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Apresentando a Orientacao @ Queixa escolar’ Beatriz de Paula Souza* Os desenvolvimentos teérico-praticos da psicologia esco- lar, notadamente a partir da década de 1980, apontam claramente aimportancia de se investir no sentido de contribuir para a melhoria da rede escolar. Os psicélogos vém ampliando ¢ aperfeigoando intervengées junto as escolas, com o intuito de problematizar ¢ reverter funcionamentos institucionais produtores de fracasso escolar e de encaminhamentos de alunos para atendimento psico- légico no sistema de satide mental, clinicas-escola e outros espagos ¢ instituigdes externos a escola. Tais atuagées de cunho institucional, no entanto, frequen- temente nao dio conta de sofrimentos e fracassos individuais que, embora atravessados pela instituigdo, permanecem cristalizados. Porém, ainda ha nés que, para serem desatados, necessitam de uma abordagem que aprofunde a compreensao das relagées em que individuo e instituigao se constituem mutuamente, cuidando de nao negar nem a um, nem a outro. Este trabalho contou com a preciosa revisio critica de Carla Biancha Angelucei ¢ baseia-se em FRELLER, C.C,; SOUZA, B.P; ANGELUCCI; C.B.; BONADIO, AN,; DIAS, A.C.; LINS, ERS.; MACEDO, TE.C.R. “Orientagao & Queixa Escolar”. In: Revista Psicologia em Estudo, Universidade Estadual de Maringé, ¥.6, n.2, jul./dez. 2001. Psicdloga ¢ Mestre em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo, em que coordena o Servigo de Orientagao a Queixa Escolar. 97 APRESENTANDO A ORIENTACAO A QUEDKA ESCOLAR O pensamento dialético desvela-nos uma relagio entre in- dividuos ¢ instituigées que aponta a necessidade do psicélogo desenvolver frentes de trabalho diferenciadas, nos planos macro e microestrutural, se pretende atuar no sentido de uma transforma- ¢40 social profunda. Assim, as intervengoes institucionais ¢ individuais, fundadas em uma mesma concepgdo de Homem e de Sociedade, em que estes dois planos guardam uma relagio de interdependéncia, de miitua determinagio, tenderao a comple- mentar-se e a potencializar uma 4 outra — e nao a competir. ‘A dissociagao destes planos — macro e microestrutural — no campo da psicologia apareceu, por exemplo, na assessoria a psicélogos que atuam na satide, desenvolvida no Servico de Psi- cologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo (SePE-IPUSP), do qual faco parte. Eles percebiam que, por tras de uma grande parcela de sua demanda infanto-juvenil, en- contravam-se cotidianos escolares adoecidos e adoecedores, dai procurarem nossa ajuda. Assim, em 1992, psiclogos ¢ outros trabalhadores de sati- de mental de equipamentos da Secretaria Municipal de Satide (Unidades Basicas, Centros de Satide e outros) da regiao sul da cidade de S40 Paulo, A procura de novos rumos no atendimento as queixas escolares, realizaram um estudo sobre sua demanda infanto-juvenil. Revelou-se que as queixas escolares constitufam aproximadamente 65% da mesma (Morais, 2001). Tal cifra apro- xima-se, provavelmente nao por acaso, com os 70% encontrados na pesquisa de Souza (1996) junto a clinicas-escola de institui- goes de ensino de psicologia da Grande Sao Paulo. Ficava, entao, evidente a prioridade que a queixa escolar deveria ter nas agées de satide mental ¢ em nossa formacio. A partir das contribuigées de Patto (1984; 1990) e de nosso convivio com as escolas, a visdo critica que tinhamos no SePE- IPUSP acerca dos funcionamentos escolares cotidianos produtores de fracasso levava-nos a incentivar ¢ assessorar os psi- célogos que nos procuravam em suas experiéncias extramuros das 98 Beatriz pe Pauta Souza Unidades Basicas ¢ Centros de Satide, partindo para intervir nas escolas. No entanto, esse tipo de assessoria evidenciava uma lacuna no conhecimento do Servico e da psicologia escolar: o atendi- mento as queixas escolares no ambito da clinica, com o foco no individuo em sua relagdo com a instituigdo escolar. Era preciso desenvolver uma abordagem que superasse as dificuldades das praticas tradicionais, que se fundam numa concepgao de indivi- duo abstrata, desconsiderando seus pertencimentos sociais para além do grupo familiar. Era preciso incluir a escola na investigagao ¢ na intervengao. Perguntas como “em que tipo de classe est4? Quantas professoras teve este ano? Onde se senta na classe? Qual a frequéncia com que ocorrem faltas de professores? Em que momento da carreira escolar emergiu a queixa em questao?” precisavam integrar o rol de perguntas possiveis/necessdrias ao atendimento. A interlocugao com a escola, & semelhanga com a que se tem com os pais, necessitava ser introduzida. Era preciso, ainda, ter um olhar para as pertengas sociais (camada socioeconémica, grupo étnico ¢ religioso, por exemplo) dos envolvidos e os desdobramentos disto na vida e carreira esco- ares da crianga ou adolescente atendido. A passagem de uma crianga pobre e negra pela escola tende a guardar diferengas significativas em relagao a de uma rica e branca. O estagio de conhecimento que a psicologia e outras ciéncias atingiram acerca da importincia dos fatores sociais na constituigao das subjetividades nao nos permite mais ignoré-los num atendimento psicolégico’. Impulsionadas por tais necessidades, com uma demanda de atendimento de criangas e adolescentes com queixas escolares ba- tendo as nossas portas, apoiadas em nossas referéncias tedricas € * Veja, por exemplo, o capitulo “Humilhacio social: humilhacio politica”, de José Moura Gonsalves Filho, ¢ “Para cuidar da dor do aluno negro gerada no espago escolar!”, de Elisabeth Fernandes de Sousa 99 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR em nossas praticas nas intervengées nas escolas, duas psicélogas da equipe do Servigo de Psicologia Escolar da USP, Cintia Copit Freller ¢ eu, partimos para desenvolver uma abordagem em atendi- mento psicolégico a que chamamos Orientacao 4 Queixa escolar. Trata-se de uma abordagem que parte de uma determina- da concepgao da natureza e da génese da queixa escolar, entendida como aquela que tem, em seu centro, 0 processo de escolarizacao. Trata-se de um emergente de uma rede de relacdes que tem como personagens principais, via de regra, a criangaladolescente, sua escola e sua familia. O cendrio principal em que surge e é susten- tada é 0 universo escolar. Assim, nosso sujeito de investigacao/intervengao é esta rede como as relacées entre seus integrantes desenvolvem-se. Consi- derando que um momento é construfdo ao longo de uma histéria que lhe dé sentido, conhecer e problematizar tal histéria inclui-se necessariamente no atendimento. Nosso objetivo é conquistar uma movimentacado nessa rede dindmica que se direcione no sentido do desenvolvimento de todos os seus participantes e da superacdo da queixa escolar, que se sustente sem mais necessidade do atendimento em Orientagdo a Queixa Escolar”. Dai nossa contraposicao as praticas adaptacionistas, que entendem a superac4o da queixa escolar como uma mudanga apenas da crianga/adolescente portadora da queixa, abrangendo também sua familia, mas deixando intocada a Escola. Nesta concepgao, uma crianga que se rebela contra aulas sem sentido, autoritarismo e atos de humilhagéo, mostrando-se agressiva ¢ apreendendo pouco os contetidos pedagégicos que lhe sio impostos nestas condigées, € frequentemente considerada responsavel por suas atitudes de recusa ea meta de seu atendimento é sua adaptagao/submissio. ‘Ao longo de sua vasta obra, D. Winnicott — ¢ outros au- tores que nele se inspiraram! — indica-nos que a intervencao + Veja, por exemplo, KHAN, M, Quando a Primavera Chegar. Sao Paulo: Escuta, 1991 100 Beatriz pe Pauta Souza no ambiente concreto — e nao apenas em suas representagdes no universo simbélico do individuo — faz parte do 4mbito da agdo terapéutica. O ambiente nao se restringe ao universo familiar, mas inclui outros grupos e instituig es com participa- 40 importante na formagio ¢ desenvolvimento do psiquismo. A escola costuma ser um destes: exerce fungao estruturante da subjetividade, que se forma nao apenas nas fases precoces do desenvolvimento, ¢ é pleno de potencialidades terapéuticas ¢ também patologizantes. Daf a importancia de o psicélogo fazer do ambiente um objeto de intervengéo, em seu trabalho focado na pessoa em sofrimento que o procura. Ainda refletindo sobre a importancia do ambiente, depa- ramo-nos com a obra de Jurandir Freire Costa, Ordem Médica e Norma Familiar (1979). Nela, 0 autor analisa o papel do Movi mento Higienista na introdugao da economia de mercado no Brasil. Revela o cardter politico-ideolégico da atuagao dos higie- nistas na produgao do sentimento de incompeténcia dos pais, condigao importante para o desenvolvimento de um mercado de trabalho para os especialistas, dentre eles os psicdlogos. Mostra-nos como, a partir da autoridade adquirida por meio do grande sucesso no combate a doencas como a tuberculose e 0 célera, utilizando-se de medidas higiénicas e vacinas, os profiss nais da satide passam a encampar dreas cada vez mais diversas da vida e do comportamento humano em sua atuag4o, passando a tra- tar questées de fundo cultural como sendo da mesma natureza dos fenémenos bioquimicos. Relacionamento familiar e filtragem da 4gua passam a ser compreendidos a partir das mesmas categorias. ‘Assim, costumes que estruturam a familia colonial, como a circulagao dos escravos pela casa, so combatidos pelos higienistas que, a partir de antigas ideias racistas revestidas de aura cientifica, caracterizam os negros — e ndo as condigées em que viviam — como foco de doengas, encobrindo o racismo subjacente. Implan- ta-se o conceito de vida intima do nticleo familiar, estranho aos costumes da época, em que os filhos e seus cuidados ganham si0- 101 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR importancia. Os novos habitos desorientam os pais, que se veem des- pojados de sua competéncia ¢ acusados de responsaveis por maleficios ¢ patologias da familia de varias naturezas. S4o instados a procurar ¢ seguir as orientacdes dos especialistas, supostos detentores tiltimos de todo o saber sobre este ampliadissimo campo da satide. A psicandlise € também parte do saber competente a partir do qual se opera essa desconstrugéo. Desse modo, prepara-se 0 solo para o cultivo do mercado de trabalho dos especialistas, den- tre os quais figuram os psicdlogos. Costa (1979) oferece-nos a possibilidade de tomarmos cons- ciéncia do quanto, ao desconsiderarmos a potencialidade do ambiente e superestimarmos a necessidade de nossa intervencéo nos cuidados com as criangas ¢ adolescentes com dificuldades de escolarizacao, estamos a servigo de uma estrutura de poder em que o lucto sobrepée-se ao bem-estar da coletividade. As contri- buigdes do autor, portanto, integram os fundamentos de nossa atuagao para além do mundo interno da crianga/adolescente com dificuldades escolares. Levando em conta concepgées como as expostas, estrutu- ramos nossa abordagem a partir de principios técnicos como: - colher e problematizar as verses de cada participante da rede (crianga, familia ¢ escola); = promover a circulacao de informagées e reflexdes pertinen- tes e integrag4o ou confronto das mesmas dentro desta rede, propiciando releituras e buscando solugées conjuntamente; - identificar, mobilizar e fortalecer as poténcias contidas nes- ta rede, de modo que ela passe a movimentar-se no sentido da superagao da situagéo produtora da queixa. Trata-se de uma abordagem breve e focal. Breve, por dois motivos essenciais: primeiramente, porque nosso objetivo nao é passar a integrar esta rede até a superacao da configuracao na qual a queixa emergiu, mas fazé-lo apenas até a conquista de sua movimentacao no sentido de tal superagao ea 102 Beatriz pe Pauta Souza identificagio de condigées desse movimento sustentar-se sem nossa participagao. O segundo motivo pauta-se em Winnicott que, em Consul- tas terapéuticas (1984), indica que, nos primeiros encontros com © terapeuta, este é constituido pelo paciente como objeto subjeti- vo. Isto é, o terapeuta tem uma existéncia objetiva, mas esta é envolta pela subjetividade do paciente. Se esta necessidade é de- vidamente acolhida pelo terapeuta, o paciente o constitui como aquele que o entende ¢ que é capaz de ajudé-lo. Este momento efémero é extremamente poderoso do ponto de vista terapéutico, podendo produzir mudangas profundas se bem manejado. E nes- se tempo, em que esse movimento estd presente, que operamos. O proceso todo (exceto o Acompanhamento) costuma du- rar por volta de trés meses. E focal, porque se centra na queixa escolar. Isto nao sig- nifica que nos restrinjamos apenas Aquilo que diz respeito diretamente a ela, mesmo porque uma abordagem assim restrita nao daria conta de nosso objeto. Consideramos um campo bas- tante amplo de investigagao/intervencao, porém com o olhar voltado principalmente para as relagées dos contetidos emer- gentes em tal queixa, a partir da busca pela compreensio da mensagem que a queixa comunica. Acolher a necessidade do paciente de nos constituir como terapeutas na condicao de objeto subjetivo nio significa uma postu- ra passiva. Pelo contrario, entendemos que uma postura ativa é especialmente importante em atendimentos psicoldgicos 4s queixas escolares. Ela € mobilizadora dos recursos dos atendidos, se assumida buscando-se uma relacao horizontal com os mesmos. Uma relacio que nao os empobrece em fungao de um suposto saber, mas que os acompanha e com eles compartilha saberes, constituindo-os como individuos capazes de serem sujeitos de sua prépria historia. Tal postura relaciona-se também a questio do tempo, que no caso das queixas escolares tem uma especificidade que nao pode ser ignorada: o tempo escolar, o tempo do ano letivo. Conquistar a 103 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR superagao da situago de fracasso dentro destes parametros, se esta possibilidade existir sem violentar 0 tempo psicolégico, deve consti- tir-se numa meta de trabalho terapéutico, uma vez que sabemos 0 quanto avangar na carreira escolar sem a aquisig¢ao dos conhecimen- tos e competéncias correspondentes ou enfrentar uma repeténcia costumam ser situagGes que tendem a dar saltos em seu potencial de produgao de fracasso ¢ sofrimento a cada passagem de série. Falo aqui pensando na Promogio Automatica em que se converteu a po- litica de Progressio Continuada ou de ciclos na Educacio’. A partir dos fundamentos expostos até aqui, estruturamos uma forma de atender que nao é rigida, pois a consideragio das singularidades esté na esséncia de nosso trabalho, que consiste nos seguintes procedimentos: Triagem de orientacdo Uma vez que somos procurados quase sempre pelos pais, é por eles que comecamos nosso trabalho, entendendo que, até este momento, sio os demandantes, Nesse primeiro encontro, valo- rizamos a presenca do pai, sempre que possivel, dado que a tendéncia ainda é, apesar de todas as conquistas feministas das tiltimas décadas, a vinda apenas da mie. Solicitamos que seja tra- zido material escolar da crianca, rica fonte de informacées. sse momento tem, por objetivos: - apresentar a modalidade de atendimento que oferecemos, de modo que os demandantes possam escolher estar ou nao in- cluidos no processo baseados em um minimo de informag6es; - colher a versio dos pais acerca da queixa; - investigar ¢ pensar a demanda que se apresenta, procuran- do solugées — dai a denominacao de Orientacao; > Para uma discussao mais aprofundada sobre a Progressio Continuada, veja 0 capitulo “Dificuldades de Escolarizacdo e Progeessio Continuada: uma rela- gio complexa”, de Lygia de Sousa Viégas. 104 Beatriz pe Pauta Souza - verificar se a queixa é ou nao de natureza principalmente escolar, estabelecendo prioridades em caso de necessidade de atendimento, verificando se o atendimento que oferece- mos é ou nao o mais adequado ou prioritério para 0 caso. Com relagio a investigacio, nao temos um roteiro de pergun- tas préfixado. As perguntas devem surgir como decorréncia dos caminhos que a narrativa sugere, levando-se em conta, ainda, as con- cepcdes acerca das queixas escolares expostas no inicio deste texto. Assim, quando os pais dizem que o filho esta mal alfabeti- zado ¢ nao quer ir para a escola, nossas perguntas iniciais tm o intuito de entender melhor, com mais profundidade, o querem dizer com isso. Assim, pedimos exemplos e circunstancias em que essas manifestagdes da crianga ocorrem. Pedimos que os pais fa- lem-nos sobre o histérico de seu filho na relagao com a escola e com os conhecimentos escolares (€ comum a necessidade de uma atengao especial a alfabetizacao), procurando resgatar 0 momen- to e circunstancias em que a queixa iniciou-se ¢ se instalou. Nunca pedimos, logo em seguida a essa narrativa sobre a queixa escolar, informagées acerca de gravidez, amamentacio, desenvolvimento neuropsicomotor, relacionamento com os pais, constelagao familiar. Estas perguntas podem ser feitas, porém ape- nas se fizerem sentido dentro do quadro que se vai desenhando. Do contrario, a mensagem subliminar que se passa aos pais tende aser que a queixa escolar decorre de problemas inerentes crianga c/ou a eles mesmos. Os pais sao convidados a expressar suas hipéteses, pensar junto conosco o que esta sendo trazido ¢ possiveis saidas. Avalia- mos, juntos, os recursos em jogo, bem como a poténcia ¢ os limites de cada um dos diversos ambitos de agio em questao. Este momento pode ser individual (no sentido de tratar de apenas um caso) ou grupal. Geralmente o temos realizado em pe- quenos grupos, procurando utilizar o potencial que esta forma de atendimento propicia. Ou seja, procurando que as reflexes ocorram 105 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR de maneira coletiva, o que tem produzido identificaées, mobiliza- g6es que pensar com pares — ¢ nao apenas com um especialista — conquistam, facilitado o aparecimento de informagées sobre re- cursos ¢ outros efeitos interessantes, segundo, inclusive, depoimentos espontaneos de participantes destes momentos. Con- cordamos com Jurandir Freire Costa (1984), quando diz que atividades no coletivo, principalmente, com pessoas que perten- cem as camadas populares, facilitam o diélogo horizontal. Essas trazem a possibilidade de as pessoas que delas participam troca- rem informagées, reflexées, solugdes e, principalmente, de poderem deixar de se perceber como os “tinicos”, os “errados”, os “desviantes”. Isto é especialmente importante quando falamos de pessoas que pertencem as camadas populares, sem garantia de seus direitos. Nio raro, a Triagem de Orientagao encerra o atendimento. Isto ocorre, por exemplo, quando se conclui que a crianga e/ou seus pais c/ou a escola aparentemente estao encontrando solu- Ges ¢ ha sinalizagées de uma trajetéria de melhora. Nesses casos, combinamos, com os responséveis, esperar um determinado tem- po para verificar se esta trajet6ria permanece ¢, caso isto nao ocorra, que os pais retomem o contato conosco. Ocorre, também, de esse encontro ser suficiente para pro- duzir, nos pais, uma releitura da situagao tal, que eles se tranquilizam quanto 4 gravidade e/ou necessidade de ajuda do psicélogo com relacao A situagao trazida e/ou sentem-se capazes de lidar adequa- da e suficientemente com a mesma. O encaminhamento para outros atendimentos especiali- zados, tais como psicoterapias, fonoaudiologia ou atendimento em neurologia, ocorre na medida em que este recurso desvela-se, ao longo do encontro, como o mais adequado ou prioritario. Ressentimo-nos, no entanto, da precariedade do sistema piiblico de satide, que tem profissionais de satide mental em nimero abso- lutamente insuficiente frente as necessidades da populagao. Assim, encaminhar para um atendimento psicolégico gratuito é, muitas 106 Beatriz of Pauta Souza vezes, lancar esta populacao ao abandono. Ressentimo-nos, ainda, da escassez de psicdlogos clinicos que tenham um olhar para o que ocorre no cenario escolar, ofere- cendo algum suporte as escolas ou podendo ouvir o que a crianga traz acerca de seu cotidiano escolar com atengao as caracterfs- ticas e funcionamentos da escola. Isto ocorre por entendermos que, mesmo em muitos dos casos em que a intervengio na pro- blemitica psiquica nao escolar € prioritéria, 0 contato com essa instituigao pode ser de extrema importancia para o sucesso ou fracasso do tratamento. Quando entendemos que ha questées escolares importan- tes na configuragao do quadro que se desenhou e que nossa intervengdo é necessaria e prioritaria, 0 processo de atendimento em Orientacao 4 Queixa Escolar (OQE) tem continuidade. Encontros com as criancas ou adolescentes Nestes momentos, temos como objetivos: - colher a versio da crianca sobre a queixa que se tem a res- peito dela; - propiciar a conquista ¢/ou valorizagao de sua condigao de sujeito de sua prépria histéria, que percebe, pensa e inter- vém; - pensar com a crianga sobre aquilo que ela nao tem poder de determinar ou mudar, aquilo que a acomete sem abrir espago para outro gesto que nao o da recepgio do golpe; - perceber ¢ acolher suas necessidades, instaurando, reins- taurando ou cultivando a esperanga; - oferecer acolhimento para seus sofrimentos e dificuldades, de modo que possam encontrar inscrig4o no universo sim- bélico e tornarem-se pensdveis; favorecer a manifestacdo e utilizagao de suas capacidades e potencialidades, afetivas e cognitivas. 107 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR ‘A crianga € informada acerca da queixa que se tem dela, porém com o cuidado de nao criar obstaculos 4 manifestagao de outras necessidades que porventura lhe sejam mais importantes. Ao longo do proceso, procuramos garantir que ela possa pensar a existéncia da queixa, expressar sua versdo sobre a mesma e problematizd-la, buscando saidas. ‘Assim como nos encontros com os pais e todos os demais participantes do atendimento, nao temos um roteiro prefixado de perguntas ¢ procedimentos. Os encontros sao planejados um a um, de acordo com o que o processo sugere. Nao utilizamos tes- tes, mas procuramos investigar o que entendemos pertinente por meio da observagdo e interagdo com a crianca dentro de uma rela- ¢do de acolhimento, confianga e aposta em sua capacidade. Essas caracteristicas da relacéo sio importantes para que seu universo de poténcia ¢ dificuldades possa ser desvelado. Os materiais que utilizamos nao diferem dos encontrados nas ludoterapias em geral: materiais expressivos, jogos, brinque- dos, livros etc. Temos a preocupago de poder contar com materiais tipicamente escolares (papel pautado, lapis preto, bor- racha, régua etc.) e de planejar o que estar4 presente em cada encontro, segundo a singularidade que se desvela e o que 0 pro- cesso sugere de rumos investigativos e de reflexao e elaboragao. Aexploracio do material escolar é especialmente preciosa. Té- lo nos encontros, apresentado pela prépria crianga, é uma conquista que, quase sempre, propomos-nos a realizar. Por meio dele, muitos aspectos da vida escolar emergem, tais como o jogo de fazer de con- ta que sabe escrever, compartilhado por alunos e professores por meio das cépias, as técnicas didéticas, a adequagéo ou nao do que se ensina ¢ se exige na escola as necessidades ¢ possibilidades da crian- ¢a, a relagdo com os pais — muitas vezes revelada em bilhetes no caderno, —o capricho, o esforgo, o esforgo da professora em ofere- cer algo adequado e outros tantos aspectos*. © Recomendamos a leitura do capitulo “Uma proposta de olhar para os cader- nos escolares”, de Anabela Almeida Costa ¢ Santos. 108 Beatriz pe Pauta Souza A conquista da produgao escolar da crianga em atividades com sentido e carregadas de afetividade, em um ambiente acolhedor, tem revelado muitos conhecimentos onde escola e pais pensavam que nao havia quase nenhum. Além disto, tem favore- cido que a prépria crianca aproprie-se ¢ imprima movimento a capacidades que julgava inexistentes ou com as quais tinha uma relacdo penosa e envergonhada. Em geral, temos por volta de dez encontros com a crianga ou 0 adolescente, uma vez por semana. O processo pode ser individual ou grupal. Interlocugéo com a escola Costuma dar-se em dois momentos: no meio do processo, quando solicitamos da escola um pequeno relatério, e, mais a final, quando estamos de posse de tal relatério, de trabalhos com Pais e crianga e o delineamento de perguntas e orientagdes que o quadro até entéo composto sugeriu, vamos a escola. Nem sempre conseguimos esse relatério, mas isto nao nos paralisa. ‘Ao marcar esse encontro, procuramos garantir a presenga do professor, na qualidade daquele que lida diretamente com a crianga no dia a dia escolar. Este cuidado deve-se a pritica co- mum das escolas de restringir o contato 4 Coordenagao Pedagégica. Procuramos, ainda, garantir a presenga de alguém de instancias decis6rias na escola — Diretor ou Coordenador Pedagégico — para que se facilite a viabilizacio de estratégias escolares de enfrentamento das dificuldades detectadas e para ampliar a pos- sibilidade de continuidade no trabalho escolar com a crianga no caso de afastamento do professor. Esta estratégia tem também o objetivo de remeter a queixa a escola e nao 4 ago isolada de um professor, facilitando marcar que nao estamos pensando a partir da légica de culpabilizagao de alguém. E recorrente, entre psicdlogos, a fala de que é dificil dialo- gar com a escola, pois os educadores sao resistentes ¢ hostis. Nao 109 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR compartilhamos, via de regra, essa opiniao, Nossa experiéncia tem confirmado reiteradamente que é bastante possivel encon- trarmos receptividade, se buscarmos: - uma relagdo horizontal com os educadores, em que nao pres- suponhamos nossa superioridade diante destes profissionais, mas apenas nossa especialidade, com suas possibilidades e limitagées; - atentar para a presenca de preconceitos acerca dos pro- fessores operando em nés, sejam eles os frequentes preconceitos negativos, que nao levam em conta as cit- cunstancias estressantes, precdrias ¢ desestimulantes em que geralmente desenvolvem seus trabalhos, ou quaisquer outros. Este exercicio pode evitar que tais crencas impe- ¢am a experiéncia com a escola concreta e com seus agentes reais; = ouvir sua versio da queixa, fazer perguntas que ajudem a esclarecé-la e pensé-la; - perceber e valorizar seus recursos ¢ esforgos e, - levar informagées e sugestées que possam contribuir para a criagdo de sentidos e caminhos em seu trabalho. O olhar dos educadores para a crianga e para seus pais pode mudar, e a possibilidade de fortalecer e/ou mobilizar os recursos escolares surge. Mas nem sempre, naturalmente. Mui- tos s4o os casos em que o contato com a escola frustra, o que no deve, no entanto, paralisar-nos ou a crianga e a seus pais’. O contato com os educadores no espago da escola tem-se mostrado importante, pois revela aspectos do ambiente que uma conversa por telefone ou no local de atendimento nao revelaria. 70 capitulo “Por uma clinica da queixa escolar que nio reproduza a légica patologizante”, de Carla Biancha Angelucci, traz o relato ¢ reflexes acerca de um atendimento com estas caracteristicas. 110 Beatriz pe Pauta Souza Assim, podemos perceber indicios sobre o ambiente escolar: 0 clima é opressor ou agradavel? O espaco é cuidado? Ha criancas fora das classes? Quais ¢ como sdo os sons nesse ambiente? Ou- vem-se gritos de professores e alunos? Os compromissos marcados sao valorizados? Outros tantos aspectos da vida escolar vao se apresentando aos nossos sentidos e 4 nossa consciéncia. E possf- vel, ainda, perceber o entorno da escola: 0 aspecto das moradias, a presenga de policiais, igrejas ou musica, trazendo novas infor- magées e sentidos, Geralmente este encontro é tinico. Investigacao, discussio de caso ¢ busca de solugées acontecem de maneira integrada. Po- rém, em alguns casos, avaliamos ser necessério que um novo encontro aconteca e retornamos A escola. Entrevistas de fechamento Podem ser realizadas com a crianga/adolescente ¢ os pais em separado, ou ainda com a crianca/adolescente em separado e depois junto com os pais. Vale ressaltar que podem ter ocorrido outros contatos com os pais durante o proceso, na medida em que tenha sido necessatio. Por exemplo, por vezes surgem diividas e necessidade de novas informagées e esclarecimentos antes do final dos encon- tros com a crianga ou antes da visita 4 escola. Combinamos, entao, um novo encontro com os pais. Isto ocorre, também, quando ava- liamos que seria pertinente, para o bom desenvolvimento dos trabalhos, realizar uma intervengao junto a pais durante o pro- cesso e quando os proprios pais solicitam. Além dos contatos formais, ocorrem, geralmente, varias pequenas conversas em si- tuagées informais, como 0 momento em que vamos ao encontro de seus filhos na sala de espera, para o inicio da sesso de atendi- mento, ¢ quando conduzimos as criangas e os adolescentes atendidos para seus pais ao final da sesso. Este tipo de contato tem por objetivos permitir pequenas (porém muitas vezes 1 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR poderosas) intervengées e possibilitar aos pais comunicar-nos in- formagées ¢ afetos emergenciais, além de conferir um cardter humanizado para a situagao de atendimento psicolégico. Na entrevista de fechamento, objetivamos construir uma releitura do caso, a luz das novas informagées, visdes ¢ perspec tivas que o processo de trabalho pode trazer. Avaliamos 0 processo de OQE e seus efeitos, procurando pensar a relagao dos diversos envolvidos, em busca de uma mobilizagéo conjunta na diregao de se superar a situagao inicial. Combinamos um novo contato (o Acompanhamento) apés cerca de um més e meio de frequéncia 4 escola. Com isso, damos tempo para ocorrerem costumeiras (re)adaptagées ao ambiente escolar que costumam acontecer apés as férias.” Acompanhamento Este procedimento consiste, quase sempre, em um novo contato com os pais, a crianca/adolescente e a escola, Procuramos fazé-lo por telefone, para néo propiciar uma retomada dos atendimentos desnecessdria, Mas com quem e de que maneira deve ocorrer este contato? A ideia é que passemos a procurar colher, coerentemente com o atendimento, as versdes dos trés principais personagens desta trama: pais, crianga/adolescente ¢ escola. A introdugio do Acompanhamento deveu-se a diferentes raz6es. Uma delas é do fato de que os atendidos carecem muitas vezes de informagées ¢ de ajuda para enfrentar meandros e entraves burocraticos, que por vezes inviabilizam 0 acesso a recursos que decidiram procurar a partir da OQE. Em nossa sociedade clitizada, isto € especialmente verdadeiro no caso de integrantes das camadas populares. Outra é que podem ser necessarias providéncias nao previstas para sustentar o movimento que fundamentou a finalizagéo do atendimento. Nosso compromisso, real, importante para a intensidade efetividade do atendimento, nao se encerra no dia do fechamento. 112 Beatriz pe Pauta Souza Vivemos tempos de mercantilizagao das relagées, que tende a ser produzida pela logica capitalista, reduzindo pessoas a coisas a serem utilizadas e/ou descartadas. Esse modo de relagao contemporaneo tem produzido sofrimentos, especialmente nas grandes metrépoles. Na contramao desta tendéncia, realizamos um atendimento humanizado ¢ humanizador. Assim, atender & necessidade do sentimento de continuidade (X fragmentagao) das existéncias, do Real, faz parte do cuidado terapéutico. Exemplificando: observamos que um contato apés alguns meses de fim dos encontros regulares costuma possibilitar, a atendidos ¢ a terapeuta, a experiéncia de que as relacées estabelecidas no atendimento, geralmente muito significativas, foram reais, nao descartaveis. Todos continuam existindo e (se) importando. Potencializa-se 0 que tende a se instaurar j4 na finalizagao dos atendimentos, ao deixarmos nosso contato com 08 atendidos e combinarmos uma conversa dentro de alguns meses. Os motivos até aqui apontados visam ao atendimento de demandas dos atendidos. H4, porém, algumas que sao nossas: colhermos informagées acerca da efetividade ou nao de nosso trabalho, levando em conta seus objetivos', e conhecermos seus efeitos para os atendidos. Nem sempre entramos em contato com a escola. Se o momento do Acompanhamento ocorre dentro do mesmo ano letivo e escola em que o atendimento foi feito, sim. Mas se mudou 0 ano ea classe, a professora (principalmente), por vezes a escola, mudaram também, na maioria das vezes nao o fazemos. Depende do que surgir nas conversas com a familia ¢ o atendido. Quando as noticias indicam que a rede de relagées que produzira a queixa escolar est4 em um movimento de superagao nao adaptacionista ‘Nosso objetivo é conquistar uma movimentacdo nessa rede dindmica que se direcione no sentido do desenvolvimento de todos os seus participates ¢ da superacio da queixa escolar, que se sustente sem mais necessidade do atendimento OQE (vide pag. 100). 113 APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR da mesma, de modo auténomo com relag4o ao terapeuta (objetivo da OQE), nao contatamos a escola. Evitamos o risco da informacao sobre ter havido um atendimento psicolégico chamar uma atengao patologizante dos educadores para com 0 atendido, fazendo uma rachadura em um percurso de bom desenvolvimento. Levantamentos sisteméticos, ao longo de dez anos (2006 a 2016) encontraram sinalizagées bastante positivas: em cerca de 75% dos casos acompanhados, os objetivos da OQE foram plenamente alcangados, em 20% deles este alcance foi parcial e, em 10%, nao foram atingidos. Frequentemente, as pessoas consultadas referiram-se ao atendimento como um ponto de inflexao claro em carreiras escolares e trajet6rias ps{quicas que, antes, rumavam ao fracasso e ao sofrimento. Consideragées finais A partir de 2000, passamos a realizar levantamentos anuais de nossa demanda ¢ de nosso trabalho. Este procedimento tem nos revelado alguns dados de interesse, apesar dos mesmos nao terem sido submetidos a um tratamento estatistico rigoroso. Por vezes trabalhamos a partir de ntimeros absolutos pequenos, o que impossibilita uma série de afirmagées generalizantes. Porém, a repetigao ano a ano de alguns resultados nos diz que estamos diante de indicadores significativos. Ademais, o ntimero absoluto de casos a partir dos quais realizamos os levantamentos que pas- saremos a abordar — de 2001 a 2005 — nao é pequeno: foram considerados dados referentes a mais de quinhentas criangas, ado- lescentes ¢ até alguns poucos adultos inscritos em OQE. Tivemos cerca de cem inscrigdes por ano. O indice de desisténcia entre o primeiro atendimento (Tria- gem de Orientagao) e 0 inicio dos procedimentos seguintes em OQE foi, em média, de 7%. Em clinicas-escola de instituigées de ensino de psicologia, que se utilizam majoritariamente de abor- dagens tradicionais, a pesquisa de Souza (1996, op. cit.) revelou um indice de desisténcia de 38% apés a primeira entrevista. 114 Beatriz pe Pauta Souza A comparag4o destes resultados é possivel, uma vez que, como citamos anteriormente, esta mesma pesquisa apontou a pre- senga de mais de 70%, em média, de queixas escolares na demanda de 6 a 14 anos das clinicas-escola estudadas. Tal indice coincide com a proporgao encontrada em nossa demanda, apés o esclareci: mento da queixa que ocorre na ‘Triagem de Orientacao. Nossos levantamentos indicam que a desisténcia entre os que iniciam 0 processo completo de OQE é muito pequena: nos dois iltimos anos (nao temos dados anteriores) foi de 2,4%. Trata-se de situacdo bastante diversa daquela encontrada por Souza (1996, op. cit.) ao estudar os processos de psicodiagnéstico realizados em clinicas-escola. A autora encontrou um indice de evasdo de 55% durante este tipo de atendimento. Consideramos esta comparagao cabivel nao apenas pelo motivo exposto anteriormente, mas, também, em fungao da du- racao dos psicodiagnésticos analisados ser relativamente similar ade nossos atendimentos (por volta de dois meses), embora geral- mente um pouco mais longa. ‘Temos, portanto, informagées que sinalizam estarmos construin- do um atendimento que avanca em relagao as abordagens psicolégicas tradicionalmente ensinadas aos psicdlogos nas clinicas-escola. Parecem indicar que estamos acolhendo de maneira mais satisfat6ria as necessidades daqueles que procuram um atendimento psicolégico para seus filhos com dificuldades no processo de escolarizagao. Analisemos, agora, os encaminhamentos para psicoterapias ¢ outros procedimentos da 4rea de satide mental, comparando os indices da pesquisa de Souza (1996, op. cit.) em clinicas-escola e os da OQE. A autora afirma que 100%, dos que permanecem no pro- cesso psicodiagnéstico nas clinicas-escola pesquisadas até o fim, so encaminhados para diversas modalidades de psicoterapias (muitas vezes simultaneas) de médio e¢ longo prazo e outros atendimentos em satide mental. Com relagéo 8 OQE, fizemos um levantamento de enca- minhamentos realizados com todos os que nos procuraram e com 115, APRESENTANDO A ORIENTAGAO A QUEDKA ESCOLAR quem tivemos ao menos um contato direto. Ou seja, excluimos os que estavam apenas inscritos, em fila de espera para a Triagem de Orientagao. Consideramos aqueles com quem estivemos apenas na Triagem de Orientacdo e os que passaram por outros momentos mais da OQE. Este levantamento indicou que em apenas 44% dos casos em que fomos procurados ¢ tivemos no minimo um encontro, consideramos necessario ou prioritério o encaminha- mento para atendimentos psicolégicos de médio ¢ longo prazo ¢/ ou outros trabalhos de especialistas em satide mental (como fonoaudidlogos ou neurologistas), para a crianca e/ou para algum membro de sua familia’, Este indice vem a fortalecer nosso questionamento do fato de que, em clinicas-escola de psicologia, estes encaminhamentos sto feitos em 100% dos casos que passam por triagem e/ou psicodiagnéstico™. * Procurando compreender este indice de 44% de encaminhamentos, que nos parece alto, demo-nos conta que, a0 longo destes anos, tem sido alta a incidén- cia de casos que nos chegam sem que a questio escolar seja 0 motivo central ou prioritério da demanda pelo atendimento, Ainda que presente, a dificuldade escolar assume, frequentemente, papel secundério diante da gravidade e com- plexidade de situagdes extra-escola em que se encontram muitas das eriangas € adolescentes para as quais nossos trabalhos sio demandados. O encaminha- mento destes casos para atendimento psicoterépico torna-se um desdobramento previsivel — na maioria das vezes jé desde 0 momento inicial, a Triagem de Orientagio. Percebemos que estamos diante de um grave reflexo das deficién- cias do sistema puiblico de atendimento em satide mental: uma dendincia do desmonte a que vém sendo submetidas suas estruturas na cidade de $4 Paulo. ‘Muitos pais chegam a nés apés terem feito inscrigdes em diversos servicos psico- légicos, sem que tenham conseguido qualquer atendimento. Tém, na verdade, ‘uma demanda de psicoterapia para seus filhos. Mas, como nio conseguem vaga nos muitos lugares em que fazem inscrig4o e submetidos a longas filas de espera, devido ao grande deficit de recursos humanos ¢ materiais da rede piblica de satide mental, usam a estratégia de superdimensionar as dificuldades escolares na esperanca de conseguir uma vaga conosco. Um atendimento, afinal. Com ‘uma politica pablica de saiide mais comprometida com a populagio, é provavel que os encaminhamentos que realizamos para outros atendimentos em satide mental nao tivessem chegado As proporcées expostas. Nio estio considerados os casos em que a autora nio pode, pelas informa- goes constantes nos prontudrios pesquisados, identificar a continuidade ou conclusao dos mesmos. Isto ocorreu em 19% das vezes. 116 Beatriz pe Pauta Souza Sera possivel que todos os que passam por estes procedimentos necessitem efetivamente de tais encaminhamentos? Sera possivel que todos os que procuram um psicélogo por conta de questées escolares necessitem de cuidados especializados que vio além de um atendimento psicoldgico breve ou até de reflexoes e experiéncias que podem acontecer em um encontro tinico com um psicdlogo atento a natureza escolar de tais questées? Por que a intervengao de um psicélogo por um periodo de alguns poucos meses nao pode ser, em muitos casos, suficiente para potencializar a rede de relacées produtora da queixa no sentido de sua superagao, como nossa pratica vem indicando?

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