida, recomecar, com coragem Ele recusa os pilares da a objetividade do cientista, 0 igualitarismo socialista, Para ele, a deca- déncia do Ocidente comegou com Sécrates, que teria desviado a huma- mo descreveu o idade no além, Na encarnado, vivo, auténtico, apatente, Para Nietzsche, sio perspectiva do além, o aqui-agora terrestee, corpor: € percebido como provi Jost Cantos Reis 0s escravos ¢ vencidos que inventaram o al alegrias deste mundo, Cultivam o édio a vida. A moral dos escravos € uma autotomia: reativa, ressentida, cul- pada, Um autoaniquilamenco! Nietzsche lamenta o egoismo c a crueldade reinantes, mas sobre- tudo a boa moralidade, os cons que trazem um de- itamento fisico e moral. Valoriza 0 super-homem — no como repre- sentante da ideia universal, mas como um particular ousado, que quer viver € cotter riscos. Sua ética aristocrética é afirmaciva, € um sim a si mesmo, € criadora de valores. O forte é ativo € Para os fracos, 0 forte é cruel, librico, impio, insaciivel; bons sio os miseraveis, pobres, necessitados, impotentes, baixos, sofredores, doentes, escravos. Os hu- rildes, Os vencidos. O cristio, fraco ¢ ressentido, despreza o forte, pois odeia a vida, a alegria, a poténcia, 0 sucesso, a agio. O ressentido é uma “vontade culpada” e inventa uma outra vida além desta que vive. Ha 2 mil anos, ele protesta, 0s escravos venceram! A cultura moderna é domi- nada por essa moral do escravo, por seus hist6rico da cvilizago ocidental, desde Sécrate, €recusa deste mundo, ia, € 0 consequente declinio para o além. O t que mais recusa a vida aqui, imagina que obterd a gléria no além. Seus valores, que recusam 0 mundo, ele os considera representantes do bem, superiores; os que defendem a vida aq) do mal. Apolo, deus da forma, da ponderagio, da medida, do conheci- mento e do controle de si, contemplative e sereno em meio a um mundo de dores, venceu Dioniso, deus do desequilibrio, da nao serenidade, dos instintos vitais. Nietesche defende uma vontade alegre, dionisiaca, contra avontade culpada, apolinea. Para ele, ocidentais ¢ fazé-los recuperar 0s instintos primordi . pois nfo podem ter as ido que é humano, hostilizam lores superiores". O sentido Ikimo homem, © ele os considera representantes é preciso desdomesticar os homens . E preciso libertar 4 vida. Os valores no sio nem eternos, nem universais, nem transcen- dentes, nem metafisicos. Sio eriagbes muito humanas. Para Nietzsche, 0 conhecimento histérico ocidental dominado pela Raao nao é capaz de conhecer a vida, que afirma querer conhecet. E disseca e mata. A historia cientifica é uma desvantagem para.a vida. Ela quet repetir a grandeza passada, uniformizando e depreciando a diferenga, des- vitalizando o vivido singular. Ela cré que pode conhecer todo o passado sem “4 fome e necessidade e em sua verdade! El: tempos alhcios a ela, perguntando a eles “o que faze hea ra moderna de outros A histéria cientifica cultiva a indiferenga © a neutralidade, ignorando 0 que hé de misterioso ¢ stntivo na vida. Ela resseca a vida. Trata a humanidade como se fosse uma velha e ¢ hostil a toda ousadia. Ela se deixa dominar pela poténcia de uma metafisica dos fatos 8. Uma histria itl a vida, a0 contrétio, faria a genealogia dos modos ¢ valores histéricos criados pelos homens e no por forgas metafisicas. Uma histéria que servisse & vida lutaria contre o sentido ‘istbrico, contra a histbria universal, contra os fats, contra a corrente. Ela luta- tia contra todo determinismo, reducionismo, mecanicismo, destino inesca- Pivel, diresio tinica e universal do viver. Ela culivaria a ousadia, defenderia © dircito préprio de viver, seguiria os instintos e a imaginacio, que sempre leva 8 fundagio de um novo tempo, a um novo inicio, e nao & continuidade dos tempos. E decantatia 0 fardo do passado, para reiniciar a vida. Ela co- inheceria sentidos particulares e hist6ricos, desconheceria leis e desprezaria as ‘massas. Fla valorizaria os grandes homens, a aristocracia criadora de valores. Ela nao representaria vida nnfcamente”, mas com arte, poderosa ¢ alegre, revigorando os instintos viais,valorizando tudo o que foi negado pela histéria racional/cientifica."® ‘Com essa nova representaglo da historicidade, Nietzsche negava as filosofias da histéria € a histéria cientifica, o discutso da modernidade, rompendo com a racionalidade do projeto modero ¢ abtindo nova ¢ funda ferida na identidade ocidental. Contra a metafisica da Razo que governa o mundo, contra 0 outro mundo sagrado, ele prefere a orca pro- fana, vivificante, dos instintos vitas. Marx ¢ Freud também sio grandes eriticos do projeto moderno da hist6ria como produgio da autoconscigncia e da liberdade. Uma nova e tf- tica relagio com a temporalidade constitui-se no século XIX, aprofundando- se no século XX, com a experiencia ocidental de eventos draméticos. A Euro- pa, derrotada tragicamente em guerras internas ¢ externas violentas, no representa mais a Civilizagao, nao ditige mais a histéria da Razo. Muitos intérpretes comecam a formular a hipétese de que poderiamos talvez estar vivendo algo como “pés-modernidade”. Esses autores acima teriam claborado a consciéncia de uma ruptura com o projeto moderno. Essa dita pés-modernidade procura deslegitimar 0 governo da histéria pela Ravio, Ela ' Niewsche, 1983. sacelera a histéria, desinteressa-se pelo futuro, que no pode mais ser pro- duzido com seguranga. © sentido universal se decompée, os sentidos se muliplicam. A grande narragio se fragmenta em miiltiplas natragies. A grande narragio moderna era normativa, moralista, submetia a ago ao dever set ut6pico. Na pés-modernidade, 0 universal se pulveriza em individuo. fragmenta-se. Nao hd mais supractitérios que possam decidir entre 0 ser ¢ 0 dever ser. A comunicacio, a intersubjetividade tornam-se quase impossiveis, Os consensos posstveis s40 provisérios, locais e precétios. Predomina o dis senso, 0 jogo de linguagens divergentes. O presente se espacializa, se desace- era. Compreende-se que 0 que era considerado valores universais de uma possivelhistéria universal representava os valores particulares da Europa em seu “expansionismo metastético”, A Razo que governava o mundo era a universalizagdo do interesse particular europeu de instrumentalizar o mundo. ‘A Razio universal era a méscara do interesse particular eutopeu. A pos- -modernidade concretizou-se historicamente no mundo ocidental ps-1945 —um mundo americano, pés-europeu.!® O século XX se deu historicamente conta dessa crise da Razao, ja percebida e formulada por aqueles autores do século anterior, em meio as tragédias que acompanharam a derrota da Europa. O pensamento dessa derrota seria o “pés-modern és metafisica humanista da subjetividade moderna — deslegi bra, desmemoriza, quer esquecer o discurso da Razéo que levara a0 totalitarismo, ao holocausto, is guerras mundiais. Desacreditada a Razio, passa-se & sua desconstrugdo. Tudo o que cla havia reprimido € valoriza- do: o homem selvagem, a loucura, a crianga, a mulher, o delinquente, 0 docnte, 0 analfabeto... Descobrem-se oucras légicas, a pluralidade cultu- ral. A alteridade torna-se um problema histérico mais interessante do que 0 da identidade universal. O Ocidente se percebe nio linea. A ideia de ‘um progresso continuo da liberdade e da lucidez humana revela-se ingé- ‘nua e perigosa. O futuro ndo pode sera tinica realidade hist6rica legitima, pois virtual, sempre virgem. A vida é o atual, que nao pode ceder seu lugar a vida futura, por mais racional que esta prometa vir a ser, pois seria a mutilagio do vivido. A cuforia da utopia universal € substituida pelo pensamento do limite, da valorizagao da vida uma nova historiografia dessa nova vida procura ainda se edificar. H interes- i igalhas, curioso de fatos ¢ biografias de homens apenas nteressantes”, € ndo por serem centrais ¢ herdis, Depois do espirito universal ¢ das estruturas impessoais, no pés-estruturalismo, retorna 0 eu, com a sua experiéncia vivida obscura, com o seu pequeno reino afetivo, com a sua biblioteca pessoal, as suas angtstias pesso: ujas solugGes so encontradas em um sistema filos6fico pessoal. ‘Termina ailusio moderna: a histéria nao salva e ninguém mais se nutre de sonhos utépicos e luta por qua ida além ou no futuro. talvez signifiquem a mesma coisa!”” que se costuma chamar de pés-modernidade poe em xeque 0 sentido moderno da histéria, a identificacéo da histéria com a marcha do Espirito (Europa) em busca da liberdade (Poténcia). Procura-se deslegiti- mar 0 governo da histéria pela Razdo. Nao se quer mais 0 futuro agora, pois nfo sc sabe se € possivel produzi-lo com seguranga. Ha uma desace- leragio da histéria — 0 futuro se distancia e o passado torna-se tema de vagas evocagées. No século XX, pareceu estar ocorrendo um retorno radical 20 modelo grego e renascentista de compreensio da hist6ria: 0 desinteresse pelo sentido histirico. O sentido se decompée ¢ se esfacela. O conhecimento rio coincide com o real e nao produz a superagio das tensdes ¢ conflitos em uma conscincia utépica. A pés-modernidade recusa as filosofias da histéria, pois a fragmentagio torna indiscernivel o fio condutor que leva & utopia. A grande narragio unificadora, emancipadora, se fragmenta em las pequenas narracoes. A narrativa pés-moderna s6 visa 3 eficécia, A performatividade, isto é, uma racionalidade técnica, local, parcial, sem realizar valores universais. Os inceresses se multiplicam e o individu: parcial rompem com a perspectiva da universalidade. Na pés-modernida- de, 0 ecletismo e 0 agnosticismo predominam.' Para Rouanet, tem-se a impressio de que nao ha divida de que es- tamos vivendo uma época pés-moderna. No entanto, cle parece no estar disposto aesquecer 0 projeto moderno e duvida dessa impresso, Accitar que somos “pés-modemnos”, afirma ele, dé a inquietante impressio de que nao somos contemporineos de nés mesmos. Ele admite que ha uma consciéncia de ruptura, mas seria preciso saber se essa ruptura é real, Nem sempre ha ‘coincidéncia entre ruptura e consciéncia da ruptura. As vezes hd ruprura sem consciéncia, como na Revolugio Francesa; em outras, ha uma consciéncia iluséria de rupeura, Para Rouanet, apesar da polissemia do rermo, “pés- -modernidade” definiria um estado de espirito, uma sensibilidade, uma “consciéncia de ruptura”, mais que uma realidade cristalizada. A Razéo, ins- trumento com que o Huminismo queria combater as trevas da supersticio, édenunciada por essa “sensibilidade pés-moderna” como o principal agente da dominagao. Hé uma consciéncia de que a economia ¢ a sociedade sio regidas por novos imperativos, por uma tecnociéncia computadorizada, que invade nosso espago social e substitui o professor € o livro pelo computador pessoal. Ninguém sabe bem ainda o que isso significa. Para os marxistas, segundo Jameson, depois da I Guerra Mundial, de fato, uma nova sociedade emergiu, caracterizada pelo consumo, pela accleragao da mudanga, modas ¢ estilos efémeros, publicidade agressiva, TV e midia, pela substituigio da tensio cidade-campo, centro-provincia, pela tensfo subtirbios-padronizacio universal. Isso marca o fim do mundo pré-guerra, O pés-modernismeo liga-se a emergéncia desse novo momento do capitalismo tardio, multinacional ou de consumo. Nessa cultura pés- moderna, perdeu-se 0 sentido histérico, seja como retorno ao passado, seja como construgio do futuro. Nao se retém mais o pasado, que € apenas evocado, sem 0 compromisso de se conhecé-lo como acontecido, Nao se uta mais por um futuro utépico, pois rompeu-se com a l6gica teleoldgica Vive-se um perpétuo presente, em aparente mudanga continua, que destrdi as tradigées ¢ as expectativas. O recente é consumido pela midia © posto imediatamente como passado. A fungio da m{dia € manter vivo o presen- te-continuo, Ela nos ajuda a esquecer, cria a amnésia, substituindo rapida- mente as imagens que nutrem 0 nosso interesse pelo mundo externo. A realidade & transformada em imagens. O tempo ¢ fragmentado numa série de voliteis instantes percebidos paradoxalmente como eternos. Talvez seja a versio pés-moderna de Deus, esta imagem fulgurante e volitil do ser. Ea vitéria do brilho do vaga-lume sobre a noite escura, de Braudel. Por ser assim, uma itil”, 0 pés-modernismo poderia ser critico do seu tempo? Para Jameson, ele parece reproduzir e reforgar a ldgica do consumismo. Serd que resistiria também a essa Kigica do efémero? Nio se a 8 Misrénia « Teoma autoconsumiria e desapareceria tao rapidamente como apareccu? O pés-moderno diria que essa pergunta — se ele ¢ “critica” do seu tempo — € inadequada, pois a preocupagéo com a critica € moderna ¢ é com cla que ele estaria rompendo. Ele € pds-critico. Ele significa o fim do projeto critic!" Aqueles autores do século XIX que se opuseram ao sentido teleolé- gico das filosofias da histéria criaram uma represencagioestrutural da histbria que predominaria na primeira metade do século XX. Seguindo Marx, Freud e Saussure, o estruturalismo aprofundou a revolucio cultural pés-moderna. Foi o estruturalismo que afirmou a multiplicidade das ditegdes histéricas, contra 0 progresso, que recusou a histéria global, que suspeitou da lucidez da Razio moderna, que duvidou da revolugao e da utopia, que desconstruiu a subjetividade moderna. Foi cle que aboliu a diferenga entre sociedad feriores ¢ superiores. Foi ele que saiu do circulo vicioso da identidade racio- I ocidental ¢ revelou a alteridade interna ¢ cultural. Ele desconfiou do da revolusio, da astiicia da Razo. Ble descentrou © sujeito ea histéria, evitou a utopia, temeu a acéo sem controle técnico, ‘op6s-se ao conhecimento especulativo, recusou 0 racioc{nio teleoldgico. Ele ‘comegou a “suspeitar da azo”, percebendo-a como totalitéria, violenta. As Luzes seriam uma “lucidez louca”, repressiva. Ele pi dade, desconstruiu o sentido metafisico que assegurava e garantia um final Temendo a Razio & solta, buscou abrigo em uma temporalidade es- pacializada, enfatizando as constantes, as longas duragdes, as estruturas. A historia se desacelera e se fragmenta em épocas sem corrclacio e sem uma Logica evolutiva. A hist6ria excede 0 sujcito. Deve-se impedi-lo de fazé-la “Fazer a histé in- sgiou a descontinui- fazer historia” se separam, isto é, a realidade histérica niio ¢ transparente, 0 conhecimento que se pode ter dela no € narrativo, mas uma reconstrugio légica. A pés-modernidade desconstréi as ilus6es da Razio: a busca de uma cocréncia global, de um imperativo categérico, No entanto, hié uma ambi- guidade no esteu smo: ele se opde & modernidade, por um lado, mi Por outro, parece ainda pertencer ao projeto moderno, pois seria ainda um discurso da Razao. Fle quer apreendé-Ia a contrapelo. O seu objetivo éultra- racionalista: introduzir na Razio o que a racionalizagio iluminista deixara de lado como irracional. O estruturalismo pés-racionalista, paradoxalmente, pratica a desconstrucio, a deslegitimagao da metafisica, para apanhar a Razdo em suas frestas. Marx, Freud ¢ Saussure, fundadores da visto estrucuralista da histéria, so aind: iss: visam a tomada da autoconsciéncia pelo sujeito, que busca ainda a liberdade. O pés-estruturalismo, que se consolidaria nos anos 1960, iria mais Jonge na recusa da modemnidade, radicalizando algumas teses do estrutura- nada. A desconstrugio pés-estruturalista é desrealizadora. O 6 simulacto, suplanta a realidade. A imagem supercolorida, hiperdimensionada ¢ ultradifundida de um objeto torna-se maior € mais real do que o referente. E hiper- ito menos real do que a sua imagem idolatrada pela im ser refletidos no espelho da ‘a, tornando-se imagens coloridas de TV, revistas ¢ jornais. A imagem refletida no espelho é mais real do que o ser refletido. A superimagem, a sua exposigéo exaustiva, substitu o sentido, oferecendo a sensagao da Presenga. AA guerra vista pela'TV nio escandaliza, nfo horroriea. E mais um festival de “imagens fortes", que faz aumentara audiencia eo faturamento, Os discursos se multiplicam e nio se referem a algo exterior, mas sio independentes e sem significagio essencial. Os significantes se libertam dos significados e referentes. O real toma-se apenas uma “imagem actistica’. Ou apenas uma imagem hipercolorida c hiperdimensionada, que é exposta agressivamente pela midia. E essa fragmentagao e dissolugio do real é vivida alegremente, sem culpa. Ocorre uma “espetacularizacéo do vivido”. Assim como no Renascimento, a ruptura com a representagio moderna da utopia é vivida como uma alforria, luma restauragio da vida. © movimento dito pés-modemno preferiu mergulhar nos prazeres do irracion sentido ontolégico reconhectvel, que se accite 0 fugacidade. Este & 0 sentido hist6rico posstv Essa nova época do espirito ocidental teria representado uma ruptura com a Razo ou um novo modo em sua formulagio? Se é acci- tavel que 0 mundo pés-1945 se diferenciou da época anterior, sua me- Ihor definigao seria “pés” ou “neo"moderno? Por um lado, os decepcio- nados com o racionalismo ocidental adotam uma postiita terem perdido o sentido histérico ¢ 0 lamentarem comé Perdido tudo. Outros se sentem livres da “jaula de ago” da Razio smo. J4 que no ha mesmo stante em sua prizerosa ta, por se tivessem 9 50 mergulham alegremente no presente. Por outro lado, ha os que acredi- tam quc a Razio nao foi superada ¢ que o projeto moderno, apesar da crise, continua em vigor. Para estes, a fragmentagao do sentido 36 reve- la uma agudizacio da Razdo. Lévi-Strauss, Foucault, Lacan, Derrida, na verdade, buscariam a Razio nos lugares mais escuros, menos frequenta- dos antes por ela, isto é, ampliam o seu alcance. Uma Razao descentra- da, miltipla, fragmentada nao seria mais hicida do que uma razio uni- ficadora, centralizadora ¢ autoritéria? Habermas formula a grande questo: deve-se abandonar o projeto das Luzes ou deve-se defendé-lo, apesar da sua crise? Ele sugere que a modernidade nao deve ser reduzida 0s seus resultados negativos. E prefere definir os seus € os meios que esta propria Razéo tem de se autocriticar, Ele opée uma razio autocritica, comunicativa, ético-pratica, fundada na relagao entre sujeitos sociais, mediada pela linguagem, 4 razdo instrumental. EA razio \strumental, opéc a razao intersubjetiva. Ele alarga o conceito ilumi- nista de raziio. Para Habermas, os ditos pés-modernos reduzem a Razio moderna ao seu aspecto instrumental. Sua recusa da Razao se apoia em um equivoco de andlise. Habermas deseja recuperar a Razio ao acreditar que sé ela mesma, autocriticando-se, refletindo sobre si mesma, poderia superar seus pré- prios desvios. A critica pés-moderna, para Habermas, faria parte desse esforgo da Razéo de encontrar em si ¢ no fora dela a solugio para os seus impasses. A Razio moderna possui meios para a sua autocritica ¢ autossuperagio. Ela sé precisa incluir em seu movimento autocritico 0 outro da Razao: a violencia, o desvario totalitario. Para ele, é preciso manter 0 otimismo e defender uma hist6ria sensata; defender a lingua- gem ea vontade de sentido contra a agao sem linguagem (violencia) e a auséncia de sentido (relativismo). Partindo de Habermas, pode-se supor que a pés-modernidade talvez. nao seja uma saida da Raz3o, mas um retorno & sua fase inicial renascencista, Essa fragmentagio talves signifi- que um retorno a0 inicio dos tempos modernos, quando a ruptura com a teligido, o “desencantamento do mundo”, trouxe a0 mesmo tempo a perda do sentido unificado e o prazer da vida neste mundo, Por algum tempo, a perda do sentido universal representou uma alegria de viver. As res ¢ desvios Luzes recolocaram a questio do sentido universal ¢ a experiéncia histé- rica voltou a ser violenta e triste. Com a Razo, procurou-se substituir a religito, oferecendo um significado e direcdo universais As ist Luzes fracassaram na construgao do sentido universal, assim como a re- ligido fracassara. A dispersio do sentido, acompanhada do prazer do pre- sente, da leveza do passado ¢ do descompromisso com o futuro, talvez seja no uma ruprura com 0 projeto moderno, mas um retorno 20 seu primeiro movimento, & sua primeira intuigo, & sua primeira realizacio. E, nesse caso, como um retorno as origens da modernidade, a pés- dernidade talvez signifique uma adesio ainda mais radical ao. projeto moderno, em sua face grega ¢ renascentista, ¢ a crise de sua face socrati- co-judeo-crista. Nietasche no procurou se opor 20 projeto moderno recorrendo ao pensamento pré-socestico?® Essa crise pés-moderna ocorreu na Europa como desdobramento da revolucio cultural moderna, europeia, iniciada no século XVI. Mas a ideia de pés-modernidade envolve também outros temas. Para Habermas, 10s anos 1950, a temdtica iluminista-hegeliano-weberiana da modernidade se apresentou de outro dizer algo diferente de “modernidade”. Modernizagao seria um conjunto de processos cumulativos que se reforgam uns aos outros — a capitalizacso © a mobilizagio de recursos, o desenvolvimento das forcas produtivas, 0 au- mento da produtividade do trabalho, a centralizacéo dos poderes politicos ¢ o diteito & participacao politica, a ur- izagio dos valores e normas. Essa mo- ligava estretamente a modernidade a0 ra- iodo. Apareceu o rermo “modernizagio", querendo ternamence, representa para estes povos uma ruptura profunda, néo cons- truida por eles préprios, mas imposta do exterior, em nome da performance «eo nao emerge de uma nova subjetividade racional, aborigines, autéctones de todas as partes do ‘mundo conquistadas pelo Ocidente moderno. Esse conceito dos anos 1950 define também uma forma da pés-modernidade na Europa. A pés-moder- niidade ligada & modernizagzo refere-se ao processo de automatismo em que se degradou a revolugio cultural da modernidade. Hii tedricos da cultura, seguindo Spengler, que sustentam que a civilizagio ocidental vive uma de- igem e vé-se domina- Pa da pela tecnologia e por comportamentos automatizados, Ela teria sido vit ma do seu proprio desenvolvimento, que acaba geralmence em decadéncia e morte das culturas. Nesse processo pés-moderno, as premissas das Luzes estio mortas ¢ $6 suas consequéncias continuam a agir, sem o seu espitito original. A modernizagio limita-se a fazer Funcionar as leis da economia e do Estado, da técnica e da ciéncia, formando um sistema fechado a toda ago transformadora, Os processos sociais se aceleram sem criar mudanga profun- da, pois a esfera da cultura esté esgotada, cristalizada. A cultura moderna se cristalizou porque realizou todo o seu porencial. Suas oposigoes foram inte- gradas e as mudangas profundas nao so mais possiveis. A histéria das ideias est fechada e, entao, entramos na pés-histéria. E sé gerir os seus bens acu- mulados. A revolugio cultural da modernidade se interrompeu nese proces- so puramente econ6mico-tecnolégico de modernizagao. Esta & a forma ne- oconservadora de fechara modernidade. Outros pés-modernos (anarquistas), ainda segundo Habermas, falam do fim das Luzes, da superagao da Razao € também estio na pés-histéria. Mas, 0 anarquismo pés-moderno visa mo- dernidade em seu conjunto. Para eles, a Razio revelara 0 seu rosto: & uma subjetividade que submete tudo, estando ela mesma submetida como uma vontade de autocontrole instrumental. A Razo sem véus é uma vontade de poténcia pura e simples. A critica pés-moderna de Heidegger quer quebrar a jaula na qual o espirito da modernidade se objetivou socialmente. Apesar das diferencas, essas duas teorias da pés-modernidade romperam com ho- rizonte categorial com 0 qual a modernidade se autortepresentava. Para elas a modernidade j pertenceria a uma época passada.”* Enfim, na cultura pés-moderna, é preciso renu discursos iluministas. Marx, Freud e Nietasche, cada um ao seu modo, desmontaram a unidade sujeito-consciéncia. Eles mostraram que, entre os dois, hd rupturas, falhas. Se for possivel a coincide: ta, linear e transparente; precisa ser construida, elaborada, passando pelo re- conhecimento da sua alteridade irracional. O historiador olha com suspeita as histérias universais, os grandes sistemas. A histéria nao usa mais concei- tos como racionalidade, teleologia, relativismo, sentido. A cultura pés-mo- derna denuncia uma estreita relagio entre 0 totalitarismo € as Luzes. Os totalitarismos do século XX seriam a encarnagio da Razio absoluta. No século XX, a Razéo mostra a sua verdadeira identidade: vontade de con- a Hegel e aos cla nfo seré um sim a si mesmo. A “vontade de poténcia” da razio instrumental & conquistadora, dominadora, manipuladora da alteridade. Para a sensibili- dade pés-moderna, ase estaria hd muito fora do projeto modemno-iluminista. E felizmente!™* Pés-modernidade e histéria-conhecimento © que seria uma historiografia dominada pela temporalidade pés- -moderna? Esse quadro no estd estabelecido, pois ainda vivemos esse proceso ¢ nfo conhecemos bem scu significado. Vamos nos limitar a fazer algumas reflexdes e sugestdes sobre o estado atualissimo da cultura, sem pretender organizé-lo de forma definitiva, 0 que seria impossiv Além disso, o desenho répido e de linhas trémulas que tragaremos jé esté ultrapassado, dada a impossibilidade de qualquer discusso coincidir com © atual. A historiografia dominada pelo processo cultural da modernida- de & conhecida até em suas expresses mais heterodoxas. Ela foi absolu- tamente dominante até a primeira geragio da chamada Escola dos Anna- des. Qual foi a repercussio real sobre a hist6ria de autores neonietzschianos como Foucault, Derrida, Deleuze ¢ neo itheyanos como Heidegger, Gadamer, Ricoeur ¢ 0 préprio Habermas? Qual foi a repercussio sobre 0 conhecimento histérico da aceleragao espantosa da ciéncia e da técnica, resultado mais impressionante da revolugio cultural da modernidade? As mudangas profundas na C&T criaram uma atmosfera cultural nova, que afetou profundamente o conhecimento histérico. O novo ambiente cul- tural é complexo: o presente é de globalizagio e individualismo, de rup- tura com o futuro € 0 passado € de satisfacao com o presente, de acele- ragio da mudanga e de consolidagao e quase ctistalizagao do presente, de intensa comunicagao e sofisticacéo dos equipamentos ¢ de desmobiliza- ‘do da discussio das questes humanisticas e filosdficas. Nao ha projetos sociais ou grandes causas que mobilizem os grupos sociais. “Promessas de sol” no queimam mais o coragio ocidental! Na cultura pés-moderna no hi profecias nem utopias. O futuro nao é mais detentor do ctitério ético que orienta a agdo. Terd sido o fim de toda teleologia? Nem 0 pas- 0 Huriam = 7 sado é mais “mestre da vida”. Vivemos “tempos novos”, muito novos, onde o presente recuperou seu di historiadores, que tém maior sensibilidade 4 mudanga, o papel de iden- tificé-la e pronuneié-la.® Essa mudanga na experigncia da temporalidade teria repercussbes importantes sobre a sua representacio historiogrifica. Se o tempo da mo- dernidade significara uma aceleragio do tempo hist6rico, apoiado nas fi- losofias da histéria, as novas cincias socials, no século XX, perceberam que esses eventos produzidos accleradamente nio eram controliveis, pois nio se conhecia de fato 0 seu sentido. O sentido dos eventos no se dé a um conhecimento especulativo. A “estrutura inconsciente” sobre a qual se apéia a consci ntistas sociais no querem mais aceitar as filosofias da hiscs s: documentagio incer pla, submissio do real complexo a ideias muito simples e a sistemas fe- chados, intolerancia, resisténcia a todo irracion: idade em relagio a tradigio. As filosofias da histriacriaram conceitos que hoje nao interessam mais & histéria: necessidade, coralizagao, finalidade, sentido h térico, historia universal. A pritica hist6rica deveria tratar agora, posteriores & IT Guerra Mundi in cas. A realidade histérica resiste ao conhecimento e & acio e € preciso, antes de se pretender alteré-la, conhecer as suas resisténcias. E preciso pri- eito consideré-la como coisa, esrutuna, permanéncia, continuidade inerte, repeticao constante, tendéncia 4 rotina e ao repouso do cotidiano. O sentido dos eventos 86 pos i coleta ¢ observagio de dados ¢ tcorizagio particularizada, Fazer com 0 apoio da filosofia da histéria tornou-se perigoso: nacionalismos, racismos, imperialismos, etnocentrismos, xenofobias e as guerras emergem sem controle. Tornou-se impossivel pensar o sentido histérico de uma hist6ria universal, paradoxalmente, quando se tem a sua experiéneia histé- rica mais concreta! Os historiadores perderam a ambico de uma histéria global e pensam em termos de deseontinuidades ¢ estrucuras, de rupturas € fragmentacio, em pleno processo de globalizagio. Néo se identificam ais principios Gnicos, um espitito substancial universalmente presente nas diferentes formas que o realizam2* ito 4 existéncia auténoma. Cabe aos visio muito am- ismo, insensi » Dose, 1995; ¢ Ferry, 1988, José Cantos Reis % A temporalidade histérica se alterou profundamente nas décadas. O presente nio dialoga mais com o passado e com 0 futuro como antes, buscando referencias valores. Autossuficiente, ele parece se con- solidar e se eternizar. Parece que vivemos a novidade de uma época pés-ju- deo-cristd-iluministal Como conceber o real, o distante, o individual, 0 interno, quando predo: 6 préximo, © homogéneo, o gl bal? Que contradigao move este tempo? Que lutas o constiruem? Quais as suas “costuras”, os seus limites? Qual a linguagem mais adequada para dizé-lo? A meu ver, estes tempos pés-modernos se instalaram porque hou- vve uma aceleragio tal — e relativamente auténoma — na esfera da C&T que alterou com violencia a esfera cultural, sem que ela rivesse tempo e meios de se reconhecer e estruturat. Ela reage, se acomoda, procura se atualizar, buscando se dar conta (to realize) do que ocorre, mas softe a violéncia de uma corrente interna que a0 mesmo tempo a sufoca ¢ alivia A cultura vive a pés-modernidade, mas alimenta-se oniricamente de dis- cursos arcaicos ¢ ainda da grande narrativa moderna, Quando se ouvem exposigoes sobre o que vive o atual, quando se Ié Derrida, Foucault, Morin, Serres, Lyorard, Jameson, a impressio é 20 mesmo tempo de reconheci- mento ¢ de surpresa ¢ perplexidade. ritmo extremamente acelerado do desenvolvimento na esfera da ciéncia e da técnica tem levado a mudangas profundas nas outras esferas da sociedade. As esferas religiosa, ps familias, jue ndmica, intelectual, sexual, pedagégica, artistica, ecoldgica, médica, para citar algumas apenas, tém nao sé se beneficiado com as mudangas cien- tificas e tecnolégicas, mas também se adaptado ou resistido a elas, cada uuma em seu ritmo e com sua especificidade. Como na primeira moder- nidade, cada esfera tem seu préprio ritmo de desdobramento ¢ néo se deixa dominar ou determinar pelo das oueras. Mas as mudangas que ocor- rem em uma, sobretudo quando esta se move muito rapidamente, exigem das outras uma rea¢do, uma reformulacdo ¢ uma reestruturacio. Apés a U1 Guerra, esfera da ciéncia eda técnica vem mudando tio aceleradamente que estd levando as demais & crise profunda: os valores, as frmulas, os tica, soci eco habitos, os comportamentos, as tepetigdes, as ligbes, os ritmos, os diversos saberes constitufdos estio em xeque. A religigo nao é mais a mesma, nem 2 familia, nem a arte, nem o trabalho, nem a vida intelectual ou sexual, hema vidacotidiana, nem os momentos solititios intimos. O.conhecimento iswrico no é mais © mesmo daquele de meados dos anos 1960. Cada Hieron « Troms esfera tem seu modo proprio de reagir, sua linguagem, scus recursos ¢ tendéncias préprias. Nao seria uma radicalizagio da modernidade sista?” A sociedade vive uma “revolugao conservadora”, sem sujeito e sem discurso — passa por mudangas vertiginosas, que nao consegue compreen- der e articular em linguagem formal e clara. E calvez nem deseje! O inima- ginvel rornou-se banalidade: imagens nitidas e minuciosas do espaco re- motissimo, o controle dos segredos genéticos, a comunicagio global pela Internet e outtos meios. Por um lado, um dominio em avango continuo da natureza ¢ da sociedade. Por outro, perplexidade, contrainformacio, bloqueio da comunicagio, destruigio do meio ambiente ¢ dos vinculos A comunicagio entre os individuos, entre os grupos ¢ entre as di- versas sociedades rornou-se dificil, na medida em que os cédigos sc frag- mentaram, se particularizaram, resistindo & homogeneidade da linguagem tecnoldgica. Vive-se uma situago ambigua: a da individualizagao frag- mentagio da comunicagio em um contexto de globalizacio e de sofistica- fo extrema dos equipamentos de comunicagio. Essa ambiguidade pode ainda ser expressa de outro modo: o retorno do individuo, com suas pre- euras, estratégias, modos de fazer e agir préprios, em um contexto de massificagao das preferéncias, dos sentimentos, das leicuras e dos modos de fazer e agit. Enfim, a chissica tensdo entre o part cular e o universal, entre o individual e o social ganh lo XX, um contorno especifico e uma expressio or expie esse “novo espitito histérico”, emergente no final do século XX, em varios de seus livros. Entre eles, destaca-se Lesprit du temps 1. Névrose, onde afirma: renasce feréncias, sentimentos, no inicio do século XX, a poténcia industrial estendeu a sua soberania sobre 0 globo. A colonizagio da Aftica, x dominaglo da Asia se com- pletaram. Mas, cis que comeca a Segunda Industrializagao: aquela que imagens ¢ aos somhos (...) A Segunda Colonizagao, nao mais mas vertical desta vez, penetra na grande reserva que é a alma humana (..) qualquer molécula de ar transporta mensagens que tum aparclho, um gesto tornam imediatamente audiveis ¢ visiveis. A Segunda Industrializagio, que é a industrializagio do espirito, a Segun- da Colonizagio, que € a da alma, progridem ao longo do século XX. Ocorre um progresso ininterrupto da técnica voltada nao mais para o © Weber. 1974. mundo exterior, mas voltada para o dominio interior do homem ¢ lan- sando nele mercadorias culturais. Jamais a cultura ¢ a vida privada foram inclufdas a tal ponto no circuito comercial ¢ industrial Sobre essa nova experiéncia da civilizagao ocidental, as investiga- g6es de campo e as reflexdes tedricas e filosdficas se multiplicaram. A obra de Morin foi pioneira nesse tema. As publicagées sociolégicas filoséficas sobre estes “tempos pés-modernos’, tal como polemicamente definido por Lyotard (1979) e Habermas (1981 ¢ 1985), Todas clas visam um mesmo objetivo: atribu atualmente, aprender em algumas eses a directo e 0 significado, repre- sentar 0 desenho, a figura, das mudangas aceleradas vividas em todas as esfetas da sociedade, de modo descontinuo e nao articulado, mobilizadas pela revolugio (conservadora) aparentemente inesgotavel da esfera da C&T. A dificuldade maior, quando se vive uma época de aceleragio tem- poral, é poder reconhecé-la ¢ dizé-la em linguagem compreens subjetiva. Essa dificuldade se acentua porque a linguagem, as chaves de Jeitura com as quais se esté habituado nao abrem mais 0 sentido e no 0 formulam mais. E uma situagao de perplexidade ¢ mutismo. Ou pior: uma situagio de perplexidade ¢ de tagarelice, de palavrdrio reativo, que nao se refete a nada, mas foge... A perplexidade ¢ uma atitude diante do mundo, tica, produtiva, pois admirativa, surpreendida, critica, descobridora. O melhor as vezes € 0 siléncio, a contemplagio, o olhar atento-intenso, como ntre outros, jf sio incontdveis. sentido ao que se vive incer- quem vé um filme novo e fascinante ¢ no quer parar para comenti-lo ou perder tempo com conversas ou afetos paralelos. Um bom filme, um bom jogo, uma boa leitura, como a vida, s6 podem ser comentados quando terminados. Na cultura pés-moderna, 0 “sentido histérico”, nos termos da tradigio judeo-cristi minista, deixou de ser um problema cultural. Voltar a discuti-lo seria colocar-se em uma tradigio contra a qual o atual se posiciona, ¢ colocar o problema nos termos tradicionais seria inadequa- do para se pensar o atual. Mas, se por um lado, enquanto contemplamos as mudancas, 0 melhor ¢ o siléncio atento-intenso, por outro, quando somos atores, isto & sujeitos e vitimas das mudangas, o melhor é procurar dizé-las, compre- endé-las, enquanto é tempo para agir ¢ reagir, ou seja, interfer de algum modo, adequando-se, negociando, circulando, resistindo, apropriando-se, cada um em sua escala individual ou de grupo. Morin (1962) afirma que esta estranha nooesfera coloca problemas. Estes passam da perfer © centro das interrogag6es contemporineas. E nao se deixam reduzir as respostas jé prontas. les sé podem ser colocados por um pensamento em movimento. Aparece uma nova cultura, saida da imprensa, do cinema, do radio, da TY, que se desenvolve ao lado das culturas clissic ligiosas ¢ humanistas — e nacionais. Apés a Segunda Guerra Mundi sociologia americana detecta, reconhece a terceira cultura € a nomeia: ‘mass culture. Cultura de massa, i€., produzida segundo as normas mas- sivas da fabricagio industia A alteragio da esfera cultural leva o conhecimento histérico, um de seus componentes essenc ngas profundas. Tudo 0 que se soube até aqui parece ultrapassado ou insuficiente. As chamadas escolas histéricas, que se apresentaram cada uma ao seu turno como novas his- térias, sonhando ser del ji slo historicas — fazem parte da historia das ia. Continuam a ser im- portantes interlocutoras, todas elas sem excego, mas niio se referem ao que se vive nas tiltimas décadas. Vivemos uma fase em que se elabora mais uma “nova hist mo serd cla? Qual serd o discurso hist6rico adequado a0 presente € que revelard um novo passado? Se cada presente se representa escolhendo ¢ recusando passados determinados, em funcio de futuros se- lecionados e recusados, quais serao os passados e os futuros deste presente e qual a linguagem e as teses dessa Como esse presente re. presenta a temporalidade? Ou melhor: qual é 0 conhecimento hist6rico adequado a essa nova cultura pés-moderna?™ © conhecimento histérico mais préximo das mudangas pés-mo- dernas atuais prioriza a esfera cultural. A cultura pode ser talvez definida como o mundo das ideias, interpretagies, valores, regras, comportamentos, linguagens, representagbes, sencidos, projetos, lembrangas, desejos e sonhos de uma sociedade. Aquilo que até hé pouco era nomeado como “mundo superestrutural”, Hoje nao se percebe mais esse mundo cultural como su- per ou supraestrutural em oposicéo ou como mero reflexo de um mundo wa hiseéri ‘material infraestrutural. © mundo da cultura é “interior”. Ble aparece no interior de todas as outras esferas: a economia ¢ uma forma histérica ¢ particular de representar a produgio da riqueza; a politica é uma forma historica © particular de representar 0 poder etc. Nao existe o poder, 0 José Cantos Rees trabalho, a riqueza, a idela, o prazer, a educacio, 0 género enquanto tais, em si, mas formas de constru(-los e representé-los. Nesse sentido, a esfera cultural produz histér ¢ nao scria s6 feito, reflexo, epifendmeno de esferas ditas infraestrucurais. Como as outras esferas, ela possui uma autonomia relativa — ritmos préprios, linguagem espectfica, territério proprio de desdobramento —, mas nio ¢ indiferente aos ritmos das outras esferas, Se uma esfera tem ritmo mais rdpido, por motivos es- pecificos, isso repercute nas outras e forga, nio de modo mecanico e de- terminista, mas de modo qualitativo, valorativo, significativo, enfim, cul- tural, uma redefinigao de sua estrutura, Se a esfera cultural todas as outras, se est em toda parte, nao seria a versio pés-moderna da Fé e da Razio? Afinal, mesmo reconhecendo a multiplicidade ¢ hetero- geneidade das esferas sociais, a cultura, presente em todas elas, as retine, as reintegra, centralizando-as, estruturando-as, assim como se fosse a face pés-moderna de Deus ou do Espirito Universal.” O desdobramento acelerado da C&T repercute fortemente sobre © conhecimento histético. Nao sé porque novas técnicas, principalmente a informatica, permite manipular e controlar novos vestigios ¢ reelaborar vestigios tradicionais, mas sobretudo porque aparece uma nova repre- sentagio da cemporalidade que altera a percepgio do real. O que é o real em um mundo dominado pelo virtual? O que é fato concreto em um mundo dominado pela simulagio? Qual a distancia entre a realidade ¢ 0 jogo, entre o conhecimento realista ea ficeao? O que significa a distancia espago-temporal em um mundo dominado pela proximidade do remoto, pela redefinicao da ideia de “remoto"? O avango técnico cria um simulacro de ubiquidade: pode-se estar em vérios lugares, distantes espago-temporal- mente uns dos outros, ¢ exercer sobre eles simultaneamente alguma forma de intervengao. Ao mesmo tempo, sofre-se essa ago de lugares ¢ tempos distanciados. As culturas se interpenetram, as economias se atravessam, 0s poderes se interferem, os espacos perdem fronteiras, os tempos se super- pcm. Novas questdes hist6ricas se apresentam aos historiadores, que com dificuldade procuram identificé-las € com maior dificuldade ainda procu- tam formulé-las com 0 dominio do seu sentido e da linguagem que 0 ex- inguagem da mudanga, pois a estrutura 20 repre- senté-la, precisa estar a par das mudangas profundas que o final do século Pressa. Se a histéria é 60 XX viveus estar a par e na vanguarda, reconhecendo-as e formulando-as 0 mais préximo possivel da sua atualidade.”” Antes, na modernidade, buscando referir-se ao real ¢ produ “verdade histérica”, a histéria se apoiava em critérios e valores mais ou ‘menos convergentes, embora nao consensuais: a teleologia, a utopia, a emancipagio da humanidade, o cientificismo, 0 tecnicismo, 0 quantita- tivismo, 0 comparativismo, a conceituagio, a ampliagio das fontes, a in- terdisciplinaridade com as ciéncias sociais e outras, a intersubjetividade no interior da comunidade cientifica, a estrutura académica, que definia o que cra aceitdvel ou ndo, as grandes obras e os grandes autores, referencias da “boa hist’ ‘Todos esses valores ¢ critérios da comunidade dos historiadores estio sendo hoje reavaliados. Quase nenhum sobreviveu, De modo into- civel, nao sobreviveu nenhum! Se sobreviveu, foi ressignificado. A hist6- ria, em sua eterna busca da adequagio do seu discurso a0 tempo atual, se reexamina e se refaz. As varias tentativas que se apresentam sio interes- santes, mas ainda dominadas por uma linguagem tradicional. O linguis- tic turn ameticano, com fortes influéncias francesas, retorna a uma dis- cussio epistemolégica, de cardter filosdfico, com a qual a histéria do século XX havia rompido; a micro-histéria italiana retorna a um discur- s0 quase idealista e até teoldgico do particular como sintoma, sinal, pista da rotalidade. A historia cende a abandonar as suas pretensdes ientificas € a tornar-se um ramo da estética. Ela se aproxima da arte: da literatura, da poesia, do cinema, da fotografia, da escultura, da md- Isso quer dizer que a forma da histéria nfo € exterior a0 seu contetido e indiferente & sua época. O discurso hist6rico néo ¢ 56 uma exposigio analitica, conceitual e quantificada de uma documentagio objetivamente elaborada. A histéria se apropria e ressignifica diversas Jinguagens. A sua forma, a sua linguagem, é a sua mensagem. Ou me- Ihor: sua forma e sua linguagem sao elementos reveladores de sua men- sagem.” O cspirito da historiografia pés-moderna talvez possa ser resumido assim: valorizagdo da alteridade, da diferenca regional ¢ locals microrre- cortes no todo social; apego & micronarrativa € & “descrigio densa” em * Quilliot, 1989, 7 * Foucault, 1979: e Dosse, 1995. © LaCapra, 1983; Duby & Lardrea Jost Castos Rets detrimento da explicagio globalizante; redefinicao da interdisciplinaridade edo tempo longo; abertura a todos os fendmenos humanos no tempo, com énfase no individual, no irracional, no imagindrio, nas reptesentagbes, nas manifestagdes subjetivas, culeurais. Por um lado, pressupGe uma coeréncia estivel de sentimentos ¢ ideias numa dada sociedade; por outro, enfatiza a pluralidade de crengas ¢ racionalidades em uma mesma cultura, Os temas da antiga historia das mentalidades — religiosidade, sentimentos, rituais, infincia, vida primitiva, vida cotidiana, sexualidade, prisdes, micropoderes, doenga, amor, morte, loucos, mulher, homossexual, corpo, modos de ves- tir, de chorar, de beijar, comportamentos desviantes, crengas — continuam atuais, mas sfo abordados em suas negociagées e apropriages individuais cde grupos. Isso nao significa negar a ordem estrucural dessas exper humanas, que continua sendo pressuposta, © olhar sobre o estrutural é que muda, Nao se buscam as séries homogéneas, a ordem quase imutével, as “prises de longa duragio", mas as ordens negociadas, instéveis, as lucas, as apropriagdes seletivas, as circularidades culeurais diferenciadas, as repre- sentagdes particulares do estrutural. O sujeito retorna como problema his- t6rico. Um sujeito mais limitado em sua ago, menos central heroico, ‘mas criativo e combativo, égil e eficiente, vivo, negociando a representacio que fara do mundo li em seu nicho social. A histria no tematiza homens passivos, dominados por forgas transcendentes universais ott forgas objet vas impessoais, A filosofia que, como filosofia da histétia universal —aque- la do século XVIII —, foi banida do conhecimento histérico durante todo 0 século XIX e XX retorna como aliada indispensivel da histria na tefle- xao sobre este mundo produzido por sujitos locais, descentralizados, que idades com a sociedade e os ou- nnegociam permanentemente as suas ide {tos sujeitos histéricos. A histéria da histéria busca a adequagao do conhecimento histérico 40 seu presente, para interpreti-lo compreendé-lo 0 mais préximo pos- sivel dos seus préprios termos. Diante dessa cultura pés-moderna, alguns concluem, eéticos: & 0 relativismo final! A histéria se perdeu como saber. Nio sabe 0 que faz. E estendem o seu ceticismo a Herédoto, a toda a hristéria da historia: teré sabido algo algum dia? E oucros concluem, in- génwos: &a verdade que chega! Estivemos durante todo o sé € traidos pela hiscria cientifica. Felizmente, hoje, nos livramos de estru- turas, longas duragdes, quantidades, conceitos, coletividades anénimas, teleologias fantasiosas ¢ podemos, enfim, respirar ¢ criat! Nés nio con- lo envolvidos 6

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