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Educac&o patrimonial e cidadania: uma proposta alternativa para o ensino de historia* José Ricardo Oria Fernandes** “Entre nés tudo é inconsciente, provisério, nao dura. Nao havia ali nada que lembrasse esse passado. As casas velhas, com grandes janelas, quase quebradas, e vidragas de pe- quenos vidros eram de ha bem poucos anos, menos de cinquenta.” (Lima Barreto in Triste Fim de Policarpo Quaresma) Embora proferida no contexto de uma obra literéria do comego deste século, por um personagem ficticio — Gonzaga de S4, que vagava pelas ruas do Rio de Janeiro 4 procura de uma identificagao histérico-cultural —, a frase conserva toda a sua atualidade e é, ainda nos dias de hoje, bastante elucidativa ao evidenciar uma realidade de nosso pafs: a atuacio postura do poder piiblico e da sociedade brasileira em geral para com a preservagao do patriménio cultural. Jé € quase lugar-comum falar: “O Brasil é um pais sem meméria”, pois nao preserva o seu Patriménio Cultural. Qualquer cidadéo comum que vagar pelas ruas de sua cidade ter4, com certeza, 0 mesmo desalento do personagem de Lima Barreto: poucos prédios e monumentos de valor hist6rico-cultural resistiram 4 agao demolidora do tempo. Outros destruidos foram em nome de uma concepgao desenvolvimentista do progresso ¢ do lucro facil e imediato, respaldados na especulag%o imobilidria, na légica do capitalismo selvagem e na “forga da grana que ergue e destréi coisas belas”! que sempre desprezaram a defesa de nossa meméria hist6rica. Mesmo estando a caminho do terceiro milénio, o homem ainda néo foi capaz de conciliar a onda avassaladora do progresso com a pre- servagao do passado, prenhe de realizagées ¢ significagdes culturais para as futuras geragdes. Em meio a um discurso pretensamente moderno, * Esta comunicagfo € parte integrante de um dos capftulos da dissertago intitulada “O Direito & Histéria: A Protegéo Juridica ao Patriménio Histérico-Cultural no Ordenamento Constitucional Brasileiro”, a ser defendida no segundo semestre deste ano no Curso de Mestrado em Direito Pablico Constitucional da Universidade Federal do Cearé-UFC. ** Prof. do Departamento de Histéria da Universidade Federal do Cearé (UFC). 1 Trecho da misica “Sampa”, de Caetano Veloso. 3, n® 25/26 2lago. 93 5 265 destr6i-se um passado que poderia servir de referencial para a construgao do presente ¢ do futuro. No Brasil, pafs de pouca tradig&o democrética, a discussao acerca da questo preservacionista ¢ assunto bastante recente entre nds. Os Préprios Srgaos oficiais ligados & quest@o datam da década de 30 e somente com 0 processo de redemocratizagiio do poder politico, apés 21 anos de obscurantismo legado pela ditadura militar, € que foram criados espacos € perspectivas, principalmente com a emergéncia de novos atores coletivos, protagonizados pelos movimentos populares, que na cena politica, reivindicam, através de suas associagSes ¢ entidades orga- nizacionais, uma melhor qualidade de vida traduzida na defesa do meio ambiente natural e cultural. Assistimos, hoje, & criago e organizagio de associagdes ¢ movi- mentos ecolégicos ¢ ambientalistas na defesa do Patriménio, evidenciando, na prdtica, que a questo da preservacSo do ambiente natural e cultural deixa de ser encarada de modo corporativo, circunscrita ao “discurso competente”® de técnicos, intelectuais e especialistas do assunto, passando a ser incorporado no cotidiano das lutas polfticas dos diversos segmentos da sociedade civil, que vem ocupando lugar de destaque nos varios meios de comunicagio de massa. Neste sentido, a presente comunicagio, intitulada Educagdo Patrimonial e Cidadania: Uma Proposta Alternativa para o Ensino de Historia, pretende, numa perspectiva interdisciplinar, propor que o Patri- ménio Hist6rico-Cultural seja apropriado enquanto objeto de estudo no ensino da Hist6ria, a fim de desenvolver em nossos alunos a consciéncia preservacionista da meméria histérica, enquanto referencial de nossa identidade e construgao da cidadania. Para tanto, propomos, com base em um novo referencial teérico, repensar os conceitos de Cultura (Marilena Chaui), Meméria e Cidadania (T. H. Marshall, Hanna Arendt e Claude Léfort), para podermos inferir que todo cidadao tem direito A cultura, na sua acep¢éo mais ampla e, por conseguinte, 4 memoria coletiva e ao passado histérico. A meméria social ou coletiva, evidenciada através dos registros, vestigios ¢ fragmentos do passado — os chamados bens culturais de uma dada coletividade —, constitui-se em referencial de nossa identidade cultural e instrumento possibilitador do exercicio da plena cidadania. 2 Neste sentido, ver CHAUf, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente € outras falas. 4a. ed., SP: Cortez, 1989. 266 PATRIMONIO HISTORICO-CULTURAL E CIDADANIA: UM CON- ‘TRAPONTO NECESSARIO “A meméria, onde cresce a Hist6ria, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir 0 presente € © futuro, Devemos trabalhar de forma a que a memoria coletiva sirva para a libertagdo endo para a servidio dos homens.” (Jacques Le Goff) _Durante muito tempo, vigorou no seio das Ci€ncias Sociais, um de “Patriménio Hstérico ¢ Art(stico” por fora da legislacao brasileira, ainda vigente (Dec-Lei No. 25/37), que em seu artigo 1* define esta expressdo: “Constitui 0 Patriménio Histérico e Artistico nacional o conjunto de bens méveis ¢ iméveis existentes no pats ¢ cuja conservacdo seja de interesse piiblico, quer por sua vinculagao a fatos memordveis da Histéria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolégico ou etnografico, bibliogréfico ou artistico”. Hoje, com o avango tedrico-metodolégico das Ciéncias Sociais, que mais tém se dedicado ao estudo das manifestagdes culturais, esta expressio vem sendo substitufda pela de “Patriménio Cultural”. Assim, sai-se do limite estreito da terminologia tradicional, para falar-se em “Patrim6nio Cultural”, em vez de “Patriménio Histérico, Artistico ¢ Paisagistico”, pois h4 outros valores culturais que ndo se enquadram na terminologia antiga. O préprio conceito de “Patriménio Histérico e Artistico” restringia- se, exclusivamente, aos bens materiais, especialmente aos bens iméveis, dissociados de seu ambiente original, Além do que, os critérios de selego destes bens obedeciam a padrées estabelecidos pelas chamadas “autoridades de tutela” dos 6rgaos oficiais, que, muitas vezes, no levavam em consideracao outros critérios de preservacdo, bem como a participagao da sociedade civil na sele¢do e preservacdo destes mesmos bens. Hodiernamente, vem crescendo o interesse na ampliagio do conceito de Patriménio Cultural, e, por conseguinte, de Patriménio Hist6rico, bem como a participagdio da sociedade civil organizada, através das mais variadas entidades ¢ associagdes de classe, tais como Instituto dos Arquitetos Brasileiros (IAB), AssociagZo dos Gedégrafos Brasileiros (AGB), Associag3o Nacional dos Professores Universitérios de Histéria 267 (ANPUH), frente A selegdo e preservagio dos bens culturais, na composigao dos conselhos tutelares de tombamento, e, mais ainda, na exigéncia de uma nova postura da Piiblica Administragéo com relagao ao assunto. O “Patriménio Cultural”, terminologia substitutiva A de “Patrimonio Histérico ¢ Artistico”, € constituido de unidades designadas “bens culturais", Por sua vez, podemos definir “bem cultural” como sendo; “toda produgio humana de ordem emocional, intelectual ¢ material, independente de sua origem, época ou aspecto formal, bem como a natureza, que propiciem o conhecimento a consciéncia do homem sobre si mesmo ¢ sobre.o mundo que © rodeia”.5 Esta conceituagdo, acima esbocada, pretende-se a mais aberta e abrangente possfvel, pois a produg&o cultural humana, como sabemos, constitui um processo em curso € em constante © permanente tans- formagao, cuja diversidade ¢ riqueza ultrapassam sempre os limites de qualquer modelo técnico. Quem primeiro se preocupou em encarar a problemdtica do Patri- ménio Cultural, de modo bastante abrangente e de forma interdisciplinar, foi o professor francés e atualmente professor técnico internacional da Unesco Hugues de Varine-Boham. Segundo ele, o Patriménio Cultural pode ser dividido em trés grandes categorias de elementos. Em primeiro lugar, ele arrola os elementos pertencentes & natureza, ao meio ambiente. Nesta categoria, podemos citar como exemplo, os rios, os peixes desses rios, os vales e montanhas que circundam esses rios etc., enfim sio os recursos naturais — o habitat natural. ‘A segunda categoria de bens culturais refere-se ao conhecimento, as técnicas, ao saber e ao saber-fazer, compreendendo, pois, toda capacidade de sobrevivéncia do homem em seu meio ambiente. Esta categoria inclui os elementos nao tangiveis do Patriménio Cultural. J4 o terceiro grupo de elementos é considerado o mais importante de todos, pelo fato de reunir os bens culturais propriamente ditos, que englobam toda a sorte de coisas, objetos, artefatos e construgdes obtidas a partir do préprio meio ambiente ¢ do saber-fazer humano, ‘A partir das colocag6es pioneiras de Varine-Boham acerca da conceituagio ¢ caracterizag’o do que seja Patriménio Cultural, podemos, 8 GODOY, Maria do Carmo, “Patriménio Cultural: conceituagdo e subsidios para uma politica” in Anais do IV Encontro Estadual de Histéria: Hist6ria e Historiografia cm Minas Gerais, Belo Horizonte: ANPUH/MG, 1985, p.72. 268 de forma sistematizada e esquemética seguindo a orientagéo de MARIA DO CARMO GODOY,* subdividi-lo ¢ agrupé-lo nas seguintes categoria: bens naturais, bens de ordem material, bens de ordem intelectual e bens de ordem emocional. Veremos, pois, cada um de per si: Os chamados “bens naturais” sio os elementos da natureza de ordem animal, vegetal ¢ mineral, correlacionados com a presenca e o bem- estar do homem na terra, garantindo a sua sobrevivéncia. J4 os “bens de ordem material” compreendem os testemunhos materiais da adaptago do homem & natureza, da manipulagio dos seus recursos, bem como de sua vivéncia histérica, Os “bens de ordem intelectual”, por sua vez, constituem as expressées da observagio ¢ do raciocinio humano, na interpretago da natureza, do individuo ¢ da sociedade como um todo. Finalmente, os “bens de ordem emocional” constituem as expressdes do sentimento individual ou coletivo e incluem tanto as extentes © as extintas, bem como aquelas em processo de elaboragdo ou transformagao, compreendendo as manifestagées folcléricas, cfvicas, religiosas artisticas, tanto eruditas como populares, e que se expressam através da miisica, da literatura, da danga etc. Podemos, pois, conculir que o chamado Patriménio Cultural inclui © subsume tanto 0 histérico como 0 ecoldgico. Por sua vez, 0 conceito de Patriménio Histérico nao est4 mais restrito ao dito Patrim6nio Bdificado, Constituido de bens iméveis, representados pelos edificios ¢ monumentos. Ao falarmos em Patrim6nio Histérico, entenda-se nao apenas o Patriménio Arquiteténico, mas também o Patriménio Documental e Arquivistico, Bibliogréfico, Hemerogréfico, Iconogréfico, Oral, Visual, Museolégico, enfim, 0 conjunto de bens que atestem a Histéria de uma dada sociedade. Seguindo a moderna terminologia, a Constituigéo atual adota a denominagao “Patriménico Cultural” e, no seu artigo 216, Seco II — Da Cultura, conceitua implicitamente o que se entende por esta expresso, a0 dizer in verbis: “Constituem patriménio cultural brasileiro os bens de natureza material ¢ imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia & identidade, & ago, & meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade biasileira...” * Neste sentido, ver “Patri politica” in Op. Cit, io Cultural:conceituagdo ¢ substdios para uma 269 Definido um novo conceito para Patriménio Cultural, vejamos, agora, a relagio existente entre 0 mesmo e a questo da Cidadania, ou seja, 0 que a preservacio do Patriménio Histérico tem a ver com o exercicio da cidadania por parte dos habitantes deste pafs. Antes, porém, necessério se faz analisar o proprio conceito de Cidadania, que sofreu, nos tltimos anos, uma redefinigdo, a partir de estudos na drea da Ciéncia Politica ¢ da Teoria do Direito. ‘Tre jonalmente, a literatura juridica brasileira, na sua grande maioria, impregnada do viés positivista legalista-normativista, tem considerado a Cidadania como a mera relagio legal que se estabelece entre © indivfduo ¢ o pais de sua nacionalidade. Neste sentido, a expressdo Cidadania identifica aquele que esté na plena posse de seus direitos politicos, cumprindo seus deveres de cidadao. A partir das colocagdes pioneiras de T.H. Marshall, cientista politico inglés, 0 conceito de Cidadania ampliou consideravelmente seu raio de compreensio, o que foi posteriormente analisado por filésofos politicos do porte de uma Hannah Arendt e, mais recentemente, Claude Léfort. Para Marshall,® a Cidadania é formada pelo conjunto de direitos civis, direitos politicos ¢ direitos sociais, que corresponderia cada um desses conjuntos de direitos A Cidadania Civil, Cidadania Politica e Cidadania Social, respectivamente. encontra-se 0 direito participago no exercfcio do poder politico, seja indiretamente, por ocasiéo das eleigdes, na escolha de nossos representantes, seja participando diretamente da vida politica nacional. Jé a Cidadania Social compreende desde o direito a um minimo de bem-estar social ¢ econémico, & seguranga, 4 educacdo e A cultura até o direito a Prestagio de scrvigos assistenciais e de previdéncia social, Ampliando 0 conceito de cidadania, a filésofa alema, de origem judia ¢ naturalizada norte-americana, Hannah Arendt,§ define cidadania como o “direito a ter direitos”, nas mais diversas esferas da vida humana. 34 para 0 fil6sofo politico da atualidade, o francés Claude Léfort’, o cidaddo € 0 agente reivindicante possibilitador da floragio de novos direitos. Com base neste referencial tedrico, a expressio Cidadania deve ser tomada a partir de uma perspectiva politica e, portanto, mais ampla, no § MARSHALL, TH. Cidadania, Status e Classe Social. RJ: Zahar Editores, 1967. * ARENDT, Hannah. A Condicdo Humana. RJ: Forense Universitéria, 1987, 7 LEFORT, Claude. A Invencdo Democrética. SP: Brasiliense, 1981. 210 circunscrita ao universo juridico, que compreende cidadania como mera expressio daquelas pessoas que, por serem detentoras de direitos politicos, podem votar e ser votadas. Devemos, portanto, tomar o significante cidad’o em sua dimensio dialética, para identificarmos 0 sujeito hist6rico, aquele ser responsdvel pela Histria que o envolve. Sujeito ativo na cena politica, sujeito reivindicante ou provocador da mutagio, da transformagio do social: Homem envolto nas relagdes de forga que comandam a historicidade ¢ a natureza da politica. Enfim, queremos tomar 0 cidadio como ser, homem e sujeito a um s6 tempo. Entendemos que a Cidadania nfo pode se resumir na exclusiva possibilidade de manifestar-se, periodicamente, por meio de eleigSes para © Legislativo e 0 Executivo, Ela vem exigindo, cada vez mais, nos nossos dias, face & propria demanda da sociedade civil organizada, a propria reformulagéo do conceito de Democracia, radicalizando até uma tendéncia que j& vem se delineando de longa data, qual seja, a participagio democritica do cidadio nas mais diversas instincias do social e na defesa e garantia de seus direitos fundamentais. Retomando & anélise de Marshall, os direitos culturais configuram- se como direitos sociais, pertencente & chamada Cidadania Social. Constituem-se, por assim dizer, em verdadeiros direitos de cidadania. Mas © que vem a ser direitos culturais? Podemos dizer que sio aqueles dircitos que 0 individuo tem em relagfo & cultura da sociedade na qual faz. parte, que vio desde o direito & produgdo cultural, passando pelo dircito de acesso A cultura até o direito 4 meméria historica, O dircito de produg&o cultural parte do pressuposto de que todos os homens produzem cultura. Todos somos, direta ou indirctamente, produtores de cultura. E 0 direito que todo cidaddo tem de exprimir sua criatividade ao produzir cultura. O direito de acesso & cultura pressupée a garantia de que, além de produzir cultura, todo individuo deve ter acesso aos bens culturais produzidos por essa mesma sociedade. E, finalmente, 0 direito & meméria hist6rica como parte dessa concepgao de Cidadania Cultural, segundo 0 qual todos os homens tém o direito de ter acesso aos bens materiais ¢ imateriais que representem o seu passado, a sua tradigao, E o proprio ex-Secretério de Cultura da Presidéncia da Repiiblica Sérgio Paulo Roaunet quem melhor definiu com preciso, a importincia do direito & meméria hist6rica como direito de cidadania: “O individuo privado do uso desse direito 6 um individuo condenado @ amnésia social e A anomia, e esse direito é 271 ignorado quando igrejas barrocas caem por causa de uma chuvarada em Ouro Preto ou quando monumentos importantes em Olinda ou na Bahia estio ameagados de desabamento”.§ Vale ressaltar que os trés grupos de direitos que compdem os chamados direitos culturais sfo partes interdependentes de uma mesma concepgao de Cidadania Cultural. Na atual Constitui¢do Brasileira, pela primeira vez, 0 legislador constituinte teve a sensibilidade politica de enquadrar no rol dos direitos fundamentais os chamados direitos culturais e de exigir que o Estado garanta a todos os brasileiros 0 exercicio desses direitos. Isto é evidente a partir da leitura atenta ao dispositive constitucional (art. 215, caput): “O Estado garantird a todos o pleno exercicio dos direitos culturais e acesso as fontes da cultura nacional, ¢ apoiar4 ¢ incentivaré a valorizagio ¢ a difusio das manifestagdes culturais”. PRESERVANDO O PATRIMONIO HISTORICO, CONSTRUIMOS NOSSA CIDADANIA “A gente nao quer s6 comida A gente quer comida, diversdo e arte” (conjunto de rock Tits) Todo pais que se diz modero, que aceita os padres minimos de dignidade da pessoa humana, de desenvolvimento, justiga social e cidadania, no pode furtar-se a garantir o direito de seus cidadios a cultura, aqui entendida na sua acepg4o mais ampla. A propria Constituigéo de 1988, como vimos, estatui, em seu artigo 215, que: “O Estado garantiré a todos o pleno exercicio dos direitos culturais ¢ acesso as fontes da cultura nacional, ¢ apoiaré ¢ incentivard a valorizagio e a difusdio das manifestagdes culturais” (grifos do autor). 8 Roaunet, Sérgio Paulo. “Politica Cultural: Novas Perspectivas”, In: ALMEIDA, CAndido José Mendes de. Marketing Cultural ao Vivo: depoimentos. RJ: Francisco Alves, 1992, p. 83. 272 Num pafs onde os mais elementares direitos de cidadania sio negados a grande parcela da populagdo, a cultura, as vezes, € encarada como algo supérfluo ¢, até mesmo, desnecessério, face 4s demandas mais prementes dos setores sublaternizados da sociedade brasileira. No entanto, entendemos que o direito A cultura deve ser encarado na perspectiva de direito de cidadania e direito fundamental da pessoa humana. Ao falarmos que a cultura € um direito fundamental a ser assegurado a todos os brasileiros, concluimos que estes mesmos cidaddos devem ter, pri- meiramente, 0 direito de produzir cultura, bem como o direito de acesso aos bens culturais, o direito de participar, interferindo no processo de decisdes que envolvam 8 politica cultural do pafs e, por dltimo, o direito a meméria histérica. No contexto de uma politica cultural mais ampla é que se deve reprensar criticamente a polftica de protecfio, resgate e preservacao de nosso Patriménio Hist6rico-Cultural. Quando se fala neste repensar, nfo se entenda apenas o mero formalismo de mudangas administrativas, com a criagio e substituigto de 6rgdos publicos destinados a exercer a tutela juridica de nosso acervo cultural-pratica tio em voga na vida polftico- administrativa do pais. Mais que isso, necessitamos de uma nova postura do Poder Publico, que encare a questio da protegao do Patriménio Cultural como algo prioritério no rol de suas politicas pablicas. Por outro lado, consideramos que uma politica eficaz para o Patrim6nio Histérico-Cultural, que cnseje 0 exercicio de nossa cidadania, deve compreender a agdo do Poder Piiblico e da sociedade civil como um todo em trés grandes dreas de atuago, a saber: a Educagio Patrimonial, a Pesquisa ¢ a Preservacio. Sem estes elementos articulados conjuntamente, toda e qualquer politica para o acervo cultural estaré fadada ao fracasso. Por Educacio Patrimonial, entende-se a utilizagio de museus, monumentos, arquivos, bibliotecas — os “lugares da meméria”, para usarmos a expresso do historiador francés Pierre Nora, no proceso educativo, a fim de desenvolver a sensibilidade ¢ a consciéncia dos educando e futuros cidadaos da importincia da presevagéo destes bens culturais. A Educacio Patrimonial nada mais é do que a educagio voltada para questées atinentes ao Patriménio Cultural, que compreende desde a inclusio nos curriclos escolares de todos os nfveis de ensino, de disciplinas ou contedidos programéticos que versem sobre o conhecimento © a conservacao do Patriménio Histérico, até a realizagSo de cursos de aperfeigoamento e extenso para os educadores e a comunidade em geral, ° Neste sentido, consultar NORA, Pierre, Les Liewx de Memdire: La Republique. Paris: Galimard, 1984, 273 a fim de Ihes propiciar informagGes acerca do Patrimonio Cultural, de forma a habilité-los a despertar nos educandos e na sociedade o senso de preservagiio da meméria hist6rica ¢ 0 conseqiiente interesse pelo tema. A necessidade da Educagdo Patrimonial nos curriculos ¢ programas escolares reside no fato da: “falta de esclarecimento popular sobre a importéncia da preservagdo de nosso Patriménio, para nao dizermos deseducagao coletiva. Esse € um dado brasileiro ¢ daf a formulagéo de mais uma regra: a preservagao aqui entre nés depende fundamentalmente da elucidagio popular, um caminho jé percorrido por outros paises, como 0 México, que dedica aten¢io toda especial a essa questéo de educagio de massa no que diz respeito 4 meméria”.!° No tocante & questo, em recente Congreso realizado no Brasil sobre esta temética, foi tirada a seguinte resolugdo, o que bem demonstra a preocupagiio com o assunto: “Compreender o Direito & Meméria como dimensfo fundamental da cidadania, implica reformular as relagdes entre a preservacao e a educagao formal (...) cabe ao ensino de 1° 2° graus integrar em seus curriculos © programas escolares formas de incentivar ages concretas nesta 4rea, incorporando atividades no campo da histéria oral, do contato com acervos arquivisticos ou museolégicos, ¢ com a paisagem urbana, de modo a vivenciar uma relagio democrdtica com as diferengas do passado ¢ do presente” 1! O Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educa¢ao Nacional (LDB), j4 aprovado na Camara dos Deputados © que ora tramita no Senado Federal, prevé, no seu art. 35, pardgrafo nico, que: “A preservagio do patrim6nio cultural nacional ¢ regional, bem como as diferentes formas de manifestagdes artfstico- culturais origindrias do Brasil, ter4 tratamento preferencial”. '0 LEMOS, Carlos A.C. O que Patriminio Historico. S* ed., SP: Brasiliense, 1987, Col. Primeiros Passos, p.84. ™ $40 Paulo (cidade), Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrim6nio Histérico. 0 Direito 4 Meméria: Patriménio Histérico e Cidadania, SP: DPH, 1992, p. 230. 74 A. pesquisa, enquanto componente de uma politica para o Patriménio Cultural, deverd constituir-se em elemento de informagdo para as diversas instituigdes e entidades que lidam com o Patriménio © aos “profissionais da memdéria”— historiadores, antropélogos, arquivistas, musedlogos, educadores — ¢ embasamento para as dreas de educagdo e Preservagao. J a Preservagio propriamente dita abrange desde a protecio legal, conservagao, restauro, até a valorizagao, utilizagao ¢ dinamizagio dos bens culturais. Por tiltimo, pensamos que uma politica oficial em relagio ao Patrimnio Histérico-Cultural, numa sociedade dita democratica, deve passar, necessariamente, pela idéia de que este mesmo Patriménio, que € produzido coletivamente, deva se constituir num direito coletivo, também, a ser apropriado por todos os cidados indistintamente. Portanto, ha que se criar os meios ¢ mecanismos eficazes para que 0 cidaddo comum tenha direito & cultura, tenha direito 4 meméria coletiva e tenha condigdes de se apropriar desse patriménio que, normalmente, vem sendo monopdlio exclusivo dos setores dominantes da sociedade. Nao se trata, pois, apenas de valorizar as ditas manifestagées populares, o folclore, a cultura popular. Tudo isso também € importante, mas consideramos que o caminho a ser trilhado € democratizar o acesso & cultura, aos bens culturais a todos os segmentos sociais. 6 trabalhar para que os privilégios de classe numa sociedade capitalista sejam, de fato, assim estaremos contribuindo para que © direito 4 meméria e ao passado hist6rico se constitua numa dimensio fundamental da Cidadania Cultural. neste sentido que pensamos deva ser considerada, hoje, a questio da preservagio do Patriménio Histérico-Cultural, (...) “longe do diletantismo mérbido de elites que desconhecem os rostos miltiplos ¢ diferenciados do pais (...)”!? longe de uma meméria histérica que sempre cultuou os elementos referentes ao poder politico-institucional, ligados aos setores dominantes da sociedade brasileira. Uma politica de Patrimdnio que preservou a Casa-Grande, as Igrejas Barrocas, os Fortes, a Casa de Camara ¢ Cadeia como referencial de nossa identidade hist6rico-cultural ¢ relegou a0 esquecimento as Senzalas, os Corticos e as Vilas Operérias, Hoje, mais do que outrora, considera-se que o resgate da meméria hist6rica esté diretamente vinculada A luta por uma melhor qualidade de vida e, por que nao dizer, a conquista da plena cidadania. Afinal, Oct4vio Paz, escritor mexicano e Prémio Nobel de Literatura de 1990, tem toda raziio ao dizer que: '2 SANTOS, Afonso CM. dos “Da Casa senbeie Vila Operdria: Patriménio Cultural ¢ Meméria Coletiva”, in: Op. Cit., 275 “A destruigéo da meméria afeta nao apenas o passado, como também o futuro. Para mim, a meméria é a forma mais alta da imaginag&o. humana, nao € apenas a capacidade automatica de recordar. Se a meméria se dissolve o homem se dissolve”. RESUMO O artigo discute, em pers- pectiva interdisciplinar, a questéo do Patriménio Histérico-Cultural, pro- pondo sua apropriagdo enquanto objeto de estudo da Histéria, a fim de desenvolver, nos alunos, a conscién- cia de nossa identidade e construgao da cidadania. 276 ABSTRACT The article proposes the study of Historical Patrimony's questions in elementaries schools, having in view 10 devellop the. historical _memory's consciousness as important reference of our identify and citizenship.

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