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Digitalizado com CamScanner | — A Aldeia Perturbada * Viviamos aqueles dias de angustia, cheios de desespero, quando a guerra ja se alastrara pela Polonia com suas diabdli- cas armas destruidoras; quando Varsévia agonizava debaixo das botas do ocupante, quando 0 exército polonés, despojan- do-se de suas vestes e armas, corria para casa, em panico por todos os caminhos, fugindo da devastadora onda nazista. Era um daqueles dias em que 0 vento agradavelmente so- prava, espalhando uma boa noticia pela pequena aldeia a leste da Ucrania. Tinha-se a impressdo de festa. O ar estava cheio de esperanga. Os “vermelhos” deveriam chegar logo. De todos os lados das estreitas e tortas ruelas jovens comegavam a se jun- tar. Ali, onde havia choupanas cobertas de palha, reuniam-se estes mogos, judeus e ucranianos. — Tragam as faixas — ordenou um jovem de cabelos lou- ros e rosto palido. Um murmtrio passou de boca em boca: “E Mendel, 0 filho do alfaiate Chenoch”. Mendel era um dos que se juntara aos rapazes. Saira ha pouco tempo da prisdo, muito palido é verdade, mas tinha ainda © mesmo olhar seguro de antes. Usava uma camisa preta de ce- tim e, como sempre, estava com as mos nos bolsos das cal- gas, dando ordens. , — Tudo preparado? — perguntava alguém em ucraniano. Os alegres grupos entravam nos campos que circundavam a aldeia e sobre suas cabegas vagava um mar de bandeiras ver- melhas e faixas com frases escritas em tinta ainda fresca, cha- atencdo de todos. y Seah es aldeia floresciam pinheiros. Ali, onde o caminho se cruzava, separando de um lado as pobres casinhas, foi eo ae do um grande portal e colocadas as bandeiras. Todos pus! 21 Digitalizado com CamScanner Se oe olhar ansiosamente © horizonte, esperando a grande che. Um ucraniano de pequena estatura foi erguido por dois pa. tes de fortes bragos. Comegou a falar alguma coisa, mas nao o deixaram terminar. Os jovens transbordavam de alegria sem, no entanto, tirar os olhos da estrada, para ndo perder qualquer mo. vimento ao longe. Cada um deles, sem sombra de duvida, desejava ser o pri. meiro a gritar: — Lavém eles! Mas a estrada continuava vazia. Ao entardecer, os jovens voltaram a aldeia cabisbaixos, en. quanto as mogas ainda seguravam os buqués de flores. Sen. tiam-se envergonhados e seus olhos pareciam indagar: — Sera que foram s6 palavras e nada mais? — No fundo, porém, acreditavam que eles tinham de vir. — Se nao vierem ho- je, virao amanha — pensavam eles. — Temos ligacdo com eles, nao iro nos enganar assim. — Mas se ndo viessem algo pode- ria acontecer. — Nao fiques triste, Mendel — encorajou-o 0 ucraniano baixinho, aquele que horas antes havia tentado proferir algu mas palavras entusidsticas em honra aos héspedes que ainda nao haviam chegado. — Verds que logo estarao aqui! — continuou. — Bem dito, Vassil! — retrucou Mendel, e sua voz tremeu. — Mas, acontece que 0 povoado esta sem autoridades. Quem cuidara dele? Estamos num pais de ninguém. O que pode nos acontecer até que cheguem? — Mendel caminhava nervoso a0 lado de Vassil. A preocupagao que demonstrava era com relagao a0 povo. porque ele, que em anos anteriores estivera preso e passara por grandes sofrimentos, nada mais temia, nem a morte o assusta- va. Estava, porém, preocupado, pensando no que iria dizer a seu pai e A sua Unica irma. Mendel lembrou-se das palavras que seu pai Ihe dissera naquela manha, quando trouxe a noticia. — Seria bom se viessem. Mas, se no vierem? — E olhava oassustado e desconfiado. : Neste olhar do pai, Mendel leu tudo ao contrario. ; — Estamos perdidos. Vao nos matar e voce também tera culpa nisso. — Assim Ihe falava o olhar angustiado do pai. e Na mente de Mendel fixou-se um “X”. Nenhuma cas@ ee tdo vigiada quanto a dele. Se algo acontecesse, se eles na viessem, os de sua casa sofreriam as consequéncias. Eee —O que ha contigo, Mendel? — perguntou Vassil. — 22 Digitalizado com CamScanner tas, também em duvida? — N&o me Compreendes Vassil, nao é por minha cau: ave me preocupo. Mas, sim por todos eles ie tenho rad Porque mesmo sem culpa todos podem sofrer. Quando chegaram a Praga, os integrantes do grupo disper- Saram-se. S6 alguns ficaram. — Deveriam tirar as faixas — dizia alguém. be — Nada de desagradavel vai nos acontecer — replicou ou- Mesmo assim demonstravam nervosismo. Das portas de suas casas as mulheres olhavam para a pra- Ga e vendo os jovens, sairam ao seu encontro. ik — Vejam sé como se apressam! — ironizou uma das mu- eres. __. — Mas éevidente. Onde houver uma festa os nossos rapa- zinhos precisam Participar. E quem comanda a todos? — Claro que é 0 sucessor do alfaiate Chenoch — dizia ou- tra. Pressionado pelo falatorio, Mendel, de repente, sentiu um calor percorrer 0 seu corpo e comegou a suar. “O que quer essa gente?” pensou. “Eu so quero ajuda-los. E se os alemaes viessem, seria melhor? A quem culpariam en- tao?” Mendel perdera os melhores anos de sua juventude lutan- do pelo socialismo, para melhorar a condigao de vida dessa po- bre gente. Foi por isso que ficou anos a fio na prisdo, teve tuber- culose, mas no desistiu. Continuou a defender esses pobres coitados que em troca tratam-no com tanta ignorancia. Mendel sentiu-se acanhado por estar entre as mulheres e comegou a se afastar. : \ — Vejam como esta fugindo — gritaram elas. i — Claro, ele s6 sabe reunir-se aos seus companheiros. Quanto aos outros, deixe-os preocuparem-se — disse uma. — Ocoitado perdeu a lingua — falou outra. \ — O que ele pode responder se acs eas —continuou imeira, — 6 justamente por isso que ele foge. i ‘i Bouma rated insOnia desceu sobre a aldeia onde mora- j ranianos. ee Sie tae CHtnGel sabia-se que estavam em contato cores comunistas e, mesmo assim, nao sofreriam as conseqii eee ceqetelos judeus trataram de arrumar es- poss ee ssidade. Fecharam as portas e jane- eeadero no ce ne Eres isso bastava para ficar las para se sentir mais seguros. Se é que is: a. em seguran¢s 23 Digitalizado com CamScanner Ao amanhecer, todos ja estavam de Menor ruido. Mas os vermelhos aii Beanies ee © vento do outono murmurava e Proximos, , ‘ megaram a correr por todos OS lados, maggie De Pent, co. — Oque aconteceu? — Perguntaram. Ninguém sabia. — Se todos correm, vamos correr também — diziam oO: vens assustados. ae O primeiro a correr foi o magarefe, um hom: to, que foi logo seguido pelos seus dois filhos, O alfaiate Chenoch levou sua filha a um esconderijo ¢ re. Petia sem parar: ¥ — Eu sabia que ia acabar assim, Alguém viu Mendel e 0 avisou: — O que estas esperando? Queres que te enforquem? Vai esconder-te, rapaz. — Nao, eu fico — respondeu Mendel. Do outro lado da aldeia Ouviram-se alguns tiros, Seguidos de um grande siléncio. Todos ja estavam escondidos como fa: tos em suas tocas. Alguns nos porées de vizinhos amigos, ou- tros em sétdos. Seus corag6es, sem excecdo, batiam acelerada- mente, tremendo, 4 espera de algo. No se via ninguém do lado de fora. O Unico que continua- va parado, firme, defronte a sua Casa, pronto a se defender com as Mos, Se necessario, era Mendel. Os cabelos louros e Cacheados, as maos, como de costu. me, metidas nos bolsos, denotavam a Serenidade estampada em seu palido rosto. Ao longe, na estrada, via-se uma grande nuvem de poeira. Aos ouvidos de Mendel ressoaram os cascos dos cavalos con- tra o duro solo da estrada. Com a tapidez de uma tempestade, Passaram por ele cinco cavaleiros que, assustados, olhavam uma aldeia silenciosa. Perguntaram a Mendel: — Oque significam estas ruas mortas? Sem esperar respostas os cinco logo correram para outro lado da aldeia para verificar o que havia por la. De repente, depararam com 0 amontoado de faixas e ban deiras vermelhas e, entao, tudo clareou para os soldados, a0 Pensarem que os vermelhos estavam do outro lado do portao. Durante alguns segundos entreolharam-se e, com a mesma ra pidez da chegada, sumiram pelo caminho por onde vieram. Mais tarde, soube-se que esses soldados eram poloneses e tinham se perdido do seu tegimento apds um combate contra 9s alemées. E, como nao deveriam cair nas mos de seus inimi- gOS, esconderam-se nos bosques, até que resolveram dar uma 24 eM Muito espe. Digitalizado com CamScanner olhada na regiao, sem saber, no entanto, a quem iriam encon- trar, poloneses ou alemaes. Tinham desistido de lutar, mas nao esperavam encontrar russos. Foram estes soldados que deram Os tiros que tanto assustaram as pessoas da aldeia. Com seus passos seguros, Mendel foi até as casas dos camponeses. Ele fora a Unica testemunha da chegada e da fuga dos soldados poloneses. Por isso sentiu satisfagdo por ser o primeiro a dar a boa noticia. Sorrindo, batia nas portas e ia di- zendo: — Saiam irmaos, 0 perigo ja passou... Palidas e assustadas criaturas olhavam pelos vaos das Portas, desconfiadas, querendo saber se Mendel nado as enga- nava. — Verdade, estamos mesmo salvos? — indagavam. Pouco a pouco foram saindo, levantando seus olhos ao céu como a agradecer a Deus pela salvagao. Vassil veio ao encontro de Mendel, abragando-o e apertan- do a sua mao. — Parabéns, Mendel, tu és um heréi — disse ele. — Agora vamos ao encontro dos nossos camaradas, pois eles virao hoje sem falta. Duas horas depois chegaram a aldeia os primeiros tan- ques de vanguarda dos soldados soviéticos. Essa era a situagao ali, naquela época Todos aguardavam esperangosamente a “salvagdo” russa, sem saber 0 que Os es- perava. Os “‘anjos” vermelhos nao seriam mais complacentes do que as hordas nazistas. 25 Digitalizado com CamScanner ll — Dias de Suspense Os dias sagrados trouxeram aos habitantes da aldeia em que chegamos e, especialmente, para nds, os fugitivos, muita tristeza. Habitualmente, esses dias sao reservados para peniténcia e prestagao de contas a Deus. Era Rosh Hashanah — o ano no- vo judaico. Para nds, além de sagrados, tinham um outro signi- ficado. Eramos fugitivos, longe da nossa terra, de nossos paise sentiamos a amargura de estar fora de casa, da guerra e dos primeiros dias santos que nos foram proibidos. Era verdade que nesse pequeno lugar ainda reinava calma. Uma calma demasiada e que nos preocupava a todos. Pareciaa bonanga antes da tempestade. Haviamos escolhido aquele !u- gar de propésito. Era afastado da cidade, das fabricas e dos ob- jetivos militares. La, nos sentiamos um pouco mais seguros. A aldeia consistia em alguns pobres casebres, cobertos de palha, e uma velha praga que uma vez por semana transforma- va-se num lamacento mercado. Em volta da praga havia deze- nas de casas judias junto a pequenas lojinhas. Todas as ma- nhas ouvia-se um barulho que se tornou familiar com o tempo —o som dos bombardeiros. Apesar disso, a aldeia podia ser comparada a uma pacifica ilha feliz em meio ao mar revolto. A poucos quilémetros dali havia uma fabrica de vidros e na outra diregdo, mais ou menos na mesma distancia, ficava a estagao ferroviaria. Era para la que se dirigiam os avi6es com a sua car ga de desgraga e morte. O dia estava claro e o sol no profundo azul emitia feixes de raios dourados. De repente, ouviram-se explos6es na estacao. Naquela manha de feriado, embora muito amedrontada e triste, nado pude resistir e sal de casa. Era um dia magnifico do outono polonés. Sai para respirar 0 ar puro e, distraida com 27 Digitalizado com CamScanner eus pensamentos, fui me aproximando da sinagoga onde re. vam os judeus. Tao tristes suas fisionomias e tao profundas e lamuriosas is oragdes desses homens, que fiquei muito impressionada. Eu unca tinha visto e ouvido coisas semelhantes. Mas, infelizmente, as suas preces ndo foram ouvidas pelo Senhor. A sinagoga era pequena e abafada. Tudo nela mostrava tristeza, desde os rostos das pessoas, as paredes escuras, até os vidros quebrados das janelas, que foram substituidos por pa- peldo e trapos velhos. Fugi dali o mais rapido possivel com um dolorido né na garganta. Passaram-se alguns dias em siléncio até que uma nuvem de avides cruzou 0 céu, voando cada vez mais baixo por sobre os telhados dos casebres, espalhando 0 terror. Corremos em diregao ao pomar e nos escondemos por en- tre as Arvores, 0 que nos salvou da morte tao proxima. O Dia do Perdao parecia o “dia do castigo”, 0 Juizo Final. Nesse dia santo nenhuma pessoa ousou sair a rua. A aldeia mostrava- se inerte. Esperando 0 ataque do inimigo, os habitantes haviam se escondido nas suas hortas e em buracos cobertos de galhos e folhas verdes. Ficamos camuflados e ocultos para o caso de os inimigos nos procurarem. $6 A noite é que estavamos mais seguros e podiamos até dormir nas casas. Uma noite, um ruido forte foi ouvido. Era como se todos os diabos do inferno tivessem gritado de uma s0 vez. Uma luz forte penetrou nas casas, onde assustados todos acordamos sem ter a minima idéia do que se passava la fora. O medo nao nos dei- xava sair. Pelas frestas da janela vi passar muitos tanques fortemen- te iluminados. Passamos os dois dias santos intranqiiilos e com medo. Mais pelos diabos motorizados da Terra do que pelo julgamento de Deus. Quem poderia imaginar de que modo mor- teria nesses dias de loucura, em meio ao mundo em chamas? Alguns dias depois, na véspera de Sucot — Festa das Ca- banas — a minha cidade j4 estava ocupada pelos russos Re- solvemos voltar. No dia seguinte, ao amanhecer, alugamos uma grande carroga e, felizes, iniciamos o retorno As nossas casas. Depois de alguns dias de provagdo e bombardeios a cidade res pirava livremente. Podia se sentir nao sé a alegria dos soldados que marcha vam pelas ruas, cantando, mas também de todas as pessoas. Parecia que cada pedrinha no chao sorria contente porque @ paz havia voltado. 28 Digitalizado com CamScanner x Os rumores corriam rapidamente e o: de que as tropas iriam até Varsévia. A eae Hate acreditava que a desgraca da guerra jé havia deixado a cidade, Mas essa alegria durou muito pouco, Somente alguns dias. Eu nao pude ficar mais do que uma noite em minha casa. Aquela noite, a da decisao, foi para mim o inicio de um longo caminho de sofrimentos que me acompanharam até os Ultimos dias da guerra e que jamais pude esquecer. A noite mais triste da minha vida foi a da separagdo dos pais, do lar e de todo 0 carinho e amor que jamais encontrei — a afeigdo de meu pai e de minha mae. Quase a meia-noite, ou- viu-se por toda a cidade um barulho estranho que estremeceu Os coragées. E todos pressentimos maus sinais. As tropas russas a essa hora jA haviam deixado rapida- mente a cidade, mas nao iam para a frente, como diziam. Retor- navam, levando consigo os mortos da “Cova dos Herdis”, mo- numento que haviam erguido e desmanchado. Isso tudo nado nos dava boas esperangas, a noite estava cheia de ansiedade e trazia um desespero beirando quase a loucura. Permaneciamos em siléncio, tremendo, atentos a qualquer som que viesse de fo- ra. Foi somente ao amanhecer que sai a rua, onde grandes e pequenos olhavam-se perguntando nervosamente e pedindo conselhos. O medo levou todos a rua e nado havia mais sossego. Era uma questao para ser resolvida em poucos minutos. Corriam rumores de que os alemaes matavam os jovens nos lu- gares onde ocupavam. As oito horas da manha nao havia mais nenhum soldado por perto e minha cidade ficou sem quem a governasse, deixada ao seu proprio destino. A qualquer instante, poderia se esperar um pogrom’ da parte dos nossos “irmaos” poloneses. —m casa, todos eram contrarios a minha partida, mas eu estava decidida a ir. Foram 0 medo e os pressentimentos do que la aconteceria que me deram energia e me fizeram tomar essa dificil decisao. No ultimo dia do feriado, meu pai acompa- nhou-nos, eu e meus irmdos, até a saida da cidade. — Esperem, queridos filhos. Deixem-me vé-los por mais al- guns instantes — pedia ele ao se despedir. Sua voz tremia. — S6 Deus sabe se ainda vamos nos ver. 7. Pogrom — palavra russa que designa as sublevacées populares anti-semitas, acompanhadas de massacres e saques. Com origem na Idade Média, esses movi fontos violentos estenderam-se até a época moderna na Europa Oriental e na Russia Czarista, muitas vezes organizados pelos governantes, exacerbando 0 dio do povo contra os judeus, na maioria das vezes consistindo numa cartase o descontentamento popular em relagdo a situagao econdmica e politica. 29 Digitalizado com CamScanner Meu pobre pai. O seu coragao carinhoso pressentia uma vi. s&o maldita. Sim, era o ultimo dia dos feriados, normalmente um dia de alegria. Mas, para nés nao havia alegria alguma. So. mente um caminho sangrento, de eterno sofrimento, que deixoy Hatt este dia em nossos corag6es feridos, de infelizes fugi- ivos. Estavamos na aldeia aguardando a chegada do restante da familia. Faltavam ainda meus dois irmaos que esperavam a oportunidade, como centenas de outras pessoas, de conseguir um barco, no outro lado do rio Bug, ainda em territorio polonés, Ja ocupado pelos alemaes, para poder atravessé-lo e alcangar o lado soviético, onde nos encontravamos. Os que pretendiam transpor o Bug eram muitos, mas preci- savam de grandes quantias de dinheiro para realizar essa tra- vessia cobrada pelos barqueiros, além de muita paciéncia para aguardar a vez. O embarque s6 se completava a noite porque, é claro, era ilegal. Foi numa daquelas noites em que esperavamos a chegada dos dois que aconteceu uma tragédia: uma pequena embarca- ao que levava muitas pessoas virou, morrendo todos os que nela estavam. E entre os infelizes, dois irmaos. Na manha seguinte, espalhou-se a noticia de que os dois irm&os eram os nossos. Jamais esquecerei meu sofrimento e o dos meus parentes, pois os dois representavam para nds, mulheres, naquela hora dificil, os chefes da familia, que nos sustentavam e substituiam nosso pai, que ainda vivia 1a, no outro lado ocupado pelos nazis- tas, com a esperanga de um dia juntar-se a nds. Eu nao podia me conformar com o infausto ocorrido. Mas, gragas a Deus, as noticias nao eram verdadeiras. Nu- ma bela manha, meus dois irmaos surgiram sdos e salvos sem nem imaginar o quanto ja haviam sido chorados. Surgiram co mo se tivessem ressuscitado. Digitalizado com CamScanner Ill — No Pais da Justica Aos refugiados de guerra era expressamente proibido mo- Tar Na pequena aldeia perto da fronteira russo-alema. Por este motivo, centenas de judeus desesperados nao tiveram outra al- ternativa senao inscreverem-se para vi ussi: jar a Russia. Para esta viagem nao havia dificuldades. Bastava esperar a chegada do trem especial que levava os refugiados. O trem nao tardou a chegar e, rapidamente, instalamo-nos com a pe- quena bagagem nos vag6es. Entre os refugiados havia a familia de um camponés e toda a Sua Carga consistia em alguns sacos de cereais, batatas e ce- bolas, que ela mesmo havia cultivado. Nao querendo deixar pa- ra tras o que a colheita rendera, eles resolveram levar consigo a sua produgao. Isso foi logo percebido pelos nossos acompanhantes rus- sos. — Aquem pertencem estes sacos, o que ha neles? — per- guntou um deles. No idioma russo, ainda mal falado, e misturando palavras com o polonés, 0 camponés tentou explicar que levava seus préprios cereais para alimentar a familia. — Vamos para longe — dizia ele, — sem saber como pas- saremos os primeiros dias e de qualquer modo é bom levar um pouco de comida. O guarda russo fitou o homem com ira no olhar, mas logo se acalmou e pareceu até sorrir. — $6 isto — disse ele. — Entdo posso Ihe assegurar que em nossa terra ha batatas até de sobra. Ouca, logo chegaremos 4 fronteira e quem levar consigo qualquer alimento sera obriga- do a joga-lo, pois dentro do vagao apodrecera e estragara 0 ar. ‘Assim, 0 homem do campo e os outros que também leva- 31 Digitalizado com CamScanner vam seu sustento cumpriram a ordi le ue o trem se aproximava da fronteira s Sem ninguém perceber, surgira Ucranianos que, como um bando d que viram comida. Em poucos inst: teais aay fora desapareceram. fa fronteira o trem demorou mui i tunidade de observar um quadro Lae esre ace Galego Say Gompreendr o que acontecia, ae ‘anianos olhavam para nds, agradecid eesmne. tempo, desconfiados com tudo EUG} como Baltes a izer: “Que gente tola, joga fora o que mais tarde ir procu. Esta cena se repetiria nas estagdes seguintes. Campone- Ses ucranianos tomavam de assalto o trem, perguntando por sapatos Ou roupas para comprar. Lembro-me que um dos pro- dutos mais procurados era 0 sapogi'. Quase todos eles usavam trajes miseraveis e nés tinhamos a impressao de que eram ca- Pazes até de arrancar a roupa de nossos corpos, pois apalpan- do-nos perguntavam: — Prodaiote” Nao havia problema de dinheiro, porque eles ofereciam pa- cotes de rublos quando encontravam roupa de boa qualidade. Ja naqueles dias, qualquer pessoa atenta poderia perceber que naquela regido as coisas néo eram como deveriam ser. Era evidente que para os guardas, nossos acompanhantes. no era bom que nés, os estrangeiros, ainda que viajando de trem, tao cedo vissemos coisas que nao deveriamos ver. Por is so, encontravam-se numa situagéo um tanto dificil, porque ti nham ordens de nos tratar bem. Portanto, nao tinham coragem de xingar nem de fechar as portas dos vagées quando o trem parava nas estagdes. Além disso, nao viaj4vamos forgados, mas sim voluntariamente, e eles ndo tinham outro jeito a nao ser deixar os habitantes se aproximarem de nds, os estrangeiros. a. Em nosso vagao teve inicio uma discussao. Cada um via a situagao de modo diferente. r F oe Sabem — dizia um homem moreno e simpatico, — ae que caimos numa armadilha bem disfargada, pois 4 pobreza aqui parece ser enorme. ei. 3 & E assim que vocé acha, hein? — disse outro — pols lo go vai sentir coisas piores e entao nao achara mais nada. 10 Quarda & medid; soviética. Ke im grupos de esfomeados le urubus, atacaram assim lantes, os legumes e os ce. 1. sapogi — espécie de botas russas. 2. Prodaiote? — Vendem?, em ucraniano. 32 Digitalizado com CamScanner — Vejam s6! — comentou alguém aborrecido, num canto do vagao. — Nem chegamos a passar a fronteira e jaestao de- monstrando seu descontentamento e falando mal de tudo. Di- gam-me, entdo, sera que la com 0 apodrecido regime polonés era melhor? E prosseguiu: — Pois para mim ndo era, e digo com since- ridade que estou bem feliz por ter conseguido, enfim, vir a esta terra! Acreditem, nao sou rico, possuo apenas dois bragos for- tes, e se achar servigo ndo me preocuparei com mais nada. Po- dem estar certos de que para vocés também nada faltara. Mas, por favor, ndo sigam as atitudes de alguns mendigos que que- rem viver as custas dos outros. Todos se calaram imediatamente, apds ouvir a prelegao daquele sujeito e ninguém mais ousou prolongar a discussao. — E preciso ter cuidado com ele — cochichavam aqui e ali. Havia ainda, entre nés, alguns que estavam encantados com 0 inicio da nova vida e demonstravam sua felicidade em tu- do, como as obras da famosa Piatiletka? que Ihes parecia um plano magico. Para eles, as imagens de pobreza nao importa- vam, pelo contrario, estavam muito alegres, e durante toda a viagem nao paravam de entoar roletarias. ‘Os novos senhores prestaram mais atengao em nés na ho- rado desembarque. Foi dada uma ordem aos habitantes russos para que nao se aproximassem de nés, com a desculpa de que estavamos cansados da viagem e a primeira coisa que precisavamos era de um bom banho. Depois, fomos levados a um refeitorio que os russos chamavam de stolova. Os primeiros dias naquela terra estranha foram os nossos melhores dias porque, no comego, nos trataram bem e nao fal- tava comida. Pensévamos: “Seria bom se no futuro continuasse assim”. Todos aqueles com quem tivemos contato, nesses dias, mostraram bastante respeito e tinham pena de nés, refugiados de guerra, principalmente porque éramos fugitivos da Polénia, pais de regime capitalista, onde nao havia “nem pao nem traba- Iho a vontade”. Era isso 0 que haviam contado aos russos antes da nossa chegada. ne 4o era das melhores, mas suficiente. Se A alimentagao ni e . havia mesmo o suficiente nos nao sablamos ainda, porque ja ti- habitantes esfomea- nhamos encontrado, logo no comego, OS dos. ‘ Naquela época eu ainda nao tomara conhecimento da tati- 3 Platiletka — Plano de Desenvolvimento Qiingdenal. 33 Digitalizado com CamScanner ca soviética, que era a de bem tratar os estranhos & Custa do Préprio povo. O povo pode sofrer porque desde a infancia esta acostu- | mado com a miséria. Uma situagdo inversa seria considerada uma vida luxuosa e iria contrao programa comunista. Duvido que exista, em qualquer parte do mundo, um Povo que esteja habituado a sofrer tanto como 0 bom povo Tusso, se- Ja em casa ou no campo de combate. O cidadao tusso € humil- de e silencioso mas, no fundo de seu coragaéo, mantém acesa uma chama de édio contra aquele amargo regime. Mais uma vez pudemos observar a pobreza, enquanto sen- tavamos as mesas do refeitério a cada vez que faziamos nossas | tefeig6es. Do lado de fora, reuniam-se criangas e adultos que, pelas vidragas, miravam-nos com um olhar que traduzia fome e inveja e que cortava como uma lamina. S6 Deus sabia 0 que significavam aqueles olhares. Nos imaginavamos que eles, em silencioso sofrimento, queriam dizer que uma grande injustiga Ihes fora feita, pois nao bastasse a fome que passavam ainda trouxeram a sua terra uma gente estranha que lhes tirava 0 Ultimo pedaco de pao da boca. Tive muita pena deles. Sentia-me culpada por estar comen- do e eles nao. Logo que acabavamos de comer e nos levantavamos, eles faziam um “assalto”, tirando tudo o que havia sobrado nos pra: tos. Estas cenas repetiriam-se por mais dois ou trés dias ape nas, porque eles nado mais apareceram em frente ao refeitdrio. Sem duvida, fora proibida a sua permanéncia ali. | Descansamos uma semana para recuperar as forgas e po- der depois enfrentar as dificuldades que nao nos faltariam no futuro. As seis horas da manh, nos casebres coletivos, éramos acordados pelo radio tocando marchas alegres e, sobretudo, cang6es patridticas. Uma delas ficou gravada na minha mente Edizia assim: “Grande patria, minha querida, 4 Que tem lavouras, bosques e rios sem fim. Eu nao conhe¢go pais igual no mundo Onde o homem respira livre assim... e Apés o café, levavam-nos ao cinema e todos Be do apresentados tinham como objetivo a piapagande: pene ok desenvolvimento da agricultura, as boas colheitas, Pepe rgo cance da Piatiletka, o progresso da economia, © tral 34 Digitalizado com CamScanner disciplinado nas unidades coletivas e, aci 0 ‘a perevinose juventude Komsomot. Sate i ja literalmente nenhum filme em que nado e aquele rosto tao conhecido e louvado, id orandesliite® S, que era O “Pai dos Povos”, o camarada Josef Sta- dido e respeitado como uma divindade. todos os lugares onde amos, inclusive nos banheiros, s louvando a grandeza e as obras da Unido Sovié . de tudo, exaltando o pai de todas aquelas Republi- com isso que alimentavam as pobres nagées. familia era numerosa e incluia também duas crian- eus sobrinhos. Assim, tivemos sorte e fomos os primei- artanjar moradia. Confesso que o problema nao foi dos s faceis de resolver, porque isso causou muita inveja j4 que oria das familias de refugiados continuou durante longas amorar nos casebres coletivos. _ E facil esclarecer porque minha familia foi privilegiada; é€ e conosco encontravam-se também duas irmas, mogas muito nossas parentas. Gragas a elas, fomos morar numa ca- mais conforto e recebemos comida de primeira, numa mas bem limpa. Tudo isso os diretores arranjaram minha familia para poder flertar com as duas belas moci- ‘Apequena sala era separada da grande por uma parede de tabuas que apresentavam frestas no meio. Uma vez, pude- ‘observar que muitos olhos nos espreitavam, como se fOs- pessoas extraordindrias. Eram simples operdrios russos e quando saiamos, eles permaneciam parados, olhando-nos com muito respeito. Ouvi, certa vez, um deles murmurar: — Etat Barinhe!* Para essa gente humilde nao havia outra explicagao, pois ali __ sO pessoas muito importantes podiam comer. Estavamos em janeiro de 1940. O frio e as geadas eram fortes demais. Parecia que o inver- % Komsomol — Juventude do Partido Comunista. '5, Etat Barinhe- — Estes sao senhores! — em ucraniano. aa Digitalizado com CamScanner no na UcrAnia era mais rigoroso do que na Pol6nia. Todavia, na- quele ano, a temperatura baixou consideravelmente em toda a parte. Tinha-se a impressdo de que a propria natureza havia se revoltado, principalmente contra os pobres refugiados, os quais nesse periodo ficaram sem roupas e sem sapatos. Naquela regio havia somente usinas de acucar e estava mos empregados numa delas. Aquela era a €época em que as usinas entravam em fase de manutengao. O grupo do qual eu fazia parte ocupava-se em desmontar e limpar as pegas das gi- gantescas maquinas. Era ridiculo ver-me envolta dentro da far- da grande demais, manipulando as chaves mecanicas, parafu- sos, alicates e outras ferramentas. Depois de uma limpeza, colo- cAvamos todas as pegas nos seus lugares, dentro das maqui- nas, seguindo as instrugdes de um comandante. © comandante do nosso grupo era um bom sujeito, mes- mo sendo membro do Partido. Falava em voz baixa, sorria, e nunca demonstrava nervosismo. Gostavamos dele, apesar de muitas vezes reclamar do servigo mal feito, pois nao tinhamos pratica alguma. Certo dia, ocorreu um pequeno incidente sem grande im- portancia. Mesmo assim, jamais pude esquecé-lo. Trabalhava conosco um rapaz chamado Liova. O grupo, porém, chamava-o Léo. Uma vez, alguém fez uma brincadeira e além de Léo chamou-o de Trotski. O nosso comandante esta: va por perto e, quando ouviu pronunciar aquele nome odioso na Unido Soviética, de seu rosto desapareceu o sorriso e seus olhos fitavam a todos sem conseguir entender o que aquilo sig nificava. — Ser uma brincadeira ou alguém disse isso de propési- to? — indagou. Ao notar que ninguém Ihe dava atengao, ele aproximnou-se de Léo e, tremendo de raiva, disse: — Ouga, eu n4o sou qualquer um que acredita nas suas to- lices. Como seu instrutor estou Ihe avisando, cuide-se. Nao tor- ne a dizer palavras que ndo agradam. E bem possivel que voce nem tenha pensado nas conseqiléncias ao pronunciar aquele nome, mas fique sabendo que se outro estivesse no meu lugar vocé ja estaria preso. Lembre-se, aqui ndo se fala nada a toa. Pense bem, primeiro. Entendeu? Essa era, naturalmente, a opiniao do instrutor a respeito do assunto. Exatamente naquela época, a diretoria da usina demons: trou gostar do trabalho realizado por dois de meus irmaos Eles trabalhavam correta e rapidamente, fazendo todo 0 servigo © por isso se destacaram. Eles receberam desses diretores 0 titulo de 36 Digitalizado com CamScanner chanovei, Ou seja, campedes; f i ; 1a, 3 for demais operarios como exemplo Habe aah ree Como adores. . npens MecAnicos, receberam novos uniformes d ‘operarios. Em fungao deste aconteci i wes ce da Capital para entrevista-los e, ene Mister aaipeistes a spicata Seen nos jornais da eal Sree jglaatatias © jas estes jornalistas mudaram é ; com bos haviam contado. Naturalmente, ao peep ae aquilo que era considerado bom e i Bea Beis Ga Ucito Sovietioa. O arin octave acanto mals o4 Bence assim: ica. O artigo estava escrito mais ou “Dois irmaos, fugitivos di i 2 Hl le guerra, que vieram i- pees da Polonia para trabalhar His das Tee be Been, Se ere eet See ecorant se dentre os demais i inicos, chamando a aten¢a Pena de todos. fengao e merecendo o Eles, que na Polénia nao haviam c i . onseguido trabalho, pas- sando fome e sentindo a maldigao do sistema capitalista, Bat na nossa Republica Socialista tornaram-se nomes respeitados, eee ea e até recebendo um prémio pela qualidade de 5 fo} artigo acrescentava ainda que os outros operarios deve- riam seguir 0 exemplo dos dois irmaos. E assim findava a publi- cagao que iria assegurar a eles a subsisténcia futura. ; O° conserto das maquinas da usina estava no fim, mas a fa- brica ainda nao iria comegar a produzir o agucar. Assim, para nao incomodar ning! e ficar sem trabalho, pois ja conhecia- mos o lema essere nee Oe alias, ja nao ti- nhamos os privilégios dos primeiros dias fesolvemos, entao, trabalhar em outra refinaria, bem distante de nossa casa. Tinhamos a impressdo de que 0 inverno intenso e as tem- pestades nunca mais cessariam e, além do frio, havia muita tris- teza naquele nosso lar. Nao havia lenha nem carvao para aque- cer a casa. Estes produtos foram substituidos por grandes quantidades de sementes de algodao ja utilizadas, misturadas com neve e que nao queriam queimar de jeito algum. A utilizagao dessas sementes dependia do tempo. Se este nao estava bom e nao havia vento, a fumaga e © cheiro desagra- davel envolviam toda a casa. Ja nos dias de sol, as sementes queimavam instantaneamente como palhae, para se obter uma temperatura normal, a tarefa exigia bastante trabalho, caso con- trario o fogo apagava e era preciso acendé-lo novamente, © que nao era la muito facil. Sem o aquecimento e com 0 vento gelad nos podiamos mover. Partia © coragao ver as jo soprando, nao duas pequenas 37 Digitalizado com CamScanner criangas, meus sobrinhos. Era melhor, nestas ci seguir um caminho mais longo até a refinaria do mos em casa. Dentro da usina, porém, o calor era usavam vestidos mais leves e os homens reunstancias, que congelar. infernal. As mulheres 86 calgGes e seus Cor- Era 0 dia primeiro de maio dai mana do meu servigo noturno e eu bro em relagao aos dias comuns. M Para nés, mulheres trabalharmos al legao”, um Servigo que era feito pelas russas e que consistia em Separar o aglicar manchado, o que era muito facil e parecia até brincadeira. As russas rebelaram-se contra nés, as estrangeiras, e fo- Mos obrigadas a,carre ‘gar este produto em sacos até a segéo Onde estavam os fornos que derretiam o agticar novamente. Uma carga de meio saco de agucar era pesada e curvava demais nossas costas. Eu e minhas irmas faziamos aquele car- fegamento o dia inteiro, subindo e descendo escadas. Acredita- vamos que este trabalho tinha sido um ato de vinganga. N Era muito dificil de conceber que isto pudesse acontecer | ali, num pais socialista. O Motivo talvez fosse porque éramos estrangeiros e eles se aproveitavam disso para aumentar, a ca- da dia, a quantidade de agucar nas sacas. Parecia até que al. guém estava interessado em acabar com as nossas forgas. Nao adiantava reclamar, porque nao nos viam com bons olhos. Viviamos em situagao lamentavel, sem que pudéssemos nos queixar. Eu nao conseguia mais suportar aquilo. Era demais para as minhas forgas e 0 meu fisico. Eu nao me conformava com tal tratamento dispensado a um operario, justamente num regime socialista. ; Num daqueles dias, quando eu Carregava o agticar, sem conter as lagrimas que caiam de meus olhos, pensando que nao havia mais saida daquele inferno, neste momento, pone ee tivesse sido mandado pela Providéncia, veio ao meu er um russo simpatico. Ele era um dos principais diretores da TOES Parou e me ies alguns instantes. Parecia ter pe im, quando perguntou: - ms oo cauent pana voce fazer esse servico? quele ano. Justamente a Se- Tecebia o pagamento em do- lesmo assim, era muito dificil li, porque nos tiraram da “se. 38 Digitalizado com CamScanner _ Em seguida, demonstrando certa Irritagéo, chamou um de seus subordinados @ passou-Ihe uma descompostura, critican- do a desordem naquele estabelecimento. — Vocés perderam 0 julzo? — gritava ele. — De modo al- gum permitirel que jovens frageis coro esta fagam um servigo jo desses. Gragas Aquele diretor humano fui transferida no mesmo dia para o laboratério, para trabalhar como ajudante, numa sala limpa, sem barulho @, 0 que era mais importante, com ternpera- tura normal. Agradeci a Deus e fiz meu trabalho cor mais animo. Pelo menos, tinha me livrado daquele calor insuportavel e da carga Oinverno continuava com o mesmo rigor de antes. Salamos de casa ao raiar do dia para ndo atrasar no servi- G0, pois por cinco minutos de atraso podiamos ser castigados. Certa manh4, durante uma intensa tempestade em que n&o se enxergava o que estava acontecendo, encontravamo- nos no meio do caminho, quando ouvimos 0 forte apito da refina- ria. Estavamos agasalhados, com os rostos dentro das golas dos casacos, lutando contra a neve e o vento, sem poder nos movimentar, quando em nossa diregdo vieram dois homens. Por ‘suas aparéncias e vestes, tivemos a impressdo de que perten- ciam a uma outra classe. Silenciosos e com o olhar penetrante, observaram a gente, balangando as cabecas como se tivessem pena. De repente, um deles fez uma pergunta inesperada: — Digam mocinhas, que ventos trouxeram vocés aqui? Eu tinha certeza que eles ndo simpatizavam com o regime stalinista, pois com a pergunta percebi o ddio e a ironia para com ele, Parecia uma pergunta comum, porém, para mim foi tao im- portante que ficou gravada para sempre em minha mente. Aqueles olhares, aqueles rostos inteligentes mas confu- sos, sem duvida, indagavam: “‘O que fizeram com vocés? Por que vieram para cA? Sera que também se deixaram enganar pela propaganda e mentira deste pals?” Como eram pessoas estranhas, néo podiamos dizer que nenhum idealismo havia nos atraido e que fol somente a malfa- dada guerra que nos obrigou a fugir (da enorme tragédia, do Ho- locausto que aconteceria mais tarde e que custou um tergo das vidas do meu povo, |4 na terra natal, ainda nao sablamos). E se ndo tivesse sido pela guerra, jamais nossos pés teriam pisado aquela terra. Porém, para cada desgraga ha sempre um pouco de sorte. 39 Digitalizado com CamScanner Logo depois, recebemos Passaportes soviéticos para Per- manéncia de cinco anos. Esses Passaportes eram verdadeiros, com as fotografias, carimbos e tudo mais. Mas, na realidade. Nao ficamos muito contentes com este acontecimento como ninguém nos perguntou se aceitavamos ou N&o, 0 remédio foi fi- car com eles. No dia seguinte, apés recebermos nossos documentos, fo. mos chamados outra vez para nos apresentar a policia secreta a temida N.K.V.DS Ficamos chocados, sem compreender o que havia acontecido. Mas logo a situagdo esclareceu-se. O Governo Mudara de idéia e se arrependera de ter distribuido documentos a gente em quem nao confiava ainda. Este pequeno incidente, aparentemente sem importancia, foi, porém, a nossa verdadeira Salvagao, pois logo depois pode. tiamos voltar para perto da fronteira, onde, quando chegamos, © Governo agrupou todos os refugiados de guerra, mandando- Nos para bem longe, isto 6, para a Sibéri Aquele local era para todos nés uma imensa tragédia, mas Parece que nao na mal que nao termine bem, como comprova- tam mais tarde as circunstancias politicas. Fomos salvos da morte, porque se 0 governo nAo tivesse retirado nossos Passa- portes, teriamos que viver naquele lugar como habitantes sovié- ticos e nao poderiamos sair de la. E, no caso do inicio da guerra entre a Russia e a Alemanha, como aconteceu posteriormente, sem duvida seriamos as primeiras vitimas do exterminio. INGA =cacaa es alevras rissa que significars: “Comissariado do Povo 6. NKV.D. — Sigia das palavras russas que significam: “Comissariado do T° para os Negocios Interiores”, organismo soviético criado em 1934 e 4 tuiu a policia politica, até entéo denominada G.P.U., atual KGB. 40 Digitalizado com CamScanner

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