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‘Titulo: Teorias e Modelos de Comunicagio ‘Autor: Manuel Jodo Vaz Froixo Colegio: Bpistemotogia e Sociedade, sob a directo de Antonio Oliveira Cruz Capa: Dorinda Carvalna © INSTITUTO PIAGET, 2006, 2011 Ay. Jolie Paulo Il, lote 544, 2.°~ 1900-726 LISBOA 21831 65 00 E-mail: infoitpiageteditora.com Paginagto: Instituto Piaget Montagem, impresso ¢ acabamento: Tip. Tadinense, Lea. ISBN: 978-989-659.081-9 Depésite legal: 292 .919/2011 Li edigho, 2006 2 edigto, 2011 ‘Nerhuma parte desta publiao poe er reproduside ou ware jot {ualquerprosaneeetinica medic ou fotogriim,inciindo fotapia serocépia ou gravapte, vem autorizagao previa ecrita do editor INTRODUGAO -«Qualquer um pode zangar-se, isso € fei... ‘Mas zangar-se com a pessoa certa, ma medida certa, na hora certa, pelo motivo certoe da maneira certa ~ ndo é fil.» ARISTOTELES Etica a Nicémace Este livro, jd em segunda ediglo revista e ampliada, é& 0 resultado de uma ideia antiga que se foi materializando, ano apés ano, na docéncia de formagtes (licenciatu- ras, mestrados e doutoramentas) que tém ma sua estrutura curricular a comunicagéo como drea de estuda. Foi desta forma que a obra, mo essencial, fica muito a dever ao contetido das ligdes at proferidas. O objetivo foi dar resposta, em primeiro lugar, a um grupo alargado de estudantes cujas habilitagdes de base tinham origem num leque diversificado de formagoes (professores, engenheiros, economistas, jornalistas, teolo~ gia...) A eles fico a dever naturalmente as primeiras sugestdes e, face as diividas e interpelagdes suscitadas, a propria sequéncia organizativa da obra. Também € objetivo deste livro servir os estudantes de comunicagao emt geral e ainda todos aqueles que tém esta drea curricular integrada no sew curriculo de estudos, no esquecendo nat- ralmente os docentes que lecionam esta drea de conhecimento. Nesse sentido, foi feito um esforco para, sem sacrificio do rigor necessdrio e indispensdvel, manter 0 trata- mento dos problemas acessivel a um conjunto alargado de destinatirios, independen- temente das suas formagdes de base. Cré-se, porém, que a motivagéo para a sua leitura serd particularmente acrescida para todos aqueles que procuram melhor perceber os mecanismos do proceso comunicacional ¢ a importincia de comunicagio no seio da sociedade contemporinea, dada a sua whiquidade e indispensabilidade do seu exercicio com um minimo de proficiéncia, Dado 0 acolhimento que os leitores proporcionaram a Teorias e Modelos de Comunicacéo, muito especialmente por parte de estudantes do ensino superior e& professores, impunha-se que se facullasse uma nova edigto da obra. Nesse sentido, aproveitou-se a oportunidade para se rever todo o conteiida, precisando-se melhor algumas matérias ¢, sobretudo, ampliando-se esse mesnto conteiida a wnt conjunto de temdticas incontorndveis que uma obra nesta drea deve igualmente contemplar... dando assim acolhimento as intimeras sugesties que entretanto fui recebendo. Nesta perspetiva, o seu contetido surge revisto e ampliado em dreas fiendamentais, 0 que, para além de confrontar a leitor com as diferentes teorias que integram a drea das ciéncias da comunicagdo, contribué ainda para a tomada de consciéncia da complexidade e plunt- Hidade das matérias de que falamos, acentuando assim a necessidade do desenvolei- mento de uma atitude crética indispensdvel ao cidadéo do século xxi. Com efit, desde hd cinquenta anos que o desenvolvimento das tecnologias de difusdo (TIC - Tecno- logias de Informagao e Comunicagao) fez aumentar de forma exponencial a quan- tidade de informacées dispontveis. Contudo, nilo é por mais informagies estarem dispontteis que estamos mais informados. Muito pelo cantrario, 0 aumento do volume de informagdes pode levar a uma redugio da atenio, ou seja, pode criar um efeite de «ttinel», A informagda desejada é, muitas vezes, dificil de discernir e de obter na tal _grande massa de informagoes dispontoeis, que so variadas e dispares, conduzindo isto a um fendmeno que Pierre Levy qualificow de exformagao, ou seja, uma acumulagio de informagdes disponiveis que nio sdo tratadas por falta de tempo e de pessoal devi- damente habilitado. Nestas condi¢es, as infoestradas nao nos prestam unt grande aucxiio, elas participam antes no crescimento deste «muro da informagao». Desta forms, fornd-se absolutamente necessdrio saber escolher, saber selecionar... contudo, para que possa ocarter tal escolha, necessariamente consciente, € forcoso conhecer 0 essential sobre o proceso global de comunicagdo, as suas iniplicagBes ¢, sobretudo, ter deser- volvido conhecimentos e massa critica bastante para tal exercicio. O estudo da comunicagio constitui assim uma emergéncia que se coloca a todas as formacdes e que se impie ao exerctcio da cidadania neste dealbar do milénio, daixa ubiquidade da comunicacao, Para qualquer observador mais ow menos atento as gran- des transformactes sociais, facilmente identifica a comunicagio como um dos stnbo los mais fortes do século xx e se presta, jd neste inécio de um novo século, a potencia e a consolidar 0 fendmena da globalizacio, cumprindo-se assim a profcia de MeL ulm de que afinal, vivemos numa saldeia global». O seu abjetivo de aproximar 0s homens os valores e as cuelturas, estf no dmago do modelo democratico e impte-se através de técnicas cada ve mais effcazes sedutoras. O seu éxito é tal que siio rumerosos ague- les que veer nos multimédia e nas autoestradas da informagio a resposta para es males da nossa sociedade e 9 esboco de novas formas de solidariedade. Contudo, lev «as limites esta convicgito pode acarretar grandes problemas para a sociedade e cxvst mais o fosso entre agueles que podem e os mais desfavorecidos. Com efeito, como bem assinala Dominique Wolton, «ndo devemos confundir éxitos tecnicos com nova socie- dade. Apesar das técnicas mais sofisticadas ¢ mais interativas, a verdade é que st continua a encontrar desigualdades, sobretudo a mesma dificuldade de compreensi €, ds vezes, «a mesma soliddo», ao ponte de se considerar que quanto mais eficaz é 4 comunicagao técnica, mais vimos a descobrir o que a separa da comunicagdo humans. O problema nao estd nas possibilidades de intercimbio que a comunicagio nes propo ciona, 4 medida de wma liberdade individual cada vez mais conseguida; o problemi, conto amplamente é reconhecido pelos estudiosos do fenémeno da comunicagio, & qi 12 esse interedmbio se realiza por intermédio de «indiistrias culturais» cujo poder finan- ceiro € econdmico se opde muitas vezes a qualquer ideia de cultura, de comuncicagao e de uma informagao isenta, Por outro lado, como igualmente é reconhectdo, nessas interagdes cada vez niais répidas de um lado ao outro do nuendo, se tem consciéncia dda reforco das desigualdades enttre os continentes mais ricos ¢ os mais pobres. Por sua vez e sem por em causa a legitimo ¢ consagrado direito & informagdo e ao livre acesso fs redes, outros problemas emergem ¢ que se prendem cam as liberdades privadas piiblicas das pessons e instituigdes, face aos quais, coma atualmente se constata, as democracias se encontram: amplanente desprotegidas Estes e outros problemas (ou eantbigiidadese na concegdo de Dominique Woltor) sao resultantes desta emergéncia e wbiquidade da comtunicagio num tempo em que se assiste claramente ao sew triunfo. Contudo, estas ambiguidades sido pela menos téo {fortes como os progressos, explicando as divides e as interrogacdes que jése comecamn ‘a sentir neste inicio do milénio. E assim que, para melhor comunicar, é preciso refor- gar naturaimente o estudo da comunicagio por parte de todas as formagbes em geral e, muito particularmente, pelas formagdes universitirias, independentemente da sua especializagao, aprofundando-se as competéncias comunicativas consubstanciadas na sua dimensio funcional, exigindo-se, igualmente de todos, uma reflexiio sobre a sua dimensdo normativa, ou seja, 0 seu papel numa sociedade democrdtica. Nesta medida, forna-se absoludamente necessério desenvolver e aprofundar conhecimentos para maniter a distancia e evitar que a comunicagdo no se adanifique» ene contacto car os interesses e com as ideologias no momento em que triunfa a sua dimensio instrumental, Foi justamente na consciéncia dessa necessidade que se conferiu a este livro uma abordagem marcadamente didética, de forma a torné-lo mais acesstvel ao-vasto leque de formag&es a que se destina. Assim e desde logo, como resposta as interpelagies dos meus alunos, para o3 quais 0 universa da comunicagdo se circunserevia somente ad comunicagao de massas, dada a proliferagdo de obras a tratar esse contexto com nricacional, mucitas das quais com titulos equtvoces, Foi assim que constituiu preocupa- odo central deste livro facultar uma visdo integrada da comunicagdo mos seus diferentes contextos (ow nfveis), ou seja, a ecomunicagio interpessoal», a «comunicagado em pequeno grupo», a «comunicagdo organizacionals e, finalmente, a «comunicagio de massaso, A comunicagio interpessoal ajuda-nos a entender a comunicagio como sendo uma questio essencialmente social. Com efeito, o homem desenvolven uma diversi- dade de sistemas de comunicagdo que the tornam posstvel a vida social — vida social nido no sentido de viver em bandos para cacar ow guerrear, ntas numt sentido des- cconhecido dos animais. Entre todos esses sistemas de comunicagi, 0 mais importante é decerto, a linguagem, que de maneira alguma pode ser comparada & forma rudi- mentar de comunicagdo dos animais, pois 0 homem ndo esté restrito a chamar a sua prole ow a brandir gritos de periga; ele pode, gragas is suas notdveis faculdades de falar, dar expresso a praticamente qualquer pensamento. O desenvolvimento da li. Suagem reflete-se @ volta do perisamento, pois, com a linguagem, 03 pemsatientos poden-se organizar ¢ novos pensamentos surgir. A consciéncia de si proprio € 0 sen. tido de responsabilidade social apareceram como resultado de pensamcentos orgariag. dos, possibilitando ao homem tornar-se numa criatura social, consciente de si pripria e responsdvel. » Na medida em que as palavras que usamos desvendem a verdadeira natureca dis coisas, tal como a verdade se evidencia a cada um de nds, as varias palaoras referetes & comunicagio pessoal sido deveras reveladoras. A propria palavra «comunicar», comp teremos a oportunidade de constatar mais a frente, significa «partilhar», e na medida em que eu ¢ vocé, eitor, nos estejamos a comunicar, somos apenas um. Nao fanto una unio como uma unidade matematica ou fisica, Na medida em que concordemes, dze- amos que temos ume sé ideia ou, também, que nos compreendemos um ao outro, enti, esse um e outro slo a unidade a que me refiro. Um grupo de pessoas, um sociedde uma cultura, eu os definiria como «pessoas em conunicagiio». Pode dizer-se que scam partilham regras» de linguagem, de costumes, de habitos; mas quem escreven tos regras € 0 que as ditou? Elas surgiram naturalmente das préprias pessoas - podendy ser consideradas como regras de adequagiio ou conformidade. O grau de comumicagio, @ partilha, a conformidade, constitui uma medida de comunidade de ideias, Ao fim e 20 cabo, aquilo que partilhamos mio 0 podemos ter como posse individual, ¢ nenhums pessoa jamais nasceu e foi crinda, neste mundo, em total isolamento, A verdadeé ue «Homem algum & uma ilha, completa emt si mesma.» Assim é que, nesta perspetita emerge claramente a ideia da interagio como conceito furdamierttal e partictlarmente rico em comunicagdo. Contrariamente ao que ensinava a ciéncia cldssica, a relagis entre dois elementos nao ¢ geralmente uma simples ago causal de um elemento «4» sobre wm elemento «B», ela na verdade comporta uma dupla agdo de «A» sobre «8» e de «Bv sobre «Av, podendo a interagao tomar formas mais ou menes compleass desde o simples choque mecénico de duas bolas de bilhar até as relagaes de ums grande variedade e subtileza entre dois indivéduos: professor e aluno ow marido mulher, Outro dos contextos da comunicagéo tratados € a comunicagao grupal, oni emerge muito claramente a interagao face a face, componente, por excelénci, & comunicagdo interpessaal. No grupo, cada ui das intervenientes assume plena cors- ciéneia da sua qualidade de membro do grupo e ainda da consciéncia de outros qut igualmente pertencem ao grupo e cada um, por sua vez, consciente das suas inter pendéncias positivas quando se empenham em realizar objetivos mnituos, Como ter mos oportunidade de verificar, embora um grupo seja um conjunto de pessoas, ee é mais do que a soma de seus membros. Quando pessoas se reiinem num grupo, dese volve-se uma estrutura resultarte das suas préprias metas e do seu préprio esp) vital. O grupo € assim um excelente exemplo de um sistenaa, ou seja, conform a+ nalou Kurt Lewin, «Pode-se earacterizar nium grupo um “todo dindmico”; isso signi= ‘fica que uma mudanga no estado de qualquer subparte modifica o estado de todas as outras subpartes. O grau de interdependéncia das subpartes de membros do grupo varia desde a “massa” amorfa a uma unidade compacta. Depende, entre outros fato- res, do tamanho, organizacioe intimidade do grupos. Noseio de um grupo.a comuni- cago revela-se determinante, ji que a sua coesio depende em grande parte do modo como nd sett seio se organiza o processo comtnicacional, da sud natureza e também da sua amplitude, sendo que « comunicagto-no seio do grupo consiste na capacidade que um individua ow grupo possuem em transnritirent as suas ideias ou sentimentos a outros indiotduos ¢ a outros grupos e, em sentido inverso, de receber as ideias e os sentimentos dos outros individuos e grupos. Finalmente, como teremos oportunidade de constatar, as interagées no seio do grupo desenvolventse através de redes de comu- nicagio que por sua vee influenciam a eficdcia e funcionamento do grupo. O terceiro contexto de comunicagito abordado contempia a comunicacao orga- nizacional. Com efeito, como se constatard, iorna-se evidente que @ comuniicagiio € ‘central para a estrutura e a funcio organizacionais. A maioria das teorias apresenta~ das nesta abordagem sobre a comunicagio organizacional reconlkece como facto basico que a estrutura de uma organizagdo & predominantemente definida por padroes de comunicagio. Os tedricos classicos mostram como estruturar a comunicagao pelo plano organizacional por sua vez, pensadores sistémicas mais recentes mostram coma a estrutura de smia orgavnizagdo emerge dos padrdes de comunicagio inerentes d orga~ nizagdo. Analogamente, é claro que todas as fungdes organizacionais, incluindo fungies como a tarefa e a manutengio, requerem comunicagio ou a repartigio de informagies. Até mesmo o inabaldvel estruturalista que foi Max Weber se referin it necessidade de se proceder ao registo de informagao, a fim de maximizar a eficiéncia da organizagio. Finalmente, 0 quarto ¢ iiltimo contexte ow nivel de comumicagéo aborda a incon trolével comunicago de massas ¢ as principais teorias que a informam e fundae mentam. E possivel, desde jd, afirmar-se que a constituigtio de grupos. umanos sempre assentou na comunidade de interesses, na partitha de valores culturais e na interagéo privilegiada entre os seus membros. Nesse entendimento, toda a sociedade humana é, 4 unt tempo, causa e consequéncia que motiva ¢ origina a circulagio de informagao. Ao longo dos tempos a informacio manteve-se confinada ap momento ¢ ao espaco da sua renlizagio: por um lado, porque os centras de produgto e difusiio eram restritos, por outro, os préprios destinatdrios constituiam uma elite cultural bern delimitada. No seio da sociedade industrial avancada os homens continuam a comunicar oralmente como sempre o fizeram, mas comtnicam igualmente de muitas outras maneiras que Ihe foran: tegadas pela hist6ria, gracns a técnicas que esto ligadas tanto ao funciona mento social como ao estado geral do deserrvolvimento técnico: carta, livro, telegrama, telofone, radio, televisio, etc. A comunicagio de massas é assim 0 modo particular da 15 conmunticncio moderna que permite ao autor da mensagem (0 individuo ow o grupo de quem ela parte) dirigir-se simultaneamente a um grande ntimero de destinatdrios!, Unna vez que a produgao de conhecimentos nao existe sem referéncias bibliogrifi- cas, procurei citar as obras mais significativas nesta drea, independentemente das suas filiagies filoséficas ow te6ricas. Na prossecugio deste objetiva, o livro dividesse em trés partes com diferentes capitulos, sendo que a primeira parte foi dedicada essencialmente @ abordagem do «fendmeno da comunicagaon, onde se traga uma pers- petiva histérica da comunicagdo com os seus momentos mais marcantes e se apresen- tain os prressupostos do «triunfo da comunicagdon, evidenciando-se a sua dimersia utépica, posta sobretudo em evidéncia pela pensamento ¢ obra de Norbert Wiener, fundador do pensamento cibernético e tao caro, quanto indispensitvel, ao conceito de comunicagio moderna, Na segunda parte, que intitulei como «teoria da comunicagdo», serd desenvolvida uma perspetioa epistemoldgica da comunicacio, onde se procura trazer até ao leitor toda a riqueza semintica do indomdvel qudo polifacetado conceito de comunicagéo, para além dos conceitos estruturais da propria teoria da camunicagio. Finalmente, na terceira e tiltima parte do livro abordam-se os modelos de comu- nicacio, enquanto representagdes simbélicas e esquenudticas que, a despeito da dind- mica do pracesso de comunicagiio, param no tempo permitindo assim o seu estudo. Appreceder cada um dos modelos, desenvotve-se todo o campo tedrico que fundamenta o contexto de comunicagdo onde esse mesmo modelo se insere e ganha sentido, Neste fratamento dos modelos, no foi intengdo fazer uma abordagem exaustiva das dezenas & dezenas de modelos existentes e que se filiam nas diferentes correntes do pensamento desta drea de estudo, as ciéncias da comunicagdo, Achou-se mais diddtico, e conse- guentemente compreensivel, enquadrar as modelos dentro de quatro categorias que traduzemt essas mesmas correntes de estuda e pensamento: (1) modelos lineares de comunicagao; (2) modelos circulares ou cibernéticos; (3) modelos de comuni- cacao de massas ¢ (4) modelos culturais. Em cada uma destas categorias foram selecionados os modelos considerados mais adequados pelo seu perfil mais académico, possibilitando wm melitor estido do processo comunicacional — afinal objetivo pri mieito e iltima desta obra. - Teorias ¢ modelos O tituto atribuide ao tiore, Teorias e Modelos de Comunicagao, procura re fir 0 conteido da obra, ow seja, aborda-se a teoria como elemento central na cot preensi do processo da comunicacio nama l6gica aristotélica, Aristdteles considetou que leorizar correspondia a retirar algo da sua reatidade inediata, abstraindo-, ¢ 1M. Jodo Vaz Freixo, A televisio ew institwigdo escolar; os efeitos cognitives das mensagens televisions a su relagie com a.aprendizagem. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, 509 paginas. 16 desenvolvendo-se um exercicio de raciocinio logicamente orientado, Na swa obra Etica a Nicémaco o fildsofo discute as vocagbes de «umn vida dedicada a admirar (algo) com o pensamento», revelando que o vocibulo grego theoria tem no seu signi~ ficado primério «agio de contemplars. Pela theoria, 0 ser humano aproxima-se de Theous (Deus), ao qual ama contemplationmente e contempla antorosamente. Tem-se, endo, que theoria, nd sua erigem, quer dizer «contentplagto atentan, «adimiragao pelo pensameniton, «teflexdion. O ser huemano teoriza porque busca encontrar sentidos ra 05 factos do mundo, Teorizar & uma forma de agir, unindo a experiéncia eo senti-— ‘mento ao pensamento; assim, também, contemplar atentamente, alguma coisa, funda- menta um ato, traduz wma atitude, Segue-se, natwralmente, que uma teoria vemete para una sistema ordenado de ideias, formando um corpo de doutrina. E este pot ressuposto e a motivacao com que se aborda neste lioro a teoria da coma seja, procuramos fazé-lo numa contemplacao atenta e na admiragao pelo pensc- mento. O outro conceito que no titulo do livro gana igualmente especial relevo, & seme- thanga de teoria, é a palavra modelo. Como se sabe, a comunicagio é um processo que pela stea natureza nio tem sm inicio e necessariamente nido tem um fim, apresen- tando-se dindmtica e evolictiva. Para facilitar o estudo da comunicagio, alguns ted= ricos estabeleceram modelos onde se propibem representar os catos comunicativos que pressupiem troca de mensagens informativas. Assinale-se, contudo, que os modelos nao podem confundir-se com a realidade, nem mesmo com a imagem espelhada desta Nao hd modelo, por mais exaustivo que seja, que se possa considerar 0 modelo com- pleta e definitico de alguma coisa que represente. Os modelos serve para facilitar 0 estuda e a compreensio dos fendmenos, na mesma medida em que 0 modelo do pro- cessa de comunicagdo serve para facilitar 0 estudo e a compreensdo dos catos comuni-| cativos. Mais & frente voltarei ao conceito de teoria e de modelo enquanto conceitos' estruturais do Livro, Tendo presente a substéncia deste livro, onde a propria designagéo, Teoria e Modelos de Comunicagao, ndo é indiferente aos conceitos em andlise, é natural que sobre eles se discorra com alguma propriedade, Poderéamos comegar por questionar 0 que é uma teoria e ume modelo?... Onde se aproximam e onde se afastam os respetivos conceitos? Diria desde logo que os termos «teorias e «modelo» cobrem, inegavelmente, um campo semintico extremamente indefinido como mostram as definigdes oferecidas pelos diferentes diciondrios e os usos encontrados na lingua falada ou escrita Contudo, a percecio intuitiva das nogdes assim representadas & suficientemente con- sistente para que a utilizagio destes vocdbulos seja muito frequente e seme grande risco de maiores incompreensies, apesar da confusifo inevitdvel que deriva da polisse- mia e que condua, frequentemente, a usar indiferentemente uma ou a outra palavra. Ora ¢ justamente por tal constatagio que de seguida se procurard aprofundar estes 7 ois conceitos que se evidenciam nn centralidade que assumem neste livro. Vejamos de seguida, com mais propriedade, eada um destes conceitos. = Conceito de teoria Na prociura de melhor findamentagao sobre este conceito, comegarei por dizer que vunta teoria é wnt sistema de entunciados, um corpo organizada de ideias sobre a rea dade ou sobre um certo aspeto da realidade. Etimologicamente, teoria significa econ. tenaplagiow, «examten, eabstragto intelectualy; é 0 resultado do dupla miovimerta de vinctlagio cam a realidade ¢ autonomia da reflexdo. O termo «teoria» deriva da theo. ria das Gregos, a qual é, para os fildsofos da Antiguidade, a acontentplagao». Na ori- gem, conto salienta Clark2, é 0 servigo de Deus (theoria). Mais precisamente, pode ver-se nela sinwultaneamente a percecto, 0 conhecimento e a aceitagto da ordem dss coisas. E significative comprovar que em Arist6teles, e particularmente na Etica a Nicémaco, a theoria se encantra frequentemente associada 4 sophia... a eudaimo- nia, Cada unt destes termos poe em destaque um dos aspetos mais importantes da nogis de teoria, tal como era entendida por Aristételes. A sophia, ow sabedoria tebrica,é pre cisamente 0 conhecimento das primeiros princtpios sobre os quais repousa a ordem do mundo e das vias de demonstracao que permitem deduzir as suas consequéncias. E assin que, por meio deste método demonstrativo, a sabedoria tebrica relaciona-se com a epis- teme, isto, com a ciéncia (que diz respeito ao que é demonstrdvel). Modernamente e na drea do conhecimento cientifico, a generalidade dos autores consideram a teoria como explicagdo final ou comhecimento que nos ajuda a entender situagbes, eventos e contextes, Nessa acepdo, a teoria consiste nim conjunto de propo- sigdes inter-relacionadas capazes de explicar porque e como tm fenémeno ocorre, o4 ainda de visualizd-to, Aqui chegados, serd oportuno que nos questionemas sobre a utilidade das teoras, Assim, vejamos: foi afirmado mais atrds que ima teoria é titil porque descreve, explca e prevé o fendmeno, contexto ou evento a que se referem, além de organizar 0 conket- mento e arientar a investigacda a ser realizada principalmente a de natureza quati- tativa. Contuda, como todas jd nos apercebemos, a palavra teoria é quase tit indefinivel quanto o terno commnicagio. Os vsos.do termo vio desde a teoria do cags- dor ax» sobre 0 voo da perdiz até a Teoria da Relatividade de Einstein, Com muits ‘frequéncia, as pessoas usam a fermo teoria para significar qualquer conjetura nit ‘furdamentada sobre alguma coisa, Mesmo entre cientistas, escritores e fildsofs, 0 termo teoria é utilizado de modos diferentes. Resulta assim do exposto quee todas as teorins devem ser vistas como construgi’ As teorias sito criadas por pessoas, «ndo ditadas por Deus», como bem assinlt Stephen W. Littlejahn. As teorias representam vdrios modos como os obseroaior 2Clark, $C, Aristotle's Man. Oxford: Clarendon Press, 1975, p. 160, 18 ‘veem o meio A sua volta, mas as teorias no so, em si mesms, a realidade, ocorrendo que muitos leitores e até alguns tebricos esquecem esse principio. Com frequéncia, os estudantes so iludidos pela concegdo de que a realidade pode ser vista nesta ou anaquela-teoria, Como escreveu Kaplan A formagiio de uma tearia néo & apenas a descoberta de um facto escon- dido; a teoria é um modo de enearar os factos, de os organizar e representar. (...) Una teoria deve ajustar-se, de algum modo, ao mundo de Deus, mas, num importante sentido, ela cria um mundo da sua propria laura.» -Conceito de modelo Convirin dizer, desde jé, independentemente do aprofundamento que se fard de seguida do conceito de modelo, que a nogiio de teoria se distingue Jromuentemente do conceito de modelo. Numa acegio mais ampla, 0 termo modela licar-se a qual- quer representagéo simbiliea de wma coisa, processo ou ideia. A, encontramos modelos da figura humana, autombveis e avides... até aos nossos modelos de comuni- agi. Annivel conceptual, existem modelos que representam ideias e processos, assumindo a forma de madelos gréficos, verbais ou matemdticos, Contudo, independentemente desta aparente polissemia, conviria ter bem presente que um modelo € usualmente considerade uma analogia de algum fendmeno do mundo real. Assim, conforme adianta Stephen W. Littlejohn, «os modelos so Jnerretaio metaforicamente, de _modo se esti as tenta estabelecer paralelos simibélicos entre estruturas relagies no modelo e aquelas que esti presentes no evento ou processo representadon’, Porém, para além do critério de «representagdo simbélica», existe pouca concor- diincia sobre o significado preciso de modelo. Esse problema complica-se ainda mais quando tentamos distinguir entre os conceitos de modelo e teoria. Contudo, antes dessa distingdo entre conceitos, vejamos as vantagens da utilizagio dos modelos, Sobre a vantagem do wso de modelos para melhor se poder apreender o fendmeno da comunicagio, Denis McQuail e Seven Windahl referent que tm constatado a sua crescente aceitagio enquanto estratégia para o estudo da comunicagio ent todas as sitas dimensdes. Os autores em aprego, tendo em vista o seu objetivo de estudo do forrémeno da comurticagio, consideram que um modelo: o£ uma descrigio sob a forma grifica, conscientemente simplificada, de ‘uma realidade parcelat. Um modelo procura mostrar os principais elementos de qualquer estrutura ou processo e as relagGes entre esses elementos.» Stephen W, Littlejohn. Fundamentos tebricos da comuntcagdo humana, p. 19. “4 Denis McQuail e Seven Windahl. Modelos de comunicagi: para oes da comumicagio ce massas, p10. 19 No dimbito das ciéncias sociais as vantagens dos modelos so evidentes. Assim, em primeito lugar, tém uma fungao organizadora, ordenando e relacionando siste- mas entre sie dando-nos imagens de conjunto que de outro modo podertamos rip notar. Um modelo fornece uma imagem geral de uma série de circunstdncias parti. eulares. Em segundo lugar, ajuda a explicar, dando de forma simplificada informa. ¢do que de outro modo seria complexa ou ambigua. Isto, como esclarecem Denis McQuail e Seven Windahl, confere ao modelo uma funcao heuristica, uma vez que pode guiar o estudante ou o investigador a pontos-chave de um proceso ou sistema, Em terceiro lugar, 0 modelo pode tornar possivel prever conclusdes ou 0 curso dos acontecimentos, podendo, pelo menos, ser uma base de atribuigio de probabilida- des a virias conclusdes alternativas e assim contribuir para a formalacio de hipSteses para investigagio. ipos de modelos Embora seja preocupagdo aproximar e de certa forma restringir 0 conceito de modelo ao dmbito das ciéncias da comunicagio ¢ & sua relagéio com as teorias que as ‘fundamentam, penso que é posstvel e até desejdvel, como 0 fez Javier Echeverria, dis- tinguir cinco sentidos diferentes na utilizagmo do conceito de modelo na sua relacio com a teoria, Vejamos entiio os diferentes tipos de modelos nessa relagio: = Modelos légicas. Sdo as interpretagdes semanticas de um sistema de axiomas (por exemplo, de célculo de uma teoria) tais que 0s axio- mas so verdadeiros para essas interpretacdes. Os modelos nao tém de ser entidades linguisticas, mas devem ser isomorfos na sua estru- tura logica da teoria = Modelos matemticos. Sao representagées aritméticas de uma teoria empirica; quer dizer, um conjunto de proposigées matematicas que tém a mesma forma que as leis da teoria. Também aqui ha isomor- fismo estrutural. ~ Modelos anatégicos. Sao representagdes objeto-ou de um sistema, como por exemplo um planetirio, ou os mo- delos mecinicos do éter de Kelvin®, ou em geral os grificos, Igual- mente aqui hi isomorfismo. 5 Javier Echeverria. Introdugio # metadologia da ciéneia, p. 62 (refira-se, a propdsito, que esta dis- tingdo provém do prélogo de Cristina Bicchieri a tradugio italiana do-livro de Mary Hesse, Mo- dell ¢ analogie nella seieiza. Milio: Feltrinelli, 1980, pp. 7-9. A obra original foi publicada ern 196 6 Lorde Kelvin, William Thompson (1824-1907), de nacionalidade britinica, foi fsico-matems- tico ¢ engenheiro e ¢ considerado um dos mais importantes fisicos do século xix. Investigador infatigdvel (considerado um lider nas ciéncias fisicas do século xix) deixou indmeras cont" bbutos na andlise matemidtica da eletricidade e termodinamica, Ficdu associado A descoberta da escala Kelvin de temperatura absoluta (onde o zero absaluto ¢ definide coma K}. 20 = Modelos tedricos. Conjunto de assungdes sobre um objeto que permi- tem atribuir-lhe uma estrutura interna, como por exemplo o modelo atémico de Bohr’, ou o modelo da mesa de bilhar para a teoria ciné- tica dos gases®. Costumam identificar-se com a teoria, recebendo uma interpretagao realista. ~ Modelos imagindrios. Conjunto de assungées sobre um objeto que mas- tram o que ele deveria ser se satisfizesse determinadas condigées que de facto nao satisfaz, Exemplos: © modelo de Poincaré? para uma geo- metria de Lobatchevski!®, ou 0 modelo de campo magnético propasto por Maxwell. Estudam os objetos e as sistemas como se estes fossem segundo 0 modelo e desempenhant umia importante funcao heuristica, Alterminar esta referéncia a0 conceito ¢ utilidade dos modelos na investigagio em citncias da comunicagao ou, simplesmente, no estuda da comunicagio, queria ainda referir que Denis McQuail e Seven Windah! sublinham o interesse ¢, sobretudo, a utilidade «da construcio de modelos comio um trabalho permanente vised clarifcar novas ideias ¢ teorias, ajudar a arganizar as descobertas da investigacao e indicar questées a investigars. Modelos que, advertem, «tendo: de ser adaptados & realidade conunicacional em evolugdo nas nossas sociedades»1, ~ Distincao entre teoria e modelo Voltando aos conceitos sobre teoria ¢ modelo e, sobretudo, & distingio entre eles, Leonard Hawes, em Pragmatics of analoguing, reexaminou criticamente muitas Niels Henrick David Bohr (1885-1962) foi um fsico dinamarqués cujos tabalhos contribuie ram decisivamente para a campreenszo da estrutura atémicae da fisica quintica. SA teoria einétiea dos gases procura descrever © comportamento deste estado de agregagio através de um modelo conceptual simples. Constitui todavia este modelo um dos mais belos exeplos da relagio entre o comportamento microscépico- da matériae as propriedades que presenta A escala macrosedpica (V. Nunes, Tora cndtion des gases. Departamento de Engenharia do Amibiente do Instituto Politéenico de Tomar, 2002), Foie fisico € matemstico Daniel Bernoulli ‘Atm que em 1738 publicou a obra Hidradindmice, a base para a teoria cintica dos gases. Nesse trabalho, Bernoulli posicionou um argumente, ainda vilido nos nossos dias, de que os gases ‘sonsistem num grande ndmero ce moléculas que se movem em todas as dregs, onde colidem centres, € esse impacto causa uma pressdo na Superfcie de contacto que podemos sentir. 9 Henry Poincaré é considerado o grande matemitico do séculax:com grande interesse pela filosofia da matemstica, tendo publicado, em 1N2, A Cifncia ¢ @ Hipdtese, onde apresentou o ‘Seu modelo em forma de urna parsbola 10 Maxwell é mais.conhecido por ter dado forma final 3 teoria moderna do que une a eletrici- ‘dade, © magnetismo e a dtica, Esta teoria surge das equagies de Mawell, assim chamada ‘em sua hona. 11 Adem, op. cit, p. 19. 21 distingdes comuens entre o conceito de teoria ¢ modelo!?, Afirmaua ele que @ maiorig dessas distingdes so na renlidade «concegdes erréneas». Com efeito, Hawes afirma que summa teoria apreserita-se como uma explicagao e um modelo como uma represen. tagio>, ou seja, para o autor, os modelos representam meros aspetos do fendmeno sen explicarem as inter-relagdes entre as partes do processo representado. Aabordagem de Hawes da teoria ¢ dos modelos mio é, contudo, iserta de repa- ros. Assim, por exemplo, um fildsofo muito conhecido das ciéncias do comportamento, Abraham Kaplan, adotou um ponto de vista ligeiramente diferente!3, As teorias de carter geral sia de dois tipos. Hd as que tratam especificamente de determinado assunto per se, ¢ hi as teorias formais que silo de cardter geral e podem ser aplicadas 4 udrias dreas de conterido especifico. Este tiltimo tipo de teoria apresenta-se como um Conjunto de simbolos e relagdes lbgicas entre os simbolos, podendo ser aplicadas por analogia a algunt evento ou processo de initeresse no momento. Para Kaplan, este tltimo tipo de teoria coustitué claramente wm modelo, ou seja, sintetizando, para este autor todos os madelas sio teorias (um determinado tipo de teoria, naturalmente), mas, como se sabe, nem todas as teorias sto modelos, Viseu, primavera de 2011. 12 Leonard Hawes. Pragmatics of analoguing: theory and model construction in communication Massachusetts: Addison-Weslev, 1975, pp. 122-123. 13 Abraham Kaplan. The conduct of inguir. San Francisco: Chandler, 1964, caps. 7, 8 9. 2 CAPITULO 1 PERSPETIVA HISTORICA DA COMUNICACAO 1. FASES DA HISTORIA DA COMUNICAGAO A palavra «comunicagao» decerto que é utilizada desde hi muito. No entanto, no sentido em que hoje a conhecemos, a sua origem é bastante recente. A verdade é que todos temos uma ideia sobre a natureza da comuni- cago, dada a naturalidade com que falamos, escrevemos e nos relacionamos com os outros através justamente da comunicacao. Para muitas pessoas comunicar consiste apenas em se expressarem através da fala ou da escrita, afirmando assim as suas ideias e sentimentos; por sua vez, para outras, a comunicagao alarga-se de tal forma que acreditam ser a solugao para todos os problemas do homem e até da propria sociedade. A comunicagao invade assim todos os campos, desde a drea das relagies humanas, passando pela rea do marketing, dos meios politicos, da imprensa, do campo do audiovi- sual, da publicidade, da esfera religiosa, da psicoterapia individual ou de grupo, das organizagdes, sem falar, como é dbvio, da informatica, inteligéncia artificial, até as proprias ciéncias cognitivas. Aristételes definiu 0 estudo da retérica (comunicagao) como a «capacidade de descobrir 0 que ¢ adequado a cada caso com o fim de persuadir»!. O fild- sofo abordou e discutiu outros motivos de quem fala, mas deixou claramente dito que a meta principal da comunicagdo consiste na persuasdo, ou seja, a tentativa de levar as outras pessoas a adotarem o ponto de vista de quem fala. Este sentido sobre a comunicagio foi aceite até a tiltima parte do século wut, 1 Aristoteles, Retdrioa. 3* edigho. Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 95, embora se lhe tivesse conferido uma énfase mais deslocada dos métodos de persuasdo para o que houvesse de «bom» da mensagem de quem falava. Na que foi considerada a enciclopédia das Luzes, 1753, Dennis Diderot, escrevia que o termo «comunicagao» possui um grande néimero de significa- Ges. Diderot afirmava que a comunicagio «fala a lingua de varias ciéncias, artes e offcios»?, como a literatura, a fisica, a teologia, a ciéncia das fortifica- Wes, 0 processo penal, as condutas ¢ esgotos. Assim, «comunicagion, comose pode ver, é uma palavra a qual originalmente se conferiu uma multiplicidade de sentides. Contudo, a sua polissemia remete para as ideias de partilha, de comunidade, de contiguidade, de continuidade, de encarnagao ¢ de exibigao, conforme melhor se explicaré mais a frente quando-se abordar a epistemologia da comunicagio. No meio de uma tao grande explosdo de sentidos da palavra «comunica- G40», Diderot privilegiou um: o sentido de retérica, enquanto meio de enten- dimento através da razao. No entanto, a conclusao a que chega Mattelard é de que «cada épaca histérica ¢ cada tipo de sociedade possuem uma determi- nada configuragao que Ihes ¢ devida. Esta configuragdo com os seus diversos niveis (econdmico, social, téenice ou mental) e as suas diferentes escalas (local, nacional, regional ou internacional) produz um conceito de comunicacio hegeménicas3, originando, na passagem de uma configuragio a outra, conti- nuidades ¢ ruturas, Na verdade, os discursos circulam primeiro no interior de uma sociedade, ou seja, de um grupo que possui uma lingua, um cédigo cultural comum, mesmo que existam também, no seu seio, diferengas entre classes sociais, entre subgrupos religiosos, étnicos, profissionais, entre crengas ideoldgicas, entre convicgdes politicas. Mas também circulam entre civiliza- {g0es, ou seja, entre grupos separados por distincias geogrdficas muitas vezes considerdveis, por fronteiras, por diferengas linguisticas, culturais, ete. Sea circulagdo intrassocial dos discursos possi uma dimensdo ao mesmo tempo espacial (o centro e a periferia) e hierarquica (o poder ¢ as massas), a circula- ¢40 dos discurses entre culturas reenvia (ou pelo menos sucedeu durante algum tempo) essencialmente para as distancias, para os fatores espaciais que rarificam a sua circulacdo nas regides afastadas e portanto ao estudo das té- nicas de transmissio das mensagens ao longo dos diferentes periodos da his- téria do mundo. Em sintese, podemos dizer que ao longo do tempo que é estudado 0 con ceito recompor-se-d imensas vezes numa figura inédita, sem contudo se abs trair dos elementos presentes no mado de comunicacdo anterior, conforme de 2 Armand Mattetard. A Incencta da Comunicagio. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, p.9 3 idem, p10. seguida se pode apreender através das teses de Jean Cloutier, que nos confe- rem uma imagem bem nitida através de uma excelente narrativa sobre os dife- rentes estddios da evolugdo da comunicacao ao longo dos tempos, para além dos contributos prestimosos desse grande investigador na area da comunica- fo, professor anglo-canadense Marshall MeLuhan que, nas suas intimeras obras ¢ escritos, fez um pouco a figura de profeta com os seus muito conheci- dos aforismos e ainda as referencias sempre sébias de Abraham Moles. Numa referéncia a histéria da comunicacdo humana, Cloutier* identifica quatro fases, que ele proprio designa por wepisédios», que se apresentam sobre- postas, onde cada uma é caracterizada pela utilizacdo de novas formas de comu- nicagdo que transformam a sociedade e que constituem uma nova forma de comunicagao. Assinale-se, a propésito, que as quatro fases da evolugéo da comu- nicagdo e respetivas linguagens que, embora desfasadas no tempo durante o seu processo de evolugao, se apresentam sobrepostas para o homem contemporaneo, conforme a figura seguinte claramente elucida, FASES OU EPISODIOS DA HISTORIA DA COMUNICAGAO eontetialo — detmrepesdo| «chanical ‘re 1 2 | 3 r a) Comunicagdo bem Comunicago |e! Comuricagdo + Comunicagio | | |CInterpessoal dete || deMassas || Indvidual || FIGURA 1 = As quatro fses da evolugio da comarnicgio e respetious languages que emborn desfesadas no tempo durante o seu process de evolugdo se apresentam sobrepastas para 0 hanrem contemporineo. LL. PRIMEIRA FASE - COMUNICAGAO INTERPESSOAL Esta fase caracteriza-se pelas linguagens de exteriorizacto, tendo infcio com © Homo sapiens no momento em que aprendeu a exteriorizar as suas ideias, desejas e necessidades através do seu corpo, gracas ao gesto que comecou a associar a articulagdo de sons, formando palavras e tendo como referente o meio ambiente imediato. Refira-se a propésito que a origem da linguagem 4Jean Cloutier. A ena de EMEREC ou a comunicagio audioscripto-visual na hora dos selfomectis, pp.2243, 27 suscitou ao longo das séculos inumeros estudos, resultando em outras tantas teses e teorias, sem no entanto se chegar a nenhuma conclusao definitiva, Sem dtivida que nada seria mais interessante do que conhecer através de documentos histéricos 0 proceso exato pelo qual o primeiro homem come. gou a articular as primeiras palavras, para, de uma vez por todas, nos vermos livres das teorias sobre a origem da linguagem. Segundo os antropélogos o homem existe, pelo menos, ha um milhio de anos (talvez até hd 5 ou 6 milhdes). A escrita é a tinica evidéncia que temas de linguas antigas e os primeiros registos escritos que foram decifrados sin 10s escritos sumérios de 4000 a. C. Estes registos, no entanto, nada esclarecem sobre a origem da linguagem uma ver que a fala precede a escrita por um vastissimo perfodo de tempo. A crenga na origem divina da linguagem per sistiu até aos nossos dias, associando-se a esta ideia os seus poderes mire. culosos. Os antigos acreditavam numa linguagem natural, até porque, segundo 0 Velho Testamento, Deus trouxe Addo «para ver como-ele chamaria cada ani- mal da terra e cada pdssaro no arm. Para Santo Agostinho, esse nome dado is coisas por Adao constituiu a «lingua comum da raga humana», possivelmente o hebraico, 0 qual se diversificou € confundiu mais tarde em decorréncia do episédio da Torre de Babel5. O célebre filésofo inglés Thomas Hobbes tam- bém acreditava nessa «linguagem perdida», quando cada coisa possuia um nome, de acordo com a sua natureza. Esta ansia na procura de uma explicagao para a origem da linguagen estimulou o aparecimento de especulagdes diversas de que sio exemplo & narragées feitas por um historiador grego que revelam experiéncias realizadas no sentido de averiguar qual a origem da linguagem: criangas foram mantidas em isolamento sem qualquer contacto com a voz humana, na esperanga de '5Sob o ponta de vista da teologia, o homem deveria servir Deus respeitando a sua palavte ‘A linguagem humana, assim garantida pela Providéncia Divina, asseguraria a ordem m™ devacio. No entanto, o livro do Génesis bem depressa nos mostra a humanidade dilacerait contra si propria. A histéria sagrada apresenta-se como uma sequéncia encadeada de dessbe digncias, nas quais se multiplica a transgressio original. O episodio da Torre de Babel sin liza este fracasso dos povos que esqueceram a palavra divina. «O mundo inteiro tinh ° mesmo idioma ¢ as mesmas palavras (Genesis, XI, 1), Mas Deus, para castigar o desmedis> orgulho do cometimento humano, faz gorar o projeto, causando a confusio das lings ‘Assim, a lingua unitéria da eriagdo dé lugar & diversidade dos idiomas do pecado, torna os homens estranhos uns com os outros. «Foi If que o Eterno confundiu o iio? ‘comum, ¢ foi dali que espathou os homens por toda a superficie da terrae (Génesis, XL°) Foi assim que, depois da queda, depois de Babel, o homem reconhece-se como senhor d¢ ‘uma linguagem que perdeu 0 encanto, mas cuja responsabilidade ele tem ce assumis pat8? bem e para o mal, A catéstrofe de Babel abre & atividade humana a iniciativa da reflex?’ da liberdade. que quando crescessem o suficiente para falarem revelassem a lingua original do homem. Desde os mitos até as mais elaboradas especulagbes filosoficas, levantou-se sempre o problema das origens da linguagem, o seu aparecimento e 0 seus primeiros pasos. Contudo, modernamente, sabe-se que a linguagem tem uma fungdo cul- tural e ndo uma fungio bioldgica com origem na hereditariedade, conforme teremos a oportunidade de verificar mais 3 frente quando se abordarem os «estudos sobre a linguagem». A linguagem encontra-se fortemente condicio- nada & vida social e as criancas que cresceram fora da sociedade humana naturalmente que nao falam. Mais & frente, quando se abordarem as fungdes da linguagem, voltarei a este assunto. 1 Mas voltando & que foi considerada a primeira fase ou episodio da histo- ria da comunicacao humana, segundo uma perspetiva da teoria evolucionista, 0 homem era, entio, o tinico medium de comunicagio. Nesta fase, a linguagem nao ¢ ainda predominantemente acistica, Ela assume a forma audiovisual onde a comunicagdo nio resulta «puramente» linguistica, mas sim de forma inte- grada ~ 0 gesto faz parte integrante dela como de seguida se explica Assim, comego esta narrativa da histéria da comunicagdo lembrando, em primeiro lugar, que o homem comparativamente aos outros animais apre- senta-se a nascenga frdgil e desprotegido face as forgas da natureza, como o calor e frio, sol e tempestade. Esta fragilidade manifestava-se entao ao homem no combate que tinha de travar com os animais que o rodeiam e com os elementos da natureza que, & partida, o deveriam condicionar ¢ limitar sobretude enquanto cacador, na medida em que correndo mais devagar do que a maioria das suas presas ele deveria estar condenado a desaparecer. Contudo, isto no aconteceu, porque compensa a sua fraqueza com a «asticia ea habilidade manual». Esta habilidade natural do homem leva a que Jean Cloutier considere que «O Homo sapiens tornar-se-é simultaneamente no Homo ‘faber e no Homo loquenso®, Este homem aprende a exteriorizar as suas necessi- dades, as suas ideias, 08 seus desejos, ou seja, aprende em suma a exteriori- var-se ao desenvolver um sistema de comunicagao cada vez mais elaborado a partir do seu préprio corpo. Esse sistema de comunicagao assentava nos ges- 6 A definigio genericamente considerada do Homo sapiens, como espécie, consiste na assungio de um desejo intrinseco de este entender e influenciar o ambiente & sua volta, procurande explicar e manipular os fenémenos naturais através da razdo, mas igualmente através da filosofia, artes, iéncias, mitologia e também da religido. Esta curiosidade natural levou-0 20 desenvolvimento de ferramentas e habilidades avangadas (Homo faber), criar @ fogo, cozinhar seus alimentos, vestir-se, além de utilizar varias outras tecnologias. Igualmente, interpie entre ele proprio e 0 mundo a significagio, que o leva & rede das palavras (Houra loguerts) © torna-se, como entatiza Georges Gusdorf, .por via disso, o senhor do mundo: 29 tos que progressivamente vao ganhando um sentido cada vez mais preciso; algo semelhante se vai passar com a emissao de sons que se tornam, pouco a pouco, cédigos com significado. Igualmente, essa exteriorizagao leva-o ag canto e A danga, permitindo-lhe exprimir sentimentos, manifestar alegrias, tristezas ou até proferir oragdes. E assim que o homem se diferencia dos res- tantes animais por um sistema de comunicagao progressivo e aberto, que pode transmitirse e enriquecer-se, de geragio em geragio, enquanto o dos outros animais, fechado ¢ limitado, se perpetua sem evolucio assinalavel’, 1.11. SINALIZACAO, FAMILIA, RELIGIAO E ANIMAGAQ Os homens, nesta fase da sua hist6ria comunicam entre si para satisfazerem as suas necessidades primarias, isto &, beber, comer, proteger-se e perpetuar-se, A informagao mais basica &, pois, a sinalizagdo. O homem indica aos outros membros da sua tribo os locais mais propicios para a caga, previne-os do pe- Tigo, manifesta os seus desejos amorosos € os seus sentimentos. A informagio,a principio, liga-se essencialmente a realidade quotidiana do individuo, restrin gindo-se ao seu cla, & sua tribo e aos limites das suas deslocagGes. A informacion surge assim eminentemente utilitdria. A curiosidade do homem esta limitada a satisfagdo das suas necessidades: sé mais tarde, quando tiver conseguido do- minar as linguagens de transposicao que contribuirdo para a sta socializagio, jd ma segunda fase da histéria da comunicagao, se vird a desenvolver a trans- misséo da informagio e consequentemente a difusio de noticias. A informagio, nesta etapa, é assim caracterizada essencialmente pela troca entre os interlo- cutores que assim se ajudam mutuamente. Olhando um pouco para a organizagdo familiar, nesta fase da vida do homem onde predominam as linguigens de exteriorizagio, esta vive confinads 7 No decurso desta fase, do qual se encontram ainda vestigios em certas regides do glob (protegidos e carmuflados pela selva, preservados pela natureza, mas ja por pouco temp.) a expressio corporal ¢ verbal constitui o tinico mado de comurnicaso do homem, Este &trr butirio da seu pe6prio corpo para Se exprimir; as suas linguagens sio-Lhe subjetivas, pe soais; os objetos que o rodeiam no tém ainda significaco arbitréria ou simbélica, fazem part da natureza, desse meio no qual o homem ests perfeitamente integrado e do qual sabe in pretar as mensagens, que tém uma to grande importincia para a sua vida. Os seus sentist® esto harmoniosamente desenvolvidos, porque ele ainda no aprendeu a dissocis-is, vis que cada um deles desempenha um papel complementar. Para a caga, por exemplo, 0 olfato é-the muito valioso; 0 gosto determina a sua alimentagio; 0 tato permite-the bater¢ amar; mas, para comunicay, ¢ através dos olhos e da vista que percebe melhor as mensaget* dos outros homens eas do seu meio ambiente (Jean Cloutier, op. cit, p. 23), 30 a0 seu cla ou tribo, Nesta fase mais primitiva, 0 homem, tal como o animal, aprende com os seus progenitores a quase totalidade do saber de que neces- sita para viver. E assim que, por exemplo, o cacador transmite aos seus filhos © manejo do arco, a arte da pesca e como lidar com os perigos do meio envol- vente. O jovem ampliava a sua aprendizagem, igualmente, com outros gru- pos de jovens fora da sua famflia mas no seio da tribo. Em sintese, como a propésito salienta Cloutier, «0 saber humano nao constitui um: bem que ape- has se transmite de gerago em geragio, como fazem os animais, mas um capital que aumenta de pai para filho»8, ow seja, o homem evolui através de uma aquisi¢ao cvolutiva e cumulative do saber e do saber-fazer. ‘A religido foi desde sempre um dos sentimentos mais marcantes no homem, o que o leva a reconhecer um poder que ultrapassa o seu, uma forga misteriosa que inspira tudo o que o rodeia, A religido ¢ assim uma forma de comunicagio e, mais precisamente, uma forma de animagdo antes de se tornar numa estrutura de coesio e até, muitas vezes, de coercio. Assim foi e, de certa forma, assim continua a ser, ou seja, 08 que acreditam procuravam esti~ mular € converter os outros; estes, por acreditarem em algo distinto, reagem e resistem perseguindo todos os que Ihes queiram impor coisa diferente. Dos desenhos rupestres 5 modernas catedrais, toda a histéria da comunicacao esta marcada pela histéria da religido, Nesta fase da histéria do homem, a religido é inspiragio e os primeiros movimentos de adoragio por parte do homem dirigem-se para o meio ambiente e muito particularmente para os astros, sobretudo para o Sol e a Lua. Mas o homem nao se preacupava exclusivamente em prover 0 seu ali- mento fisico ou espiritual, Na verdade, desde sempre, a distragdo constitui uma manifestagio necessdria ao seu equilibrio e bem-estar. Essa distragio no homem comegou por ser coletiva e centrada nas dancas rituais, nas quais par- ticipava a aldeia inteira e igualmente nas competigées «desportivas» onde os jovens deveriam demonstrar as suas habilidades. Como refere igualmente Cloutier, esses jogos «estavam integrados na vida do grupo, eram significati- vos, educativos ¢ rituais», onde todos participavam com total entrega, «com toda a sua alma e todo o seu corpo, muitas vezes até a situagdes de transe pro- vocadas pela danga.» Neste sistema de comunicacio progressivo ¢ aberto, a vista ¢ 0 ouvide sio 0s principais sentidos, tal como o gesto e a palavra representam os seus prin cipais modos. O homem aprende a harmonizar-se através da percegio que desenvolye com 0 meio na dimensio real do espago-tempo, Assim, barulho nao se dissocia do acontecimento, o travao completa o relimpago, a agitagao B Jean Cloutier op. ci. 31 revela a queda. Tudo 0 que é visivel é percecionado no espaco e tudo 0 que ¢ aciistica é percecionado no tempo. Por conseguinte, o meio ambiente é pring. palmente audiovisual e espdcio-tentporal, visto que ele transmite sem parar infor. maces percetiveis simultaneamente pelos olhos e pelos ouvidos. Assim foram com efeito as primeiras linguagens do homem ou, para utilizar a expresso de Cloutier, «as linguagens de Emerec®». Mas vejamos de seguida quais foram os principais modos de comunicagao nesta fase da histéria da comunicagao, o que equivale a dizer da hist6ria do proprio homem. 1.1.2.0 GESTO E 0S SONS. COMO LINGUAGENS DE EXTERIORIZACAO. © gesto constitui a extenso de toda a forma de expressdo corporal e é desde a origem acompanhado de sons, como & 0 caso da daviga e do cane, Uma parte da significacio desta linguagem fundamental ¢ in homem, tal como acontece com a linguagem animal que se transmite de gera- do em geragdo sem contudo evoluir. Seré apenas a pouco € pouco que 0 homem primitivo iré transformar o gesto, codificando-o, dando-lhe significa Ges, que se transmitirao como uma primeira heranga cultural e evoluirao de geragao em geragio. s sons acompanhavam o gesto e progressivamente articulam-se formando palavras. Esta linguagem verbal, baseada na utilizagao e na combinagao de pali- vras é de gestos, faz do homem (Emerec)!0 um comunicador. Pouco a poucd, a palavra deixa de conhecer o limite de gestos que, até pouco, apenas com pletava e que agora jé ultrapassa. As combinagdes de sons que a palavra pet- mite tornam possivel a expressio daquilo que até entao era inexprimivel. 5 Jean Cloutier considera © homem semissors e, simultaneamente, «recetors, atribuindo-thes designagio original de EMEREC. A polavea ¢ criada a partir das primetras letras das palavre francesas ~ sémetteur-récepteur». Assim, EMEREC 0 leitor, sou eu. Emerec & o homem qo! ‘comunica com os seus semethantes, com as miquinas que ria, com o sew meio ambient. que modela e por vezes envenena. E ainda o Homo commuunicans, tem cinco sentides, cil? criatividade, uma imaginacSo-que ele despreza um pouco um intelecto de que se orgulh# muito, ou seja, como seu nome indica, ¢ a0 mesmo tempo emissor e recetor; & come tod niés,alternadamente cada um dos dois polos da comunicagio... e, até mesmo, ambos «* polos, simultaneamente. 10Jean Cloutier, como jé foi referido em nota anterior, utiliza a designagdo de EMEREC &" substituigio da palavra ehomems, na consideragio da sua facilidade em desempenhar sin taneamente o papel de emissor e recetor, Tal referéncia, nesta obra, surgirs muito esporsd! ‘camente, na medida em que o homem, pela sua natureza, transporta consigo tal capacidade® ‘competéncia, no vendo necessidade de utilizar tal qualificativo para a comunicagio humat® 32 Desta forma, comunicar jd nao é uma fungio instintiva, como a de cacar ou a de comer, mas «uma funcdo cultural». A palavea ainda nao ¢ uma linguagem puramente actistica mas ainda audiovisual, na medida em que o gesto faz parte essencial dela e nao é uma ilustragao desnecesséria, originando que a comunicagéo nao seja ainda puramente linguistica mas integrada. Podemos entio afirmar que a primeira linguagem do homem ¢ pois audiovisual, tanto ao nivel da expressao, gesto ¢ palavra, como da percecao — visio e audigio. 1.1.3.0 HOMEM-MEDIUM ‘Vimos anteriormente que nesta fase o suporte e meio fundamental da ‘comunicagao, o tinico que existiu na origem, € 0 proprio homem. O homem que gesticula e que fala é assim o primeiro medium audiovisual. Os media so ‘0s intermedidrios fisicos que permitem a comunicagio & distancia, quer seja.a listncia no espaco, quer seja a distancia no tempo. Ora, nesta época, a verdade que o homem ainda nao dispunha de meios que lhe permitissem transpor € materializar as suas mensagens; por tal motivo, nesta fase da comunicagao este tem que confiar a sua mensagem a um outro homem se quisesse vencer 0 espaco, ‘ou o tempo, justificando-se assim a designagio de homem-meditem, a) A mensagem no espaco No espaco, o alcance da comunicacio do homem ¢ entao limitado 4 sua acuidade auditiva e visual ¢ igualmente a do seu interlocutor. Por isso, para comunicar a distancia no espago, ele tem de se deslocar. Os seus meios de comunicagdo confundem-se, entdo, com os seus meigs de transporte, a nio ser que confie a mensagem a outro homem, incumbindo-o de a retransmitir. Este homem que retransmite a mensagem de outro com o intuito de vencer 0 espago ¢ designado como mensageiro que reproduzira pelas suas proprias palavras e pelos seus préprios gestos a mensagem que lhe foi confiada. O men- sageiro é assim um verdadeiro medium que difunde a distancia a mensagem de outro, mas nao sem a alterar, «ndo sem a impregnar da sua propria perso- nalidade». b) A mensagem no tempo A duracdo no tempo da comunicacde do homem ¢ limitada ao momento.em. que ¢ produzida, Contudo, o homem pade repetir quantas vezes Ihe aprouver essa mesma mensagem, o que nos leva a afirmar que, entio, a sua «palavra» limitada pela duragao da sua propria vida, a menos que ele a confie a qualquer 33 ‘outro homem que se encarregard de a repetir por ele € assim sucessivamente, prolongando-se no tenipo a mensagem original. Ha mesmo verdadeitos ihontens. -mediia que se tornaram especialistas desta transmissao oral, desempenhandg assim o papel de memdria do tempo que é hoje preenchida pelas modernas enciclopédias e pelos arquivos. Todos conhecemos 0 papel desempenhadong mundo grego por esses contadores, os aedas!! que através das suas narracies nos permitiram conhecer a Iida ou a Odisseia. Os bardos das tribos celtas (ver Astérix), os frovadores da Idade Média na Europa, ou até mesmo o§ fei. ceiros em Africa ou ainda os velhos contadores de historias nos serdes de ant- gamente, sio verdadeiros intermediarios fisicos que permitem a comunicagio a distancia, quer seja a distincia no espaco, quer seja a distincia no tempo, Estes nossos antepassados contaram no essencial a histéria da humanidade e, simul. taneamente, eriaram a sua mitologin que estd na origem das grandes narrativas da humanidade. As linguagens de exteriorizagio (que, como vimnos, se expressavam pelo gestoe pela palavra) configuraram assim 0 primeiro episédio da histéria do homem que Cloutier designou como comunicagio interpessoal. A exteriorizagao pelo gesto e pela palavra necessita da presenca de todos os interlocutores mum mesmo espaco e no mesmo momento. Cria-se ento entre eles uma relagio, vescreve Cloutier, «caracterizada pela ambivaléncia de Emerec», onde cada intercomunicador é alternadamente emissor e recetor e mesmo, por vezes, ‘simultaneamente, um e outro, em consequéncia da rapidez das suas interagies Estamos entdo, como referi, perante uma comunicagao interpessoal, que se baseia na roca € na reciprocidade entre os interlocutores e os intercomunticadores. Este tipo de comunicagio é a mais humanamente satisfatéria. Como refer a propésito Jean Cloutier, «Nao & necessariamente a mais enriquecedora inte Jectualmente..», na medida em que o conhecimento se faz frequentemente} base da andlise, dissociagio e objetivagio, © que as linguagens e os media de transposigao virdo na fase seguinte a promover. A comunicagao interpessoal por seu lado sintética, integral e subjetiva™?: 1. Sintética. Fundamentalmente audiovisual, ela pode mesmo permitit? participacio de todas os sentidos, pela presenca fisica dos interloutr res. 2. Integral. Ela estd necessariamente situada no tempo e no espage g* nio dissocia, como o fazem a imagem, que fixa o tempo, e o som, que bt 11 Um aedo era, na Grécia antiga, um artista que cantava as epopeias acompanhandose de instrumento musical ~serd 0 equivalente a um bardo celta. 12 Jean Cloutier, idem, p. 25. abstragao-do espaco visual. As informagées, percebidas simultaneamente, so entdo facilmente integradas e hierarquizadas numa tnica interpre tagio. 3. Subjetiva, A comunicagdo interpessoal é-o duplamente, no sentido em que é marcada, ndo apenas pela personalidade dos interlocutores, tanto ade Emerecemissor como a de Emerec-recetor, mas também pela relagio que existe entre cles. A comunicagao interpessoal, em sintese, como teremos oportunidade de melhor estudar quando mais a frente se abordar este tipo de comunicacaa, integrada nos contextos comunicacionais, continua a ser a base das relagdes humanas, Nenhuma das outras formas de comunicagao, posteriormente esta- elecida, serd capaz de a substituir «sem se arriscar a desumanizar Emerec», ou seja, odom da linguagem e o homem sao indissociaveis. 1.2. SEGUNDA FASE - COMUNICACAO DE ELITE Este episddio da histéria da comunicagdo humana circunscreve-se as lin- _guagens de transposigao. Nesta fase, o homem vai transpor o seu pensamento e os objetos de mundo que 0 rodeia para esquemas, desenhos, ritmo, mu sica... Esta transposigao da realidade é feita tendo os mures das cavernas como primeiros suportes, as primeiras lforarias ~ dizem alguns autores. Este segundo episédio ou fase da historia do homem, enquanto Emissor e simul- taneamente Recefor de mensagens, ¢ marcado pela sua preocupagio de se libertar de si préprio e mesmo do seu meio ambiente, pela transposicio tanto dos seus pensamentos como dos objetos que o rodeiam. Com efeito, de ora em diante, ele vai ser capaz de criar obras que terao vida prépria, obras que véo comunicar diversas mensagens, mesmo para além da sua presenca fisica. Cloutier, comentando 0 facto de determinados paleontologistas afirma- rem que as obras dos homens primitivos nao foram executadas com intengao de comunicar, mas sim como feitigos religiosos para favorecer as suas cacadas, deixa a seguinte interrogacdo que tem inteira propriedade, ou seja, escreve Cloutier, mesme que assim seja, «de qualquer modo, o feitico ou a oragdo nao sero um dos meios de comunicar?», evidentemente que sim, digo eu, sio ‘mensagens indiscutiveis e com destinatérios precisos... os deuses, Deus ou 08 ‘outros homens seus contemporaneos, afinal todos nds, que hoje as contem- plamos arrebatados e ainda outras que, depois de nds, virdo € que igualmente se renderao a tao expressivas mensagens. 3 1.2.1. A TRANSPOSICAO DO PENSAMENTO QO homem vai agora dissociar o mundo sintético do audiovisual. Vai sepa. rar os olhos dos ouvidos e criar 0 mundo dos sons, a audiosferal®, eo mundo das imagens, a eidosfera!4, © homem comunica igualmente por meio do ritmo, aperfeicoando instrumentos musicais que se tornam verdadeiros. pro- longamentos da voz humana, ¢ com os quais exprime os seus estados de alma € transpGe as suas sensagies e emogdes. Por sua vez, a propria musica disso- cia-se pouco a pouco da danga coma, progressivamente, a palavra dispensari © gesto. As verdadeiras linguagens actisticas implantam-se, privilegiando ouvido ea imaginagao. O tam-tam transforma-se, adotando um cédigo sonore tao rigoraso, embora mais limitado, como o da linguagem verbal. © tam-tam torna-se assim num verdadeira sistema de telecomunicagao — as distancias na espago sdo assim vencidas. Todavia, a mensagem transmitida é unidimensional, € apenas aciistica, dirigindo-se unicamente ao ouvido. Simultaneamente, a comunicaggo a dis tancia com recurso 2 eidosfera que ocorre através de sinais de fumo com origen em fogueiras que, de colina em colina, transmitiam um c6digo visual comps rvel ao c6digo sonoro do tani-tam, Por sua vez, aos objetos envolventes sic- -lhe conferidos valores simbélicos sendo transformados em instrumentos de comunicagio. A escultura permite-lhe representar em trés dimensies a suz perceio da realidade. A sua habilidade em transpor graficamente essas men- sagens em duas dimensdes determina, como bem sublinha Cloutier, «mais qee todos os outros meios, a evolugdo do homo-communicans». Os seus sistemas de conumicacio grdfica tornam-se assim cada vez mais pre- cisos. A parede das cavernas transforma-se no suporte de desenhos e de pit- fogramas que esquematizam a realidade. O préprio pictograma evoluin pata 0 ideograma, que associa uma ideia abstrata ao objeto. Esta dransposigio vai ter um duplo efeito: por um lado, permitir ao homer representar a sua percecio da realidade mais do que a propria realidade e concreto, $6 «comunicdvel» com o gesto e a palavra (na origem utensilios sumérias da expressao de necessidades); e, por outro lado, dispensar 0s ht mens-media para comunicar a distancia através do espaco e do tempo. Es? transposigdo vai encetar 0 proceso de dissociagao das linguagens, proces? que encontraté © seu termo na descoberta e incremento da escrita fonéti A primeira forma de transposigdo & assim audiovisual, uma vez o homem ni? 13 Linguagem visual que se destina a ser percebida pelo olho e que integra a eidosfera 14 Linguagem dudio que se destina a ser percebida pelo ouvid ¢ que integra o mundosdaas! ‘io. a audiesfera 36 dissociar ainda os modos de percegao, mas introduz jd uma dimensao simbé- lica ao estabelecer convengies. ‘Vimos mais atrds, na fase ow epis6dio anterior, que a danga e 0 canto so formas de exteriorizagao que nada mais sio do que um prolongamento atra- vés do ritmo, quer do gesto, quer da palavra, respetivamente. Na origem, as ceriménias e os jogos so participagies, a aldeia inteira danga e canta onde cada um é ator e simultaneamente autor. Pouco a pouco, nesta fase, a liturgia toma-se mistério e o mistério teatro; a danga, 0 canto, o préprio exercicia fisico, tornam-se assim espetéculo!9_ A iranspasigio audiovisual é representagao, € obra de seres singulares que sio também e ainda os homens-nedia. Assim é na ver- dade, na medida em que através da aquisicao pelo homem da faculdade de transposigéo, a arte foi a sua primeira conquista. Se tivermos presente que o gesto e a palavra sao os atributos indiscutiveis de todo.o homem normalmente constituido, a capacidade de transpor as suas ideias ¢ sentimentos através da miisica, do desenho, gravura ou pintura, jé nao ¢ propriamente acessivel a todos mas apenas a alguns especialmente dotades e assim considerados privilegiados - os artistas. Da mesma forma a escrita fonética, sistema complexe de transposicao do pensamento, necesita de uma aprendizagem especial, um conhecimento especializado: é um saber que nao pertence a todos, mas apenas aos escribas que, assim, se tomam nos primeiros tecnocratas. As linguagens visual, scripto e scripto-visual, necessitam de um suporte material sobre o qual é tracado ou gravado um desenho, escrita uma palavra, transcrita uma nota de musica, Este suporte constitui um medium que vai permitir a0 homem vencer a distancia no espaco e no tempo. No espace, 0 primeiro medium de transposicio ¢ 0 documento, que vai das inscrigdes em placas de argila até a0 manuscrito cujo suporte variou ao longo dos tempos (pedra, pergaminho, papiro... papel), No entanto, & preciso transportar esse documento, pois sé nessa condigao 0 desenho e a escrita permitem vencer a distancia. £ assim que a evolugio do homem o vai conduzir a criar © correio, 15 Aevolugio do homem conduz a que este, pouco a pouco, se vai distrair por delegagio. Odesportista transporta o seu entusiasmo e vontade de vencer para um jogador com 3 res- ponsabilidade de ser 0 methor, em seu lugar ¢ transforma-se, entio, em espetador: atribo, ‘u.a cidade, tem assim a sua equipa, encarregada de defender as suas cores. Cria-se o espe- taculo e, com ele. os teatros com bancadase as arenas. Ox Mistérios religiosas eedem o lugar a0 teatro, ¢ vemos aparecer o palco a italiana, lugar artifical por exceléncia, que per- rite ao espetador olhar através da quarta parede inexistente; viveu-se entdo um periodo de Iransposicio. Os artistas, pintores, rmsicos, comediantes so contratados e pagos para se @xprimire em name de todos. «O homem tornou-se espetadore (Cloutier, ap. eit. p. 53) 37 (inicialmente marcha a pé, mais tarde a cavalo...) o qual sistematiza tambémo transporte das mensagens graficas!®. No tempo, esse documento perpetua as mensagens com 0 pressuposto de que o seu suporte material resista ao decorrer do proprio tempo. Foi assim que, resistindo aos séculos, se encontraram placas de argila escritas ha mais de mil anos antes de Jesus Cristo, Todavia, o medium que permitiu ao homem receber as mensagens mais antigas, refere a propdsito Cloutier, «foi o muro das cavernas; vejam-se, por exemplo, as cavernas de Lascaux em Franca, de Altamira em Espanha, ow de Tassili N’Ajjer em Africa, ou ainda as gravuras paleoliticas de arte rupestre do Vale do Céa, em Portugal!?, tem todas em 16 Durante muito tempo, a transmissio das mensagens utilizou a marcha a pé ou a corrida do homem. Na América, que s6 conheceu o cavalo com a chegada dos espanhéis, os grandes impérios estavam reduzidos a este sistema de transmissio. No Império Inca, ao longo da ‘estrada entre as principais localidades, sucediam-se estafetas. As noticias, & velocidade de 10 km 3 hora mais ou menos. No Mundo Antigo, a domesticagio do cavalo trouxe uma re dadeira revolugdo nas comunicagdes, A velocidade de transmissio fez mais do que dupl- ear, passando da welocidade do carredor a pé (10 a 12 km/h) para 20 a 25 km/h. E assim que as noticias do imenso Império Persa circulavam & velocidade de 80 km por dia em média. jé no final do século xv, os portugueses langam-se 4 descoberta das Indias orientais. No rasio de numerosos precursores qué tinham reconhecido as costas de Africa ¢ ultrapassado 0 vato da Boa Esperanga, Vasco-da Gama sai de Lisboa em julho de 1497 e chega a Calecut, na lndia em maio de 1948. Levou portanto 10 meses para chegar 4s Indias e ligdslas pela primeira ver & Europa Ocidental. Volta outra vez em agosto de 1498 ¢ chega a Lisboa em agosto dt 1439, Por sua vez, Fernando Magalhies, o primeiro homem a dar a volta ao mundo, levou ‘exatamente trés anos para efetuar o seu percurso (setembro de 1519-setembro de 1522) Pauco a pouco as viagens maritimas intercontinentais tornam-se uma espécie de rotina; 99 final do século xv, uma ida e volta de Goa a0 Japio demorava trés anos, A ida e volta Gor -Lisboa demorava 18 meses. Em tempo de deslocamento, Goa estd A mesma distancia de Lis boa que Lima de Sevilha. © império espanhol esta t3o distante da sua metrépole quanin® estado da India relativamente a Portugal, Durante toda a época modema, os tempos do trars porte, dos homens e portanto das noticias, por mar, sobre as distincias intercontinentiis contar-se-do em semanas e até meses. © célebre galejio de Acapulco a Manitha permitia u=> ligagSo regular entre a América espanhola e a india portuguesa a partir de 1572: a ida evel fazia-se em dois ou trés anos. Em sintese ¢ segundo a fonte desta informagio sobre a «velacidade» das comunicagi (Gérard Leclerc, A sociedade de comunicagio, p. 40), distingue-se, a propdsite das viagens 1 época cléssica (séculos xvi-xvin), atrés niveis de velocidadeo: — sobre o mar, com galeras reforgadas para os correios urgentes: 20 km por dia; ~por terra, um correio pade ir até 130 km por dia, para as mensagens urgentes; ~ ainda por terra, o comreio dos homens de negécios percorre 25 a 30 km por dia, ee cionalmente, para uma distincia de dez ou mais dias. 17 Em 1984 foi descoberto.o maior complexo de arte rupestre paleolitco a0 ar livre conhecido# hoje. Ha 20 000-anos o homem gravou milhares de desenhos representando cavalos eb sdeos nas rochas xistosas do vale do Ca, afluente do rio Douro, no nordeste de Portugal 38 comum 0 poder de nos representar a realidade do homem de entéo, constituindo sem diivida os primeiros museus da humanidade, os quais, como os monu- mentos e as esculturas, testemunham o pasado. Estas linguagens da transposicdo marearam profundamente o homem e coineidem com a sua nova capacidade de abstracdo, ao manifestar a sua habili- dade para representar uma ideia pelo desenho (ideograma), ou de transpor uma palavra, palavra sonora, através de um signo visual (fonograma) totalmente abs- trato, vao acentuar a sua capacidade de organizar a sociedade ¢ de estruturar as suas instituigdes sociais, politicas e religiosas. Assim, por exemplo, sem a escrita fonética, o Império Romano no podia ter existido com a sua adminis- tragao centralizada, a Igreja Catdlica nao teria sido possivel com a sua estru- tura hierdrquica ou, como afirmou Marshall McLuhan, «a pena de pate pés fim a palavra; suprimiu o mistério; criou a arquitetura eas cidades; fez as estra- das e os exércitos, a burocracia»!8, Na posse destas novas capacidades e competéncias, o homem desenvolve um novo tipo de comunicagao baseade na desigualdade des comunicadores e na dicotomia entre os que sabem e 0s que nfo sabem. O poder est nas mos da elite. Todas as relagées humanas so restabelecidas em fungdo de estrutu- ras que consagram essa desigualdade, Este tipo de relagdo humana, que con- tinua a existir, foi designado comunicagio de elite. Assim, por exemplo, 0 ensino que na origem era baseado na permuta entre o pai ¢ 0 filho, o velhoe © jovem, transforma-se num assunto de especialistas, ou ainda, a aula magis- tral de hoje € um perfeito exemplo desse tipo de comunicagéo. 1.22. AINVENGAO DA ESCRITA Os significados da palavra escrita sio dificilmente controliveis devide ao seu niimero e diversidade; a escrita 6, em primeiro lugar, o resultado material de um gesto fisico que consiste em tragar regularmente signos, seja usando a do, seja (atualmente) de forma mecinica ou eletrénica; é, a seguir, um tipo de comunicagio, visual, silencioso e estivel; & ainda um conjunto de valores complexos que afetam o conteiide e a forma estética daquilo que foi escrito, situando-se, assim, perto do «Estlos; & também, de uma forma mais espect- iosa; é, finalmente (sentido recente e Jo, através da qual © sujeito se coloca na lingua de uma forma especifica. Diversos saberes podem intervir na andlise da escrita, referem Roland Barthes e Roland Havas, 18 Marshall MeLuhan. Message et massaje. Paris: J, Pauvert, 1968, p. 48, 9 designadamente: 1) «a ciéncia hist6rica», que nos diz como as escritas nasceram ¢ evoluiram; 2) «a fisiologian, que descreve e mede os gestos musculares do ato da escrita; 3) «a psicologiay, que, através da grafologia, considera a letra escrita como indice de um traco de carter; 4) «a ciéncia penal», que desen. volve peritagem das escritas!?. Como se constata, para se abordar tal matérig de complexidade e vastid3o evidentes, para além de tal nao estar previsto, nig chegaria o espago que Ihe & dedicado neste livro e que se circunscreve apenas a umia das vertentes, ou seja, A ciéncia histériea, mais concretamente inven. cdo da escrita que se inscreve no Ambito que uma obra dedicada 4 comunicagio serd suposto tratar. Aceserita suméria ou cuneiforme Sob o ponto de vista da ciéncia histérica, diria que a passagem da tradicSy oral para a tradicao escrita comporta uma mudanca radical no tipo de mensa- gem transmitida: esta jé nao € mais dependente de quem a envia, e da discr- a0 de quem a recebe, ficando a disposigao de qualquer pessoa que a deseje ler em qualquer tempo, em qualquer parte. Pode ser relida, meditada, analisadz; adquire, portanto, durabilidade, profundidade e clareza. Contudo, para termos uma ideia do alcance verdadeiramente revoluciondrio dessa invengao, seri bastante pensarmos que a maior parte das linguas faladas no mundo, num passado nao muito remoto, jamais foram escritas. A argila, seca ao sol ou cozida no forno, desempenhou um papel decisivo na origem da escrita, tendo-se chegado a escrita por razdes essencialmente econémicas. Os produtos da terra eram postos em circulagio e uma grande parte deles acabava como tributo ao deus da cidade, Portanto, face & necess: dade de os sacerdotes disporem de um registo da diversidade de dadivas dos fidis, surgiu a necessidade de um sistema de controle e de contabilidade criado pela poderasa casta dos sacerdotes. Os primeiros testemunhos da escrita sio as chamadas tdbulas, provenier tes da cidade-estado suméria de Uruk? e datadas de cerca de 3300 a. C ‘Trata-se de pequeninas placas de argila, de forma aproximadamente retang lar, cuja superficie é convexa, e onde tém gravadas imagens muito simplifice das, de animais, utensilios, plantas, chamadas «pictogramas», ¢ alguns sits abstratos muito mais numerosos que foram interpretades como mimer® 19 Roland Barthes; Roland Havas. «Escritan, in Eneiclopéia Einaudi, volume i, oral/esc™ argumentagio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa a Moeda, 1987, pp. 146-172 20 Uruk foi uma cidade-estado suméria (posterior Babilénia) que se situou a este do Eufratese a su-sudeste da capital, Bagdad, do moderno Iraque. 40 Desta forma, 0 uso dos pictogramas constituiu a primeira tentativa sistematica para fixar a linguagem,; porém, ainda era um processo de registo de informagao muito limitado, pois desse modo apenas se podiam representar alguns objetos concretos, mas nao se podia produzir a articulagdo da frase. Como facilmente se compreende, a limitacao do processo ¢ evidente, na medida em que tal téc- nica supée tantos signos quantas as palavras necessarias para representar uma ‘ou mais ideias, ‘Num segundo momento, volvido mais ou menos um espago de trés séculos, ‘ocorreu na Mesopotiimia um assinaldvel progresso ao atribuir-se uma repre- sentago ao sinal; em vez de indicar um objeto, «passou a representar um som, tornando assim possivel a escrita exprimir a lingua com as relagdes das palavras entre si». Tratando-se embora de um assinaldvel avango, a verdade que constituiu um processo lento, na medida em que a escrita fonética (os sinais que representam um som) nao substitufram de imediato e inteiramente 0 ideograma (0 sinal que representa uma coisa), isto ¢, 0 pictograma totalmente destacado da realidade, Contudo, os dois tipos de sinais continuaram a coe- xistir. Os sinais chamados sildbicos, que tinham valor gramatical e serviam para exprimir aquelas partes do discurso que pela sua natureza ndo podem ser representadas de forma figurativa, tinham derivado dos ideogramas, dos quais perdiam o significado para conservar apenas 0 som. Portanto, conforme. escreve Giovanni Giovannini, os sumérios jamais alcangaram o estagio final da escrita, isto 6, a criagdo de um alfabeto, por nao terem inventado sinais dis- tintos para cada uma das vogais e consoantes?1. A grafia dos sinais foi-se mo- dificando paralelamente a evolugao do significado; acentuow-se a estilizagio, inclusive devido.a dificuldade de tracar linhas sobre a argila fresca, até que 0s sinais alcangaram o aspeto caracteristico de prego, de cunha, de onde derivou o nome da escrita «cuneiforme». Em tedo 0 caso, a argila continuou a ser o material privilegiado, gragas também as garantias de conservagio e durabilidade que oferecia, nde exis- tindo provas que demonstrem, numa €poca posterior, a existéncia de tentati- vas para utilizar o cuneiforme sobre os papiros. Durante todo 0 tempo em que a escrita cuneiforme foi utilizada, a civilizagao suméria inscreveu sobre a argila todos os seus textos administrativos, econdmicas e religiosos. Ao se atingir a estilizagdo do cuneiforme, assinalou-se a existéncia de uma sociedade ja claramente dividida entre os que sabiam e os que nao sabiam ler, entre aqueles que padiam ter acesso as informagdes provenientes de tempos passa- dos ou de lugares distantes e aqueles que nao tinham acesso a qualquer infor- magdo que nao fosse transmitida de forma direta, através da presenga fisica do remetente ou autor da mensagem 21 Giovanni Giovannins, Eoolugto na comimicagdo: do silex ap sic, pp, 25-52 4 Acscritaegipcia ou hieroghfica Acescrita egipcia (mais ou menos 3100 a. C.) é posterior a escrita suméria, constituindo um sistema de escrita mais complexo. Na realidade, escrevem Barth; e Havas, «constitui, de facto, e contrariamente ao que é comum supor-se, um misto de ideogramatico e fonéticom. O hierdglifo propriamente dito, esclare cem as autores, «é, na origem, um signo sagrado. Como se desse corpo & palavra dos deuses», Este termo deriva da composigao de duas palavras gre. as - hiero «sagrado» e glyfus «escrita». Apenas os sacerdotes, membros da realeza, altos cargos, e escribas conheciam a arte de ler e escrever esses sinais «sagrados». Na sua origem, frequentemente o simbolo é acompanhado de ‘uma echaveo que precisa 0 sentido, ou o define, caso se tratem de palavras escritas foneticamente. Refere a propésito Giovannini que, durante mais de 3000 anos em ques hieréglifos foram utilizados, ao contrario dos sinais sumérios, estes mantive ram sempre o seu cardter de imagem mesmo ao exprimirem apenas os sons:9 ‘inico elemento que as vezes permite distinguir a escrita da imagem sao as reduzidas dimensées. Para dar uma ideia do tradicionalismo dos sinais egip cios, basta pensar que os hierdglifos continuaram a reproduzir formas des- parecidas hd milénios. Por exemplo, exatamente o sinal indicative da pala sescriba» apresentou, até ao final da época faraénica, uma escrivaninha cus forma jé tinha caido em desuso na época das pirdmides. A escrita hierogliica. era usada sobretudo nas obras de carter monumental e nos objetos de uso fu- nerario, destinados a uma vida eterna; porém, para as comunicagées de uso didrio era um instrumento inadequado, devido ao imenso cuidado e, conse quentemente, a lentiddo com que os escribas tragavam e dispunham os sinais Assim, desde as primeiras dinastias desenvolveu-se uma forma de escritt cursiva mais répida, na qual os sinais perderam, pouco a pouco, o seu caréte de imagem, embora conservassem os prineipios basicos da escrita. As duss formas de escrita coexistiram durante todo o tempo de vida da civilizagio faradnica, usando como base os materiais mais diversos: desde a pedra, solve a qual os escribas-cinzeladores gravavam as inscrigdes oficiais, aos fragment* de terracota ou de rolha calcaria, que serviam para répidas anotagbes escrits com pincel, as tébulas de madeira, as vezes recobertas por cera, que servial paras exercicios da escola22, Finalmente, sobre a escrita egipcia ¢ de referir ainda que o suporte mais nob usado na escrita pelos egipcios foi o papiro. «A civilizagdo, ou pelo menos! histéria da humanidade, repousa sobre © papiro»: assim escreveu, por voll de 70 d. C., Plinio, o Vella, demonstrando ter captado totalmente o alean® 22 Idem, ibidem. 42 dessa descoberta, da qual derivou, em algumas Iinguas europeias, 0 préprio nome de papel (papel em portugues, papier em francés e paper em ingles). Nao foi necessério muito tempo para que os egipcios percebessem as possibilida- des que lhes eram oferecidas por essa planta em forma de guarda-chuva que crescia abundantemente nas dreas pantanosas as margem do Nilo. ‘Acserita chinesa ow ideogrdfica Se existe uma escrita, apesar de tudo, que pela sua prépria forma exerce um poder de fascinio comparavel ao do hierdglifo, € a escrita chinesa. Essa escrita, escreve Barthes e Havas, «é uma escrita de palavras mas, ainda que de um modo obscuro para os Ocidentais, € indubitavelmente econdmica e perfeitamente adaptada as necessidades dos seus utentes, o que explica a sua vasta difusdo e a permanéncia da sua utilizagio»”3, A escrita ideografica chi- nesa é a notacdo do sentido dos signos e nao do seu som: apela, portanto, a um reconhecimento visual e nao auditivo, particularidade que nao deixou de atrair a atencae dos fildsofos, Referem Barthes e Havas que essa escrita «conta apenas com nove signos (tragos) que valem para as vinte e cinco letras do nosso alfabeto; inscreve-se num espaco sob a forma, e nao linearmente, como na es- crita ocidental, Enquanto.o destino das escritas de palavras ¢, em geral, a evolugio para o silabismo, a escrita chinesa, sendo formada por entidades que nie podem ser decompostas, nunca sofreu alteragdes e manteve uma forma fixa. O problema maior, assinalam Barthes e Havas, «continua a set, evidentemente, 0 da massa desses signos que devem ser suficientemente numerosos para poderem designar tudo (contam-se mais ou menos setenta mil ao todo), mas a relagao “motivada’, representativa ¢ analisvel, do signo com aquilo que representa, inexistente numa notagio fonética, facilita bastante a aprendizagem de um vocabulério formal em aparéncia dificilmente apreensivel, Como o hierdglifo, o cardter chinés ¢, antes de mais nada, um cardter de inscrigio (sobre madeira, osso ou pedra), antes de ser escrito, no século u, com tinta e pincel, sobre diferentes suportes aos quais o papel se substitui, depois da sua descoberta no século 1. As primeiras inserigGes chinesas datam de 1500 a. C. e revelam um sistema de ideogramas graficamente diversos dos do Egito e da Mesopotamia, mas-de aplicacio analoga. Finalmente, sobre a escrita ideogréfica chinesa, refira-se que esta alcangou na China a sua fungio maxima em relacio ao poder. A Iingua falada dividiu-se em muitos idiomas, determinando, por sua vez, a «cis3o do povo em muitos 2 Roland Barthes ¢ Roland Havas, op. cit, pp. 149-150, 43 povos diversos», ineapazes de manterem uma comunicagdo entre si. A lingus esctita, por sua vez, que ndo conheceu a passagem do sinal-palavra para g sinal-som, propiciou o fortalecimento da oligarquia, cujos membros comunica. vam entre si por escrito. O nascimento do alfabeto No Mediterraneo a evolugio das formas escritas culminou com a criagi de um sistema alfabético, que levou aquilo que foi definido como a «demo. eratizagao do saber». Por alfabeto entende-se a lista de 20-30 letras que indi- cam 0 sons mais simples nos quais uma lingua se pode decompor € que permitem escrever essa mesma lingua. Pelo que jd vimos, 0 homem comegou a escrever com os sistemas mais complicados (pictografico, sildbico, ideogri fico) e deve ter chegado ao alfabético, que ¢ o sistema mais simples, em tent tivas sucessivas. Contudo, dessa invencio nio se conhecem, com precisio, nem os autores nem os locais onde poderia ter ocorrido24, Embora tal origem nao seja possivel determinar com a precisdo desejavel independentemente dos varios estudos existentes sobre o assunto, a verdade € que o proceso de evolugio da prépria escrita (suméria e particularmente: egipcia) tenha algo a ver sobre o assunto. A propésito, recorda-se que essa escritas jé possufam alguns sinais alfabéticos. E assim que no ser de adm rar que essa influéncia esteja na origem, embora distante, do atual alfabein Sublinhe-se, contudo, que os egipcios, escreve a propésito Giovannini, «nip devam nunca ter percebido tais possibilidades, pois, se assim nao fosse, tern abandonado o sistema hieroglifico, muito mais complexo». ‘Oque se pode afirmar com certeza ¢ que, na metade do If milénio a. C, tt tegido siro-palestinense, esto presentes duas formas de alfabeto: o alfabet cuneiforme de Ugarit e linear fenicio. Foi descoberta em Ugarit, cidade Stria setentrional em frente 4 extremidade oriental de Chipre, em 1920, um? grande quantidade de tabulas de argila, algumas em cuneiforme-comum, 0 tras, a0 contrdrio, numa escrita inteiramente diversa de qualquer forma # escrita cuneiforme conhecida; nesse tipo de escrita foi reconhecida, depois, u estrutura alfabética composta por trinta letras. Estes textos, datados a partir 1300 a. C,, revelam que 0 alfabeto ugaritico foi usado para escrever també? outras linguas muito diferentes; a destruigao da civilizacao ugaritica no sta! seguinte e a escassez de argila na Palestina levaram, porém, a um répidode parecimento dessa escrita®. 24 Giovanni Giowannini, idem, ibidem: 25 Idem, ibidem. “4 Aescrita que se desenvolveu na Fenicia, 0 atual Libano, mais ou menos no final do século xi a. C., estava, ao contrério, fadada a um futuro gran- dioso. Trata-se de um sistema de 22 sinais (que sé indicam as consoantes, mais tarde as vogais foram anexadas pelos gregos), definido linear, em oposi ‘G40 ao cunciforme, pelo mado como sao tragadas as letras: com linhas, retas ou curvas, desenhadas com uma pena ou um pincel encharcado de tinta sobre superficies relativamente planas. O facto de 0 alfabeto fenicio ser a origem de todos os alfabetos ocidentais proporcionou-lhe uma «aura» que nenhum outro alfabeto jamais teve, gracas também ao facto de ser conhecido ha mais de dois séculos, enquanto o de Ugarit s6.0 € hd menos de um século. Contudo, no estagio atual dos conhe mentos, gtagas aos estudos entretanto desenvolvidos e de que se tem noticia, concluiu-se que © alfabeto ugarttico jé era usado dois séculos antes do fenicio. A relagio entre os dois ainda € dificil de se precisar; deve-se excluir uma pas- sagem do linear para o cuneiforme; no entanto, permanecem em aberto duas hipéteses: a de uma passagem do cuneiforme para o linear ou, no maximo, 0 aparecimento em simultaneo dos dois sistemas. ‘O aspeto mais importante da difusio no Ocidente foi a adocao do alfabeto fenicio pelos gregos, através dos quais se transformou na origem de todos os alfabetos acidentais. A origem semitica das letras gregas 6 comprovada tanto pelo nome das préprias letras como pela sua forma, inconfundivelmente semelhante aquela do alfabeto fenfcio. Os Gregos adotaram o alfabeto fenicio ao qual adicionaram as suas vogais. A verso usada em Atenas, 0 chamado alfabeto j6nico, foi o padrio de referéncia para a Grécia cléssica que serviu de base a criacao do alfabeto latino, cuja designagao tem origem nas primei- ras duas palavras do alfabeto grego: alpha + beta, correspondentes as duas pri- meiras letras do nosso alfabeto. Ascrita fomética E nesta fase que surgem as grandes «revoluges do homem» primitive: a invengio da roda e da escrita fonética. As suas armas e os seus utensilios pro- longam a forga fisica do seu braco, tal como o desenho prolonga a comunica- sao visual do seu gesto. Mas a roda, como afirma Cloutier, «é outra coisa, & um sistema em si, que nao condiz com o modo de deslocacdo natural, linear, do homem ou do animal». O mesmo acontece com a escrita fonética que, con- forme tivemos a oportunidade de constatar, rompe com a evolugio visual da escrita anterior. Esta eserita, também designada fonografica, é tributsria, nao da imagem, nem mesmo da ideia, mas da palavea, da palavra da qual se con- tenta em anotar os sons através de signos aparentemente arbitréarios, 6 tém sentido para o leitor que os sabe juntar. Nas linguagens altabéticas & tém aproximadamente 3000 anos - a forma do simbolo jé nao esta ligada ay seu sentido. Este tipo de escrita, como vimos, ja ndo € mais tributdria da imagem (pic. tograma) ou da ideia (ideograma), mas de palavras que traduzem sons e que ‘tém sentido para o leitor que 0s sabe associar. Comentando a importancia dy alfabeto fonético, Marshall McLuhan escreve que tal invencao constitui «uma tecnologia tinica». Com efeito, tem havido muitas espécies de escrita, picto. graficas e sildbicas, mas 36 hé um alfabeto fonético, em que letras semantica. mente destituidas de significado sao utilizadas come correspondentes a sons igualmente, sob 0 ponto de vista semantico, sem significagdo. Culturalmenty falando, esta rigida divisdo paralelistica entre 0 mundo visual e auditivo, fg «violenta ¢ impiedosa»®, A palavra fonética escrita sacrificou mundos de sig nificado € percegao, antes assegurados por formas como o hierdglifo ¢ o ideo grama. Estas formas de escrita culturalmente mais ricas, no entanto, nio ofereciam ao homem as pontes de passagem do mundo magicamente descon- tinuo e tradicional da palavra da tribo para o meio visual, frio e uniforme com 86 a eserita fonética permitiu?”. A hist6ria da cultura humana esta intimamente ligada aos meios de com nicagdo. Foi assim importante para a sobrevivéncia da tribo, durante esta pr- meira fase, que o conhecimento e a experiéncia dos mais velhos chegassen aos seus descendentes e, na transmissio oral, surgiam lendas e interdigies envoltas em mistério. A natureza, uma inégnita apavorante para o homes primitivo, estava povoada de espiritos que precisavam ser apaziguados atte vés da adogio de procedimentos rituais. A invengao da escrita deu inicio histdria; tormou-se assim possivel, através desta técnica revoluciondria, arm zenar conhecimentos numa escala muitas vezes superior Aquela até entdo exis tente. Surgida entre diferentes povos, a escrita passou a atuar como instrument’ de aproximagao cultural e social. © dominio crescente sobre a natureza et acompanhado pela utilizagao de meios que difundiam esas realizagdes. E nut desenvolvimento inevitdvel, que durou séculos, © acumular de conhecimet tos levou ao aparecimento do livro. Por muitos séculos este constituiu obf de arte, executado & mAo: era escrito por copistas sobre papéis preciosos, cot vinhetas, cabegalhos e margens ricamente ilustrados, Naturalmente, esta forma de transmitir informagGes de certa forma cot gelava a cultura, porque o objetive do copista, na pratica, era executar um tt balho artistico; o livro, assim concebido, constituia um fim em si mesmo, wm” obra-prima de artesanato, um testemunho da dedicagao religiosa dos mong? 26 Marshall McLuhan. Os meios de comunicagie como extensies da homem, p. 102. 27 Idem, ibiders. 46

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