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constatacao de alguns casos em obras literdrias Por que ocorre a criagdo de palavras inovadoras como forma de expressdo? Como se da a concep¢ao dos neologismos na producdo literaria. por CLARITA GONCALVES DE CAMARGO * abe-se que 0 homem ao longo do tempo vem criando e recriando unidades lexicais que correspondam ds necessidades de comunicagao. Sem dtivida, pode-se dizer que toda palavra se originou do poder que a sociedade exerce sobre o sistema linguistico, mesmo que ele jd esteja um tanto amarrado pelas préprias regras e normas internas. Entende-se que, pelo fato de o léxico ser um conjunto de unidades significativas, est também em constante diversidade com o meio social. Consequentemente, 0 neologismo recebe a influéncia de outras formas lexicais ‘ou de outros sistemas linguisticos presentes, ora por um. periodo restrito, ora permanentemente. Desta maneira, surge na producao literdria a estilizacao da narrativa com inovacées lexicais, com 0 objetivo de representar, através da palavra, todo o engejamento social que Ihe & pactuada. Quando se trata de neologismo, trata-se da contextualizagio de um fenémeno linguistico em meio a transformagées. Desta forma, o caréter sociol6gico atribuido na producao do neologismo serd visto pela ética da producao literdria, a exemplo de obras de escritores como Mario de Andrade, Manuel Bandeira, que trouxeram importantes consideragdes ao retratar no meio artistico a representagao do povo brasileiro. Voltando a questao do neologismo, vemos que esse conceito é uma espécie de clonagem, adaptacao, ou simplesmente uma forme reinventada de nomear as coisas do mundo, através da agéo aparentemente singular que é 0 ato comunicativo. Segundo Cabré (1993), a definicao de neologismo pode ser entendida como uma unidade léxica, de formagio recente, a uma nova acepsio de um termo jé existente, ou um termo emprestado de outro sistema linguistico estrangeiro. Jé Lapa (4982) considera que o surgimento das palavras novas ocorre a partir dos processos usuais da lingua, cujo material linguistico é reutilizade. Para Evanildo Bechara, 0 neologismo uma forma de revitalizar a lingua de maneira a reutilizar 0 Iéxico ja existente, dando uma nova unidade ao percurso da lingua. E, nesse sentido, Alves (1994) nos diz.que um dos espacos em que o neologismo ganha forgas sao as é nas produgdes literdtias, nas quais ele ¢ difundido, pactuando uma nova experiéneia com a lingua. Assim segue-se o comentario do autor: “Nao basta a criagdo do neologismo para que ele torne membro integrante do acervo lexical de uma lingua’, “ na verdade, a comunidade linguistica, pelo uso do elemento neolégico, ou pela sua nao difusao, é que ird decidir sobre a integragao dessa nova formagao ao idioma”. Assim, cabe aos integrantes de um determinado contexto aceitar ou nao a presenca dos neologismos, lembrando que parte deles fica apenas por periodo de tempo. Entretanto, por que 0 estudo do neologismo esté presente na lingua? Por que estudar neologismo a partir de fontes literdrias? Que implicagao 6 neologismo pode apresentar na compreensio da lingua portuguesa eno seu desenvolvimento? Esses ‘questionamentos entoam neste artigo como ferramenta de discussio € verificagao de alguns neologismos que se fazem presentes em algumas obras ilustrativas. Enfim, escavar as fontes das escritas literdrias € também desbravar no mundo ficcional parte da nossa realidade Jinguistica. Greimas (1973) j4 nos dizia que as estruturas da significagio nos oferecem um novo processo de percepeio, reunindo manifestacoes da arte em que o significado vai a0 encontro do significante. Voltando a refletir sobre as questdes j4 mencionadas a respeito da importincia do estudo das criagdes neoligicas, acredita-se que resgatar fontes lexicais do passado, mesmo que ficcionais, & também perceber como pairava © comportamento da lingua, pelo viés das motivagGes ofertadas nas produgdes de época. Entao, pelo viés da literatura, a partir do modernismo, é possivel resgatar certo sentimento ideolégico, que motivava a imersao do neologismo como forma de criar algo mais préximo do povo brasileiro, valorizando 0 modo de falar de cada regiao. Recuperando essa ideia, Barbosa (1981) diz que para “o observador mais atento, estudar os problemas da origem, da estrutura e da fungao dos signos |. 6 sentir alguns reflexos de certos Entre os escritores brasleios, Oswald de Andrade & quem methor representa o Modernismo no que se refere As caractristcasestlistcas e postua ireverente, Oswald de Andrade escreveu poasias romances, fl teatrélogo ‘e crfticalterdro. Nas suas ‘obras, usou finguagem espontanea,livou-se de apegs a sintaxe, empregou predominantemente 0 cologuiatismo, o naconalismo ‘emanteve-secrtico aos costumes tradicionais e cultura académica. Foi um Inovador e um iconaclasta, capaz de cltcar abertamente ‘0s mais respeitados autores brasleiros romantcos, simbolistase parnasianos. Langou 0 Movimento Pau-Brasil © a Antiopotagla, corrente que pretendia devorara cultura europela e brasileira da época €ctlar uma verdadelra cultura brasileira Cristom Fotis | LINGUA PORTUGUESA | 341 tragos importantes dos grupos sociais, de sua atividade, de seus objetivos, métodos e valores” O autor acrescenta ainda que “eles podem, nao raras vezes, indicar as fontes histéricas ou misticas Cy NeerTo ligadas a esses grupos. Esse € 0 Mel nimia enfoque do estudo da genese do Aprépiadefinigto da figura neologismo do ponto de vista de de inguagem metoninia ilizaca i : ean sua utilizagio como instrumento Recta raiscorsts de uma ideologia de uma época, do com o neologismo: tata-se pensamento de um grupo”, Entio, ee eee cada incorporagao de um vocabulo sername nora, por novo, nada mais é do que uma teruma sigifcagdo que forma expressiva de comunicagéo, Pe enacete tea cuja necessidade Ihe fez parte ‘ou conestual, com 0 da obrigatoriedade, o autor nio entedo uo refeente conseguia se desvencithar. ‘ocasionalmente pensado" 8 (Houaiss). FORMALIZAGAO DAS FORMAGGES NEOLOGICAS Os processos que desencadeiam POR DENTR a formagio dos neologismos Itens lexicais tem varias origens, como, por {Em Teoria Lexical, ce exemplo, os critérios diacrénicos, aol ere psicolégicos, lexicograficos, No Apeoinada edad caso, 08 processos lexicograficos pene sio mais presentes. Segundo Rocha pala e sets proessos: Taeacran (2003) hé algumas causas que ‘5 enunciadas construldos fazem acontecer 0 processo de ELSE Este oe formacao de novas palavras. Uma EO , ——delas 6 t raudanga categoria, om seria natural considerarmos que um item lexical impulsiona eee uma nova construcao, levando & Mieiicias vista conde mudanga da classe das palavras. ‘8m um item iexical as Entretanto, 0 processo mais comun cee de surgimento na neologia é 0 Eeetaaatinnaan que leva o nome de funséo de cde um determinado rotulagdo, em que se pretende enundado”. dar nomes &s agbes ou coisas que, pelo encaminhamento do discurso, aparecem como necessérias, Constantemente, o “item lexical um complexo de propriedades morfoldgicas sintaticas e semanticas, independentes umas das outras” Assim, as propriedades dos Itens lexicais podera BQ | conocinns Rice | LINGUA PORTUGUESA depender de sua formagao diacronica ou sincrénica & qual o Iéxico de base pertence, ou seja, sea formacio for derivada de uma base 4 consolidada na lingua. Assim, 4 maioria dos processos vem dos acréscimos prefixais, sufixals, por justaposigao ou pela aglutinagao de termos de outras linguas. Para Barbosa, os neologismos podem ser impulsionados pela A partir do modernismo, € ‘visio diacronica a qual uma etapa z I histérica da linguaesié enraizada, ja ~~ POSSIVel resgatar certo sentimento a construgio neolégica diatépica € vista onde ocorre uma restrigaodo ~©—-« (Ce olOgico, que motivava imersao neologismo agregado a uma regio, ou seja, marcas caracteristicas de do neologismo como forma de uma comunidade. Ja as construcdes daagieesaiecseryiaiart criar algo mais prdéximo do povo /__lucidar um campo mais speciico — Krasilgiro, valorizando o modo de cde uma pesquisa ou de um elemento, ¢ poderio se constituir mais falar de cada regiao. formalmente. Apesar da arbitrariedade S AIB A@ do uso dos neologismos, é possivel Yerificar se a construgio deles pertence AS escolas literarias ou nao a estrutura da lingua original. de Manuel Bandeira Embora tenha formato elos fortes com os modernists, NEOLOGISMOS - principalmente com Guilherme CLASSIFIGAGAO de Almelda, Bandelra no eect ae participau atvamente do Quando acontece por motivayo Movimento Madernista fonoldgica, & possivel verificar por se recusar a critcar os as criagdes onomatopaicas ee ae ema) (em que a necessidade é na formado pelas referéncias representacio do som) na literias do Paraslanismo € do Simbolismo. Assim, a poesia de Bandetra, 2 principio pés-simbolista, classificagao dos neologismos. + Os neologismos sintaticos, scene eon ee einounge one Rear eee por uma derivagio, seja unida a um ‘opcio do uso de versos livres, sufixo oit a uma base jé existente, a ‘como se ve em seu poema - (modernista) Poética. exemplo de anti-heréi, hiperinflacao, megacomemoragao etc. Postica (recto) Estou farta do lrismo comedido Do lirisme bem comportado + Ja 0s neologismos semanticos alliane tuners ‘ocorrem quando hé uma mudanga pibiico com livo de ponto ‘no conjunto dos semas referentes a pelea ee uma unidade léxica, ocasionada por _preco ao'sr dirtor processos estilisticos da metéfora, Metonimia'y etc. Ex. “surfista {aioe a ferrovidrio” € aquele que pega carona—_(...) durante 0 trajeto do trem nos trilhos. ‘quero antes lieimo os locos « Por fim, 0s neologismos O lism dos babados formados por empréstimos Poe Tee Dungente dos bebados linguisticos de outras Binnie dodanie Iinguas, como a exemplo de: de Shakespeare pace Nao quero mais saber do ese eat seabesunete iso que no €ibertagio. coesnowreie | LINGUA PoRTUGUEsA | 33 a aces REFERENCIdie * Essa breve ¢ restrita classificagio ‘Vejamos alguns trechos da Memorias Sentimentais aparece como forma de ilustrar e obra 0 Turista Aprendiz@: “Hé de Joio Miramar compreender as consideragSes que __uma espécie de sensagdo ficada ‘rata-se de um romance escrito se fazem presentes no estudo do da insuficiéncia, de sarapintagao, ee orm neologismo. Entretanto 0 objetivo que me estraga todo 0 europeu Iniedlaide generes, Econsiderado aqui é direcionar um olhar sobre cinzento e bem-arranjadinho que Ae desmisimperanes as produgées neolégicas presentes ainda tenho dentro de mim” : pees ney mend modern em algumas obras literdrias, A primeira palavra em negrito braslelro, que derivou da Semana de Arte Moderna, de vem de uma formagio derivada Petar peer so Paul, cuja significdncia estd relacionada ane aeons ALGUNS CASOS DA 4 falta de imergir, ou sentir ‘ragmentos 0 esitos em diversos ‘formato: cartas, poms, dtagées, PRESENGA DO NEOLOGISMO parte do contexto; jé a segunda Ulislogos, formulas-padido(convites, NAS OBRAS LITERARIAS palavra destacada é uma forma antincios etc), impresses, relatos de viagem, cares-postat ete £ oportuno iniciar esta andlise sintagmética composta, em que ‘Asequenda dos fatos nao & em obras do escritor-Mério de © primeiro elemento intensifica direta, como na presa tradicional : Re heciene Andrade, cuja participacdo nesse © segundo, que recebe um subliminar, que trespassa os assunto € 0 retrato de uma linguagem _grau diminutivo para dar uma diverosfagmentor mesmo + inovadora e também marca um intenco pejorativa na qualidade que nose reerem diretamente P : é a eae periodo de transi¢ao aparente de que “bem-arranjadinho” & 430 Miramar, que é uma quase pela valorizacio do popular. aquele europeu que se oculta ‘arlcatuia do homem paulstano diante de seu poder e status. Fico do comeco do séculopassado {tempo da juventude do autor, herdeio da cultura do caf, avesso atudo 0 que ébrasliro€ fescinado pelo que éestrangero. or) ‘Vejamos outros: “a copacabanizagao de Natal é um fato’ aqui é possivel verificar a engenhosidade do autor em utilizer a unido de (copacabana + urbanizagao) numa construgao de dois radicais que caracterizar4 ‘uma formagao justaposta carregada de suas partes semanticas: 0 autor quis usar essa palavra para mencionar 0 crescimento exagerado de Copacabana, Em “Degringolando das alturas de Petrépolis, numa baratinha azul”, a formacio neolégica vem de uma construcio derivacional parassintética, cujo radical “gringo” recebe o prefixo (De) mais 0 sufixo (lando), que juntos formam semanticamente a ideia de que 0s estrangeiros estio chegando & cidade, Jé em Osvald de Andrade, RIGEM VTurista Aprendiz ‘Ouro de Mra de Andrade surgiu ide uma viagem oxganizada por Olivia Penteado, em 1927; dessa lager, descrita por Nao como ‘viagens pelo Amazonas até 0 Per, pele Madeira até a Bolivia, pelo Malo até dizer chega' 0 grupo foi ‘de navio até Belém, de onde seguie de barco pelo Amazonas até quite, ‘no Peru. Na vot, viajou pelo Madera-Mamoré, até Belém, depos Ssegulu para Mara. Durante a longa Viagem Mario esereveu "0 Turista Aprenciz" «também fez 600 fotos, algumas de excepcional qualidade artistic. A viagem deu origem 2 "Macunafma", a obra-prima ‘modemista de Mario de Andrade detrinou o seu interese pele va obra METI SERSETAInMETEta odugo de arte no Norte co pas. obra METTnaESentinEM Otvia Guedes Ponteado (1872 de Joao Miramar ge. 41934) fo grande inentivadora temos 0s seguintes casos: Eee codec, “Enquanto nos casardes (...] com Anita alfa, Trsa do morfina viver que parisiavam ‘Amaral e HeltorVila-Labos. aventuras com velhos meninos” Bn aka © vocabulo em destaque vem da formacao da palavra Paris, no qual houve a mudanga categorial do substantivo ao verbo “parisiavam’, denotando a observagio para as luxtirias e riquezas vistas com grande aprecio, No excerto “...] esperangosos no Rio de novas las melarem para sempre nossos destinos [...]", a derivagao vem do substantivo mel e surge pela ideia de aproximacio, unio. Finalizando esse estudo com Manuel Bandeira, que também trouxe suas contribuigdes para 0 processo de formagio de novas palavras, ele criou um poema destinado a0 que se fazia com a lingua em relagao ao neologismo. Vejamos: Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras Que traduzem a ternura mats funda E mais cotidiana. Inventei, por exemplo, 0 verbo teadorar. Intransitivo: Teadoro, Teodora. (Bandeira, 1947) Certamente para o autor, a espontaneidade e a liberdade de poder atuar de forma mais autonoma com o instrumento linguistico é também uma forma de prevalecer certa identidade e valor social. Assim, o estudo da presenga dessa inovagao com as palavras é também entender a fuuncao que elas exercem em determinados contextos, € valorizar as caracteristicas pessoais dos falares de cada grupo. Trata- se de, por fim, saber que, por tris de cada ato linguistico, hé uma receita a ser intercalada, Este breve estudo des consideraces sobre o conceito de As transformagées da lingua, seja em um contexto histérico, ficcional ou pragmatico, carregam muitas implicagdes que devem ser vistas como um modelo de reinterpretacao. nevlogismo, seu emprego ¢ andlise REFERENCIAS de alguns casos especificos serviu Seu hee como uma forma de trazer 0 assunto —_{eycal 208 Sto avo Alle para que novos estudos possam ser 2008. ealizados, com intuito de valorizar 0 ypnane, Oswald. Momérias léxico da lingua, £ nessa perspectiva __Seiimantais de Jodo Miramar. que professores ou estudiosos do Sf Paulo: Gobo, 1987, campo da linguistica, que desbravarn BARBOSA, Maria Apaecida, esse tema, vém buscando maneiras _Lico, prducioe criavidade: de tratar 0 neologismo como um processus de nelopsme, Sdo 6 Pa ea, grande material linguistico que verte diante do contexto social. BBASILO, M. Formagéo 6e pare ro pores Bast, Peed Goro, ‘As transformagées da lingua, seja i em umcontextohistéric, ccional SAW, Tene Aa ‘ou pragmético, carregam muitas Gerlee ceatrede sequen © eee rane como um modelo de reinterpretagao. Vimos; esporadicamente, alguns SEARO Ceasar ‘no exige imexer".dioma,r° ‘exemplos de vocibulos das obras 48,2" someatrs da'1996, Rio de ‘em questo, apenas com ointuito de Janeiro: UEP. mostrar como deve acontecer um Som eran estudo sobre o neologismo. Vimos ‘stutual, So Pao: Cui que uma das andlises pode ser na Esp, 1973, identificagao da sua classificagao APA, NLR Estlstiea da Lingua outra, a interpretacdo que 0 leitor Portuguesa. So Paulo: Martins pode fazer do texto, Em suma, 0 Fontes, 1982. trabalho do neologismo deve ser ANORADE, Mio. 0 Trista motivado nas escolas, tanto pela ‘pend. Duas Cidade. So ferramenta da arte literdria quanto Pare pelos instrumentos comunicativos PINTO, P. Edith. A Grematiouinha disponiveis em diversos recursos, ite de aera «Context So Paul 1980 que poderd ser uma forma de Pee ein ( OGHA, Luiz Caos do Assis compreender o percurso da lingua. ee Cita Concer co Camarged mestands portugues. Belo Horizonte: Ed Linguatioa pa UPS 0 panqucnaar pols OAPES ‘UFMG, 1908 consumer fsie | LINGUA PORTUGUESA | 35

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