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Caps AD e Intervenção na Cultura


Francisco Leonel F Fernandes

... não é absurdo pensar que, considerando por outro lado, tudo o que
sabemos, um retorno se faça para a demarcação dessa lei que funda a
humanidade, que nos distingue radicalmente do animal e que é, portanto, a
lei do símbolo. Charles Melman.

O Contexto problemático
O que não é cultura? Ir ao médico é cultura, submeter-se a uma
cirurgia também. Mesmo tais atos, onde a necessidade aparente não dá
lugar a qualquer relativismo, mesmo eles, são culturais, isto é, indicam
uma opção pela vida, a decisão regida por um valor em torno do qual a
sociedade se organiza ao promovê-lo. Poderia não ser assim, existem
grupos ou sociedades que decidem pela morte diante de certas
circunstâncias que nós nos aplicamos em iniciativas para conservá-la.
Vou limitar-me a essa brevíssima indicação para sugerir, nesse plano de
generalidade, o valor da cultura. É claro que pretendo algo mais
específico no que diz respeito aos CAPS e, em particular, ao CAPS AD.

Em primeiro lugar, uma pequena correção categorial que pode


introduzir de uma forma interessante a problemática mais ampla da
cultura a respeito do campo da saúde mental. O termo “psicosocial”
embutido na sigla CAPS, carrega um erro de categoria, conseqüência do
enquadramento positivista que anima as formulações sobre a sociedade
entre nós. Melhor seria dizer, ou se isso não convém, melhor seria
entender que se trata efetivamente de intervenção na cultura e não
“atenção psicosocial”. Muito curiosamente, como notava o lógico Sérgio
Sampaio, divide-se o estudo da sociedade em economia, política e social
(o qual é complexificado com a adjunção, a título de prefixo, o “psico”).
Ora, não se diz que o corpo humano é dividido em cabeça tronco e corpo
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humano, diz-se que o corpo humano é dividido em cabeça, tronco e


membros. Do mesmo modo não é correto dizer que uma sociedade se
organiza em economia, política e social, o correto é dizer que uma
sociedade, ou o social, se organiza em economia, política e cultura.
Sendo está última, pelo menos nas sociedades primitivas, o pólo
dominante e do qual os outros dois vão se separar e até mesmo
ultrapassar em importância no curso da história (caso da economia nas
sociedades modernas). Questão: por quê se insiste nesse erro de
categoria? Principalmente quando se sabe, conforme alusão do
parêntesis, do predomínio do econômico?

A razão é simples, o que se chama, em geral, de social, e os


instrumentos correlatos de para seu manejo, ou melhor, sua gestão, tais
como as políticas públicas, ou os investimento no social, diz respeito ao
“lado negro” das decisões econômicas. E o que se chama de economia, a
economia propriamente dita, é o pais capitalista, o Brasil capitalista, com
suas indústrias e serviços que se espelham nos paises do 1º mundo –
aquela economia cujos cadernos especializados dos jornais alegam serem
seus fundamentos macroeconômicos consistentes. O social representa os
efeitos nocivos, sobre a grande massa da população, das decisões que
fazem com que nossa economia seja vista como consistente, pelo menos
segundo parâmetros globais (os tais fundamentos macroeconômicos), e
as políticas públicas e o investimento no social, representam os esforços
dos governos em compensarem e/ou minorarem seus efeitos nocivos,
porquanto excludentes. Vê-se que o termo “social” tanto omite a natureza
da intervenção que é realizada – em primeiro lugar econômica e após
política – quanto evita cuidadosamente aquele termo – “cultura” – que
permitiria assinalar e ressaltar os aspectos verdadeiramente
problemáticos dos trabalhos e das iniciativas que incidem sobre a massa
da população brasileira, em geral caracterizada como “pobre”, isto é, fora
do escopo da operação do capital, que em termos mais simples pode ser
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indicada como fora das possibilidades da sociedade de consumo. Em


suma, entre nós, o consumo é privilégio e não um mecanismo integrador
e formador das amplas classes médias que dão estabilidade aos paises
centrais.

Um aspecto interessante dessa manobra está no categorial mesmo


que identifica os problemas e os focos a atacar. O economicismo, embora
muitas vezes identificado como pensamento crítico, não raramente
cultiva uma estranha aliança com o modo positivista de ver as coisas: ele
fixa as questões da pobreza em torno de demandas objetiváveis e, na
medida dessa objetivação, formulam programas compensatórios. O
resultado é de conhecimento geral: o quadro da pobreza no pais não se
modifica, ao contrário, se não se agrava, permanece inalterado. Valendo-
me de uma categoria própria ao economicismo, a distribuição da riqueza
não se altera. A coisa chegou a um tal ponto que o fracasso das políticas
públicas não escandalizam mais, acostumamo-nos com a violência, com
a selvageria na ocupação urbana, com a degradação do ambiente, no
máximo fazemos críticas indignadas aos governantes da ocasião. Estes
por sua vez, de olho no que mais lhes importa – a próxima eleição – não
cansam de enumerar seus investimentos maciços no social, boa parte
deles, aliás, não é o caso de omitir esse aspecto, bastante sérios na
pretensão e na iniciativa, mas pífios quanto aos resultados. De uma
coisa, contudo, estamos certos: o social é a moeda inevitável no jogo
político, pouco importando sua eficácia, desde que a manutenção em
patamares estáveis dos já mencionados fundamentos macroeconômicos
permaneça inatacável.

A situação é trágica porque não é o caso da população não retirar


algum beneficio dessas políticas. Ao contrário, ela é, em geral,
dependente delas. A questão é que o benefício que elas retiram por outro
lado, a fixam na pobreza, vale dizer, os fundamentos da pobreza não se
transformam e as políticas se esgotam em um efeito compensatório vis a
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vis a exclusão. Contudo, as razões desse estado de coisas não são


desconhecidas, elas podem ser reportadas às complexas relações entre
as decisões históricas constitutivas de nosso pais e as reações a elas nos
mais diversos níveis e planos. É nesse contexto problemático que quero
introduzir uma discussão sobre cultura, aproveitando inclusive essa
oportunidade de estarmos reunidos e debruçados no exame desses
dispositivos – os CAPS – que justamente se enquadram como peças
importantes, num certo tipo de política pública. O que quero discutir é:
os CAPS podem ser, mesmo modestamente, um instrumento para o
avanço do processo social? É possível furar o muro compensatório no
qual se extraviam as políticas públicas no caminho do assistencialismo?
Quais seria os sinais efetivos disso? No fundo dessas questões estão
outras, mais amplas, por exemplo, faz algum sentido ainda hoje um
termo como “progressismo”, ou o por mim utilizado, “avanço social”? A
meu ver, o plano da cultura é fundamental para essa discussão. Vale
dizer, sou da opinião que se deve avaliar e observar os efeitos no plano
cultural que as intervenções na esfera das políticas públicas produzem
naqueles que são por elas atingidos, e não nos limitarmos aos
indicadores, ou econômicos (por exemplo, taxas de desemprego), ou
políticos (por exemplo, participação nas eleições).

Esse é o contexto mais amplo desse pequeno artigo. Mas o cerne


de seu tema é bem mais limitado e circunscrito, falarei em cultura e
também em linguagem, principalmente chamando a atenção para o fato
de que o fator decisivo, o fator sobre o qual me debruço, seja nas
supervisões, seja no esforço teórico de pensar a prática, está mais afeito
ao dizer, ao modo como nos dirigimos uns aos outros, mesmo ao estilo, a
como fazemos operar os mecanismos institucionais, do que ao
diagnóstico, a que nível for, do que acontece – enfim, viso mais a forma
do que o conteúdo. Falarei então, e sobretudo, da clínica e de suas
possíveis repercussões em contextos mais amplos. Finalmente, abordarei
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essas questões pela via do CAPS AD, pois nele se trata da manifestação
sintomática na cultura mais afim com o laço social.

Linguagem, Discurso
O primeiro aspecto a abordar é a cultura institucional. Trata-se de
valorizar, ou melhor, de afirmar o valor da linguagem – o tema nuclear de
qualquer discussão sobre cultura. Começo de uma forma que talvez dê
um pequeno susto: valorizar a linguagem significa reconhecer, em
primeiro lugar, que falamos uma mesma língua. Essa língua é o
português. Falar a mesma língua, não é o mesmo que partilhar
conceitos, idéias, doutrinas, escolas, preconceitos, etc., etc. Falar a
mesma língua é simplesmente isso: reconhecer que os acontecimentos,
as coisas relevantes do trabalho devem se expressar no português. Eis
uma banalidade com conseqüências bastantes inesperadas as quais
convém desdobrar.

A primeira delas é que se faz necessário extrair essa condição de


humanidade, que é uma língua viva em exercício, de sua imersão
natural, de sua mistura, de sua indistinção em relação aos eventos e os
cenários que ela torna possível e que parecem existir sem ela e, algumas
vezes, até parecem existir apesar dela. Trata-se de demarcar, até mesmo
com alguma solenidade, é o mínimo de idealismo que devemos nos
permitir – por que não? – que falar a mesma língua é a única condição
que pode unir a todos num trabalho. No mais, tudo pode divergir e nos
mais variados planos, do canalha ao santo, do pobre ao rico, do feio ao
bonito, do psicanalista ao comportamentalista...

Não é óbvio que comprometer-se com esse mínimo envolve uma


posição ética difícil, quase uma transmutação. É que comprometer-se
com a língua é também comprometer-se com as condições em que ela
pode ser efetiva, em que é explícita sua soberania, mesmo sua
hegemonia normativa. Trata-se de uma atitude de “boa vontade” para
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com a língua e algumas de suas condições de exercício, cuja pretensão é


enorme, no limite do impossível, ou seja, questionar a inércia da cultura
institucional no Brasil, principalmente nessa fronteira onde ocorre a
interação com o público, seus principais usuários: pouca participação,
isolamento das pessoas e dos grupos, disputas estéreis, organização
incipiente dos trabalhadores associada a uma aliança frágil com a
comunidade que faz cair no vazio as pretensões de valorização do
trabalho que se expressaria na remuneração justa do mesmo e na baixa
qualidade nos serviços prestados, enfim, o velha relação a três de política
com formulação edificante, péssimas condições de trabalho e de
assistência.

Outro giro nesse tema. Há uma certa provocação minha em apoiar


minha argumentação em termos tais como “boa vontade”, “falar uma
mesma língua”. Quero assinalar algo que é paradoxal, mas é assim.
Tanto “boa vontade” quanto “mesma língua” são condições para a
diferença, para o confronto e não para a identidade e o consenso apenas.
Sou de opinião que é o dissenso, o confronto prático, o enfrentamento
que fazem o processo social avançar. Mas é necessário uma certa
“moldura mínima”, justamente esse pacto em torno de extrair, em torno
de ressaltar nossa dependência em relação à língua e a algumas de suas
condições. Dentre estas a de que as enunciações concretas configuraram
discursos, se ordenam em discursos, os quais dividem os homens em
grupos, classes, ideologias, nações, etc., discursos que tendem, portanto,
a ordenar um campo conflagrado. Então, se a linguagem, através das
línguas concretas, é o que permite a sociabilidade humana, não se segue
disso, que essa sociabilidade seja a boa. Ao contrário, são freqüentes as
situações humanas que se degradam na barbárie e isso, a partir da
linguagem ela própria. É por essa razão que menciono conceitos como
“boa vontade” ou “moldura mínima”, isto é, para que a linguagem não se
degrade numa passagem para a barbárie se faz necessário um tipo
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peculiar de participação subjetiva, que ela, a língua, no curso de sua


utilização, engendre esse tipo de participação, no sentido de que os atos
de linguagem ao reincidirem uns sobre os outros não anulem as
condições mesmas desse exercício, e que os sujeitos possam então
assumir posições no curso das práticas. Que nessa relação da linguagem
com ela mesma, no curso de um trabalho concreto, o retorno dos
enunciados uns sobre os outros, a enunciação de cada um, produza esse
tipo de participação subjetiva que estaria aberto a se deixar retificar por
essas incidências das falas umas sobre as outras.

A linguagem é esse ente estranho, que inventa com lentes de


aumento e de maneira inesperada o mundo humano. Ela permite tomar
em consideração coisas que não estão presentes na experiência atual,
coisas invisíveis, coisas que não existem. Ela permite também acessar as
coisas segundo um crivo diferenciado de qualidades que vai ao infinito.
Pensem nisso, por exemplo, um cachorro está limitado ao que pode
cheirar. Mas a linguagem e seus efeitos não se demarcam da ordem das
coisas, seus efeitos sempre se precipitam como coisas. E isso vai muito,
muito longe. Por exemplo, que criticas farão a esse trabalho que
apresento? É claro que não sou meu trabalho, mas é igualmente óbvio
que o que quer que se pense dele, me atingirá. Lacan tem um aforismo
que muitos acham abstrato e difícil. Ele diz: “o significante é o que
representa um sujeito para outro significante”. Não deixa de ser
instrutivo abordar esse aforismo através de suas inflexões imaginárias e
narcísicas – nossa velha e conhecida vaidade. Nossa tendência é dizer
que não somos o que aparentamos, meu trabalho é apenas um trabalho,
um amontoado de palavras. A psicanálise vem sublinhar precisamente
esse ponto: se não somos o que aparentamos, ainda assim, meu ser está
nas aparências, sabe se lá onde. Estou tão separado das aparências, dos
predicados que as dizem, quanto estou profundamente imiscuído nelas,
alienado nelas. É por isso que o que os outros dizem, nos importa tanto –
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a ponto inclusive de nos isolarmos, de não querermos saber. Enfim, não


são as aparências que importam, o problema é que o ser de cada um está
irremediavelmente embolado nelas.

Relaciono a tematização da cultura e da linguagem, que como


disse, deve se iniciar no plano da instituição, precisamente a essas
considerações. A tarefa dos dispositivos de circulação da palavra no
trabalho institucional sempre tocam nesse ponto de decaimento da
palavra em coisa e seu principal papel, não é tanto o de evitar que isto
ocorra, visto isso ser impossível, mas o de abrir, ou melhor, sustentar
uma abertura que contorne esse decaimento e deixe passar como
referência para todos, uma relação da palavra com a palavra. Isso não é
complexo. Basta entender que, se numa reunião alguém se sente
profundamente atingido, que ele possa não encerrar o efeito do que lhe
foi dito e o atingiu tão drasticamente, no plano dessa afetação e no que
ele aí pode declinar, por exemplo, como uma crítica ou até mesmo uma
ofensa, que ele possa reportar isso como uma palavra que o atinge no
curso de um trabalho, que deve produzir como resposta outras palavras
a serem igualmente devolvidas ao trabalho. Vale dizer, é o caso do
camarada “entender” (Bem entendido! Não é necessário que esse
processo seja pacífico) que mesmo que ele tenha sido atingido, a palavra
que o atingiu não é dele e se ela produz alguma reação, questão ética por
excelência, que ele se comprometa a verte-la em palavras, e da boa
maneira, para que ela, como palavra, retorne ao trabalho.

Ora, isso não se faz sem coordenação e para utilizar um termo da


psicanálise, isso não se faz sem transferência. As pessoas e os grupos
humanos não estão dispostos a sustarem esse movimento que vai da
palavra à coisa e a realização num fechamento qualquer,
espontaneamente. Isso, por uma razão muito simples, a linguagem não
nos libera de uma exigência de satisfação, e o que satisfaz são objetos,
coisas e não palavras. Então, esse momento em que a palavra é ainda
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palavra, esse momento de suspensão é em geral angustiante para as


pessoas, ele tende a se precipitar numa resolução qualquer – que entre
outros efeitos, silencia as palavras em questão. Ou senão, fazemos a
experiência tão comum da palavra que é mera verborréia, de uma
palavra irrelevante fora do circuito da ação. Esse momento de suspensão
é tão difícil quanto necessário e a questão é: quem responde por ele,
quem o aciona, quem o garante? Com a ressalva de que esse “quem” não
é necessariamente uma pessoa.

CAPS AD & Cultura


Vou encaminhar duas historinhas para ilustrar o que tenho em
mente nesse ponto para articular com a questão da cultura. A primeira é
a seguinte. Um caminhão descarrega cimento ali na igreja da Matriz em
Botafogo. Os mendigos que fazem ponto ali, observam os operários a
movimentarem os sacos de cimento. Põem-se a cantar: “trabalha,
trabalha nego, trabalha, trabalha nego...”. Os transeuntes se detém,
fazem de assistir a um espetáculo. Os operários enfurecidos partem para
cima dos mendigos. Estamos no meio da comédia. Estes fogem, o público
separa, ri. O motorista do caminhão chama os operários à tarefa. E tudo
recomeça.

Está representado aí, literalmente, trata-se de uma peça real,


todos os termos determinantes do usuário de álcool que bate à porta do
CAPS AD. De um lado o “nêgo”, o escravo preso ao trabalho alienado, de
outro, o mendigo, homens livres. O cúmulo da crueldade nessa peça é
quando o mendigo chefe, no meio da confusão, aciona seu celular de
última geração...

Segunda historinha. No CAPS, momentos após sua inauguração,


alguns usuários tratam as coordenadoras de oficinas como “Tia”. E
acrescentam, referindo-se a uma delas, ser muito interessante ver
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aqueles homens barbados colando papelzinho no expediente de uma


quarta feira.

Observem que o usuário de álcool e drogas não é alguém isolado –


como o psicótico – fora do laço social, ao contrário, muito pelo contrário,
ele vem com todas suas determinações, eles trazem tanto o botequim,
para jogar dominó com os companheiros, quanto a “patroa”, que vem
vociferar a respeito de sua pouca vergonha no grupo de família. A cena
que a palavra cristalizada, silenciada na atuação, nesse teatro real que é
sua vida coletiva, a qual transcorre entre a rua e uma casa incerta, tem
uma construção cujo traço marcante é a derrisão. O apelo ao sarcasmo,
podendo atingir o cômico, a derrisão de tudo e de todos e um
aprisionamento que se dá na fixação dos personagens que não oferece
qualquer saída digna. Sobretudo, o gozo do homem em avacalhar-se e a
depreciação das relações que poderiam lhe abrir possibilidades – o
trabalho (alienado e reenviando à escravidão) e a vida amorosa (o inferno
de uma vida conjugal sem saída para o desejo).

Como responder a isso? Aqui todos os “ismos” da cultura


universitária podem ser nefastos, mas conforme respeitem a condição
preliminar que tento encaminhar, podem abrir vias interessantes. Que
condição preliminar é essa? É essa que tenho buscado perseguir em
torno de situar, de marcar, mesmo instituir o lugar da palavra. É óbvio
que não podemos ficar indiferentes a derrisão que o drogadito traz, mas
preliminarmente a responder no caso a caso, terminologia que muitas
vezes escamoteia nossa velha conhecida, a psicologização, temos de
responder no dia a dia a essas falas, isoladas ou não, que saturam as
situações próprias ao discurso por onde eles passam, aí incluindo o
CAPS – eles só fazem reiterar a derrisão que os aprisiona. O primeiro
passo então no CAPS é uma posição discursiva que afirme o valor da
palavra. Eis o que entendo por “intervenção na cultura” em seu nível
mais básico.
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É a partir dessa posição que os outros termos do discurso serão


também afirmados, a distinção de lugares, a função das coordenações e
o valor do trabalho. Isso encaminha a questão que lancei mais acima a
cerca de quem pode encaminhar, sustentar essa exigência de marcar o
lugar da palavra, antes que ela se dilua no mundo que ela mesma
inventa – uma posição discursiva que cuida, zela, insiste no valor da
palavra como palavra.

É evidente que o CAPS AD não pode simplesmente ser um lugar de


tratamento, no sentido terapêutico do termo. Impõe-se que a coisa ali vá
mais longe. Quando o usuário faz menção a “colar papelzinho na quarta
feira”, ele está situando o impasse no qual ele está imerso, entre de um
lado, o trabalho alienado e de outro, o pseudo trabalho (igualmente
alienante) do tratamento. É por essa razão que temos no CAPS o dever de
restituir ao trabalho seu devido valor. Mas operar isto não a partir de
uma catequese, mas a partir de uma posição discursiva que coloca em
questão justamente a relação dos sujeitos com seu dizer. É a partir daí,
dessa tomada de posição basal, que se coloca a urgência de agenciar o
trabalho no CAPS com o campo mais amplo da cultura, suas
instituições, sejam elas da própria comunidade, públicas, ligadas ao
campo do trabalho, jurídicas, etc. Com isso exponho a direção de
trabalho que julgo a mais correta. O CAPS AD visa fazer reincidir no
plano da cultura, em todos os níveis (por isso não desmereço os diversos
tipos de tratamentos, posto serem eles também integrantes da cultura),
essa manifestação sintomática que é a drogadicção, que é efeito não
simplesmente da cultura, mas da organização social em seu conjunto
(isto é, como disse no inicio, incluindo aí as determinações políticas e as
econômicas). Vale dizer, no plano mais amplo, a função do CAPS, se
entendi bem uma formulação de Pedro Gabriel Delgado em sua fala na
inauguração do CAPSI em Niterói, é civilizatória, promotora da civilização
vis a vis a barbárie, na medida em que faz retornar sobre a organização
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social, no plano do discurso, seus efeitos. Isso na suposição de que é por


esse retorno, que a organização da sociedade pode se retificar.

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