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Rogério de Melo Grillo

Eloisa Rosotti Navarro

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1

1ª Edição

Guarujá
Editora Científica Digital
2020
Copyright© 2020 Editora Científica Digital

Copyright da Edição © 2020 Editora Científica Digital


Copyright do Texto © 2020 Os Autores

Editor Chefe: Reinaldo Cardoso


Editor Executivo: João Batista Quintela
Mídias e Pesquisas: Elielson Ramos Jr.
Érica Braga Freire
Erick Braga Freire
Revisão: Os Autores

Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Alberto Martins Cordeiro
Profª. Drª. Eloisa Rosotti Navarro
Prof. Me. Ernane Rosa Martins
Prof. Dr. Robson José de Oliveira
Prof. Dr. Rogério de Melo Grillo
Prof. Dr. Rossano Sartori Dal Molin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
P974 Psicologia [recurso eletrônico] : desafios, perspectivas e
possibilidades: volume 2 / Organizadores Rogério de Melo
Grillo, Eloisa Rosotti Navarro. – Guarujá, SP: Editora Científica
Digital, 2020.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-87196-09-1
DOI: 10.37885/978-65-87196-09-1

1. Psicologia – Pesquisa – Brasil. I. Grillo, Rogério de Melo.


II.Navarro, Eloisa Rosotti.

CDD 150

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

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exclusiva dos autores. Permitido o download e compartilhamento desde que os créditos sejam atribuídos
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EDITORA CIENTÍFICA DIGITAL


Guarujá - São Paulo - Brasil
www.editoracientifica.org - contato@editoracientifica.org
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 .............................................................................................................................................. 9

A NOVA FACE DA VELHICE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UMA PERSPECTIVA SÓCIO –


HISTÓRICA

Jéssica Oliveira Costa; Michelle Alves de Souza; Samya Regia Figueiredo Vieira Antero

CAPÍTULO 2 ............................................................................................................................................ 15

A BRINCADEIRA NO AUTISMO: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO - CULTURAL DE


VIGOTSKI

Ricardo Colombo Gallina; Regina Basso Zanon

CAPÍTULO 3 ............................................................................................................................................ 22

A CONTRATRANSFERÊNCIA NA PRÁTICA PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO ATUANTE NO SISTEMA


PRISIONAL

Denis Mantovani

CAPÍTULO 4 ............................................................................................................................................ 29

A CRIANÇA, A FAMÍLIA E A ESCOLA: A POTÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Ana Paula Parise Malavolta; Andressa Bittencourt Flores; Nitheli Cardoso Bissaco; Thayara Carlosso Irion

CAPÍTULO 5 ............................................................................................................................................ 36

A IMPORTÂNCIA DO ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO PARA MULHERES PORTADORAS DE


ENDOMETRIOSE

Camila Barreto; Gabriela Nascimento; Arina Lebrego

CAPÍTULO 6 ............................................................................................................................................ 39

A INSTITUIÇÃO FAMILIAR E O TRABALHO DO PSICÓLOGO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS


SOCIAIS

Claudia Maria Rinhel-Silva

CAPÍTULO 7 ............................................................................................................................................ 47

A MÚSICA COMO FACILITADORA DO ESTADO DE FLOW NO TÊNIS DE ALTO RENDIMENTO

Ana Beatriz Santos Honda


SUMÁRIO
CAPÍTULO 8 ............................................................................................................................................ 59

AS VIVÊNCIAS DE PRODUTORES RURAIS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS/RS QUE


SOFRERAM ABIGEATO

Débora Irion Bolzan; Giana Bernardi Brum Vendruscolo

CAPÍTULO 9 ............................................................................................................................................ 68

ATUAÇÃO DAS/OS PSICÓLOGAS/OS NAS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS


CONDENADOS – APACS

Flávia Cristina Guimarães Paiva Nascimento

CAPÍTULO 10 .......................................................................................................................................... 73

AVALIAÇÃO COGNITIVA DE ADOLESCENTES ATRAVÉS DA ESCALA RESILIÊNCIA E INVENTÁRIO


DO CLIMA FAMILIAR

Rosimar Conceição Rodrigues; Letícia Maia Amaral; Ronaldo Santhiago Bonfim de Souza

CAPÍTULO 11 .......................................................................................................................................... 78

BARREIRAS AO TRABALHO DO PSICÓLOGO ESCOLAR: VISÕES DESATUALIZADAS QUE


DIFICULTAM A PRÁTICA

Juan Farret Ritzel; Marcelo Moreira Cezar

CAPÍTULO 12 .......................................................................................................................................... 81

CLASSES MULTISSERIADAS: INFÂNCIA E APRENDIZAGEM

Naillê Belmonte Trindade; Rejane La Bella Flach Cunegatto

CAPÍTULO 13 .......................................................................................................................................... 86

COMPREENDO O BEHAVIORISMO RADICAL: DA LITERATURA AO CINEMA

Rogério de Melo Grillo; Eloisa Rosotti Navarro

CAPÍTULO 14 .......................................................................................................................................... 97

DEMANDAS DO PROCESSO PSICODIAGNÓSTICO: CONSIDERAÇÕES GERAIS

Raquel Furtado Conte


SUMÁRIO
CAPÍTULO 15 ........................................................................................................................................ 105

DIÁLOGOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE: RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADE E PRÁTICA


PROFISSIONAL

Daniele da Silva Fébole; Paulo Vitor Palma Navasconi; Karen Eduarda Alves Venâncio; Bárbara Anzolin

CAPÍTULO 16 .........................................................................................................................................117

ESPAÇO ESTIMULAR: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL


E AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS

Gabriel Henrique da Silva Honório; Maria Adelaide Pessini

CAPÍTULO 17 ........................................................................................................................................ 125

ESTRESSE E ANSIEDADE: ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS

Rafaela Brito; Larissa Soares; Lorena Paulino; Emília Damasceno

CAPÍTULO 18 ........................................................................................................................................ 128

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE INÁCIO DE LOYOLA E A PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL

Maria Teresa Moreira Rodrigues

CAPÍTULO 19 ........................................................................................................................................ 144

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: A PERSPECTIVA DE ESTUDANTES DE PSICOLOGIA

Cleison Guimarães Pimentel; Aline Carlos do Vale; Ana Carolina da Rocha Gonçalves; Barbara Suelen
Lima dos Santos; Kassia Thamiris dos Santos Freire; Maria Karolina Dias da Costa

CAPÍTULO 20 ........................................................................................................................................ 154

IDEAÇÃO SUICIDA EM PESSOAS IDOSAS: CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO -


COMPORTAMENTAL

Cintia Glaupp Lima dos Santos; Lívia Maria Monteiro Santos; Maria das Graças Teles Martins

CAPÍTULO 21 ........................................................................................................................................ 162

IDOSO E TECNOLOGIA: APRENDIZAGEM E SOCIALIZAÇÃO COMO FATORES PROTETIVOS PARA


UM ENVELHECIMENTO SAUDÁVEL

Cláudia Cibele Bitdinger Cobalchini ; Bruna Fernanda Alves ; Lucas Lauro da Silva; Thiago Bellei de Lima
SUMÁRIO
CAPÍTULO 22 ........................................................................................................................................ 168

INICIAÇÃO ESPORTIVA E ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE: O DISCURSO E A PRÁXIS

Maria Luiza Bertoni; Cassio José Silva Almeida

CAPÍTULO 23 ........................................................................................................................................ 177

LEITURA E MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA: ANÁLISE DE AÇÕES À LUZ DA TEORIA HISTÓRICO


CULTURAL

Luanna Freitas Johnson ; Tainara Braga Lima

CAPÍTULO 24 ........................................................................................................................................ 184

LIDERANÇA DE EQUIPES SOB SITUAÇÃO DE ESTRESSE: UMA COMPARAÇÃO ENTRE


DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES ESPECIAIS E EQUIPES DE TRABALHO

Daniel Andrei Rodrigues da Silva

CAPÍTULO 25 ........................................................................................................................................ 187

MEU PET, MEU AMPARO, MEU CAMINHO SEGURO: A HISTÓRIA DE VIDA DE PESSOAS COM
DEPRESSÃO PÓS-ADOÇÃO

Cindy Gomes Bezerra; Ewerton Helder Bentes de Castro

CAPÍTULO 26 ........................................................................................................................................ 204

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE MORTE EM CRIANÇAS SAUDÁVEIS

Julia Roveri Rampelotti ; Najla Maryla Maltaca; Vittoria do Amaral Ceccato de Lima; Cloves Antonio de
Amissis Amorim

CAPÍTULO 27 ........................................................................................................................................ 210

PERCEPÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS


QUE PROMOVEM A CRIATIVIDADE NA ESCRITA

Gláucia Madureira Lage e Moraes; Eunice Maria Lima Soriano de Alencar

CAPÍTULO 28 ........................................................................................................................................ 221

PERFIL PSICOLÓGICO DE USUÁRIOS DE CRACK

Bruna Monique de Souza; Scheila Beatriz Sehnem


SUMÁRIO
CAPÍTULO 29 ........................................................................................................................................ 235

PLANTÃO PSICOLÓGICO NA ASSISTÊNCIA A URGÊNCIA PSÍQUICA DA COMUNIDADE

Benedita Nádia Silva Pereira; Francisco Flávio Muniz Rufino; Francisca Telma Vasconcelos Freire;
Leidiane Carvalho de Aguiar; Marcelo Franco e Souza

CAPÍTULO 30 ........................................................................................................................................ 239

PRÁTICA DE MARATONAS NA LONGEVIDADE: OLHANDO PARA A AUTO - ESTIMA

Maria Arlene de Almeida Moreira; Ceneide Maria de Oliveira Cerveny

CAPÍTULO 31 ........................................................................................................................................ 247

REPRESENTAÇÃO SOCIAL ACERCA DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR PARA IDOSOS DE UM


MUNICÍPIO DO OESTE DE SANTA CATARINA

Jeane Samara Zucchi; Carmen Lúcia Arruda de Figueiredo Dagostini

CAPÍTULO 32 ........................................................................................................................................ 255

SAÚDE MENTAL DE ESTUDANTES DA ÁREA DA SAÚDE: UM ENSAIO SOBRE CURRÍCULO


INTEGRADO, HUMANIZAÇÃO E RESILIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR

Evely Najjar Capdeville

CAPÍTULO 33 ........................................................................................................................................ 263

TRABALHO HOME-OFFICE: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES À SUBJETIVIDADE DO TRABALHADOR

Tamara Natácia Mulari Coneglian; Guilherme Elias da Silva

CAPÍTULO 34 ........................................................................................................................................ 271

TRANSTORNO DO PÂNICO: NEUROBIOLOGIA, SINTOMATOLOGIA E DIAGNÓSTICO.

Melissa Tavares Lima; Suellen de Oliveira Barbosa; Sarah Medeiros Tavoglieri; Greg Luan dos Anjos
Cardoso; Marcos Vinicius Lebrego Nascimento

SOBRE OS ORGANIZADORES............................................................................................................ 274


CAPÍTULO
1
A NOVA FACE DA VELHICE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂ-
NEA: UMA PERSPECTIVA SÓCIO – HISTÓRICA

RESUMO
O crescimento da população idosa no Brasil nos remete a uma
Jéssica Oliveira Costa
UNINASSAU
reflexão sobre os cuidados que a sociedade deve ter para manter
estes idosos em condições de independência, motivados e
Michelle Alves de Souza
participantes de programas instituídos para a melhoria da qualidade
UNINASSAU
de suas vidas. Este trabalho aborda a nova face da velhice numa
Samya Regia Figueiredo perspectiva sócio histórica, tendo como objetivo conhecer como
Vieira Antero
vivem os idosos hoje e quais fatores os motivam a assumirem uma
UNINASSAU
nova postura comportamental, considerando suas limitações e suas
possibilidades. Para tanto, tomou-se como base os desafios e as
oportunidades advindos desta nova postura. Para embasamento
da pesquisa realizou-se estudo teórico sobre envelhecer nos dias
atuais com foco no novo perfil e na motivação, assumindo diferentes
papéis na sociedade. O presente trabalho utilizou como instrumento
de investigação um questionário constando de dez perguntas
respondidas por trinta alunos participantes do Curso de Memória Ativa
do Programa de Atenção Integral ao Aposentado do Estado – PAI.
Os resultados da pesquisa indicam que os idosos hoje desfrutam de
uma gama de possibilidades para que tenham um envelhecimento
bem sucedido.

Palavras-chave: Idoso; Motivação; Limitações; Possibilida-

des.
10.37885/200400131
1. INTRODUÇÃO Brasileiro de Geografia e Estatística realizado em
2010 a estimativa de crescimento da população com
65 anos ou mais, entre os anos de 1991 a 2010
“De nada adianta acrescentar anos à
passou de 4,8% para 7,4%. Sendo que no Nordeste
nossa vida, se não acrescentarmos
a população é ainda jovem, porém com o controle
vida aos nossos anos”.
de natalidade aumentando a tendência é de que a
Marcelo Salgado proporção de idosos aumente.

O Brasil está envelhecendo, isto é um fato incontestável. Em decorrência do crescimento da população idosa,
Estima-se que a expectativa de vida da população percebeu-se um avanço da ciência em relação à velhice
brasileira no ano de 2020 será de aproximadamente contribuindo e muito para a melhoria da qualidade
16,2 milhões de idosos. Deve-se este fato ao avanço de vida para as pessoas que adentram esta fase. Na
da tecnologia, ao baixo índice de natalidade e as virada do século a expectativa de vida se ampliou
melhorias das condições de vida. de 50 para 80/90 anos; isso significa que podemos
viver 1/3 a mais. Daí, o estímulo para buscar formas
O processo de envelhecimento está atrelado a uma de aproveitamento deste tempo de vida. Portanto,
fase de significativas mudanças bio-psico-sócio-cul- vemos os idosos de aproximadamente 70/90 anos
tural que de acordo com cada envelhecente, esse nas academias, universidades, espaços culturais,
processo assume uma conotação diferenciada, por excursões, nos chamados clubes da Melhor idade
vezes positiva e cheias de possibilidades, noutras, e nos trabalhos voluntários. Comprovadamente aqui
com limitações. Ter uma boa velhice é viver um pro- está o foco deste trabalho – a nova face da velhice.
cesso contínuo de adaptações e aprendizagens, con-
siderando, aqui, perdas e ganhos, autoaceitação, Com índice de natalidade cada vez mais baixo, os
acúmulo de experiências e a busca constante de avanços na área de medicina e da tecnologia e ainda
independência, e bem-estar, passando pelo prazer a crescente preocupação com a qualidade de vida,
de viver. as pessoas que envelhecem estão atingindo idades
próximas aos 100 anos.
De acordo com o Ministério da Saúde (MS) foram
adotadas diretrizes básicas que estão inseridas na É possível abordar o envelhecimento sob diversos
Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI), enfoques, além do cronológico:
tendo por objetivo promover o envelhecimento sau-
• Biológico: é o processo gradual e progressivo
dável, a prevenção de doenças e a manutenção da
que atinge todos os seres vivos;
capacidade funcional. Com base em estudos realizados,
podemos observar que a melhoria das condições de • Psicossocial: acontece quando o indivíduo apre-
vida favorece ao aumento da expectativa de vida da senta modificações afetivas e cognitivas, interfe-
população idosa. Nesse contexto, entram em cena rindo nas suas relações com os outros;
os Centros de Convivência, Clubes da Maturidade,
Escolas Específicas, dentre outros, que possibilitam • Funcional: ocorre quando a pessoa necessita
a inclusão dessa faixa etária a vários segmentos da de ajuda para desempenhar atividades básicas;
sociedade e todo um aparato para proporcionar a • Sócio-econômico: acontece por meio de mu-
esta categoria uma melhor qualidade de vida. danças decorrentes da aposentadoria.
Neste contexto, apresentam-se as seguintes questões: Considerando os estudos hoje realizados sobre o
o que motiva a pessoa idosa a vencer os obstáculos, futuro dos longevos na esfera mundial e particular-
superando as limitações encontradas no seu dia-a-dia mente no Brasil, podemos observar que a melhoria
para viver melhor? Onde encontrar recursos para da qualidade de vida do idoso, apesar do preconceito,
envelhecer com saúde e qualidade de vida? Quais discriminação e isolamento da sociedade para com
benefícios os recursos da comunidade agregam à o mesmo, e mais ainda, da velhice ser vista como
vida desta população? Para o alcance dos objetivos etapa de vida permeada de doenças, fracassos e
propostos por este trabalho realizou-se aplicação de peso social percebemos que existe hoje um esfor-
questionário seguido de entrevista com os idosos/ ço da sociedade, dos profissionais de saúde e dos
alunos da Instituição escolhida. Vale salientar que próprios longevos, para rever este quadro e oferecer
a pesquisa foi realizada num clima de harmonia e uma melhor qualidade de vida a essa população.
percebeu-se alegria dos participantes em contribuir Existe um movimento de sensibilização por parte
com o referido trabalho. da sociedade para tornar o idoso mais participativo,
o que justifica o presente trabalho. Com essa nova

2.A NOVA FACE DA VELHICE


De acordo com o censo do IBGE - Instituto
visão, criou-se as políticas públicas dirigidas a esta
parcela da população que contribui consideravelmente

10 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


para o envelhecimento exitoso. nova lei como instrumento para validar reivindicações.
O Estatuto do Idoso apresenta um campo fértil e

3.ALGUNS MITOS SOBRE A VELHICE


Velhice e Enfermidade companheiras fiéis
estimulante para que a sociedade se mobilize e exija
efetivação das Lei em benefício do idoso. Pensando
nisto, é que nos propomos a abordar as principais
– Mito! É bem verdade que de acordo com o que garantias asseguradas pelo Estatuto do Idoso.
ficamos mais velhos nosso sistema imunológico fica É considerada idosa a pessoa que tem idade igual ou
mais fragilizado, porém isso não quer dizer doença. superior a 60 (sessenta) anos. A família, a comunidade
Atualmente grande parte população da melhor idade e o Poder Público têm o dever de garantir ao idoso,
pratica exercícios, faz acompanhamentos com es- com absoluta prioridade, os direitos assegurados à
pecialistas e participa de algum grupo de atividades pessoa humana.
sociais.
Entende-se por garantia à prioridade:
Os idosos ficam melhor em isolamento – Mito!
Não se pode generalizar essa informação. Na maioria • A preferência na formulação de políticas sociais;
das vezes idosos preferem sentir-se úteis e estando
• O privilégio para os idosos na destinação de
em convívio direto com seus familiares e amigos.
recursos públicos;
Alguns acabam se distanciando por conta dos pre-
conceitos da sociedade, muito contrário ao que se • A viabilização de formas eficazes de convívio,
pensa, essas pessoas não querem e nem devem ocupação e participação dos mais jovens com
sentar numa cadeira de balanço esperando sabe os idosos;
lá o que. A vida está aí pra ser vivida.
• A prioridade no atendimento público e privado
Idosos não são produtivos – Mito! Hoje o maior
exemplo que temos são de pessoas que se aposentam • A manutenção do idoso com a sua própria família;
por tempo de trabalho, idade, tempo de contribuição • O estabelecimento de mecanismos que escla-
e continuam trabalhando e produzindo. reçam à população o que é o envelhecimento.
Criatividade e sexo não existem depois dos 60 • Garantia de acesso à rede saúde e à assis-
– Mito! Basta ir a uma Faculdade, ou instituição de tência social.
cursos técnicos para descobrir que se trata de um
mito. Fora os governantes de muitos países e grandes
empresas. E quem foi que disse que o sexo ficou
4.2 CARTEIRA DO IDOSO
para os jovens? Alguns estudos comprovaram que
as pessoas da melhor idade têm condições de ter A Carteira do Idoso é um instrumento que possibilita
uma vida sexual ativa, assim elas se permitam. o acesso à gratuidade e ao desconto em passagens
interestaduais em ônibus, trens e barcos, aos idosos

4.CONQUISTAS PARA VIVER MELHOR


de 60 anos ou mais, com renda individual mensal
de até dois salários mínimos, e que não possuem
qualquer comprovante de renda (Carteira de Trabalho
atualizada; contracheque ou documento expedido pelo
4.1 ESTATUTO DO IDOSO empregador; carnê de pagamento do INSS; extrato
de pagamento de aposentadoria ou benefício, como
Indubitavelmente, a aprovação do Estatuto do Ido- o BPC ou outro regime de previdência). A Carteira
so foi um avanço para o sistema legal brasileiro. A é impressa pela Secretaria de Assistência Social do
Constituição Federal de 1988 em seu Capítulo VII, município, mas para recebê-la, o idoso deve estar
Título VIII (Ordem Social), nos arts. 229 e 230, versa inscrito no CADÚNICO.
sobre alguns princípios e direitos assegurados aos
Lembramos, ainda, a conquista da prioridade em filas,
idosos. Os artigos expõem que o filho tem o dever
passe livre em transportes coletivos, vagas prioritárias
de ajudar e amparar o pai na velhice, enfermidade ou
em estacionamentos e 50% nas entradas de cinemas,
carência e que é um direito do idoso a participação
teatro e demais locais de apresentações culturais.
na comunidade, a dignidade humana e o bem-estar.

5.OBJETIVOS
Regras mais específicas foram, então, criadas para
regulamentar as leis infra-constitucionais, sempre se-
guindo os princípios expostos no texto constitucional. Constituem os objetos deste estudo:
Positivar um Direito é sempre proporcionar benefícios
à sociedade, é um avanço, pois poder-se-á utilizar a

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 11


5.1 GERAL oferecidos, não só pelos envolvidos na pesquisa,
Analisar a contribuição das atividades promovidas mas pelos órgãos de apoio e atenção à saúde e
para o idoso pelo Programa de Atenção Integral ao qualidade de vida da pessoa idosa.
Idoso do Estado do Ceará - PAI, na promoção da

7.METODOLOGIA
qualidade de vida dos participantes do curso de Me-
mória Ativa.
A metodologia para o desenvolvimento deste
trabalho está organizada de maneira a descrever o
5.2 ESPECÍFICOS: caminho adotado para a sua realização, contemplado
a partir do levantamento da pesquisa bibliográfica
• Analisar o estilo de vida dos idosos hoje e quais
acerca do envelhecimento na atualidade. Com base
fatores os motivam a assumirem uma nova postura
na pesquisa elaborou-se um questionário a ser res-
comportamental, considerando suas limitações e
pondido por trinta idosos participantes do curso de
suas possibilidades.
Memória Ativa do Programa de Atenção Integral ao
• Refletir sobre as representações do velho de Aposentado do Estado - PAI com o intuito de conhe-
ontem e de hoje, levando em consideração o seu cer a maneira como administram suas vidas e como
estilo de vida. ocupam seu dia. O modelo de pesquisa usado foi de
natureza qualitativa constando do referido questionário
• Conhecer o que motiva o idoso a ter interes- 10 (dez) perguntas. Após aplicação procedeu-se a
se em participar de atividades socioeducativas análise interpretativa dos resultados e a observação
e culturais. de dados escritos pelos respondentes. Este trabalho
• Conhecer as expectativas e aspirações do idoso é composto de três partes, a saber: levantamento
em relação ao futuro. da pesquisa bibliográfica sobre o tema trabalhado,
aplicação de questionários e análise dos resultados
obtidos.

6.JUSTIFICATIVA
A escolha pelo tema deste estudo deu-se pele
No levantamento da literatura, realizou-se um amplo
leque de informações sobre o tema através de lei-
relevância que o processo de envelhecimento bem turas em livros e artigos com foco no perfil do idoso
sucedido tem assumido na sociedade nos dias de da atualidade. Constando, também, de informações
hoje. Fala-se em Melhor idade, Idade Dourada, Feliz advindas de pesquisas na internet.
idade e tantos outros títulos que venham a suavizar O resultado obtido nesta etapa compõe a base teórica
o impacto da velhice nos seres humanos. A velhice é deste trabalho e orientou a construção do formulário
uma fase da vida permeada de medos, frustrações, de pesquisa.
ansiedade e tantas outras ocorrências que dificultam
a aceitação. Daí, ter-se conteúdo para desenvolver Para a realização do levantamento de dados, optou-se
um trabalho de estudo e reflexão com um rico material pela aplicação de questionário de entrevista como
para seu embasamento. Suscitando o interesse por instrumento de pesquisa mais adequado, visto que
discorrer sobre o tema. o estudo pretendia conhecer o perfil, a motivação e
as dificuldades por que passam os respondentes.
A opção por aplicar a pesquisa no Programa de Aten- O questionário foi elaborado tomando por base os
ção Integral ao Idoso fundamenta-se na variedade aspectos importantes a serem estudados e que foram
existente de cursos e atividades oferecidas por esta levantados no estudo bibliográfico. Tendo em vista
instituição a seus associados, possibilitando um rico o objetivo da pesquisa, considerou-se o número de
trabalho de investigação e observação sobre a ma- respondentes e o resultado da pesquisa suficiente
neira de como vivem os idosos em nossa sociedade, para o propósito do estudo.
foco da presente pesquisa. A pesquisa é orientada,
portanto, pela questão: Qual o fator motivacional
que leva o idoso associado ao PAI a participar das
atividades oferecidas por este órgão? 8.RESULTADOS
Este relatório apresenta os resultados das entre-
O interesse pelo tema e a realização da pesquisa
vistas realizadas para conhecer o perfil, a motivação
na instituição mencionada também se justifica pelo
e as limitações a que são submetidos os idosos hoje.
reconhecimento de demanda por serviços que pro-
movem e facilitam a vida pessoa idosa, para que Para a realização deste estudo foi utilizado o méto-
continuem com força, energia e vitalidade por um do de pesquisa qualitativa, através da aplicação de
maior período de tempo e por ser esta instituição questionários. O público-alvo dessa pesquisa foram
reconhecida pela prestação exemplar dos serviços trinta idosos/alunos do curso de memória ativa da

12 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


instituição acima mencionada. vida atual e ter expectativas positivas em relação
ao futuro, considerando que é uma fase da vida em
Através das entrevistas, foram observadas as seguintes
que a pessoa está mais exposta a riscos e crises
características pertinentes ao perfil dos participantes:
de natureza biológica, psicológica e social, aspec-
• Idade entre 60 e 92 anos tos estes, claramente observados por ocasião da
pesquisa realizada. “A doença no idoso não é uma
• Estado Civil: na maioria casados consequência inevitável do envelhecimento, mas um
• Sexo predominante: feminino processo patológico com fatores de risco identificá-
veis”. Dr. Joaci Medeiros (2001).
• Grau de escolaridade: Superior
Nas entrevistas foi possível perceber o quanto as
• Situação de moradia: maioria mora com marido pessoas que envelhecem hoje tendem a procurar por
e filhos novas razões para tocarem suas vidas com entusias-
mo, buscando os recursos disponíveis na sociedade
• Renda familiar: Entre 3 e 5 salários mínimos
como facilitador do envelhecimento exitoso. “Não
Percebemos, ainda, que os envelhecentes de hoje, há alegria maior que vir aqui participar dos cursos.
mantêm por mais tempo de vida o interesse por Eu faço dança sênior, informática e memória ativa.
estarem ativos e acreditam que o caminho para Tenho quase todos os dias da semana ocupados,
melhoria da qualidade de suas vidas passa por de- ninguém me segura” frase dita com muito entusiasmo
cisões estrategicamente pensadas e assumidas. por uma idosa de 92 anos, lúcida e relativamente
Das observações feitas destacamos aqui, alguns independente. Estamos convencidos de que manter
depoimentos ilustrativos: o idoso ativo e independente minimiza as tensões e
ansiedades dos mesmos, tornando-os preparados
1. “Eu participo de vários grupos da “Melhoridade” para enfrentar o futuro.
para continuar bem”.
Diante deste quadro, torna-se imperativo ampliar o
2. “Não desisto de meus objetivos. Estou aqui número de instituições que desenvolvem projetos e
porque me faz bem”. promovem à saúde do idoso percebendo-os como
3. “Escolhi o Curso de Memória para ficar tinindo”. seres únicos, em sua totalidade. Essa é a visão ho-
lística do ser – corpo, mente e espírito em harmonia,
4. “Estudo memória pra lembrar das coisas do considerando que é da natureza humana o instinto
dia a dia”. de preservação da vida.
5. “Estou aqui no PAI para que no futuro não ser É importante destacar o papel do psicólogo enquanto
acometido de Alzheimer”. facilitador do processo de envelhecimento ativo, pois
6. “Gosto muito da convivência com os colegas ele possibilita a socialização e manutenção deste
e de sair de casa”. idoso na sociedade.

7. “Ocupo meu dia conversando com os amigos Dessa forma, conclui-se que manter o idoso ativo
e fazendo os afazeres domésticos”. e preparado para os desafios próprios desta etapa
da vida, significa termos pessoas mais saudáveis,
8. “Agora na velhice me sinto ainda realizado por participativas, com menos conflitos e, principalmente,
estar ativo e independente”. pessoas mais felizes.
9. “O curso de memória melhora a minha vida.
Meu raciocínio anda um pouco lento, às vezes REFERÊNCIAS
me sinto confuso. ”
NEGREIROS, T. C. G. A nova velhice: uma

9.CONCLUSÃO
visão multidisciplinar. Editora Revinter, Rio de
Jeneiro – 2001.
De acordo com a pesquisa realizada o objetivo MARTINS, I. M. Felicidade na Velhice. Editora
do trabalho foi atingido. Entende-se que se faz ne- Paulinas, São Pulo – 2003.
cessário um novo enfoque sobre a velhice. Mesmo
com todas as dificuldades, a velhice deve ser vista OLIVEIRA, R. C. S. Terceira Idade: do repen-
não como o começo do fim, mas como um período sar dos limites aos sonhos possíveis. Editora
de grandes transformações. Envelhecer assusta se Paulinas, São Paulo – 1999.
não estamos preparados para as dificuldades des-
ta fase da vida. Por outro lado, o envelhecimento LORDA, C. R. Recreação na terceira Idade.
bem sucedido consiste em estar satisfeito com a Editora Sprint, Rio de Janeiro – 1998. 2ª edi-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 13


ção.

CASTRO, O. P. et al. Envelhecer um encontro


inesperado? Realidades e perspectivas na tra-
jetória do envelhescente. Editora Notadez, Rio
Grande do Sul – 2001.

Estatuto Nacional do Idoso, Editora INESP,


Fortaleza – 2011.

14 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
2

A BRINCADEIRA NO AUTISMO: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA


HISTÓRICO - CULTURAL DE VIGOTSKI

RESUMO
Este trabalho é resultado de um diálogo entre os autores para buscar
Ricardo Colombo Gallina
UFGD
novas compreensões sobre as particularidades da brincadeira no
Transtorno do Espectro Autista (TEA) a partir das contribuições
Regina Basso Zanon
de Vigotski, principalmente de seus escritos sobre a brincadeira
UFGD
e o desenvolvimento. O objetivo, portanto, foi de investigar as
potencialidades de desenvolvimento em uma criança com TEA, a
partir da análise da qualidade de sua brincadeira, incorporando os
conceitos vigotskianos. Para tanto, utilizamos como material vídeos
de sessões lúdicas nas quais foi realizada a aplicação do instrumento
PROTEA-R com uma criança de 6 anos com diagnóstico prévio de
TEA, buscando identificar na relação da criança com os brinquedos e
com a avaliadora as dinâmicas descritas por Vigotski. Dessa forma, foi
possível identificar momentos nos quais a criança estabelecia relações
significativas com os brinquedos apresentados pela avaliadora, bem
como estabelecer contato operando com os significados dos objetos,
ainda que com apoio, demonstrando as potencialidades de operar
com signos e símbolos.

Palavras-chave: Autismo; Brincadeira; Teoria Histórico-Cul-

tural; Desenvolvimento.
10.37885/200400172
1. INTRODUÇÃO camente, ditadas pelas “formas de comportamento
baseadas no uso de signos como meio de controlar
qualquer operação psicológica em particular”. Esse
domínio de signos, no entanto, não constitui o único
1.1 A BRINCADEIRA COMO ATIVI- fator no desenvolvimento. Para o autor, “apenas em
DADE DOMINANTE NO DESENVOL- um certo nível de desenvolvimento interno do orga-
VIMENTO DA CRIANÇA nismo torna-se possível dominar qualquer método
cultural [de controle do comportamento]”. Assim, é
A partir da perspectiva histórico-cultural, cuja base necessário um nível de maturação para que o de-
filosófica é o materialismo histórico de Marx e Engels, senvolvimento cultural entre em ação. No entanto,
o ser humano caracteriza-se por seu devir histórico
em relação com a cultura, isto é um ser que não a relação entre os dois fatores nesse
“nasce pronto”, mas nasce com certas potencialida- tipo de desenvolvimento é alterada
des legadas a ele pela história evolutiva da espécie, materialmente. A parte ativa é desem-
que, no contato com o mundo externo, natural e penhada pelo organismo que domina
social, age ativamente transformando a natureza
os meios de comportamento cultural
e a si mesmo. Compreende-se que o ser humano
apresentados pelo ambiente. A matu-
sempre tem “diante de si uma natureza histórica
ração orgânica desempenha um papel
e uma história natural” (MARX; ENGELS, 2007, p.
31), mobilizando-o no sentido de agir em consonân- de condição, ao invés de motivo do pro-
cia com as condições de cada situação posta pela cesso de desenvolvimento. (VYGOT-
objetividade, pelo mundo externo. Dessa forma, as SKY, 1994, p. 64)
potencialidades ditas naturais, denominadas de fun-
ções elementares, são mobilizadas e “desafiadas” Nesse momento, passaremos para a análise da
ao se confrontarem com situações propostas pela brincadeira como atividade dominante na idade
sua relação com a natureza. pré-escolar e seu papel fundamental no desenvol-
vimento da criança. Isso porque o desenvolvimento,
Vigotski nos demonstra que o trabalho guarda uma fundado no domínio dos meios culturais de controle
relação essencial com o processo de devir humano na do comportamento, vai se expressar na criança na
cultura, isto é, com o processo de tornar-se humano. brincadeira. Por isso, ela é entendida como sendo
Segundo o autor, os instrumentos de trabalho, cuja a principal forma de atividade para este período do
finalidade é controlar um processo de metabolismo desenvolvimento, a partir da qual o desenvolvimento
entre homem e natureza, são meios artificiais criados cultural se efetiva na criança.
pelo ser humano para controlar um objeto externo.
De forma análoga, os instrumentos psicológicos são Na brincadeira, essencialmente, a criança cria uma
entendidos como meios artificiais cuja finalidade é situação imaginária, e essa característica é o que
controlar os processos mentais do próprio ser humano separa a brincadeira de outros tipos de atividade
(de si mesmo ou de outros), ou seja, são criados pelo da criança. Por outro lado, a brincadeira é também
ser humano para controlar seus próprios processos uma situação com regras. Assim, podemos dizer
psíquicos. (VIGOTSKI, 1999) Portanto, o processo que a situação imaginária já contém um conjunto de
de desenvolvimento do ser humano é o processo de regras a serem seguidas. A situação imaginária pode
apropriação e internalização desses meios auxiliares condensar em si certos papeis sociais (no caso da
criados culturalmente, os chamados signos culturais. brincadeira de faz de conta), limitações de objeto (um
Aqui, é preciso fazer uma delimitação, caracterizando cavalo não pode voar), etc, e essas contingências
o que é um signo e como este se expressa e influen- próprias da brincadeira são as regras as quais a
cia no desenvolvimento psicológico. Um signo é um criança se submete. Assim, a essência dessa situação
meio auxiliar de algum recurso cultural, ou seja, de imaginária é que a criança submete sua atividade,
uma relação ou objeto externo que é apresentada adaptando e controlando seu comportamento de
de maneira significativa pelos outros à criança, cuja acordo com as regras da brincadeira.
inclusão no processo de comportamento “forma um Mas, para que essas dinâmicas próprias da brincadeira
centro estrutural e funcional, que determina toda a se efetivem, existem dois processos fundamentais
composição da operação e a importância relativa de que são condições necessárias, são eles: 1) a sepa-
cada processo separado.” (VYGOTSKY, 1994, p. 61) ração da ideia do objeto e 2) o controle dos próprios
Tendo esse pressuposto da inclusão do signo no impulsos. No primeiro caso, o que ocorre é o que
processo de comportamento como o determinante Vigotski (2008, p. 26) chamou de “separação entre
do comportamento cultural do ser humano, Vygotsky o campo visual e o semântico”. Na criança até certa
(1994, p. 58) define o desenvolvimento cultural como idade, existe uma união efetiva entre esses dois
o conjunto de operações que se sucedem histori- campos, o que na prática significa que a criança é

16 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


incapaz de descolar a ideia da situação ou do objeto. cabo como se fosse as rédeas, pular simulando uma
Um cavalo é e só pode ser aquele animal grande de cavalgada, etc). A ação da criança na brincadeira
quatro patas, com pelos, rabo e cascos, e não pode opera com os significados, mas não completamente
ser um cabo de vassoura. Isso determina, também, o separados do objeto.
que o autor denomina como “amarras situacionais”,
Isso deriva, essencialmente, da passagem de uma
que derivam de uma característica fundamental de
forma de percepção para outra, radicalmente dife-
certo estágio no desenvolvimento, quando percepção,
rente. A estrutura da percepção da criança muda
afeto e motricidade estão unidos, ou seja, a percepção
para a percepção real, aquela que não percebe no
é “um momento inicial da reação motora-afetiva”,
mundo apenas cores, formas e movimentos, mas
onde “qualquer percepção é um estímulo para a
percebe e se relaciona com objetos concretos do-
atividade”. (VIGOTSKI, 2008, p. 29)
tados de significados e sentidos. Assim, “vejo não
No entanto, na brincadeira ocorre um salto quali- algo redondo, negro com dois ponteiros, mas vejo
tativo nessa dinâmica: a criança aprende a agir de o relógio e posso separar uma coisa da outra.” (VI-
maneira descolada daquilo que vê, e essa unidade GOTSKI, 2008, p. 31)
perceptivo-motora-afetiva é dissolvida, e “a criança
No segundo caso, a criança aprende a conter o im-
aprende a agir em função do que tem em mente e
pulso de agir imediatamente, conseguindo contro-
não do que vê” ou seja, os objetos e as situações
lar seu próprio comportamento, submetendo-o às
deslocam-se da centralidade de impulsionar direta
regras da situação imaginária da brincadeira. Essa
e/ou necessariamente uma ação da criança, para
capacidade desenvolvida na brincadeira não deve
uma simples condição a partir da qual uma ação
ser tomada como um aspecto separado da função
pode ou não ser desencadeada. Dito de outro modo,
exposta anteriormente, visto que a capacidade de
conter o impulso de agir imediatamente depende da
A ação na situação que não é vista,
capacidade de operar com os sentidos e significados
mas somente pensada, a ação num dos objetos, ou da separação do campo visual e do
campo imaginário, numa situação ima- semântico.
ginária, leva a criança a aprender a agir
não apenas com base na sua percep- A partir da perspectiva histórico-cultural, compreende-
ção direta do objeto ou na situação que -se que na brincadeira a criança pode se emancipar
atua diretamente sobre ela, mas com das situações imediato-concretas e agir de maneira
base no significado dessa situação (VI- imaginativa, assimilando suas vivências, ao mesmo
tempo em que as retoma de forma criativa. Essa
GOTSKI, 2008, p. 29- 30)
compreensão de que a brincadeira não é uma sim-
ples reprodução da realidade conhecida, tratando-se
Essa separação da ideia do objeto, no entanto, é
de uma função representativa e não funcional ou
um processo longo, do qual a brincadeira faz parte
concreta, é particularmente importante para a re-
e é uma forma de transição. A criança, até certo
flexão acerca do desenvolvimento de crianças que
ponto, é incapaz de separar a ideia do objeto. Essa
apresentam peculiaridades na brincadeira, como
capacidade desenvolve-se, antes, usando um ob-
é o caso das com Transtorno do Espectro Autista
jeto externo como meio auxiliar para operar essa
(TEA). Crianças com esse diagnóstico costumam
separação. Dessa forma, para idealizar e pensar
apresentar padrões atípicos de relação com objetos
sobre um cavalo, a criança apoia-se em um cabo de
e com outras pessoas em contextos de brincadeira,
vassoura e projeta neste o cavalo, pois nele pode
sendo a dificuldade na brincadeira imaginativa (ou
montar, segurar no cabo como se fosse as rédeas,
simbólica) um dos comprometimentos comuns das
pular simulando uma cavalgada, etc, ou seja, utili-
crianças com TEA.
za o objeto para objetivar suas ações. Se, antes, o
que determinava o curso de ação da criança era o
próprio objeto, agora o objeto torna-se apenas uma
condição que pode desencadear um curso de ação,
1.2 O TRANSTORNO DO ESPECTRO
mas a criança opera não diretamente com o objeto, AUTISTA (TEA): CARACTERIZAÇÃO
e sim com seu sentido. No entanto, como essa ainda O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é atualmente
é uma forma de transição, não é qualquer objeto que definido como uma condição neurodesenvolvimen-
pode ser um cavalo, porque a brincadeira ainda não tal, com início precoce e de etiologias múltiplas, ca-
é uma operação simbólica. Os objetos passam de racterizado por comprometimentos persistentes na
dominantes para subordinados no curso de ação, comunicação social, bem como pela presença de
mas ainda são importantes na relação da criança comportamentos, atividades e interesses restritos e
com o mundo e sua brincadeira (utiliza-se o cabo de repetitivos, levando a prejuízos sociais, ocupacionais
vassoura porque nele é possível montar, segurar o e outros (APA, 2014). No que concerne à brincadeira

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 17


no TEA, estudos demonstram que a relação esta- microgenético, que se insere no arcabouço teórico
belecida entre uma criança com TEA e um objeto da perspectiva histórico- cultural. Foram considera-
muitas vezes é destituída de significado, podendo das também informações oriundas de entrevistas
o mesmo ser utilizado como parte dos movimentos semiestruturadas (de anamnese) realizadas com os
estereotipados, como alvo de fixação/interesse res- pais, conforme preconizado pelo Sistema PROTEA-R
trito ou ainda como parte de rituais. Uso repetitivo (BOSA; SALES, 2018). A análise de dados parte de
de objetos, pouca imaginação e flexibilidade, hiper recortes de episódios típicos e atípicos que permitem
ou hiporreatividade a estímulos sensoriais (dos ob- interpretar o fenômeno de interesse, no caso, a quali-
jetos e/ou do ambiente) também são características dade da brincadeira da criança, e sua relação com o
diagnósticas do TEA que podem igualmente interferir pesquisador e com os objetos. Busca-se, assim, um
na qualidade das brincadeiras (APA, 2014). Cabe relato minucioso dos acontecimentos, considerando
ressaltar que indivíduos com TEA costumam apre- indícios, pistas e signos que auxiliem na compreensão
sentar dificuldades na reciprocidade socioemocional de um processo em curso (BAGAROLLO; RIBEIRO;
(por exemplo, falha nas trocas de turnos conversa- PANHOCA, 2013). O caso foi selecionado de um
cionais; compartilhamento reduzido de interesses e banco de dados de uma pesquisa coordenada pela
emoções) e nos comportamentos comunicativos não segunda autora que foi aprovada pelo comitê de
verbais usados para iniciar e regular as interações ética em pesquisa (CEP) institucional sob protocolo
sociais (por exemplo, contato visual, gestos e ex- número 27134314.8.0000.5334, e realizada conforme
pressões faciais) (BOSA; ZANON, 2016). Tendo em a resolução 196/96 e 510/16.
vista que a brincadeira, em especial a imaginativa,

3.RESULTADOS E DISCUSSÃO
tem natureza e origem social – a criança reelabora as
formas humanas de agir a partir de suas condições
concretas de vida – destaca-se que as dificuldades
sociais características do TEA também influenciam
no desenvolvimento da brincadeira destas crianças.
3.1 MOTIVO DO ENCAMINHAMENTO
Assumindo uma postura baseada no materialismo
INICIAL E PRINCIPAIS QUEIXAS
histórico-dialético, em que os fenômenos são enten-
didos como processos em constante movimento e A busca inicial dos pais pelo serviço se deu de forma
mudança, questionamos o caráter imutável de as- espontânea e foi decorrente de um diagnóstico prévio
pectos do desenvolvimento infantil e valorizamos as de Transtorno do Espectro Autista da filha, denomi-
interações sociais estabelecidas em determinados nada aqui de J. Entre as queixas iniciais trazidas
contextos históricos na construção de comportamentos pelos cuidadores estiveram hipersensibilidade a sons,
tipicamente humanos. Sendo assim, o objetivo do peculiaridades no desenvolvimento da linguagem e
estudo é investigar potencialidades do desenvolvi- dificuldades no relacionamento social. Deste modo,
mento de uma criança com TEA a partir da análise da o motivo principal da primeira avaliação foi investigar
qualidade da sua brincadeira, considerando contextos possíveis comprometimentos nas áreas da comuni-
interativos em especial os mediados por objetos. cação, interação social, qualidade da brincadeira e
ocorrência de comportamentos repetitivos/estereo-

2.METODOLOGIA
tipados, para fins de esclarecimento dos aspectos
comportamentais do diagnóstico. A avaliação buscou
também identificar aspectos desenvolvimentais pre-
Realizou-se um estudo de caso (YIN, 2001) servados (potencialidades), nas áreas investigadas
de uma menina com 6 anos e com o diagnóstico e o adequado encaminhamento aos profissionais
prévio de TEA. A pesquisa consiste em uma análise da área. J. foi avaliada por equipe interdisciplinar
retrospectiva de uma sessão lúdica videogravada de quando tinha 3 anos e 10 meses e reavaliada quando
aplicação do Sistema PROTEA-R (BOSA; SALLES, tinha 5 e 6 anos. Em todos os processos avaliativos
2018) no processo de reavaliação da menina. As e momentos foram identificados comportamentos
sessões foram desenvolvidas pela segunda autora característicos do diagnóstico de TEA.
do estudo, em contexto de clínica-escola de Psi-
cologia. Nesse processo, a pesquisadora inclui-se Para fins do presente estudo, será analisada uma
como elemento que faz parte da situação pesquisada, sessão de reavaliação, quando a menina tinha 5
sem assumir uma posição de observadora/avaliadora anos, na qual foi administrado o sistema PROTEA-R.
neutra. Sendo assim, as suas ações no ambiente Ressalta-se que o PROTEA-R é um instrumento de
e as relações dessas ações com o comportamento observação, composto por 17 itens, que se destina a
infantil também serão materiais de análise. avaliar a qualidade e a frequência de comportamentos
característicos do TEA (isto é, comprometimentos
A pesquisa tem caráter transversal e qualitativo, sendo sociocomunicativos e presença de comportamentos
as análises baseadas pelos pressupostos do enfoque

18 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


repetitivos e estereotipados) em crianças pré-escolares frequente – como quando deu as costas durante a
com suspeita do transtorno, especialmente aquelas brincadeira livre, retraiu-se e deu pausas na intera-
não verbais, a partir de situações de brincadeira livre ção durante a sessão. É evidente que os traços de
e estruturadas. Destaca-se que a administração do natureza comunicativa e de operação/ação com os
protocolo requer um treinamento prévio, sendo uma sentidos (i.e. uso instrumental do adulto) tem suas
das autoras do presente estudo capacitada para trei- particularidades dentro da natureza do TEA e dos
nar a equipe para a sua administração. sintomas da criança em reavaliação, porém os exem-
plos mostram também potencialidades comunicativas
e significativas emergentes, e portanto a capacida-
3.2 IMPRESSÕES GERAIS TRANSMI- de latente de internalização de funções cindidas,
TIDAS E RESULTADOS DA SESSÃO que se mostram na relação entre J. e a avaliadora.
LÚDICA – PROTEA-R Por exemplo, quando J. pega um pote e entrega à
avaliadora, sem olhar, ao passo que esta pega o
A avaliação dos atos sociocomunicativos (Área I do
pote e diz “tem um au-au. Olha. Ele faz au-au.”, e
PROTEA-R) foi realizada em ambiente de brincadeira,
entrega novamente o pote para J. A menina tenta
em contexto livre e dirigido, por meio de observação
abrir o pote para pegar o cachorro e, ao perceber
da exploração dos brinquedos e dos comportamentos
que não consegue sozinha, o estende de volta para
sociocomunicativos. Tais comportamentos foram ava-
a avaliadora e diz “Au-au”.
liados com base nos seguintes eixos: 1) vocalizações,
contato visual e gestos (isolados ou coordenados No que se refere a relação com os objetos / brincadeira
entre si); 2) iniciativas ou respostas (reciprocidade e (Área II do PROTEA-R), J. operou mais da metade
espontaneidade); e 3) tipo de contexto (compartilhar dos brinquedos dispostos na sessão, de formas va-
ou buscar assistência). riadas, ocorrendo algumas explorações atípicas e/ou
repetitivas, como ao colocar vários objetos na boca e
Na sessão reavaliação, J. apresentou tanto iniciativa
cheirá-los. Apresentou boa coordenação visomotora
como resposta de atenção compartilhada, sendo a
durante a reavaliação. J. operou alguns brinquedos
primeira de frequência rara e a segunda ocasional,
(menos de 1/3) de acordo com a sua função (ex:
ambas em situações restritas e/ou repetitivas. Por
animal de silicone, máquina fotográfica e bola que
exemplo, ela entregou a melancia de pelúcia na mão
produz som e movimento), além de apresentar indí-
da avaliadora, olhando em sua direção, assim como
cios de brincadeira simbólica, porém sem conexão
comeu a “comidinha” oferecida por ela, olhando nos
de episódios e de frequência rara. Por exemplo, ela
seus olhos. Vale registrar que, na maioria das vezes,
deu água para um cachorro em uma xícara apre-
J. pareceu mais interessada no objeto do que na
sentada pela avaliadora, produzindo gestos e sons
interação.
apropriados à situação, e o fez fugir do animal de
J. apresentou comportamento de imitação ao dar silicone, em uma espécie de pega-pega.
um tapa no brinquedo de silicone, a fim de ligar a
Nesse momento, observou-se que J. apropria-se de
luz, após a avaliadora lhe mostrar como operá-lo.
um objeto apresentado pela avaliadora e o utiliza
Porém, ela também apresentou, ocasionalmente,
funcionalmente, operando com seus sentidos dentro
comportamentos de emulação, como quando operou
da brincadeira, depois da avaliadora apresenta-lo
o trem e a máquina fotográfica de forma repetitiva
com palavras e relações que aludem à seu sentido
devido ao interesse sensorial. Não foram observados
próprio como objetos culturais – por exemplo, a xí-
durante a sessão comportamentos de engajamento
cara como um objeto no qual se coloca o chá e as
social não mediado por objetos.
pessoas o bebem, criando a relação da xícara com
J. apresentou sorriso difuso quando viu as bolhas os bonecos, e ainda trazendo para a atividade na qual
de sabão, por exemplo. A frequência desse compor- a criança estava interessada, a partir do cachorro,
tamento foi rara. Ela buscou contato físico e afetivo que ela estava brincando no momento, e para o qual
com a avaliadora (beijando-a durante a brincadeira a avaliadora “oferece o chá” que estava na xícara.
com as bolhas), e aceitou contato da avaliadora na Assim, a criança utiliza as mediações criadas pela
maioria das vezes, retraindo-se uma única vez (ti- avaliadora como uma ponte entre o que ela realiza
rando o braço) quando a avaliadora lhe fez carinho. sozinha e o que pode realizar no futuro, mas no mo-
mento precisa de ajuda – a própria definição da ZDI.
Em relação à busca de assistência, a menina o fez
de maneira frequente; contudo, sem coordenar con- Ao longo da sessão lúdica emergiram vários momentos
tato visual e gestos – como, por exemplo, ao puxar nos quais J. mostrou ter as potencialidades para o
a avaliadora pela mão, sem olhar, vocalizando para desenvolvimento das funções psicológicas superiores,
pedir outro brinquedo que estava em cima do armário. principalmente se tomarmos como pressuposto a lei
No que diz respeito ao comportamento de protesto/ da internalização formulada por Vigotski, segundo a
retraimento, J. apresentou de forma branda, mas qual toda função psicológica superior aparece em

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 19


cena duas vezes: primeiro no plano social, como mento na situação de brincadeira, operando com
como categoria interpsicológica, depois no plano in- os sentidos dos objetos, propiciando um salto no
dividual-pessoal, como categoria intrapsicológica. desenvolvimento a partir da ZDI, controlando o próprio
Toda função psicológica superior era, antes de se comportamento submetendo-o às regras daquela
internalizar e controlar o comportamento do próprio brincadeira, etc. Embora, é claro, cada caso de TEA
ser humano, uma relação social, uma forma de co- tem suas particularidades, suas potencialidades de
municação entre dois ou mais indivíduos. desenvolvimento e seus comprometimentos, mas
optamos por valorizar aquilo que a criança tem po-
O que realmente suscita interesse a tencialidade de desenvolver, em detrimento daquilo
nossos olhos: a conclusão de que, em que está comprometido.
um primeiro momento, toda função su- Por fim, destaca-se que a análise da sessão do PRO-
perior estava dividida entre duas pesso- TEA-R permitiu identificar áreas desenvolvimentais
as, constituía um processo psicológico preservadas e as potencialidades da menina, que
mútuo. [...] O estudo da gênese desses podem ser endereçadas em intervenções a fim de
processos mostra que qualquer proces- que, com o tempo, a qualidade das brincadeiras en-
so volitivo é inicialmente social, coleti- volvendo objetos (cenas de atenção compartilhada e
vo, interpsicológico. Isto se relaciona brincadeira simbólica) sejam expandidas, envolvendo
com o fato de que a criança domina troca de turnos, diferentes contextos e sequencias.
a atenção de outros ou, pelo contrá- Ainda, recomenda-se que a linguagem oral seja
rio, começa a utilizar consigo mesma estimulada, a fim de que a menina compreenda a
os meios e formas de comportamen- importância da fala (coordenada com outros canais)
to que, no princípio, eram coletivos. na comunicação. Vale dizer que o período restrito
A mãe chama a atenção da criança destinado à análise de dados (uma única sessão
de reavaliação), pode ter penalizado a criança no
para algo: esta, seguindo suas indica-
sentido de não ter dado tempo para J. manifestar
ções, dirige sua atenção para o que ela
todo o seu repertório social e comunicativo.
mostra: aqui nos encontramos sempre
ante duas funções separadas. Depois,
começa a ser a própria criança quem REFERÊNCIAS
dirige sua atenção e desempenha em
relação a si mesma o papel de mãe, AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION.
surge nela um complicado sistema de Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
funções, que antes estavam cindidas. mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed,
Um indivíduo ordena e outro cumpre. O 2014.
indivíduo ordena a si mesmo e ele mes-
mo cumpre. (VIGOTSKI, 1999b, p. 113) BAGAROLLO, M. F.; RIBEIRO, V. V.; PANHO-
CA, I. O brincar de uma criança autista sob
J., em vários momentos, criou um engajamento com a ótica da perspectiva histórico-cultural. Rev.
a avaliadora no qual mobilizou sua atividade em bras. educ. espec., Marília, v. 19, n. 1, p.
direção a alguns objetivos de natureza comunica- 107-120, Mar. 2013.
tiva e/ou exploratória com os objetos que lhe eram
apresentados, mostrando que tem potencialidade de BOSA, C. A.; ZANON, R. B. Psicodiagnóstico
operar com os sentidos e significados dos objetos, e transtorno do espectro autista. In: HUTZ, C.
dando indícios de entrada na brincadeira com situação S. et al. (Org.) Psicodiagnóstico. Porto Alegre:
imaginativa, aquela que possibilita o desenvolvimento Artmed, 2016. p. 308-322.
da cisão entre o campo visual e o campo semântico,
entrando no mundo dos signos. BOSA, C. A.; SALLES, J. F. Sistema PROTEA-
-R de avaliação da suspeita do transtorno do

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Espectro Autista. São Paulo: Vetor, 2018.

GÓES, M. C. R.; LEITE, A. I. P. Cognição e


A partir do caso estudado e da particularidade imaginação: a elaboração do real pela criança
do autismo, ficam evidentes as dinâmicas apresen- e as práticas de educação infantil. In: ENCON-
tadas por Vigotski na brincadeira como uma fonte de TRO INTERNACIONAL LINGUAGEM, CULTU-
desenvolvimento na idade pré-escolar e na infância.
RA E COGNIÇÃO, 2., 2003, Belo Horizonte.
Apesar de ter características próprias do TEA, J.
Anais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
apresentou potencialidades típicas do desenvolvi-

20 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crí-
tica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner,
e do socialismo alemão em seus diferentes
profetas. São Paulo: Boitempo, 2007.

VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e seu papel no


desenvolvimento psíquico da criança. Revista
Virtual GIS, Rio de Janeiro, n. 8, p. 23-36, abr.
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psicologia. In: . Teoria e método em psicolo-
gia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 93-
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VIGOTSKI, L. S. Sobre os sistemas psicológi-


cos. In: . Teoria e método em psicologia. São
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velopment of the child. In: VAN DER VEER, R.;
VALSINER, J. The Vygotsky reader. Cambrid-
ge, EUA: Blackwell Publishers, 1994. p. 57-72.

YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e


métodos. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2001.

ZANON, R. B.; BACKES, B.; BOSA, C. A. Dife-


renças conceituais entre resposta e iniciativa
de atenção compartilhada. Revista Psicologia:
Teoria e Prática, São Paulo-SP, v. 17, n. 2, p.
78-90, maio-ago. 2015.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 21


CAPÍTULO
3

A CONTRATRANSFERÊNCIA NA PRÁTICA PROFISSIONAL


DO PSICÓLOGO ATUANTE NO SISTEMA PRISIONAL

RESUMO
O estudo da criminalidade, do encarceramento e das consequências
Denis Mantovani
UEM/PR
dele na saúde mental dos apenados tem exigido que a prática do
profissional psicólogo se adeque a um setting totalmente diferente
do consultório particular. Considerando esta importância conceitual
para a prática clínica, e que atualmente a psicologia encontra-se
inserida no contexto de atendimentos no sistema prisional, considera-
se relevante levantar a hipótese sobre a possível existência de
um tipo de contratransferência específica nesse caso. Para tanto,
descreve-se como ocorre o trabalho de um psicólogo em uma
penitenciária. Em seguida são expostos pontos que mostram a
especificidade da contratransferência no contexto prisional, expondo
suas particularidades, características e possível manejo. Entre essas
características, tem-se que, devido a todos os atendimentos serem
escoltados por um agente penitenciário, as projeções e introjeções
do psicólogo incidem sobre esses dois personagens, saindo, então,
da tradicional relação dual que ocorre nos consultórios particulares,
para uma relação triangular. Contratransferencialmente, o escoltante
e a estrutura da segurança pública que gerencia a penitenciária
tornam-se depositários da projeção do superego, pressionando o
psicólogo, de forma inconsciente; e o paciente-apenado-criminoso
torna-se depositário da projeção do id do profissional, que se verá
defrontado a seu lado instintivo primitivo; restando ele próprio como
ego-mediador entre esses dois eixos contratransferenciais.Manejar tal
contratransferência torna-se de suma importância em uma instituição
muitas vezes hostil à prática psicológica e na qual o sofrimento
humano se revela de forma dramaticamente crua.

Palavras-chave: Contratransferência; Psicanálise; Sistema

Prisional.
10.37885/200400171
1. INTRODUÇÃO impactam com relevância no trabalho que ele (pro-
fissional) realiza.
O estudo da criminalidade, do encarceramen- Considerando que a intervenção do psicólogo se
to e das consequências dele na saúde mental dos insere em uma relação dialética com seu paciente e
apenados tem aguçado vários questionamentos na com a instituição em que ele trabalha; ou seja, simul-
contemporaneidade. Questiona-se qual caminho seria taneamente quando intervém, sua prática também
o mais justo para lidar com alguém que rompe os é modificada, produzindo uma nova interpretação;
limites éticos e morais mais caros e estruturantes conceitos que ele operaria em um lugar não neces-
à nossa sociedade. Projeções futuras e políticas sariamente ocorreriam da mesma maneira em outro.
públicas são pensadas caso haja continuidade do
modelo de aprisionamento atual, assim como se bus- O sistema prisional é uma instituição com uma repre-
ca identificar a causa de o que leva uma pessoa a sentação social bastante negativa, com um setting
exterminar outra, ou a cometer uma violação sexual peculiar, com internos reclusos portadores de condi-
- acting-outs puros. ções psicopatológicas que exigem atenção especial
dos psicólogos. É um lugar em que as pulsões (de
Assim, o trabalho do psicólogo nesses locais torna-se vida; de morte) apresentam-se em sua forma crua,
desafiador, e para alguns, algo bastante inóspito e descritas na história de vida dos pacientes-apenados.
árido.
Com o número de encarceramentos crescendo a
Para auxiliar na dissolução desse desafio, traz-se à cada ano, foi necessário que a psicologia “entrasse
tona o conceito psicanalítico de contratransferência. na penitenciária” a fim de tratar das questões de
Mesmo abordagens díspares e que não guardam saúde mental dos internos ali custodiados.
relação conceitual com a psicanálise utilizam esse
conceito em sua prática psicoterápica, evidenciando Este estudo tenta investigar a existência de uma
seu relevo. contratransferência específica neste local de trabalho,
suas características e possível manejo.
A contratransferência tem sido objeto de estudos
no campo da psicanálise desde a sua definição por Como método de pesquisa qualitativo/compreensivo,
Sigmund Freud, no começo do século XX, sobretudo a psicanálise tem como objetivo de pesquisa a “apre-
devido à interferência que ela provoca na prática ensão e interpretação da relação de significações
profissional. de fenômenos para os indivíduos e a sociedade”
(TURATO, 2003, p. 156-7).
A partir disso a subjetividade do profissional passa a
ser encarada sob um viés de maior complexidade e A psicanálise enquanto método de investigação do
torna-se parte ativa do cenário psicólogo - paciente, psiquismo humano utiliza o critério evolutivo, onde
abandonando a concepção positivista de “cientista as manifestações patológicas e não-patológicas são
da mente” imparcial, neutro e distante, então em estudadas levando-se em conta as vivências do indi-
voga na psicologia experimental (anterior a Freud) víduo, suas experiências de gratificação, frustração,
(SCHULTZ, 2004). privação e suas consequências dentro do aparelho
psíquico. A psicanálise, ainda, considera o contex-
A contratransferência funciona como um radar sensível to em que os fenômenos psíquicos ocorrem. Este
às variações do campo relacional, isto é, como uma contexto se constitui pelas condições biológicas do
antena que capta, inconsciente e conscientemente, o indivíduo, sua psicodinâmica (como se dá o funcio-
que se passa tanto durante a sessão de atendimen- namento entre as instâncias psíquicas), e a realidade
to com o paciente, quanto em relação à instituição social e cultural em que ele está inserido - neste
em que o profissional desempenha suas atividades. caso, particularmente, será a penitenciária. Somente
Capta, e, muitas vezes apenas inconscientemente, dentro deste contexto fenômenos mentais podem
produz efeitos desta captação. ser analisados (KUSNETZOFF, 1982).
Sendo assim, torna-se indispensável uma análise Partindo dessa base teórica analisar-se-á a contra-
da contratransferência sob pena de a eficácia da transferência, e como ela se desenvolve no setting
intervenção psicoterapêutica ser comprometida se- penitenciário. Delimitarei como se dá esse setting,
veramente por um estímulo alheio à condição mental usando minhas observações decorrentes do meu
do paciente. O manejo da contratransferência é de cotidiano de psicólogo do sistema prisional.
inteira responsabilidade do psicoterapeuta (ETCHE-
GOYEN, 2004). O “setting penitenciário” é bastante diverso do set-
ting clínico, descrito detalhadamente na literatura
Em determinados locais de trabalho, o profissional psicanalítica.
pode sentir que essas variações de campo - ou
perturbações - sejam de tão modo massivas que O setting influencia tanto a própria construção teó-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 23


rica interna do psicólogo que atende os apenados, Muitos atendimentos psicológicos são determina-
quanto à prática em si. “Setting” é definido como dos judicialmente. Evidentemente que, observando
um conjunto conceitual que contempla elementos o Código de Ética, o psicólogo faculta ao apenado a
tais como o lugar em que as sessões acontecem, decisão de participar. Mas como existe a demanda
sua disposição espacial, a relação do sigilo, a fre- judicial, quase todos preferem participar, por teme-
quência das sessões, à demanda do paciente, se rem consequências negativas em seus processos
é espontânea ou não, e também o contrato firmado judiciais. Surge, pois, um vínculo contaminado, vi-
entre psicólogo e paciente, além da ética à que o ciado, em que o paciente não está ali, mas finge
psicólogo se subordina, no sentido de observar o estar para conseguir um benefício ou para fugir de
dever de preservar a saúde mental do paciente, in- um malefício jurídico. Isso cria um vínculo altamente
dependente dos sentimentos que nele despertem corrompido, uma vez que os apenados participam
(MIGLIAVACCA, 2008). dos atendimentos de maneira robótica, artificial. É
evidente que isso também faz parte da complexidade
No caso em questão, o contrato se dá entre psicólo-
do quadro psicopatológico de alguns criminosos - a
go-paciente e escoltante também, visto que ele fica na
dificuldade de criar vínculos genuínos - porém a de-
porta da sala de atendimento. Como na penitenciária
manda jurídica dentro da sala de atendimento piora
o paciente não fica a portas fechadas com o profis-
esse quadro, em vez de ajudar.
sional, e aquele não busca a ajuda deste esponta-
neamente, mas sim juntamente com um escoltante, Para tentar contornar esta situação e diminuir esta
que permanece na sala de atendimento enquanto ele contaminação, conseguimos estabelecer perante o
está algemado, o manejo dos conceitos psicanalíticos Poder Judiciário a diferenciação da atuação entre
também requer tratamento diferenciado. um psicólogo jurídico da de um psicólogo da área
de saúde. Pactuamos que o psicólogo da saúde
Nesse contexto, cabe frisar que a equipe de psicó-
procederá a tratar os sintomas psicológicos, evitar
logos do sistema prisional de que faço parte são da
seu surgimento ou reincidência, enquanto os psicó-
área da saúde, e não psicólogos jurídicos.
logos jurídicos procederiam às avaliações, incluindo
Algumas características desse trabalho devem ser o exame criminológico. Os psicólogos da área da
levadas em consideração: saúde não procedem a testes psicológicos nem re-
alizam perícias tampouco. Tal acordo nos permite
• O ambiente de privação de liberdade, que enviar relatórios de participação como resposta aos
coloca o indivíduo à distância do profissional; ofícios que demandam atendimentos, em vez de
• A demanda judicial, em que o imperativo de relatórios avaliativos - o que faz com que o vínculo
atendimento parte de um terceiro oculto (juiz); se torne menos corrompido, e que o interno participe
de maneira mais inteira, sem se sentir pressionado
• O medo de expor intimidades e conteúdos por estar ali, embora a figura do juiz seja um sujeito
desviantes por parte do interno, com receio oculto muito presente tanto no imaginário do paciente
de que essas informações possam ser usadas quanto de quem o atende.
negativamente em seu processo jurídico;
Os relatórios psicossociais para subsidiar as de-
• O atrelamento dos atendimentos à condição cisões judiciais são ponto relevante. Em Varas de
de se ter uma escolta perto da porta de aten- Infância e Juventude, por exemplo, muitas vezes é
dimento para que se resguarde a segurança exigido desse psicólogo um exercício de “passado-
do profissional; logia” - (“houve ou não abuso sexual?”); como se
isso pudesse ser atestado de maneira científica, com
• O fato de o atendimento se realizar à porta
100% de segurança. No meu caso, de psicólogo do
aberta;
sistema prisional, exige-se o inverso: “futurologia”
• O fato de o interno estar algemado durante (“o interno reincidirá ou não?”). Os relatórios são
as sessões; usados para instrução processual e muitas vezes
decisivos; acredito que os profissionais devem ser
• A imensa demanda reprimida construída muito cautelosos e cuidadosos na produção desses
durante anos de falta ou número mínimo de documentos, visto que uma palavra mal colocada
profissionais na área, dentre outras. poderá ser interpretada pelo magistrado como um
Não é possível garantir 100% do sigilo. Trabalhamos “sim” ou “não” à pergunta entre parênteses.
nesse limiar, portanto. Isso gera uma necessidade premente e permanente,
O tempo de duração da sessão depende diretamente um verdadeiro desafio, de criar um espaço híbrido
dos protocolos de segurança - estamos em local que que atenda tanto à demanda judiciária quanto à da
pertence à “segurança”, não à “saúde”. ciência psicológica, de cuja ética jamais pode se
dissociar.

24 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Construir uma ponte com as autoridades judiciárias recorrente e peculiar: o psicólogo projeta seu id no
demandantes dos relatórios torna-se importantíssimo criminoso e projeta seu próprio superego no policial
para desfazer esse mal-entendido. A contratransfe- que escolta, restando ele próprio como ego, tendo
rência do psicólogo nesse momento, entretanto, pode que mediar essas duas projeções, configurando uma
ser de atender essa demanda judiciária da maneira relação triangular, na verdade. Portanto é como se
que está posta, sem criticidade, para que ele se sin- houvesse dois pacientes.
ta “útil” ou até mesmo “importante”. SHINE (2009)
O interno quer “relatório, medicamento, visitantes,
aponta os riscos dos laudos ao observar que grande
mudança de cela, classificação para trabalho, só quer
maioria dos processos éticos no Conselho Federal de
resolver seu problema, etc.”, cometeu crimes, não
Psicologia se refere não a questões de atendimento,
internalizou a lei e só quer satisfação; características
mas a laudos, perícias ou relatórios elaborados de
do id; já o policial impõe os limites da instituição ,
maneira controversa. A vaidade profissional indica
pode se sentir em oposição ao interno, enxerga nele o
incidir nesses casos suprindo o ego do analista do
mal a ser combatido e vingado, é portador da ordem,
reconhecimento de que ele se julga merecedor. Pode
do interdito e da lei; características do superego.
acontecer também de surgir uma sensação de “deso-
rientação”, não no sentido psicopatológico do termo, Passarei a chamar essas duas projeções de “id-
mas no sentido de se sentir acuado ou atônito; por -criminoso” e “superego-policial”, lembrando que se
exemplo, ao se elaborar relatórios de atendimento trata de uma análise contratransferencial, não das
de serial killers. Mesmo sendo esse relatório apenas pessoas reais.
informativo, e não uma perícia, nem laudo tampouco,
uma sensação surge de que se o interno progredir de Essa tríade gera a seguinte configuração contratrans-
regime a partir do seu relatório e reincidir a “culpa” ferencial nesse setting: identificação com algum do
será sua (do profissional), e o inverso também: se par ou oposição a algum do par.
ele ficar retido e for inocente. Trata-se de um fator No que diz respeito à identificação com o “id-cri-
estressor da mais alta relevância. É importante utilizar minoso”, muitas vezes o inconsciente do psicólogo
esses sentimentos para autorreflexão e proceder pode se identificar com as histórias dos pacientes
da maneira apropriada, verificando se a demanda presos, histórias de sofrimento, e também se iden-
judiciária coincide com os princípios da profissão, tificar com a situação de poder dispor das pulsões
consultar outros profissionais - daí a necessidade de a seu bel-prazer, partindo da premissa psicanalítica
se construir pontes - consultar a literatura específica de que todo ser humano possui fantasias agressivas
e observar o Código de Ética profissional. e sexuais as mais viscerais e primitivas (FREUD,
Considerando as variáveis envolvidas no trabalho 1923; KUSNETZOFF, 1982).
do psicólogo no sistema prisional verifica-se que em A identificação com o “superego-policial” decorre que,
três situações principais a contratransferência se uma vez inscrito na cultura, somos convencidos a
manifesta com relevância: a relação entre psicólo- abandonar os desejos do “id-criminoso”. Então surgem
go e instituição prisional; a relação entre psicólogo as preocupações de “se o interno está mentindo”,
jurídico e o papel de psicólogo da saúde; e a díade “se está tentando manipular para ganhar algum be-
psicólogo - paciente-preso, na dinâmica dos aten- nefício”; surgem fantasias de “vou ser mais assertivo
dimentos individuais. para passar a impressão de ser rigoroso para atender
A respeito da relação entre psicólogo e instituição e conquistar a confiança do superego-policial” – o
prisional, há um contexto em que a instituição “de- que nos remete a conflitos edipianos.
sarma” e poda sua “potência”, sendo que algumas A oposição ao “id-criminoso” muitas vezes surge como
reações são esperadas e ocorrem entre os profis- um sentimento de tristeza, de pesar, de luto, ao ver
sionais, e pode-se até mesmo fazer um paralelo alguém que não consegue se controlar; passando
com o complexo de castração: a recusa, gerando a por sofrimentos terríveis e, principalmente, fazen-
revolta; e a inércia. do outras pessoas – as vítimas – e outras famílias
Ocorre muitas vezes a confusão de papéis entre passarem por sofrimentos terríveis também. Por
um psicólogo da saúde e um psicólogo perito, e vezes também há a sensação de medo do interno
também um psicólogo do poder judiciário, gerando “eu posso ser vítima dele, então, por que ajudá-lo?”.
perplexidade no profissional. Tal confusão decorre Além disso: “o interno pode me ver como aliado e
do fato de muitas autoridades ainda enxergarem o querer me manipular, então preciso me defender”.
psicólogo apenas como um “detetive mental” capaz “Essa pessoa é perigosa, me diz coisas terríveis que
de atestar se o interno reincidirá ou não. fez na maior naturalidade; não concordo com esse
modo de vida”. Esse medo pode levar à inércia, ou
Com relação à díade psicólogo - paciente-preso, até mesmo a comportamentos de esquiva (ETCHE-
percebi que ocorre uma contratransferência muito GOYEN, 2004).

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 25


E, por fim, a oposição ao “superego-policial” surge considera relevante o estudo da carga emocional que
com o sentimento de “mesmo ele me vigiando, não recai sobre psicanalistas e psiquiatras nos atendimen-
vou obedecê-lo e continuar com meu trabalho tra- tos a seus pacientes. Para o autor, sentimentos de
tando de maneira ética quem ele odeia’’ - no caso ódio e medo podem surgir mesmo que o profissional
o “id-criminoso”. O atendimento civilizado e ético ame seus pacientes e, por isso, é necessário que
é considerado um “luxo”, e isso denuncia a carga se tome ciência desses sentimentos para que eles
agressiva da sociedade moderna. Há uma fantasia não determinem a forma como os pacientes serão
paranoide em relação ao psicólogo de que talvez tratados. O autor recomenda ainda que o ódio per-
pensem que “não nos identificamos com a vítima, de cebido claramente e mantido em um lugar à parte
que deveríamos estar atendendo às vítimas”, então seja utilizado em uma futura interpretação e afirma
atender o paciente criminoso de forma ética indica que muitas vezes os fenômenos contratransferen-
uma oposição a esse ‘superego-policial’, e também de ciais representarão o elemento central da análise.
que “atendendo de forma ética o interno, posso estar
Porque quanto mais se toma conhecimento de seus
passando a impressão de chancelar suas atitudes
ódios, medos e outros sentimentos mais destrutivos
antissociais” – o que evidentemente é fantasioso.
para a análise, menos o analista atuará esses sen-
Diante disso, é como se o psicólogo fosse o ego me- timentos em sessão (WINNICOTT, 1947).
diando os dois polos inconscientes, “id-criminoso” e
Odiar objetivamente o paciente é importante, porque
“policial-superego”, tal qual desenhado na metáfora
ele sente que, se ele consegue causar “ódio” no
freudiana exposta na obra O ego e o Id (1923): o ego
analista, ele consegue causar e alcançar o “amor”
tem o controle e coordena a ação. Ele é um cavaleiro,
(amor definido como a ligação libidinal que norteia
e seu cavalo indomável é regido pelo princípio do
os vínculos entre seres humanos e regras sociais, a
prazer buscando somente satisfação de seus desejos.
lei em particular). Obviamente que odiar o paciente
O cavaleiro tenta domar esse cavalo - Id. Simultane-
objetivamente significa odiá-lo dentro das regras da
amente, há um enxame de abelhas ferroando o rosto
ética da psicanálise e dentro do setting, um ódio dirigido
do cavaleiro, exigindo que ele controle o cavalo, ou
a algo específico, e objetivo ao que o paciente faz/
então continuarão as picadas dolorosas. Esse enxame
diz/sente/etc. Por isso WINNICOTT (1947) avisa-nos
representa o superego. O ego-cavaleiro ainda precisa
da nunca exagerada importância e essencialidade
lidar com as exigências da paisagem, para não cair
da análise pessoal do analista, que fará com que o
num buraco, por exemplo. A paisagem representa a
analista tenha cada vez menos reservatórios de ódio
realidade externa. Evidentemente Freud criou essa
pertencentes ao passado e a conflitos infantis seus;
metáfora para expor os conceitos da psicanálise que
que poderiam, de outro modo, contaminar a análise.
estava então nascendo, mas as três instâncias são
uma só: o sujeito total FREUD (1923). FERRO (1995) descreve que “na sessão analítica
devemos lidar com dois animais ferozes e perigosos”
Vê-se, então, que o psicólogo da saúde no sistema
(BION apud FERRO, 1995); “cuja poderosa natureza
prisional precisa domar seu cavalo, tranquilizar o
emocional está distante de qualquer civilização” (FER-
enxame, não sucumbir à paisagem - e lidar com ou-
RO, 1995, p. 28), então penso que ignorar o que se
tros cavaleiros, seus respectivos enxames e cavalos.
sente seria ignorar o que esses dois “animais” estão
Nesse contexto psíquico interior de verdadeira e ine- comunicando; deixando de civilizá-los, quem sabe.
quívoca turbulência contratransferencial, pode advir a
Considero a criação deste conceito (contratransferência)
revolta ou a inércia que relatei anteriormente a respeito
um dos grandes marcos de todo o referencial teórico
da relação psicólogo-instituição. Ceder a um dos polos
psicanalítico. Ao perceber que o analista também é
seria sair do “lugar do analista” (ETCHEGOYEN, 2004)
afetado quando toca no inconsciente do paciente, e
e ter uma postura antiprofissional e anticientífica. Ao
que a partir disso nasce uma nova construção sim-
mesmo tempo, conquistar a confiança do paciente
bólica entre o par, Freud rompe com a psiquiatria e a
e do policial é tarefa permanente e essencial, de
psicologia experimental que perseguiam o observador
outro modo todo o trabalho psicoterapêutico poderia
isento que estuda um objeto amorfo, como se fosse
fracassar. E o vínculo ficaria contaminado, viciado
um cientista catalogando bromélias ou borboletas.
e corrompido, como já exposto.
E mais: o analista é afetado, pode autoanalisar esta
Como apontou Heimann (1950), o analista pode utilizar perturbação no campo transferencial e avaliar que
a manifestação contratransferencial para guiar sua conteúdo do inconsciente do paciente foi ativado,
práxis. Penso que nesse caso específico ela seja útil qual ativou no seu próprio consequentemente e que
para corrigir distorções técnico-éticas - como ceder rumos tomar.
inconscientemente a um dos dois polos - e usar para
Ou seja, para além da relação binária entre cientista
manejo da interpretação.
e objeto, Freud traz a dialética para dentro da sessão
Winnicott (1947), em O ódio na contratransferência, de análise: analiso o paciente, mas quando faço isso

26 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


eu me modifico, e então a partir disso, se constrói um estender a preocupação aos demais profissionais
terceiro conhecimento, produto deste choque. Faz-me de saúde que formam as equipes.
lembrar da tese hegeliana: (o sintoma ou a transfe-
Mesmo com todos esses desafios, e tomadas as
rência) é a tese que gera a antítese (a contratrans-
cautelas necessárias, pode-se abrir um campo rico,
ferência), dando a origem à síntese (interpretação).
instigante e interessante para a atuação profissio-
Se não tivesse percebido todos esses movimentos
nal, na medida em que, atualmente, considera-se a
entre os dois inconscientes, provavelmente teríamos
atuação do psicólogo necessária não somente em
o cenário em que o analista projeta suas próprias
um consultório particular - mas em todo espaço em
fantasias no paciente, de forma autoritária, pois é
que haja sofrimento humano.
ele quem dirige a sessão, e interpreta conteúdos
seus achando que pertencem ao paciente. Portanto A instituição prisional não é um holograma. Nem
haveria complicações éticas, técnicas e teóricas caso um ‘’holograma bom”, nem um “holograma mau”,
Freud não tivesse se detido sobre o tema. mas uma criação do Real. E que, portanto, pode
ser transformada pela intervenção do profissional
Sabe-se que até mesmo outras modalidades de psico-
psicólogo, desde que esteja atento à especificidade
terapia, tais como Teoria Cognitivo Comportamental e
de sua contratransferência.
Gestalt consideram a existência da contratransferência
intrínseca à psicoterapia, ainda que lhe deem trata- No contexto prisional, com características tão espe-
mento teórico e técnico próprios (SCHULTZ, 2004). cíficas e por muitas vezes hostis à intervenção psico-
“O descobrimento da transferência, por Freud, em lógica, a interação psicólogo-paciente torna-se mais
1895, foi definitivo para o êxito ou fracasso do trata- dramática, tornando essencial que o psicólogo que
mento psicanalítico” (VIVES & ROCABERT, 2008). ali trabalhe tenha sua própria psicoterapia pessoal,
Consequentemente, a contratransferência também a fim de não sucumbir à contratransferência e a fim
concorre para o resultado, posto que é a transferência de manejá-la para interpretar o que o paciente ou o
do analista (ETCHEGOYEN, 2004). contexto triangular lhe comunicam, ampliando sua
intervenção na instituição qualitativamente.
RAMOS & RAMOS (2016), por meio de sua pesquisa,
observa que a contratransferência ocorre até mesmo
fora do setting psicanalítico, como por exemplo, na REFERÊNCIAS
enfermagem e na medicina e ilustra esse argumento
com a situação do psiquiatra que receita medica- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA.
ções em excesso para mascarar sua insegurança Código de Ética Profissional dos Psicólogos.
e sensação de incompetência e/ou estranheza em Brasília, 2005.
relação ao paciente que está atendendo. “(...) pare-
ce-me ser claro que a CT pode ocorrer em qualquer ETCHEGOYEN, R. H. Fundamentos da Técnica
relação humana’’. Psicanalítica. Porto Alegre: ArtMed, 2004.
Atender de maneira ética a um paciente que tanto
sofrimento causou, a si mesmo e a outrem, portanto, FERRO, A. A técnica na psicanálise infantil:
é um desafio angustiante. a criança e o analista da relação ao campo
emocional. Trad. Mercia Justum. Rio de Janei-
O psicólogo sofre com a ambivalência, com esse ro: Imago, 1995.
aspecto angustiante da contratransferência e precisa
também fazer sua análise pessoal para não sucumbir FREUD, S. O Ego e o Id. Rio de Janeiro: Ima-
(SOUZA & RUMIN, 2010). Pode surgir um sentimento go, 1923.
de abandono e desamparo muito forte no psicólogo,
e, como geralmente as prisões são afastadas dos HEIMANN, P. Sobre a contratransferência. Re-
centros urbanos, cria-se a fantasia de se estar “na vista de Psicanálise da Sociedade Psicanalíti-
ilha de Lost” - isto é, num lugar perdido no tempo ca de Porto Alegre, 21, 171-177, 1950.
e no espaço.
Buscou-se, nesse trabalho, analisar a suposta existên- KUSNETZOFF, J. C. Introdução à psicopato-
cia de uma contratransferência específica no trabalho logia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fron-
psicológico efetuado no sistema prisional. teira, 1982.
Verificou-se que, sim, há uma especificidade con- MIGLIAVACCA, E. M. Breve reflexão sobre o
tratransferencial nesse tipo de local. setting. Boletim de psicologia, v.58 n.129. São
Neste trabalho a ênfase decaiu sobre os psicólogos, Paulo, 2008.
mas, partindo da premissa de que a contratransfe-
rência é um fenômeno humano, da relação, pode-se
RAMOS, S.; RAMOS J. A. A contratransferên-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 27


cia segundo Paula Heimann: síntese e reflexão
crítica. Lisboa: ISPA, 2016.

SCHULTZ, D. P.; SHULTZ, S. E. História da


psicologia moderna. São Paulo: Cultrix, 2004.

SHINE, S. K. Andando no fio da navalha: Ris-


cos e armadilhas na confecção de laudos psi-
cológicos para a justiça. São Paulo: Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo,
2009.

SOUZA, J. C.; RUMIN. C. R. O serviço de


atenção à saúde mental aos trabalhadores do
sistema prisional. São Paulo: Revista Trans-
Form. Psicol. volume 3, n. 1, 2010.

TURATO, E. R. Tratado de Metodologia da


pesquisa clínico-qualitativa: construção teó-
rico-metodológica, discussão comparada e
aplicação nas áreas da saúde e humanas.
Petrópolis: Vozes, 2003.

VIVES, T. L.; ROCABERT. J. V. Reações con-


tratransferenciais e gênero do analista e ana-
lisando. São Paulo: Revista Brasileira de Psi-
canálise, volume 42, n. 4, 2008.

WINNICOTT, D. W. O ódio na contratransfe-


rência. In.: - Textos Selecionados: Da pedia-
tria à psicanálise (1931-1956). Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1947.

28 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
4

A CRIANÇA, A FAMÍLIA E A ESCOLA: A POTÊNCIA DA


EDUCAÇÃO INFANTIL

RESUMO
O presente artigo tem como objetivo apresentar considerações
Ana Paula Parise
Malavolta sobre o lugar e a implicação das figuras parentais na vida de uma
UFSM criança que adentra para o espaço da Educação Infantil. Para isso,
compartilhamos nesta escrita por meio da perspectiva do Ensaio
Andressa Bittencourt (LARROSA, 2003) a construção de uma prática educacional grupal
Flores com pais e/ou responsáveis de crianças que se apresentam inseridas
URI
no contexto de escolas de Educação Infantil na cidade de Santiago/
RS, com intuito de apontar meios de reflexão acerca da infância
Nitheli Cardoso Bissaco
e do ser criança. Nesse percurso, percebemos que no processo
URI
de encontros, trocas e gestos, as relações entre famílias e escola
Thayara Carlosso Irion apresentam-se como arranjos fundamentais para a composição de
URI
espaços de potência, amparo e sustentação para que as crianças,
possam sentirem-se seguras em suas composições singulares.

Palavras-chave: Infância; Família; Escola; Educação Infantil.


10.37885/200400143
1. INTRODUÇÃO se inclua a dimensão analítica, relacional, política
e poética de um encontro. O grupo opera, portanto,
Através de experiências e vivências singulares na fronteira entre a clínica e a política, isto é, per-
com o contexto da Psicologia do Desenvolvimento, meado pelo acolhimento da diferença e da potência
e também com experiências grupais no decorrer da das histórias de cada singularidade. Nessa proposta,
formação em Psicologia, reverberou-se a intensida- entendemos que as singularidade que partilham suas
de e importância de realizar ações específicas no singularidades e histórias em um espaço comum,
campo da Educação Infantil. Assim, nesta escrita são tomadas como um emaranhado de linhas que
apresentamos ecos e percepções referentes à algu- se cruzam e se afetam, diante da experiências que
mas ações grupais realizadas com pais/responsáveis coletivamente tecem; operamos assim, por meio de
de crianças que frequentam Escolas Municiais de uma prática que acontece de processual e poética.
Educação Infantil (EMEI). Nesse sentido, o presente Além disso, esta escrita possui sua estrutura deline-
artigo tem como objetivo apresentar a construção de ada pela proposta de Ensaio, mobilizado a partir de
uma prática grupal com pais e/ou responsáveis de Larrosa (2003). Nessa perspectiva, a escrita acontece
crianças que se apresentam inseridas no contexto de modo singular diante do presente, das experi-
da educação infantil da cidade de Santiago/RS, com ências e de suas relações com o tempo. Ademais,
a proposta de provocarmos sentidos sobre o ‘ser para Larrosa (2003):
criança’ e a infância. Ademais, cabe salientar que
a perspectiva grupal destas ações, desenvolveu-se Poder-se-ia dizer, talvez, que o ensaio
dentro dos requisitos curriculares do Estágio de Ênfase
é o escrito precipitado de uma atitude
AI e A2, que diz respeito às práticas institucionais
existencial que, obviamente, mostra
no campo de atuação do curso de Psicologia, da
enormes variações históricas, contextu-
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões – URI Campus de Santiago/RS. ais e, portanto, subjetivas. Poder-se-ia
dizer, talvez, que o ensaio é uma de-
A proposta das ações grupais, desenvolveu-se a partir terminada operação no pensamento, na
da construção de grupos com pais ou responsáveis escrita e na vida, que se realiza de di-
de crianças que frequentam EMEIs com o intuito ferentes modos em diferentes épocas,
de adentrar na perspectiva do desenvolvimento da em diferentes contextos e por diferen-
primeira infância. Assim com a constituição destas tes pessoas. Poder-se-ia dizer, talvez,
ações, buscamos construir um olhar para além da
que o ensaio é o modo experimental
infância atual de nossas crianças, mas também refletir
do pensamento, o modo experimental
sobre a infância vivenciada pelos cuidadores/partici-
de uma escrita que ainda pretende ser
pantes de nossas práticas, possibilitando assim, um
olhar ampliado, multiverso e sensível. Sendo assim, uma escrita pensante, pensativa, que
a criança é aqui considerada na sua compreensão ainda se produz como uma escrita que
integral, enfatizando suas relações sociais, culturais, dá o que pensar; e o modo experimen-
políticas e peticas e em seus ambientes de cuidado tal, por último, da vida, de uma forma
e educação. de vida que não renuncia a uma cons-
tante reflexão sobre si mesma, a uma
O objetivo central para realização das ações foi permanente metamorfose (LARROSA,
planejado, buscando proporcionar um ambiente de
2003, p. 32).
acolhimento aos pais e/ou responsáveis por crian-
ças que se encontram na Educação Infantil, para
Diante desta possibilidade poética e reflexiva tecida
conhecer suas singularidades, histórias e experiên-
por meio do ensaio, buscaremos compartilhar pro-
cias, e também compreender como é a relação entre
cessos experienciais e suas reverberações teóricas e
pais/responsáveis e filhos. Desse modo, buscamos
críticas. Logo, percebemos que a prática de estágio
inicialmente a aproximação do contexto escolar na
em Psicologia no contexto educacional mantém um
perspectiva de analisar as relações educacionais e as
caráter essencialmente social, articulado a outros
percepções da escola frente às famílias das crianças.
fatores culturais, assim como a singularidade de pro-
Este estágio foi exercido por práticas grupais, com o
fessores, famílias e crianças, que são vinculados de
intuito de possibilitar um espaço de escuta e trocas
modo relacional ao processo escolar, resultando em
singulares, acerca das vinculações e representações
um olhar e manejo coletivo. Nesse caminho, pensar o
familiares que cercam a criança tanto no contexto
desenvolvimento infantil nos faz refletir não somente
educacional, como no seu desenvolvimento.
a criança em sua própria individualidade, mas pen-
As prática grupais embasaram-se nas prospecções de sar as suas relações familiares, pois ter esse olhar
Barros (2009), com quem entendemos que um grupo amplo frente à criança possibilita um entendimento
anuncia-se como dispositivo fundamental para que do modo no qual ela se constitui no processo de seu

30 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


desenvolvimento psíquico. Os processos históricos atravessam gerações nos
quais os indivíduos vão adentrando em novas percep-
Vygotsky (1978) aponta que no desenvolvimento
ções confrontando novos valores, por isso pode-se
psíquico da criança aparece em primeiro lugar no
perceber que ocorre a convivência de valores antigos
campos social e mais tarde no psicológico, isto é, é
e novos, onde muitas vezes dentro das relações
dado no nível interpsíquico entre os outros e depois
intergeracionais da família podem ocorrer conflitos
para o interior da criança em um plano intrapsíquico,
e contradições entre ideias. Percebem-se estas in-
onde nessa transição de fora pra dentro o processo
quietações em nossas práticas, através de discursos
em si é transformado, estrutura e suas funções. O
nos quais remetem que as gerações passadas são
princípio social é refere-se ao campo biológico-natural,
melhores que as gerações atuais, podendo trazer
portanto as fontes do desenvolvimento psíquico da
uma complexidade referente à educação que as fi-
pessoa não estão no assunto em si, mas no sistema
guras parentais exercem aos filhos.
de suas relações sociais, no sistema de sua comu-
nicação com os outros, em sua atividade coletiva e De acordo com processos históricos e sociais, as
em conjunto com eles. figuras parentais compartilham de experiências seme-
lhantes, pois elas se constituíram através de padrões
Refletindo de acordo com Vygotsky (1978), podemos
e vivências no qual produzem pensamentos que se
relacionar suas considerações diante da importância
cristalizam por estas vivências. Portanto, estas figuras
de estabelecer um olhar e um espaço de escuta para
possuem singularidades e vivencias próprias que
estes determinados pais ou responsáveis, pois a
lhes constituíram como são, produzindo formas de
criança constrói de forma simbólica as representa-
sentido em suas vidas. A maioria dos pais/respon-
ções referentes ao posicionamento dos pais. Estas
sáveis, durante nossas práticas apresentaram uma
influências possibilitam na forma de como a criança
dificuldade em compreender as gerações atuais, in-
se relaciona com o mundo, a partir de sua estrutura
clusive seu próprios filhos, diante do que chamaram
social e familiar. Portanto esta vinculação com a
como ‘novas normas e valores”, como por exemplo,
família e a escola, se faz de grande importância para
a presença da tecnologia entre outros fatores que
sua trajetória educacional, podendo assim expandir
enlaçam o meio atual.
novas formas de ensinar, e se posicionar frente ao
desenvolvimento psíquico da criança. Cabe lembrar, que estas mudanças são decorrentes
da transformação de papeis sociais, pois a família por
Percebeu-se ao longo das práticas vivenciadas a
muito tempo, foi definida pela presença da mãe, do
importância de olhar para as figuras parentais no
pai e do filho. A mãe neste contexto nuclear, era vista
contexto infantil, pois analisamos que são pouco
como principal figura de afeto e cuidado, represen-
desenvolvidas práticas no âmbito da educação infantil
tada por cuidar dos afazeres da casa e criação dos
visando o acolhimento e escuta perante os pais, é
filhos, sendo muitas vezes submissa ao homem. A
visto que a constituição da criança se dá a partir
figura paterna, por sua vez, exercia representações
do funcionamento familiar. Para pensarmos nesta
de poder na casa e na sociedade, através de uma
perspectiva adentramos o processo de socialização
figura muitas vezes rígida, sua autoridade valia tanto
(VYGOTSKY, 1979), o qual se dá de forma circular
para os filhos como para a mulher, que dele dependia
entre indivíduos e sociedade de modo a dar conti-
economicamente e a quem se submetia de acordo
nuidade a sociedade, mantendo e prevalecendo a
com as regras estabelecidas sobre seu patriarcado.
tradição dos valores e costumes e também a produzir
Costa (1989) resgata o pai provedos, proprietário de
mudanças.
bens, escravos e filhos, disposto a impor sua lei e
São várias as instituições que se encarregam em seus direitos e a resguardar seu nome e sua honra.
produzir a socialização, pois passamos por diversas Autoritário, se isentava de maiores compromissos e
organizações e espaços que de alguma forma nos de manifestações afetivas para com os filhos, cuja
tocam e produzem conexões e sentidos no nosso relação era marcada pela ideia da diferença, se re-
eu, sendo estes espaços por onde transitamos que ferindo à hierarquia familiar.
acabam atravessando-nos. Podemos pensar alguns
A criança era vista em um lugar de inferioridade
espaços que se encarregam da socialização, estes
perante aos demais integrantes da família, sua voz
podem ser família, escola, igreja, trabalho entre tantos
não era ouvida e seus sentimentos e emoções eram
outros territórios que norteiam o nosso meio social.
isolados, portanto, suas relações sociais eram res-
Esses espaços são constituídos por normas, valores
tritas, tendo somente a família como anseio desta
através de uma cultura familiar. Estes se transformam
interação, portanto sua presença no contexto da so-
ao longo do tempo, diante disso podemos refletir a
ciedade era delimitada pelos pais. A hierarquia era
história das relações familiares e porque hoje em
demarcada deste modo, pela orientação hierárquica
dia as crianças estão se inserindo nestes ambientes
definida pelo sexo masculino e feminino, e pela ida-
educacionais mais cedo.
de, diferenciação entre adultos e criança, definindo

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 31


lugares e legitimando-as, sendo visto o adulto como mas sim mobilizada principalmente pela ética das
uma posição de poder, portanto os lugares de pai e relações e composições de afetos singulares. As
mãe eram reconhecidos como autoridades legitimas, crianças também tiveram espaços abrangentes, por
no qual define regras (TEIXEIRA, 2009). meio do reconhecimento de suas individualidades,
possuindo espaços para negociações, tendo seus
Para Teixeira (2009) no período da industrialização,
próprios desejos reconhecidos enquanto potência.
as mulheres se inseriram no mercado de trabalho,
A criança passa a ser vista como construtora de si,
sendo delas grande parte das funções e lugares não
protagonista e ativa em sua composição singular
qualificados. A divisão do trabalho estabeleceu-se
por meio das relações, afetos, amparos, lugares e
assim com a justificativa de que as mulheres não
figuras de referência que com ela convivem.
detinham o conhecimento técnico para supervisionar
os serviços. A presença das mulheres no mercado Através destas perspectivas, percebemos que hoje
de trabalho representou uma mudança significativa família atual apresenta consigo novas formas de se
na história. O trabalho, fora de casa, constituiu um constituir, abrangendo o cuidado de seus filhos, tendo
importante mediador para que as mulheres exerces- assim, o auxílio de singularidade outras no desenvol-
sem atividades além dos muros de suas residências, vimento e cuidado das crianças, pois as exigências no
ocupando posições sociais e determinadas atividades âmbito trabalhista trouxe a necessidade das figuras
profissionais até então permitidas e validadas única parentais expandirem o cuidado, possibilitando a
e exclusivamente para homens. inserção de novas instituições sociais na vida dos
filhos: a escola, bem como a presença de novos fa-
Com a entrada da mulher no contexto do trabalho
tores de conhecimentos culturais, como a televisão
externo à sua casa e famílias, as representações
e dispositivos da mídia (ROSEMBERG,1995).
acerca do lugar do homem como provedor e a mulher
como figura de afeto, cuidado e educação, foram Consoante Barbosa (2007), é preciso considerar que
e ainda estão sendo transformadas, pois o homem as crianças têm um modo ativo de ser e habitar o
que a princípio, exercia um papel distante da vida mundo, pois atuam na criação de suas relações so-
dos filhos, passa a exercer um cuidado afetivo, di- ciais, nos processos de aprendizagem e de produção
vidindo as tarefas da casa. As mulheres, puderam de conhecimento desde muito pequenas. Assim,
ter mais autonomia em relação a suas ações, per-
cebendo que conseguiriam manter uma família sem (...) sua inserção no mundo acontece
o homem, tendo seus filhos sem a presença do pai, pela observação cotidiana das ativi-
podendo assim, dar conta de exercer a maternidade dades dos adultos, uma observação e
sozinha, através de sua voz na sociedade perante participação heterodoxa que possibili-
a independência (ROSEMBERG, 1995). tam que elas produzam suas próprias
Além disso, mediante Kuhlmann Jr. e Fernandes sínteses e expressões. A partir de sua
(2004), a educação das crianças pequenas, foi, por interação com outras crianças – por
muito tempo, considerada responsabilidade única exemplo, por meio de brincadeiras e
da família e do grupo social ao qual pertenciam. Era jogos – ou com os adultos – realizando
com os adultos e com as demais crianças que se tarefas e afazeres de sobrevivência –,
aprendia a tornar-se membro de um grupo, participar elas acabam por constituir suas pró-
das tradições culturais consideradas importantes e prias identidades pessoais e sociais
apropriar-se de conhecimentos que lhes seriam ne- (BARBOSA, 2007, p. 1066).
cessários para a vida adulta. Por um bom período
da história nenhuma instituição incumbiu-se de com- Nessa possibilidade potente de percepção da crian-
partilhar a responsabilidade pela criança com seus ça e sua composição ativa e presente no mundo,
pais e com a comunidade da qual está fazia parte. o campo da educação infantil passa então, a ser
Todavia, por meio de acontecimentos históricos e um fator extremamente importante para a vida da
movimentos sociais, as representações sobre o lugar criança e da família. Cabe lembrar, que a educação
dos membros de família foram também se trans- infantil, constituída historicamente diante de uma
formando. Assim, cada integrante que habita este perspectiva social, também se atenta hoje para as
espaço, pode ser considerado em sua singularidade prospecções sociais e educacionais imersas no cam-
como seres de direito, diante da equidade, mudando po da cultura. Nesse sentido, podemos perceber
principalmente o significado dado aos lugares das que o desenvolvimento das crianças não ocorre de
mulheres e das crianças. A família passa a ser então modo individual e isolado, mas instaura-se como um
percebida diante das relações entre seus membros, processo cultural e coletivo, delineando-se em sua
apresentando-se na contemporaneidade pela potência representações através das relações de brincadei-
da diversidade, independente de padrões e papeis, ra e de faz-de-conta desenvolvidas pelas crianças
(CORSARO, 2007, p. 4).

32 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


A partir das transformações históricas e sociais, Na medida que prossegue o desenvol-
frente aos vimento e o bebê adquire um interior e
um exterior, a confiabilidade do meio
lugares de ocupação das singularidades no cam-
po social, inúmeros aspectos acerca da educação ambiente passa então a ser uma cren-
das crianças também se transformaram. Aspectos ça, uma introjeção baseada na experi-
referentes à importância das figuras parentais, dos ência de confiabilidade - humana, e não
vínculos, afetos, olhar e escuta no desenvolvimen- mecanicamente perfeita (WINNICOTT,
to infantil tomaram lugar de destaque no seio das 2006, p. 87).
famílias. Cabe salientar aqui, que diante disso, em
nossas práticas grupais com os pais/responsáveis Por conseguinte, é de suma importância identificar
de crianças que estão na educação infantil, percebe- e analisar de que forma a família e as singularidade
mos o quanto essas transformações afetam, pois os que habitam a educação infantil compreendem o
mesmos ao lembrarem do modo como viveram suas lugar das relações frente ao limite para a criança,
infâncias e como eram estabelecidas as relações uma vez, que a mesma ao viver em um espaço de
em suas famílias, sinalizaram-nos que percebem segurança, poderá introjetar para si sentimentos de
que hoje os limites e relações, estão cada vez mais amparo e segurança, experienciando e elaborando
difíceis de serem impostos para as crianças. Nesse pequenas frustrações frente à faltas, mas perce-
contexto, é necessário refletir sobre a necessidade bendo que permanece viva em sua integralidade.
de composição do “limite” para a criança, tanto pela Ademais, existem inúmeros fatores subjetivos, que
família quanto pela escola. Observamos que muitas sucedem-se na vida familiar de cada criança, onde
vezes, a escola vem assumindo, pelo menos parcial- as figuras parentais são apenas uma parte deles,
mente, em muitos contextos, o papel da família, sob embora a partir de Winnicott (2006), entendemos sua
a pena de ver o trabalho educacional comprometido. grande importância, talvez a primordial. Todavia, a
importância da compreensão do limite na vida da
Desse modo, percebemos o grande desafio que re- criança é muito importante, é a partir dele que as
fere-se à aproximação da família ao âmbito escolar, frustrações mais importantes no processo do desen-
pois a inserção da criança na escola vem ocorrendo volvimento ocorrem. Ainda sobre as reverberações
cada vez mais cedo, o que faz com que ela entre, sobre o ‘limite’, para Piaget (1994), o grande desafio
precocemente, em contato com um campo relacional da educação seria o de favorecer o desenvolvimen-
complexo marcado pelo convívio com outras crian- to afetivo e relacional para que uma singularidade
ças e múltiplos cuidadores. A teoria psicanalítica de conquiste progressivamente a sua autonomia inte-
Donald Winnicott (2006), ressalta a importância vital lectual, afetiva e moral com base no exercício das
do contexto do desenvolvimento humano, em razão a descentrações e nas leis de reciprocidade constru-
isso, o autor nos traz que o bebê ao nascer, torna-se ídas em suas interações com o meio físico, social,
absolutamente dependente de um ambiente seguro histórico e cultural.
e eficaz diante de suas necessidades, do qual é
iniciado a partir dos cuidados maternos, garantindo Dessa forma, mediante Barbosa (2007), a educação
um ambiente suficientemente bom, provendo condi- infantil alcança sua potência quando propõem-se à
ções para seu desenvolvimento. A tarefa da função trabalhar com a “ética do encontro”, onde se possa
materna, nesse sentido, envolve o holding, ou seja, escutar o pensamento – as ideias e teorias, pergun-
a sustentação, ofertando cuidados cotidianos, es- tas e respostas das crianças e dos adultos. Assim,
pecialmente relacionados as necessidades físicas. estaríamos nos aproximando de uma pedagogia da
Segundo Winnicott (1990) o holding físico oferta uma “escuta”, reconhecendo o conhecimento como cons-
sustentação psíquica na medida em que o ambiente trução, que tem uma perspectiva provisória, e não
responsivo favorece o desenvolvimento da confiança como a transmissão de um corpo de saber verdadeiro
no meio e produz a experiência de continuidade da que uniformiza as diferenças singulares. Ainda para
existência, fundamental para a saúde emocional. Barbosa (2007) se acreditarmos que as crianças
possuem as suas próprias teorias, interpretações
A partir da entrada da criança na creche/escola, a e questionamentos, que são protagonistas do seu
mesma envolve-se em uma experiência de separação processo de socialização nos espaços culturais em
temporária da figura materna e do ambiente familiar, que vivem e que constroem culturas e conhecimentos,
caminhando de um lugar de dependência para um o elemento da escuta apresenta-se como artefato
lugar de independência, por isso é tão importante fundamental: estar aberto aos outros, compreender e
os cuidados maternos iniciais para a conquista de construir um diálogo, acolher as diferenças e propor
sua autonomia e capacidade de socialização, a partir unidades flexíveis.
desses cuidados e no ambiente protetor que o cerca.
Sobre este processo, Winnicott (2006) afirma que: Assim, através do reconhecimento de sua singulari-
dade e protagonismo, a criança poderá construir aos

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 33


poucos, suas próprias regras e percepções sobre a campo da Psicologia, práticas que possam mobilizar
convivência social, onde podemos analisar o conceito sentidos sobre uma escola que possa “escutar” as
de poder através dos processos de subjetivação. crianças e se construir para e com elas. Ademais,
Para Foucault (1982, p. 222) ‘’ uma sociedade sem sendo a educação infantil o primeiro encontro pe-
relações de poder somente pode ser abstração’’, dagógico da criança, é nosso papel reconhecer as
sendo assim, qualquer singularidade estará sempre diferenças nos modos de recepção e significação,
implicada em um agrupamento humano, permeados lógicas de cada grupo cultural, análise das relações
por relações de poder ligados à vida social. O poder de poder e hierarquia entre eles, propondo processos
apresenta-se por meio das relação de forças, ou de inserção social coletivos e cooperativos.
seja, uma característica de qualquer relação social
Dessa forma, Casanova (2016) atenta que no con-
ou discursiva, as ligações de poderes, irão sempre
texto da pós-modernidade, é urgente a percepção de
estar presentes nas ações humanas, sendo inter-
que a instituição de Educação Infantil relaciona-se
pretadas pela subjetividade dos sujeitos envolvidos.
com famílias na sua pluralidade, tornando-se inviável
A compreensão do poder dentro do âmbito escolar, assegurar um discurso totalizante que pretende dar
possibilita a procura de uma compreensão diante respostas e soluções a todo contingente de famílias,
das dinâmicas de relações existentes, a ideia de uma pois estas são traduzidas como múltiplas e comple-
rede que permeia todo o corpo social, articulando e xas. Dessa maneira, Barbosa (2013), aponta que o
integrando diferentes focos de poder (escola, família, tempo das crianças na escola não pode ser apenas
prisão, hospital, entre outras diversas instituições) um tempo que passa por elas, mas ele merece ser
que se apoiam umas nas outros. Ademais, para Fou- sentido, vivido com intensidade para constituir uma
cault (1982) a base de funcionamento de todas as experiência real e simbólica.
instituições, está inserida em um sistema simbólico
A partir destas considerações e diante das práti-
de regras e controles, direcionado aos espaços de
cas experienciadas, percebemos a importância do
poder, compondo um imaginário institucional. É cabível
processo compartilhado entre crianças, famílias,
analisar as formas de como o poder é manifestado,
educadores e escola no que se refere ao campo da
colocando sempre em primeiro lugar as necessida-
educação infantil. O processo partilhado entre estes
des de localizar mecanismos de controle que estão
diferentes atores, colocam em evidência a potência
ligados a cada papel exercido na instituição, da qual
da vida em comum, da brincadeira, da imaginação
haverá micropoderes a partir da subjetividade das
e da construção de narrativas, onde pode haver a
histórias de cada sujeito.
percepção de elementos políticos importantes na
Nesse percurso, concordamos com Barbosa (2007), educação das crianças. Esta possibilidade, de pen-
quando esta nos diz que: sarmos a potência da partilha na composição de
estratégias significantes para a educação infantil,
A escola, atualmente, funciona muito nos possibiliza perceber um espaço permeado por
mais como um espaço de socializa- relações possíveis que podem potencializar práticas
ção, organização, integração, análi- pedagógicas e singulares para as crianças.
se de conhecimentos, percepção de Nesta linha de percepção, as práticas vivenciadas
pontos de vista diferenciados do que nos mostraram que a infância, em suas experimen-
como transmissora de informações. Até tações, pode ser atravessada pelo encontro de di-
pouco tempo, por sua constituição mais ferentes singularidades se associando à criação, à
sólida, a transmissão dos conhecimen- invenção de seu modo de acontecimentos. Nesse
tos sociais, culturais e científicos, isto é, processo de encontros, trocas e gestos, as relações
das culturas escolares, se confrontava entre famílias e escola apresentam-se como arranjos
com as culturas infantis e familiares. A fundamentais para a composição de espaços de po-
ênfase esteve sempre naquilo que as tência, amparo e sustentação para que as crianças,
separa, no que difere, tendendo a não possam sentirem-se seguras em suas composições
manter a atenção naquilo que existe singulares. Assim, a possibilidade de convivências,
de comum e que liga crianças, adultos experimentações e brincadeiras, permitem à criança
a significação e elaboração de seu lugar no mundo
– professores, pais e mães –, escola,
diante das relações que estabelece com as demais
conhecimento, sociedade (BARBOSA,
crianças, e com àqueles que ofertam para si refe-
2007, p. 1078). rências de cuidado, amparo e afeto.
Diante de todos estes aspectos, produzir considera-
ções sobre o lugar das figuras parentais na vida de REFERÊNCIAS
uma criança ao adentrar à educação infantil, exige ao

34 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


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Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 35


CAPÍTULO
5

A IMPORTÂNCIA DO ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO


PARA MULHERES PORTADORAS DE ENDOMETRIOSE

RESUMO
A Endometriose é uma doença crônica, inflamatória, de difícil
Camila Barreto
diagnóstico, que ocorre durante o período menstrual. Os sintomas
Gabriela Nascimento podem surgir ainda na adolescência. A endometriose, com toda a sua
Arina Lebrego sintomatologia, atravessa a vida das mulheres afetadas, da carreira
aos relacionamentos, até os planos futuros para a concepção. Em
razão disto, observou-se a importância de um acompanhamento
psicológico a essas mulheres. Os principais resultados mostraram
que a grande maioria das mulheres portadoras de endometriose,
necessitam de atendimento psicológico devido à alta prevalência
de depressão e entre outros sofrimentos psíquicos envolvidos no
processo de adoecimento. Percebeu-se que a mulher portadora de
endometriose também é uma demanda para a psicologia.

Palavras-chave: Endometriose; Infertilidade; Acompanha-

mento Psicológico.
10.37885/200400108
1. INTRODUÇÃO Na elaboração deste trabalho foi realizada uma re-
visão de literatura, a partir da seleção de artigos
A maioria das mulheres sofrem com dores científicos que preenchessem os seguintes critérios:
durante o período menstrual. O que muitas não sa- apresentassem uma linguagem clara sobre a endo-
bem, é que algumas delas podem ser portadoras metriose, que explorassem os recursos utilizados nos
de Endometriose. A Endometriose é uma doença tratamentos, e por fim que expusessem relatos das
crônica, inflamatória, de difícil diagnóstico, que ocor- vivências dessas mulheres e suas principais queixas,
re durante o período menstrual, caracterizando-se sejam elas físicas ou emocionais. Foram excluídas
pela migração do tecido endometrial para fora da desta pesquisa, os artigos que não atenderam aos
cavidade uterina (tecido que reveste a “parede” do critérios de inclusão descritos acima. Utilizou-se os
útero, conhecido como endométrio), principalmente seguintes descritores: endometriose, acompanha-
para o abdome, além de ovários, ligamentos uterinos, mento psicológico e infertilidade. A base eletrônica
bexiga e intestino. Os sintomas podem surgir ainda consultada foi a SciELO no idioma português.
na adolescência como cólicas menstruais progres-

3.RESULTADOS E DISCUSSÕES
sivas e/ou incapacitantes, dores durante a relação
sexual, dores entre uma menstruação e outra, queixas
como diarreia e/ou constipação intestinal, náuseas
Os principais resultados mostraram que a grande
no período menstrual, e em casos mais alarmantes,
maioria das mulheres portadoras de endometriose,
podendo causar infertilidade (VILA et al, 2010, p.220).
necessitam de atendimento psicológico devido à alta
A endometriose, com toda a sua sintomatologia, prevalência de depressão e entre outros sofrimentos
atravessa a vida das mulheres afetadas, da carreira psíquicos envolvidos no processo de adoecimento
aos relacionamentos, até os planos futuros para a (LORENÇATTO et al, 2002, p. 229). Vale ressaltar,
concepção (COX et al., 2003; DENNY, 2004 apud que em casos de depressão, por exemplo, deve-se
MATTA e MULLER, 2006). tratar não apenas como resultado esperado do so-
frimento decorrente da endometriose, mas sim com
O dado mais importante, na literatura toda a importância que se espera de um tratamento
mundial, foi publicado em 2011, por em pacientes depressivos. Observou-se também,
Nnoaham, que apontou em um levanta- que uma parte significativa dessas mulheres relatam
mento multicêntrico em 16 centros clí- que durante o seu processo de tratamento, sentem
nicos de 10 países, que mulheres com uma carência de apoio por parte do parceiro (o apoio
do parceiro, da família e amigos é importante e sua
endometriose, confirmadas cirurgica-
ausência pode favorecer transtornos emocionais).
mente, perdem 38% de sua capacida-
As que recebem tal apoio reconhecem que é um
de de trabalho, o que representa, sem elemento essencial para superar a doença.
dúvida, um grande impacto socioeco-
nômico, além de a redução impactante
na sua qualidade de vida (FEBRASGO,
2014/2015, p. 10). 4.CONCLUSÃO
A conclusão final é que através dos estudos
Neste sentido, é possível que a mulher com esta levantados, verificou-se que ao receber o diagnóstico
patologia, além das dúvidas e incertezas que vive de endometriose, tais mulheres relataram sentir vari-
com o diagnóstico, experimente uma série de frus- áveis emoções negativas que se estenderam durante
trações e conflitos emocionais como raiva, angústia, o tratamento, somando-se com a carência de apoio
ansiedade, medo – sentimentos comuns em todas do parceiro e familiares. Percebeu-se que a mulher
as pessoas que se descobrem com alguma doença portadora de endometriose também é uma demanda
crônica. Vale ressaltar que os prejuízos da doença para a psicologia. Uma vez que, há um papel para o
estão para além do fisiológico, atingindo também o profissional de saúde, com enfoque no psicólogo, em
emocional. Em razão disto, observou-se a impor- promover e estimular a participação ativa do parceiro/
tância de um acompanhamento psicológico a essas família/amigos valorizando estes vínculos para um
mulheres. tratamento mais humanizado, acompanhando esta
mulher no seu processo de tratamento provendo uma
O objetivo deste trabalho foi investigar, a partir de elaboração de seus sofrimentos psíquicos e sempre
um estudo bibliográfico, o sofrimento de mulheres apoiando as tentativas dessas mulheres de lidar com
portadoras de endometriose. a insegurança, preconceito cultural, ansiedade, de-
pressão e entre outros transtornos emocionais que

2.METODPLOGIA podem surgir desde o diagnóstico até o processo


de tratamento.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 37


REFERÊNCIAS
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saúde. Goiás, 2010.

38 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
6

A INSTITUIÇÃO FAMILIAR E O TRABALHO DO PSICÓLOGO


NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

RESUMO
O presente artigo objetiva apresentar as interconexões entre o
Claudia Maria Rinhel-
Silva trabalho do psicólogo nas políticas públicas sociais e a instituição
UNESP-ASSIS familiar. Sendo assim, versa sobre a inserção dos psicólogos nas
políticas públicas sociais, especificamente nos Centros de Referências
da Assistência Social (CRAS) e suas interfaces entre teoria e prática,
ou seja, o foco da problematização é a relação entre as intervenções
propostas pela Política de Assistência Social executadas num
CRAS e seus efeitos na prática para o atendimento de famílias em
vulnerabilidade social.

Palavras-chave: Família; CRAS - Centro de Referência da

Assistência Social; Políticas Públicas e Sociais.


10.37885/200400127
1. INTRODUÇÃO pela Constituição Federal. Desde então, a Assistência
Social passou a integrar o Sistema de Seguridade
O presente artigo objetiva apresentar as inter- Social, como política pública não contributiva, pau-
conexões entre o trabalho do psicólogo nas políticas tada pela universalidade da cobertura e do atendi-
públicas sociais e a instituição familiar. Sendo assim, mento, assim como a Saúde (não contributiva) e a
versa sobre a inserção dos psicólogos nas políticas Previdência Social (contributiva). Isto significa que
públicas sociais, especificamente nos Centros de a Assistência Social é hoje um dever do Estado e
Referências da Assistência Social (CRAS) e suas um direito de “quem dela necessitar, independente
interfaces entre teoria e prática, ou seja, o foco da de contribuição à Seguridade Social” (Constituição
problematização é a relação entre as intervenções Federal, 1988 art.203).
propostas pela Política de Assistência Social exe- No contexto das políticas públicas sociais o percurso
cutadas num CRAS e seus efeitos na prática para o legal para sua constituição se inicia pela consolidação
atendimento de famílias em vulnerabilidade social. da Constituição de 1988. A Carta Magna assegura
Sendo assim, a abordagem do assunto vem corro- o efetivo reconhecimento de direitos, sobretudo no
borar com a aquisição de conhecimentos específicos que tange à universalização de serviços essenciais à
sobre a instituição familiar para a realização dos manutenção à vida, denominado como “seguridade
objetivos do estudo, na qual a família é o foco de social”, composto pelos setores saúde, previdência
intervenção dos profissionais, no caso deste estudo, o e assistência social.
psicólogo, como mencionado nas diretrizes traçadas Em relação à assistência social, em 1993 com a Lei
pelo Sistema Único da Assistência Social (SUAS) Orgânica da Assistência Social (LOAS) passou-se a
para minimizar as vulnerabilidades familiares das fundamenta-la como “política de seguridade social
camadas populares. não contributiva, que provê os mínimos sociais, re-
A centralidade das políticas públicas sociais no aten- alizada através de um conjunto integrado de ações
dimento às famílias se refere à mesma como núcleo de iniciativa pública e da sociedade para garantir
social fundamental para a efetividade de todas as o atendimento às necessidades básicas” (art. 1º).
ações e serviços da política de assistência social. Sposati (1995) destaca que com a implantação da
A Política Nacional da Assistência Social (PNAS) LOAS a Assistência Social:
conceitua a família como um conjunto de pessoas
unidas por laços consanguíneos, afetivos e ou de (...) enquanto direito da cidadania, é
solidariedade, cuja sobrevivência e reprodução social
dever do Estado, é política social que
pressupõem obrigações recíprocas e o comparti-
prove a quem necessitar benefícios e
lhamento de renda e/ou dependência econômica.
serviços para acesso à renda mínima e
As políticas públicas sociais estabelecem a importân- o atendimento as necessidades huma-
cia do núcleo familiar para o equilíbrio das situações nas básicas, historicamente determina-
de vulnerabilidade considerando os laços afetivos; das. (Artigo 1º, projeto de Lei n.º099-C,
sendo assim, a família, apesar das transformações de 1989) (Sposati, 1995, p. 23).
mencionadas em pesquisas científicas, mídias e cul-
tura popular, ainda é uma instituição que desde os A Assistência Social passou a ser vista como uma
tempos mais antigos, e na maioria das sociedades, política de suma importância para o enfrentamento
é a provedora inicial de satisfações de necessidades da questão social e suas diversas expressões. Ga-
básicas e também exerce forte influência na consti- nhou força e maior visibilidade no ano de 2003 com
tuição dos indivíduos. a IV Conferência Nacional de Assistência Social a
Diante dessas prerrogativas, passar-se-á a discorrer qual propõe a reorganização das ações e serviços
como a política mencionada se concretizou no decorrer assistenciais, esses advindos da implantação da
da história, sobre as vicissitudes e peculiaridades nova Política da Assistência Social no ano de 2004.
da instituição familiar e o papel do psicólogo como A PNAS consolidou-se com a implantação do SUAS
profissional atuante nas políticas públicas, preconi- tendo como principais diretrizes: Descentralização
zado pelo SUAS. Política – Administrativa; Participação da população;
Primazia na responsabilidade do Estado na condução

2.POLÍTICA PÚBLICA DA ASSISTÊN-


CIA SOCIAL
da PNAS e Centralidade na Família.
O SUAS contempla alguns eixos importantes para
sua efetivação, tais como: responsabilidade estatal;
A Assistência Social, como política pública de proteção alcance dos direitos socioassistenciais pelos usu-
social, se configura como algo recente e inovador, ários; matricialidade sociofamiliar; territorialização
pois somente a partir de 1988, esta foi assegurada

40 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


do sistema; descentralização político administrativa; indivíduo.
financiamento partilhado entre os entes federados;
fortalecimento da relação democrática do Estado e
sociedade civil e valorização de instrumentos de con-
trole social; ampliação do protagonismo dos usuários;
3.TRANSFORMAÇÕES
ÇÃO FAMILIAR
NA INSTITUI-

qualificação dos recursos humanos; monitoramento Para abordar a família como foco de intervenção
e avaliação de resultados das ações desenvolvidas; necessita-se de um aprofundamento das discussões
acesso democrático e transparente à informação. sobre o que é família, suas possíveis configurações
(Capacitação para implementação do sistema Único e suas representações de gênero no âmbito familiar,
de Assistência Social – SUAS e do Programa Bolsa com ênfase nas famílias que estão em vulnerabili-
Família – PBF/ Coordenação geral/2008). dade social¹.
As ações do SUAS são também concretizadas A configuração da família contemporânea foi constitu-
por meio dos CRAS que realizam a Proteção Social ída no decorrer da história, porém sempre mantendo
Básica e dos Centros de Referência Especializados a importância das funções familiares de cuidado e
da Assistência Social (CREAS), o qual intervêm socialização nos vínculos familiares e nos laços afe-
em situações de risco com ou sem rompimento dos tivos. Assim, “É na família que se obtém não apenas
vínculos familiares, denominada Proteção Social Es- apoio e suporte material através de sua rede de
pecial (PSE). (BRASIL, 2006) amparo e proteção, mas também se experimenta
as principais vivências emocionais (...).” (OLIVEIRA;
O foco deste trabalho se localiza nos atendimentos
VIEIRA; BARROS, 2010 p.3)
realizados por profissionais da área da psicologia
junto às famílias referenciadas ao CRAS. Este equi- Independente das transformações, dos seus arranjos,
pamento social se concretiza nas ações e atuações configurações e laços consanguíneos, a família é
como proteção social básica e sua localização é considerada como uma estrutura essencial à huma-
sempre em áreas com maiores índices de vulnera- nização e à socialização das crianças e adolescentes
bilidade e risco social destinadas: à prestação de e ainda, como norteadora do desenvolvimento da
serviços e programas socioassistenciais às famílias personalidade e de suas potencialidades. É importante
e indivíduos; à articulação destes serviços no seu que as famílias promovam um ambiente saudável,
território de abrangência; e uma atuação intersetorial no qual diante de fatores estressores, possam fun-
na perspectiva de potencializar a proteção social. cionar como protetoras, encontrando recursos que
auxiliem seus membros a enfrentarem situações de
Os trabalhos realizados nos CRAS são desenvolvidos
vulnerabilidade, tornando-os mais fortes frente às
por meio do Programa de Atendimento Integral à
adversidades, ou seja, ajudá-los a serem resilientes
família (PAIF), estipulado pelas diretrizes da política
para enfrentar as transições e as dificuldades do
pública do SUAS. O PAIF tem como prerrogativa
cotidiano. (RINHEL-SILVA, 2009; OLIVEIRA; VIEIRA;
fortalecer os vínculos familiares e comunitários e
BARROS, 2010)
prevenir situações de riscos pessoal e social. Dentre
os objetivos do PAIF podemos citar a promoção do Nesse aspecto, considera-se a importância das re-
acompanhamento socioassistencial de famílias em lações familiares no contexto das políticas públicas
um determinado território, a potencialização da família sociais, visto que a política foi criada para amparar
como unidade de referência, fortalecendo vínculos as dificuldades provenientes dos núcleos familiares
internos e externos de solidariedade; a contribuição
para o processo de autonomia e emancipação so-
cial das famílias, fomentando seu protagonismo; o
desenvolvimento de ações que envolvam diversos
setores, com o objetivo de romper o ciclo de repro- ¹ O Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (SÃO PAULO, 2000),
dução da pobreza entre gerações e a atuação de considera como fatores geradores de vulnerabilidade: moradias
forma preventiva, evitando que essas famílias tenham precárias, baixa renda familiar, drogadição, pouca ou nenhuma
seus direitos violados, recaindo em situações de qualificação profissional, pois sobrevivem de subempregos
risco social. (trabalhadores rurais, catadores de materiais reciclados, entre outros)
e necessitam de intervenções assistenciais para o seu sustento.
Pode-se observar que no contexto das políticas as- Entende-se o conceito de vulnerabilidade por meio do Índice Paulista
sistenciais proposta pelo SUAS o enfoque é nas de Vulnerabilidade (IPVS) que a divide em duas categorias: alta e baixa
ações de fortalecimento dos vínculos familiares e vulnerabilidade, sendo que este índice “é resultante da combinação da
dimensão socioeconômica, ou seja, a renda apropriada pelas famílias
acompanhamento da dinâmica das relações familiares
e o poder de geração da mesma por seus membros, associada a
no âmbito do território de abrangência, ressaltando
uma dimensão demográfica, relacionada ao local de moradia e à
a centralidade dos trabalhos na família e não no
fase do ciclo de vida familiar, que potencializa riscos(...) ” (MACEDO;
KUBILOWSKI; BERTHOUD, 2006, p. 43).

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 41


em vulnerabilidade social. necessita-se de referenciais diferentes para abor-
dar a família de acordo com sua especificidade, ou
A família que observamos no século XXI apresenta
seja, cada família comporta um discurso sobre sua
muitas mudanças e padrões difusos de relaciona-
singularidade e constrói sua própria história dentro
mentos com laços esgarçados, no qual surgem vá-
de sua cultura.
rios questionamentos desta instituição por séculos
naturalizada, ou seja, como menciona Sarti (2010) É inegável que a multiplicidade e variedade de fatores
“Vivemos uma época como nenhuma outra, em que não permitem fixar um modelo familiar uniforme, sendo
a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a importante compreender a família de acordo com os
família, além de sofrer importantes abalos internos movimentos que constituem as relações sociais ao
tem sido alvo de marcantes interferências externas.” longo do tempo e do espaço cultural.
(p. 21).
A família, no contemporâneo, vem apresentando no-
Desde a revolução industrial muitas mudanças signi- vas configurações, novos arranjos, mas ainda pode-
ficativas aconteceram tais como o desenvolvimento mos perceber o predomínio da família nuclear. As
tecnológico e as descobertas científicas em relação novas configurações parecem estar mais pautadas
às técnicas de reprodução humana. nas relações de afeto e cuidado do que nos laços
consanguíneos. (FONSECA, 2005, 2007; OLIVEIRA;
Na década de 60 destacamos o surgimento da pílu-
VIEIRA; BARROS, 2010; SARTI, 2010; WATARAI,
la anticoncepcional que separou a sexualidade da
2010)
reprodução ampliando as possibilidades de atuação
da mulher no mundo social; trabalho remunerado da Fonseca (2005) aponta nas suas pistas analíticas,
mulher e ainda a intervenção médica sobre a família quanto às dinâmicas das famílias em grupos popu-
por meio das técnicas de reprodução. Na década lares, que a rede de parentesco se estende além da
de 70 temos a reinvindicação da livre escolha da consanguinidade e do espaço doméstico, isto é, são
maternidade, seja para evitar a gravidez ou para configuradas como rede de ajuda mútua. Também
provoca-la, o que na década seguinte culminou na ressalta que, em relação à perspectiva temporal,
luta contra a imposição da maternidade pelas tec- as pessoas estão inseridas em uma sucessão de
nologias. gerações com seu modo de vida peculiar. A pesqui-
sadora cita o caso encontrado na sua pesquisa em
Na década de 90 tivemos a difusão do exame de
2004 de uma senhora chamada Vanilda (empregada
DNA a qual passou a permitir a responsabilização
doméstica) que nas suas verbalizações diz sacrifi-
do pai pela filiação possibilitando proteção para a
car seus projetos individuais para ajudar sua família
mulher e, sobretudo, para a criança. Contudo, como
extensa (primos, ex cunhadas, sobrinhos e outros),
afirma Fonseca (2004) essa novidade trouxe ques-
diferentemente dos dados da pesquisa Rayana Rapp
tionamentos em relação à convivência de crianças
(1992), por ela mencionada, no qual foi observado
que, se “por um lado, o teste pode ser usado para
que as famílias brancas de camadas médias são
firmar o lado do parentesco, por outro lado, pode
mais individualistas.
ser usado para negar laços existentes. Isto é, pode
servir tanto na investigação quanto na contestação
Nas famílias pobres, por outro lado,
da paternidade”. (p.16)
parece que certas pessoas acabam
Mudanças no plano jurídico também foram obser- sacrificando seus projetos individuais
vadas em relação à família. ou os de seu núcleo familiar para sal-
var indivíduos problemáticos da rede
No Brasil, a Constituição Federal de extensa de parentes. Assim, a relação
1988 institui duas profundas alterações indivíduo família não pode ser pensada
no que se refere à família: 1. A quebra da mesma forma em todo lugar, pois a
da chefia conjugal masculina, tornando própria noção de família varia conforme
a sociedade conjugal compartilhada em a categoria social com qual estamos
direitos e deveres pelo homem e pela lidando. (FONSECA, 2005 p.52)
mulher; 2. O fim da diferenciação entre
filhos legítimos e ilegítimos (...) (SARTI, Sarti (2010) ressalta que a primeira característica
2010 p.24) observada nas famílias pobres é sua configuração em
rede e que necessariamente não precisam residir na
As mudanças citadas em relação à família produzem mesma casa. Corroborando com esta ideia, Fonseca
sentidos diversos de acordo com a camada social, (2005) , Watarai (2010) Oliveira; Vieira; Barros (2010)
visto que o acesso a recursos é desigual. Com isso citam que tais famílias se organizam em relação à

42 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


moradia de maneira que possam sempre acolher É importante mencionar que esta situação em que
as pessoas que necessitarem, desta forma não é a mulher assume o papel de provedora do lar vem
possível limitar a unidade doméstica, pois a mesma aumentando nas ultimas décadas e nesta condição,
funciona de acordo com as necessidades traçadas propiciada pelas diversidades dos arranjos familiares
pela ajuda mútua e reciprocidade. Exemplificando, como citado, pressupõe-se que os papéis e funções
Watarai (2010) confirma que “É em condições de familiares sejam realizados fora do espaço domés-
precariedade material que os integrantes das famí- tico não só pelos pais, mas também por avós, tios,
lias recompostas organizam suas experiências com vizinhos, padrastos, entre outros que possam se
uma diversidade de personagens, fruto de diferen- disponibilizar a participar desta rede de ajuda mútua.
tes uniões e presentes no espaço doméstico, e que
Marri; Wajnman (2007) apontam que a mulher assumiu
também ultrapassa os limites de moradia (...).(p. 42)
maiores responsabilidades, porém continua com as
Os conceitos de família e casa no universo simbólico mesmas atribuições domésticas e que os cônjuges
dos pobres não tem o mesmo significado: a casa é não se ajustaram nessa inversão de papéis. A mulher
identificada com a mulher que representa a chefe da mesmo saindo para atuar fora do ambiente domés-
casa (mantem a unidade do grupo familiar e cuida tico para colaborar com o sustento familiar ainda
de todos os membros); a família é identificada com continua, na maioria dos dados levantados, com um
o homem/chefe da família que faz a mediação com percentual bem maior do que seus companheiros
o mundo externo, representando a autoridade moral na execução dos trabalhos domésticos.
(respeito). (SARTI, 2010; WATARAI, 2010)
A literatura existente sobre o tema
Outra peculiaridade observada por Fonseca (2005) é
que as famílias pobres dificilmente passam pelo ciclo indica que o padrão “tradicional” dos
vital de desenvolvimento do grupo doméstico sem casais, segundo o qual os homens
rupturas conjugais; justifica-se que a vulnerabilida- têm a função de principal provedor da
de aumenta diante das expectativas não cumpridas renda familiar, tem dado espaço a um
no qual o homem sente-se fracassado e a mulher novo padrão em que as mulheres não
frustrada com o sonho do casamento. só contribuem como parte significativa
do orçamento familiar, como também,
Quando a mulher assume a parte financeira do
em muitos casos, são seus principais
lar, passando para a condição de chefe de família,
provedores (...) (MARRI; WAJNMAN,
ocorrem modificações importantes na qual o homem
2007, p. 20)
perde o status de provedor e sente abalada a sua
autoridade masculina. A mulher como chefe de famí-
lia pode transferir suas responsabilidades de chefe As alterações nas relações familiares fazem parte
da casa para outros familiares independente de ser das transformações ocorridas no decorrer da história
da mesma unidade doméstica. (FONSECA, 2007; e Singly (2000) aponta algumas delas ocorridas ao
OLIVEIRA; VIEIRA;BARROS, 2010;SARTI, 2010; longo do século XX: “o decréscimo dos casamentos,
WATARAI, 2010) das famílias numerosas, o crescimento das concubi-
nagens, dos divórcios, das “famílias pequenas”, das
famílias monoparentais, recompostas, do trabalho
A família pobre, constituindo - se em
assalariado das mulheres (...)”. (p. 13) e ainda res-
rede, com ramificações que envolvem
salta que tais mudanças podem ser influenciadas
o parentesco como um todo, configu- também pelo processo de individuação que sugere
ra uma trama de obrigações morais ser um jeito peculiar de viver olhando mais para si
que enreda seus membros, num duplo mesmo e seus desejos.
sentido, ao dificultar sua individualiza-
ção e, ao mesmo tempo, viabilizar sua Singly (2000) cita o romancista Christian Bobin para
existência como apoio e sustentação falar sobre a importância do olhar do outro para a
básicos. (SARTI, 2010 p. 31) construção do processo de individuação, dizendo que
é preciso passar por uma outra pessoa para chegar
às profundezas de si. Ressalta que as identidades dos
Nesse caso, quando a mulher assume despesas
indivíduos se constroem onde o amor circula, sendo
como a alimentação e o teto as crianças passam a
assim, a família passa a ter sentido e importância
ser responsabilidade de toda a rede de sociabilidade,
sob o olhar do outro, centrado no amor e na afeição.
caracterizando o que Oliveira; Vieira; Barros, (2010),
Portanto, a lógica do amor se impõe, no sentido de
Sarti (2010) e Watarai (2010) chamam de circulação
que os casais só ficam juntos enquanto se amarem
de crianças na rede de parentesco, ou seja, a mulher
e respeitarem o processo de individuação chamado
conta com o apoio daqueles que se pode confiar
pelo autor de família individualista e relacional onde
diante da situação de desamparo social.
se firmam os compromissos entre as “reinvindicações

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 43


dos indivíduos em se tornarem autônomos e seus Mediante as transformações da família apresentadas
desejos de continuar a viver , na esfera privada, com ao longo da história é que se propõe a refletir sobre o
uma ou várias pessoas próximas” (p. 15) e acres- papel dos profissionais de psicologia que de acordo
centa que é nesta tensão entre os polo relacional com a política da assistência social são convidados
e individualista que as famílias contemporâneas se a mudar o olhar elitista para atuar e desenvolver pro-
constroem ou se desfazem. gramas e projetos que viabilizem o empoderamento
dessas famílias pobres, considerando a diversidade
Os estudos de Bauman (2004) sobre as relações e
dos arranjos familiares propiciados pela modernidade.
vínculos na sociedade moderna apontam, por meio

4.OPOLÍTICAS
de uma comparação, que os mesmos se apresentam
como líquidos, não permanentes e atados frouxa- PAPEL DO PSICÓLOGO NAS
mente para serem desfeitos a qualquer momento. PÚBLICAS
Aponta as fragilidades dos vínculos humanos bem
como o sentimento de insegurança nas relações que A PNAS propõe, para a realização dos serviços socio-
se apresentam ambivalentes, no qual ao mesmo assistenciais, uma equipe interdisciplinar de referência
tempo em que desejam manter os laços afetivos, no qual os profissionais atuam no apoio, superação
os afrouxam por se depararem com sentimentos e fortalecimento das potencialidades das famílias
descartáveis, momentâneos ou instantâneos. em situação de vulnerabilidade. A equipe, segundo
a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos
O autor ainda considera que, diante desta satisfação do SUAS – NOB/SUAS/RH (2007), é constituída por
dos desejos instantâneos, os vínculos amorosos, ou psicólogos, assistentes sociais, coordenador, auxiliar
seja, o viver junto, passa a ter intenções modestas administrativo, educadores sociais, entre outros e
que não se prestam a juramentos diante de teste- sua composição dependerá do número de famílias
munhas para consagrar tal união. Enfim, os casais referenciadas no território, ou seja, da área delimitada
ficam juntos apenas quando querem ou quando estão para atendimento da população.
a fim, caso contrário, cada um segue o seu caminho
buscando a realização dos seus desejos. Cada profissional, de acordo com sua formação, dará
a sua contribuição para a efetivação das ações de
A partir deste conceito, torna-se necessário desmis- forma integrada, porém a ênfase nesse trabalho é
tificar a idealização de uma dada estrutura familiar na atuação do psicólogo que deve atuar para diri-
como sendo a tradicional, abrindo-se caminhos e mir as vulnerabilidades socioassistenciais por meio
possibilidades para o reconhecimento da diversidade do acolhimento e empoderamento dos membros da
das organizações familiares no contexto histórico e composição familiar.
social. Sendo assim,
O profissional de psicologia para atender essa demanda
[...] não se trata mais de conceber um específica das políticas públicas sociais, necessita
modelo ideal de família, devendo-se ul- de um reposicionamento de sua prática na qual,
trapassar a ênfase na estrutura familiar
para enfatizar a capacidade da família [...] esses profissionais não devem
de, em uma diversidade de arranjos, “patologizar” ou categorizar os usuá-
exercer a função de proteção e sociali- rios do CRAS nos seus atendimentos,
zação de suas crianças e adolescentes mas intervir de forma a utilizar de seus
(BRASIL, 2006, p. 24). recursos teóricos e técnicos para: a)
compreender os processos subjetivos
Assim, a autora Roudinesco (2003) considera que a que podem gerar ou contribuir para a
família enquanto instituição não se dissolveu e sim se incidência de vulnerabilidade e risco
reorganizou garantindo a reprodução das gerações social de famílias e indivíduos; b) con-
de maneira diferente, no qual o casamento não é tribuir para a prevenção de situações
mais tão enfatizado como as relações de uniões que possam gerar rupturas dos víncu-
afetivas que se unem por períodos aleatórios e os los familiares e comunitários, e c) favo-
filhos que, antigamente, quando nascidos fora do recer o desenvolvimento da autonomia
matrimonio, eram considerados como algo aterro- dos usuários do CRAS. Esses profis-
rizante, hoje passou a ser um fato natural. Apesar sionais devem fazer encaminhamentos
dessas constantes transformações ocorridas na psicológicos para os serviços de saúde,
família ao longo dos séculos, a mesma continua a quando necessários. (BRASIL, 2009)
ser reivindicada por mulheres, homens e crianças,
independente de idade, orientação sexual e classe Cruz (2009) ressalta que o psicólogo é solicitado a
social. (RINHEL-SILVA, 2009) desenvolver ações de cunho social, cujos pareceres

44 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


visem diagnosticar a realidade social da comunidade As transformações nas estruturas das instituições
ou da família e não do indivíduo isoladamente, salvo familiares ocorreram ao longo da história influenciadas
exceções. por vários fatores, entre eles a Revolução Industrial, a
descoberta da pílula anticoncepcional e dos exames de
O SUAS ao requisitar a participação do DNA, trabalho remunerado da mulher e também pelas
psicólogo na equipe que iria executar novas tecnologias. Tais modificações influenciaram
a atual política nacional da assistência, nas configurações familiares na contemporaneidade
solicitou deste profissional que contri- no qual pode se verificar diversos arranjos familiares
buísse com o saber psíquico, para e mudanças nas relações de gênero.
transformar a realidade social e co- As mudanças nas famílias produzem sentidos di-
munitária do sujeito no seu convívio versos dependendo da classe social, sendo assim,
familiar. Assim, estabelece que as in- torna-se importante ressaltar que a abordagem em
tervenções tenham um caráter social relação às mesmas não pode ser a partir de um
e grupal, sendo priorizadas práticas único referencial. Cada família comporta um discur-
em meio aberto e comunitário em so singular dentro de sua história e de sua cultura,
detrimentos de práticas mais indivi- no qual o ciclo vital e suas vicissitudes tornam-se
dualizantes. (p. 22) dados de suma importância. É preciso olhar para a
família, para as suas necessidades, potencialidades
Dessa forma, considera-se que o processo de in- e, principalmente, considerar a cultura familiar para
serção do psicólogo na assistência social oferece a elaboração das Políticas Sociais, ou seja, ouvir a
muitos desafios, sendo necessária a qualificação família e entender primeiro qual é seu funcionamento
dos profissionais, redefinindo o foco de acordo com antes da intervenção técnica.
o novo discurso do compromisso social proposto Esse olhar singular é imprescindível para a sen-
pela psicologia, baseando-se no servir a sociedade sibilização e atuação do profissional de psicologia
em suas carências e necessidades, considerando a no sentido de atender à demanda para a qual foi
subjetividade dos fenômenos constituídos na relação chamado pela política pública. A política social, es-
com a objetividade, por isso “nunca são fenômenos pecificamente o SUAS, requisitou a participação do
apenas individuais, são necessariamente sociais e psicólogo na equipe multidisciplinar e atribuiu-lhe
históricos”. (GONÇALVES, 2010 p.24) a responsabilidade, junto com outros profissionais,
pelas ações de acolhimento, empoderamento dos
Toda intervenção ou atuação profis- membros familiares e, ainda, dirimir as vulnerabili-
sional no campo social aponta a ne- dades diagnosticadas no território de abrangência
cessidade de uma compreensão da no qual está atuando.
realidade que vá para além de aspec-
É importante ainda ressaltar que o psicólogo inseri-
tos globais, de relações amplas, de
do na política pública da assistência social precisa
movimentos de grupos ou parcelas repensar alguns parâmetros de atuação que nortea-
da população, de processos gerais. É vam sua prática e superar concepções elitistas que
preciso também uma compreensão das por muito tempo orientou sua atuação, visando a
subjetividades aí envolvidas, como se transformação da realidade dos indivíduos inseridos
manifestam, como contribuem para a no contexto familiar.
constituição desses processos, como
são por elas afetadas. [...] conside-
rando a dialética e o caráter histórico
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46 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
7

A MÚSICA COMO FACILITADORA DO ESTADO DE FLOW NO


TÊNIS DE ALTO RENDIMENTO

RESUMO
No caso deste trabalho, foram estudadas maneiras de potencializar
Ana Beatriz Santos
Honda resultados em praticantes de tênis de alto rendimento, melhorando
seus desempenhos ao unir o treino físico com o treino mental. Para
isto, a ferramenta utilizada foi a música, introduzida nos treinos com
um exercício que induzia ao estado de flow. Sendo assim, este
trabalho tem como objetivo geral explorar os estudos desta área
da Psicologia, identificando a influência da música no esporte. Para
averiguar a influência da música no estado de flow, foi realizada
uma pesquisa em uma academia particular de tênis, em que foram
coletados dados quantitativos e qualitativos. Os dados qualitativos
foram obtidos através de breves entrevistas semi dirigidas que
antecediam o treino, em que eram perguntados aspectos relevantes
à ocorrência do flow e às possíveis novas variáveis incontroláveis que
pudessem surgir. Já os dados quantitativos foram coletados durante o
exercício praticado pelos atletas, contabilizando os acertos e erros de
cada um na atividade aplicada nos treinos, tanto com a presença da
música quanto sem a mesma. Somada às condições necessárias, a
música se torna uma indutora do estado de consciência em questão,
podendo ser grandemente aproveitada para estudos na psicologia do
esporte, visando a melhoras de rendimento baseada em um treino
mental mais aprofundado e intenso, focando na concentração.

Palavras-chave: Flow; Música; Tênis.

10.37885/200400128
1. INTRODUÇÃO TEÓRICA a um alto nível de concentração, pico
de desempenho, distorções tempo-
rais, foco em um objetivo, habilidades
adequadas para enfrentar os desafios,
1.1 ESTADO DE FLOW recebimento de feedbacks imediatos
sobre o desempenho e perda de au-
O conceito de flow (também conhecido como flow-
toconsciência. (CSIKSZENTMIHALYI,
-feeling, estado de fluência, fluidez, entre outros) foi
desenvolvido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi 1990 apud ROETTGERS, 2014, p.24)
na década de 1970, e desde então vem sendo apli-
cado em diversas áreas da psicologia. Ele pode ser Aplicando o conceito de flow na área esportiva, de-
definido pelo estado de consciência em que uma ve-se considerar que o flow independe de ganhar
pessoa fica completamente absorvida pelo que está ou perder e ocorre em pessoas que se encontram
fazendo, excluindo qualquer outro estímulo externo altamente envolvidas na atividade, mesmo sem re-
(como estímulos visuais ou sonoros) ou interno (como compensas externas (JUNIOR, M. 2012).
pensamentos e sentimentos). É o momento em que Considerando suas características, o flow tem uma
mente e corpo estão em harmonia, causando uma contribuição altamente positiva no contexto esportivo.
sensação de prazer e satisfação na pessoa (JACK- De acordo com Marina Peinado (2011, p.7),
SON, S; CSIKSZENTMIHALYI, M, 1999).
Segundo Csikszentmihalyi (1990 apud ROETTGERS, O flow integrado normativamente na
2014, p.24), para que o flow possa ocorrer, há três prática desportiva ajuda a compreen-
condições fundamentais. A primeira é uma coerên- der não apenas o engajamento afetivo
cia entre o desafio a ser enfrentado e a habilidade na prática de alguma atividade física
da pessoa de enfrentá-lo (isto é, a demanda deve ou desportiva (mantendo o praticante
ser possível de ser alcançada, de acordo com o intrinsecamente motivado, implicando
repertório de habilidades da pessoa). A segunda se maior assiduidade, empenho, tempo
refere à clarificação das metas e objetivos, ou seja, de permanência e satisfação), mas
o sujeito deve ter conhecimento exatamente do que também o desempenho máximo des-
pretende alcançar. E, por último, a terceira condição portivo.
é a existência de feedbacks imediatos da atividade
praticada.
Especialmente em modalidades esportivas de alto
Tendo como base estas três condições, a chance de rendimento, o flow é muito importante para a melhoria
ocorrer o flow é potencializada em atividades físicas de habilidades de atletas.
como tocar algum instrumento musical, dançar e pra-
ticar esportes, visto que são atividades com metas e Atingir o melhor desempenho possí-
objetivos claros, guiadas por regras e que requerem vel é o principal objetivo dos atletas e
a existência de habilidades específicas para serem seus técnicos em competições. Nesse
praticadas (CSIKSZENTMIHALYI, 1990). Dessa forma, cenário, o flow se constitui como uma
o esporte é um grande facilitador para a ocorrência importante ferramenta que pode faci-
do flow, devido à sua grande estruturação. litar o alcance desse resultado, pois
Este estado de consciência, de acordo com Csiks- empurra o atleta em direção aos seus
zentmihalyi (1990 apud ROETTGERS, 2014, p. 24), limites, fazendo com que o seu nível de
faz emergir seis características ou dimensões. São habilidades aumente. (ROETTGERS,
elas: concentração intensa e focada naquilo que se 2014, p.48).
está fazendo; fusão entre ação e consciência; perda
da autoconsciência; senso de controle sobre suas Entretanto, visto que o flow é uma experiência au-
ações; distorção temporal e experiência autotélica. O totélica, não são apenas os atletas de alto rendi-
termo autotélica se refere a “atividades válidas por si mento que podem alcançar este estado mental. No
próprias, intrinsicamente gratificantes, que não preci- contexto esportivo, ele é ampliado para todos aque-
sam de uma recompensa externa” (PEINADO, 2011, les praticantes de exercício físico, mesmo com fins
p.12). Tais características, unidas às três condições recreativos ou de reabilitação. Ainda assim, o flow
já citadas, somam os princípios e fundamentos do costuma ser mais focado na atuação com atletas de
flow proposto por Mihaly Csikszentmihalyi (1999). alto rendimento pois cada mínima melhora tende a
repercutir intensa e diretamente nos resultados de
É comum (...) que as pessoas descre- competições e torneios, que envolvem altas deman-
vam essa experiência relacionando-a das e recompensas.

48 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


No âmbito do esporte competitivo, o flow pode ser tecnicamente (SAMULSKI, 2009 apud
uma técnica que beneficia o atleta tanto em momen- JUNIOR, 2012, p.608)
tos de treinos quanto em momentos de competição.
A presença do flow faz com que o treino seja mais Em momentos de competição, se o atleta está muito
proveitoso, potencializando a aprendizagem de habi- focado nas recompensas e no resultado, é muito fácil
lidades motoras e o aperfeiçoamento de movimentos não conseguir estar 100% concentrado na atividade
já conhecidos. Já em competições, o flow faz parte praticada e se desviar do objetivo. Focar-se intensa-
do treinamento mental imprescindível para alcan- mente nos resultados pode fazer com que o atleta
çar rendimento excelente, gerando total atenção e perca a possibilidade de atingir o estado mental que
concentração na tarefa, sem se deixar distrair por o auxiliaria a alcançar seu melhor desempenho pos-
estímulos externos (como o barulho da torcida) e sível (JACKSON, S; CSIKSZENTMIHALYI, M, 1999).
internos (como os próprios pensamentos e senti- Por outro lado, quando em estado de flow, o atleta é
mentos incongruentes com a situação). naturalmente impulsionado a ir além de seus limites
com uma percepção menor de esforço, entrando em
Embora o esporte seja um facilitador e potencializador
um ritmo de fluência e extrema satisfação.
do flow, há algumas limitações para todos os atletas
o alcançarem, além das condições e dimensões já Em virtude dos fatos mencionados, o estado de flow
mencionadas. De acordo com Jackson e Csikszent- é muito benéfico na prática de esportes competitiva
mihalyi (1999), o alcance do estado de flow depende e de alto rendimento, considerando que este estado
também de diversos traços de personalidade, aspec- mental tem a capacidade de levar as pessoas a um
tos cognitivos e características do ambiente, e cabe envolvimento mais profundo pela concentração total
aos treinadores, professores e técnicos encontrarem na atividade (MASSARELLA, 2008, p.96).
atividades e ambientes que induzam os atletas ao
flow, além de também se atentarem a característi- Para isso, ressaltamos a importância
cas pessoais individuais (como alterações de humor, dos profissionais da Educação Física
traços específicos de personalidade, capacidades de adequar as expectativas com rela-
de atenção e concentração) que possam dificultar
ção ao desempenho pessoal na ativida-
o alcance do flow, para então trabalhar nelas e au-
de e a real capacidade de resposta dos
mentar a probabilidade de o flow ocorrer.
alunos e atletas, mantendo o equilíbrio
Ao mesmo tempo em que o esporte é facilitador entre desafio e habilidade, um dos pi-
do flow, o flow também é facilitador do esporte. O lares da teoria do flow; de orientarem
estado de fluxo envolve um alto nível de concen- os praticantes para que aprendam a
tração e atenção, motivo pelo qual alcançá-lo é tão ter sempre clareza sobre quais são
benéfico para modalidades esportivas como o tênis, suas metas na atividade e o que de-
que requer muito foco e concentração. Com um alto vem fazer para atingir os objetivos; de
teor competitivo e individualista, os sentimentos de aprenderem formas de obter feedback
insegurança e medo, causados por momentos de
sobre seu desempenho a curto, médio
tensão e pressão, podem acabar atrapalhando te-
e longo prazo, monitorando parcialmen-
nistas em momentos de competição. Sendo assim,
o flow permitiria que o atleta se desligasse comple- te e globalmente se suas ações estão
tamente desses sentimentos negativos e de outros realmente conduzindo aos resultados
estímulos, como barulho de torcidas, ansiedade e almejados. Também orientá-los para
pensamentos focados em outras coisas que não o que consigam manter-se focados o
esporte, fazendo com que sua atenção fique con- maior tempo possível em elementos
centrada apenas naquele momento, sem esforço, relacionados à execução da atividade,
transformando uma situação estressora em uma para que encontrem formas de impedir
fonte de satisfação e bem-estar. que fatores externos interfiram negati-
vamente em seus pensamentos e senti-
O flow pode contribuir para suprir al- mentos. Controlando esses elementos,
gumas necessidades encontradas em as pessoas podem ter maior domínio
tenistas durante os treinamentos e sobre suas experiências mentais e so-
competições, como estabelecer uma bre a qualidade de suas vivências na
atitude positiva para o jogo, concen- atividade, o que pode levá-las a um
trar-se durante a partida, manter-se maior engajamento pela satisfação que
focado durante tarefas decisivas, con- pode trazer.
trolar-se emocionalmente em situações
de pressão e perceber e analisar o jogo É nesse contexto que surgem as intervenções no

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 49


esporte utilizando o estado de flow, visto que ele pode outros). Por outro lado, o jogo interno ocorre dentro da
ser também induzido a partir do controle de variáveis mente do jogador, e o objetivo é superar obstáculos
específicas. Há estudos em que a ocorrência do internos como lapsos de concentração, ansiedade,
flow e/ou das características do mesmo é evidencia- nervoso, falta de autoconfiança e autojulgamento
da por pesquisa qualitativa (envolvendo estruturas muito intenso. Em geral, o jogo interno é jogado
semi estruturadas e observação) e quantitativa, de para vencer os hábitos e tendências que inibem a
modo que os participantes de tais estudos relatam excelência na performance (GALLWEY, 1996).
os sentimentos provenientes da prática do exercício
físico e descrevem suas sensações, como é o caso Estas aptidões interiores não têm ape-
do estudo de Márcio Júnior et al. (2012). nas um efeito notável no forehand, no
De acordo com Fábio Luiz Massarella (2008, p.96), backhand, no saque e no voleio de
cada um (o jogo exterior de tênis). Elas
(...) as condições de ocorrência do es- são igualmente valiosas em si mes-
tado de flow podem ser facilitadas por mas e têm ampla utilidade em outros
meio da intervenção dos profissionais aspectos da vida. Quando um jogador
da Educação Física, elaborando ativi- consegue reconhecer, por exemplo,
dades onde exista um equilíbrio entre que aprender a concentrar-se pode
o desafio proposto e a capacidade dos ser mais valioso para ele do que um
sujeitos, desde que elas estimulem backhand, ele deixa de ser um jogador
os praticantes a utilizarem ao máximo primário do jogo exterior para tomar-se
o seu potencial, pois o flow tende a um mais competente jogador do Jogo
ocorrer quando os níveis de habilidade Interior. Então, em vez de aprender a
pessoal são adequados à demanda e se concentrar para melhorar o seu jogo
quando estas constituem um verdadei- de tênis, ele joga tênis para melhorar a
ro elemento de crescimento pessoal e sua concentração. Isso representa uma
autoconhecimento. mudança crucial de valores. Somente
quando essa mudança acontece é que
Sendo assim, deve-se ressaltar a importância de o jogador se liberta das ansiedades e
os atletas, tanto do esporte recreativo quanto com- frustrações que resultam de uma exa-
petitivo, exercitarem o treino mental para facilitar a gerada dependência dos resultados do
ocorrência do flow e resultar em treinos com mais jogo exterior. (GALLWEY, 1996, p.135)
aproveitamento, motivação e satisfação, potencia-
lizando resultados. A existência de um jogo exterior separado do jogo
interior explicaria por que, em treinos, alguns atletas
atingem excelência, enquanto em competições não
1.2 TÊNIS chegam aos resultados esperados; ou também por
que os desempenhos do mesmo atleta na mesma
Assim como qualquer esporte, o tênis é uma moda- modalidade podem diferir tanto de uma competição
lidade física que exige habilidades técnicas motoras para outra.
para ser praticada, especialmente atributos de força,
Em resumo, ambos os jogos externo e interno são
rapidez, resistência e destreza (SHARP, 1979 apud
importantes para atingir excelência no desempe-
GODTSFRIEDT; ANDRADE; VASCONCELLOS, 2014).
nho, sendo que um influencia simultânea e inten-
No entanto, além disso, o tênis também demanda
samente o outro durante uma partida. Uma vez que
habilidades psicológicas específicas, como o jogador
o jogo externo é treinado constante e diretamente
saber lidar com os próprios erros (GODTSFRIEDT;
com treinadores e técnicos da modalidade, deve-se
ANDRADE; VASCONCELLOS, 2014), concentração
atentar especialmente ao jogo interno. Antigamente,
e atenção, autoconfiança e regulação da ansiedade
pensar em um treinamento mental para melhorar a
(SOARES, 2008).
performance no tênis era raro, visto que os treinos
Segundo Tim Gallwey (1996), todo jogo é composto eram baseados em aspectos técnicos e táticos do
pelo jogo exterior e pelo jogo interior. O jogo exterior jogo (FARIA, 2002). Sendo assim, o treino mental
é jogado contra um oponente externo, com o objetivo de jogadores se torna essencial para aperfeiçoar o
de superar obstáculos externos, e utilizando técnicas desempenho no esporte.
motoras aprendidas dentro de cada esporte especí-
No caso do tênis, o treino mental prepararia o atleta
fico (no caso do tênis, o jogo externo seria o tenista
tanto para o momento da competição, em que há
superar o adversário utilizando habilidades técnicas
naturalmente uma maior pressão atrelada ao jogo,
como ótimas execuções de saque, backhand, entre

50 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


quanto também para o melhor desempenho possível Seguindo o raciocínio de Terry e Karageorghis (2006),
nos treinos. Para isto, o estado de flow é muito de- os principais benefícios trazidos pela música a atletas
sejável, pois potencializa as habilidades do jogador e praticantes de exercícios físicos são relacionados
ao fazê-lo focar inteiramente o exercício, excluindo ao humor (atingindo estado de humor positivo e di-
quaisquer outros estímulos coexistentes. minuindo o mau humor), ao controle da ativação
(pela excitação ou relaxamento pré competitivo), ao
Ressalta-se que a atenção e concentração são es-
caráter dissociativo da música (capaz de diminuir a
senciais para a prática do tênis, pois faz com que o
percepção de dor, esforço e fadiga), ao aumento do
jogador tenha menos chances de distração (que pode
trabalho (quando se sincroniza o movimento com a
ser fatal em determinados momentos, especialmente
música) e ao atingimento do estado de flow. Todos
partidas decisivas) e também tenha mais controle
esses benefícios contribuem para uma melhora geral
sobre seus próprios pensamentos e sentimentos,
no desempenho.
direcionando-o unicamente para a prática do tênis.
Tais características e habilidades são os fundamen- Particularmente a respeito de atingir o flow, a música
tos do flow feeling, mais uma vez evidenciando sua pode contribuir por conta de seu caráter dissociativo.
contribuição para a prática do esporte em questão. Segundo Duarte (2009, p. 35),

O caráter dissociativo da música pode


1.3 MÚSICA auxiliar retirando o foco de atenção em
pistas ambientais desnecessárias como
A música é parte da cultura da humanidade, com
o pensamento direcionado a problemas
registros de produção desde a Pré História. Atual-
familiares ou com a torcida, facilitando
mente, a música pode ser caracterizada como uma
a manutenção do foco na rotina pré -
linguagem universal, maneira de expressão que atua
sobre diversos contextos da sociedade moderna. competitiva.
Dessa forma, no esporte não é diferente: a música
tem grandes influências no âmbito esportivo, tanto Sendo assim, em momentos em que o atleta sente a
na categoria competitiva quanto na recreativa. pressão em situações competitivas, a música pode-
ria ajudá-lo a se dissociar da dificuldade e focar no
Para exemplificar, atletas olímpicos como Usain Bolt exercício. Isso eliminaria obstáculos causados pelo
e Michael Phelps já afirmaram, em entrevistas, que barulho de torcidas em dias de partidas, por exemplo.
utilizam a música como um recurso que os ajuda a Da mesma maneira, acontece quando o atleta vai
se concentrarem, focarem na competição e aumentar à competição pensando em problemas pessoais,
a motivação. Haile Gebrselassie, etíope que pratica familiares e/ou relacionais. A música o ajudaria a
o atletismo, quebrou recordes olímpicos pois afirmou dissolver tais pensamentos por ora, fazendo-o se
ter sincronizado seus passos com a batida da música concentrar na tarefa e no esporte.
Scatman, e pediu que a mesma tocasse no momento
de competição. Estes são apenas exemplos de como Para alcançar o estado de flow, atenção e concentra-
a música pode beneficiar o atleta a alcançar uma ção são imprescindíveis. É neste contexto que entra
melhor performance esportiva. a música, à medida que ela tem a capacidade de
potencializar a atenção e a concentração no momento.
De acordo com Terry e Karageorghis (2006), a música
tem a capacidade de melhorar o humor, controlar Um ponto relevante a considerar é que
a excitação, aumentar a aquisição de habilidades a atividade física com música, por ser
motoras, distrair o atleta de sentimentos de dor e mais agradável, poderia reforçar a sen-
fadiga, chegar a estados de flow, entre outros, por
sação de “desligamento” ou o estado
conta de fatores como a musicalidade, impacto cul-
de “fluxo ou fluência” flow (MIRANDA,
tural, resposta rítmica e associações extramusicais.
GODELLI, 2003, p. 88).
Portanto, todas as pessoas envolvidas
Portanto, pode-se concluir que a música, além de
em atividades físicas ou esportivas
ter um valor cultural e sentimental muito forte, tam-
podem utilizar-se da música em mo- bém pode ser considerada como uma ferramenta
mentos diversos como treinamentos, de potencializar rendimento e resultados na prática
competições e como estratégia de re- do esporte e do exercício físico, contribuindo com
cuperação pós-competitiva, desfrutan- estudos da Psicologia Esportiva.
do de seus diversos benefícios ergogê-
nicos. (DUARTE, 2009, p.14)

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 51


2. OBJETIVOS treinos, porém de escolha de cada atleta), em que
foram contabilizados os acertos e erros.
Este trabalho tem como objetivo geral explorar O exercício do treino, em ambas as etapas, teve o
os estudos desta área da Psicologia do Esporte, objetivo de induzir ao flow, em que cada atleta indivi-
identificando a influência da música no esporte de dualmente bateu com a raquete na bola para jogá-la
alto rendimento, e como objetivo específico averi- para o outro lado da quadra, com a finalidade de
guar, em atletas juvenis e profissionais de tênis, a acertar uma área específica (desenhada na quadra),
ocorrência do flow sob a influência da música em durante 3 minutos por lado (totalizando 6 minutos por
uma pesquisa qualitativa e quantitativa. atleta). Sendo linha de base, não houve a presença
de nenhuma variável, portanto sem música.

3. MÉTODO

Para averiguar a influência da música no es-


No caso da primeira semana, o alvo era a parte da
quadra após o “T” (uma linha divisória que fica a
aproximadamente 6,40 metros da rede, configuran-
tado de flow, foi realizada uma pesquisa em uma do-se como pouco menos de ¼ de toda a quadra).
academia particular de tênis. A academia oferece Nas três semanas seguintes, foram acrescentados
aulas de tênis individuais e em grupo, para crian- dois alvos desenhados na quadra de saibro (áreas
ças, adolescentes ou adultos, de acordo com cada pequenas retangulares nas extremidades da quadra,
objetivo e demanda. Para o caso desta pesquisa, os sendo um do lado esquerdo e outro do lado direito,
sujeitos de pesquisa são três atletas de uma turma rentes à linha de fundo). Foram contabilizados acertos
que visa ao tênis profissional e competitivo, portanto quando os atletas acertavam estas áreas.
também conta com o acompanhamento de um psi-
Acertar a área após o “T” equivalia a 1 ponto. Acertar
cólogo do esporte para potencializar o trabalho. Os
um dos alvos nas extremidades valeria 3 pontos.
atletas desta turma são todos do sexo masculino,
Por fim, acertos consecutivos nos alvos valeriam
entre 16 e 20 anos de idade.
5 pontos (uma pontuação maior para incentivar e
Para coletar os dados, foram feitas entrevistas semi induzir o estado de flow).
dirigidas aos atletas antes do treino de tênis com a

4.RESULTADOS
presença da música, para poder verificar se houve
a presença e influência de outras variáveis atuando
nos resultados dos treinos.
Ao longo dos treinos, foram coletados os dados,
Os dados também foram coletados de forma quan- que foram então registrados em formato de tabelas
titativa durante o exercício praticado pelos atletas, e ilustrados por gráficos. Inicialmente, participariam
contabilizando os acertos e erros de cada um na do estudo 3 atletas; no entanto, por problemas de
atividade aplicada nos treinos, tanto com a presença saúde, um dos atletas não pôde mais comparecer,
da música quanto sem a mesma. sendo, portanto, retirado do estudo. Em seu lugar,
entrou um atleta maior de idade.
Os treinos foram divididos em duas etapas: a primeira
etapa serviu para estabelecer uma linha de base sem O único atleta que compareceu a todos os dias de
a presença da música, com duração de 4 treinos para treinos foi L., 16 anos, tendo, portanto, os registros
conseguir atingir maior veracidade e estabilidade mais completos. Como é possível verificar nas tabelas
da coleta de dados. Já a segunda etapa (3 treinos) 1 e 2 e nos gráficos 1 e 2, após a entrada da variável
contou com a presença da música durante os treinos música (a partir do treino de 21/09/2018), houve um
(uma única música para cada atleta durante os sete aumento notável na quantidade de alvos atingidos.

Tabela 1 Tabela 2

52 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Gráfico 1 Gráfico 2

A denominação “área 1” se refere à área da quadra cujo acerto vale 1 ponto. Já a denominação “área 2”
indica os dois alvos cujo acerto vale 3 pontos.
L. obteve um rendimento crescente em todos os treinos. A quantidade de alvos atingida foi maior em níveis
exorbitantes, indicando que houve uma grande mudança responsável pelos resultados.
Já o atleta P., 16 anos, como é possível verificar pelas tabelas 3 e 4, não compareceu aos treinos dos dias
31/08 e 21/09, entre os quais o primeiro era uma parte da linha de base. Ainda assim, como visível nos grá-
ficos 3 e 4, os seus resultados também denotam um aumento significativo no número de acertos de alvos.

Tabela 3 Tabela 4

Gráfico 3 Gráfico 4

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 53


Por fim, o atleta S., 19 anos, participou de apenas 3 treinos, porém seus resultados também indicaram me-
lhora de rendimento, como perceptível nas tabelas 5 e 6 e gráficos 5 e 6.

Tabela 5 Tabela 6

Gráfico 5 Gráfico 6

Todos os atletas são do sexo masculino e destros. São visíveis também diferenças quanto à lateralidade nos
resultados apresentados, que em sua grande maioria indicam um melhor rendimento do lado direito.
Como explicado anteriormente, também foram consideradas outras variáveis que pudessem estar presentes
nos 3 últimos treinos (todos aqueles que não marcavam linha de base) por meio da breve entrevista realizada
com cada atleta antes dos exercícios. A respeito disso, as respostas dos atletas foram tabeladas para melhor
compreensão, assim como visto nas tabelas 7, 8 e 9.

Tabela 7

54 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Tabela 8

Tabela 9

5. DISCUSSÃO

A partir dos resultados obtidos em todos os dias


três condições, de maneira que a tarefa pedida aos
atletas (atingir os alvos em três minutos corridos) era
algo facilmente alcançável por todos, por conta das
de treinos, é possível afirmar que a música de fato é habilidades motoras que cada atleta apresentava.
uma variável que impulsionou o rendimento de todos Além disso, as metas e objetivos também foram cla-
atletas estudados. Isso pode se atribuir à melhora rificadas, isto é, cada atleta sabia exatamente o que
na concentração, ou seja, a presença da música precisava alcançar no exercício (que, no caso, era
elevou o nível de concentração e foco na atividade o maior número de alvos possível), e, por fim, havia
física dos atletas, o que por sua vez preparou os feedbacks imediatos da tarefa, tanto por conta da
participantes para a ocorrência do estado de flow. própria observação dos atletas, que poderiam che-
car se a sua batida havia acertado o alvo ou não no
Escreve-se “preparou” pois o estado de flow não é momento imediato, tanto pelos feedbacks passados
uma intercorrência natural que aparece sempre que pela pesquisadora, que expunha o número de áreas
há concentração. Esta é uma dimensão que ocorre e alvos atingidos em cada lado imediatamente após
simultaneamente ao estado de consciência referido, o término do exercício.
porém não é a única, e nem uma condicional cuja
existência necessariamente leva à fluidez. Sendo assim, as três condições fundamentais para a
ocorrência do flow estavam garantidas. A partir delas,
De acordo com o que já foi discutido anteriormente, tal estado de consciência poderia ocorrer, gerando
há três condições fundamentais para que o estado mais seis características (concentração intensa e
de flow possa ocorrer: a coerência entre desafio e focada naquilo que se está fazendo; fusão entre
habilidade; clarificação das metas e objetivos; e fee- ação e consciência; perda da autoconsciência; senso
dbacks imediatos da atividade praticada. Nos treinos de controle sobre suas ações; distorção temporal e
propostos nesta pesquisa, foram proporcionadas as

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 55


experiência autotélica). que os dados da pesquisa foram coletados, a música
proporcionava todas estas condições.
Algumas dessas características não são observáveis
externamente, portanto não puderam ser mensuradas Para todos os atletas, as condições foram as mes-
para o estudo. No entanto, um grande indicador da mas. Isto é, a tarefa era a mesma, com o mesmo
existência do estado de flow é a melhora evidente objetivo, e sempre com a mesma pessoa lançando as
de rendimento, o que pôde ser verificada e obser- bolas. O que diferia entre um e outro era o material
vada pelos registros numéricos durante o treino. Por utilizado (as raquetes eram diferentes entre cada
exemplo, para o atleta L., durante as semanas de atleta, porém as mesmas em todos os treinos), a
linha de base, foi alcançada uma média de 1,3 alvo música escolhida (sendo uma do gênero pop, ou-
do lado esquerdo e 2,3 alvos do lado direito por tra do gênero eletrônico e outra do gênero hip hop,
dia, enquanto que, a partir da introdução da música com batidas completamente diferentes, escolhidas
como variável, esta média subiu para 11 alvos do de acordo com a preferência de cada atleta) e, por
lado esquerdo e 11,6 alvos do lado direito por dia. fim, as possíveis variáveis não controláveis que po-
Foi uma melhora de rendimento chamativa, e não deriam estar presentes em cada atleta (dados que
é coincidência a introdução da música. foram colhidos durante as entrevistas semi dirigidas).
Ainda sobre as características trazidas pelo estado Quanto ao material ser diferente entre um atleta e
de flow, a atividade autotélica também não pôde ser outro, pode-se dizer que isto não afetou a análise dos
verificada, visto que é uma sensação que acontece resultados obtidos, visto que foram comparados os
no interior do praticante. No entanto, visto que destes números de apenas um atleta por vez, diferenciando
exercícios vinham um registro numeral de acertos e os dias, e não comparada a quantidade de alvos
erros e também geravam um ranking entre os atletas, entre cada atleta como uma competição.
não é possível afirmar que não houve recompensa
Já a respeito da música ser diferente para cada
provinda de bons resultados na atividade, pois é
participante, a análise de dados também não foi
altamente reforçador observar sua própria melhora
comprometida por isso, pelo mesmo motivo explici-
de rendimento, assim como é reforçador ficar em
tado no parágrafo anterior. No entanto, não há como
primeiro lugar no ranking. Ainda assim, foi observado
afirmar se um gênero musical é mais benéfico para
que os atletas participantes não se preocupavam
a atividade proposta do que outro, visto que têm
com suas posições no ranking e pontuações, uma
propriedades diferentes, batidas diferentes. Por este
vez que não demonstravam interesse em saber os
motivo, a escolha da música foi deixada a critério de
resultados. Tinham, entretanto, interesse em saber
cada atleta, sem considerar um único gênero cujas
quantos alvos acertaram, número que lhes era pas-
propriedades o configurassem como o melhor para
sado ao final do exercício. Dessa forma, mesmo
o tipo de exercício. A única regra era que fosse a
que houvesse recompensas (desconfigurando a
mesma música para ambos os lados e para todos
atividade autotélica), não é possível afirmar que a
os treinos, mudando apenas por atleta.
motivação era extrínseca (ou seja, provinda de fora
do atleta, como de pontuações e premiações), mas Por fim, a respeito das possíveis variáveis incontro-
sim intrínseca, pois o que importava para eles era o láveis, estes dados foram analisados de acordo com
próprio resultado e a própria melhora de rendimento. as tabelas 7, 8 e 9. As respostas foram obtidas por
O reforçador era interno. meio de entrevista semi dirigida no momento imediato
de pré treino e individualmente. Isto é, as pergun-
A música, como já exposto, tem propriedades alta-
tas estavam previamente prontas para aplicação,
mente relevantes para treinos físicos. É importante
porém, dependendo da resposta dos participantes,
ressaltar que algumas dessas características se
poderiam ser feitas novas perguntas para aprofundar
relacionam diretamente com o estado de flow. Por
o entendimento.
exemplo, tanto a música quanto o estado de flow
trazem um humor positivo e diminuem o mau humor Foram perceptíveis algumas diferenças quanto à
(no flow, evidenciado pela autossatisfação); a música maneira como os atletas se colocaram nas respostas.
também tem um caráter dissociativo que ajuda o P. e L. aparentaram uma abertura maior para expor
atleta a não pensar em sensações de dor e fadiga sentimentos, pensamentos e situações vividas, desta
e pensamentos ou sentimentos não relacionados à forma não parecendo esconder ou omitir possíveis
tarefa (o que, por sua vez, facilita a concentração, variáveis que pudessem aparecer. No entanto, o
necessária para ocorrer o estado de flow); e, por fim, atleta S., em todas as perguntas, respondia sinteti-
a música leva ao aumento do trabalho proporcionado camente que “estava tudo bem”, não demonstrando
pela sincronização dos movimentos com a batida nenhum acontecimento ou pensamento fora de sua
da música (o que, dessa forma, reproduziria uma normalidade rotineira.
espécie de coreografia que, ao ser repetida, também
facilita a ocorrência do flow). Durante os treinos em Ao mesmo tempo em que é possível que realmente

56 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


não tenha havido nenhum episódio digno de comen- do estado de flow. Somada às condições necessá-
tar no estudo, também pode se qualificar como um rias, a música se torna uma indutora do estado de
dado importante o fato de que S. não se aprofundava consciência em questão, podendo ser grandemente
em nenhuma resposta, mostrando-se desconfortável aproveitada para estudos na psicologia do esporte,
durante a entrevista. Dessa maneira, pode ter havido visando a melhoras de rendimento.
influência de outras variáveis no desempenho de S.
Especialmente no tênis, em que a concentração é
que, embora tenha tido a tentativa de investigação
tão necessária por conta de constantes momentos
da pesquisadora, não há conhecimento algum de
decisivos, o treino mental de concentração deve ser
suas supostas existências.
mais explorado nos atletas, sobretudo na modalidade
Quanto às respostas analisadas individualmente por de alto rendimento e competitiva. A partir disto, as
atleta, pode-se dizer que fatores como “provas na habilidades motoras de cada jogador são potencia-
escola” e “gripe” (do atleta L.), e “ansiedade por evento lizadas, isto é, o jogo interior atua diretamente na
futuro” e “pensamentos incongruentes com o momento melhoria do jogo exterior, onde prevalece a técnica.
de treino” (do atleta P.) podem ter influenciado os
Dessa maneira, é importante incentivar que a psico-
resultados obtidos naqueles dias. Entretanto, os dados
logia do esporte seja mais explorada neste sentido
numéricos não mostram alterações significativas,
de prover ao atleta as ferramentas necessárias para
sempre continuando subindo, novamente podendo
alcançarem maiores rendimentos, incluindo a música
evidenciar a presença do estado de flow, que tirou
como um mecanismo para atingir tais resultados.
os atletas de seus pensamentos e sentimentos que
não se relacionavam com o exercício, fazendo-os Uma vez investindo no treino mental tanto quan-
focarem unicamente no treino. to investe-se nos treinos físicos, os atletas terão a
capacidade de utilizar suas habilidades motoras e
De maneira que a academia de tênis em que esta
controla-las com mais firmeza e segurança pelas
pesquisa foi feita se encontra próxima de um aero-
suas habilidades mentais, unindo o jogo interior e
porto, os barulhos de aviões decolando e pousando
o jogo exterior como uma maneira de alcançar me-
eram constantes, muitas vezes interrompendo a mú-
lhores resultados.
sica por alguns segundos. Quando esses barulhos
aconteciam, foi observado que os atletas erravam,
algumas vezes podendo até ter erros consecutivos REFERÊNCIAS
após diversos acertos consecutivos. Este foi um dado
importante que mostrou que os atletas haviam alcan- CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: The psycholo-
çado o estado de flow, facilitado pela presença da gy of optimal experience. New York: Harper &
música, porém tiveram-no interrompido por conta de Row, 1990.
um breve obstáculo sonoro, tirando-os da concen-
tração, deixando a música inaudível por segundos DUARTE, T. Reflexões sobre a música como
e, portanto, interrompendo o estado de consciência estratégia auxiliar em psicologia do esporte
atingido, o que levou os atletas a erros. aplicada. Brasília, 2009.
Porém, tal variável incontrolável de barulhos de avi-
ões não influenciou a pesquisa negativamente, mas FARIA, E. Tênis & Saúde: guia básico de con-
sim evidenciou a ocorrência do estado de flow, que dicionamento físico. Barueri: Manole, 2002.
foi interrompido por conta de uma obstrução mo-
mentânea da música. Isto é, esta variável mostrou a GALLWEY, T. O jogo interior do tênis. São Pau-
importância da música na concentração e denunciou lo: Textonovo, 1996.
que os atletas haviam alcançado e saído do estado
de fluidez. GODTSFRIEDT, J; ANDRADE, A; VASCON-
CELLOS, D. Treinamento mental no tênis: revi-
Em linhas gerais, o exercício foi proposto de manei- são sistemática da literatura. Rev. Bras. Ciênc.
ra que pudesse fornecer todas as condições para Esporte, Florianópolis, v.36, n.2, p.577-586,
ocorrência do estado de flow, somado à música que, Abr/Jun, 2014.
com suas propriedades naturais, tinha o objetivo de
facilitar o alcance deste estado de consciência. JUNIOR, M. et al. Análise do flow-feeling no
tênis. Rev. educ. fis. UEM, Maringá, v.23, n.4,

6.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Oct./Dec, 2012.

A partir dos resultados obtidos e do levanta-


JACKSON, S; CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow in
mento teórico realizado, é possível concluir que a Sports: the keys to optimal experiences and
música se constitui como uma importante facilitadora performances. United States: Human Kinetics,

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 57


1999.

MASSARELLA, F. Motivação intrínseca e o es-


tado mental flow em corredores de rua, Cam-
pinas, 2008. Disponível em <http://reposito-
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(pp. 415-419). Melbourne: VIC: Australian Psy-
chological Society., 2006.

58 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
8

AS VIVÊNCIAS DE PRODUTORES RURAIS DA CIDADE DE


SÃO FRANCISCO DE ASSIS/RS QUE SOFRERAM ABIGEATO

RESUMO
Atualmente, existe um crescente número de estudos voltados para
Débora Irion Bolzan
URI
questões relacionadas ao abigeato, porém, não se encontra nenhum
artigo científico sobre os sentimentos e danos psicológicos causados
Giana Bernardi Brum
nos produtores que perdem reses para os abigeatários ou/e que
Vendruscolo
URI precisam sacrificar animais mutilados. O objetivo foi analisar as
vivências causadas pelo abigeato, em produtores rurais da cidade de
São Francisco de Assis/RS. O tipo de pesquisa utilizado foi qualitativo,
de cunho descritivo e exploratório, com delineamento estudo de
caso múltiplo. Foram entrevistados 4 produtores rurais pecuaristas
da cidade de São Francisco de Assis/RS, que já foram vítimas de
abigeato. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo e
evidenciaram que o dano mais significativo recorrente do abigeato é o
financeiro, mas que existem marcas ocultas que rondam aqueles que
já foram vitimados, como o medo e a insegurança. Há uma descrença
na resolutividade do problema por parte da polícia, já que os números
de roubos sem solução são crescentes. Também constatou-se que
não há diferença entre ter mais ou menos reses, eles são lesados da
mesma maneira, independente da sua classificação rural.

Palavras-chave: Vivências; Produtores; Abigeato.

10.37885/200400027
1. INTRODUÇÃO ou dividido em partes - Bens Semoventes são aqueles
que possuem movimentação própria, independente
São Francisco de Assis, é um município loca- da ação do homem e possuem estimação econômica.
lizado na região Sudoeste do estado do Rio Grande Com a nova sanção, a legislação ampliará as penas
do Sul, distante 485km da capital. Possui área de mínimas e máximas, além de fazer com que toda a
2.501,3 Km2 e segundo o IBGE/Censo 2010, sua cadeia do crime seja punida, desde quem rouba até
população é de 19.258 habitantes. De acordo com quem oculta, transporta e comercializa. Atualmente,
dados da Emater/RS, a economia do município é qualquer tipo de furto é punido com pena de um a
alicerçada no setor primário e destaca-se pelo grande quatro anos de reclusão, pela nova lei, que tipifica
plantio de arroz e soja e a geração de renda através o abigeato como furto qualificado no Código Penal,
da pecuária, com a criação de bovinos de leite e de a pena será de dois a cinco anos de reclusão. Além
corte. disso, a legislação passa a enquadrar como crime a
comercialização, o armazenamento, a exposição e
O sustento que é oriundo do campo, desde o seu a entrega de carne ou outros alimentos sem origem
início é vulnerável as condições climáticas, sofren- controlada.
do perdas com a presença de secas e enchentes
e quando consegue manter o gado bem tratado e Conforme Júnior (2012) O abigeato pode ser chamado
alimentado para a venda e consumo, expõe-se ao de crime fronteiriço, pois se torna possível pela com-
roubo, mutilação e perca das reses. binação das práticas econômicas com a fragilidade
da fiscalização e a estrutura fundiária que comporta
Abigeato é o nome dado ao crime de furtos envol- propriedades rurais que se estendem em ambos
vendo animais do campo, destacando entre esses lados da fronteira. O autor refere-se que dados da
o gado. Tem por característica o fato de ser sempre Polícia Civil apontam que, só no primeiro semestre
praticado durante o período noturno, haja vista que de 2012, foram registrados, na metade sul do es-
a escuridão ou a pouca vigilância acabam por faci- tado, cerca de dois mil casos de abigeato, quase o
litar a execução do delito e também tornar difícil a mesmo número registrado ao longo de todo o ano de
identificação do agente praticante, gerando maior 2010 na região. Cabe pontuar o risco representado
impunidade. O crime é caracterizado como furto e não pelo abigeato para as exportações brasileiras, dada
roubo pois no primeiro não há episódio de violência a dificuldade em comprovar a qualidade sanitária
ou ameaça contra a vítima, enquanto no segundo desse gado.
ocorrem ameaças ou violência contra quem está
sendo roubado. O que será tratado inversamente Embora a lei do abigeato tenha sido reformulada,
no presente trabalho, pois o seu objetivo é identifi- aumentando o rigor na punição àqueles que come-
car os sentimentos e danos físicos e psíquicos que tem o crime, ainda se enfrenta muita impunidade
o abigeato causa nos produtores rurais. Quando diante do mesmo. O setor primário enfrenta gran-
o crime ocorre, a vítima é ameaçada, mesmo que des dificuldades por causa do clima e das chuvas
não diretamente, sua propriedade/casa foi invadida que atacam o Rio Grande do Sul e concomitante
e seu rebanho mutilado, o que causa o medo real ao esforço dos produtores rurais para manterem o
da reincidência, mesmo que suas consequências gado alimentado e saudável, há a instabilidade em
sejam ocultas. relação ao futuro do rebanho, já que as denúncias,
na maioria dos casos não geram prisões, devido às
Decorrente deste crime, surge a preocupação com dificuldades em identificar os ladrões e recuperar os
a segurança e saúde do restante da população rural animais furtados.
e urbana já que grande parte dos animais roubados
são comercializados sem fiscalização e abatidos A pesquisa apresenta com questão central “Quais as
sem o mínimo de higiene. Com o abigeato, além vivências de produtores rurais que sofreram abigeato
do pecuarista ser afetado monetariamente, após a em sua propriedade na cidade de São Francisco de
primeira invasão de propriedade seguida do primeiro Assis/RS?” E tem em seus objetivos analisar as vi-
roubo, não existe mais a mínima segurança para os vências causadas pelo abigeato, em produtores rurais
que residem na mesma; sendo inclusive ameaça- da cidade de São Francisco de Assis/RS. Identificar
dos após abrirem investigação. A venda de todas as número de animais mortos, roubados e mutilados por
reses tornou-se prática comum entre os produtores propriedade. Averiguar quantas vezes o produtor foi
de pequeno porte, que temem pelo seu sustento e roubado e em qual turno ocorreu o(s) abigeato(s).
pela segurança de suas famílias. Investigar os sentimentos gerados no sujeito após
o abigeato. Indagar se ele já viu alguém dentro da
A lei Nº 13.330, de 2 de agosto de 2016, alterou o propriedade e se reagiu ao abigeato. Averiguar se
Código Penal Brasileiro para tipificar, de forma mais o produtor rural possui medo ou receio de residir ou
gravosa, os crimes de furto e de receptação de semo- pernoitar na propriedade rural. Identificar as provi-
vente domesticável de produção, ainda que abatido dencias tomadas pelo proprietário após a ocorrência

60 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


do abigeato e verificar se após o abigeato o sujeito questões previamente estabelecidas e podendo sur-
procurou algum tipo de apoio emocional. gir outras, conforme a demanda do produtor rural.
Os dados foram coletados no mês de abril e foram A análise dos dados foi feita através da análise de
analisados durante os meses de maio e junho/2018. conteúdo.

2.METODOLOGIA
Pesquisa qualitativa, de cunho descritivo e
3.RESULTADOS E DISCUSSÕES
A partir da análise dos dados obtidos nas entre-
exploratório. vistas, dividiram-se em quatro categorias de discus-
são, visando corroborar as falas dos participantes,
O delineamento estudo de caso múltiplo. A população
sobre suas vivências e sentimentos, causados pelo
pesquisada foram os produtores rurais do município
abigeato, com as ideias de diferentes autores.
de São Francisco de Assis que possuem a criação de
gado como sustento e tenham sofrido roubo de gado Participante 1: Pequeno produtor rural da cidade
em sua propriedade pelo menos 2 vezes. Segundo de São Francisco de Assis, teve de 25 à 30 animais
o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá- mortos/roubados/mutilados. Sua propriedade foi in-
ria (INCRA), os produtores rurais são classificados vadida cerca de 25 vezes e uma única vez a casa
de acordo com os módulos fiscais. Módulo fiscal é da propriedade rural foi invadida, todos os crimes
uma unidade de medida, em hectares, cujo valor é ocorreram durante a noite.
fixado pelo INCRA para cada município levando-se
Participante 2: Grande produtor rural da cidade de
em conta: (a) o tipo de exploração predominante
São Francisco de Assis, teve de 12 à 20 animais
no município (hortifrutigranjeira, cultura permanen-
mortos/roubados/mutilados. Sua propriedade rural
te, cultura temporária, pecuária ou florestal); (b) a
foi invadida por abigeatários de 6 à 10 vezes e todos
renda obtida no tipo de exploração predominante;
os crimes ocorreram durante a noite.
(c) outras explorações existentes no município que,
embora não predominantes, sejam expressivas em Participante 3: Produtor rural minifundiário da cidade
função da renda ou da área utilizada; (d) o conceito de São Francisco de Assis, teve cerca de 7 animais
de “propriedade familiar”. A dimensão de um módulo mortos/roubados/mutilados. Sua propriedade rural
fiscal varia de acordo com o município onde está foi invadida por abigeatários em torno de 6 vezes e
localizada a propriedade. O valor do módulo fiscal todos os crimes ocorreram durante a noite.
no Brasil varia de 5 a 110 hectares.
Participante 4: Médio produtor rural da cidade de
No município pesquisado, São Francisco de Assis, São Francisco de Assis, teve cerca de 30 animais
1 módulo fiscal equivale a 35 hectares (ha) de terra. mortos/roubados/mutilados. Sua propriedade rural foi
Então, serão pesquisados um minifundiário – produtor invadida 6 vezes e em 3 roubos a casa da proprieda-
rural com área inferior a um módulo fiscal; um peque- de foi invadida também, todos os crimes ocorreram
no produtor rural – com área compreendida entre 1 durante a noite.
e 4 módulos fiscais; um médio produtor rural – com
área compreendida entre 4 e 15 módulos fiscais e Categoria I: Sentimentos após o abigeato.
um grande produtor rural – com área superior a 15 Pretende-se com esta categoria trazer os sentimentos
módulos fiscais. dos produtores rurais em decorrência do abigeato e as
A amostra foi de quatro sujeitos, acessados através sensações em olhar os restos dos animais abatidos.
dos hectares de terra que possuem: um produtor Participante1: “Olha, me gerou assim um transtorno
minifundiário, um pequeno produtor rural, um médio muito grande, porque a gente trabalha, o produtor
produtor rural e um grande produtor rural pecuarista, rural né, hoje trabalha meio sacrificado né, e... e eu
encontrados através do Sindicato Rural do município fui mais, fui maior lesado ainda porque a maioria
pesquisado, São Francisco de Assis. eram animais puros né.”
O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da Participante 2: “Primeira a perda financeira, que
Universidade e, somente após aprovação do mes- um...um animal... sempre são animais que já estão
mo, foi feito o contato com os participantes, a fim gordos, prontos pro abate... A gente trata como se
de apresentar o protocolo de pesquisa. A pesquisa fosse, que fosse mais, do que...do que um simples
respeitou as diretrizes e normas de pesquisas em negócio, a gente pega um afeto pelos animais,...que
seres humanos, conforme a resolução 466/12 CNS/ perdeu um parente teu ali, não é só uma perda finan-
CONEP. ceira, tu tem um....uma perda sentimental mesmo.”
Para realização da mesma, foi utilizado uma entrevista Participante 3: “Ah, o sentimento de.... impunidade
semiestruturada contendo sete perguntas, havendo né, e trabalhando assim, com...com dedicação e aí

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 61


tu chega na propriedade que tu... tu fica olhando atinja peso de comercialização ou abate. Ser vítima
pros lados, te perguntando....e infelizmente não tem de abigeato tem uma significância que vai além do
o que fazer.. te revolta.” valor material/monetário, é uma afronta ao trabalho
árduo da classe trabalhadora que sustenta a economia
Participante 4: “Ahh...um sentimento total de insegu-
do país através do setor primário, com a agricultura
rança, de impunidade, de passividade, de humilhação,
e pecuária, dependendo ainda das condições climá-
porque nós que somos a classe que sustentamos
ticas para trabalhar e produzir.
né, esse país, com nosso trabalho, é...com nosso
sacrifício e tu chegar na tua propriedade e identificar Possivelmente, quem deu nome ao crime de abigeato,
que te roubaram, que te levaram e tu não ter nada não levou as variáveis em consideração e o chamou
o que fazer né, não ter nada... de “furto de gado” e não roubo. Porém, é como roubo
de gado que o abigeato precisa ser reconhecido,
Conforme Dulci (2016, p.1) “se o campo não plan-
pois não podemos crer que quando levam reses das
ta, a cidade não janta.” “se o campo não roça, a
propriedades rurais, não estão ferindo os criadores
cidade não almoça.” Essas duas frases de ordem
além do valor financeiro perdido.
são há muito conhecidas e entoadas em encontros,
congressos, festivais e demais fóruns nos quais a Dos 2 milhões de pessoas que migraram do campo
juventude rural se encontra presente. Expressam a para as cidades entre os anos de 2000 e 2010, um
importância da produção de alimentos, proveniente milhão eram jovens (IBGE, 2010). Jovens do campo,
da agricultura familiar e camponesa brasileira, para das florestas e das águas que não desejam ou não
a vida das pessoas e o desenvolvimento do país. veem condições de seguir produzindo na propriedade
Traduzem o espírito da interdependência entre os dos pais, não têm recursos para adquirir sua própria
Brasis rural e urbano. terra e não têm acesso à política de reforma agrária.
Cabe ressaltar ainda a exposição à violência, que
O sentimento mais presente na fala dos agricultores
aumenta no meio rural e com as condições climática
é o de insegurança, definido por Lourenço e Lisboa
e policiais dos municípios que mais são afetados, o
(1996, p.55) “como uma representação social do meio
sentimento de impunidade torna-se constante, le-
em que estão presentes lógicas culturais identitárias
vando ao abandono do setor.
e lógicas situacionais”. O crime afeta o indivíduo
em sua privacidade, assim como outras formas de Desta forma o sentimento de insegurança surge
violência o crime apresenta-se como um desafio, associada a ansiedade decorrente do processo de
com capacidade de pôr em risco os mecanismos mudanças sociais, onde a criminalidade é uma das
difusos e institucionais de controle social. consequências mais visíveis.
Na Europa, o aumento da criminalidade, correspondeu Categoria II: Flagrante do abigeato e pernoitar
ao crescimento econômico e à explosão do consu- na propriedade.
mo, ao crescimento das cidades e à degradação do
Pretende-se com esta categoria indagar se o produ-
tecido social urbano que alterou os modos de vida
tor já viu alguém dentro de sua propriedade, ferindo
e os valores. (LOURENÇO e LISBOA, 1996). No
o gado, se ele consegue passar a noite inteira na
Brasil pode-se interpretar da mesma forma, asso-
mesma e como se sente ao fazê-la.
ciado também ao enfraquecimento e desestruturas
familiares, a pobreza, a exclusão social e a depen- Participante 1: “Não, não, felizmente não.”
dência química.
Sim. Me sinto tranquilo, porque eu só fui aaa... Só
Para Passos e Carvalho (2015) o aumento da in- foi arrombada a casa uma vez em que eu não es-
segurança e o medo social estão associados a um tava na propriedade né, não estava na casa que eu
contexto sociocultural em transformações: instabi- resido lá fora, né.”
lidade e crise mundializada do capitalismo contem-
porâneo, precarização e informalização no mundo Participante 2: “...talvez tenha evitado alguma vez
do trabalho em conjunto com o alarmante índice de porque como a gente fica monitorando, passando
desemprego vinculado à configuração do Estado de pela propriedade durante a noite, talvez tenha afu-
baixa responsabilidade na manutenção da segurança genteado eles, mas nunca...nunca me deparei frente
via políticas públicas adequadas. a frente com eles.”...Já pernoitei algumas vezes.
Com muita insegurança...”
Também no campo, ser furtado é uma perda financeira,
onde levam mais que um objeto ou animal, no caso Participante 3: “Não.. é.. não.”
de um boi em peso de abate, levam de R$2.000 à Participante 4: “Não, felizmente nunca.
2.500. Mas há algo muito além desse montante. Há
um processo trabalhoso de inseminação, pastoreio, Olha, pernoitar na propriedade rural até é um.... é
vacinação, marcação, castração até que o animal um princípio, é um gosto, é um desejo....e...e é um

62 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


gozo que eu tenho, porque a gente se criou, é de O medo urbano para a ser então, um dilema co-
origem do campo e graças a Deus, felizmente, tem tidiano entre os brasileiros residentes em cidades
uma estrutura razoável e é tão saudável a gente ficar com pouco policiamento ou em áreas de conflitos,
na propriedade, mas.... ãh... com certeza, sempre, tornando a vida na cidade uma constante luta pela
sempre que isso acontece, a gente tá muito muito sobrevivência, guiada por uma insegurança cons-
tenso e apreensivo, porque não sabe o que pode tante de que alguma tragédia pode vir a acontecer a
acontecer.” qualquer momento. Se em áreas urbanas, fortemente
habitadas, com acesso mais rápido a delegacias e
A partir do primeiro roubo sofrido, o medo torna-se
postos policiais, a violência aumenta a cada dia, tor-
constante, passando a fazer parte do cotidiano da
nando-se regente das vidas e escolhas de lazer de
vítima, que chega a abrir mão de pernoitar na sua
muitos cidadãos, que se privam de eventos e gozos
propriedade. Ao analisar essa categoria, percebemos
pelo medo da tragédia, no campo essa insegurança
nas falas dos participantes, que não flagrar o crime é
também aumenta.
algo positivo, diante da raiva e indignação que ronda
o abigeato, que combinadas ao acesso a arma de Casas afastadas, sem acesso à rede de celular em
fogo para caçar pode-se tornar fatal, gerando uma diversos pontos das propriedades e sem rede de
tragédia ainda maior. energia elétrica no decorrer de todos os hectares,
a violência adentra de forma constante. O medo de
Caldeira (2000) afirma que a violência e o medo com-
pernoitar nas suas terras passa a ser maior que o
binam processo de mudanças, alterando a arquitetura
prazer de desfrutar daquilo que com trabalho, ao
urbana segregando e discriminando grupos sociais
longo de anos foi construído. O setor que sustenta
em enclaves fortificados. Esses novos processos
São Francisco de Assis, passou a ser marginaliza-
vêm modificando significativamente as formas de
do, tornando-se alvo constante de abigeatários e
sociabilidade e o cotidiano das pessoas, quer nos
assaltantes, forçando os menores produtores, como
seus espaços de moradia, quer nos seus espaços
o participante 3 desta pesquisa, um produtor mini-
ocupacionais de trabalho. Desta forma buscamos
fundiário, a estudar as possibilidades de abandono
explicar a teia de relações tecidas nos espaços de
da produção pecuária, temendo por sua vida e de
moradia, territórios demarcados por outras lógicas
sua família, bem como o valor monetário elevado
que não as instituídas legalmente e que, potencia-
perdido a cada roubo.
lizadas pelo medo – decorrente de ações violentas
e intimidações tanto de policiais como de traficantes Conforme Baierl (2004), o medo social é produto
– dificultam ou limitam as formas de sociabilidade de uma sociedade violenta e das formas como se
e, consequentemente, as ações coletivas para en- constroem as relações de poder e as formas de so-
frentamento à questão da violência. ciabilidade. E, portanto, somente através de ações
integradas, envolvendo as diversas organizações da
De acordo com Baierl, em sua pesquisa sobre o
sociedade e as diversas esferas de poder (executivo,
Medo Social dos moradores da cidade de São Paulo,
legislativo e judiciário), em articulação permanente
regidos sobre o comando de forças policiais agres-
com as formas organizadas da sociedade civil que
soras ou traficantes:
podem ser vislumbradas estratégias de ação para
reduzir os índices de violência e criminalidade e a
Os medos narrados e decifrados, que sensação de medo aumentando a potência das pes-
vem afetando as pessoas em sua exis- soas para agir coletivamente. Para tanto, a potência
tência, dando novos ritmos e sentidos interna de agir, tem que ser maior que a potência
ao seu cotidiano, mudando a arquite- das causas externas.
tura de suas casas, mudando trajetos
Conforme Mélo (2003) estimativas realizadas em
e formas de ocupar a cidade e seus
1997, com base em depoimentos de autoridades
territórios é um medo singular-coleti-
do Rio Grande do Sul, constataram que, nesse Es-
vo construído, seja ele passional ou
tado que faz fronteira com o Uruguai, são abatidas,
racional, nas suas interações com as anualmente, cerca de 2,2 milhões de cabeças de
outras pessoas, em contextos indivi- gado. Desse total, cerca de 600 mil não têm qualquer
duais e sociais bem definidos. São as tipo de inspeção sanitária, sendo que outras 300 mil
pessoas concretas (personagens do cabeças podem ser consideradas semiclandestinas,
medo) que afetam com mais força as por cumprirem apenas parte dos requisitos sanitá-
pessoas e coletividades, dando novos rios. O resultado é que a carne clandestina significa,
sentidos e significados a vida cotidiana somente no Rio Grande do Sul, um negócio anual
e as formas de interagirem. (BAIERL, de cerca de 70 milhões de dólares.
2004, p.5).
Ainda na perspectiva do autor, o abigeato é praticado

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 63


em pequena escala (o furto unitário, como define a trinômio dor, prazer, desprazer. O que
legislação policial do Brasil), ou em grande escala. produz dor e desprazer tende a ser vio-
Neste último caso, são utilizados caminhões para o lentamente repudiado, e o que produz
transporte dos animais. Ocorre que, por detrás do prazer, a ser buscado.” [grifo do autor].
abigeato, existem interesses de diversos setores: dos (COSTA, 1998, p.211).
abigeatários, dos consumidores, dos comerciantes
da carne clandestina e também dos próprios pro- As sensações após chegar na propriedade e encon-
prietários dos animais. trar vísceras de animais, animais inteiros, apenas
Categoria III: Providencias após o abigeato. abatidos ou somente rastros de sangue, sem pele
ou restos, permanecem presentes na memória da-
Participante 1: ”Ah, foi notificada né aaaah, lá na queles criam e produzem. A impunidade que ronda
polícia na brigada né e eles foram fazer a revisão o abigeato hoje está diretamente ligada à questões
dos animais essa vez que foi arrombada a casa né, de saúde pública, afinal, enquanto existirem com-
e fizeram levantamento e tal.” pradores para carne suína e bovina muito abaixo do
preço de mercado e sem nenhum selo de fiscalização,
Participante 2: “Todas as ocorrências, foi feito regis-
revelando a procedência da mesa, o mercado de
tro, a gen....ãh..registro policial lá na delegacia. As
carnes clandestinas continuará a existir e crescer
vez até meio contra a vontade, nos casos menores
no país inteiro.
porque a gente...pra fazer...pra registrar uma ocor-
rência é um trâmite burocrático e que...” De acordo com estudos realizados por Hobsbawm
(1978) acerca do contrabando na Espanha naque-
Participante 3: “Olha, primeiro lugar eu procurei
le século, o contrabando precisa ser compreendido
a...a registrar um..na polícia, comuniquei a brigada e
como prática criminalizada que existe em função de
outras também não...nem comuniquei porque infeliz-
situações diferenciais de câmbio. Se é possível tratar
mente, até o momento eu só vou lá registrar, porque
das funções sociais do contrabando, tal tratamento
resultado daquilo ali eu não tive nenhum ainda.”
precisa considerar que os beneficiados são os gran-
Participante 4: ”Sempre a providência primeira des capitais, empresas transnacionais inclusive, e,
é....é...registrar a ocorrência né, mas vai levando a como estão presentes em mais de um país, seus
gente a uma...a um certo.. a uma certa descrença, ganhos são garantidos, quer vendam o produto em
porque tu nunca consegue ter retorno ou uma...uma um país ou em outro. Os beneficiados também são
solução né...” os comerciantes e os intermediários que operam
nesse ramo, pois, ao não recolherem tributos, es-
Ao analisar essa categoria, constatou-se que todos
tabelecem concorrência desigual com aqueles que
os crimes sofridos pelos quatro participantes dessa
estão instalados recolhendo regularmente os impostos
pesquisa, foram denunciados a brigada militar do
definidos pelas legislações nacionais.
município, que desde final do ano de 2017 encon-
tra-se sem um delegado titular de polícia. A falta de Tem-se uma situação que considera o contrabando
recursos policiais também se observou como uma uma prática, em certa medida naturalizada, estra-
descrença na resolutividade do problema, de acordo tégica para o campo do poder na região fronteiriça,
com os produtores. As denúncias são feitas quase por contribuir com a acomodação em um proces-
que sem esperanças de recuperar alguma coisa e so de miséria que atinge parcelas significativas da
principalmente, de que se prendam os abigeatários. população. Ao se considerá-lo “prática normal” em
qualquer fronteira, fortalecem-se aqueles grandes
Em seu estudo sobre emoção, Costa (1998) efe-
comerciantes, próximos ou distantes da fronteira,
tua uma distinção conceitual sutil entre sensação
que, com “arancel zero”, abastecem os “contraban-
e sentimento que nos permite melhor compreender
distas-formiga”.
a caracterização da emoção denominada medo.
Para ele, embora tal classificação esteja longe de Com longa existência, não somente no espaço
ser consensual, é importante para entendermos a fronteiriço, mas em diversas regiões do Brasil e do
experiência sentimental do homem contemporâneo. Uruguai, o abigeato é apontado, por dirigentes da
Associação Rural Uruguaia, como prática “endémica
A sensação seria “corporalmente loca- en las zonas de frontera”. Em relação a tal prática,
lizada”, “referidas a imagens corporais” solicitam que “las autoridades responsables no lo
e seriam estados do organismo, “pro- asuman como inevitable”. Estima-se que 20% da
cessos ou eventos físico-mentais” que carne consumida no Uruguai seja “carne negra o
evocariam “dor, prazer ou desprazer”. clandestina”, proveniente do abigeato e de um co-
mércio clandestino de animais.
Essa seria a principal característica das
sensações, a de serem “reguladas pelo De acordo com Mélo (2003) por tratar-se de uma

64 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


prática que, no caso em estudo, ocorre nas regiões Como é costumeiro no campo, o apoio emocional
de fronteiras, apresenta aspectos dignos de nota do deu-se através dos próprios produtores que também
ponto de vista jurídico: é uma prática criminalizada foram vítimas do crime. Aqui, observou-se que nenhuma
cujo objeto material desaparece rapidamente. Em vítima procurou assistência psicológica ou religiosa
segundo lugar, pode envolver também o contrabando. após sofrer abigeato, mas que a marginalização do
Tanto a dificuldade na identificação da materialidade setor, acabou unindo a classe que cria e produz.
do delito quanto o deslocamento dos produtos furtados
Hoje, encontramos nas propriedades tocaias em con-
ou roubados de um país a outro trazem dificuldades
junto, um produtor fica alerta sobre qualquer veículo
adicionais ao combate do mesmo.
estranho rondando ou adentrando a propriedade vi-
Ao analisar o abigeato como uma questão de saúde zinha, placas são anotadas quando possível e eles
pública, as esperanças que eram quase nulas de re- mantém contato direto uns com os outros; conver-
solutividade e apoio policial, tornam escassas. Além sando sobre o assunto e atento sobre as marcas
de parar os abigeatários e proteger os produtores roubadas de outros produtores.
e suas reses, é necessário extinguir uma rede de
Segundo Pichon-Rivière (1988) pode-se falar em
criminalização de carne clandestina. Ladrões, comer-
grupo, quando um conjunto de pessoas movidas
ciantes como açougueiros e donos de mercados e
por necessidades semelhantes, se reúnem em torno
principalmente a população adepta ao consumo de
de uma tarefa específica. A técnica de grupo ope-
carne muito barata. Para se combater o abigeato hoje,
rativo consiste em um trabalho com grupos, cujo
são necessárias políticas públicas de fiscalização
objetivo é promover um processo de aprendizagem
intensa de quem vende e quem compra mercadoria
para os sujeitos envolvidos. Aprender em grupo sig-
sem procedência.
nifica uma leitura crítica da realidade, uma atitude
Os índices de abigeato aumentam, porque infelizmen- investigadora, uma abertura para as dúvidas e para
te o mercado aumenta, acompanhando-o. O roubo as novas inquietações. Assim, os pacientes deixam
é realizado porque tem comprador aguardando o de ser um amontoado de indivíduos, para cada um
animal abatido, ou suas partes. A realidade encon- assumir-se enquanto participante de um grupo com
trada durante a pesquisa é de que nem uma força objetivo mútuo.
policial maciça derrubaria essa rede criminal, sem
Ainda conforme Pichon-Rivière (1988), o grupo se
a reeducação e colaboração da população que se
estabelece através de cada participante exercitar
aproveita disso, colocando suas vidas e de seus
sua fala, sua opinião, seu silêncio, defendendo seus
familiares em risco ao consumir alimentos sem selo
pontos de vista. Portanto, descobrindo que, mes-
de qualidade.
mo tendo um objetivo mútuo, cada participante é
Categoria IV: Apoio emocional diferente. Tem sua identidade, cada indivíduo vai
introjetando o outro dentro de si. Isto significa que
Pretende-se com esta categoria esclarecer com/onde/
cada pessoa, quando longe da presença do outro,
em que o produtor buscou equilíbrio emocional após
pode “chamá-lo” em pensamento, a cada um deles
ter sido roubado.
e a todos em conjunto. Este fato assinala o início
Participante 1: “Não.. não, não procurei porque né, da construção em grupo enquanto comportamento
foram assim ó, seguido né, teve de outros vizinhos de indivíduos diferenciados.
também, então a gente né, um confortava o outro,
Portanto, mesmo que não exista um grupo pré-esta-
mas é em comentários assim.”
belecido para as vítimas de abigeato, eles se reco-
Participante 2: “Eu nunca procu...não procurei apoio nhecem como tal, nas conversas nas propriedades,
mas com certeza, me afetou muito ver aqueles ani- na sede ou em evento do Sindicato Rural e em en-
mais, ãh....do jeito que a gente viu nesse crime maior, contros casuais do dia-a-dia.
que foram 5 bois, todos num...num...num espaço
O conforto encontrado em consolar e ser consolado
pequeno, de ver aquele monte de animais, todos
por outros produtores acontece de forma terapêutica,
mortos...”
tornando possível a fala sobre o assunto, estabele-
Participante 3: “Não, graças a Deus não, porque eu... cendo-se como um apoio emocional viável.
eu sempre penso na frente... aquilo ali eu..procuro
deletar e olhar pra..pra frente e me dá valor, graças
a Deus é o animal, eu e minha família tamo bem, o
que a gente vai fazer?!”
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a construção do projeto, visávamos
Participante 4: “Não, felizmente, considero né, pelo... clarificar os danos que o abigeato causam nos pro-
pelo perfil da gente, pelo convívio de emoção, su- dutores rurais da cidade de São Francisco de Assis/
peração... não houve necessidade.” RS. Embora o tema esteja crescendo na área cien-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 65


tífica, ainda existem poucas pesquisas publicadas e CALDEIRA, T. P. do R. (2000). Cidade de mu-
nenhuma dela exemplifica as vivências das vítimas, ros: crime, segregação e cidadania em São
com uma proposta mais subjetiva. Paulo, trad. Franklin de Oliveira e Henrique
Com a realização da pesquisa, ficou claro que o Monteiro. São Paulo: editora 34, EDUSP.
maior e mais sentido dos danos é o financeiro, pois
cada animal levado possui um valor monetário bruto COSTA, J. F. Sem fraude nem favor: estudos
alto e todo o processo de criação e engorde até a sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Roc-
venda ou abate é custoso, financeiramente falan- co, 1998.
do. Mas, observamos também as marcas invisíveis
dos crimes nos sujeitos, que foram roubados pelo DULCI, L. (2016) A juventude rural e o futuro
menos seis vezes cada. O medo e a insegurança da agricultura familiar no Brasil. Algo a dizer.
são sentimentos constantes nas vítimas do abigeato, Edição 102. Disponível em: https://www.al-
chegando a afastar os mesmos de pernoitar nas goadizer.com.br/edicoes/materia.php?Mate-
suas próprias propriedades. Constatamos também, riaID=1621 Acesso em 10 de jun de 2018.
através dos dados obtidos, que, em termos de danos
emocionais, não há relevância no número de reses EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGRO-
por propriedade e que mesmo sendo minifundiário PECUÁRIA. Módulos fiscais. Disponível em:
ou grade produtor rural, os prejuízos são os mes- https://www.embrapa.br/codigo-florestal/are-
mos, tendo abigeatários levando quantos animais a-de-reserva-legal-arl/modulo-fiscal, Acesso
conseguirem carregar. em 15 de jun de 2017.
A impunidade gerada pelo crime e o baixo policiamento
na cidade também foram resultados significativos
FRANÇA, A. B. C. Territorialização do abigeato
na pesquisa, onde as esperanças para o que roubo na fronteira gaúcha, 2013.
diminua em um futuro próximo são quase nulas.
FRANÇA, C.; DEL GROSSI, M.; e MARQUES,
Acredito que a pesquisa apresentou um resultado V. O Censo Agropecuário 2006 e a Agricultura
satisfatório, de acordo com a proposta inicial do projeto, Familiar no Brasil. Brasília: MDA, 2009.
respondendo a questão norteadora e os objetivos da
mesma. Deixo como sugestão um trabalho voltado HOBSBAWM, J. (1978) faz referência ao con-
para a saúde pública dos municípios que sofrem trabandista “nobre” da Espanha no século XIX.
com o abigeato, pesquisando o mercado de carnes p. 22.
clandestinas, seus fornecedores, compradores e
agentes da fiscalização. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Sinopse do Censo Demográfico 2010.
REFERÊNCIAS Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

JUNIOR, N. T. RS tem aumento de casos de


ABRAHÃO, R.M.C.M. ; NOGUEIRA, P.A. ; MA-
abigeato no primeiro semestre. Zero Hora, 11
LUCELLI, M.I.C. O comércio clandestino de
jul 2012. Disponível em http://tinyurl.com/a3r-
carne e leite no brasil e o risco da transmissão
9vbg. Acesso: 15 Jun 2017.
da tuberculose bovina e de outras doenças
ao homem: um problema de saúde pública. LOURENÇO, N.; LISBOA, M. Violência, Crimi-
Archives of Veterinary Science v. 10, n. 2, p. nalidade e Sentimento de Insegurança. Revista
1-17, 2005. Disponível em: http://revistas.ufpr. Textos, 2: 45-64. Lisboa, Centro de Estudos
br/veterinary/article/view/4409/3492. Acesso Judiciários, 1996. Disponível em: http://hdl.
em: 10 ago. 2017. handle.net/10884/338. Acesso em: 18 jun.
2018.
BAIERL, L. F. (2004). Medo social: da violên-
cia visível ao invisível da violência. São Paulo: MÉLO, J.L.B; SARTURI, E. F. As fronteiras da
Cortez. representação: o Conselho Legislativo Inter-
nacional Sant’Ana do Livramento-Rivera. In:
BRASIL. Lei Nº 13.330, de 2 de agosto de
SANTOS, José Vicente Tavares dos; BAR-
2016. Para tipificar, de forma mais gravosa,
REIRA, César; BAUMGARTEN, Maíra (Orgs).
os crimes de furto e de receptação de semo-
Crise social & multiculturalismo: estudos de
vente domesticável de produção, ainda que
Sociologia para o século XXI. São Paulo: SBS,
abatido ou dividido em partes. .D.O.U. p.2 de
Hucitec, 2003.
23/08/2016.

66 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. Mar-
tins Fontes,1988.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 67


CAPÍTULO
9

ATUAÇÃO DAS/OS PSICÓLOGAS/OS NAS ASSOCIAÇÕES DE


PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS – APACS

RESUMO
Este texto tem como objetivo a apresentação de dados sobre a
Flávia Cristina
Guimarães Paiva atuação das/os psicólogas/os nas APACs - Associações de Proteção
Nascimento e Assistência aos Condenados. APACs são entidades civis de direito
privado, que custodiam pessoas condenadas pelo Judiciário; cumprem
uma função de controle social e fazem parte, conforme a legislação
vigente, das políticas públicas de segurança e administração
prisional no estado de Minas Gerais e em outros estados do Brasil.
Em setembro de 2018, por ocasião deste estudo, eram 39 APACs
em Minas e 10 em outros estados brasileiros. A inserção das/os
psicólogas/os nesses espaços de participação e controle social,
ainda é pouco conhecida e estudada, quando se considera a prática
profissional no sistema prisional brasileiro, conforme será apresentado
neste estudo. O levantamento de dados foi realizado nas 39 APACs
em funcionamento no Estado e mostra algumas semelhanças com
os dados levantados nos estudos realizados pelo CREPOP em 2009,
2010 e 2012, à exceção das condições do ambiente de trabalho que
são oferecidas pelas APACs. Essas/es psicólogas/os atuam como
colaboradores na construção de políticas públicas humanizadas e
práticas específicas de direitos humanos, considerando sua inserção
em um contexto social que reflete as práticas da discriminação da
pobreza na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Psicólogas/os; Atuação; Políticas Públicas;

APAC; Inserção.
10.37885/200400167
1. INTRODUÇÃO Nº 15.299/2004 de Minas Gerais que amparam o
Estatuto da APAC. Desde 2006 o Governo de Minas
Para a redação deste artigo foram consultadas Gerais destina recursos para a construção e o custeio
as publicações do Conselho Federal de Psicologia: das unidades. De utilidade pública, a APAC objetiva
A prática profissional dos/as psicólogas/as no a recuperação do preso, a proteção da sociedade,
Sistema Prisional (2009); Atuação do psicólogo no o socorro às vítimas e a promoção da justiça res-
sistema prisional (2010) e Referências Técnicas taurativa.
para Atuação das/os Psicólogas/os no Sistema As APACs são filiadas à Fraternidade Brasileira de
Prisional (2012). Textos construídos por meio de Assistência aos Condenados – FBAC, responsá-
pesquisas quantitativas e qualitativas realizadas vel pela congregação, orientação e fiscalização do
entre psicólogas/os que atuam no sistema prisional funcionamento e da aplicação do método APAC em
brasileiro e servem como referência para a atuação cada associação.
dos psicólogas/os em todo o Brasil. Em 2007, no
estudo realizado pelo CREPOP, publicado em 2009, O Método APAC é fundamentado por 12 elementos:
participaram praticamente todos os Conselhos Regio- 1) Participação da comunidade; 2) Recuperando aju-
nais de Psicologia do Brasil, por meio de Reuniões dando recuperando; 3) Trabalho; 4) Espiritualidade;
Específicas e Grupos Focais. 5) Assistência jurídica; 6) Assistência à saúde; 7)
Valorização humana; 8) A família; 9) O voluntário e
Entretanto, em leitura e análise desses documentos, sua formação; 10) Centro de Reintegração Social;
não foi constatada a participação das/os psicólogas/ 11) Mérito; 12) Jornada de Libertação com Cristo.
os das Associações de Proteção e Assistência aos Devido ao espaço limitado deste artigo, não serão
Condenados – APAC. Percebe-se que, apesar de 39 descritos e podem ser consultados na bibliografia
APACs estarem em funcionamento em Minas Gerais, indicada.
e de psicólogas/os atuarem em praticamente todas,
ainda são profissionais quase anônimos. “As coisas
só têm significado quando nós as conhecemos” (Má-
rio Ottoboni). Este trabalho pretende apresentar a
atuação das/os psicólogas/os nas APACs em Minas
3.METODOLOGIA DE PESQUISA
Foi realizado levantamento dos dados sobre a
Gerais. atuação dos psicólogos por meio de quatro questões
enviadas por e-mail para as 39 APACs em funciona-

2.DESENVOLVIMENTO
mento: 1- Há psicólogas/os na sua APAC? 2- Quantos?
3- Qual a situação trabalhista dessas/es psicólogas/
os? 4- Que tipo de atendimento psicológico realizam
na APAC? Foram obtidos dados de 37 APACs. Duas
delas não responderam. As informações fornecidas
2.1 O QUE É APAC foram organizadas em planilhas.

É uma entidade civil de direito privado, sem fins Foi informado que 24 psicólogas/os trabalham nas
lucrativos, com personalidade jurídica e patrimônio APACs, por contrato de prestação de serviços, pela
próprios e tempo indeterminado de duração. rubrica contratação de serviço de terceiros, pagos com
recursos do Estado. Além desses, trabalham cerca
A APAC surgiu em 1972, em São José dos Campos de 25 psicólogas/os voluntárias/os e 85 estagiárias/
– SP, de um movimento cristão coordenado pelo os de Psicologia de diversas instituições de ensino.
advogado Mário Ottoboni. A experiência se expan-
diu e chegou a Itaúna-MG, em 1986. Em 2001, o O Relatório de ocupação das APACs solicitado à
TJMG adotou o Método APAC como alternativa à Secretaria de Administração Prisional – Seap, em
execução penal em Minas Gerais, criando o Projeto 05/06/2018, informou que havia 3.159 condenados
Novos Rumos na Execução Penal. Desde então as em cumprimento de pena nas APACs.
APACs vêm se expandindo em todo o Brasil. Em
setembro de 2018, são 39 APACs em Minas, outras
10 em outros estados brasileiros. Outras já foram
implantadas em 11 países.
4.ORIENTAÇÃO TEÓRICA
Os textos de orientação do Conselho Federal
O funcionamento das APACs está regulamentado de Psicologia (CFP) sobre a atuação do psicólogo
pelos dispositivos que constam no artigo V da Cons- no sistema prisional foram utilizados como base para
tituição Federal de 1988, que dispõe sobre os direi- este estudo. Foi utilizada bibliografia sobre o méto-
tos fundamentais previstos nos incisos: III, XLVII e do APAC e legislação que ampara sua aplicação. A
XLIX; pelos dispositivos do Código Civil Brasileiro; Psicologia Social é a orientação teórica de formação
pela Lei de Execução Penal nº 7.210/84 e pela Lei

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 69


da autora. associações.
De acordo com os dados levantados, os profissio-
nais da psicologia realizam atendimentos individuais;
4.1 ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS em grupo (rodas de conversa, atendimento familiar);
NAS APACS orientação e encaminhamento; atendimento aos fun-
Conforme Foucault, “conhecem-se todos os inconve- cionários; projetos de ressocialização (“Filho Pródigo”;
nientes da prisão, e sabe-se que é perigosa, quando “Dias Melhores”); reuniões de cela; Psicologia do
não inútil. E, entretanto, não “vemos” o que pôr em Preso; palestras sobre valorização humana, drogas
seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se e outros temas; atenção coletiva: grupos reflexivos,
pode abrir mão” (2012, p. 218). As APACs surgem psicoterapêuticos, dinâmicas de grupo, grupos de
como alternativa à execução penal comum e tornam-se apoio, “psicocine” (filmes e reflexão), semanas infor-
campo de trabalho para inúmeros profissionais, entre mativas e de conscientização. Visitas domiciliares,
eles as/os psicólogas/os. Mesmo sendo entidades acompanhamentos externos, laudos para progressão
civis de direito privado, fazem parte de uma política de regime e outras atividades conforme demanda
pública, que cumpre uma função do Estado. Abriga da instituição.
os três regimes de progressão de pena: fechado, Os psicólogos atuam em conformidade com sua
semiaberto e aberto. formação e abordagem teórica e técnica pessoais.
O perfil dos condenados recebidos nas APACs é o Por se tratar de um método de valorização humana,
mesmo do sistema convencional: predominantemente que busca cumprir o que estabelece a Lei de Exe-
jovens (55% com menos de 29 anos) e 80% dos cuções Penais e a legislação de direitos humanos,
condenados não tem ensino fundamental comple- os psicólogos estão norteados por esses princípios
to, sendo alguns semianalfabetos ou analfabetos e pela metodologia da APAC e buscam atuar na
(Andrade, 2016, p. 44). A maioria vem das camadas ressocialização do preso e no resgate da autoesti-
mais pobres da sociedade, em sua maioria pardos ma, assim como na busca da reintegração na famí-
e negros. Todas essas características desafiam os lia e no trabalho. A psicologia do preso e os temas
psicólogos no trabalho de enfrentamento de condi- para a base do método de valorização humana são
ções extremas de pobreza e discriminação. descritos por FERREIRA (2016), no livro: Juntando
cacos, resgatando vidas, com textos e técnicas de
Nas APACs pesquisadas em Minas Gerais atuam abordagem dos recuperandos, e o desenvolvimento
25 psicólogas/os contratadas/os; 25 voluntárias/os do método APAC.
e 85 estagiárias/os de psicologia. Esses profissio-
nais são referência de cuidado em psicologia para Abaixo está representado no gráfico a quantidade
os condenados, chamados recuperandos, nessas de psicólogos por quantidade de recuperados em
cada APAC:

70 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Em análise do levantamento realizado pode-se ob- Esforços estão sendo empreendidos também pelo
servar nos gráficos que a quantidade de recuperan- TJMG, pela FBAC e pelos parceiros da instituição
dos é consideravelmente maior que o número de para a realização de novos encontros para os pro-
psicólogos em cada unidade, a maioria tendo um fissionais da Psicologia que atuam nas APACs.
profissional da psicologia para atender, em média, a
Conclui-se, ainda, que apesar de haver bibliografia
150 recuperandos. São 25 psicólogas/os contratados
considerável sobre a metodologia APAC, é necessá-
por meio da rubrica de custeio dos termos de cola-
rio o desenvolvimento de estudos acadêmicos mais
boração com o Estado. As unidades que possuem
aprofundados sobre o método e sobre a psicologia do
maior quantidade de profissionais são atendidas por
preso, uma vez que se trata de um público “excluído”
estagiários, por meio de convênios com instituições de
da sociedade, mas que representa uma parcela con-
ensino. Outras, ainda, são fortalecidas pela atuação
siderável da população, motivo de preocupação e que
de psicólogos voluntários. Os principais problemas
precisa de profissionais dedicados à sua recuperação
decorrentes desses vínculos empregatícios são a
para o posterior retorno à vida social. Muitos ainda
precariedade dos contratos de prestação de servi-
são os preconceitos com relação ao método APAC,
ços, a possível descontinuidade dos atendimentos
em alguns segmentos acadêmicos, sem, entretanto,
aos recuperandos, aos familiares e à instituição e
que seja conhecida com profundidade a aplicação
a insuficiência de profissionais para esses diversos
desse método e de seus resultados, com índices
tipos de atendimento.
de recuperação superiores a 70% e reincidência
Em 2015, foi realizado o 1º Encontro dos Psicólogos menor que 30%, índices que superam a média de
das APACs, em parceria com a FBAC e o TJMG. O reincidência no sistema comum que é superior a
encontro contou com a participação de 29 psicólogas/ 70%. Estes resultados são alcançados a custos 2/3
os de todo o estado de Minas Gerais. Os desafios menores que os do sistema penitenciário comum,
relatados foram parecidos com os apresentados no com o envolvimento ativo e esforço da comunidade,
estudo do Centro de Referência Técnica em Psicologia dos profissionais, das famílias, da sociedade civil e,
e Políticas Públicas (CREPOP) em 2007, à exceção principalmente, dos próprios recuperandos.
da superlotação e das condições precárias do local de
Contatou-se que na elaboração de documentos tão
trabalho. Nas APACs, ao contrário do que ocorre no
importantes sobre a atuação do psicólogo no sis-
sistema prisional comum, não há registro de lotação
tema prisional nacional não houve participação de
acima do permitido pelo termo de colaboração com
profissionais das APACs, que acompanham mais
o estado e as instalações possibilitam o atendimento
de 3.000 indivíduos privados de liberdade. A partir
psicológico aos recuperandos individualmente ou
da apresentação deste texto, espera-se que novos
em grupos.
estudos sejam realizados, seja ampliada a oportu-
Nesse encontro, destacou-se no relato dos psicólogos nidade de orientação e atualização de estudos des-
a precariedade dos vínculos empregatícios. Cons- ses profissionais e sua inclusão no rol das políticas
tatou-se a presença predominante de voluntários e públicas do sistema prisional brasileiro.
estagiários, o que pode comprometer a continuidade
dos trabalhos, resultado da rotatividade de profissionais.
Foram apontados como temas importantes a serem
REFERÊNCIAS
trabalhados: a atuação do psicólogo nas diversas
formas de trabalho: individual, grupal, institucional, ANDRADE, D.A. APAC: a face humana da
família; valorização humana; questões técnicas do prisão. 4.ed. amp. Belo Horizonte: O Lutador,
trabalho da psicologia; religião e espiritualidade e a 2016.
psicologia do preso. Percebe-se, como resultado do
estudo, a falta de conhecimento orientado sobre a Conselho Federal de Psicologia. Diretrizes
atuação do psicólogo no sistema prisional em geral, para atuação e formação dos psicólogos do
estabelecida pelo CREPOP, e a necessidade de for- sistema prisional brasileiro. Brasília, 2007.
mação e orientação técnica continuada.
- A prática profissional dos (as) psicólogos no

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sistema Prisional / Conselho Federal de Psi-
cologia. - Brasília: CFP, 2009.
Diante do cenário exposto, pode-se concluir
- Atuação do psicólogo no sistema prisional
que faltam estudos mais aprofundados sobre a in-
serção das/os psicólogas/os e o papel da psicologia
/ Conselho Federal de Psicologia. - Brasília:
nas APACs. Este artigo é uma tentativa de divulga- CFP, 2010.
ção desse trabalho e de despertar o interesse sobre
FERREIRA, V. Método APAC: sistematização
atuação dos profissionais da psicologia nas APACs.
de processos. Belo Horizonte: TJMG, Progra-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 71


ma Novos Rumos, 2016.

FERREIRA. V. Juntando cacos, resgatando


vidas. Belo Horizonte: Gráfica O Lutador, 2016.

FOUCAULT. M. Vigiar e Punir: nascimento da


prisão; Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. A Execu-


ção Penal à Luz do método APAC/ org. Des.
Jane Ribeiro Silva. Belo Horizonte: TJMG,
2012.

LEGISLAÇÃO CONSULTADA Constituição Fe-


deral de 1988.

Lei Nº 15.299/2004 do Governo do Estado de


Minas Gerais

Lei Federal nº 12.106 de 2 de dezembro de


2009.

Lei Federal n°. 13.019, de 31 de julho de 2014/


MROSC. Decreto Estadual nº. 47.132, de 21 de
janeiro de 2017.

Resolução do CNJ nº 96 de 27 de outubro


de 2009.

Resolução do TJMG nº 633/2010 – (Consoli-


dada com alterações introduzidas pela Reso-
lução nº 659/2011) (Alterada pela Resolução
nº 784/2015).

Resolução do TJMG nº 784/2015. Resolução


do TJMG nº 659/2011.

Portaria do TJMG nº 3130/PR/2015. Portaria-


-Conjunta do TJMG Nº 170/2010.

72 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
10

AVALIAÇÃO COGNITIVA DE ADOLESCENTES ATRAVÉS DA


ESCALA RESILIÊNCIA E INVENTÁRIO DO CLIMA FAMILIAR

RESUMO
O relato refere-se ao estágio realizado no 5º período do curso de
Rosimar Conceição
Rodrigues Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) -
UEMG Divinópolis. Baseou-se no projeto “Avaliações cognitivas dos fatores de
risco e proteção em adolescente, na região do centro-oeste mineiro”,
Letícia Maia Amaral objetivando avaliar uma amostra de alunos entre 12 e 17 anos de uma
UEMG Escola Estadual (93 estudantes que participaram voluntariamente
Ronaldo Santhiago por meio de Termo de Consentimento Livre Esclarecido assinado
Bonfim de Souza pelos pais/ responsáveis); e realizar intervenções após os dados
UEMG coletados, os quais seriam analisados posteriormente. Foram
utilizados como instrumento a Escala Resiliência e o Inventário do
Clima Familiar. A coleta de dados ocorreu de maio a junho de 2016.
Ao final, alguns alunos disseram ter mais dificuldades para responder
a Escala Resiliência, diante da compreensão de algumas perguntas
semelhantes que denotavam sentido diferente. No geral, alegaram
que as atividades foram “legais” para repensar, tentar melhorar alguns
aspectos, conhecer melhor a si mesmos e suas famílias. O estágio na
abordagem cognitiva aprimorou nossa perspectiva quanto à avaliação
psicológica, culminando a percepção de que não se trata meramente
de aplicações de testes, sendo apenas um dos instrumentos para a
realização de um conjunto de possibilidades de ferramentas iniciais
para uma construção terapêutica, constituída desde o primeiro contato
com o paciente. Foi relevante perceber as representações de cada
adolescente cogitando variadas interpretações e valores atribuídos
a diferentes eventos.

Palavras-chave: Resiliência; Relação Familiar; Adolescente.

10.37885/200400153
1. INTRODUÇÃO emocionais causados pelo estresse”. (BRANDÃO;
MAHFOUD; GIANORDOLI- NASCIMENTO, 2011,
A adolescência é uma fase considerada inter- p. 264).
mediária, entre a infância e a fase adulta, marcada Os estudos realizados por Werner e Smith (1989),
por diversas transformações corporais, hormonais citados por Brandão, Mahfoud e Gianordoli- Nas-
e comportamentais. Nessa idade, cimento (2011), foram relevantes para apreensão
de que, diante de adversidades da vida, crianças
[...] aparecem a rejeição familiar, a bus- podem desenvolver habilidades de adaptação e
ca por novidades e riscos, as paixões, a enfrentamento. Assim, “foi investigando os riscos
impulsividade e os novos interesses [...] aos quais a infância estava submetida que o citado
É uma fase de lapidação, refinamento e fenômeno [resiliência] foi observado. Isso porque se
amadurecimento. Muitas conexões que tornou [...] importante entender como crianças ame-
foram feitas até a infância são abando- açadas em seu desenvolvimento poderiam alcançar
nadas. [...] O corpo que cresce desor- sucesso ou demonstrar competência.” (MASTEN;
denadamente distorce a auto-imagem COATSWORTH, 1998 apud BRANDÃO; MAHFOUD;
e [...] precisam se identificar com algum GIANORDOLI-NASCIMENTO, 2011, p. 267). A partir
disso, a Escala Resiliência (Resilience Scale) foi
grupo. (HERCULANO-HOUZEL, 2005,
elaborada originalmente por Wagnild e Young (1993)
p. 94-101).
e adaptada e validada para a população brasileira
por Pesce e col. (2005).
Essa é uma fase de vulnerabilidade e precisa ser
acompanhada, já que pode ocorrer do adolescente O Inventário do Clima Familiar (ICF) foi formulado
não adequar-se a lógica, à função do momento porque por Björnberg e Nicholson em 2007, atua na área
ainda não tem o raciocínio abstrato, resultando no da pesquisa e intervenção como um aporte amplo
distanciamento do ambiente familiar, buscando novas utilizado na avaliação e apreensão das relações fa-
alternativas como centro de recompensa. Faz-se miliares. Foi elaborado inicialmente em 1970, através
relevante a realização de pesquisas que ampliem o da Family Environmente Scale (FES), que possibilita
conhecimento do funcionamento mental desse grupo a compreensão de diferentes características familia-
para que, se necessário, sejam formulados programas res, como a qualidade do relacionamento emocional,
de prevenção e promoção de saúde apropriados segundo Moss (1974) e Schneewind (1999), citados
(CORDOVIL et al., 2011), sendo essa uma razão por Teodoro, Allgayer e Land (2009).
social e intelectual para justificar esse projeto. As-
De acordo com Björnberg e Nicholson (2007), citados
sim, espera-se contribuir para o conhecimento dos
por Teodoro, Allgayer e Land (2009), o ICF foi ela-
fatores de riscos e proteção em adolescentes. Rela-
borado através de escalas com distintas estruturas
cionando os eventos de vida e recursos internos de
fatoriais, segundo a finalidade e o embasamento
apoio externo que eles possuem, aplicando a Escala
teórico da pesquisa, resultando assim, em novas
Resiliência e o Inventário do Clima Familiar (ICF).
formulações e mensurações, propiciando - como
De acordo com Fantova (2008) e Ojeda (2004), ci- colocados por Teodoro, Allgayer e Land (2009) -,
tados por Brandão, Mahfoud e Gianordoli - Nasci- essa última por meio da percepção do clima a partir
mento (2011), a resiliência é estudada por autores de quatro fatores, como coesão (vínculo emocional),
de diferentes lugares e que utilizaram de distintas apoio (suporte material e emocional), hierarquia (di-
abordagens teóricas para tal. Atualmente, esse con- ferenciação de poder) e conflito (relação agressiva,
ceito pode ser analisado através de três correntes: crítica e conflituosa) na família em adolescentes e
a norte-americana ou anglo-saxônica (abordagem adultos.
behaviorista ou ecológico transacional, utiliza-se de
Evidencia-se um procedimento de grande relevância,
dados observáveis e quantificáveis, os quais permi-
pois abrolha uma nova possibilidade de avaliação
tem que a relação indivíduo-ambiente determine a
familiar, intervindo nesses aspectos. Contém poucos
resiliência); a europeia (normalmente de abordagem
itens, tornando-se um instrumento rápido e de simples
psicanalítica, considera a perspectiva do sujeito como
preenchimento, fornece uma visão geral do sistema
fator preponderante) e a latino-americana (aborda-
familiar ao clima positivo e negativo em adolescentes.
gem social/comunitária, compreende que a resposta
do indivíduo diante dos seus conflitos refere-se ao Portanto, tal estágio refere-se a uma pesquisa res-
contexto social em que se encontra). Dessa forma, paldada pelo projeto intitulado “Avaliações cognitivas
“brasileiros e pesquisadores falantes de línguas latinas dos fatores de risco e proteção em adolescente,
têm uma concepção que entende a resiliência ora na região do centro-oeste mineiro”, cujo objetivo foi
como resistência ao estresse, ora como associada identificar os fatores de risco e de proteção no de-
a processos de recuperação e superação de abalos senvolvimento biopsicossocial de adolescentes em

74 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


contexto institucional, escolar ou em instituição de (1), concordo um pouco (2), concordo mais ou menos
acolhimento. Nesse sentido, foi avaliada uma amos- (3), concordo muito (4) e concordo completamente
tra de adolescentes, visando a aprendizagem das (5) (TEODORO; ALLGAYER; LAND, 2009).
alunas sobre avaliação psicológica. Após os dados
Ao final, através dos feedbacks, colheram-se infor-
coletados, foram realizadas intervenções através do
mações a fim de melhorar as futuras aplicações.
conteúdo levantado pelos alunos.
Alguns alunos disseram ter mais dificuldades para
Esse estágio restringiu-se apenas a coleta de dados, responder a Escala Resiliência, diante da compreensão
visto que os mesmos foram analisados, posteriormente, de algumas perguntas semelhantes que denotavam
no decorrer do projeto. Dessa forma, os resultados sentido diferente. No geral, alegaram que as atividades
obtidos na pesquisa não serão apresentados nesse foram “legais” (sic) para repensar, tentar melhorar
artigo. alguns aspectos, conhecer melhor a si mesmos e
suas famílias, alguns se emocionaram ao relatarem

2.DESENVOLVIMENTO
sobre a desunião presente nelas. A partir disso, as
aplicadoras apontaram para os pontos positivos que
esse momento propiciou a eles, e alguns disseram
A coleta de dados ocorreu no período de 05 de
que a partir desse, haveria uma oportunidade para
maio a 17 de junho de 2016, compondo uma amostra
pensar no que eles poderiam modificar para melhorar
de 93 alunos com idade entre 12 e 17 anos de uma
a situação que estavam vivenciando. Além disso,
Escola Estadual, matriculados do 7º ao 9º ano do
puderam esclarecer dúvidas sobre a faculdade e a (o)
Ensino Fundamental II e do 1º ao 2º ano do Ensino
profissional psicóloga (o). Observou-se que o retorno
Médio. Ao recrutar tais alunos, as estagiárias escla-
dos alunos no turno vespertino foi menos frequente
receram sobre o objetivo da pesquisa, avaliando os
em relação ao turno matutino, hipoteticamente, pelo
mesmos através da Escala Resiliência e do Inven-
fator timidez ou inibição dos mesmos.
tário do Clima Familiar (ICF), mediante um Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que Após o encerramento da coleta de dados efetivou-se
foram entregues, anteriormente a cada aplicação, o feedback das atividades para a direção da escola,
para que fossem levados para casa e assinados através do qual foram realizados encaminhamentos a
pelos pais/responsáveis para autorização da parti- rede e apoio psicossocial aos adolescentes, quando
cipação dos adolescentes, enfatizando o anonimato solicitado pelos próprios alunos ou quando percebida
dos mesmos. Além do TCLE assinado pelos respon- a necessidade, identificando o sofrimento, seja por
sáveis dos adolescentes, a escola também consentiu motivos intra ou interpessoais, dos mesmos por meio
a realização da pesquisa através da assinatura de de uma escuta qualificada.
um termo de concordância. “[...] Os procedimentos
utilizados nesta pesquisa obedeceram aos Critérios Com os estudantes, realizou-se uma dinâmica de
da Ética na Pesquisa com Seres Humanos conforme encerramento a fim de desmistificar o papel do psi-
resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de cólogo e dar a contrapartida sobre a aplicação dos
Saúde – Brasília – DF. Tal pesquisa foi avaliada e instrumentos e assuntos levantados por eles. Nesse
aprovada pelo comitê de ética da Universidade do sentido, o objetivo da dinâmica foi explanar sobre
Estado de Minas Gerais (UEMG) – Unidade Divinó- o modelo cognitivo (pensamento-emoção- compor-
polis sob o número do parecer: 1.298.278.” tamento) e a tríade cognitiva (o que penso sobre
self-mundo-futuro), abordagem a qual embasou
Após ter acesso aos termos já assinados, realizou-se teoricamente esse estágio. Além disso, buscamos
a aplicação, inicialmente, em dupla, e posteriormente trabalhar alguns temas que foram abordados pelos
em grupos maiores condizentes com o domínio das alunos – relacionados às escalas, como o bullying,
aplicadoras. O espaço físico foi facilitador para que desunião familiar (Inventário de Clima Familiar) e
os adolescentes não se comunicassem e houves- resiliência (estratégia de enfrentamento) – por meio
se sigilo sobre as questões assinaladas. A Escala dos feedbacks ao final de cada aplicação.
Resiliência possui 25 itens, em que o avaliando tem
que responder se discorda totalmente (1), muito (2),
pouco (3), não concorda nem discorda (4), concorda
pouco (5), muito (6) ou totalmente (7) e que avalia os
níveis de adaptação psicossocial positiva em relação
aos eventos de vida relevantes (LOPES; MARTINS,
2011). Enquanto o ICF, é composto por 22 itens,
em que o participante responde a algumas frases
que descrevem situações e sentimentos que podem
ou não ocorrer no dia a dia de qualquer família. As
respostas variam em: não concordo de jeito nenhum

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 75


Tabela 1. Planejamento da dinâmica de encerramento com os adolescentes

Fonte: Autores, 2019

Para isso, preparamos a imagem de uma mulher mas, mostramos a imagem do modelo cognitivo e
esperando o elevador e outra com o modelo cogni- explicamos que em cada situação vivenciada, cada
tivo, um saco de balões coloridos e tiras de papel pessoa terá um tipo de pensamento que vai levar
cortado. Foi disponibilizada uma sala, em que os a uma emoção e um determinado comportamento.
alunos ficaram sentados em círculo e onde cada Os balões representavam o conjunto de variados
um recebeu um balão e uma tira de papel. Explica- pensamentos que diversas pessoas podem ter sobre
mos que daríamos as instruções e que, antes disso uma mesma situação. Essa ideia gira em torno da
gostaríamos de saber o que achavam que era um tríade cognitiva que abrange as percepções de cada
psicólogo. Houve respostas como “uma pessoa que um sobre “self”, mundo e futuro.
ajuda a seguir o caminho certo” (sic), “alguém pra
Enfatizamos a importância que um psicólogo pode
resolver os problemas da gente” (sic), “coisa de doido”
ter na vida de muitas pessoas em fases que elas se
(sic), entre outras.
deparam com suas dificuldades e sentem-se perdidas.
Após, mostramos a imagem do elevador e pedimos Dessa forma, quando os pensamentos negativos ou
que escrevessem no papel um pensamento ou sen- distorções ficam mais evidentes, o psicólogo tenta
timento que teriam se estivessem nessa situação. E, mostrar outros caminhos possíveis para que se alcan-
posteriormente, dobrassem, colocassem dentro do cem maior resiliência e momentos mais valorativos
balão, enchessem e aguardassem novas instruções. e prazerosos.
Feito isso, pedimos que jogassem os balões para

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
cima, no intuito de se misturarem. Deveriam escolher
um e estourar para que pudessem pegar o papel que
estava dentro. Pedimos que lessem e dissessem se
Diante do intuito de identificar os fatores de
era parecido com o que haviam escrito, a maioria disse
risco e de proteção no desenvolvimento biopsicos-
que não. Houve respostas variadas, como “apesar
social de adolescentes - através da Escala Resili-
de não ter medo de altura, tenho medo do elevador
ência e Inventário do Clima Familiar -, apesar dos
cair” (sic), “penso que o elevador vai chegar” (sic),
dados coletados não terem sido analisados dentro
“tenho medo de ficar presa” (sic), “vou para minha
do período de estágio, acredita-se que tal objetivo foi
casa” (sic), entre outras.
alcançado a partir dos encaminhamentos realizados
Nesse sentido, também com o intuito de sensibi- para a rede e apoio psicossocial aos adolescentes,
lizar sobre a relação com os colegas e famíliares, quando percebida a necessidade, como já menciona-
trazendo reflexão sobre o bullying, entre outros te- do anteriormente. Da mesma forma que foi possível

76 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


efetivar a contrapartida do processo, tanto para a p. 36-50, 2011. Disponívelem:<http://pepsic.
direção da escola, quanto para os alunos. bvsalud.org/pdf/rpot/v11n2/v11n2a04.pdf>.
O estágio na abordagem cognitiva propiciou aprimo- Acesso em: 20 abr. 2020.
rarmos nossa perspectiva quanto a avaliação psico-
lógica, culminando a percepção de que não se trata TEODORO, Maycoln L. M.; ALLGAYER, Ma-
meramente de aplicações de testes. Esses são apenas riana; LAND, Bruna. Desenvolvimento e vali-
um dos instrumentos para a realização de um conjunto dade fatorial do Inventário do Clima Familiar
de possibilidades de ferramentas iniciais para uma (ICF) para adolescentes. Psicologia: Teoria e
construção terapêutica, construção essa que parte Prática, v. 11, n. 3, p. 27-39, 2009. Disponível
desde o primeiro contato com o paciente e que foi em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ptp/v11n3/
possível através desse estágio, tendo em vista que v11n3a04.pdf >. Acesso em: 20 abr. 2020.
ocupamos um lugar de profissionais de confiança, as
quais alguns alunos depositaram e compartilharam
segredos. Foi de grande relevância perceber atra-
vés dos feedbacks que as representações de cada
adolescente cogitam em variadas interpretações e
valores atribuídos a diferentes eventos.
Cabe ressaltar que através da nossa orientação de
estágio, tal processo nos fez repensar nosso lugar
diante de variadas situações vivenciadas. Desde o
primeiro momento em que iniciamos nossos trabalhos,
nos deparamos com dificuldades e também com
momentos prazerosos, fomentando a ideia de que
somos seres relacionais e nosso olhar terapêutico
e empático se inicia a partir desse ponto. Tais mo-
mentos foram cruciais para aguçarmos a perspectiva
de sermos um importante “instrumento” na vida de
nossos pacientes.

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Juliana Mendanha; MAHFOUD,
Miguel; GIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid
Faria. A construção do conceito de resiliência
em psicologia: discutindo as origens. Paidéia,
v. 21, n. 49, p. 263–271, ago. 2011. Dispo-
nível em: <http://www.scielo.br/pdf/paideia/
v21n49/14.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

CORDOVIL, Catarina et al. Resiliência em


crianças e adolescentes institucionalizados.
Acta Médica Portuguesa, v. 24, n. S2, p. 413-
418, 2011. Disponível em: <https://core.ac.uk/
download/pdf/71737621.pdf>. Acesso em: 20
abr. 2020.

HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O Cérebro


Em Transformação. [S.l.]: Editora Objetiva,
2005.

LOPES, Vanessa Rodrigues; MARTINS, Ma-


ria do Carmo Fernandes. Validação Fatorial
da Escala de Resiliência de Connor-Davidson
(Cd-Risc-10) para Brasileiros. Revista Psico-
logia: Organizações e Trabalho, v. 11, n. 2,

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 77


CAPÍTULO
11
BARREIRAS AO TRABALHO DO PSICÓLOGO ESCOLAR:
VISÕES DESATUALIZADAS QUE DIFICULTAM A PRÁTICA

RESUMO
Devido à falta de psicólogos nas escolas públicas e a visão
Juan Farret Ritzel
FISMA
desatualizada sobre este profissional percebida pelo autor ao longo
de sua jornada acadêmica e eventos recentes, como o massacre
Marcelo Moreira Cezar
ocorridos em escolas. Decidiu-se investigar sobre a percepção dos
FISMA
agentes escolares que compõe este cenário sobre o profissional
psicólogo. Para tanto, foi necessário pesquisar sobre o entendimento
dos agentes acerca do papel do psicólogo escolar, analisar a
importância do psicólogo no cenário educativo sobre psicologia,
por meio de artigos científicos. Realizou-se, então, uma Revisão de
Literatura Integrativa. Diante disso, conclui-se que a necessidade
de um psicólogo escolar é evidente, mas as opiniões dos agentes
escolares acerca do mesmo parecem ainda bastante arcaicas.

Palavras-chave: Escolas Públicas; Psicólogos; Psicologia

Escolar; Saúde.
10.37885/200400040
1. INTRODUÇÃO quando esta não condiz com o imaginário colocado
pela família e pela cultura e, acaba “falhando” em
Este trabalho visa relatar as experiências viven- uma dessas facetas. Isso faz bastante sentido quando
ciadas durante os estágios de ênfase em saúde do todas as crianças recomendadas para o estagiário
curso de Psicologia da FISMA, realizados em uma atender, eram as descritas, pelo próprio corpo do-
escola pública do município de Santa Maria. Tendo cente, como as mais “problemáticas”, as que mais
como um dos objetivos principais evidenciar o con- “precisam de um psicólogo”.
traste entre dificuldades e situações gratificantes. O momento que houve maior resistência da direção
A psicologia escolar nasce, cresce e alcança seu atual escolar foi em práticas de intervenções com alunos
estágio sob a luz dos ícones da utilidade social, da adolescentes. Todas as propostas iniciais foram bar-
controvérsia e da unidade na diversidade (PFROMM radas. Inicialmente, os motivos dados para tentar
NETTO, 2011). Durante bastante tempo, prevaleceu não se efetivar um trabalho com os alunos mais ve-
o pensamento de que o psicólogo, em um contexto lhos, confirmavam a fala de Leitão e Cacciari (2017),
escolar, nada mais fazia além de medir as capacidades pois a fala mais comum era a de que tais alunos
dos alunos com testes, evidenciando os aptos e não precisavam porque “já estavam encaminhados”, e
aptos para a aprendizagem, gerando exclusão entre “já eram independentes até demais”. Com o passar
crianças (ANDRADA, 2005). Atualmente, as ativida- do tempo e a insitência do estagiário em consumar
des nas quais atuam os profissionais de psicologia uma tarefa com os alunos mais avançados, as ten-
escolar priorizam aspectos objetivos e subjetivos do tativas de barreira tomaram forma de “imprevistos” e
processo de ensino-aprendizagem (LESSA e FACCI, “inconvenientes”, isto é, não importava a disponibili-
2011). Além desses fatores, de psicólogos na rede dade de horário do psicólogo, sempre havia algum
pública de ensino e visão desatualizada do seu papel evento ou aula remarcada que impedia a realização
neste ambiente é confirmada por Balbino (2008). de qualquer atividade. A tentativa mais escancarada
de que um atendimento às turma mais velhas não
Straub (2005) menciona que tanto uma pessoa sau- era interessante para a coordenação, foi quando
dável, quanto uma pessoa em risco, podem aprender um encontro, previamente agendado, foi cancelado
comportamentos saudáveis preventivos. A Psicologia em cima da hora, com a alegação de que “há uma
da Saúde é um subcampo da Psicologia que pega lei do MEC que não permite que o psicólogo faça
os princípios e as pesquisas psicológicas e os apli- grupo com as crianças”. Neste momento todas as
ca visando a melhoria da saúde, o tratamento e a atividades planejadas tiveram que ser revistas com
prevenção de doenças (STRAUB, 2005). Portanto, o supersor responsável. Essa questão chegou até a
tentou-se realizar trabalhos não apenas com as turmas coordenação de estágios, onde foi confirmada que
tidas como “problema” pelos profissionais docentes, tal “lei do MEC” não existe.
uma vez que o custo de uma prevenção é, muitas
vezes, menor que o de uma remediação, seja custo Um grupo operativo se efetivou com os funcionários,
financeiro, emocional, tempo, etc. sem ser os professores, isto é, auxiliares de serviços
gerais, cozinheiros e secretário. Esta atividade foi
mais produtiva para uns funcionários do que para

2.METODOLOGIA
outros. Alguns comentaram sobre o que foi visto, e
outros até gostariam que mais uma atividade se-
Trata-se de um relato de experiência, do estágio melhante tivesse ocorrido. Todos as pessoas que
específico com ênfase na saúde. O local onde foram compoem o cenário escolar sempre se mostraram
realizadas as práticas que possibilitam a elaboração abertas, receptivas e animadas para, praticamen-
deste relato, foi uma escola pública municipal de te, qualquer atividade que fosse proposta. Várias
ensino fundamental, localizada na cidade de Santa escutas breves eram realizadas, as pessoas que
Maria - RS. pediam para falar com o psicólogo se repetiam, e
era perceptível o fortalecimento do vínculo com o
Neste relato de experiência foram elaboradas as estagiário a cada conversa.
vivências, e elucidadas dificuldades, bem como os

4.CONCLUSÕES
momentos mais gratificantes encontrados ao longo da
prática. As atividades de estágio em questão tiveram
o período de dois semestres de duração. Dentre as possíveis causas que podemos pen-
sar para toda essa resistência encontrada, temos o

3.RESULTADOS E DISCUSSÃO
fato de a psicologia, em qualquer contexto fora da
clínica, ainda ser pouco conhecida e a persistência
de muitos mitos e ideias erradas acerca do profis-
Segundo Leitão e Cacciari (2017), a demanda
sional psicólogo. O que faz sentido quando Martinez
de um atendimento psicológico para a criança surge

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 79


(2010) diz que o psicólogo ainda é visto com certa LESSA, P. V.; FACCI, M. G. D. A atuação do
desconfiança por parte dos agentes escolares, sendo, psicólogo no ensino público do estado do Pa-
inclusive, implicitamente rejeitado. Balbino (2008) raná. Revista Semestral da Associação Brasi-
quando nos lembra da visão desatualizada do papel
leira de Psicologia Escolar e Educacional. São
do psicólogo no ambiente escolar.
Paulo. v. 15. n. 1. p. 131-141. 2011.
A atuação do psicólogo na escola, de certa forma, está
quase sempre voltada para o social, para o contexto PFROMM NETTO, S. As origens e o desenvol-
entre as pessoas que constituem este ambiente. A vimento da psicologia escolar. In: WECHSLER,
psicoterapia não é função do psicólogo na escola S. M. (Org.). Psicologia Escolar: Pesquisa, for-
(MARTINEZ, 2010). Uma vez dentro da escola, o mação e prática. 4. ed. Campinas: Editora Alí-
psicólogo consegue ver o poder que cada determi- nea, 2011. p. 13-30.
nante social exerceve sobre sobre as dificuldades
de aprendizagem, dispõe de uma leitura estrutural, STRAUB, R. O. Psicologia da Saúde. 1a ed.
segundo a qual, há uma relação de determinação Porto Alegre: Artes Médicas, 2005.
mútua entre as partes da instituição. Ou seja, é
impossível estudar um aluno desconsiderando as
relações que este possui com seus educadores e
responsáveis. A Psicanálise utilizada na escola não
é a mesma que trata as fases psicossexuais do de-
senvolvimento, ou a que se preocupa em revelar os
desejos e motivações incoscientes à conduta humana,
já que isto seria uma extensão da clínica, o que não
deve ocorrer no contexto escolar uma vez que, no
ambiente da escola, se envolve questão sociais, e
não somente individuais (KUPFER, 2004). Exposto
isso, juntamente com uma expectativa de “conserto”
das “falhas” (LEITÃO e CACCIARI, 2017) e tentativa
de implementar uma psicologia não curativa, mas
preventiva (STRAUB, 2005), cabe considerar que
outra possível causa das barreiras impostas à rea-
lização dos trabalhos do autor, sejam originárias de
um choque de expectativa sobre como se pretendia
atuar no campo.

REFERÊNCIAS
ANDRADA, E. G. C. Novos paradigmas na
prática do psicólogo escolar. Psicologia: Re-
flexão e crítica. Porto Alegre. v.18. n. 2. p. 169-
199. 2005.

BALBINO, V. C. R. Psicologia e psicologia es-


colar no Brasil: formação acadêmica, práxis e
compromisso com as demandas sociais. São
Paulo. Summus. 2008.

KUPFER, M. C. M. O que toca à/a psicolo-


gia escolar. In: MACHADO, A. M.; SOUZA,
M. P. R. (org.). Psicologia Escolar: Em busca
de novos rumos. 4. ed. São Paulo. Casa do
Psicólogo. 2004. p. 55-65.

LEITÃO, I. B., CACCIARI, M. B. A demanda clí-


nica da criança: Uma psicanálise possível. Es-
tilos clin. São Paulo, v.22, n.1, p. 64-82, 2017.

80 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
12

CLASSES MULTISSERIADAS: INFÂNCIA E APRENDIZAGEM

RESUMO
Este artigo tem como finalidade comentar e analisar sobre as
Naillê Belmonte Trindade
URI
observações realizadas através do Estágio Básico e relacionar com
os conhecimentos obtidos em disciplinas estudadas no curso de
Rejane La Bella Flach
Psicologia, bem como com o referencial teórico abordado. Neste serão
Cunegatto
apresentados os aspectos presentes nas escolas que desenvolvem
as várias formas de ensino-aprendizagem em classes multisseriadas
e as estratégias adotadas por elas, buscando analisar o contexto em
que os alunos estão inseridos, suas experiências, correlacionando
com a aquisição de conhecimentos, bem como as relações tanto
sociais, como de aprendizagem, obtidas pelos alunos. A partir deste
estágio pode-se concluir que o ensino multisseriado, possui elementos
positivos, como por exemplo a relação de trocas de conhecimentos
entre os alunos, e negativos, pode-se citar a dificuldade da professora
em ministrar a aula e atender as necessidades individuais dos alunos,
mesmo a turma tendo número reduzido, e as metodologias de ensino
presentes neste sistema precisam ser reavaliadas para que possam
obter mais êxito na educação.

Palavras-chave: Classes Multisseriadas; Infância; Aprendi-

zagem.
10.37885/200400141
1. INTRODUÇÃO zação social, ou seja, diferentes classes produzem
papeis distintos à criança”. Esses papeis podem ser
O presente artigo abordará a experiência viven- definidos pelo brincar, fantasiar, imaginar e aprender,
ciada no Estágio Básico de Observação do Curso de itens esses que estão interligados ao desenvolvi-
Psicologia da URI (Universidade Regional Integrada mento infantil e a aprendizagem, pois a criança ao
do Alto Uruguai e das Missões) – Campus Santo Ân- brincar e fantasiar, estabelece uma forma lúdica de
gelo, o qual teve o intuito de efetuar, na prática, uma apreensão do conhecimento.
associação dos conhecimentos teóricos adquiridos Existem variadas formar de aprender e algumas se
nas disciplinas já cursadas anteriormente. dão desde os primeiros anos de vida e estão liga-
O estágio de observação foi efetuado em uma es- das ao cotidiano da pessoa, outras acontecem de
cola pública de ensino fundamental, localizada no maneira sistemática em instituições próprias, como
interior de um município da região noroeste do RS. a escola (NUNES e SILVEIRA, 2015). Ao relacio-
A partir de diálogos com o diretor da escola e com nar estas formas de aprendizagem compreende-se
uma professora regente de uma turma foi solicitada que o conhecimento obtido demonstra os diversos
que a prática curricular fosse realizada com uma saberes que compõem as áreas do conhecimento,
turma de séries iniciais, que consiste em uma classe onde desde o nascimento o indivíduo começa a se
multisseriada, de primeiro e segundo ano, contendo apropriar deles.
oito alunos de sete a oito anos de idade, no turno Partindo de uma análise acerca da infância:
da tarde.
Tem como finalidade empreender uma análise acer- É impossível pensar a criança fora da
ca da infância, das formas de aprendizagem e das sociedade, haja vista que é dela que
relações que são estabelecidas na aprendizagem advém as suas determinações. Uma
infantil em classes multisseriadas, em que tratará compreensão da criança, portanto, en-
e exemplificará diversas experiências vivenciadas, volve o conhecimento da sua relação
possibilitando reflexões relativas as formas de lidar com o seu meio, das diversas possi-
e ensinar nesse tipo de contexto. bilidades de influência às quais está
suscetível. (WALLON apud PILETTI e

2.ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
ROSSATO, 2011, p. 111).

Tendo em vista isso, as relações estabelecidas na


O estágio básico de observação foi realizado escola, como as designadas primariamente na famí-
em uma escola estadual de ensino fundamental, lia, são parte da composição da criança, onde lhe é
localizada em uma comunidade rural no noroeste permitido ver além, explorar novas dinâmicas sociais,
do estado do Rio Grande do Sul, com uma turma culturais, econômicas e outras formas de conhecer
multisseriada, de 1º e 2º ano, contendo oito alunos. o mundo. Explicitando isso é possível associar as
As observações tiveram início no dia 20 de agosto de crianças e as suas maneiras de pintar, onde, em
2018, sendo realizada uma observação por semana sala de aula, discutem as cores que podem colorir as
no período da tarde, com duração de aproximada- frutas, e uma aluna descreve as diferentes cores em
mente 1h e 30 minutos, no total de 10 semanas, que que já viu um pêssego, árvore frutífera que dissera
foram realizadas em horários e disciplinas variadas, ter em casa, mencionando suas cores quando o fruto
sendo a última observação no dia 25 de outubro de nasce, quando está se desenvolvendo e quando está
2018. A observadora se instalou em uma classe no maduro, podendo associar o que a criança aprendeu
fundo da sala a fim de visualizar amplamente os em casa e como ela está relacionando com o que é
acontecimentos ali estabelecidos sem interferir no aprendido em ciências, na escola.
decorrer da aula.
Tendo como instituição primordial de construção e

3.DESENVOLVIMENTO propagação do saber, a escola é palco de contra-


dições e desafios a respeito dos vários contextos,
envolvendo diferentes aspectos e abordagens, tendo
como eixo principal a efetividade e qualidade do
ensino e da aprendizagem, no contexto presente
3.1 INFÂNCIA E APRENDIZAGEM em que a informação e o conhecimento são deve-
ras propagados na sociedade (NUNES e SILVEIRA,
A infância, além de uma fase do desenvolvimento
2015), cabendo a escola e ao professor filtrar e saber
humano, é uma construção social, para Sarmento
repassar as noções desses elementos de forma que
apud Saveli et al (2013, p. 18), “o conceito de infância
possa agregar na construção da aprendizagem infantil.
está diretamente relacionado às formas de organi-

82 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Para Wallon apud Piletti e Rossato (2011, p. 114), “o pedagógica, buscando estratégias pedagógicas para
desenvolvimento intelectual e a aquisição de conhe- seu avanço, uma vez que a condição apresentada por
cimento caminham juntos e, por isso, os conteúdos esse contexto educacional não é incomum, bastando
escolares, passam a ter grande representatividade, relacionar as diversas experiências obtidas nessas
influindo diretamente no resultado daquele”, fato ob- escolas para que um processo de produção de co-
servado em vários momentos do estágio, onde ao nhecimentos seja elaborado, visando transmitir os
analisar certa aluna, era notória a assimilação das suas dados produzidos e auxiliando a descontruir o este-
fases de desenvolvimento intelectual e sua aquisição reótipo negativo referente as classes multisseriadas.
de saber, pois as atividades propostas a ela pela
As classes multisseriadas possuem dificuldades seme-
professora acompanhavam seu desenvolvimento,
lhantes as evidenciadas em outros tipos de escolas,
onde ela sempre fazia atividades e exercícios dife-
como a sobrecarga do professor, pouco tempo de
rentes dos demais devido ao seu atraso intelectual e
aula para a demanda de conteúdo, falta de profes-
motor, tarefas como montar quebra-cabeças de nível
sores específicos de cada área, entre outros. Dessa
um pouco mais difícil ou jogar vôlei, eram feitas com
forma, relaciona-se a sobrecarga da professora com
demasiada dificuldade, o que para os colegas, com
a turma, onde muitas vezes ela deixava de atender a
desenvolvimento dito “normal”, eram atividades fáceis.
turma como um todo para atender somente um aluno,
Essa união não ocorreria se o desenvolvimento do
ou o contrário, fato esse que embora necessário,
intelecto fosse mais desenvolvido do que sua forma
prejudica a turma, pois dificulta o decorrer da aula,
de aquisição do saber, ou vice-versa.
fazendo com que a programação de uma atividade
possa demorar mais devido as interrupções. Além
disso, salienta-se também o ensino diferenciado que
3.2 CLASSES MULTISSERIADAS ocorria com uma aluna, que, por não acompanhar o
desenvolvimento da turma, recebia tarefas e exer-
O estágio básico de observação foi efetivado em
cícios diferentes dos colegas, tendo a necessidade
uma escola pública de ensino fundamental locali-
de atenção especial da professora para correções e
zada na zona rural, onde no primeiro contato com
amparo acerca do que lhe era ofertado, minimizando
a escola se obteve a informação de que as turmas
o tempo da professora com os demais.
eram multisseriadas devido à pouca quantidade de
alunos matriculados, informação essa referenciada Em uma das observações percebeu-se a forma in-
negativamente, como se a multisseriação pudesse cludente de ensino que a professora desenvolvia
ser um obstáculo para a realização das observações. com a turma, relacionando saberes adquiridos na
escola com os conhecimentos já vivenciados pelos
A criação das classes multisseriadas são tidas como
alunos, onde ela representava aspectos da disciplina
desafiadoras, por transgredir a forma que seria a
de geografia com a zona rural, local onde as crianças
tradicional de ensino, porém, “no campo dos conhe-
moram, facilitando a compreensão. Os alunos mais
cimentos teóricos está se produzindo uma trans-
velhos, que possuíam um pouco mais de conheci-
formação radical das velhas concepções e ideias
mento que os mais novos auxiliavam a professora
e uma reestruturação fundamental de conceitos e
nas explicações, demonstrando que a multisseriação
métodos” (THORNDIKE apud VIGOTSKI, 1998, p.
pode ser uma forma possível de compartilhar saberes.
149). Através dessas mudanças, o pensar nas diver-
sas formas de transmissão do saber deve englobar
todos os contextos e condições aos quais os alunos
se encontram, tendo uma educação que possa in- 3.3 SUBJETIVAÇÃO E APREENSÃO
cluí- lo invés de excluir, fazendo com que a escola DO CONHECIMENTO
possa representar suas realidades nas maneiras de
Tendo como base as experiências vividas em uma
ensino vigentes. Um exemplo observado no estágio
classe multisseriada, foram observadas as diversas
é a utilização de livros pedagógicos sobre a zona
formas com que os alunos se apropriavam dos co-
rural, meio no qual a escola é situada, onde o aluno
nhecimentos transmitidos e a configuração de como
seja capaz de estudar e compreender os saberes
as suas subjetivações pré- determinadas em seus
transmitidos de forma que ele visualize os modelos
lares exerciam influência nesse método de ensino,
do que lhe é ensinado, tendo uma fácil associação
pois suas maneiras de pensar e agir são inspiradas
em relação aos conteúdos didáticos, forma de ensi-
pelo primeiro grupo de convívio social, a família, uma
no essa, incomum nas classes seriadas, onde nem
vez que em aulas da matéria de ciências as crianças
todos os livros usufruídos abrangem as realidades
muitas vezes relacionavam conteúdos sobre o meio
presentes nas escolas.
ambiente com o plantio e a lida no campo que era
A multisseriação nas escolas, para Parente (2014), aprendida em casa, e em matemática relacionando a
resulta de uma necessidade e não de uma opção quantidade de sacas por hectare que eram contadas
nas colheitas de determinadas plantações.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 83


Ao chegar à escola e se deparar com novas pes- idades contribui no processo educacional, onde os
soas e espaços a criança tende a se constituir do que possuem mais conhecimentos relatam e tentam
que lhe é ensinado ou demonstrado, tendo como orientar os outros, sendo também uma forma de
exemplos as pessoas que a rodeiam, construindo aprender, pois para Becker (2010), a aprendizagem
novas aprendizagens e contribuindo para que suas verdadeira é possível somente no plano das influên-
compreensões já estabelecidas possam ser enri- cias recíprocas dos indivíduos entre si.
quecidas e acrescidas das novas subjetivações em
Embora existam variados aspectos positivos em
que se depara.
relação ao ensino multisseriado, deve-se salientar
A classe multisseriada proporciona a junção de crian- os obstáculos encontrados, como a insuficiência de
ças de várias idades e situações, bem como novos tempo e sobrecarga apresentada pela professora,
meios de subjetivação apresentados pelo professor pois em vários momentos ela deixava de atender a
e pelos colegas. Essas subjetivações encontram-se turma para atender a somente um aluno, deixando
e agregam-se, de maneira que a criança possa se de lado os outros que, embora precisassem menos,
reconstruir e apreender variadas outras vivências, também necessitavam de auxílio. Mesmo a turma sendo
auxiliando no processo de aprendizagem, onde ela pouco numerosa, já ocorrem casos de desamparo
pode imaginar e projetar outros saberes, um exem- aos alunos pela professora regente, o que poderia
plo disso, é demonstrado quando as crianças, ao não acontecer caso ela tivesse alguma assistente
conversarem entre si sobre os trabalhos exercidos ou estagiária.
no campo trocam informações sobre as formas de
O estágio forneceu dados e vivências de grande
cultivo e colheita de milho, onde uns falavam sobre
importância, uma vez que o estudo acerca deste
como fazer silagem e outros sobre como utilizar o
tema possui relevância para auxiliar novas pesquisas
milho na alimentação de porcos, diálogo comum em
que possam vir a acontecer, promover debates e
suas famílias e que é reproduzido pelas crianças,
discussões, formar ou desconstruir opiniões sobre
percebendo-se que esses conhecimentos já foram
as classes multisseriadas e os processos de apren-
incorporados nas suas subjetividades.
dizagem estabelecidos nelas.
Ao apresentar as suas novas formas de subjetivação
e conhecimentos em aula, o aluno tende a produzir
novas subjetivações nos colegas e no professor,
REFERÊNCIAS
forma essa de enriquecer os métodos de ensino-
-aprendizagem, uma vez que, para Becker (2010), a BECKER, Fernando. O caminho da aprendiza-
aprendizagem deve circular em ambos os sentidos, gem em Jean Piaget e Paulo Freire: da ação à
de forma que o professor, além de ensinar, passa a operação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
aprender, e o aluno, além de aprender, passa a ensinar.
Um aspecto relevante observou-se determinada vez NUNES, Ana Ignez Belém Lima; SILVEIRA, Ro-
em que um aluno passa a comentar sobre drogas semary do Nascimento. Psicologia da aprendi-
com um colega, e a professora intervém no assunto, zagem. 3ª Ed. Ceará: Editora da Universidade
pedindo explicações a respeito do que era falado, o Estadual do Ceará, 2015.
aluno expõe o que lhe foi ensinado e vivenciado em
casa, e a professora se utiliza desse momento para PARENTE, Cláudia da Mota Darós. Escolas
fazer com que a turma faça reflexões em relação as Multisseriadas: a experiência internacional
drogas, ensinando-lhes sobre as consequências para e reflexões para o caso brasileiro. Ensaio:
quem é usuário. A conversa não se aprofundou, mas avaliação e políticas públicas em Educação,
foi o bastante para que as crianças comentassem o Rio de Janeiro, v. 22, n. 82, p. 57-88, mar.
que já sabiam sobre isso e que conscientizassem 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/
aos colegas que sabiam menos, relatando sobre o scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
que viam na televisão. 40362014000100004&lng=pt&nrm=iso>.

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acesso em: 01. nov. 2018.

PILETTI, Nelson; ROSSATO, Solange Mar-


A partir das observações realizadas e a funda- ques. Psicologia da aprendizagem: da teoria
mentação teórica aqui abordada, pode-se compre- do condicionamento ao construtivismo. São
ender que a relação de aprendizagem infantil com Paulo: Contexto, 2011.
as classes multisseriadas denota variados aspectos
positivos, ressaltando os modos de aprendizagem e SAVELI, Esméria de Lourdes et al. (Re)visitan-
subjetivação concebidos nesse contexto de ensino, do conceitos de infância e educação. Olhar
de forma que a relação dos alunos de diferentes de professor. Ponta Grossa,v.16.n.1,p. 17-30,

84 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


2013 Disponível em: <http://www.revistas2.
uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/
view/6094/3696>. Acesso em: 05. nov. 2018.

VIGOSTKI, Lev Semenovich. O desenvolvi-


mento psicológico na infância. Tradução Clau-
dia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 85


CAPÍTULO
13

COMPREENDO O BEHAVIORISMO RADICAL: DA LITERATURA


AO CINEMA

RESUMO
O Behaviorismo Radical de B. F. Skinner foi arquitetado segundo
Rogério de Melo Grillo
UNICAMP
a corrente filosófica do Pragmatismo. A partir disso, Skinner ilidiu
veementemente o mentalismo e, igualmente, o livre-arbítrio. Por
Eloisa Rosotti Navarro
outro lado, não renunciou a introspecção, aceitando-a como um
UFSCAR
tipo de comportamento verbal sucedido da reflexão (observação e
autoconhecimento). Em linhas gerais, esta vertente da Psicologia
tem como escopo o estudo do comportamento por via do próprio
comportamento, sendo este ideado mediante a sua relação direta
com o ambiente, sem a identificação de estruturas mediadoras ou
causadoras (processos cognitivos mentais, tais como a consciência)
entre estes eventos. Em vista disso, o presente texto tem o fito de
analisar o Behaviorismo Radical de B. F. Skinner por meio de obras da
literatura e do cinema. Acreditamos que trazer exemplos da literatura
e do cinema corrobora para uma melhor compreensão do trabalho
de B. F. Skinner e, ademais, serve como suporte para pesquisadores
e professores que queiram utilizar de seus preceitos no campo da
Educação.

Palavras-chave: Behaviorismo Radical; Educação; Compor-

tamento; Psicologia.
10.37885/200400042
1. AS ORIGENS DO BEHAVIORISMO que o estímulo incondicionado, passando, por sua
RADICAL vez, a ser chamado de estímulo condicionado.
É precípuo aludir que Watson defendia que as res-
Os homens agem sobre o mundo modi- postas são mudanças observáveis do organismo
ficando-o e são, por sua vez, modifica- atinentes aos seus músculos e glândulas. Nesse
dos pelas consequências de sua ação. viés, elas são causadas pela ação de estímulos
B. F. Skinner (antecedentes imediatos às respostas) localizados
no ambiente. Essa corrente de pensamento ficou
O Behaviorismo surgiu em 1913, a partir da publicação conhecida como Behaviorismo Metodológico e sua
do artigo “Psychology as the Behaviorist Views It” base filosófica é o Realismo.
de John B. Watson. Neste artigo, Watson defendeu
Ulterior a Watson, B. F. Skinner fundou o “Behavio-
que a psicologia deveria ser definida como “ciência
rismo Radical”, fundamentando-se no Pragmatismo.
do comportamento” e o behaviorismo seria, então,
Sob a égide da aludida corrente filosófica, Skinner
a filosofia dessa ciência. Ademais, este autor deixou
rejeitou veementemente o Mentalismo¹ e o livre-ar-
explícita a sua insatisfação em relação à introspecção.
bítrio. Entrementes, não renunciou a introspecção,
Por isso, criticou as correntes teóricas que defendiam
aceitando-a como um tipo de comportamento verbal
a Psicologia como uma ciência da mente.
advindo da reflexão (forma de observação e autoco-
De modo resumido, Watson arquitetou que a Psico- nhecimento). Dessa maneira, o autoconhecimento,
logia, apenas por meio do estudo do comportamento, para Skinner, torna-se útil, posto que é uma forma
poderia atingir a fidedignidade, a confiabilidade e a de explanar um acontecimento privado que é produto
generalidade precípuas para se tornar uma ciência colateral de causas ambientais (CARRARA, 1998;
natural. Portanto, para se explicar o comportamento GUIMARÃES, 2003; SKINNER, 1974).
era preciso, a priori, rejeitar os termos tradicionais
Em outras palavras, Skinner entendeu que autoco-
atinentes à mente e à consciência, assim como, a
nhecimento tem um valor especial para o próprio
subjetividade da introspecção. Com isso, o objetivo
indivíduo. Ora, uma pessoa que se “tornou consciente
da ciência do comportamento seria estudar somente
de si mesma”, por intermédio de perguntas que lhe
o comportamento objetivamente observável.
foram feitas, indubitavelmente, está em melhor posi-
Vale enfatizar que Watson foi influenciado diretamen- ção de prever e controlar seu próprio comportamento
te por Ivan Pavlov e, destarte, criou seu paradigma (SKINNER, 1974).
de comportamento S R, versado como estímu- Nesse contexto, os “eventos internos” existiriam,
lo-resposta. É inegável que esse modelo esclarece contudo, sua natureza seria física (comportamentos
somente uma parcela pequena dos comportamentos privados). Vale sublinhar que estes eventos pode-
humanos, chamados de: comportamentos reflexos riam ser estudados cientificamente por intermédio
ou respondentes e os comportamentos reflexos ou da aquisição de repertórios sob o controle de even-
respondentes condicionados (GUIMARÃES, 2003). tos privados. Nota-se, a partir disso, que Skinner
Os “Comportamentos Reflexos ou Respondentes” depreendeu que eventos públicos e privados não
são aqueles as quais um estímulo está diretamente são tão distintos quanto se pensava. A diferença
relacionado a uma determinada resposta do orga- entre ambos corresponde ao número de indivíduos
nismo, isto é, um determinado estímulo engendra que podem relatar tais eventos. Excetuando isso,
uma resposta incondicional no organismo (estímu- são eventos do mesmo tipo, já que possuem as
lo incondicional). A título de exemplo, quando um mesmas características. Desse modo, se eu estiver
indivíduo sem perceber esbarra seu braço numa só e destruir o meu quarto, pode-se dizer que é um
panela quente e afasta-a imediatamente, logo após evento privado, visto que ninguém mais observou
ter esbarrado na panela. Assim, quando o indivíduo tal evento. Caso contrário, se eu comportasse da
esbarra na panela quente, ele está se comportando mesma maneira e fosse observado por alguém, este
de acordo com o modelo S R, uma vez que esse evento já seria público.
comportamento de afastar imediatamente o braço é Em termos gerais, a preocupação principal do Beha-
tido como um comportamento reflexo.
No que concerne ao “Comportamento Reflexo Con-
dicionado”, este precisa de aprendizagem, visto que,
nesse tipo de comportamento, um estímulo neutro ¹ Termo usado por Skinner para aludir um tipo de explicação que
não explica nada (BAUM, 1999). É preciso enfatizar que Skinner
será pareado com um estímulo incondicionado para
questionou e refutou os conceitos mentalistas, no que concerne à sua
que, subsequentemente, esse estímulo neutro seja
natureza fictícia, sobrenatural e imaterial, e, mormente, o seu papel
capaz de produzir no organismo a mesma resposta na determinação de um comportamento público (causalidade interna).

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 87


viorismo Radical é o estudo do comportamento por indivíduo poderia estar pensando. A ideia central
meio do próprio comportamento, sendo este conce- era observar um comportamento, isto é, observar o
bido mediante a sua relação direta com o ambiente, que um indivíduo está efetivamente fazendo e, por
sem a identificação de estruturas mediadoras ou consequência, o resultado de suas ações (CARRA-
causadoras (processos cognitivos mentais, tais como RA, 1998),
a consciência) entre estes eventos.
Em razão disso, há uma modificação no paradigma de
De resto, pode-se dizer, incontestavelmente, que comportamento (S R) proposto por Watson. Para
Skinner avançou novamente em relação à Watson, Skinner, o modelo é S(a) R S(c), em que “S(a)”
ao explicar que a percepção não é controlada tão-so- representa um estímulo antecedente ou acontecimen-
mente pelo momento atual e/ou o estímulo presente. to no ambiente, por conseguinte, “R” representa o
Mais do que isso, a percepção é produto de uma comportamento e, por fim, “S(c)” é a consequência,
história de reforçamento, a qual depende da emoção/ a qual pode ser reforçadora ou punitiva (a isso dá-se
motivação do condicionamento. Dessarte, o “homem o nome de contingência²).
não é uma folha em branco” e o conhecimento não
é só responder a estímulos. Ora, a percepção do Sob esta perspectiva, no “comportamento operante”
mundo (ambiente) pelo homem é o seu comporta- a contingência concerne às condições pelos quais
mento com relação a ele (WHALEY; MALOTT, 1980). uma consequência é produzida por uma resposta,
quer dizer, a ocorrência da consequência está intrin-
secamente concatenada à ocorrência da resposta,

2.O BEHAVIORISMO RADICAL


Como foi dito na seção anterior, Skinner rejeitou
sendo determinada por ela. A título de exemplo, o
diálogo a seguir extraído do livro “O apanhador no
campo de centeio” (1951/2004), de J. D. Salinger
a existência de mundos exterior e interior, propondo (2004, p. 48):
uma ciência fundamentado no comportamento em “ – Cala a boca, Holden! - ele disse, com a carona
um único mundo. Nesse sentido, a preocupação do imbecil toda vermelha. – Cala a boca!
supracitado psicólogo era arquitetar termos descri-
tivos para depreender e definir o comportamento e, – Você nem ao menos sabe se o nome dela é Jane
igualmente, superar o Behaviorismo Metodológico. ou Jean, seu boçalão!
Para Skinner havia apenas dois tipos de proces- – Cala essa boca, Holden, que droga! Estou avisando
sos evolucionários que explicam o comportamen- - ele disse. O cara estava alucinado. – Se você não
to. Em termos mais específicos, o comportamento calar a boca vou te dar uma porrada.”
é determinado unicamente pela hereditariedade e
No excerto acima, existe o “se” como uma condição
pelo ambiente (isso é chamado de determinismo).
e o “então” (está implícito) como uma consequência.
Nessa perspectiva, o biológico dá base à análise do
Com isso, temos uma contingência, isto é, “se Holden
comportamento e o cultural possibilita a análise das
Caulfield não calar a boca (comportamento), então,
práticas aprendidas (ou práticas sociais).
Stradlater lhe dará uma bordoada (evento ambiental
Ademais, o Behaviorismo Radical pretere a visão consequente)”. Temos neste exemplo, uma situação
dualista do homem no contexto da ciência do com- em que a possível consequência seria uma punição
portamento. Portanto, todos os fenômenos estão (“porrada”) e, a relação “ação-consequência’ seria
em uma dimensão natural. E o dualismo “mente x então positiva, por ser a adição de um estímulo aver-
corpo”, por seu turno, é relegado, dando lugar a sivo (controle por coesão). Levando em consideração
uma concepção monista de homem. Com isso, as que Holden entende o que é uma “porrada”, por inter-
explicações respeitantes aos fenômenos compor- médio de experiências anteriores (comportamentos
tamentais devem ser realizadas mediante causas passados), ele então cede à ameaça de Stradlater
naturais, reais e passíveis de observação e análise, e fica em silêncio (comportamento consequente).
mesmo que seja do próprio indivíduo que as observa.
É dessa forma que o repertório comportamental de
Nesse contexto, visando ampliar as teorias alvitra- um indivíduo é selecionado para o Behaviorismo
das por Watson, Skinner propôs a ideia do “com- Radical. A premissa básica de Skinner, portanto,
portamento operante”. Este seria aquele pelo qual a resume-se na ideia de que os estímulos exteriores
causa primeira não está determinada, porém a con-
sequência pode ser observada. Destarte, é possível
compreender se esse comportamento se repetirá
ou não, quer dizer, o comportamento é selecionado
² A contingência é a relação de dependência entre um estímulo ou
por suas consequências. Em outros termos, Skinner
uma classe de estímulos, e uma resposta ou uma classe de respostas
não tinha a preocupação de ficar teorizando ou até
(SKINNER, 2003).
mesmo especulando acerca do que um determinado

88 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


do ambiente do indivíduo controlam seu comporta- Em suma, Gruwell pretere a punição e o controle por
mento. Em suma, o comportamento de um indivíduo coerção, optando pelo reforçamento positivo (embora
é diretamente afetado pelas consequências que de- isto não seja aludido diretamente no filme) que, por
terminados comportamentos análogos tiveram no sua vez, engendrou comportamentos adequados,
passado. como o respeito mútuo, a solidariedade, a não vio-
lência, o prazer pela leitura, dentre outros.
Nesse viés, o indivíduo é parte do seu ambiente, já
que o ambiente atua sobre ele, modificando-o inter-
namente. E o indivíduo, por decorrência, atua sobre 2.2 COMPORTAMENTO SUPERSTI-
o ambiente, modificando-o (ambiente externo). Em CIOSO
linhas gerais, é por via dessa relação que o indivíduo
constrói sua história de vida, em que abrange um Assim como “Sansão perde a força ao ter o cabe-
histórico de reforçamento e punição, além da sele- lo cortado, como se sua força fosse provida pelo
ção dos comportamentos por suas consequências. cabelo”, ou ainda, “quando um indivíduo contorna
uma escada, preferindo não passar por debaixo dela,
visto que dá azar”, temos o chamado comportamento
2.1 CONDICIONAMENTO OPERANTE supersticioso.
Para Skinner, o comportamento supersticioso é aquele
O condicionamento operante é, na perspectiva do
adquirido ou mantido apenas por contiguidade com
Behaviorismo Radical, um modo de dar condições para
reforço acidental (contingências acidentais). Nesse
que um determinado indivíduo possa se comportar
sentido, os rituais supersticiosos de uma determinada
de maneira consciente, conforme as consequências
sociedade, comumente, são inerentes a paradigmas
dos seus comportamentos. Tomemos como exem-
verbais e não verbais transmitidos culturalmente.
plo, a ideia do reforço positivo. Se introduzirmos um
Tais rituais podem ter sido ocasionados mediante o
reforço positivo, logo após uma resposta, resultando
efeito de um reforço operante acidental (quem sabe,
no aumento na frequência desta resposta, podemos
mantidos por contingências ocasionais).
inferir que isto é um condicionamento. Em síntese,
uma resposta a qual sua frequência foi aumentada Um bom exemplo, dessa vez na literatura, é o li-
pelo reforço, esta resposta foi condicionada. vro “O morro dos ventos uivantes” (1847), de Emily
Brontë. Nesta obra, Heathcliff (personagem princi-
Um exemplo real e bem interessante de condi-
pal) acredita que o mau tempo (tempestade, chuva
cionamento, pelo reforçamento positivo, pode ser
etc.) trazia má sorte, tanto que acreditou que seu
observado no filme/livro “Escritores da Liberdade”
relacionamento com Catherine não daria certo por
(2007). A personagem principal do longa-metragem é
uma questão do “destino exibido no mau tempo”
a professora de Literatura Inglesa Erin Gruwell, que
(algo como um presságio). Por incrível que pareça,
assume uma classe de alunos da Escola Wilson (Los
realmente, o relacionamento não deu certo e isso
Angeles, CA). Estes alunos têm sérios problemas de
reforçou este comportamento supersticioso. Dessa
relacionamento, dado que eles pertencem à distintas
forma, podemos analisar que toda tempestade ou
etnias (brancos, negros, hispânicos e asiáticos), as
chuva é um reforçamento para o comportamento
quais se rivalizam no próprio bairro.
supersticioso (de abatimento, tristeza, ansiedade e
Tendo então que administrar os problemas de con- medo) de Heathcliff.
vivência, como o racismo e a violência em sala de
No âmbito do jogo e do esporte são inúmeros os
aula, a professora Gruwell propõe um meio interes-
exemplos que podemos elucidar em se tratando do
sante de fazer com que os alunos sintam atração
comportamento supersticioso. O próprio Skinner dá
pela sua disciplina e ao mesmo tempo se respei-
como exemplo o comportamento de um jogador de
tem mutuamente (mesmo sem o apoio da direção
boliche que, depois de ter lançado a bola, inclina o
da escola). Assim, propõe um projeto de leitura e
seu corpo como se, desta forma, pudesse controlar
escrita, encetado a partir do livro “O diário de Anne
a trajetória da bola (SKINNER, 1973). Ou ainda, no
Frank”. Nesse projeto, os alunos iriam registrar, em
filme “Rocky” (1976), em que a personagem principal,
“cadernos personalizados” (diários), o que quiserem
Rocky Balboa, antes de qualquer luta, vai à casa de
a respeito de suas vidas. No final de cada aula,
um padre em seu bairro para receber sua bênção.
Gruwell iria recolher tais diários e lê-los. O projeto
Ora, cenas como estas fazem parte do nosso coti-
dá certo e, continuamente, Gruwell reforça os com-
diano. Quantas vezes não usamos de amuletos ou
portamentos dos alunos com elogios, incentivos a
de certos comportamentos acreditando que estes
leitura, presentes (tais como livros), visita ao museu
interferem diretamente em nossas ações?
do Holocausto e uma palestra com Miep Gies (mulher
que escondeu Anne Frank dos nazistas, durante a Outro caso interessante de comportamento supersti-
2ª Guerra Mundial). cioso é de um amigo, a qual antes de fazer palestras

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 89


ou dar aulas, tem um “ritual especial” (comportamento seus alunos com elogios, mormente, quando estes
supersticioso), que é beijar sua medalha (escapulário) assumem o “Carpe diem” como meio de libertação
três vezes. Com certeza, ao ter feito isso na primeira intelectual. Uma cena interessante é do aluno Todd
vez e, consequentemente, ter ido bem numa de suas Anderson, que não conseguia se expressar em pú-
palestras ou aulas, tal fator serviu como reforçador. blico. Graças aos estímulos e técnicas pedagógicas
Destarte, este reforço é responsável pela repetição de Keating, Anderson consegue produzir uma poesia
contínua deste tipo de comportamento supersticioso, e apresentá-la na frente da turma, sendo reforçado
antes de atuar como palestrante e/ou professor. Outra (elogio) em seguida por Keating.
possibilidade corresponde ao fato de ter aprendido
Outro filme interessante para se debater o reforço
esse ritual com algum familiar ou amigo (fator cultural
negativo, trata-se do longa-metragem “Um estra-
ou religioso) e, mesmo não dando certo (falhando em
nho no ninho” (1975) de Milos Forman. Em uma de
alguma aula), a possibilidade de novas ocorrências é
suas cenas, o personagem principal McMurphy, ao
grande. Ora, como infere Skinner, um comportamento
se direcionar para a fila em que os pacientes rece-
supersticioso estabelecido, resistirá ainda que for
bem um determinado medicamento (uma espécie
esporadicamente reforçado.
de calmante), é ameaçado por uma enfermeira ao
dizer-lhe que se não tomasse o remédio via oral, então
2.3 REFORÇAMENTO eles achariam outra forma dele tomá-lo, indicando,
talvez, algo invasivo e/ou doloroso (estímulo aversi-
Para o Behaviorismo Radical, o estímulo é tudo o vo). Nesse filme, existem várias cenas as quais as
que é atinente ao contexto que o comportamento personagens (pacientes de uma clínica psiquiátrica)
ocorre. O controle é aquilo que altera a probabilidade são ameaçadas, chantageadas e coagidas a terem
de ocorrência da resposta, quer dizer, o que a tor- um comportamento adequado, ou seja, os elementos
na mais ou menos frequente naquele determinado aversivos ao indivíduo são retirados do ambiente
contexto. Nesses moldes, o controle de estímulo só como reforço para a continuação do comportamento.
se estabelece quando as consequências da respos-
Na literatura, o livro “O clube do filme” (2009) de David
ta são reforçadoras, isto é, devido a uma história
Gilmour, evidencia um pai que retira um elemento
comportamental ou de reforçamento (BAUM, 1999).
que é aversivo ao seu filho: a escola. Em troca,
O termo Reforçamento é dividido em dois esquemas: este último deve assistir e debater três filmes por
contínuo e intermitente. O reforçamento contínuo semana sob a tutela de seu pai. Pode-se aludir que
esquematiza um arranjo, em que a resposta é sem- a escola, aqui como elemento aversivo ao garoto,
pre seguida por um reforçador. No que se refere ao é retirada do ambiente como reforço à continuação
reforçamento intermitente, este é empregado para do comportamento que é assistir aos filmes e cum-
descrever uma situação que o reforçador segue a prir uma tarefa (debater os mesmos). Caso o filho
resposta de maneira ocasional. não cumpra seu dever de assistir aos filmes, deverá
retornar à escola (punição).
O termo Reforço já diz respeito a aumentar a fre-
quência de uma resposta. É dividido em dois tipos: Ainda nesta temática, gostaria de levantar uma ques-
reforço positivo e reforço negativo. Sinteticamente, tão bem interessante: “A doença terminal seria um
o reforço positivo aumenta a probabilidade de um reforçador?”. Se sim, “negativo ou positivo?”. Creio
comportamento pela presença de um estímulo po- que não dá para escapar da morte. Destarte, ao que
sitivo³ . Por outro lado, o reforço negativo aumenta tudo indica, a doença terminal poderia atuar como
a probabilidade de um comportamento pela ausên- um reforçador positivo. Essa afirmação pode ser
cia de um estímulo aversivo (retirada de algo que mais bem compreendida a partir do filme japonês
provoque desprazer). Dessa maneira, o que difere Ikiru (1952), do diretor Akira Kurosawa.
um reforço positivo de um reforço negativo é que o
O longa-metragem retrata a história de Kanji Wata-
primeiro consiste em inserir um estímulo reforçador
nabe, um idoso burocrata, viúvo, antissocial e com
no ambiente e o segundo consiste em retirar um
câncer no estômago. Devido ao acometimento pela
estímulo aversivo. Nesse sentido, o reforçamento
pode ser sintetizado pelo modelo .
Tomemos como exemplo o filme “A Sociedade dos
³ É muito comum que o termo reforço positivo seja confundido com
Poetas Mortos” (1989), de Peter Weir, como modo “recompensa”. Entretanto, a “recompensa” é algo cultural, isto é, o que
de explanar o reforço positivo. No longa-metragem, é tido como recompensa para mim, pode não ser para outra pessoa.
o professor Keating, constantemente, estimula seus Eu posso simplesmente recompensar alguém com uma pedra, já que
alunos a “pensarem por si”, a “fazerem de suas vidas esta tem um valor simbólico para mim. Entretanto, para a pessoa
uma coisa extraordinária”, a “confiarem em si”, dentre recompensada, uma pedra não tem valor algum. Assim sendo, uma
outros estímulos. Além disso, reforça as respostas de recompensa pode ser também um “presente de grego”.

90 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


doença, vê-se forçado a buscar um significado de a remover um comportamento de um repertório, ao
sua existência até seus dias finais (o médico lhe passo que o reforço negativo gera comportamento”.
dá seis meses de vida). Ao tentar sem sucesso “vi- Vale dizer que Skinner não foi a favor da punição e
ver”, se entregando as frequentes saídas noturnas isso é visível em algumas passagens da sua obra,
e a companhia de uma jovem que trabalha com ele as quais ele se manifesta peremptoriamente contra,
na prefeitura, Watanabe compreende que isso não embora a punição possa ser justificada em alguns
significava “viver” (o ambiente e seus respectivos casos bem específicos ⁴.
estímulos não o reforçaram a continuar com este
Tal qual o reforçamento, a punição pode ser negativa
estilo de vida). Entretanto, ao ver alguns habitantes
ou positiva. É considerado como punição negativa o
de um determinado bairro pobre reclamando das
ato de retirar do indivíduo algo agradável (reforçador),
péssimas condições de vida (precariedade no sa-
por exemplo, retirar a criança de uma brincadeira. A
neamento básico, falta de locais de lazer, extrema
punição positiva, por sua vez, diz respeito à inserção
poluição etc.), resolve então ajudá-los. Desse modo,
de um estímulo aversivo, como a agressão física
desengaveta um projeto de anos atrás a qual obje-
ou a censura. Por exemplo, uma criança derruba
tiva construir um playground neste bairro e melho-
suco no sofá e por consequência a mãe lhe dá uma
rar algumas questões como o saneamento básico.
chinelada por isso.
Apesar de enfrentar diversas diversidades devido
ao excesso de burocracia e inércia dos funcionários Um livro interessante para se debater a punição é “O
públicos, Watanabe começa a se envolver mais com desaparecido ou Amerika” (1927/2003) do escritor
os habitantes do local e passa a ser reconhecido Franz Kafka. A personagem principal do romance,
por isso. Esse reconhecimento por meio de elogios, Karl Rossmann, sofre constantemente com agressões
presentes, agradecimentos, reforça-o positivamente. físicas e morais, as quais são aplicadas, mormente,
Enfim, Watanabe, ao findar a construção do play- por Delamarche (trata-se de um golpista que explora
ground, reconhece o que significa “viver”. os personagens Rossmann e Robinson). Na obra, há
diversos momentos que evidenciam atos de punição
Essa atitude de Watanabe assemelha-se bastante
negativa. A título de exemplo, há um episódio quando
com uma frase proferida na última palestra de Skinner,
Delamarche resolve trancar Rossmann no quarto que
ocorrida em 1990, na ocasião em que recebeu um
estavam hospedados e privá-lo, com isso, de sair
prêmio de reconhecimento da Associação Americana
pela cidade (algo agradável). Delamarche toma esta
de Psicologia. Skinner disse: “O meu maior bem é
atitude, pois Rossmann tentou se rebelar contra ele
a felicidade do outro”. Em que medida fazer o bem
e fugir. Dessa forma, toda vez que Rossmann tinha
ao outro não reforçaria positivamente as pessoas
um comportamento inadequado (tentar fugir ou atos
a terem comportamentos mais adequados de so-
de rebeldia), segundo o julgamento de Delamarche,
lidariedade, de respeito mútuo, de cooperação, de
tais circunstâncias davam azo para que este últi-
engajamento, na sociedade?
mo o punisse, mas não fisicamente (agressão) ou
moralmente (censura), e sim por meio da privação
temporária da liberdade. Como a punição propende
2.4 PUNIÇÃO diminuir a frequência da resposta, nota-se no desen-
O termo Punição corresponde a uma forma de con- rolar do romance que o comportamento rebelde de
trole, aplicada com o escopo de evitar determinados Rossmann vai enfraquecendo graças às punições
comportamentos considerados como indesejáveis. positivas e negativas impostas a ele.
Em termos gerais, tem o fito de diminuir a frequência Um exemplo de punição positiva pode ser ilustrado
de uma determina resposta. Nesse sentido, a punição a partir do livro “Misto-quente” (1982/2018), de Char-
les Bukowski. Após uma briga de rua entre alguns
pode ser sintetizada pelo modelo .
meninos, as personagens David e o narrador vão
Ademais, a punição incide com a remoção de refor- para casa. E o desenrolar é o seguinte:
çadores positivos logo após uma resposta, ou ainda,
“Ele [David] entrou e pude ouvir a voz da sua mãe.
com a introdução de reforçadores negativos. A agres-
são física, a recriminação, o castigo e a intimidação – David! Veja o estado das suas calças e camisa!
são alguns exemplos de punição que, amiúde, são Estão rasgadas e cheias de marcas de grama! Você
utilizados no nosso cotidiano com a finalidade de faz isso quase todos os dias! Me diga, por que você
dirimir comportamentos considerados “perigosos”
ou “inadequados”.
É precípuo explanar que esta forma de controle é,
⁴ Sobre o posicionamento de Skinner em relação à punição, ver o texto
geralmente, confundida com o reforço negativo. “A posição de B. F. Skinner sobre tratamento aversivo” (disponível em:
Skinner (1974, p. 56) explica que: “a punição visa http://www.itcrcampinas.com.br/txt/tratamentoaversivo.pdf).

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 91


faz uma coisa dessas? David não respondeu. perspectiva, a aludida situação evidencia um com-
portamento de fuga.
– Eu fiz uma pergunta! Por que você faz isso com
suas roupas? No longa-metragem “O Sétimo Selo” (1957), do dire-
tor Ingmar Bergman, o personagem Antonius Block
– Não tenho como evitar, mamãe...
(um cavaleiro que regressa da Cruzada), ao retornar
– Não tem como evitar? Retardado mental! para sua terra natal, é visitado pela Morte assim que
chega. Block ao se deparar com a Morte e, visando
Ouvi quando ela lhe bateu. David começou a chorar, evitar seu fim, sugere uma partida de xadrez. Se
e ela começou a espancá-lo. caso vencer, deverá permanecer vivo. Caso contrário,
Fiquei parado no pátio da frente, ouvindo. sucumbirá diante da Morte.

Um pouco depois a surra terminou. Pude ouvir David Seu intuito, de fato, é ganhar tempo e encontrar um
soluçando. Então ele parou.” sentido para a sua vida e sua morte. No desenrolar
do filme, Block foge constantemente da Morte. A cada
O excerto supra-aludido apresenta um exemplo tí- lance de xadrez que ele faz e que são respondidos
pico de punição positiva, a partir da agressão física habilmente pela Morte, ele está, na verdade, fugindo
como forma de rechaçar um determinado comporta- de seu destino, pois percebe que será impossível
mento tido como inadequado. Em outras palavras, o vencer a Morte no tabuleiro. Aqui temos um bom
comportamento de David teve como consequência exemplo de comportamento de fuga, uma vez que
a inserção de um estímulo aversivo (agressão física Block objetiva subterfugir de um estímulo aversivo
efetuada mãe), no qual objetivou a diminuição da (morrer) que já se acha em andamento (figura ma-
frequência do comportamento (resposta). Entremen- terializada da Morte). Para tal, ele usa a partida de
tes, é preciso depreender que a punição positiva, xadrez para ganhar tempo (instrumento de fuga)
nesse caso, não garantiu que o comportamento de frente ao inevitável.
David, por exemplo, fosse obliterado. Na verdade,
retroalimentou comportamentos de fuga e esquiva O comportamento de esquiva se refere ao evitar ou
no desenrolar do romance em David, em especial na adiar o contato com um determinado estímulo aver-
personagem Henry Chinaski (protagonista), já que sivo, ou seja, é um comportamento que sobrevém
este também sofria abusos físicos e morais. quando um estímulo aversivo não está diretamente
presente no ambiente. Novamente, usando como
exemplo a situação explicitada no romance “Outsi-
ders”, há episódios em que Ponyboy e Johnny evitam
2.5 FUGA, ESQUIVA E CONTRA-ATA- caminhar por determinados lugares, já que sabem,
QUE de antemão, que esses ambientes são frequentados
por “Socs”. O comportamento de evitar um ambiente
Os comportamentos de fuga e esquiva são mantidos
que provoca estímulos aversivos é considerado um
pelo reforçamento negativo. Um comportamento de
comportamento de esquiva.
fuga concerne a uma resposta que tenciona escamotear
um estímulo aversivo que se encontra no ambiente. Tomemos igualmente como exemplo o filme “O Ho-
Em outras palavras, o comportamento reforçado é mem Elefante” (1980), de David Lynch. O longa-
aquele a qual finda com um estímulo aversivo já em -metragem conta a história real de Joseph Merrick,
andamento (SKINNER, 2003). portador de uma doença congênita que provocou
complexas deformidades em grande parte do seu
Tomemos como exemplo as personagens Ponyboy
corpo. Por esta razão, Merrick usava um saco de
Curtis e seu amigo Johnny, pertencentes ao romance
linho para cobrir sua cabeça, objetivando esconder
“Outsiders” (1967/1996), da escritora Susan E. Hin-
as suas deformidades das pessoas. Ademais, vivia no
ton. No romance, estes dois garotos são pobres e
isolamento temendo sofrer represálias devido à sua
constantemente sofrem agressões físicas e verbais
aparência (já havia tido algumas experiências nesse
dos “Socs” (grupo de garotos ricos). Assim, toda vez
sentido). Ao analisarmos tal situação, podemos inferir
que as personagens supramencionadas encontram
que o comportamento de evitar ou adiar expor-se
os “Socs”, nos limites entre os bairros (East Side e
em público, de Merrick, é um meio de impedir que
West Side), elas fogem e são perseguidas. Algumas
estímulos aversivos (repulsa, represália, censura,
vezes, quando não conseguem escapar, são agredidas
discriminação, repreensão etc.) pudessem ocorrer
fisicamente. Analisando tal situação, podemos inferir
no ambiente. Com isso, temos um considerado um
que o comportamento de fugir, perpetrado pelas per-
comportamento de esquiva.
sonagens, é uma resposta que intenciona tergiversar
de um estímulo aversivo (sofrer agressões) que já O filme “A Sociedade dos Poetas Mortos” (1989)
se encontra em andamento (o fato de encontrarem também serve de “mote” para debatermos o com-
os “Socs” fisicamente no ambiente/bairro). Sob esta portamento de esquiva. No longa-metragem, o jovem

92 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Neil sonha em encenar peças teatrais. Em razão convoca o estudante para a banda principal. Contudo,
dos estímulos do professor Keating, resolve se sub- Fletcher realiza uma verdadeira tortura psicológica
meter a um teste e é aprovado para fazer parte do com o estudante, assediando-o moral e fisicamente
elenco da peça “Sonho de uma noite de verão” de de modo constante e público (gritos, tapas no ros-
Shakespeare. Contudo, seu pai, o Sr. Perry, é cate- to, xingamentos e diversos tipos de humilhações),
goricamente contra e deixa isso bem claro ao filho. concebendo que, com isso, Neiman se tornará um
Como Neil tem medo de ser censurado pelo seu pai grande músico.
(estímulo aversivo), exibe um comportamento de
Não aguentando mais a tortura psicológica imposta,
esquiva ao evitar falar acerca da peça com seu pai,
coadunada com a falta de reconhecimento da pró-
mesmo sendo encorajado pelo professor Keating a
pria família por ele ser músico, Neiman inicia com o
dialogar a respeito dos seus sentimentos e vontades.
seu comportamento de contra-ataque. Num primeiro
Resumidamente, a esquiva é um modo de prevenir momento, o estudante transfere para a sua bateria
a ocorrência de um estímulo aversivo. A fuga, por toda a sua raiva, assim, pratica a bateria de forma
outro lado, é um meio de escamotear um estímulo impetuosa e agressiva, de tal modo a sangrar as
aversivo presente no ambiente. próprias mãos de tanto praticar. Subsequentemente,
ataca violentamente sua bateria chegando a rasgar
Existe igualmente o comportamento de contra-ata-
a pele dos tambores. Por fim, Neiman, após um aci-
que, que é considerado um subproduto da punição,
dente automotivo, chega atrasado a um concerto,
juntamente com os comportamentos de esquiva ou
entretanto, decide tocar como titular. Em razão das
fuga e inércia obstinada. Nesse viés, pode-se obser-
feridas causadas pelo acidente, sua performance é
var que a revolta, o vandalismo e/ou a sabotagem,
comprometida e, destarte, é agredido moralmente por
são formas de contra-atacar o agente de controle
Fletcher. Isso faz com que o estudante externalize
(SIDMAN, 2003).
toda a sua raiva e agrida fisicamente o professor.
Para tanto, assumimos como exemplo o filme “Clube
Em síntese, o comportamento de Neiman é de con-
dos cinco” (1985), de John Hughes. O filme tem como
tra-ataque como meio de defesa e, tal-qualmente, de
enredo a detenção de cinco estudantes (adolescentes)
ataque. O aludido comportamento de contra-ataque
na biblioteca da escola onde estudam, durante um
é usado por ele como um meio de defesa e ataque,
sábado (eles permanecem por nove horas de castigo).
no tocante às punições negativas e positivas (estí-
Nesse lugar, eles são vigiados e censurados pelo
mulos aversivos) que recebia do professor Fletcher
diretor Vernon, especialmente a personagem John
(agente de controle e punição).
Bender, tido como um típico jovem rebelde, classifi-
cado pelo sistema educacional, notadamente, pelo
diretor Vernon, como um “bandido”, um “vagabundo
2.6 EXTINÇÃO
que não terá futuro”.
Tendo em vista estas constantes represálias e cen- A extinção é o procedimento a qual se baseia na
suras, Bender responde com um comportamento suspensão do reforço para uma resposta condicio-
agressivo. Assim, demonstra atos de vandalismo e nada. Desse modo, o comportamento em extinção
revolta contra o espaço físico da escola e até mesmo tange ao decréscimo gradual na frequência da res-
contra os colegas e o diretor. Tal comportamento de posta até que ocorra uma quebra na contingência.
contra-ataque é utilizado como um modo de defesa O modelo para a extinção é (não há estímulo
e ataque quanto às punições negativas e positivas consequente).
(estímulos aversivos) que recebia do diretor Vernon A título de exemplo, no contexto escolar, uma criança
(agente de controle). Nesse sentido, a própria escola, que consegue chamar a atenção do professor por
com suas punições e reforçamentos negativos, não meio de uma birra (choro e grito). Pode-se dizer que
estaria produzindo rebeldes, vândalos ou sabotadores? a atenção do professor é reforçadora, dado que, toda
Outro bom exemplo, trata-se do longa-metragem vez que a criança fizer birra, o professor dará atenção
“Whiplash” (2015), dirigido por Damien Chazelle. A a ela. Com isso, a resposta de fazer birra em sala de
história orbita em dois personagens: Andrew Neiman, aula pode se tornar condicionada. Entrementes, se
um obcecado baterista de jazz (nível estudante e o professor não atender as birras dessa criança, o
reserva em sua turma) do melhor conservatório dos comportamento dela tende a diminuir gradativamente
Estados Unidos; Terence Fletcher, professor titular de frequência. Essa última postura do professor leva-
do conservatório e responsável pela banda principal. rá a extinção do comportamento inadequado dessa
Em linhas gerais, Neiman intenta ser um grande criança, uma vez que o reforçamento (atenção do
baterista, seguindo os passos de seu ídolo Buddy professor) não mais acontece.
Rich. Já Fletcher é um homem arrogante e sem es- Concatenando às ideias supramencionadas, há um
crúpulos e logo vê em Neiman um potencial. Assim, bom exemplo de extinção na literatura, trata-se do

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 93


livro Amok (1922/2007), de Stefan Zweig. Neste, a James Holland, em seu artigo “Comportamentalismo:
personagem principal da novela, um médico europeu parte do problema ou parte da solução?” (1983), profere
que reside em um vilarejo isolado na Malásia, recebe uma crítica contundente relativa a não consideração
a visita de uma jovem inglesa casada e abastada dos processos de “Discriminação” e “Generalização”,
(depois de anos sem ver sequer uma mulher euro- por parte de psicólogos comportamentalistas.
peia). Após um diálogo entre ambos, ela sai ofendida
Ele escreve:
de seu consultório e volta à cidade em que está
hospedada (próxima ao vilarejo). O médico, por sua
vez, vai atrás dela nesta cidade, objetivando marcar O comportamento é adaptativo. Ajusta-
um encontro. No entanto, ela não o recebe. Desde -se às contingências de reforço ou de
então, o médico tenta, obstinadamente, encontrar-se punição. Estranhamente, é muito fre-
com a jovem em questão, mas ela o evita de todas quente o terapeuta do comportamento
as formas possíveis. O resultado é a desistência não tomar isto em consideração. O te-
do médico em encontrá-la. Em síntese, o não re- rapeuta tenta uma adaptação técnica
forçamento do comportamento de querer encontrar para os defeitos especiais do bêba-
com a jovem, engendrou a diminuição gradativa da do, aplicando-lhe estímulos aversivos
frequência da resposta (comportamento de querer dentro da clínica, mas fora da clínica
encontrar a mulher). prevalecem todas as condições que
É preciso abordar nessa seção, algo que se con- mantêm inicialmente o comportamen-
funde, muitas vezes, com a extinção. Trata-se do to e este adapta-se a essas condições
esquecimento ⁵. O comportamento de esquecimento (HOLLAND, 1983, p. 318).
é caracterizado como a diminuição da frequência de
resposta, consequente a um período, que a resposta Sua crítica é alusiva ao fato de que muitos terapeutas
não ocorreu. Skinner analisa que o esquecimento é comportamentalistas, não levam em consideração a
a perda do condicionamento à medida que o tempo aprendizagem discriminativa de estímulos. Em termos
passa, ou seja, há uma diminuição no comportamento, mais específicos, usando o exemplo do “bêbado”
já que o mesmo deixou de ser emitido por um longo (alcoolista), aludido em seu artigo, ele afirma que
período de tempo. Comumente, o esquecimento não o lar, o bar e as ruas onde o “bêbado” costuma se
acontece de imediato. embriagar, são naturalmente discriminados das con-
dições artificiais da clínica. Por esta causa, não há
uma transferência (estabelecimento de analogias)
2.7 DISCRIMINAÇÃO E GENERALIZA- entre a aprendizagem ocorrida na clínica e outros
ÇÃO contextos (generalização).
A discriminação de estímulos se desenvolve quando Ora, se o processo de generalização é o modo pelo
uma resposta se reforça na presença de um estímulo, qual depreendemos similaridades entre estímulos
porém sofre um certo grau de extinção na presença de e, por isso, respondemos de maneira análoga ou
outro (WHALEY; MALOTT, 1980). Nesses moldes, na igual a todos eles, a discriminação é o processo
discriminação um determinado estímulo antecedente inverso, ou seja, é o modo pelo qual apreendemos
é fortemente seguido por uma contingência (R S) as diferenças entre os estímulos e o responder dire-
e outros, em contrapartida, não são. Com isso, um tamente a cada um deles. Nessa acepção, o ideário
conjunto de respostas é mais presumível de acon- apresentado anteriormente por Holland indica que a
tecer, na presença de certo conjunto de estímulos. Generalização só será eficaz se existir um aprendi-
zado discriminativo que possibilite a “transferência”
No caso da generalização, um determinado estímulo do comportamento aprendido. Dessa maneira, um
assume controle sobre uma resposta por intermédio comportamento aprendido pode ser empregado igual-
do reforço na presença de um estímulo análogo, mente em outros ambientes e responder do mesmo
contudo, diferente. Em suma, a generalização está modo a um conjunto de estímulos.
subordinada a elementos comuns a dois ou mais
estímulos, as quais controlam igualmente um con-
junto de respostas.
2.8 MODELAGEM
A Modelagem é o processo pelo qual a aprendiza-
gem de comportamentos novos sobrevém por meio
⁵ Para Whaley e Malott (1980), não existe esquecimento puro. O de um processo gradual, em que as respostas que
esquecimento deve ser compreendido segundo as concepções de
se equiparam ao comportamento terminal desejado
extinção de uma resposta e de aprendizagem de outras respostas
são continuamente condicionadas até que o próprio
incompatíveis.
comportamento terminal seja condicionado. Para

94 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Whaley e Malott (1980), a Modelagem é definida BUKOWSKI, C. Misto-quente. São Paulo:
como o método das “aproximações sucessivas” e L&PM Pocket, 2018.
diz respeito às ações do experimentador.
No âmbito escolar, usar a modelagem é proporcionar CARRARA, K. Behaviorismo Radical: crítica
que os alunos cheguem, por via de uma atividade. e metacrítica. Marília UNESP Publicações/
Nesse sentido, a modelagem na educação escolar FAPESP, 1998.
tem como escopo planear uma “sequência didática”
(step by step) com pequenos passos intermediários Clube dos cinco. Direção de John Hughes.
(e sucessivos). Estados Unidos: Universal Pictures. DVD. Lon-
ga-metragem, 1985. Colorido. Legendado. 97
Basicamente, este procedimento engloba o reforça- min.
mento positivo de respostas que, a priori, só ligeira-
mente se assemelham ao comportamento terminal Escritores da liberdade. Direção e Roteiro de
propendido. Por este viés, a partir de um processo Richard LaGravenese, baseado no livro de
gradual, as respostas que se equiparam cada vez Erin Gruwell. Alemanha/Estados Unidos: Para-
mais ao comportamento terminal são, de maneira mount Pictures. DVD. Longa-metragem, 2007.
contínua, condicionadas até que o próprio compor-
Colorido. Legendado. 123 min.
tamento terminal seja também condicionado.
A título de exemplo, o próprio ensino do jogo de GILMOUR, D. O clube do filme. Rio de Janeiro:
xadrez na escola⁶ . A nossa experiência pedagógica Intrínseca, 2009.
nos ensinou que é exatamente complexo e incoerente
ensinar o jogo de xadrez na escola sem um plane- GUIMARÃES, R. P. Deixando o preconceito de
jamento sistemático, com uma sequência didática lado e entendendo o Behaviorismo Radical.
(Modelagem) clara e objetiva, em que as atividades Psicologia Ciência e Profissão, v. 23, n. 3, p.
e conteúdos a serem ensinados dependem, sobre- 60-67, set. 2003.
tudo, das atividades aprendidas anteriormente. Não
posso ensinar a respeito do xeque ou do xeque-mate HINTON, S. E. Outsiders – Vidas sem rumo.
(finais de partida), sem ter ensinado as aberturas e São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
as situações críticas de meio jogo, mesmo que os
alunos saibam as regras básicas (nível nocional). HOLLAND, J. G. Comportamentalismo: parte
Ressalto que não trabalhamos em uma perspectiva do problema ou parte da solução? Psicologia,
mecanicista de “explicação, exemplo e repetição” v. 9, n. 1, p. 59-75, 1983.
e, menos ainda, Skinner sugeriu que a Modelagem
fosse um procedimento de estímulo e resposta, des- Ikiru. Direção de Akira Kurosawa. Japão: Sôjirô
contextualizado e mecanicista. Motoki. DVD. Longa-metragem, 1952. Preto e
branco. Legendado. 143 min.
Enfatizamos que trabalhamos em um contexto meto-
dológico de resolução de problemas, mas isso não me KAFKA, F. O desaparecido ou Amerika. São
isenta de usar a Modelagem. Enfim, nosso trabalho
Paulo: Editora 34, 2003.
com o step by step, é problematizado a cada passo,
antes de dar sequência a próxima etapa, até findar o O Sétimo Selo. Direção de Ingmar Bergman.
processo. Assim, culminando em um comportamento Suécia: Versátil Home Vídeo. DVD. Longa-me-
terminal (ou objetivo principal, constituído do conjunto
tragem, 1957. Preto e branco. Legendado. 96
de etapas similares aprendidas e imbricadas).
min.

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Estados Unidos/Reino Unido: Paramount Pic-
BAUM, W. M. Compreender o Behaviorismo: tures. DVD. Longa-metragem, 1980. Preto e
ciência, comportamento e cultura. Porto Ale- branco. Legendado. 124 min.
gre: Artes Médicas, 1999.
SALINGER, J. D. O Apanhador No Campo
De Centeio. Rio de Janeiro: Editora do Autor,
2004.
⁶ Este exemplo concerne à nossa prática pedagógica com o jogo de
xadrez, uma vez que somos professores especialistas neste jogo/ SIDMAN, M. Coerção e suas implicações.
esporte. Vale enfatizar que um dos autores produziu uma dissertação Campinas, SP: Ed. Livro Pleno, 2003.
de Mestrado acerca deste tema.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 95


SKINNER, B. F. Sobre o Behaviorismo. São
Paulo: Cultrix, 1974.

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Paulo: Martins Fontes, 2003.

Sociedade dos Poetas Mortos. Direção de Pe-


ter Weir. EUA: Abril Vídeo. DVD. Longa-me-
tragem, 1989. Colorido. Legendado. 128 min.

Um estranho no ninho. Direção de Miloš For-


man. EUA: Fantasy Films. DVD. Longa-metra-
gem, 1975. Colorido. Legendado. 133 min.

WHALEY, D. L.; MALOTT, R. W. Princípios ele-


mentares do comportamento. São Paulo: EPU,
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Whiplash – Em busca da perfeição. Direção


de Damien Chazelle. EUA: Sony Pictures Clas-
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ZWEIG, S. Medo e outras histórias. São Paulo:


L&PM Pocket, 2007.

BANACO, R. A. (org.). Sobre Comportamento


e Cognição. Vol. 1: Aspectos teóricos, meto-
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in the Western World? In: SKINNER, B. F. Upon
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talk to students. The Behavior Analyst, n. 4, p.
1-7, 1981.

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ght. American Psychologist, v. 44, p. 13-18,
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TOURINHO, E. Z. O autoconhecimento na
Psicologia comportamental de B. F. Skinner.
Belém: Editora Universitária da UFPA, 1995.

96 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
14
DEMANDAS DO PROCESSO PSICODIAGNÓSTICO:
CONSIDERAÇÕES GERAIS

RESUMO
Esse artigo é um relato de experiência acerca da vivência como
Raquel Furtado Conte
UCS/RS
professora e supervisora de uma disciplina na Universidade de
Caxias do Sul (UCS)/RS, acerca dos atendimentos psicoterápicos
dos acadêmicos da graduação que realizam avaliação psicológica
com crianças que buscam um serviço-escola. De cunho qualitativo,
exploratório e interpretativo, há o levantamento e estudo sobre as
diversas demandas envolvidas no processo, por meio de exemplos
vivenciados pelas acadêmicas com as crianças e seus pais.

Palavras-chave: Formação profissional; Psicodiagnóstico;

Psicologia clínica.
10.37885/200400014
1. INTRODUÇÃO a psicoterapia. A probabilidade de tornar produtivo e
acolhedor a troca de experiências com as colegas e
O processo psicodiagnóstico infantil abrange supervisora, através da escuta desprovida de críticas
demandas específicas e diversas, pois provêm de e preconceitos, possibilita um maior aproveitamento
diferentes partes envolvidas no processo: a pessoa dos momentos de supervisão em grupo.
que atende (nesse artigo refere- se aos acadêmicos Há a tendência, conforme Coppolillo (1990), a preen-
da disciplina de Psicodiagnóstico), as pessoas que chermos com preconceitos, teorias e crenças aquilo
buscam ou são levadas para a avaliação clínica (as que não conhecemos. Portanto o exercício de ouvir o
quais são atendidas pelo Serviço de Psicologia Apli- outro, percebendo suas próprias reações, sentimentos
cada da Universidade do RS) e, a supervisora (que e pensamentos, bem como os das demais, possibilita
também é a professora desta disciplina). o acolhimento daquilo que lhes é genuíno. É comum
Esse estudo visa discutir e refletir sobre as especifici- que as demandas das acadêmicas assemelhem-se
dades dos atendimentos das acadêmicas em relação em muitos momentos. A identificação e a empatia,
às crianças e aos seus pais, bem como, em relação portanto, são fatores que possibilitam uma escuta
às supervisões dos acadêmicos e a professora, que afinada e promove uma maior capacidade de ajuda
situa-se no lugar de supervisora dos casos atendidos às demais. Nas situações onde as colegas trazem
numa clínica-escola da Universidade do RS. vivências novas, percebe-se que apesar destas mo-
bilizarem ansiedades pelo impacto do desconhecido,
Inicialmente será descrito acerca das ansiedades e levam à reflexão de suas próprias idéias, sentimentos
expectativas dos acadêmicos em relação a uma primeira e atitudes. Assim sendo, a aprendizagem do processo
experiência clínica. Posteriormente, são discutidas psicodiagnóstico é perpassada pela escuta da aluna
as experiências do encontro entre os acadêmicos em dois momentos: no atendimento ao paciente e
e os pais das crianças e, posteriormente, a experi- nas vivências com as colegas, no âmbito da su-
ência do atendimento com a criança. Em seguida, pervisão. As angústias das acadêmicas provêm de
discute-se algumas particularidades da experiência diversas fontes: de sua própria inexperiência, das
da supervisão, a partir dos sentimentos transferên- experiências em grupo com as colegas, do seu próprio
cias e contratransferências envolvidos em todo o funcionamento psíquico, bem como das demandas
processo psicodiagnóstico, incluindo a relação entre dos pais que lhes são depositadas desde o início do
acadêmicos e supervisora/professora. processo. Tais angústias precisam ser identificadas
e traduzidas para que sejam assimiladas e assim,

2.DESENVOLVIMENTO
possibilitem uma maior flexibilidade de pensamento
e movimento durante o processo. Uma das citações
das acadêmicas que permeiam essas reflexões é:
De acordo com Aguirre (2000), a curiosidade e a “Como vou pedir para os pais a respeito da relação
emoção são fatores desencadeantes desse processo, sexual deles?”
os quais mobilizam angústias e comportamentos di-
versos. A preparação para o atendimento inicia com o A dúvida reflete o sentimento de inapropriação da
estudo a respeito do processo psicodiagnóstico, seus aluna no papel de terapeuta, bem como mobiliza
objetivos, passos e finalização. Nesse momento é questões edípicas internas, isto é, parece estar com a
muito comum aparecerem as angústias confusionais, seguinte dúvida “como vou entrar no quarto do papai
com alguns questionamentos como: “O que eu vou e da mamãe e saber o que se passa por lá?” Se as
dizer para o pai e a mãe se eles me perguntarem o angústias forem muito intensas podem paralisar a
que fazer?” “ Quem primeiramente eu chamo na pri- aluna e prejudicar o processo pela inexatidão das
meira consulta?” “Como conversamos com a criança?” informações. Quanto à possibilidade de identificação
“Podemos opinar a respeito de algum procedimento profissional é possível perceber que muitas vezes há
mais adequado para os pais?” uma precariedade na recorrência a modelos identifica-
tórios. Muitas vezes, as acadêmicas surpreendem-se
Observa-se que o momento é de muita ansiedade com algumas técnicas utilizadas na avaliação de
pelo desconhecido, ao mesmo tempo, demonstram crianças. Alguns questionamentos são realizados
um desejo e um interesse das acadêmicas de colocar como estes: “Mas um terapeuta que trabalha com a
em prática os conhecimentos adquiridos ao longo do abordagem psicanalítica pode abraçar uma criança,
curso. O estudo teórico representa um dos diversos pegar no colo?” “E se a criança quiser me abraçar,
objetos continentes necessários e importantes para me beijar?” “O que fazemos se recebermos um pre-
o processo. Alguns outros devem estar presentes sente, a gente aceita?”
como: a possibilidade de confiar e dividir seus anseios,
dúvidas, idéias e sentimentos com os colegas e su- Essas questões evidenciam a tentativa de preen-
pervisora; a possibilidade de identificação profissional; cher com conhecimentos e vivências anteriores as
bem como o autoconhecimento, que se efetua com situações inesperadas e inéditas que ocorrem nas

98 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


sessões. As acadêmicas recorrem a modelos teóricos atribuir uma compreensão dos sentimentos e pensa-
e técnicos vivenciados pelas leituras, vivências com mentos que habitam o psiquismo do mesmo. Porém,
professores e colegas já formados ou pela sua própria muitas vezes as acadêmicas apresentam reações
psicoterapia pessoal, na busca de uma identificação contratransferenciais, as quais são descritas como
que lhes permita a “melhor postura profissional”. Pre- reações inconscientes do terapeuta ao paciente, pela
enchendo ou desviando seus pensamentos para algo própria transferência do paciente. Um exemplo de
já preconcebido, perdem a espontaneidade durante a como a contratransferência pode aparecer, refere-
sessão e, a atitude de estar atenta aos seus próprios se a um caso de um menino que vinha sofrendo
sentimentos e percepções. Estes deveriam ser os maus-tratos e, supostamente pela própria pulsão
indicadores do que está ocorrendo na sessão, para mais passiva, mobilizava na aluna uma postura ativa,
que pudessem mobilizar pensamentos a respeito de caráter sádico, onde muitas vezes questionava
de seus significados e, posteriormente, facilitar a e insistia nas sessões para que ele pudesse contar
comunicação, seja ela através de gestos, palavras com ela e revelar o segredo de ser maltratado pelo
ou pelo próprio brinquedo. pai. A conduta revelada nos relatos caracterizava-se
pela falta de consciência e pela sua repetição intensa.
Zornig (2000) afirma que toda demanda do adulto
Outra aluna ao relatar sobre uma possível ideia da
para análise é por não conseguir atingir o ideal de
criança em fugir de casa, descreve o manejo que
ser adulto e dirige-se a uma pessoa sobre a qual
achou mais adequado, sugerindo a paciente que
supõe, erradamente, ter atingido esse ideal. Dessa
pensasse em como seria o oposto, se todos saís-
forma, sustenta que para a psicanálise não há pes-
sem de casa e ela ficasse sozinha. Evidentemente
soas grandes, pois essa é uma categoria imaginária,
em supervisão constatou-se o quanto esta atitude
já que aquilo que sustenta uma análise é a criança
pode ter reforçado as angústias de separação- in-
dentro do adulto. O adulto é moldado pelos confli-
dividuação da criança, o qual era um dos confli-
tos, traumas, fantasias e desejos da criança. Assim
tos subjacentes à sua sintomatologia, promovendo
sendo, o adulto precisa da análise para reconhecer a
fantasias terroríficas a respeito disto e um possível
criança que há em si. Muitas vezes, as acadêmicas
temor à retaliação. A intensidade e freqüência que os
recorrem apenas ao estudo da teoria e da técnica,
pacientes, em especial as crianças, depositam seus
desconhecendo a criança interior que lhes habita,
conteúdos inconscientes no terapeuta, sugerem o
fragilizando em grande parte a possibilidade de em-
quanto o preparo técnico e pessoal pode favorecer
patizar com a criança à sua frente.
o manejo da contratransferência.
Conforme descreve Bernstein, I. e Glenn, J. (1992),
Conforme Glenn, J., Sabot L. M. e Bernstein, I. (1992)
são diversos fatores que tornam a prática de aná-
é importante que saibamos como as reações trans-
lise de crianças distinta e específica das demais
ferenciais com os pais e as identificações com as
análises. Iniciando pelo próprio envolvimento dos
crianças são extremamente prováveis, pois a partir
pais, o terapeuta de crianças sofre alguns estresses
disto é que podemos repensar na nossa prática. Os
característicos, despertando diversas reações con-
antagonismos e afeições passadas em relação aos
tratransferenciais. Outros fatores que o autor refere
próprios pais, quando aparecem com intensidade não
são: as fantasias de resgate do terapeuta, a sua
excessivamente perturbadora ajudam o terapeuta
identificação continuada com a autoridade de seu
a compreender os “apuros” e conflitos do paciente.
próprio analista ou de seus pais, a revivescência de
Muitas acadêmicas nas supervisões descobrem-se
traumas oriundos de sua própria infância pela expe-
culpando os pais, ou, muitas vezes, numa atitude
riência de contato com uma criança, suas reações
de não condená-los, deixam passar despercebido
à agressão ou sedução do paciente e o seu senti-
o papel dos pais na enfermidade da criança. Uma
mento de culpa por achar- se muito ocupado com
das acadêmicas comentava a respeito da mãe de
pacientes infantis quando ele mesmo tem crianças
uma criança em avaliação: “Como pode esta mãe
pequenas. Observa-se que as reações emocionais
querer que a filha seja diferente, ela nunca ficou com
das acadêmicaspodem ser muito fortes, tanto em
ela!”. Outra aluna comentava, no sentido de des-
relação aos familiares como à criança. Freqüente-
comprometer uma mãe: “A mãe sempre percebeu a
mente os relatos das sessões trazem as seguintes
dificuldade do filho, mas por medo ou desinformação
expressões: “Ele ficou tirando sarro da minha cara,
não procurou antes ajuda!”
como se eu estivesse ali fazendo palhaçada.” “Ela
não deixava eu jogar!” Percebe-se que a raiva deslocada para os pais da
criança também tem suas razões inconscientes, como
Com estas verbalizações pode-se pensar nas diversas
por exemplo: “Mas fiquei tão furiosa com esta mãe, eu
vezes que as acadêmicas reagem afetivamente ao
já tinha avisado três vezes para vir sozinha, mesmo
paciente como pessoa real, necessitando desvendar
assim, trouxe a criança junto com ela!” Neste caso a
através da supervisão e auto-análise os aspectos
aluna evidentemente ficou muito confusa e incomodada
transferenciais de seu paciente, para que possam
em conduzir a sessão familiar, juntando a inexperi-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 99


ência com a necessidade de sentir-se aos poucos de algumas idéias de Lacan, que há uma relação
mais segura e independente, revivendo o seu próprio direta entre o sintoma da criança e a estrutura familiar,
processo de separação-individuação. Muitas vezes sendo que existe a possibilidade de uma apropriação
a identificação com os pais reais do paciente pode sintomática da criança mediante suas produções
ser positiva, conduzindo a uma simpatia que permite fantasmáticas ou de um assujeitamento mortífero ao
a progressão do trabalho, é o caso, por exemplo, de desejo do Outro. Bleichmar (citado por Zornig, 2000)
uma aluna que registrou a seguinte impressão da segue além desta relação entre sintoma da criança
mãe: “A mãe está percebendo que o menino quer e estrutura familiar, ressaltando que a fundação do
ser mais independente, mas está ambivalente, sei inconsciente da criança tem relação ao inconsciente
como isso realmente é difícil!” parental, porém não é um simples reflexo deste. Para
a autora o discurso dos pais só pode funcionar como
Outras vezes, as acadêmicas podem identificar-se
uma matriz simbólica de partida, que é fundamental
com pais idealizados, adotando posturas que visam
para a constituição da realidade psíquica da criança,
a substituir os pais reais, como por exemplo, no caso
mas que não esgota a significação metabólica do
onde uma aluna relata que se sentiu aborrecida com
inconsciente da criança. Assim sendo, sustenta que
a rigidez que a mãe tratava o filho e, conseqüen-
o sintoma da criança, embora inicialmente possa
temente, quando o recebeu sentiu-se compelida a
manter uma homeostase na economia do desejo
ser o mais amável possível. Nesse sentido, a aluna
parental, ele indica uma escolha ainda que forçada
procura realizar as fantasias de resgate da mãe ideal.
da criança, trazendo a marca de sua construção. Se
É importante relembrar e frisar, novamente, a impor- o seu sintoma pode constituí-la como sujeito da sua
tância do autoconhecimento das acadêmicas para própria palavra, ele comunica a sua subjetividade.
a continuidade do processo psicodiagnóstico com Dessa forma, a avaliação infantil está intrinsicamente
embasamento psicanalítico. A auto-análise ainda vinculada ao discurso dos pais.
constitui o meio de revelar o intrapsíquico do su-
De acordo com as experiências vividas, observa-se
jeito, permitindo a representação e compreensão
uma grande parte dos pais buscando espontanea-
dos aspectos infantis. Assim, retomando os desejos,
mente uma avaliação para seus filhos. Alguns ainda
conflitos e traumas infantis em si própria, a aluna
precisam que um outro assuma a demanda do enca-
permite uma maior neutralidade durante os atendi-
minhamento, representado através das escolas ou
mentos, com maior clareza e diferenciação entre os
dos médicos. De qualquer forma, o fato dos pais e
aspectos internos e os externos.
criança estar buscando uma avaliação, indica que
Apesar da complexidade das diversas emoções en- todo comportamento que possa ter sido camuflado,
volvidas no atendimento à criança e seus familiares, até então, por não ter sido entendido, tem uma pos-
fica evidente a necessidade de realizar uma aliança sibilidade de resignificação. Os pais precisam de um
de trabalho com os pais, assim como com a criança, certo encorajamento, ao chegarem para a avaliação,
para que qualquer continuidade de atendimento seja a fim de re-ver o filho real e não mais o imaginário,
possível. Essa aliança de trabalho se faz através da que encontram-se em antagonismo. Freud (1914),
motivação dos pais e da criança para o atendimento já dizia que o amor parental nada mais é do que o
e da postura e compreensão da aluna frente ao caso. retorno e reprodução do narcisismo dos pais, que
depositam no filho suas aspirações narcísicas. Bal-
De acordo com Coppolillo (1990), a pessoa que faz o bo, de acordo com Zornig, (2000), ressalta que as
diagnóstico deve trazer consigo para as entrevistas entrevistas preliminares, sem a presença da criança,
com os pais: uma boa dose de curiosidade, uma possibilitam a elaboração de um trabalho de luto.
boa disposição para ser surpreendido, um desejo Luto pela perda da ilusão de que uma criança real
de ser ensinado pelos pais e pela criança, sem se poderia corresponder à imagem da criança narcísica
sentir ressentido ou depreciado e, acima de tudo, do desejo, da criança que os pais desejariam ter sido,
humildade e respeito pela enorme complexidade do mas não foram e que esperavam resgatar por meio
desenvolvimento e mentalidade humana. Assim, a de seu filho. Os pais esperam inconscientemente,
aliança de trabalho com os pais parece iniciar-se através da queixa trazida, que uma avaliação possa
desde a primeira consulta, diante da possibilidade lhes reassegurar o retorno desse lugar do filho ideal.
de ser escutada sua demanda, acolhendo assim a
sua transferência. Conforme Coppolillo (1990), frequentemente, os pais
sentem- se culpados ou fracassados quando precisam
Pensando, conforme sustenta Zornig (2000), que abandonar o desejo da criança ideal. O desejo de que
a criança se constitui numa estrutura familiar e que os filhos sejam bons precisa ser substituído e aceito
parte de sua questão em análise se relaciona ao lugar pelo desejo de que os filhos fiquem bem, através da
que ocupa no desejo e no discurso dos pais, uma aceitação de sua subjetividade. Levando em conta
avaliação infantil só será possível com a participação todas essas questões podemos então compreender
efetiva de seus pais. Zornig (2000) conclui, a partir porque alguns pais apresentam maiores dificuldades

100 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


em buscar e aceitar ajuda. As acadêmicas, muitas A escuta em relação a esse pai, bem como de muitos
vezes, expõem as expectativas que tinham com os outros, remete à cultura na qual eles estão inseridos,
pais, sendo que frequentemente, observa-se um des- no imaginário social e familiar (crenças, valores), bem
contentamento quando percebem que aquilo que lhes como em algumas marcas que esses pais trazem em
contam nem sempre é a verdade, ou toda a verdade, seu psiquismo. De acordo com Gomel, (em Graña
ou simplesmente quando os pais faltam às sessões. & Piva, 2001), as vivências podem promover um
Essas são algumas atitudes muito freqüentes de trabalho de ligação no próprio psiquismo do indivíduo
acontecerem e de acordo com o que se observa ou serem transmitidas sem novas roupagens meta-
durante o processo, não poderia ser diferente, uma fórica- metonímicas para as sucessivas gerações,
vez que os pais sentem-se avaliados e perseguidos como herança penosa. Assim, há um transporte ge-
nesse momento de re-descobrimento. racional, através de diferentes psiques, de legados
indecifráveis, desligados do psiquismo e atuados nos
O pedir ajuda, revelado na busca do atendimento,
seus vínculos. Talvez em razão disso, muitas vezes
alivia e divide a sobrecarga psíquica, mas também
ao pensar e refletir sobre as vivências desses pais
ameaça a legitimidade de seus papéis e lugares.
é possível compreender o que está sendo trazido
Confrontando com a fala de alguns pais podemos
de legado para o paciente, a fim de que possamos
relacionar essas ideias: “Nós não víamos a hora
intervir nessa cadeia traumática geracional.
de vir aqui! Não sabemos mais o que fazer com o
João (os nomes são fictícios), já tentamos de tudo. Recordando um caso que pode exemplificar algumas
Talvez você com mais estudo possa nos dizer melhor dessas reflexões teóricas: “Joana busca avaliação
o que fazer.” para a sua filha em razão dos pequenos furtos que
ela vem apresentando na escola. Joana tem uma
Fica explícito nesta fala o desejo de ser ajudado, porém
relação atual com um companheiro, o qual ela não
ao mesmo tempo, a impotência que se encontram
permite nenhum contato com a filha, não desempe-
estes pais e a fantasia de que as acadêmicas possam
nhando, portanto, papel e função de pai. O pai de
saber mais do que eles em relação ao que é melhor
sua filha constituiu outra família, com quem a mãe
para a sua família. Essa fantasia é uma das primeiras
prefere deixar a filha quando precisa se ausentar.
situações equivocadas que precisa ser esclarecida,
A mãe relata angústia intensa só em pensar em
uma vez que as acadêmicas, no papel de terapeuta
deixar a filha com o padrasto, referindo aos modos
em avaliação, não têm a tarefa de educar, como é
da menina, que pode leva-lo a cometer atos impen-
função dos pais, mas sim de psicanalizar. Realizar
sáveis, descrevendo, por exemplo, o fato da menina
uma compreensão dinâmica do funcionamento psí-
quando está de saia sentar de perna aberta na frente
quico do paciente, compreender a estruturação do
do padrasto.” A aluna, nesse momento reage com
seu inconsciente, não é nada semelhante com a
intenso desconforto, ficando perplexa e ambivalente
tarefa educativa, a qual pode confundir a criança em
em relação à mãe. Relata, em supervisão, o quanto
relação ao papel e função do terapeuta. Os pais e a
está complicado de pensar sobre o que acontece
criança, assim como as acadêmicas e a supervisora,
realmente nestas relações. Pensou-se em várias hi-
estão diante do desconhecido, portanto para eles
póteses, primeiramente que esse padrasto já pudesse
também são assustadores as fantasias e idéias que
ter tentado abusar da menina, ou então, que essa
possuem a respeito do processo psicodiagnóstico. A
mãe parecia estar temerosa em lidar com a desco-
própria palavra avaliação diagnóstica requer alguns
berta da sexualidade da filha, que já tinha 9 anos,
cuidados, pois qualquer avaliação por si só gera
ou ainda, parecia que essa mãe estava angustiada
ansiedades e fantasias a respeito do que quer que
demais por tão pouco, quem sabe estava revivendo
seja, como será e como terminará. É justamente
através da filha, situações traumáticas? Em conversa
pela intensidade das emoções diversas e muitas
com o padrasto pode-se então compreender algumas
vezes contraditórias existentes nesses pais, que o
questões bem importantes para a compreensão do
trabalho com eles torna-se fundamental, sendo muito
caso: Joana havia sido abusada sexualmente por
provável que a resistência desses pais possa tornar
um tio, com o qual mantinha um contato próximo e
inviável a avaliação e tratamento da criança. Assim, é
afetivo. Além disso, quando sua filha nasceu, dei-
imprescindível que, além de escutarmos o que estes
xou-a sob os cuidados de sua mãe, que só permitiu
pais trazem sobre seus filhos é necessário ouvir o
entregar a menina de volta, quando ela se casasse
que eles trazem a respeito deles mesmos, enquanto
novamente. Diante de todos esses dados, podemos
filhos de seus pais e enquanto pais. Geralmente
pensar algumas significações dessa cadeia geracional
eles referem-se à sua pré-história comparando suas
traumática como: sua filha, descobrindo-se como ser
atitudes com as dos seus pais, por exemplo: “Eu não
sexuado, não pode ter controle nem escolha sob
sei porque o Carlos ficou assim, eu nem castigo dou,
seus desejos e objetos amorosos, sendo assim, deve
como meus pais faziam comigo. Eu não podia nem
ser vigiada, protegida, para que fique resguardada
respirar fora de hora que já era castigado!”
e reprimida a sua sexualidade. Sua mãe se sente

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 101


como não tendo controle de sua própria sexualida- queixa trazida pelos pais, representam, através de
de, uma vez que seduziu e foi seduzida através de suas atitudes, o desejo de serem escutadas, ou ao
um abuso sexual. Assim, Joana compreendeu que menos de serem reconhecidas e aceitas em sua
desejar é algo perigoso, que pode levar a diversos subjetividade. No término das horas de jogo, muitas
caminhos, como ao abuso e a ira do objeto de amor crianças manifestam interesse e prazer em continuar
primário. Precisa resguardar a sexualidade da filha, ali, porque ali se fazem representar, mesmo que seja
reconhecendo o desejo como vindo do outro, para através da inibição, desorganização e impulsividade
protegê-la de sua própria ira e, desta forma, poder no seu brincar. O que para algumas este compor-
continuar ao seu lado. O comportamento de furtar, tamento pode significar resistência ou intolerância
nada mais é do que um sinal de transbordamento à frustração, para muitas crianças o fato de estar
da descarga pulsional, que necessita ser legitima- conectada a alguém promove o desejo de continuar
da e significada nesse contexto. A compreensão da sentindo-se viva, tentando ao máximo prolongar essa
aluna, neste caso, perpassou por outros caminhos. experiência. A forma de expressão do seu mundo
Em função das demandas sobrepostas pela mãe, interno (desejos, fantasias, angústias e defesas) é
padrasto e criança, além do estudo teórico realiza- empregada no brincar, cabendo à aluna a capacidade
do, a aluna concluiu que o furtar seria uma forma de comunicar-se através dessa linguagem. Através
da criança chamar a atenção da mãe para si, uma dessa comunicação que se estabelece entre a aluna
vez que a sentiu muito “carente”. O estado confu- e a criança que há a continência para os aspectos
sional da aluna era demasiadamente intenso, pois a infantis, sendo que mais uma vez o não-dito tam-
descarga pulsional da mãe e da filha era projetada bém pode ser representado como uma violência ou
maciçamente na terapeuta, empobrecendo a sua ataque ao vínculo.
capacidade de pensar. Essa confusão já fazia parte
De acordo com Franch (em Graña e Piva, 2001)
de aspectos infantis da criança e de sua mãe, porém
a mente do terapeuta muitas vezes necessita ser
não conseguindo serem compreendidos e traduzi-
emprestada, para que possa pensar os conteúdos
dos, paralisou o movimento da aluna, que já não
expressos no brincar da criança, a fim de que possa
sabia mais o que pensar sobre o caso. O que pôde
ser internalizado, posteriormente pelo paciente. Caper,
ser entendido era que a mãe da menina precisava
citado por Franch, também acrescenta a importância
estar mais com ela, dar-lhe mais atenção, mas não
de que muitas vezes através do brincar a criança
pode ser realizado a compreensão de que a mãe
projeta aspectos seus para a mente do terapeuta
não concebia a subjetividade de sua filha, em razão
para observar como ele reage, que poder tem sobre
de sua própria cadeia geracional.
ele, bem como sua possibilidade de dominá-la e
Constata-se assim, que o filho real, ao vir para uma controlá-la onipotentemente. Em razão disso, muitas
avaliação denuncia o que faltou ou viveram esses vezes ouvimos algumas pessoas comentarem da
pais de uma forma latente. Fica visivelmente exposto importância do terapeuta infantil gostar de brincar,
a necessidade de haver muita cautela e tolerância pois é a forma de tornar produtiva qualquer comu-
durante a avaliação diagnóstica, pela complexidade do nicação e entendimento do psiquismo da criança.
processo psicodiagnóstico uma vez que há diversas
Ainda deve-se fazer algumas considerações a respeito
psiques, atravessadas por suas cadeias genealó-
da demanda das acadêmicas em relação à supervisora
gicas, que muitas vezes precisam ser identificadas
durante o processo. Tal como a demanda dos pais
para auxiliar na compreensão de todo o processo.
pode intensificar ou não as reações emocionais das
A partir do momento que um outro dirige a palavra
acadêmicas, essas também direcionam demandas
a alguém há a curiosidade e necessidade de saber
em relação à supervisora, as quais podem favorecer
o que pensamos a respeito, e muitas vezes o não-
ou dificultar o processo. Primeiramente é importante
-verbalizado impossibilita a capacidade de ligação de
ressaltar que além de ser a primeira experiência clínica
fatos que não puderam até então ser compreendidos.
das acadêmicas, elas encontram-se em avaliação
Tanto para os pais como para a criança, a devolução
nesse processo, a qual representa uma exigência
daquilo que pôde ser compreendido ao longo do
parcial para a obtenção do término de uma disciplina
processo, deve ser devidamente abordado, para que
teórico-prática. Ocorre maior flexibilidade durante a
possa mobilizar as resistências, preencher lacunas,
supervisão, quando há a humildade da aluna enquanto
e promover insights ou representações.
aluna e enquanto terapeuta, bem como a humildade
Na criança, a expectativa de saber quem somos, da supervisora enquanto professora e supervisora.
como somos e o que pensamos sobre ela aparece A aluna quando aceita que está em processo de
através do brincar. Apesar da demanda da criança aprendizagem, permite uma maior reflexão de sua
para o processo psicodiagnóstico estar subjetivada própria prática, bem como aceita com mais facilidade a
à demanda de seus familiares, muitas vezes elas intervenção da supervisora, que tem uma experiência
vêm às entrevistas expressando de diversas for- e um conhecimento mais amplo a respeito do assunto.
mas porque estão ali. Coincidindo ou não com a Aquelas acadêmicas que também já realizam uma

102 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


psicoterapia parecem perceber e lidar melhor com empobrecidas e distantes.
suas inquietações e dúvidas, sem que dessa forma
haja uma ferida narcísica sentida como irreparável.
O que ocorre com muita frequência é que algumas
acadêmicas esperam mais da supervisora do que
3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o momento que a supervisora é respon-
de si mesmas, esquecendo-se de que quem está sável perante o Conselho Regional de Psicologia
participando ativamente do processo são elas, por- pelos atendimentos aos pacientes, é necessário que
tanto os sentimentos despertados nas sessões são haja uma exigência no sentido de acompanhar os
os instrumentos de maior valia. Porém pela própria casos integralmente, bem como apontar sugestões
insegurança, parece haver uma desconsideração e equívocos que necessitem ser revisados. Tais as-
disso tudo e demandam para a supervisora a tare- pectos merecem ser apontados antes que ocorra a
fa de reflexão e compreensão do caso, para que, devolução de informações para o paciente, a fim
posteriormente, elas possam pensar o impensável de que a finalização do processo e/ou outros en-
e devolver ao paciente da melhor forma o que fi- caminhamentos, possam ser realizados com maior
cou compreendido. Vejam bem quantas traduções comprometimento e compreensão da terapeuta e
e quantos intérpretes nesse processo! Dessa for- do paciente.
ma, pode-se pensar e concluir a respeito da grande
necessidade que o ser humano tem em necessitar No momento da supervisão é extremamente impor-
de um outro, ao nascer precisa de um intérprete, e, tante que além de estabelecer critérios, como bem
posteriormente em outras situações de desamparo, cita Aguirre (2000), como freqüência e pontualidade
angústias e sofrimentos, recorre-se novamente aos das acadêmicas nas supervisões e atendimentos ao
intérpretes, que nem sempre estão internalizados. paciente, cumprimento das tarefas e prazos estabe-
lecidos no curso, através dos relatos e trabalho final
O primeiro movimento de ajuda da supervisora pa- do caso atendido, também precise acima de tudo
rece ser o de oferecer condições da aluna pensar, prezar um bom atendimento à aluna e ao paciente.
para que esse processo de ligação e interpretação Os critérios de avaliação parecem justificar e permitir
possa ser realizado internamente e não depositado uma nota adequada às acadêmicas, durante todo o
maciçamente no outro. Há também aqueles casos processo. Contudo, não se pode esquecer que há,
em que as acadêmicas não depositam na mente da sobretudo, um paciente à nossa frente, com seu
supervisora os conteúdos dissociados, desligados, narcisismo constituído (positivamente ou não), com
ou simplesmente ignorados. Nessas, predominam suas transferências que revelam acerca de suas
muitas vezes a exclusão total de qualquer sentimento relações objetais e com a necessidade de um intér-
de desamparo, não porque não os tenham, mas por- prete que possa dar um sentido aquilo que ele sente,
que de diversas forma excluem de sua consciência. mas não compreende, percebe mas não consegue
Geralmente esses casos são trazidos pelas acadê- denominar e deseja sem se apropriar. A supervisão
micas com total ausência de ansiedade, dúvidas, parece que nesse processo pode representar o es-
onde a capacidade para pensar está provavelmente paço transicional, da teoria winnicottiana, no qual,
comprometida. E como em toda forma de psiquismo, o mundo interno das acadêmicas perpassado pelo
em que as emoções não transitam pelo pensamento dos familiares e criança pode encontrar expressão e
há muitas condutas e posturas inadequadas. Toda a vida, a fim de poderem receber uma forma e serem
angústia que não pode ser traduzida em palavras é expressos na realidade externa, através da conduta
manifestada no processo, através de questionamentos e da compreensão que poderá ser dada ao paciente.
que não foram positivos ou que ficaram incompletos.
Na devolução, há informações que são precipitada-
mente verbalizadas ou mal elaboradas. Durante as REFERÊNCIAS
sessões de avaliação, há também uma confusão de
papéis, onde a aluna assume a postura de terapeuta AGUIRRE, A. M. A Primeira Experiência Clí-
em tratamento, confundindo os objetivos relativos nica do Aluno: Ansiedades e Fantasias Pre-
ao processo, trabalhando demasiadamente com a sentes no Atendimento e na Supervisão. Psi-
sua intuição. Observa-se que essas acadêmicas cologia: Teoria e Prática, n.2 , v.1, 3-31, 2000.
protegem- se demais de qualquer sentimento que
venham expor sua inexperiência, pois isso parece BERNSTEIN, I. & GLENN, J. As Reações
significar sinais de fracasso, de falhas, com as quais Emocionais do Analista de Crianças a seus
não podem lidar. Essa defesa narcísica empregada Pacientes. Em J. Glenn (Org.). Psicanálise e
procura evitar o desamparo que outrora viveram, Psicoterapia de Crianças. Porto Alegre: Artes
pois nem sequer permitem a inclusão da supervisora Médicas,p. 228-238, 1992.
nesse processo, uma vez que as discussões ficam
COPPOLILLO, H. Psicoterapia Psicodinâmica

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 103


de Crianças. Uma Introdução à Teoria e às
Técnicas. Porto Alegre: Artes Médicas ,1990.

FRANCH, N. J. O Suporte da Comunicação


no Brincar da Criança. Em R. B. Graña e A.
B. S. Piva (Org.). A Atualidade da Psicanálise
de Crianças . São Paulo: Casa do Psicólogo,p.
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ção. Obras Completas V. XIV. Rio de Janeiro:
Imago,1914.

GLENN, J., S., L. M. & BERNSTEIN, I. O Papel


dos Pais na Análise de Crianças. Em J. Glenn
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Porto Alegre: Artes Médicas, p. 239-258, 1992.

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ZORNIG, S. A. A Criança e o Infantil em Psi-


canálise. São Paulo: Escuta, 2000.

104 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
15

DIÁLOGOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE: RAÇA, GÊNERO,


SEXUALIDADE E PRÁTICA PROFISSIONAL

RESUMO
Este conceito nos possibilita compreender e vislumbrar as opressões de modo
Daniele da Silva Fébole imbricadas e relacionadas e não como matrizes de opressões e violências
UNESP isoladas. No entanto, podemos nos indagar: tudo seria interseccional? Ina
Kener (2012) tenta trabalhar essa questão apontando quatro modos de re-
Paulo Vitor Palma lação entre os marcadores de raça, classe e gênero.
Navasconi
UEM

Karen Eduarda Alves


Venâncio
UEM

Bárbara Anzolin
UNIPAR

Palavras-chave: Raça; Gênero; Sexualidade.

10.37885/200400137
1. INTRODUÇÃO a psicologia a partir da interseccionalidade”, mas
estaríamos fazendo isso? Estaríamos colocando o
Vivemos em uma sociedade que produz, coti- conceito de interseccionalidade nas nossas práticas
dianamente, modos de vida esperados, desejados e, de intervenção e cuidado? Sendo assim, a proposta
consequentemente, por oposição, produz modos de do trabalho: Interseccionalidade: uma estratégia
vida indesejados, ininteligíveis. A nossa linguagem atual (?) e necessária tem como objetivo dar um
binária faz isso todo o tempo, produzindo aquilo que passo para atrás e retomar o que seria interseccio-
cabe na ‘norma’ e o que fica marginalizado. Esse nalidade? Este conceito passou a ser estruturado
movimento é o que hierarquiza nossas diferenças, por quais mãos e vozes?
transformando-as em desigualdades. É o movimen- Nesta perspectiva, assim como Crenshaw (1991)
to que constrói o padrão social do homem branco, e Collins (2015), objetivamos compreender a inter-
europeu, racional. seccionalidade como sendo uma estratégia política
Essa cultura e linguagem binária atravessam tam- e analítica, e também compreender enquanto uma
bém a nossa produção de conhecimento, e nossas possibilidade de mobilização política (Bernardinho-
práticas profissionais, isto é, as ciências. Pautadas -Costa, 2013). Haja vista que o conceito de intersec-
em uma noção de neutralidade e imparcialidade, as cionalidade possibilita-nos denunciar e problematizar
ciências, em sua maioria, têm fechado os olhos para as estruturas de desigualdades sociais, bem como,
as diferenças, ou, quando muito, têm falado delas os efeitos negativos referentes às múltiplas formas
de modo binário e hierarquizante. de opressão e como estas se dinamizam. Mas tam-
bém permite e favorece a produção de resistência.
Na contramão destas produções, este capítulo tem
por objetivo apontar e refletir sobre como as práticas Se entendermos que toda estrutura de poder é rela-
de produção de conhecimento e intervenções profis- ção e consequentemente, em toda relação de poder
sionais são atravessadas por nossos pressupostos há resistência (Foucault, 1995), pode-se afirmar que
culturais, nossa historicidade, linguagem e sociabi- ao modo que se constroem entendimentos e com-
lidade (Ibañez, 2001). Para fazer isso, discutimos o preensões sobre o funcionamento destas dinâmicas
conceito de interseccionalidade, como recurso para de opressões, passa-se a construir também ações
lançarmos diferentes olhares para as diferenças e interventivas de resistência e combate frente às es-
seus marcadores sociais, como os de gênero, raça, truturas opressoras.
classe social, idade e outros. A partir dos questionamentos e reflexões sobre in-
Ina Kerner (2012) questiona: Tudo é interseccional? terseccionalidade, o trabalho busca problematizar a
A discussão sobre interseccionalidade nos últimos forma como a binariedade de gênero tende a atra-
anos vem ocupando espaços de suma importância vessar de modo acentuado a vivência de mulheres
no contexto acadêmico e de militância. Há diferentes lésbicas e bissexuais. Quando femininas, servem de
versões e modos de compreender o fenômeno e o fetiche aos olhos masculinos. Quando masculinas,
conceito de interseccionalidade, entretanto, pode-se servem de afronta às normas e são menos mulheres
afirmar que existe um consenso sobre os contornos por isso. Vivem a abjeção. Nos cuidados em saúde,
gerais do que viria ser interseccionalidade, isto é, a esses atravessamentos produzem algumas invisibili-
concepção crítica frente aos marcadores de raça, dades de experiências e violências no atendimento.
classe, gênero, sexualidade, etnia, nação, idade, Em especial, as mulheres masculinas habitam um
deficiências, entre outros, nos quais tais marcadores espaço no imaginário social que as colocam em um
passam a operar dentro da lógica de uma construção espaço ininteligível. Sua forma de viver a vida, suas
recíproca e produzindo complexas desigualdades práticas sexuais e seus modos de relação são, conti-
sociais. nuamente, relacionados ao modelo heteronormativo.

Este conceito nos possibilita compreender e vislumbrar Neste sentido, o trabalho Mulheres lésbicas e bis-
as opressões de modo imbricadas e relacionadas e sexuais masculinas: interseccionalidades em foco
não como matrizes de opressões e violências isola- tem o intuito de trazer algumas considerações acerca
das. No entanto, podemos nos indagar: tudo seria dos atravessamentos de raça, gênero e classe na
interseccional? Ina Kener (2012) tenta trabalhar essa vida de mulheres lésbicas e bissexuais masculinas
questão apontando quatro modos de relação entre visando inserir a psicologia no debate, convidando-a
os marcadores de raça, classe e gênero. Entretanto, a produzir possibilidades de compreensão destas
nos últimos anos podemos verificar uma banalização vivências.
do conceito interseccionalidade, no qual passa-se a Tais aspectos se relacionam à construção dessa
construir algumas dicotomias onde tudo seria inter- masculinidade e os sentidos que isso tem na vida
seccional, mas esta interseccionalidade estaria sob dessas mulheres; essa masculinidade na relação
o viés do discurso, ou seja, “precisamos entender com outras mulheres; os determinantes de classe

106 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


no imaginário social que produz a bofe ou a cami- culturais/institucionais (Rodrigues, 2013).
nhoneira; mulheres negras e masculinidades como
No entanto, mesmo com o avanço das discussões
o avesso do que é esperado da mulher negra brasi-
e com a ramificação do termo interseccionalidade
leira; o cuidado em saúde que é pensado a partir da
nas discussões acadêmicas e do cyber ativismo, é
heteronormatividade e, deste modo, não inclui essas
possível verificar um uso contraditório e por vezes
experiências; a impossibilidade do armário para es-
vazia de sentido, resultando em uma banalização
sas mulheres e consequentemente sua sexualidade
do conceito de interseccionalidade.
sendo a porta de entrada para sua subjetividade.
Neste sentido, por conta desta constatação e tam-
A partir do entendimento de que as violências contra
bém de uma inquietação que tenho vivenciado em
as mulheres são plurais, assim como as mulheres
espaços de militância e nos espaços acadêmicos que
que vivenciam situações de violências são diversas,
passei a produzir esta proposta de trabalho, na qual
o trabalho “Tem cor, tem corte e a história do
não tenho como pretensão esgotar as discussões
meu lugar”: a importância e potencialidade de
sobre o conceito de interseccionalidade, mas sim
perspectivas interseccionais no enfrentamen-
trabalhar brevemente a construção conceitual e sua
to às violências contra as mulheres” tem como
difusão do no cenário acadêmico.
objetivo trazer a importância e a potencialidade de
compreendermos as violências contra as mulheres Não há hierarquias de opressão: a interseccio-
como produzidas e reproduzidas nas relações de nalidade como ferramenta analítica
poder em que se entrelaçam diferentes categorias,
como gênero, classe, raça, sexualidade, posição O conceito de interseccionalidade foi um conceito
geográfica e geração. Contata-se que as políticas pensado e estruturado por mulheres negras, posto
públicas e leis que proponham enfrentamentos as que, essas mulheres tinham suas especificidades
violências contra as mulheres devem contemplar a invisibilizadas nas pautas dos movimentos feministas,
categoria gênero, porém outros marcadores sociais são como também nos movimentos negros, sendo assim
também fundamentais, sendo a interseccionalidade eram duplamente invisibilizadas. Segundo Carneiro
imprescindível para o enfrentamento às violências (2003), as mulheres negras tiveram que “enegrecer”
contra as mulheres. a agenda do movimento feminista e “sexualizar” a do
movimento negro, promovendo uma diversificação
Por fim, o trabalho “Ética e psicologia: um convite das concepções e práticas políticas em uma dupla
à reflexividade”, nos convoca à pensarmos a res- perspectiva, tanto afirmando novos sujeitos políticos
peito da formação em psicologia e nossas práticas quanto exigindo reconhecimento das diferenças e
enquanto psicólogas/os. Questiona-se a imparciali- desigualdades entre esses novos sujeitos.
dade científica e as implicações existentes na defesa
de uma ciência neutra, dessa forma traz à tona o Sendo assim, feministas negras como Hazel Carby,
impacto de nossos posicionamentos políticos e so- Patrícia Williams, Angela Davis, Audre Lorde, Kim-
ciais em nossas práticas profissionais. Conclui-se berlé Crenshaw, bell hooks, Patricia Hill Collins, Lélia
que se a Psicologia ao longo de sua caminhada Gonzalez, Sueli Carneiro, Jurema Wernek e dentre
contribuiu para a (re)produção de relações de poder, outras passaram a desenvolver e apontar para os
de opressão e de hierarquia, devemos considerar movimentos sociais, bem como para a construção
dever nosso lutar pela desconstrução destas, pois dos saberes a necessidade de olhar os fenômenos
é a partir desse constante movimento reflexivo que sociais e as matrizes de opressões de modo imbricado,
podemos propor e realizar ações éticas e políticas, isto é, não há hierarquias de opressão, posto que
para além de nossas normas, códigos e comitês. não há como falar de uma categoria social desloca-
da e autônoma, haja vista que mesmo que possam

2.
parecer distintas tais categorias como, classe, raça
INTERSECCIONALIDADE: UMA ESTRATÉ- e gênero uma hora ou outra irão se imbricar, isto é,
GIA ATUAL (?) E NECESSÁRIA dependendo do contexto histórico, social, econômico
e político as categorias de raça, gênero e classe
Paulo Vitor Palma Navasconi apresentarão consonâncias e encontros, produzindo
assim uma complexa rede de desigualdades sociais
O conceito de interseccionalidade cunhado por fe- que produzirá efeitos estruturais, políticos e subje-
ministas negras norte-americanas nos anos de 1980 tivos (particulares).
difundiu-se mundo a fora como sendo uma ferramenta
Patricia Hill Collins em um artigo de 2015 intitulado:
teórico-metodológica fundamental para ativistas e
“Intersectionalites definitional dilemas” afirma que in-
teóricas feministas comprometidas com análises que
terseccionalidade constitui um novo termo aplicado a
desvelem os processos de interação entre relações
um conjunto diversificado de práticas, interpretações,
de poder e categorias como classe, gênero e raça
metodologias e orientações políticas, isto é, pode-
em contextos individuais, práticas coletivas e arranjos

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 107


mos considerar o termo interseccionalidade como um a esta problemática, no entanto, mesmo que estes
projeto de conhecimento e um instrumento político. eixos fossem citados ainda a sobreposição de classe
seria evidente e consequentemente esta que seria
Audre Lorde (1984) em “Não há hierarquias de opres-
o foco de compreensão e intervenção.
são” diz que ela mulher, negra e lésbica não poderá
escolher qual opressão irá lutar, visto que as três a Para exemplificar os eixos Crenshaw (2002) utiliza a
atingem, sendo assim, não podemos eleger qual é a metáfora de vias de discriminações no qual a partir
mais importante, posto que todas as opressões são de um cruzamento de trânsito a autora exemplifica
importantes. Por isto o conceito da interseccionali- que a discriminação racial, Pós-Colonialismo e Pa-
dade é fundamental para compreendermos como triarcado se intercruzam e consequentemente pro-
as opressões se intercruzam e como são combina- duz inúmeros efeitos, ou seja, as questões raciais
das, posto que não dá para pensar as categorias de estão relacionadas com a estrutura do patriarcado,
raça, gênero e classe de forma isolada, pois raça machismo, sexismo, como também está relacionado
indica classe e classe indica gênero, sendo assim com a estrutura da ideia do Colonialismo, deslocando
pensar como que essas categorias se intercruzam da ideia de discriminações singulares (individuais)
e funcionam de maneira combinada e necessário é para discriminações mistas, compostas e estruturais.
urgente, uma vez que se objetivamos uma mudança
estrutural, é preciso pensa-la para além das lógicas Portanto, a interseccionalidade é uma
hierárquicas das estruturas. conceituação do problema que busca
Portanto, a minha proposição é que passemos a vis- capturar as consequências estruturais
lumbrar o conceito de interseccionalidade enquanto e dinâmicas da interação entre dois ou
uma ferramenta ética, política, social e transforma- mais eixos da subordinação. Ela trata
tiva para então pensarmos os fenômenos sociais, especificamente da forma pela qual o
culturais, psicológicos, bem como os sistemas de racismo, o patriarcalismo, a opressão
subornação e opressões. Em outras palavras, visu- de classe e outros sistemas discrimi-
alizo a interseccionalidade como sendo um concei- natórios criam desigualdades básicas
to chave para pensarmos a respeito da pluralidade que estruturam as posições relativas
de vozes e existências de humanidades, afinal, se de mulheres, raças, etnias, classes e
raça informa classe e gênero tornar-se necessário outras. (Crenshaw, 2002, p. 177).
compreendermos então a importância de visualizar
estes fenômenos em seu conjunto e para isto, aciono Segundo Collins (2015) socialmente passa-se a es-
duas autoras que se dedicaram e se dedicam aos truturar a noção de que pessoas brancas comandam
estudos sobre interseccionalidade. pessoas negras, homens são considerados supe-
Kimberlé Williams Crenshaw na década de 1980 in- riores às mulheres e a razão é preferida à emoção.
troduziu o conceito de interseccionalidade no debate Entender a dinâmica das opressões sob este viés
sobre a discriminação sexista e racista vivenciadas nos leva à suposição de que a opressão pode ser
por mulheres negras nos Estados Unidos nas quais quantificada em grupos que são mais oprimidos que
nem sempre eram distinguíveis e valorizadas. Posto outros. Com isto as “análises somatórias da opres-
que, segundo a autora tradicionalmente foi cons- são se assentam, diretamente, nos pilares gêmeos
truída a ideia de que discriminação de gênero dizia de pensamento ou na necessidade de quantificar
respeito às mulheres, racial dizia respeito à raça e e hierarquizar todas as relações para que se saiba
discriminação de classe às pessoas pobres, entre- onde alguém se localiza” (Collins, 2015, p. 18).
tanto, pensar e compreender estes fenômenos sob No entanto, é de suma importância ressaltar que
o viés da interseccionalidade é pensar que estes entender as opressões enquanto fenômenos imbri-
fenômenos não são distintos, mas que encontram-se cados não se refere negar que grupos específicos
em constante relação. vivenciam experiências de opressões mais intensas
Os estudos tradicionais sobre discriminação ope- e com especificidades do que outros, contudo, se-
ravam no sentido de excluir essas sobreposições, gundo Collins (2015) é necessário um cuidado para
ou seja, se o problema fosse de classe passaria não confundirmos essa questão da primazia de um
ser compreendido e discutido apenas sob o viés tipo de opressão na vida das pessoas com uma
de classe, por exemplo, o problema do Brasil diz postura teórica que propõe a natureza imbricada
respeito à estrutura de classe, consequentemente das opressões.
os estudos sobre as questões de vulnerabilidade
estariam respaldados e subsidiados apenas no fator Raça, classe ou gênero podem estrutu-
classe. Sendo que gênero e raça e dentre outros ei- rar uma situação, mas podem não ser
xos também estariam imbricados no que diz respeito igualmente visíveis e/ou importante

108 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


nas auto definições das pessoas. Em portanto, no plano prescrito é possível observar o
alguns contextos, como o período co- discurso e a utilização do termo interseccional, mas
nhecido como antebellum no sul dos no plano real, o que identificamos é a ausência de
Estados Unidos e na América do Sul uma leitura genuinamente interseccional, e sim uma
contemporânea, a opressão racial é leitura casualista, e por conseguinte excludente e
mais visível, enquanto que em outros invisibilizante.
contextos, como no Haiti, em El Sal- Nesta perspectiva, é de suma importância vislum-
vador ou na Nicarágua, a opressão de brarmos os fenômenos de modo interseccional,
classe social pode ser mais aparente contudo entender estes fenômenos a partir do viés
(Collins, 2015, p. 19). interseccional é pensar numa linguagem, leitura e
contexto interseccional é ter o zelo, bem como a
Reconhecer e compreender que uma categoria responsabilidade pelo o que você reproduz e produz,
de opressão pode ter prioridade sobre outras por visto que, a partir do momento em que entendo e
determinado tempo e lugar não exclui a importân- produzo um saber pautado numa perspectiva única,
cia de compreender que raça, classe e gênero são ou sobretudo tomando apenas uma realidade eu
categorias de análise que organizam e estruturam estou corroborando para o apagamento de vozes,
todas as relações, posto que raça, classe e gênero vidas, subjetividades e de saberes.
funcionam como sistemas paralelos e imbricados

3.
e não de modo hierárquico ou somatório como dito
anteriormente. MULHERES LÉSBICAS E BISSEXU-
AIS MASCULINAS: INTERSECCIO-
No entanto, mesmo com a produção e o desenvol- NALIDADES EM FOCO
vimento deste conceito, o termo interseccionalidade
vem assumindo um espaço de banalidade, ou seja, Daniele da Silva Fébole
nos últimos anos tenho observado nas discussões
acadêmicas e no cyber-ativismo a utilização do termo Como nos tornamos “nós”? Como nos
interseccionalidade de maneira inadequada e até
tornamos “eles”? Como alguns se tor-
mesmo deturpada. No qual tudo deveria ser compre-
nam “nós” e outros “eles”? Ou, talvez a
endido sob olhar da interseccionalidade, entretanto,
melhor maneira de formular essa per-
quando verificamos as práxis o que identificamos é
novamente a reprodução e a produção de hierarqui- gunta seja: de que modo os dispositivos
zação das opressões, bem como análises focalizando de poder produzem a diferença entre
apenas uma matriz de subordinações e excluindo o “nós” e “eles”? (Moutinho, 2014, p.
outras opressões, vidas, vozes, bem como outros 203).
conhecimentos.
Este trecho de Moutinho nos convida a pensar sobre
Sendo assim, é possível verificar em diferentes dis- as produções subjetivas identitárias e, ainda, acerca
cursos científicos a seguinte utilização do termo: do “espaço” entre uma identidade e outra. Estes es-
“Temos que entender o gênero em sua interseccio- paços, que a autora denomina como diferenças se
nalidade”; “É fundamental e necessário compreender relacionam, sobretudo, com o modo que as relações
as categorias mulheres nos termos plurais e de modo de poder produzem não só experiências diferentes
interseccional”. entre tais grupos como também normatizações sub-
Mas será que está interseccionalidade estaria apenas jetivas, transformando diferenças em desigualdades.
no plano dos discursos e das falácias, ou estaríamos Tais diferenças constituem o que chamamos de mar-
de fato produzindo análises, conhecimentos e ações cadores sociais e estes atuarão como determinantes
interseccionais? sociais na produção de vulnerabilidades, portanto,
Na minha pesquisa de mestrado intitulada “Vida, condicionantes do processo saúde – doença – cui-
adoecimento e suicídio: Racismo na produção do dado. Esses marcadores sociais dizem respeito
conhecimento sobre Jovens negros/as LGBTTI” iden- aos processos sociais que produzem diferenciação
tifico possíveis respostas para essas indagações, entre as pessoas. É importante pensar que essas
posto que segundo a literatura especializada sobre diferenciações se constroem por meio de algumas
sexualidades, gênero e sobre comportamento suicida polarizações colocando de um lado o hegemônico,
devemos entender e compreender esses fenômenos portanto, normatizado e de outro aquilo que fugiria
de modo plurais, e consequentemente a partir do às normas.
viés interseccional, haja vista que o fenômeno do A prática profissional psicológica que se baseava
suicídio, por exemplo, corresponderia a um fenômeno neste sujeito hegemônico tinha como critérios a
multifacetado (interseccionado por diversos fatores),

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 109


normalidade como referencial de saúde. As críticas Soares (2016) em seu trabalho busca compreen-
atuais, sobretudo pós-coloniais e do feminismo ne- der como as relações de gênero, raça e classe se
gro tencionam tais critérios, criando necessidade de organizam para produzir a categoria lésbica, em
novos referenciais que permitam a compreensão das especial, lésbicas masculinas. A autora busca, em
pessoas encarnadas em seus múltiplos processos seu texto, apresentar como os atos performativos
de pertencimento (assujeitamento) social. masculinos são produzidos pelas mulheres lésbicas
em um jogo de forças de reificação e rompimento
Estes marcadores sociais introduzem as relações
dos códigos de heteronormatividade. Chama aten-
de poder como produtoras dessas diferenças, quais
ção em seu trabalho como essa confluência tende
são: classe, raça, sexualidade e gênero, para citar
a gerar a abjeção dessas mulheres. Ou seja, não se
algumas. É denunciado o modo como a organização
tem categorias sociais para nos relacionarmos com
social privilegia modos de subjetivação da vida em
elas e, principalmente, para oferecer possibilidades
detrimento de outros. Neste sentido, a pobreza, a
de cuidado em saúde.
negritude, a homossexualidade e a mulher são ca-
tegorias vistas como produtoras de vulnerabilidade Chamo de abjeção a impossibilidade de considerarmos
em um mundo que se organiza para privilegiar os o modo que tais mulheres existem no mundo como
seus opostos. possíveis. Como consequência disto elas tendem
a ficar nas sombras de nossa percepção e sobre
A psicologia, como prática de intervenção, tem
elas não são produzidos conhecimento, nem tecno-
acompanhado essa polarização e tem muitas ve-
logias de cuidado. A organização da saúde não as
zes contribuído para a reafirmação de estigmas e
inclui em seus planejamentos e profissionais não são
violências sociais. Como recurso para a formação
orientados a perceber suas demandas, bem como
em psicologia que ofereça instrumentos de análise
a conhecer seus modos de se relacionar consigo e
dessas produções de vulnerabilidades é possível
com o mundo.
acionar a interseccionalidade.
As mulheres lésbicas e bissexuais masculinas não
Se o social é organizado de modo nos oferecer
encontrarão nos serviços de saúde intervenções que
possibilidades de subjetivação que são opostas e
concebem a mulher de modo diferente do padrão de
excludentes, tal modo tem potencial de produzir so-
feminilidade, bem como os serviços oferecidos se
frimentos e opressões pelo seu caráter hierárquico
pautarão na ideia da sexualidade feminina atrelada
nos jogos de força. Por exemplo, ser subjetivado
a reprodução e, necessariamente, heterossexual.
como uma pessoa negra te oferece possibilidades
de inserção social sensivelmente diferentes de pes- Em trabalho recente (Fébole, 2017) desenvolvi al-
soas que são brancas. Assim, a compreensão de si gumas categorias de análise acerca da produção de
e do mundo vem atravessado pela posição que a violências no atendimento em saúde a população
raça lhe oferece no meio social. Quando cruzamos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
esses modos de subjetivação dissidentes teremos xuais (LGBT). Em especial as mulheres lésbicas e
produções de vulnerabilidades, opressões e experi- bissexuais verifiquei que o processo de atendimento
ências de mundo radicalmente diferentes. Crenshaw a essas mulheres se pautavam na pressuposição de
(2002; 2004) chamou a isso de interseccionalidade. sua sexualidade – presumidamente heterossexual – e
quando sua orientação sexual de lésbica ou bissexual
A interseccionalidade tem o intuito de problematizar as
era informada no momento de atendimento ela era,
categorias que já temos construídas de compreensão
intencionalmente, ignorada. Com isso, essas mulhe-
da realidade e, por consequência, de intervenção
res tinham parte importante de seus cuidados em
sobre ela. Essas categorias, quando combinadas,
saúde negligenciados e até mesmo silenciados, uma
produzem exclusões que não conseguimos nomear,
vez que a informação era tida como insignificante.
não as enxergamos e com isso não conseguimos
resolvê-las. É como se não houvessem padrões para Contudo, mulheres lésbicas e bissexuais masculinas
identificarmos as violências e discriminações que não tem a possibilidade da dúvida. Sua sexualidade
determinados grupos sofrem, pois nossos padrões é sempre pressuposta como “anormal”. Elas trans-
seguem critérios específicos de heterormatividade, gridem normas não apenas de sexualidade, mas de
racismo, sexismo e pela exclusão dos pobres no gênero. Com isso, não se encaixam nos modelos
acesso a seus direitos. heteronormativos que são, socialmente, aceitáveis,
como por exemplo uma mulher feminina que goste
Neste trabalho, iremos considerar as mulheres lés-
de outra mulher. Ela não serve aos olhares masculi-
bicas e bissexuais como foco de nossa análise, a
nos de fetiche da homossexualidade feminina e não
partir da interseccionalidade.
serve ao padrão de feminilidade que se espera de
Produção de subjetividades e violência: a sexu- mulheres. Nas palavras de Soares,
alidade atravessada

110 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


A perfomance masculina do bofe assu- cimento, dos desafios, da aniquilação.
me a forma de anúncio público. É como Mas a maioria de nós, eu penso, teme
se o simples fato de existir já denun- a visibilidade sem a qual não pode-
ciasse o interesse sexual por mulheres, mos realmente viver. Neste país, no
além disso, é arrebatador de discrimi- qual as diferenças raciais criam uma
nação, interdições e preconceitos pela constante e não-dita distorção de vi-
desestabilização que provoca na pre- são, as mulheres Negras, de um lado,
sumida articulação entre sexo, gênero, sempre têm sido muito visíveis e, por
desejo e práticas sexuais. O estilo bofe outro lado, têm sido invisibilizadas atra-
não cabe dentro do armário, carrega vés da despersonalização do racismo.
consigo uma performance visível, que Mesmo dentro do movimento feminista,
raramente consegue passar desperce- nós tivemos que lutar, e ainda temos,
bida. O estilo bofe pode se associar a por esta visibilidade que também nos
uma fitinha, criando um estilo de vida deixa mais vulneráveis, nossa Negri-
lésbico no par bofe-fitinha (Soares, tude. Porque, para sobreviver na boca
2016, p. 141). deste dragão que chamamos américa,
temos que aprender esta lição funda-
Ademais, se colocarmos outros atravessadores, como mental e vital: que nunca foi esperado
o racismo e a produção de vulnerabilidades advindas que sobrevivêssemos [...] porque não
do modo de produção capitalista as possibilidades é a diferença que nos imobiliza, mas o
de inteligibilidade das mulheres lésbicas e bissexu- silêncio. E há muitos silêncios a serem
ais vão se tornando cada vez mais dramáticas. Se rompidos¹.
temos como estereótipo da mulher negra a sexua-
lidade e sensualidade, voltadas ao homem, de que
modo a mulher negra, lésbica/bissexual, masculina
é concebida socialmente? Quais espaços sociais
são possíveis para sua existência?
4. “TEM COR, TEM CORTE E A HIS-
TÓRIA DO MEU LUGAR”: A IMPOR-
TÂNCIA E POTENCIALIDADE DE
PERSPECTIVAS INTERSECCIONAIS
No capitalismo há uma segregação horizontal por NO ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS
gênero e na estrutura organizacional do trabalho as CONTRA AS MULHERES
mulheres ocupam lugares inferiores. Contudo, Rich
(2010) questiona que embora o capitalismo requeira Karen Eduarda Alves Venâncio
recrutar indivíduos para trabalhar recebendo muito
pouco e em trabalhos desvalorizados socialmente – Quando iniciei meus estudos sobre as violências
e tais pessoas são, majoritariamente mulheres – é contra as mulheres o conceito “gênero” mostrou-se
notável que os empregadores não contratam mulheres fundamental, pois muitas das violências que nós
qualificadas, mesmo quando eles podem pagá-las vivenciamos são específicas e ocorrem por sermos
menos. Isso se torna ainda mais sensível quando mulheres em uma sociedade estruturalmente ma-
tais mulheres forem negras e lésbicas. chista. A partir de minha experiência como estagiária
de Psicologia no NUMAPE/UEM, núcleo jurídico que
Deste modo, o que se coloca para a psicologia é a atende mulheres em situação de violência e com
necessidade de construir categorias de inteligibili- aproximações que tive de leituras que abordavam
dade possíveis para intervenção buscando garantir racismo e masculinidades fui identificando que muito
não apenas o acesso aos direitos, mas cuidados em nos une enquanto mulheres, mas ao mesmo tempo
saúde. O intuito é compreender como esses mar- somos diversas, sendo assim, apesar de essencial,
cadores se entrecruzam para produzir violências e a categoria gênero não é suficiente para contemplar
necessidades em saúde. Se não construirmos tais nossas diferentes vivências. Neste trabalho preten-
categorias a tarefa de transformar e superar estes do discutir a necessidade de compreendermos as
determinantes tende a ficar cada vez mais distan- violências contra as mulheres como produzidas e
te. Como nos ensina Audre Lorde, sobre o medo e reproduzidas nas relações de poder em que se en-
sobre a necessidade de transformarmos o silêncio trelaçam diferentes categorias, como gênero, classe,
em linguagem e ação: raça, sexualidade, posição geográfica e geração.

A respeito do silêncio, cada uma de nós


é capaz de desenhar o rosto de seu
próprio medo – medo do desprezo, da ¹ https://transformativa.wordpress.com/2017/01/31/a-transformacao-
censura, dos julgamentos, do reconhe- do-silencio-em-linguagem-e-acao-audre-lorde/

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 111


O que é ser mulher? As contribuições trazidas por como destaca Teles (1993) no livro “Breve história
Simone de Beauvoir (1949) no livro “O Segundo do feminismo no Brasil”. Acionar a categoria gênero
Sexo” questionou o local das mulheres na sociedade para pensarmos as violências contra as mulheres
e conseguiram ultrapassar os muros acadêmicos, foi sem dúvida um avanço importantíssimo, mas o
chegando também aos movimentos feministas da fato é que ainda hoje, as políticas públicas e leis
década de 60. Sem dúvidas, a autora ainda é refe- existentes não contemplam da mesma forma todas
rência com relação aos estudos sobre as mulheres, as mulheres, pois deixam de considerar outros mar-
porém suas contribuições foram construídas em cima cadores sociais.
de divisões binárias e apesar de dizer em alguns
Kimberlé Crenshaw (2002) traz o conceito de inter-
momentos que as mulheres pertencem a diferentes
seccionalidade ao realizar considerações sobre as
categorias, como classe, a autora não se focou em
opressões que mulheres negras vivenciavam. A autora
questionar privilégios que algumas mulheres pos-
sinaliza que elas não são contempladas na maioria
suem sobre outras.
dos discursos feministas e também não tinham suas
Judith Butler (2003), filósofa estadunidense, ques- pautas totalmente consideradas no movimento negro,
tiona a ideia de Simone de Beauvoir (1949) que ou seja, muitas vezes os movimentos feministas se
não nascemos mulheres e sim nos tornamos, pois mostravam racistas e o movimento negro machista.
para a autora nós também já nascemos para sermos Para Crenshaw (2002), não podemos compreender
socializadas/os ou como homens ou como mulhe- as opressões de forma isolada ou como somas, ou
res, sendo assim, antes mesmo de nascermos já seja, não podemos visualizar os eixos de opressão
existem controles sobre nossos corpos. Para Butler de forma separada. Para a autora, por conseguinte,
(2003) a categoria mulheres deve ser questionada nem sempre lidamos com grupos distintos de pes-
e não mais compreendida como estável e perma- soas, mas sim com grupos sobrepostos. A metáfora
nente. Para a autora não basta a crítica feminista se da intersecção de linhas de trânsito é utilizada por
questionar apenas sobre como as mulheres podem ela para exemplificar melhor suas considerações: as
ser mais plenamente representadas na linguagem e pessoas são os pontos em que diversas opressões
na política, mas também deve compreender “como se cruzam, deste modo, suas posições são estabe-
a categoria das mulheres, sujeito do feminismo, é lecidas nesse cruzamento. Diferentes opressões,
produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de como racismo, sexismo e classe, atuam juntos e
poder por intermédio das quais busca-se a eman- ao mesmo tempo.
cipação” (Butler, 2003, p. 19)
É preciso reconhecer a importância das políticas
O feminismo, de acordo com Butler (2003), encontra públicas de enfrentamentos as violências, como a
um problema político ao supor que o termo “mulhe- criação das Delegacias da Mulher, das Casas-Abrigo
res” possui uma identidade comum, pois mesmo e dos Juizados Especializados e das leis, como a Lei
alguém sendo uma mulher, isto é não tudo o que 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”
ela é, ou seja, o gênero não se constitui da mesma e a Lei 13.104/2015, que inclui o feminicídio no rol
forma em diferentes contextos sociais e também dos crimes hediondos, porém é necessário refletir-
porque gênero estabelece intersecções com outras mos de que forma elas não contemplam todas as
categorias, como classe, raça, etnia e sexualidade. mulheres e produzem novas violências. O número de
Sendo assim, é impossível separar a categoria gê- mulheres negras assinadas, por exemplo, aumentou
nero das intersecções políticas e culturais em que 54% em dez anos (de 2003 a 2013), enquanto o
é produzido e mantido. número de homicídios de mulheres brancas diminuiu
9,8%, segundo o Mapa da Violência de 2015. No
A contestação das definições essencialistas de femi-
que tange a Casa-Abrigo constata-se que muitas
nilidade e a defesa de que as mulheres são plurais
mulheres que estão em situação de abrigamento
passaram a ser identificadas principalmente a partir
são pobres e as mulheres transexuais muitas vezes
da década de 1990, na chamada “terceira onda” do
não são contempladas nas políticas de abrigamento.
feminismo (Narvaz & Koller, 2006). Utilizo a palavra
Com relação a Lei 13.104/2015 houve vários debates
“identificadas”, pois diversas autoras/es já haviam
antes de ela ser sancionada, pois a palavra “sexo”
realizado anteriormente considerações a respeito,
foi utilizada ao invés de “gênero” no corpo da lei
mas o tema ganhou visibilidade principalmente a
justamente para que as mulheres transexuais não
partir daquele momento.
fossem contempladas.
Os estudos feministas tiveram papel fundamental
Outra questão é a importância dos estudos sobre
para que as violências contra as mulheres fossem
masculinidades. Apesar desses estudos se mostra-
compreendidas como tais e para que fossem lançadas
rem fortementes potentes, grande parte deles no
políticas públicas e leis que propusessem enfren-
campo das violências contra as mulheres ainda de
tamentos as violências contra as mulheres, assim
perspectivas acusatórias e/ou de culpabilização. Isto

112 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


porque, muitas vezes as violências são compreendi- Intervenções psicológicas e suas implicações
das como um poder coercitivo utilizado por homens sociais, uma leitura possível...
para garantir a dominação das mulheres. De acordo
Por décadas as ciências fizeram uso da chamada
com Botton (2007), diversos estudos com base em
objetividade e neutralidade como garantia na produção
perspectivas pós-estruturalistas e pós-modernis-
de “discursos científicos independentes, fidedignos,
tas, questionaram a universalidade da supremacia
verdadeiros e universais” (Neves & Nogueira, 2005,
masculina, pois existem “diversas incompatibilidades
p. 408). Esta crença encoraja a neutralidade, a obje-
entre os modelos de poder masculino e a vivência
tividade e um distanciamento, deixando escondidas,
de inúmeros homens” (Botton, 2007, p. 114).
por vezes ingenuamente, as subjetividades de profis-
Constata-se que as violências contra as mulheres sionais, desatentas/os aos fatores sociais, culturais,
não se referem apenas à esfera privada, sendo ne- históricos e políticos que envolvem qualquer tipo de
cessárias respostas do Poder Público e pactos de atuação profissional.
não tolerância de todas/os nós. É necessário que
Afirmar a constituição histórica do olhar humano
existam políticas públicas e leis que proponham en-
implica entender que ele não é natural, não é dado
frentamentos às essas violências, entretanto ape-
desde o princípio, é produzido, portanto, sua apre-
nas a existência delas não é suficiente. Diferentes
ensão é cultural. Nossas práticas de construção de
mulheres possuem desiguais acessos ao sistema
conhecimento e de intervenções remetem a nossos
jurídico, que é fundamental para que as mulheres
pressupostos culturais, nossa historicidade, nossa
consigam romper com as situações de violência que
linguagem e sociabilidade (Ibañez, 2001). Desta forma,
vivenciam. Os serviços ofertados pela rede de atendi-
não existiria ‘o olhar’, mas diferentes modos de ver
mento ainda são pouco conhecidos e com frequência
que são forjados desde o nascimento e nós dificil-
não contemplam as necessidades das mulheres. É
mente nos damos conta dos vieses de classe social,
necessário que as políticas públicas contemplem a
etnia, gênero e condição cultural que caracterizam
categoria gênero, porém outros marcadores sociais são
as leituras que fazemos do mundo (Zanella, 2013).
também fundamentais, sendo a interseccionalidade
imprescindível para o enfrentamento às violências Percebendo as diversas implicações das atuações
contra as mulheres. profissionais, por vezes, ainda descontextualizadas,
pensamos a psicologia como uma prática social e

5.ÉTICA
política em todas as suas possibilidades, desde os
E PSICOLOGIA: UM CONVITE atendimentos em equipe nos serviços públicos até
À REFLEXIVIDADE a psicoterapia individual em consultório particular
(Ibañez, 2001). Nós atuamos a partir dos nossos es-
Bárbara Anzolin tudos, experiências e das nossas trajetórias pessoais,
O presente texto tem como objetivo apresentar a refle- porque isso nos constrói, isso ocorre de acordo com
xividade como um recurso para o trabalho profissional nossos anseios, nosso modo de entender a vida e
ético em psicologia. Para isso, tomamos como base o modo como gostaríamos que ela fosse. É a partir
o Construcionismo Social, uma perspectiva crítica desta leitura que pensamos a ética e recorremos à
em Psicologia, que reconhece a parcialidade e não reflexividade.
neutralidade das práticas profissionais nas relações Ética e reflexividade
sociais e, portanto, convida a um posicionamento
reflexivo, comprometido ética e politicamente com Se pensarmos ética como “a ciência que têm por
a construção de uma sociedade menos opressora objeto os julgamentos de apreciação sobre os atos
(Ibañez, 2001). Nesta perspectiva, problematizamos considerados bons ou maus” (Spink, 2000), precisa-
as relações de poder nas tradições das culturas e mos considerar que bom ou mau é relativo, é fruto
buscamos ouvir e trabalhar ao lado dos grupos his- de convenções sociais historicamente construídas,
toricamente marginalizados. portanto, não natural e passível de transformação
(Cordeiro, Freitas, Conejo & Luiz, 2014). O que é
Assumimos um posicionamento de que não exis- bom para uma pessoa pode não ser bom para mui-
te uma realidade pronta e independente, existem tas outras pessoas, então como podemos saber se
múltiplas realidades, criadas por nós, a partir de nossas escolhas e ações são éticas?
nossa historicidade, nossa sociabilidade e contex-
tos linguísticos (Ibañez, 2001; Souza 2014). A partir Em nossas intervenções profissionais, para além da
deste entendimento, quando falamos sobre atuação “ética prescritiva” (Spink, 2000, p. 12), que contem-
profissional, voltamos nossos olhares para as inte- pla as normas, códigos de ética profissional, leis,
rações construídas entre as pessoas (profissionais políticas, resoluções e notas técnicas, recorremos
e usuárias/os de serviços psicológicos), de forma a a “ética relacional”. Trata-se de um processo dia-
tornar o processo transparente e dialógico. lógico que possibilite uma postura atenta, curiosa,

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 113


compreensiva e inclusiva. Isso significa abandonar pessoas, para refletirmos sobre que outros diálogos
critérios essenciais e universais (Trindade & Rasera, são possíveis, ainda que não possamos prever todas
2013) e adotar uma reflexão sobre ética a partir das as possibilidades (Zanella, 2013).
nossas interações, uma extensão da ética da vida
É importante que nos questionemos frequentemente,
em geral (Spink, M. J & Spink, P, 2014).
e é nesse movimento que fazemos a reflexividade,
Zanella (2013) entende que falar em ética é falar no olhar crítico para a teoria, para o estudo, para as
em compromisso, com outras pessoas e com nós nossas falas e todos os valores que as embasam,
mesmas/os, é falar de valorização da vida, de luta inclusive os preconceituosos, e para as relações de
por denúncias de todas as formas de violência e poder. Relações estas que nós produzimos mesmo
por modos de vida mais dignos para todas/os nós. sem intenção, pois a simples presença de uma/um
Por isso a importância da crítica constante ao que profissional de psicologia, incluindo as diferenças de
fazemos diariamente, ao que produzimos em nos- gênero, formação, classe social, geração e raça/etnia,
sas conversas cotidianas e em nossos trabalhos, já envolvem relações de poder (Mountain, 2014).
pois tudo implica em consequências para a vida em
Neste constante movimento de reflexividade, Moun-
sociedade. No relativismo, pensar ética é pensar
tain (2014) traz a importância da interseccionalidade,
nossos valores, nosso compromisso social. Se nós
de “olhar categorias sociais em sua intersecção” (p.
construímos nossas realidades em interação, julga-
174). Para ilustrar a proposta a autora fala da inter-
mos importante considerar que realidades queremos
seccionalidade nos estudos feministas, que mostram
construir (Ibañez, 2001).
especificidades nas demandas e posições das mu-
Da perspectiva construcionista resgatamos alguns lheres negras, de mulheres trans, da posição das
aspectos que julgamos úteis para auxiliar no plane- mulheres em relação ao capitalismo, às classes, à
jamento e na realização de intervenções éticas, tais sexualidade, à educação e saúde, bem como os
como: a) a noção de não neutralidade, assumindo feminismos em diferentes posições geográficas. Não
um compromisso social com grupos de pessoas pretendemos aqui esgotar a reflexão, menos ainda
historicamente marginalizados e silenciados; b) o definir e discutir um conceito tão complexo quanto
cuidado e valorização das pessoas envolvidas nas o de interseccionalidade. Gostaríamos apenas de
intervenções; c) a clareza dos objetivos; d) reciproci- aponta-la como imprescindível para a reflexividade
dade e não hierarquização das relações, assumindo a medida que nossas atuações atingem de diferen-
uma postura apreciativa, atenta e aberta ao diálogo; tes modos as pessoas em seus grupos, de acordo
e) e a reflexividade, que contempla reflexão crítica com suas idades, renda, cor de pele, gênero, classe
constante sobre todas as ações e também quanto social etc.
aos possíveis efeitos de cada uma delas (Souza,
Um convite à reflexividade
2014; Spink, M. J. & Spink, P., 2014).
Com as construções e reflexões que fizemos ao longo
Somos nós que escolhemos nossos valores e o fato
do texto, com base em nosso compromisso ético e
de assumirmos nossos critérios de acordo com nosso
político com a construção de melhores relações de
lugar social é o que nos possibilita a ética, é nessa
convivência e tomando pesquisas e atuações pro-
adoção de valores que está a nossa responsabilidade
fissionais como práticas sociais, entendemos que
por defender a realidade sócio-política que decidimos
somos responsáveis pelo que produzimos e pelos
potencializar (Ibañez, 2001). A utilidade da Psicologia
efeitos de nossas produções. Contemplada a ética
deve ser pensada a partir destes posicionamentos.
prescritiva, resta-nos pensar primeiramente como
Quando nos posicionamos comprometidas/os so-
e com quem estamos comprometidas/os social e
cialmente com os grupos marginalizados, buscamos
politicamente, que realidades queremos (re)produzir,
contribuir para a desconstrução do que se tornou
para então pensar nossos passos. Isso só é possível
instituído, essencializado, para a desnaturalização
quando nos deixamos transformar por outras vozes,
das construções sociais opressoras. Os estudos
por outros olhares, precisamos estar sensíveis para
de gênero, por exemplo, problematizam as noções
olhar criticamente para as nossas escolhas e seus
binárias de gênero e de sexualidade, contribuindo
efeitos, previstos ou não.
para sua desnaturalização e para a despatologiza-
ção das vivências dissidentes do padrão instituído Citando Alvesson e Skoldberg (2000, prefácio), Mou-
(Mountain, 2014). ntain (2014) define que “reflexão significa interpretar
sua própria interpretação, olhar para suas próprias
Se, ao trabalhar com as pessoas, nós produzimos
perspectivas a partir de outras perspectivas, e voltar
efeitos em suas relações, a reflexividade é uma pro-
um olhar autocrítico na sua própria autoridade como
posta para tentarmos nos afastar e olharmos para o
intérprete e autor” (p. 172). Esta definição nos permite
trabalho a partir de outra perspectiva. Como se fosse
pensar o movimento constante da reflexividade, desde
possível vestir as ‘lentes’ de outros grupos, de outras
a) os nossos estudos, nossas leituras; b) passan-

114 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


do pelo planejamento das intervenções; c) pela bre a relação entre racismo e sexismo. Novos
análise da postura profissional que almejamos; Estudos, julho.
e, por fim, d) pela análise das intervenções.
O processo de reflexividade não é e não pretende ser Crenshaw, K. W. (2002). Documento para o
simples e ele só é possível quando olhamos para nós encontro de especialistas em aspectos da
mesmos, quando estranhamos nossos valores, isto discriminação racial relativos ao gênero. Rev.
é, quando fazemos o movimento de nos tornarmos Estud. Fem., 10 (1), 171-188.
objeto, alvo do nosso olhar crítico. Entretanto, nossos
conhecimentos e julgamentos são circunscritos pela Crenshaw, K. W. (2004). A intersecionalidade
nossa cultura e história, por esses mesmos valores na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA.
que pretendemos estranhar, por isso reafirmamos Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem.
a importância da interseccionalidade como recurso.
Fébole, D. S. (2017). A produção de violências
Se a Psicologia ao longo de sua caminhada con- na relação de cuidado em saúde da popula-
tribuiu para a (re)produção de relações de poder, ção LGBT no SUS. Dissertação de mestrado,
de opressão e de hierarquia, consideramos dever Departamento de Psicologia, Universidade
nosso lutar pela desconstrução destas. É a partir
Estadual de Maringá, Maringá/PR.
desse constante movimento reflexivo que podemos
propor e realizar ações éticas e políticas, para além Moutinho, L. (2014). Diferenças e desigualda-
de nossas normas, códigos e comitês.
des negociadas: raça, sexualidade e gênero
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116 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
16

ESPAÇO ESTIMULAR: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA COM


ALUNOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL E AS INTELIGÊNCIAS
MÚLTIPLAS

RESUMO
Este artigo apresenta o relato de experiência realizado como
Gabriel Henrique da
Silva Honório atividade obrigatória de estágio para a formação em Psicologia
UNIPAR da UNIPAR, Universidade Paranaense e responde à proposta do
Projeto “Espaço Estimular: inteligências múltiplas em alunos da
Maria Adelaide Pessini educação especial com deficiência intelectual (D.I.)”. As atividades
UNIPAR interventivas do estágio foram realizadas ao longo de oito meses do
ano de dois mil e dezoito, junto a alunos com deficiência intelectual
matriculados no ensino fundamental na modalidade de educação
especial na Escola Municipal Drummond de Andrade, respondendo
a demanda dialogada com os profissionais do estabelecimento,
surgiu então a necessidade de um trabalho do psicólogo escolar/
educacional cujo objetivo foi proporcionar aos alunados um espaço
que vise a estimulação das Inteligências Múltiplas. Por meio de
métodos propostos por Gardner (2002) e Antunes (2014) através de
jogos organizados por planos de ação, produziu-se um espaço que
proporcionou ações psicoeducacionais para o desenvolvimento de
habilidades. Observou-se, no decorrer do processo a identificação de
facilidades e dificuldades em relação as habilidades nas Inteligências
Múltiplas, o que faz supor que as intervenções contribuíram para as
necessidades específicas diferenciada ao processo educacional e a
articulação de saberes plurais às diferenças individuais dos alunos,
de tal forma a auxiliar na emancipação, pensamento crítico e na
coprodução dos alunados.

Palavras-chave: Psicologia Escolar/Educacional; Inteligên-

cias Múltiplas; Deficiência Intelectual.


10.37885/200400144
1. INTRODUÇÃO Além disso, a intervenção possibilitou ser um gerador
de interesse ao aluno na medida que proporcionou
O relato de experiência de considerações uma experiência pessoal e social, auxiliando a construir
procedentes do Estágio Supervisionado Curricular novas descobertas, desenvolvendo e enriquecendo
Obrigatório Específico II se faz em obrigatoriedade suas habilidades e explorando outras.
como cumprimento para formação de Psicólogo, foi

2.MÉTODO
realizado na Escola Drummond de Andrade, loca-
lizada no interior do Paraná. A proposta de inter-
venção foi entorno de proporcionar aos alunos do O estágio cuja experiência aqui é relatada, teve
atendimento educacional especializado (AEE) com como propósitos a estimulação das inteligências múl-
Deficiência Intelectual através de jogos, um espaço tiplas com alunos de sete à onze anos da Educação
que pudesse propiciar o conhecimento dos alunos Especial no Ensino Fundamental, realizado numa
de suas inteligências e a estimulação de outrem. A escola municipal no período vespertino. A escola
luz de uma produção interventiva com professor e encontra-se no centro da cidade, atendendo predo-
psicólogo, viu-se a necessidade de produzir ações minantemente a população do pequeno município.
diferenciadas como forma de trabalho transversal e O atendimento do estabelecimento é dividido em
multidisciplinar em articulação do atendimento es- ensino infantil, fundamental no período matutino e
pecial às necessidades dos alunos. Este dinamismo vespertino e na modalidade de Educação para Jo-
proporcionou criar uma prática pedagógica para a vens e Adultos (EJA) no período noturno.
identificação das especificidades dos alunos e da
estimulação de suas inteligências, de modo que A supervisora de estágio juntamente com o estagiário
possibilitou métodos pedagógicos para estimulação consultou a escola de interesse para ser fornecido a
de habilidades concomitante a uma aprendizagem oportunidade de articular Psicologia Escolar/Educa-
significativa. cional no estabelecimento, de tal forma a cooperar
com a comunidade escolar e ao conhecimento es-
Metodologicamente, este relato utilizou-se sob o pecífico a luz de um trabalho preventivo. A primeiro
entendimento da pesquisa bibliografia, o qual apre- momento, foi apresentado a proposta a psicóloga
sentou-se diante a ação interventiva. do local, sendo ressaltado a oportunidade do serviço
Norteados por leituras construtivistas da perspectiva em auxílio as demandas escolares e a cooperação
de Gardner e dos referenciais técnicos da educa- com os alunos.
ção especial, construiu reflexões sobre os estudos Foi assim, estabelecendo parceria entre a escola e
de alunos com deficiência intelectual num espaço o curso de graduação em Psicologia com o objetivo
diversificado em uma modalidade inclusiva e preven- do desenvolvimento de jogos para estimulação dos
tiva para construção do rompimento das situações alunos da Educação Especial. Ao decorrer de oito
de exclusão, buscando assim promover ambientes meses consecutivos, o estagiário foi responsável por
heterogêneos, de ressignificação a estigmatização organizar planos de ação com jogos e atividades uma
dos alunos a um pleno desenvolvimento que deve vez por semana no período vespertino das treze às
ser o processo de aprendizagem. dezessete horas com alunos de sete à onze anos.
Com isso, pudemos nos aproximar das necessidades O grupo, constituiu de sete meninos e quatro meni-
da educação diferenciada a uma visão pluralista de nas com predomínio de baixo rendimento escolar,
forças cognitivas para inclusiva. Vale salientar que a diagnosticados com Deficiência Intelectual.
utilização da teoria de Gardner, propõe desenvolver Os quatro primeiros meses foram dedicados as ob-
competência nos alunados, principalmente quando servações assistemáticas, cujo objetivo foi conhecer
nos referimos a Educação Especial, visto a neces- e coletar dados sobre o público alvo para melhor
sidade da articulação de recursos pedagógicos para elaborar e adequar os jogos interventivos as necessi-
o ensino. dades específicas dos alunos, permitindo planejar e
Em posição profissional, pudemos ver que a educa- registrar os elementos da observação (Danna, 2011).
ção a partir das inteligências visa estimular alunos Por meio de leituras em textos-base da Psicopedagogia
em suas habilidades particulares de encontro com com o construtivismo por Gardner e as inteligências
o processo educacional, pois assim vão construir múltiplas, referenciais da Política Nacional de Educa-
meios de transmissão mais consistentes que facili- ção Especial na perspectiva da educação inclusiva
tarão o processo de aprendizagem. Esse movimento (2008) assim como a Resolução nº 04, de outubro de
proporciona a escola poder avaliar o aluno através 2009 que institui a modalidade do Atendimento Edu-
de uma perspectiva holística, resultando na apren- cacional Especializado (AEE). Além disso, o período
dizagem de forma prazerosa, desenvolvendo assim inicial, utilizamos de referenciais sobre a construção
suas habilidades de maneira abrangente. de jogos atrelado as habilidades para construção

118 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


de planos de ação, destacando a inteligência em Especial, de modo que pudessem ser auxiliadores no
específico e as habilidades a serem buscadas em processo de aprendizagem. Para tal, foi realizado um
conjunto com os procedimentos e construções de movimento entre a Psicologia e Pedagogia que, na
cada atividade. área da educação é conhecido como Psicopedagogia.
De acordo com Bossa (2007, p. 58 como citado em
Foi também realizado um teste de lateralidade para
Silva, 2012, p. 27) a psicopedagogia “é a área que
identificar destro completo, canhoto completo, late-
estuda e lida com os processos de aprendizagem
ralidade cruzada e lateralidade mal afirmada, como
e suas dificuldades e, numa ação profissional para
parte da coleta de dados sobre a identificação e
englobar vários campos de conhecimento, integran-
desenvolvimento motor do aluno, com auxílio da
do-os e sintetizando-os”.
psicóloga do local.
Seu objeto de estudo sendo a aprendizagem e seus
A partir do quinto mês, foram iniciadas as interven-
problemas, oferece uma nova área de saber capaz
ções, onde foi construído um cronograma em con-
de dialogar e de transitar entre os campos psi e os
junto a psicóloga e a professora dos alunos, que
processos do aprender. Considerando este campo,
semanalmente eram aplicados os planos de ação
envolve dois enfoques: prevenção e terapêutico.
para estimulação das inteligências: linguístico, ló-
A prevenção é baseada em ações que analisam o
gico-matemático, musical, pessoal, naturalístico e
aprender de forma ampla não restringindo apenas aos
cinestésico-corporal. Semanalmente os materiais
espaços escolares, englobando também a família,
foram elaborados para serem distribuídos na sala
os processos de aprendizagem, num entendimento
e em seguida, eram avaliados pelo estagiário.
sobre o desenvolvimento, avanços e condições de-
Para elaboração dos jogos foram necessários: papel terminantes para as dificuldades de aprendizagem.
sulfite (branco e colorido), algodão, lixa, e.v.a de várias O terapêutico tem como objeto de estudo a “identi-
cores, fantoche, impressora (com tinta preta e colori- ficação, a análise e a elaboração de uma metodo-
da), cartolina (branca e colorida), latas, areia, pedra, logia de diagnóstico e tratamento voltado para as
feijão, arroz, açúcar, lousa, giz (branco e colorido), dificuldades de aprendizagem (Silva, 2012, p. 41).
palitos de picolé, cola, tesoura, caneta, lápis, lápis
Utilizando de Gardner (2002, p. 7), psicólogo cog-
de cor, borracha, folha p.v.c, tecido e grampeador.
nitivo e educacional estadunidense, que trouxe a
A todo encontro com os jogos, foram realizados ano- partir de estudos piagetianos sobre as áreas do
tações em súmulas sobre os alunos que tiveram desenvolvimento infantil, considerando compostas
facilidade e dificuldade em resolver a atividade, assim por estruturas diversas e assim para a “existência
como a forma como as resolviam. Esses jogos se de diversas competências intelectuais humanas”.
estenderam por três meses. O projeto partiu sob um enfoque preventivo, a esti-
mulação das inteligências múltiplas num processo
No penúltimo mês de intervenção com os dados interativo entre as inteligências para resolução de
coletados durante a realização dos jogos, foram problemas, com produção de criação e aprendizado
organizados relatórios individuais baseados nas sob tal vertente, utilizando de recursos diversos para
observações para uma devolutiva individual aos in- estimular o aprendizado com jogos de uma forma
teressados. Esses relatórios foram norteados a partir diferenciada, explorando as inteligências, conforme
dos princípios da resolução do Conselho Federal de teoriza Gardner, considerando que se torna necessário
Psicologia Nº 017/2003 considerando a estrutura do dizer que não há uma única e irrefutável inteligência,
Relatório Psicológico. mas várias inteligências de modo que interdependem
Também, foi elaborado uma apostila com as atividades entre si e por isso, fundamentais para o processo
realizadas pelos alunos a fim de devolver o material de aprendizagem.
aos mesmos, com o objetivo de explorarem e adqui- A primeira ação do processo interventivo foi realizada
rirem suas atividades. Para exemplificar, na apostila na sala de aula dos alunos para trabalharmos com
foi colocado parte do jogo que tinha como proposta sólidos geométricos e papel para desenho buscando
memória e percepção tátil, parte das cartas de um a estimulação da inteligência espacial. Com os sólidos
jogo da memória com superfícies diferentes, para já montados, foi distribuído um diferente para cada
estimularem a continuar a jogar depois do processo aluno, onde o mesmo tinha de executar a tarefa de
interventivo assim como, atividades de desenho e de reproduzi-lo no desenho a ser realizado no papel.
colagem que fizeram parte da elaboração da apostila. Após o desenho, os mesmos associaram o sólido
com algo em seu universo e reproduziam através do

3.DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


A construção deste projeto, previa estimular
desenho. Assim, o plano de ação pôde envolver a
percepção, orientação espacial e criatividade através
da reprodução de sólidos geométricos.
as inteligências múltiplas nos alunos da Educação

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 119


Durante a intervenção, expliquei a atividade nos 2 Educação e Câmara de Educação Básica nº 4/2009.
(dois) grupos de 4 (quatro) alunos que estavam or-
Foi possível também, identificar 5 (cinco) alunos
ganizados e, pude registrar utilizando súmula os que
com facilidade em vocabulário e 3 (três) com faci-
tiveram facilidade e dificuldade, sendo 2 (dois) com
lidade em fluência verbal. Esta última compreende
dificuldade e 6 (seis) no que se refere a percepção
“habilidades essenciais a linguagem, como analisar,
dos lados do sólidos. Antunes (2014) apresenta que o
sintetizar, comparar, relacionar, descrever, criticar,
desenvolvimento desta inteligência pode ser utilizado
julgar, ponderar e outras”. Assim, foi possível sob
através de objetos e cenas para orientação e direção.
uma nova vertente analisar a avaliação dos níveis
Associados as atividades pedagógicas reproduzidas
de construção da escrita alfabética (Antunes, 2014,
na sala, puderam ser auxiliadores numa perspec-
p. 47).
tiva diferenciada no uso de diagramas, mapas ou
formas para a resolução de problemas que envolve A mesma articulação entre os métodos da professo-
orientação e percepção, principalmente relacionados ra e os métodos da intervenção psicoeducacional,
a lateralidade e alfabetização cartográfica, sendo foram observados durante a atividade de exigência
assim, suporte ao aprender. lógico-matemático. Quando utilizamos de jogos para
identificar os alunos com bom desempenho e dificul-
Estas experiências de percepções também foram
dade na resolução do problema, um aluno que nas
utilizadas na inteligência musical, que tinha como
observações em sala de aula com a professora teve
proposta a percepção auditiva e memória, elabo-
um bom desempenho, no jogo de exigência lógico-
rando um tipo de jogo da memória com sons. O
-matemático também teve um bom desempenho,
jogo foi realizado com os alunos individualmente,
apresentando um resultado de 11 (onze) acertos, 0
observando como resolviam problemas e como usava
(zero) erros e 0 (zero) problemas não resolvidos num
a memória e a percepção auditiva para solução do
tempo de 15 (quinze) minutos. Os cálculos durante
problema, elencando quem apresentou dificuldade
o jogo, foram feitos na folha de rascunho utilizando
ou facilidade. Outra atividade atrelado ao uso da
o método de riscos.
percepção auditiva, e também, da fluência verbal
e leitura foi uma atividade sobre a exploração da Essas habilidades de raciocínio utilizados na sala de
inteligência linguística. aula com métodos psicoeduacionais se aproximam dos
métodos didáticos quanto utilizam-se de ferramentas
Ambas as atividades, puderam ser associados ao
concretas, como foi durante o jogo “Picolé das con-
método fonovisuoarticulatório utilizado pela profes-
tas”, recebendo números e cálculos embaralhados
sora para fins didáticos. Segundo Fonseca, Jardini,
e um resultado para ser correlacionado. Assim como
Paula (2018, p. 182):
a professora, durante os jogos utilizamos de recur-
sos capazes do aluno manipular e fazer relações,
Inovando a concepção de educação
onde o aluno pode julgar o resultado, realizando
que paira na maioria das escolas es- assim um movimento da estimulação da capacidade
peciais, optou- se por ver o aluno não resolutiva e conhecimento de sua ordenação. Gard-
como um ser incapacitado de suas po- ner (2002, p. 131) salienta que “cada inteligência
tencialidades e sem ambições de su- possui seus próprios mecanismos de ordenação e
cesso, mas por vislumbrar sua saúde, a maneira como uma inteligência desempenha sua
suas possibilidades de êxito escolar, ordenação reflete seus próprios princípios e seus
pela adoção de uma metodologia mul- próprios meios preferidos”.
tissensorial, fonovisuoarticulatória, de
O despertar a curiosidade e interesse nos alunos,
bases neurolinguísticas, por meio da
também fez parte de tais práticas citadas. Os jogos
qual se vislumbram suas habilidades
possibilitaram interesse aos alunados quando os
e defasagens, propondo exercícios di- mesmos perguntavam sobre o próximo jogo. Pos-
recionados e específicos, minimizando sibilitou ser um gerador de interesse ao aluno na
a perda de foco e o uso desmesurado medida que proporcionou uma experiência pessoal
de atividades aleatórias e repetitivas. e social, auxiliando a construir novas descobertas,
desenvolvendo e enriquecendo suas habilidades e
Este método buscando potencializar o aluno atrelado explorando outras (Antunes, 2014). Os alunos dis-
a atividade psicoeducacional pôde ser auxiliador no seram ainda: “O tio veio, eu gosto dos jogos dele”.
processo de aprendizagem, quando considerado os Isso firmou o despertar do interesse no aluno e da
recursos multifuncionais necessários para o atendi- curiosidade em apresentar materiais e articulá-los
mento educacional especializado suplementar ou de forma diversificada.
complementar aos alunos com deficiência, conforme
se orienta na Resolução do Conselho Nacional de Consideramos que quando utilizamos como pilares
à diversidade e a criatividade nas inteligências in-

120 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


dividuais e singulares possibilita “o prazer da (re) lhos realizados pela escola.
descoberta, aguçar a curiosidade e interagir com a
realidade que o cerca, utilizando recursos diferentes A partir de tais ações, pudemos aproximar escola e
do comum como o lápis e o papel” (Grizio & Maestri, família numa experiência de tarefa de casa porém,
2013, p. 2). ainda pudemos ver a necessidade de pais auxiliarem
ou revisarem o caderno dos alunos, pois haviam
Com isso pudemos conhecer as individualidades
atividades incompletas e, que foi procedimento para
de cada aluno, de suas dificuldades no processo de
elaboração das avaliações individuais.
aprendizagem considerando como cenário também
o suporte social participante deste processo. Com o Gardner (2002) acrescenta que a cultura em que a
jogo que visava a estimulação da inteligência natura- família está inserida enfrenta interesses diferentes,
lística em participação com o meio familiar pudemos em nexo a questões intra e interpessoal, que reflete
perceber tais aspectos. Nas atividades de cuidado na existência do sujeito. Para tanto, ressalto que a
com o meio ambiente trazendo fotos com animais, investigação com as inteligências pessoais, neces-
pudemos perceber a preservação com a natureza, sitam do conhecimento das estruturas familiares,
através de diálogos do seu ambiente familiar/social, considerando movimento intrínseco nas relações
proporcionou ser pressuposto a sensibilidade natural. que favorecem ações escola-família-comunidade.
Antunes (2014, p. 198) discute que:
São elementos como estes presentes no contexto
familiar relevante ao ambiente educacional, conhe-
Uma criança que cresce no campo,
cendo as emoções e particularidades dos alunos,
em um sítio, ou em uma chácara ou
considerando em sua gênese a diversidade e as
mesmo á beira- mar e que tem como práticas sociais. Como exemplo, na atividade de in-
companheiros pessoas envolvidas com teligência pessoal, no qual foi construído emoticons
natureza, geralmente diferencia-se bas- com expressões de alegria, tristeza, medo, vergonha
tante de outras que, emparedadas em e raiva para os alunos associarem as figuras com
construções verticais, tornam-se adul- suas emoções, pudemos propiciar o autoconheci-
tos que facilmente se irritam com os ru- mento nos alunados intra e extra muros. Em um dos
ídos naturais ou as relações empáticas alunos pudemos reconhecer alegria (de brincar no
com cachorros ou gatos [...] Essas ob- celular), vergonha (da vó que conheceu recentemente),
servações permitem concluir que nossa medo (boi e de aranha), tristeza (morte do cachorro)
herança genética nos desperta para o e raiva (quando cai de bicicleta ou trava o celular).
mundo com maior ou menor sensibili- Com o desenho pudemos observar a capacidade de
dade natural, mas a forma da educação interpretação dos elementos para tais expressões
é significativa na estruturação de nosso compostas nos rabiscos. Isso, pode associar com
comportamento posterior. o autoconhecimento na inteligência intrapessoal é
descrito por Gardner (2002) como descoberta das
emoções, considerando também sua forma de ma-
Assim, podemos correlacionar que durante as apre-
nifestação e administração no psíquico do sujeito.
sentações dos animais em seu meio doméstico, os
alunos que tinham contato ou moravam em sítios, Quando voltamos as práticas em explorando as
conseguiam descrever facilmente e ensinar os co- manifestações dos sujeitos em respeito as suas
legas da turma sobre os cuidados com os animais, diversidades , faz-se como recurso fundamental a
comparado alunos do espaço urbano. compreensão do funcionamento do das emoções
(Xavier, 2012).
Com esta atividade e durante a observação do caderno
dos alunos, foi possível visualizar a participação da Na mesma atividade de autoconhecimento e de
família em tais atividades para casa, considerando inteligência linguística agora, articulado em grupo,
a supervisão familiar como parte do processo de pudemos conhecer a decisão e a conciliação dos
bom desenvolvimento intelectual e social do aluno. alunos, identificando suas inteligências interpessoais.
Medeiros e Puccinelli (2005, p. 241-242) salientam: Como exemplo, uma dupla apresentou dificuldade
em conciliar e decidir em grupo, não apresentando
[...] importância de que a escola invis- boa articulação entre ambos os indivíduos.
ta na promoção de um novo modelo
Antunes (2014, p. 14) partindo das ideias de Gard-
de interação com as famílias de seus
ner, diz que as inteligências pessoais partem pri-
alunos, modelo esse que proporcione meiramente do senso da presença do “educador
maiores conhecimentos sobre os alu- de si mesmo administrando sentimentos emoções
nos atendidos e mais conhecimento, e projetos com o auto”. Partindo de uma relação
pelas famílias dos alunos, dos traba- do senso do eu, da autoestima, a manifestação do

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 121


bom relacionamento com os outros, com o coletivo, a luz de um referencial psicopedagógico ainda es-
caracteriza a inteligência interpessoal, relacionado casso em produções quando voltados a deficiência
com o sistema simbólico da cultura que assumem intelectual, considerando que “não existe uma única
esta característica. abordagem pedagógica para o trabalho com as inte-
ligências múltiplas em sala de aula e, portanto, não
São ações psicoeducacionais como acima men-
existem receitas definidas sobre como estimulá-los
cionadas, que proporcionaram o desenvolvimento
(Silva, 2012, p. 147).
das habilidades desenvolvidas no contexto escolar
com alunos da educação especial. Xavier (2012, p. A escola quando trabalha com alunos da educação
68) diz que “a contextualização e a significação são especial, necessita de um trabalho multiprofissional
conteúdos importantes na Pedagogia do aluno por- e multidisciplinar para a promoção do Atendimento
tador de necessidades especiais”. Assim, o projeto Educacional Especializado (AEE) na busca da elimi-
proporcionou um outro olhar sobre a avaliação do nação de barreiras para complementação do apren-
aluno, a atenção diferenciada exigida no processo dizado, dispondo de “recursos e de apoio pedagógico
de ensino-aprendizagem, além de servir como au- para o atendimento às especificidades dos alunos
xiliador das práticas pedagógicas as necessidades público alvo da educação especial matriculados no
específicas do alunados. ensino regular” (Dutra, Santos, Guedes, 2010, p. 5).
A construção de relatórios individuais através das Ainda sobre a multidisciplinaridade, Antunes (2014,
observações das resoluções dos jogos, puderam p. 43) descreve que:
assim concretizar tais problematizações aqui descri-
tas, de forma complementar e ser subsídio a outras Viabiliza a atuação do próprio aluno na
avaliações, pedagógicas e psicológicas a partir de tarefa de construir significados sobre
uma posição participante frente a tais planos de ação os conteúdos de sua aprendizagem e
elaborados com a turma. explorar de forma significativa os temas
Esse movimento proporciona a escola poder “avaliar transversais (meio ambiente, pluralida-
o indivíduo numa perspectiva holística, de forma a de cultural) que estruturam a formação
superar suas dificuldades e aprender de forma pra- do aluno-cidadão [...] dessa forma,
zerosa, desenvolvendo todas as suas habilidades devem ser desenvolvias no momento
de maneira completa” (Grizio & Maestri, 2013, p. 2). oportuno de qualquer professor, inspi-
rado por acontecimentos no momento
A avaliação psicoeducacional sobre o enfoque os pro-
vivido pela escola.
blemas de aprendizagem, ainda puderam descrever
que quando articulado o processo como participantes
o aluno, os agentes educacionais e a escola, extrapo- A Psicologia Escolar/Educacional atrelada aos contextos
lando amarras quantitativas num caráter hegemônico, da deficiência intelectual, possibilita transformações
foram facilitadores neste movimento. em conjunto as instituições de ensino, a reflexão das
necessidades dos alunos, explorando conteúdos e
O jogo como forma lúdica é eficaz sendo um gerador temáticas para produção de significados frente às
de situações estimuladoras pois, revela o interesse diferenças dos sujeitos, possibilitando através das
do aluno, enriquecendo o instrumento pedagógico e práticas preventivas sobrepor o imaginário social de
assim proporcionando o professor ser condutor da que deficiente não aprende.
avaliação da aprendizagem (Antunes, 2014). Firma
o objetivo quando, conforme relata a professora, que Ainda esta ciência engajada com práticas plurais,
os jogos contribuíram pois chama a atenção do aluno considerando os sujeitos além de um resultado
para o conhecimento, adequando-os e auxiliando quantitativo, possibilita que o aluno seja capaz de
nas dificuldades apresentadas, mediando novas des- se desenvolver intelectualmente e socialmente, visto
cobertas prazerosas e lucrativas para aquisição do as oportunidades recebidas no meio escolar. Para
conhecimento. Ainda relata que trouxeram mudança isso, é fundamental que os profissionais não des-
por parte dos alunos como principal característica a contextualizem a realidade do sujeito, considerando
ludicidade que contribuiu para melhoria do entendi- suas alteridades, sendo um trabalho necessário a
mento de grande parcela dos alunos. inter-relação entre família, escola e aluno. Xavier
(2012, p. 68) firma essa ação ao dizer que:
Esse movimento de adequar ferramentas para esti-
mular os alunos, foi um desafio durante a elaboração Cabe aos professores juntamente com
da intervenção, é necessário conhecer a diferença a família, formar cidadãos, indivíduos
de cada sujeito, num trabalho minucioso adequan- com condições de tomarem iniciativas
do a ferramenta ao sujeito. Assim, a criatividade do e de sobreviverem da forma mais inde-
estimulador, se faz como articulador do processo,
pendente possível em nossa socieda-

122 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


de. É no espaço escolar que o sujeito A utilização de jogos de forma educativa, é previsto
terá condições de entrar em contato nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS) e
com outras formas de sobrevivência. ainda traz outras políticas educacionais que con-
tribuem para eficiência e atualização da educação.
Assim, os agentes educacionais devem tomar cui- Representam um referencial para garantia de quali-
dado sobre as estratégias a serem utilizadas para dade do ensino estabelecendo transformações nos
buscarem ser facilitadores da aprendizagem, de modo modos de atuação. Se mostra como metodologia
que desenvolva suas potencialidades e consequente- capaz de facilitar as interpretações, iniciativas, inte-
mente a construção do conhecimento. Como o autor rações, criatividade, evocações de habilidades nos
supracitado diz “Aprender a aprender, aprender a alunos à luz do aprender. Para tanto foram utilizados
fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos” (p. 68). condicionantes psicológicos, ambientais, e técnicos
que puderam integrar a consecução.
Consideramos que a própria ação da criança num
ambiente estimulador produzido por tais agentes, Esta esfera que permite criar desafios com jogos,
possibilitam a superação das dificuldades no apren- proporciona produzir um trabalho reflexivo sobre as
dizado em direção ao desenvolvimento cognitivo e metodologias existentes nas escolas públicas e as
social. Assumindo assim, a posição de psicopedagogo formações de professores e psicólogos há uma pers-
aplicado com a sensibilidade, seriedade e dever ético pectiva holística e crítica, aprimorando intervenções
que produz um profissional promotor de qualidade e ferramentas para produção de uma aprendizagem
de vida aos alunos. significativa.
Porém, tais formações acadêmicas ainda necessi-

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir que a intervenção realizada
tam ser repensadas pois, a construção de práticas
hegemônicas que normaliza, naturaliza, exclui su-
jeitos e despersonaliza-os, cria condições que vão
com os alunos sob a perspectiva de Gardner a partir responsabilizar a família e o sujeito-problema.
das inteligências múltiplas, puderam estimular os pro-
O que é fundamental mostrar, é que existem outras
cessos de aprendizagem, as habilidades intelectuais
formas de realizar a avaliação psicológica comple-
e sociais, bem como possibilitar o desenvolvimento
mentando os processos de diagnósticos utilizando-se
de competências sociais numa ótica preventiva aos
de uma nova visão, a psicopedagógica, consideran-
alunos com deficiência intelectual.
do suas práticas de entendimento de sujeito plural
Destaco que o ensino voltado ao atendimento educa- e ferramentas diversas, produzindo atuações em
cional especializado (AEE) prevê de recursos materiais respeito às alteridades dos alunados bem como a
e humanos para construção de práticas diversificadas estimulação do processo de aprendizagem em di-
de modo a considerar a atenção sob um movimento álogo a Pedagogia, também de forma preventiva.
complementar, multidisciplinar e multiprofissional com
Assim, permite criar um processo educacional eficaz
os agentes educacionais. Na medida que a aprendi-
que proporcione não só o aprender, mas promoção
zagem favorece a relação entre o mundo do sujeito
de condições para autonomia do aluno com defi-
ao mundo do aluno, cria condições que possibilitem
ciência a luz da promoção de qualidade de vida,
a aprendizagem significativa.
consequentemente, a resultados quantitativamente
Como área integrada a tais relações, a psicopedago- e qualitativamente melhores aos interessados.
gia serve como ferramenta de intervenção e análise,
A estimulação na escola foi o princípio das condições
pois puderam construir espaços integrados eficazes
do aprender, porém, a família é agente responsável
para estimulação dos alunos, frente as demandas de
por permitir condições extraescolares que continuem
ensino-aprendizagem, desenvolvendo condições na
o trabalho de explorar os alunos e suas inteligências,
busca de novas estratégias para a avaliação psico-
favorecendo uma comunicação entre escola e comu-
lógica e pedagógica, considerando sujeito autônomo
nidade eficiente, criando práticas e recursos próprios
atuante deste processo.
que vão prosseguir com o trabalho psicoeducacional
A Psicologia Escolar/Educacional sob este enfoque, utilizando de seu resultado para circunstâncias inte-
diversifica as práticas primitivas no começo de sua gradas a produtivas a luz da construção de autonomia
construção história nas escolas de avaliação psico- e desenvolvimento do aluno.
lógica mensurada, para complementar a ferramenta
de análise às demandas do ensino-aprendizagem,
permitindo criar condições atuantes num caráter dife-
REFERÊNCIAS
renciado conhecendo o mundo externo e interno do
aluno a partir de seus exercícios extra e interescolar
Antunes, C. (2014). Jogos para estimulação
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Medeiros, A. M. R. R.; Puccineli, R. M. S.

124 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
17

ESTRESSE E ANSIEDADE: ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS

RESUMO
O termo estresse denota o estado gerado pela percepção de estímulos
Rafaela Brito
UNAMA
que provocam excitação emocional e, ao perturbarem a homeostasia,
disparam um processo de adaptação caracterizado, entre outras
Larissa Soares
alterações, pelo aumento de secreção de adrenalina produzindo
UNAMA
diversas manifestações sistêmicas, como distúrbios fisiológicos e
Lorena Paulino psicológicos. (Margis, Picon, Cosner e Silveira 2003) A ansiedade é um
UNAMA
sentimento vago e desagradável de medo, apreensão, caracterizado
Emília Damasceno por tensão ou desconforto derivado de antecipação de perigo, de
UNAMA
algo desconhecido ou estranho (Castillo; Recondo; Asbahr e Manfro
2000). Situações de estresse e ansiedade implicam a ativação
principalmente do sistema nervoso autônomo [SNA (feixe simpático)]
e do sistema nervoso periférico (SNP). Seus efeitos são: aumento do
ritmo cardíaco, aumento da pressão arterial, secura na boca, sudorese
intensa, “nó” na garganta, efeitos relacionados ao funcionamento
do SNA, formigamento dos membros, dilatação das pupilas e
dificuldade para respirar, com relação ao SNP. Neurotransmissores
como a adrenalina e noradrenalina são ativados durante situações de
estresse e ansiedade o que ajuda a aumentar e manter a atividade
adrenérgica somática. Sobre os transtornos de ansiedade, é lícito
imaginarmos que a interação de fatores ambientais (os eventos de
vida estressores) com predisposição genética para transtornos de
ansiedade, modulada pelas capacidades do sujeito em lidar com
estes estressores, determinada também geneticamente, resultaria
no surgimento de um transtorno de ansiedade. (Margis;Picon;Cosner
e Silveira 2003).

Palavras-chave: Ansiedade; Adrenalina; Estressores; Res-

posta Somática.
10.37885/200400039
1. INTRODUÇÃO Assim, os sintomas surgem como um resultado da
existência de níveis elevados de ansiedade, ou seja,
O termo estresse denota o estado gerado pela um alerta de que as tensões internas no indivíduo
percepção de estímulos que provocam excitação não estão sendo aliviadas adequadamente. Quan-
emocional e, ao perturbarem a homeostasia, dis- do acumulada, a forma encontrada para equilibrar
param um processo de adaptação caracterizado, o aparelho psíquico é a descarga dessas tensões
entre outras alterações, pelo aumento de secreção no próprio corpo por meio de sintomas. Podemos
de adrenalina produzindo diversas manifestações inferir que o tipo de resposta de cada pessoa de-
sistêmicas, como distúrbios fisiológicos e psicoló- penderá não somente da grandeza e frequência de
gicos. (Margis, Picon, Cosner e Silveira 2003) A determinado evento estressor, mas da junção de
ansiedade é um sentimento vago e desagradável fatores genéticos e ambientais. A resposta para en-
de medo, apreensão, caracterizado por tensão ou frentar o evento estressor, será determinada a partir
desconforto derivado de antecipação de perigo, de de componentes cognitivos, emocional e fisiológico.
algo desconhecido ou estranho (Castillo; Recondo; Quando o indivíduo consegue eliminar ou solucionar
Asbahr e Manfro 2000). Situações de estresse e a situação que ocasionou o estresse, acarretará em
ansiedade implicam a ativação principalmente do uma diminuição dos sintomas fisiológicos que foram
sistema nervoso autônomo [SNA (feixe simpático) ] ativados pelo evento estressor. Logo, se a resposta
e do sistema nervoso periférico (SNP). Seus efeitos ao estresse gerar ativação fisiológica frequente e
são: aumento do ritmo cardíaco, aumento da pres- duradoura ou intensa, poderá levar a um esgota-
são arterial, secura na boca, sudorese intensa, “nó” mento dos recursos do sujeito, com o aparecimento
na garganta, efeitos relacionados ao funcionamen- de transtornos psicofisiológicos diversos, podendo
to do SNA, formigamento dos membros, dilatação predispor ao aparecimento de transtornos de ansie-
das pupilas e dificuldade para respirar, com relação dade entre outros transtornos mentais. Constatamos
ao SNP. Neurotransmissores como a adrenalina e também, que o surgimento de um transtorno está
noradrenalina são ativados durante situações de diretamente relacionado à frequência e duração de
estresse e ansiedade o que ajuda a aumentar e respostas de ativação provocadas por situações que
manter a atividade adrenérgica somática. Sobre os o sujeito avalia como estressoras para si. Apesar
transtornos de ansiedade, é lícito imaginarmos que de diversos estudos avaliarem essa relação entre a
a interação de fatores ambientais (os eventos de ocorrência de eventos estressores e o surgimento de
vida estressores) com predisposição genética para sintomas que possam caracterizar ansiedade, existem
transtornos de ansiedade, modulada pelas capaci- poucos dados disponíveis atualmente na literatura.
dades do sujeito em lidar com estes estressores, Diversos trabalhos acabam por sugerir que enfoque
determinada também geneticamente, resultaria no nos estudos levem em consideração os aspectos
surgimento de um transtorno de ansiedade. (Mar- etiológicos, para que seja melhor avaliada a relação
gis;Picon;Cosner e Silveira 2003). causal entre a exposição a diferentes eventos de
vida estressores e o surgimento de sintomas de an-

2.OBJETIVO
siedade, bem como de transtornos ansiosos. Nesse
sentido, o reconhecimento desta relação causal terá
implicações práticas tão relevantes como a preven-
Realizar um levantamento bibliográfico para a ção de transtornos ansiosos e o estabelecimento de
identificar a relação entre o estresse e a ansiedade, estratégias de tratamento.
as suas causas e como o corpo reage frente a esses

5.CONCLUSÃO
transtornos.

3.METODOLOGIA
Foi realizado um levantamento bibliográfico na
Dado o reconhecimento de que, quadros de
estresse e ansiedade ativam principalmente o sistema
nervoso central e o SNP, torna-se clara a interferência
busca de artigos que contenham informações sobre que os sintomas destas patologias podem causar no
a relação entre ansiedade e estresse, focando em funcionamento do indivíduo, uma vez que, podem
seus aspectos fisiopatológicos. Para isso foram uti- afetar funções vitais do ser humano, como: respi-
lizados como critérios de seleção artigos na base ração, circulação sanguínea, e até na transmissão
de dados Scielo. de impulsos nervosos. Entende-se que o estresse,
comumente, atua como coadjuvante em quadros

4.RESULTADOS E DISCUSSÕES
de ansiedade, podendo até mesmo, surgir através
da ansiedade exacerbada. Assim como, fatores es-
tressores em grande incidência, são ameaças para
Como falado anteriormente, a ansiedade carac- o aparecimento de diversos transtornos ansiosos.
teriza-se como uma resposta somática do estresse. Importante considerar, além dos aspectos fisiopa-

126 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


tológicos, também os determinantes ambientais e
genéticos que permeiam o ser humano (como predis-
posição genética e hereditariedade). Portanto, trans-
tornos ansiosos podem naturalmente estar ligados
ao estresse, visto a sobrecarga que os eventos deste
ocasionam, gerando assim patologias e respostas
deturpadas do organismo. Isto influencia evidente-
mente na qualidade de vida dos sujeitos, pois estes,
além de sofrerem com os já conhecidos sintomas
psicológicos originários do transtorno de ansiedade,
podem sofrer ainda com os sintomas orgânicos. Além
disso, conhecer como se correlacionam estresse e
ansiedade, faz-se necessário o levantamento integral
entre fatores gerais que permeiam o indivíduo, para
que tais fatores sejam incorporados posteriormen-
te, ao estudo das funções anormais ou patológicas
deste, ou seja, seu quadro fisiopatológico particular.

REFERÊNCIAS
MARGIS, Regina; PICON, Patrícia; COSNER,
Annelise Forme et al. Stressfull life-events,
stress and anxiety. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul
[online]. 2003, vol.25, suppl.1, pp.65-74. Dis-
ponível: http://www.scielo.br/pdf/rprs/v25s1/
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CASTILHO, A. R. G. L., RECONDO, R., AS-


BAHR, F. R., & MANFRO, G. G. (2000).
Transtorno de ansiedade. Revista Brasileira
de Psiquiatria [Suplemento: Saúde mental
na infância e adolescência], 22,20-23. Dis-
ponível:http://www.scielo.br/scielo.php?pi-
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arttext. Acesso em 19/03/2019.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 127


CAPÍTULO
18
EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE INÁCIO DE LOYOLA E A
PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL

RESUMO
Os EE (exercícios espirituais) são um instrumento de mudança, e
Maria Teresa Moreira
Rodrigues quer passem por uma eleição de vida ou mesmo por um crescimento
SBPSP/PUC espiritual, neles está em jogo uma conversão, que é a versão teológica
da mudança psíquica. Vividos “com grande ânimo e liberalidade”,
levam sempre a experimentar uma humanidade, que implica uma
transformação do ego, numa trama psíquica e espiritual, em diferentes
níveis. Aquele que busca os EE traz, quer queira quer não, uma
histórica psíquica que o condiciona, bloqueando ou libertando; fazer
os EE é colocar essa sua história humana dentro desse itinerário que
o transformará, integrando todas suas dimensões pessoais. Aquele
que “dá os EE” acompanha aquele que “os faz” com enorme respeito
à sua liberdade, oferecendo-lhe seu senso comum, seu realismo, seus
conhecimentos, sua experiência, e contempla a viabilidade humana,
consciente do mistério de Deus. A Psicologia aqui considerada não é
um luxo e nem leva a um individualismo intimista; ela está a serviço
da comunidade humana, pois não se esquece de que o exercitante
dos EE é uma pessoa solidária, fruto e agente de uma história, que
a chama a se libertar, mas vinculada a um povo, no seguimento de
Jesus.

Palavras-chave: Inácio de Loyola; Psicanálise e Religião;

Psicanalise e Fé;
10.37885/200400164
Maria Teresa Moreira Rodrigues¹ é um mundo invisível. “Ver o que está por trás” de
todas as coisas é o mesmo que não ver nada.
A Psicanálise é uma disciplina extremadamente ín-
tima, e de sensibilidade e habilidade. A prática da Carl S.Lewis⁴
psicanálise converte essa intimidade em uma relação
especializada entre duas pessoas, as quais, através
da mesma natureza de sua exclusividade, transfor-
mam-se mutuamente. A primeira coisa que quero
dizer acerca do trabalho refletido nestes escritos,
é que meus pacientes têm me ajudado a conver-
ter e personalizar meu pensamento, afetividade e
1.OTRABALHO
SENTIDO E O PORQUÊ DESSE

esforço potenciais, em uma forma de vida que me Así voy devolviendole a Diós unos cen-
é profundamente satisfatória. Se tivesse seguido tavos del infinito caudal que me pone
outra carreira, talvez minha vida tivesse sido mais en las manos.
cheia de acontecimentos e variada, mas não teria Luna de enfrente. Jorge L. Borges⁵
sido mais completa. A relação com meus pacientes
tem-me ensinado a humildade e a necessidade do Este trabalho não pretende apresentar em sua com-
outro para eu ser e converter-me em mim mesmo. plexidade já tão decantada, as relações possíveis
M.Masud R.Khan² entre Psicanálise e Religião, Psicanálise e Fé. Nunca
foi fácil o diálogo entre elas pelas posições pré-es-
Assim como uma mesma partitura pode ser interpre- tabelecidas, pelo medo e preconceitos, e mesmo
tada de formas diversas por diferentes maestros, os por mecanismos de ordem inconsciente que têm
Evangelhos são sempre os mesmos, porém conti- impedido o enfrentamento com disposição suficiente
nuamente animados pela sensibilidade, pela história para escutar o que a outra parte diz. “Os psicanalistas
pessoal e pela ciência de cada um. Uma escritura-fala têm sido particularmente cegos frente ao tema da
que renasce, linguagem própria a cada homem, cuja religião”, já afirmava Bion. E as pessoas que creem
veia jamais se esgotará, linguagem criadora de sua precaveram-se e resguardaram-se da Psicanálise,
vida e de sua dignidade. Não pretendo compreender sentindo-a como uma fúria poderosamente icono-
a totalidade desses escritos, que permanecem uma clasta. A despeito da cegueira e da desconfiança,
revelação espiritual. E a psicanálise trata da psicologia; ambas terão que manter um diálogo interminável,
ela propõe uma leitura que responde aos “comos” como nos diz Domínguez Morano: “A questão entre
e “porquês” de certas atitudes e comportamentos; elas coloca-se de modo radicalmente novo cada vez
não trata do que é espiritual, pois este imprime o que alguém fala, e enuncia seu Credo. A psicanálise
movimento da reivindicação profunda do coração nunca pretenderá contar de antemão com a inter-
humano: a busca da verdade, o insondável sonho pretação deste dizer, e nunca tampouco aquele que
de justiça, o culto da beleza, o encontro com Deus. crê poderá esquivar-se da pergunta que se oculta
De qualquer forma, a psicanálise pode, no entanto, por baixo desse dizer ⁶.”
alertar leitores indiferentes a esses manuscritos e
tirar da rotina aqueles que com eles estão familia- Pretendo apenas apresentar a experiência pessoal
rizados demais. que tive com os Exercícios Espirituais (doravante
EE) de Inácio de Loyola, e o que inferi e estudei
Françoise Dolto³ dele, mas sempre reconhecendo a psicanalista que
existe em mim, e lembrando-me das marcas dessa
Não há nenhuma utilidade em tentar “enxergar o
longa jornada profissional.
que está por trás” dos primeiros princípios. Se você
“enxergar o que está por trás” de todas as coisas sem Compartilho com meus pares psicanalistas o que
exceção, então tudo se tornará transparente para tenho vivido e estudado, mesmo que fora de nossa
você. Mas um mundo completamente transparente área de conhecimento, por entender que assim de-

¹ Membro Associado da SBPSP. Mestre em Ciências da Religião pela ⁴ Verso anotado da placa em frente ao prédio em que Borges morou.
PUC-SP. Buenos Aires. Julho de 2011.
² KHAN, M. Masud R., La intimidad del sí mismo. Madrid, Editorial ⁵ LEWIS, Carl S. A abolição do homem. São Paulo, SP: Martins
Saltés, 1980, p. 9, Prefacio. A tradução é um exercício livre da autora, Fontes, 2010, p. 77.
assim como o são os itálicos. ⁶ DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psiconálisis y religiíon: el diálogo
³ DOLTO, Françoise. A fé à luz da psicanálise. Campinas, SP: Verus, interminable. Madrid: Editoral Trotta 2000. Há uma tradução para o
2010, p. 7-8. português, editada pelas Edições Loyola.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 129


vemos proceder quando temos consciência e clareza “pelo santo de olhos marejados⁹” , Barthes chama
do que nos foi dado e que, portanto, deve também Inácio apenas de Loyola, em sua inspiradora leitura
ser doado. Agradeço a todos os que me ajudaram do texto dos EE, no livro Sade, Loyola e Fourier¹⁰.
a fazer com que esse caminho fosse possível; e
Para a psicanalista era possível apreender a tensão
gratidão implica em reconhecer que nada somos
psíquica que subjaz ao processo dos EE, e que re-
sem a companhia daqueles que nos querem bem, e
mete o exercitante não só a uma busca da vontade
mesmo daqueles que não nos querem bem. Afinal,
divina para sua vida, mas também a uma busca de
necessitamos de todos os que trabalham e lutam
si mesmo. Desde o início foi possível apreender a
conosco no acontecendo de nossas vidas!
movimentação psíquica que Inácio viveu, e deixou
Estar aqui é parte de um caminho que começou há entrevista em suas Regras de Discernimento, avi-
oito anos. Têm sido anos de viver, dar e estudar sos que deixou para nos ajudar na compreensão
Inácio e os EE, num contato intenso e ininterrupto. de nós mesmos, desde nossos afetos ordenados e
Encontrei-me com Inácio sem tê-lo buscado. Busca- desordenados. Freud, desde sua compreensão do
va algo que me transcendesse e que desse sentido funcionamento psíquico, estruturou uma teoria que
diverso ao que eu vivia, além de buscar algo que nos permite entrever o que se passa internamen-
pudesse apaziguar o sentimento de desamparo que te, em nossos afetos ordenados e desordenados.
em mim permanecia, a despeito do que a Psicanálise Inácio, desde sua vivência, estruturou um método
já me dera. Para o que clamava em meu interno, eu que nos permite ordenar esses diferentes afetos,
intuía que ela já não tinha recursos a oferecer-me. com a força psíquica que a motivação de buscar a
Conforme caminhei e olhei para trás, fui compreendo interlocução com a divindade é capaz de gerar. No
o que se passava em mim. Ajudaram-me as palavras entanto, naqueles inícios, o que tinha primazia sobre
de Françoise Dolto: mim era a vivência trazida pelos EE, e se sobrepu-
nha a qualquer motivação para olhar os EE sob a
(...) É sempre depois dos fatos que ótica da Psicanálise. A aproximação entre os EE e a
se analisa. Raras são as previsões. Psicanálise estava em mim, mas desde a experiên-
Sim, o sentido chega depois à nossa cia como pessoa e como profissional. Só depois de
consciência como uma realização em passados sete (7) anos é que pude “pensar” os EE
movimento de um sentido inconscien- com a Psicanálise. Compreendo que era necessário
“viver” o objeto, antes de “estudá-lo”. Tomo para mim
te que guiou nossos passos, falsos ou
as palavras de Eduardo Montagne¹¹ :
verdadeiros, no dia a dia⁷.
Só poderemos reconhecer o sentido
(...) este trabalho é de alguma manei-
com algum recuo, quando desprendi-
ra, um testemunho pessoal: nele quero
dos de nossa ação, estaremos menos
deixar refletido algo do encontro que,
tomados por nossa paixão de agir. (...)
no meu mundo interno, tiveram duas
E é no silêncio que se segue, quando
correntes poderosas de pensamento
a última palavra já foi pronunciada, que
e de inspiração espiritual e intelectual.
a frase libera seu sentido. É portanto
Desejo simbolizá-las em duas persona-
no silêncio, que o sentido se manifesta.
gens, separadas por 383 anos, e apa-
Ele nasce dentre as palavras mortas.
rentemente por perspectivas e lugares
Depois⁸.
muito diferentes: Inácio de Loyola
(1491-1556), fundador da Companhia
Assim como um dia fui “tocada” pela Psicanálise e
por Freud, depois o fui pelos EE e por Inácio. Assim de Jesus, e Sigmund Freud (1856-
como se faz “formação” em Psicanálise, fui fazendo 1939), criador da psicanálise. Inácio
minha formação nos EE. Como parte também desse tem inspirado minha atitude de fé e
caminho de vivência, estudo e formação, fiz o Mestrado
em Ciências da Religião na PUCSP, tendo terminado
em maio de 2011, com o trabalho: Os EE de Inácio
de Loyola: uma revisão do texto e um diálogo com
Roland Barthes. Deixando entrever sua simpatia
⁹ BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola, p.XXIII.
¹⁰ BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
¹¹ Eduardo Montagne é membro associado da Sociedade Peruana de
Psicanálise, tendo sido jesuíta por lonhos anos. Tem um valioso artigo
⁷ DOLTO, Françoise. A fé à luz da psicanálise, p. 25. e conversa com Moisés lemlij, no livro Beyond belief: psychotherapy
⁸ DOLTO, Françoise. A fé à luz da psicanálise, p. 27. and religion, editado pela Karnak Books (nota da autora deste trabalho.

130 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Freud minha atitude científica. Ambos muçulmano em solo espanhol. Embora hoje todo o
me ensinaram, de modos diferentes, legado islâmico seja valorizado e tenha se tornado
mas não necessariamente contrapos- relíquia, naquele tempo o povo árabe era malvisto
tos, o valor e o significado do encon- e odiado, tidos como déspotas estrangeiros e infi-
tro com meu próprio mundo interno, éis. Daí talvez o entusiasmo em levar o Evangelho
como meio indispensável para conhe- também a terras muçulmanas.
cer a realidade exterior e localizar-me Vale lembrar que enquanto Inácio era cavaleiro e
nela. E penso que ambos podem ter cortesão, quase sem conhecimento da Alemanha e
muitas coisas em comum, muito além com pouco interesse pela espiritualidade, surgiam
das divergências históricas, culturais e Martinho LUTERO e seu protesto contra a Igreja
religiosas que os separam no tempo e Católica (Wittenberg,1517), assim como o reformista
no espaço¹². João CALVINO (1509-1564). É na década de 1520
que Inácio inicia sua caminhada de peregrino pela

2.BREVÍSSIMO OLHAR SOBRE INÁ- própria Espanha, e indo depois para Jerusalém. No
CIO E SEU TEMPO entanto, entre 1526 e 1538, durante viagens e es-
tudos, ele já se inteira dos problemas religiosos de
A espiritualidade de Inácio foi moldada não só por seu tempo, vivendo estas controvérsias em Paris,
sua experiência religiosa, mas também pelo mundo na década de 1530. Numa breve visita à Inglaterra,
em que vivia; sua história pessoal e seu contexto mendigando dinheiro para pagar as taxas universitá-
social deram forma e direção ao seu modo de enten- rias, convive com o tumulto generalizado provocado
der e viver a vida cristã, além de ser também fonte pelo casamento do rei, que provoca a separação
para suas tentativas de resposta aos problemas e da Igreja, e quando também Tomás MORE é exe-
necessidades do mundo de seu tempo. cutado (1535). Depois, entre 1537 e 38, ele e seus
companheiros de então, caminharam entre Paris e
Inácio nasceu em 1491: tempo de horizontes geo- Roma, também convivendo com as controvérsias e
gráficos em expansão. Na sua meninice, Cristóvão desgastes da Igreja. Lembremos sua experiência com
Colombo descobriu América, enquanto outros des- a Inquisição (em Alcalá, Salamanca e Toleco), suas
cobriram a rota marítima para as Índias. Enquanto viagens prolongadas, seus estudos, suas relações
ele ia se expandindo em sua vida pessoal, tanto em com dignatários religiosos; tudo foi dando a ele co-
tempos de cavaleiro, jovem cortesão, soldado, como nhecimento direto dos problemas e das necessidades
de peregrino solitário e estudante, a costa leste da dos cristãos contemporâneos. Sua espiritualidade
América era explorada e também se expandia. Inácio orientada para o serviço foi sua resposta a essas
não só acompanhava estes acontecimentos, como necessidades.
inclusive teve um irmão que seguiu as expedições
espanholas e morreu na América. Quando em ROMA, de 1538 até 1556 (ano de sua
morte), Inácio conviveu com a efervescência das
Muitos anos depois, já na década de 1540, quando artes, embora demonstrasse pouco interesse por
superior geral da Companhia de Jesus, enviou mis- elas. Na pintura: Ticiano, Palladio, Cellini e Tintoreto;
sionários à Índia e ao Japão. Importante ressaltar a em 1541, Michelangelo concluiu o teto da Capela
diferença entre o tempo de Inácio e o de hoje; essas Sistina. Na música, Palestrina tornou-se diretor de
viagens de conquista não geravam o questionamento música na Basílica de s.Pedro. No entanto, seu in-
moral que hoje despertariam; pelo contrário, rece- teresse estava depositado em outra área, plena de
biam as bênçãos da Igreja e homens e missionários criatividade: “a nova aprendizagem”, e que parecia
partiam em grande número. ameaçar a ordem antiga. Inácio deixou um legado
de muitas escolas, instaladas na década de 1550,
Outro fator da época a moldar e influenciar a espi-
que era uma estratégia pastoral aberta ao novo;
ritualidade de Inácio: em 1492, os exércitos do rei
a partir da educação, satisfazia as necessidades
e da rainha da Espanha puseram fim ao domínio
intelectuais, espirituais, morais e sociais da época,
assim como o continuou fazendo.

¹² MONTAGNE, Eduardo. “Identidad espiritual y psicoanálisis. Una


3. A RETOMADA DOS ESTUDOS
SOBRE A ESPIRITUALIDADE INA-
CIANA, E SUA CONTEMPORANEIDADE
aproximación psicoanalítica a la autobiografía de San Ignacio de COM O DESENVOLVIMENTO DA PSICA-
Loyola”. In: ALEMANY, Carlos e GARCÍA-MONGE, José A. (ed.)
NÁLISE
Psicología y ejercicios ignacianos. Colección Manresa, v. 5/6, Bilbao/
Santander:Mensajero/Sal Terrae, s/d, 2v. p.253-270, p. 254. Os
negritos são da autora deste trabalho.
Interessante pensar que enquanto Freud publicava

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 131


alguns de seus primeiros textos, como A interpreta- referente à família, gênero e trabalho.
ção dos sonhos e Psicopatologia da vida cotidiana, Diariamente, pessoas viram o curso
a Companhia de Jesus (ordem religiosa fundada violento de irreconciliáveis guerras lo-
por Inácio de Loyola) lançava a MHSI (Monumenta cais e imagens de tortura desumana.
Historica Societatis Iesu¹³ ), em Roma (1894), bus- (...) Todo mundo precisava de um lugar
cando resgatar as origens e gerando grande anima- para narrar sua história. E pareceu que
ção investigativa. Assim, já desde o início do século uma metade do mundo estava pergun-
XX, peritos jesuítas vinham traduzindo e estudando
tando: Quem sou eu?¹⁴
os Exercícios Espirituais em seu original, buscando
ser mais fiéis às diretrizes originais de Inácio. Com
Joseph Tetlow, responsável por um dos manuais mais
a popularidade que os EE foram ganhando, com as
conhecidos e usados para dar os EEVC, continua:
demandas que se faziam pelas mudanças culturais
e pelo “aggiornamento” que o Concílio Vaticano II
estimulava, as respostas que os entendidos já sabiam E tudo provém dum manual que tem
tornaram-se mais conhecidas. A partir da década de a idade de quatrocentos e cinqüenta
1960, publicações que já vinham sendo feitas há anos. (...) E visto que, cada vez mais,
vinte e cinco (25) anos, espalharam-se por muitas o livro é melhor compreendido, a ex-
línguas e países, como a publicação do livro dos periência espiritual oferecida se torna
Exercícios Espirituais, do Diário e das Cartas de sto. mais acessível para todas as culturas.
Inácio. Conheceu-se mais sua obra e ampliou-se Talvez, isto seja porque o diretor dos
a possibilidade de seguir suas diretrizes iniciais, a EE tem de ser, em primeiro lugar, um
partir da experiência espiritual e emocional que os ouvinte. Isto pode ser a mais impor-
EE propõem. tante atividade no milênio¹⁵.
Desde as últimas décadas, o laicato (grupo de leigos)
vê-se intensamente comprometido com o “Ministério O que dá os EE tem que ser um ouvinte. O psica-
dos EE”, sobretudo com o dos EEVC, acompanhando nalista é o que ouve, e desde sua atenção flutuante
não só a leigos, mas também a clérigos e religiosos, pode dar outra composição às associações livres
não só cristãos, mas também aos não cristãos, numa de seu paciente. A Psicanálise é um método que
experiência profunda de contato consigo mesmo, demanda a arte da escuta. Os EE são um método,
sobretudo com a constatação do quanto isso se fazia e que também demanda a arte da escuta. Tanto nos
necessário. EE como na Psicanálise, é a escuta quem permite a
fala, assim como a fala pode levar à escuta! Acontece
apenas que, enquanto psicanalista e paciente estão
A prática [dos EE], influenciada muito
atentos à “fala” do inconsciente, quem dá e quem faz
pela orientação psicológica competen-
os EE estão atentos à “fala” de Deus. Assim como o
te, foi oferecida na situação de comu-
psicanalista não “pode por o que não está ou o que
nicação pessoal e individual. Foi impul- está” no inconsciente de seu paciente, aquele que
sionada também pela sensibilidade de dá os EE não pode intervir no que se passa entre
que indivíduos precisavam trabalhar “Criador e criatura”, na experiência de comunicação
para realizar suas próprias pessoas, e oração. Aquele que fala é o agente do seu próprio
necessidade que uma cultura globa- processo, embora não possa prescindir daquele que
lizante acentuou, visto que a mesma o escuta, condição para viver sua relação quer seja
enfraqueceu os papéis estabelecidos, apenas com o inconsciente, ou com Deus, desde o
mais profundo de si mesmo.

4. OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E A
PSICANÁLISE
¹³ MHSI: A Monumenta Historica Societatis Iesu encontra-se hoje em
Roma, ao lado da Cúria Geral dos Jesuítas, mais precisamente no Dizer algo sobre a relação entre os EE (como iden-
Instituto Histórico da Companhia de Jesus. Esta grande coleção é
tidade espiritual gerada pelo processo dos EE) e a
fruto do desejo dos Padres, em 1892, reunidos na Congregação Geral
XXIV, de ver estudados e publicados os documentos que tratam das
origens da Companhia de Jesus, de sto. Inácio e seus companheiros
e colaboradores, das Constituições, Pedagogia e missões na Ásia
e América. Na ocasião, o então Padre Geral Luis Martin recebeu ¹⁴ TETLOW, Joseph A. Os exercícios espirituais no século XX, texto
a incumbência de realizar esse desejo de toda a Companhia. fotocopiado, sem referência.
Constituiu-se uma equipe internacional para iniciar a coleção, que teve ¹⁵ TETLOW, Joseph A. Os exercícios espirituais no século XX. Os
a sua 1a publicação em Madri, no ano de 1894. itálicos e negritos são da autora do trabalho.

132 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Psicanálise, pode despertar reservas e desconfianças, homem de fé, em termos de uma identidade espiri-
tanto por parte de teólogos como de psicanalistas, tual marcada por uma contínua busca da Vontade
cada grupo sentindo o outro como um invasor de de Deus, através do discernimento, e que o leva a
seu campo. Apesar de todo o avanço já alcança- discriminar aquilo que “é de Deus” do que “não é de
do no diálogo interdisciplinar, ainda existe bastante Deus”. O discernimento é central na espiritualidade
reserva entre as pessoas de fé e os psicanalistas. inaciana, e exatamente porque Inácio experimentou
Talvez ambos os grupos tendam a desenvolver um as inúmeras ocasiões em que se pode enganar a
sistema de pensamento à margem de toda crítica ou si mesmo, acreditando que “é de Deus” aquilo que
de toda interpelação provenientes do “outro campo”, não é, e que não passa de um mero fruto das pró-
respectivamente tido como desqualificado em relação prias circunvoluções mentais. Inácio tinha apenas
à sua própria lógica. Tentar então uma relação entre o conhecimento de seu próprio itinerário espiritual,
fé e psicanálise é situar-se no terreno do desafio a e uma imensa intuição que ele colocou a serviço
qualquer postura irredutível e rígida de ambos os de indagar-se. Assim, podemos afirmar que Inácio
lados, a qualquer preconceito que feche os horizontes apontou-nos para aquilo que trezentos anos depois,
amplos do pensamento humano, a toda tentativa Freud estruturaria numa complexa teoria: as moti-
de bloquear o afã de investigação e paixão pelo vações inconscientes.
encontro, pelo diálogo e pela confrontação.
É verdade e de fácil constatação, que tanto Inácio 4.1 O DISCERNIMENTO EM INÁCIO
como Freud fizeram de sua experiência pessoal e
das particulares circunstâncias de suas vidas, as- Numa época ainda pré-científica, Inácio teve uma
sim como das vicissitudes de seu mundo interno, enorme percepção psicológica, como fruto de sua
uma permanente fonte de inspiração não só para própria experiência interna. O que se chama “dis-
si mesmos, mas também para muitos outros que, a cernimento inaciano” é precisamente o conjunto de
partir do que eles deixaram, continuaram pensando, “regras” e outros escritos que constituem a síntese de
investigando e criando. Inácio deixou o que gene- sua espiritualidade, mas também de sua psicologia, na
ricamente chama-se “espiritualidade inaciana”, um medida em que assinalam com clareza as inúmeras
conjunto de escritos como a Autobiografia, os Exer- variáveis que podem levar a confundir motivações
cícios Espirituais, as Constituições e as Cartas, que inconscientes com “vontade de Deus”, ou seja, podem
tem inspirado a vida dos jesuítas e toda uma corrente levar a confundir o caminho da própria neurose com o
de espiritualidade no mundo dos que crêem. Freud caminho de Deus. Por isso, Inácio sempre nos pede
criou a escola psicanalítica, e através de sua imensa muito cuidado, até mesmo na decisão de “dar” os EE.
produção científica, inspirou uma abordagem com- Para “dá-los” completos [EE 18]¹⁶ , há que considerar
pletamente nova do mundo psíquico, ao descrever o momento pessoal e o grau de maturidade de cada
esse gigantesco “continente” que é o inconsciente, um, levando em conta a possibilidade de fazer uma
no universo mental do ser humano. “eleição”, um caminho de escolhas. Com a mesma
clareza e cuidado, ele também advertia àquele que
Temos que dizer que ambos foram, e em muitos casos dava os EE, para que não se inclinasse por um ou
continuam sendo, incompreendidos por mentalida- outro assunto do exercitante, mas que se mantives-
des pouco dispostas a receber, sem preconceitos se “no meio”, como um peso e medida [EE 15]¹⁷ .
e rejeições viscerais, o novo que vai surgindo em E isso para não o influenciar inadequadamente, e
cada época, mas que constitui de alguma maneira, muito menos intervir com seu pensar, na decisões
o impulso aos grandes saltos que o pensamento que surgem durante o caminho do processo dos EE.
humano dá, de quando em quando. E podemos dizer É algo parecido com o que na técnica psicanalítica,
também, que quem pretende estar aberto a todas constitui a “neutralidade”, condição indispensável a
as manifestações do espírito humano, sem fechar-
-se a nenhuma delas antes de examiná-las, poderá
encontrar com certeza, tanto em Inácio como em
Freud, dois modelos de atitude de busca, de inda- ¹⁶ [EE 18] Anotação 18: “Os exercícios espirituais devem ser aplicados
gação paciente e incansável, de exame minucioso conforme a disposição das pessoas que desejem recebê-los, isto é,
da realidade interna e externa, em prol de uma visão conforme a sua idade, instrução ou talento, para que não se deem, a
coerente e responsável do que é o ser humano, seu quem é rude ou de pouca resistência, coisas que não possa suportar
lugar e finalidade neste mundo. sem fadiga, e de que não possa tirar proveito. Por outro lado, dar-se-á
a cada um, segundo queira dispor-se, aquilo de que mais se possa
Podemos pensar que Inácio e Freud, desde suas ajudar e aproveitar. (...)”.
perspectivas e convicções pessoais, nos ensinam ¹⁷ [EE 15] Anotação 15: “Aquele que dá os exercícios não deve induzir
a abertura ao novo, à busca incansável de novas o exercitante mais à pobreza nem a qualquer promessa, do que aos
perspectivas, à revisão e ao questionamento do já seus contrários, nem a um estado ou modo de viver, mais do que a
vivido e afirmado. Inácio formulará sua atitude como outro. (...)”

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 133


ser mantida em nosso trabalho com os pacientes, ([EE 7]¹⁹ e seguintes), e representa portanto, tudo
durante o seu caminho no processo de sua Análise aquilo que se opõe ao mais autêntico e legitimamente
Pessoal. humano; opõe-se ao dinamismo do desejo, que é o
que pode levar o homem à sua própria realização
Na concepção inaciana, em nenhum caso a experi-
pessoal. Ou seja, em definitiva, o “inimigo da natureza
ência religiosa pode acontecer à margem da experi-
humana” é representação da capacidade de engano,
ência humana. Discernir é não confundir, mas nunca
de fracasso e de morte que cada ser humano traz
é isolar. Uma experiência religiosa pretensamente
em si mesmo; em expressão bíblica, é o “mentiroso”
“pura”, ou seja, isolada do conjunto de experiências
que há em cada um de nós.
humanas, emotivas, existenciais e históricas daque-
le que crê, é simplesmente o mais próximo de um
A partir desta experiência fundamental,
grande engano. Isto supõe que para Inácio, todas
as dimensões da pessoa estão necessariamente deste “insight”, em expressão psicana-
envolvidas na experiência religiosa. O que chamamos lítica, Inácio trará para os homens de fé
“Graça de Deus” apresenta-se em nós atuando sobre que se inspiram em sua espiritualida-
todo o psiquismo; ou seja, toda a estrutura psíquica de, algo fundamental e que poderíamos
fica envolvida e entra em jogo em qualquer decisão, formular desta maneira: aquilo que nós,
atitude ou formulação de tipo moral ou religioso. os que creem, chamamos “Vontade de
Deus” não é algo que venha de Fora
Inácio chegou a estas compreensões observando
e que seja, portanto, completamente
seu próprio mundo interior, em que os afetos tiveram
extrínseco à pessoa, mas sim que ne-
importância decisiva; conforme ele os observava,
cessariamente se insere no Dentro, no
conseguiu uma espécie de desdobramento do seu
Eu: havia um Eu que sentia e um Eu que observa- mundo interno e intrapsíquico, e que
va. As primeiras experiências sobre o que vivia em por conter as representações mentais
seu mundo interno aconteceram durante sua con- da realidade, está em contato com
valescença no Solar Loyola, casa familiar para onde esta.²⁰
voltou ferido e com uma perna destroçada¹⁸ , após
uma batalha inglória contra os franceses. Como não Mas há perguntas que podemos fazer a partir daí:
havia os livros que lhe interessavam, que eram os - Que é esse Dentro acima mencionado? -Como fun-
de Cavalaria, lia os livros que ali estavam, o da Vida ciona o mundo intrapsíquico, e que relação tem com
de Santos e o da Vida de Cristo. Inácio percebeu-se a realidade exterior? - Não haverá aqui um risco de
oscilando entre duas séries diversas de pensamen- subjetivismo, ou de isolamento dos grandes desafios
tos e fantasias: numa série ele se via nas façanhas que nos traz o mundo exterior, de Fora? Essas e
que lia na vida dos santos, e na outra ele se via nos muitas outras interrogações também se colocaram
grandes feitos de batalhas e de amor, próprias dos para Inácio há cinco séculos. E ele respondeu a elas
militares e cavaleiros de sua época e vida. Mas logo à sua maneira, muito mais a partir de sua experi-
se deu conta de que sua reação interna era diferente ência que de uma formulação teórica, embora nos
em cada uma das duas séries de fantasias. Quando tenha deixado um método, sob o qual estão suas
ditou, em terceira pessoa, sua própria autobiografia, intuições sobre o comportamento humano. Freud
Inácio chegou a dizer: “se lhe abriram um pouco os ajudou-nos também com sua experiência pessoal,
olhos e começou a maravilhar-se desta diversidade mas muito mais com a sistematização científica que
e refletir sobre ela. Colheu então, por experiência, fez, ao submergir nesse continente oculto que é o
que de uns pensamentos ficava triste e de outros, mundo psíquico. Tanto para Inácio como para Freud,
alegre. Assim, veio pouco a pouco a conhecer a os grandes momentos e situações que definem as
diversidade dos espíritos que se agitavam [nele], atuações humanas, e em muitos casos o próprio
um do demônio e outro de Deus.” Estavam assim curso da história, estão incrustados neste imenso
estabelecidas as bases do que Inácio viria a chamar continente oculto, e a nós cabe desvendá-lo. Inácio
de discernimento de espíritos.
Para ele, o demônio é o “inimigo da natureza humana”

¹⁹ [EE 7] Anotação 7: “Se o que dá os exercícios vir que o que os


recebe está desolado e tentado, não se mostre duro e áspero para
com ele, mas brando e suave, infundindo-lhe ânimo e forças para ir
adiante, descobrindo-lhe as astúcias do inimigo da natureza humana
¹⁸ LOYOLA, Inácio de. Autobiografia de Santo Inácio (até Manresa) (...)”.
[Introdução e notas de Maurizio Costa, sj]. São Paulo: Loyola, s/d. ²⁰ MONTAGNE, Eduardo. In: Psicología y ejercicios ignacianos. p.
p.31-32 (Aut. 1). 259. Os negritos são meus.

134 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


o fez à sua maneira e inserido em seu tempo, dei- intensos e comportamentos radicais. Tudo dependerá
xando-nos o método que está presente no processo do “material psíquico” com o qual essas representa-
dos EE. Assim deu-se também com Freud, que à sua ções psíquicas foram se configurando nos indivíduos
maneira e tempo, deixou-nos sua escola psicanalítica. e nos povos, ao longo de seus processos biográficos
E é ela que nos dá subsídios para o passo seguinte: ou históricos. Nada talvez desperte tanto amor e
ódio como a religião.

4.2 ASPECTOS PSICOLÓGICOS O radicalismo que possui a formação cultural religiosa


LATENTES NA PROPOSTA DOS EE²¹ é compreendido quanto mais se analisam os fatores
que intervêm em sua constituição e desenvolvimento.
A intenção que está sempre presente quando estuda- As ciências humanas, e particularmente a Psicologia
mos e relemos o texto inaciano é a de sua aplicação profunda, desvelaram os processos primitivos e ar-
para os homens e mulheres de hoje. No entanto, caicos que sempre estão presentes na configuração
isso obriga-nos a tratar de uma questão prévia: a das representações do sagrado. São estes os mes-
das possibilidades e dificuldades que atualmente mos processos que intervêm na constituição do ser
existem frente à experiência religiosa em geral. Isso humano enquanto tal, e enraizados nas estruturas
é necessário porque os EE buscam basicamente afetivas mais primárias e profundas. As representa-
introduzir o sujeito em uma experiência religiosa de ções religiosas nascem no ser humano, costuradas
grande monta, que com certeza pode ser classificada com os primeiros objetos de amor e ódio, é nessa
de “mística”. No entanto, em nossos dias, uma ex- inter-relação que se configura o mais importante da
periência desse tipo coloca-nos, sem dúvida, frente personalidade. Posteriormente, estas representações
a algumas interrogações. poderão ser reelaboradas num nível cognitivo. Mas
poderão inclusive ser negadas, como nas posições
Desde o Iluminismo, a experiência religiosa tem ex- mais acirradas de agnosticismo ou ateísmo. Todavia,
perimentado profunda crise em nossas sociedades permanecerão sempre nos estratos afetivos mais
ocidentais. As transformações sócio-culturais têm sido profundos, mobilizando e determinando as posições
profundas, mas é nelas que a experiência religiosa adotadas frente ao fato religioso. As representações
deve acontecer. Vale lembrar que após o Concílio religiosas nunca são alheias a estes “objetos internos”.
Vaticano II, a evolução e as mudanças do pensamento A força e o potencial, que o acontecimento religioso
teológico foram muitas e aceleradas. E ainda temos sempre teve na vida dos indivíduos e dos povos,
que considerar que a proposta inaciana nasceu em devem seu tributo a esses “objetos internos”²².
uma sociedade notavelmente diferente da nossa, e
desde abordagens antropológicas e teológicas muito A relação primeira com a mãe e logo depois com o
diferentes das atuais. casal parental vão ter papel fundamental na estrutu-
ração da dinâmica pessoal, e vão servir de suporte
No entanto, neste trabalho apenas nos interessa a básico para a configuração das representações reli-
problemática que guarda relação com a psicodinâmica giosas que virão. Muito antes que se possa observar
da experiência religiosa. Cabe-nos pensar as bases e avaliar qualquer tipo de comportamento religioso
psíquicas nas quais a experiência religiosa encontra que emerja, essas primeiras relações parentais já
seu terreno de enraizamento. De um lado, a experi- serviram de base para a palavra da “catequese” (se
ência pode vir de processos saudáveis e maduros. for dada, e qualquer que seja ela, cristã ou não) en-
Em muitos casos, até mesmo as defesas e rejeições contrar terreno para germinar ou não. A “qualidade”
a essa experiência de fé podem responder também diversificada desta terra primeira de relações internas,
a dimensões regressivas, a preconceitos irracionais, e o tipo de mensagem que trouxer uma catequese,
ou mesmo a dificuldades de saúde psíquica. converter-se-ão, em sua particular interação, nos
A psicologia da religião fez-nos saber que é alto o fatores decisivos da futura religiosidade, e de sua
poder psíquico da experiência do sagrado. É um fato
que as representações religiosas, enquanto “objetos
internos”, possuem valor psíquico de primeira mag-
nitude; e despertam afetos, emoções, sentimentos
²² “A esse respeito, não deixa de ser significativo o otimismo expresso
por FREUD na obra O futuro de uma ilusão, em que augurava um
quase imediato fim da religião, desbancada que seria pela razão
científico-técnica (o deus Logos). No entanto, poucos anos depois, ele
mesmo confessa que a religião gozaria de vida muito longa, dado o
²¹ DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psicodinámica de los Ejercicios alto poder que tinha no nível mais profundo e primitivo da afetividade.
Ignacianos. Colección Manresa, n. 30, Bilbao/Santander: Ediciones Os avanços da ciência e da razão pouco poderiam contra ela (em O
Mensajero/Sal Terrae, s/d. Este foi um texto fundamental para a problema da concepção do universo).” In: DOMÍNGUEZ MORANO,
elaboração deste capítulo. Carlos. Psicodinámica de los Ejercicios Ignacianos. p.15.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 135


eventual potência para o desenvolvimento e pleni- sem determinar-se por afeição alguma
tude da pessoa, ou para seu bloqueio, mutilação ou desordenada.
destrutividade.
Nesta definição, Inácio permite-nos ver claro o obje-
Tudo isso é importante quando pensamos numa pro-
tivo primordial que se pretende. Em primeiro lugar,
posta religiosa como a dos EE. Eles supõem introduzir
trata-se de um trabalho na ordem dos afetos. Neste
o sujeito em uma experiência de grande e particular
sentido, desde um ponto de vista psicológico, tem
intensidade, que afeta as estruturas psíquicas do ser
como finalidade primordial entrar no mundo afetivo do
humano, e que ainda coloca em prática uma ampla
sujeito, para provocar uma remodelação do mesmo,
e extensa série de recursos técnicos, também de
e que assim o acomode e o ordene conforme uma
grande porte. Portanto, será sempre valioso levar
determinada concepção de ser humano, que está
em conta a ambivalência e ambiguidade que este
formulada no “Princípio e Fundamento” [EE 23].
tipo de experiência pode comportar. Já sabemos o
quanto alguns modos de se entender a prática dos
EE contribuiu para que em muitos setores da popu- [EE 23] O homem é criado para louvar,
lação, a proposta inaciana fosse assimilada como reverenciar e servir a Deus Nosso Se-
uma técnica de controle, repressão e culpabilidade; e nhor e mediante isto salvar sua alma.
também fosse entendida como um protótipo do que As outras coisas sobre a face da terra
a experiência religiosa pode supor de mutilação do são criadas para o homem e para o
humano. Portanto, mais do que nunca será impor- ajudarem na consecução do fim para
tante ter a consciência muito desperta a respeito da o qual é criado. Daí se segue que o
ambivalência que facilmente se pode esconder no homem há de usar delas tanto quan-
coração da mesma experiência de fé²³ e de suas to o ajudam para seu fim, e há de de-
manifestações particulares. sembaraçar-se delas tanto quanto o
impedem para o mesmo fim. Por isso,

5.O MÉTODO DOS EE é necessário fazer-nos indiferentes a


todas as coisas criadas, em tudo o que
é permitido à nossa livre vontade e não
lhe é proibido, de tal maneira que não
5.1 O QUE SÃO OS EXERCÍCIOS
queiramos – de nossa parte – antes
ESPIRITUAIS
saúde que enfermidade, riqueza que
[EE 1] Anotação 1. A primeira é que pobreza, honra que desonra, vida lon-
por estes termos, exercícios espirituais, ga que vida breve, e assim em tudo o
entende-se qualquer modo de examinar mais, desejando e escolhendo somente
a consciência, de meditar, de contem- o que mais nos conduz ao fim para que
plar, de orar vocal e mentalmente, e somos criados.
outras operações espirituais, confor-
me se dirá mais adiante. Pois, assim Trata-se do que poderíamos chamar, em termos so-
como passear, caminhar e correr são cioeconômicos e psicanalíticos, de uma espécie de
exercícios corporais, da mesma forma “reconversão libidinal”. Isto é, trata-se de um trabalho
que consistiria em retirar a carga afetiva dos objetos
se dá o nome de exercícios espirituais
libidinalmente investidos; e depois de retirada essa
a todo e qualquer modo de preparar
carga, buscar e encontrar a vontade divina. Ou seja,
e dispor a alma para tirar de si todas
trata-se de iniciar (procurar) um processo de um novo
as afeições desordenadas e, afastan- investimento libidinal, e assim encontrar (encontrar)
do-as, procurar e encontrar a vontade um novo objeto (a vontade divina).
divina na disposição de sua vida para
a salvação da alma. Como já dissemos, desde o início da vida psíqui-
[EE 21] Exercícios espirituais: para ca, nosso mundo emocional realiza uma série de
vencer a si mesmo e ordenar sua vida, vinculações afetivas com aqueles objetos que se
enlaçam a qualquer tipo de gratificação. Entre estes
primeiros objetos, encontram-se naturalmente as fi-
guras parentais, as que garantem a sobrevivência,
proporcionando os meios necessários para a sa-
²³ Aqui não se faz distinção entre experiência religiosa e experiência tisfação das necessidades primárias, assim como
de fé. Do ponto de vista psicológico, ocupamo-nos do sujeito que
oferecendo um clima de proteção e de amor, tão
acredita em um objeto transcendente, e que em virtude desta crença
obrigatório para a sobrevivência como o é o alimen-
desenvolve uma série de comportamentos específicos.
to. Desde esses primeiros estágios, nosso mundo

136 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


afetivo irá ampliando suas vinculações de objeto, decisiva na configuração da vida (na disposição de
de um modo rico e complexo, tanto com as pesso- sua vida). Ou seja, a experiência do amor no proces-
as como com os objetos materiais, e inclusive com so dos EE é chamada a modificar profundamente o
as próprias ideias e fantasias. Também a própria conjunto do universo de valores, de pensamentos,
realidade pessoal, incluído aqui nosso corpo físico, de condutas e etc.; e tudo será para a saúde da
formará parte importante desse mundo de “objetos alma. Neste sentido, os EE são uma proposta de
de amor”, que irão constituindo a dinâmica pessoal, transformação profunda na identidade pessoal, assim
singular e particular de cada um de nós. como o foram para o próprio Inácio. Ele sabia que
é necessário que os EE recaiam sobre o processo
É nessa dinâmica afetiva pessoal [pre- pessoal, para assim incidir sobre a disposição de
nhe de vinculações emocionais], sem- sua vida. Se não for assim, os EE poderão ficar
pre mutante em suas atrações e rejei- reduzidos a uma experiência puramente imaginária;
ções profundas, que Inácio pretende isto é, reduzidos à criação de um mundo afetivo que
que o exercitante entre a fundo para busca apenas fugir do enfrentamento com a reali-
dade, ou dito de outra forma, reduzido a um mundo
discerni-la e transformá-la, de maneira
fantasmático afastado do real, do intersubjetivo. E
a tornar possível uma vinculação tão
portanto, um mundo afetivo não relativizado pelo
radical com Deus, que “ordene” todas
enfrentamento com algum tipo de limite. São muitas
as demais e possibilite um novo modo as experiências religiosas que desafortunadamente
de orientar sua vida²⁴. acabam apenas nisso. E, até porque o campo da
religiosidade é dos mais propícios para esse modo
Aqui vale trazer a distinção que Françoise Dolto fez patológico e infantil de fuga mundi.
entre necessidade e desejo²⁵, em seu livro A fé a luz
da Psicanálise: Uma experiência cristã vivida no nível do simbólico,
somente é possível através dessa disposição de
(...) Necessidade nos coloca em rela- vida, modelada a partir do encontro com o desejo
ção com um objeto que promete pra- de Deus sobre a própria vida, assim como também
através do longo caminho pessoal de discernimento
zer. Desejo é um encontro interpsíquico
e decisão. Quer dizer, uma experiência em que o
com o outro. Trata-se de uma dinâmica,
afetivo entra em jogo de maneira importante, mas é
de um elã, de uma fonte que impele a
modelado, informado, organizado e relativizado pelo
viver e a buscar os outros que também intersubjetivo. Ou dizendo em termos mais freudia-
nos chamam – incessante caminhar. O nos, submetido às leis do Princípio da Realidade.
desejo é o elã do indescritível que sem-
pre nos falta... Ele está para além da O processo da Eleição (fazer escolhas e mudanças
música, da página de um livro, de um em si mesmo) é o ponto central da dinâmica dos EE.
rosto, de um gesto de compaixão. Ele Mas esta eleição não será possível se antes não
nos faz viver no eterno inacabado e na se alcançou discernimento suficiente para detectar
os condicionamentos afetivos que, de fato, limitam
contradição²⁶.
a liberdade do sujeito, e que podem fazê-lo errar
nessa eleição. Inácio sabe que somos livres, mas
É nessa dinâmica afetiva pessoal, singular e particular
sabe também que estamos e somos condicionados
de cada um de nós que a necessidade irá se trans-
maneira ininterrupta, e que esses condicionamentos
formando em desejo. E na abordagem inaciana, no
não se devem apenas ao que podemos chamar de
processo dos EE, a nova experiência de amor não
“condição humana”, já que é dado que nossa liberdade
poderá ficar reduzida ao campo do mero emocional.
é limitada em si mesma. O fato é que tanto nossas
A experiência religiosa deverá ter uma repercussão
circunstâncias históricas de vida, como nossa dinâmica
interna afetiva acrescentam-nos condicionantes que
sempre colocam em risco a liberdade conquistada, e
assim supõem um impedimento para nossa capaci-
²⁴ DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psicodinámica de los Ejercicios dade de eleição. É por isso que toda a dinâmica dos
Ignacianos, p.44. EE vai buscar detectar quais são esses condicionan-
²⁵ Para entender o contexto em que Dolto coloca essa distinção, vale tes, essas fixações afetivas. E serão julgadas como
citar: “(...) não é o virtuoso aquele que segue a lei, seja até mesmo a desordenadas ou não, através de uma determinada
lei divina, mas aquele que experimenta a do Espírito, que é a presença
final do desejo em nós. ‘Jesus prega o desejo, e não uma moral. [Ele] é
o que nos leva a buscar o que nos falta’. (...) É graças a essa ausência,
a essa falta, que o jogo pode funcionar.” DOLTO, Françoise. A fé à luz
da psicanálise, p.9. ²⁶ DOLTO, Françoise. A fé à luz da psicanálise, p.10.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 137


hierarquia de valores. E para estabelecê-los, Inácio um olhar atento essas estruturas afetivas. Nesses
usa a vida de Jesus como modelo de seguimento. primeiros momentos será fundamental sensibilizar
Esse trabalho de autoanálise na detecção das ata- a pessoa a fundo, para que sejam transformadas
duras e impedimentos da liberdade será elemento estruturas mais arcaicas, condição para acontecer
central da proposta inaciana. Todavia, Inácio sabe uma possível mudança, em vistas a torná-la mais livre.
que estas afeições desordenadas não são fáceis de
A partir da “Segunda Semana”, tudo vai centrar-se
detectar, até porque pela própria experiência, ele sabe
na figura de Jesus, proposta que Inácio apresenta
da imensa capacidade de autoengano que temos.
ao exercitante como alternativa amorosa. No en-
Por isso, os EE constituem-se numa autêntica “her-
tanto, para que essa alternativa se torne central,
menêutica da suspeita”, que tem por objeto avaliar
não é suficiente o mero conhecimento; há que ser
e buscar compreender as estratégias do engano, no
conhecimento interno, único capaz de colocar toda
terreno da vida espiritual.
nossa afetividade em jogo, inclusive para gerar a
Os caminhos pelos quais a liberdade humana pode resposta dupla que é necessária: a do amor e a do
se desviar uma e outra vez são de ordem tanto ex- seguimento (para que mais o ame e siga) a Cristo.
terna como interna; por isso é que Inácio centra
Em relação à Anotação 1 (o que são os EE), obser-
sua atenção sobre estes dois modos de desvio da
var a totalidade de funções psíquicas que Inácio
liberdade. No processo dos EE, os condicionamentos
deseja por em jogo com o método dos EE: qualquer
estruturais poderão ser desmascarados dentro da
modo de examinar a consciência, de meditar, de
meditação das “Duas Bandeiras” ²⁷. Já as ataduras
contemplar, de orar vocal e mentalmente, e outras
internas, pessoais e afetivas serão frontalmente ana-
operações espirituais. . E assim seguidamente, nas
lisadas nas meditações dos “Três Binários” e nas
várias anotações e em outras regras, poderemos
dos “Três modos de humildade”. Como se tudo isso
ver como Inácio concede peso e presença a cada
não bastasse, Inácio não esquece que, assim como
uma delas. Na Anotação 2 por exemplo, a primazia
se passou com ele, ninguém retira seus afetos de
é das zonas afetivas sobre as intelectivas, pois se
algum objeto (sentido psicanalítico de pessoa, coisa,
trata de pensar a modificação na vida, em que “não
ideia ou situação), se não aparecer no horizonte um
é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o
objeto de amor que englobe a busca pessoal, e que
sentir e saborear as coisas internamente”.
não só relativize esse objeto, como também o leve
a desprezar e aborrecer (EE 63) todas suas antigas E aproveitando essa frase de Inácio, podemos fazer
cargas libidinais. É necessário ter um importante aqui um paralelo com o trabalho psíquico durante
objeto de amor para abandonar os amores antigos, um processo de Análise Pessoal: não é o saber e
como sempre nos disse Freud. o conhecimento que levam uma pessoa a sentir-se
plena e satisfeita consigo mesma. Se retomamos o
É a partir deste lugar que se ilumina toda a meto-
que foi dito sobre os EE neste tópico que acabamos
dologia dos EE: é necessário entrar de cheio nos
de desenvolver, fica evidente e presente, e sempre
aspectos afetivos profundos da pessoa, já que é
subentendido, o paralelo com o trabalho psíquico.
ali que se coloca em jogo toda a possibilidade de
Vejamos alguns destes pontos:
liberdade; e portanto, de eleição no viver.
● É entrar no mundo afetivo do paciente, para que
De modo igualmente importante, Inácio sabe que
ele se acomode e ordene desde sua compreensão
esses aspectos profundos e afetivos da pessoa
de si mesmo e do que deseja para si, conhecendo
não se mobilizam por meio de puras ideias e nem
melhor os potenciais que tem, e assim se expandindo
de pensamentos elevados. Se essas ideias não se
internamente, constituindo-se em um “Princípio e
impregnam de afeto, se não arrastam atrás de si
Fundamento” do seu Viver.
as aspirações profundas do sujeito, pouco ou nada
será modificado. Por isso, faz-se necessário trazer a ● Durante o processo, sabe-se que se torna neces-
ajuda dos sentidos e da imaginação, elementos que sário rever as cargas afetivas dos objetos libidinal-
são do psiquismo, e guardam grande proximidade mente investidos, retirando-as e/ou colocando-as em
com o mundo afetivo que há que se saber mobilizar. novos objetos amados. Tudo isso porque desde o
início da vida psíquica, as vinculações afetivas vão
Desde essa profunda intuição, Inácio convidará o
se fazendo, quer com pessoas, objetos materiais,
exercitante, já na “Primeira Semana”, a colocar sob
ideias e fantasias, como até mesmo com nosso pró-
prio corpo físico.
● E faz-se mister também conhecer quais são nossas
²⁷ Estes EE, assim como os que são citados na sequência, compõem
necessidades e desejos, rever valores, pensamen-
o trabalho psicológico e espiritual da Segunda Semana. Não estão tos, condutas, para colocar tudo a serviço de uma
explicados porque não é o propósito neste trabalho. maior saúde interna, geradora de melhor disposição

138 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


frente à vida e às muitas relações. Ou seja, uma remos algumas partes mais diretamente relacionadas
vida confrontada com o mundo interno e externo, e ao discernimento, e que aqui nos interessam:
não reduzida a um mundo fantasmático e voltado
Regras para ordenar-se daqui por diante na alimen-
para si mesmo.
tação [EE 210-217 - Introdução]:
● Se os EE são uma “hermenêutica da suspeita”,
É a busca da temperança. Inácio coloca estas regras
dentro do terreno da vida espiritual, a Psicanálise é
apenas na Terceira Semana. No entanto, pe. Chér-
uma “hermenêutica da suspeita”, dentro do terreno
coles já as coloca na Introdução, pois nos trazem
da vida emocional.
uma questão chave nos EE, e com a qual desde o
início há que se enfrentar, que é a questão dos de-
5.2 ORGANIZAÇÃO DOS EE: SUA sejos. O problema é onde e como eles estão presos,
ESTRUTURA E SUA DIVISÃO enganchados, pois não é qualquer forma de desejar
INTERNA que nos convém. Estas regras são avisos que nos
ajudam a compreender e a ordenar nossos desejos,
Vimos que a atenção e o cuidado estão sempre independentemente de quais sejam eles, e tudo para
presentes nas propostas de Inácio. E isso para que que tenhamos ânimo e força para dar o melhor que
observemos com cuidado tanto o que nos acontece há em nós, sentindo-nos livres, e não presos em
e vem de fora, como o que nos acontece vindo de nós mesmos. (p.64, 73)
dentro, naquilo que concluímos por nós mesmos. Vale
Regras para de algum modo sentir e conhecer as
mencionar que Inácio é pensado como um mestre
diversas moções que se produzem na alma [EE 313-
da suspeita²⁸ , pois sempre coloca “sob suspeita
327]: Regras de discernimento de Primeira Semana.
o próprio sujeito, a própria pessoa crente e a sua
experiência de f锲⁹. No decorrer do processo dos Tratam de como interpretar o que sentimos dentro de
EE, ele incita-nos continuamente a suspeitar de nós nós, para saber como proceder em diferentes estados
mesmos, oferecendo-nos “avisos e regras”, em que de ânimo que naturalmente nos acometem: ilusões,
temos que fazer uso de nosso aparato de inteligência, temores, depressões, etc. E isso é essencial para
memória e vontade. Tudo tem como meta conhecer seguirmos em direção àquilo que vale a pena, e para
e ordenar os afetos, condição para que a pessoa não desistirmos quando o que sentimos é desagradá-
humana alcance a liberdade e o sentido verdadeiro vel, e para não acreditarmos que está tudo resolvido
de sua vida. Não é isso que também almejamos quando estamos animados. Cabe àquele que “dá” os
quando nos debruçamos psicanaliticamente sobre o EE, saber e mostrar ao exercitante (como está dito
mundo interno de nossos pacientes? Inácio empenha- no EE 6) que estes estados de ânimo não vão ser
-se em fornecer-nos meios e instrumentos (Regras, referidos a ele, o que “dá os EE, mas a Deus, que
Anotações, Adições) que levam ao discernimento da é com quem o encontro se dá, e cuja interlocução é
mente e nos dão a dimensão pedagógica dos EE. a razão última dos próprios EE. (p.91-92)
Estes meios, entremeados no processo das Quatro
Semanas, nas orações de meditação e contemplação Regras para a mesma finalidade com maior discer-
que ali se dão, favorecem o ordenar a vida (mas nimento de espíritos [EE 328-336]: Regras de dis-
lembremos: não para tê-la resolvida!) e a acolhida cernimento de Segunda Semana.
do dom, sempre com “ânimo e generosidade para Estas regras vão mostrar-nos que não é suficiente ter
com o Senhor”, num permanente discernimento do boa vontade, ideias claras e mesmo boas intenções,
coração. e ainda considerar que nossas ações são corretas.
Dentro da dimensão pedagógica dos EE³⁰ , destaca- Pois mesmo assim, podemos nos enganar, e ainda
causar mal a outros. Estas regras nos tornam hu-
mildes, conscientes de que não somos perfeitos,
e de que não podemos estar tão seguros de nós
²⁸ Claro que não por estar alinhado com os grandes críticos da
religião, na modernidade, que são: Marx, Freud e Nietzsche, conforme
RAMBLA BLANCH, Josep. In: Maestros de la sospecha, críticos de
la fe. Centre d’Estudis Cristianisme i Justícia. Série Estudios. n.12.
Barcelona. ³⁰ A cada parte “pedagógica” que compõe os EE, apresentamos uma
²⁹ RAMBLA BLANCH, Josep. In: Maestros de la sospecha, críticos de breve explicação da mesma, feita pela autora, a partir do material do
la fe. Rambla considera Inácio “mestre da suspeita”, porque entende padre jesuíta Adolfo CHÉRCOLES MEDINA, in: Apontamentos para
que: “A suspeita é o campo mais próprio da razão. A razão é um dos dar Exercícios espirituais de s. Inácio de Loyola. Segunda versão.
instrumentos mais valiosos que o ser humano tem para afrontar o Impresso, 2009. O uso do pronome em primeira pessoa deve-se ao
mundo. Ela não é criadora, pode ser explicadora, mas é, sobretudo, fato de que aquele que faz os EE é sempre o autor de sua história e
crítica e ‘inquisidora’ (no bom sentido da palavra): por isso é também assim se refere a ela. As páginas de referência estão entre parênteses,
crítica de si mesma e de seus próprios condicionamentos e limitações”. após cada explicação.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 139


mesmos. (p.246) encontra boa terra e dá fruto³¹ é a que se traduz em
uma identidade espiritual, que é fruto do encontro
Regras a observar no encargo de distribuir esmolas
consigo mesmo e com uma autêntica esfera de va-
[EE 337-344 – Segunda Semana]:
lores espirituais, nunca concebidos como algo alheio
Atualizando o título destas regras, não se trata de à experiência humana. Estes valores espirituais são
distribuir esmolas, mas de compartilhar, ajudar e livres de toda ideologização, pois esta é sempre um
servir ao próximo. Estas regras ajudam-nos a pensar refúgio, mesmo que seja uma ideologia religiosa.
não apenas na partilha de bens materiais, mas na
A Companhia de Jesus, desde as intuições funda-
de bens internos; trata-se de distribuir o que, como,
mentais de Inácio, sempre teve sensibilidade es-
quando, quanto, e onde devemos distribuir o que
pecial para o diálogo entre a teologia do Espírito e
temos e somos. (p.327)
as ciências humanas. A Psicologia implícita nos EE
Notas que ajudam a sentir e compreender os escrú- desenvolveu-se a partir de sucessivas referências
pulos [EE 345-351 – Segunda Semana]: culturais e científicas, a serviço do homem e de sua
experiência espiritual. Apesar de suas possibilidades
São notas para não se fixar no exagero ou nos de- e limites, a ferramenta psicológica permite construir
talhes. Notas para ajudar a distinguir o que é um uma antropologia espiritual que, coerente com a di-
verdadeiro escrúpulo, do que é apenas um equí- nâmica dos EE, abre o homem à transcendência,
voco, um engano. Tomar consciência de que uma sem negar sua verdade psiquicamente corporal.
coisa é duvidar, outra é suspeitar: quando duvido,
me angustio e não sei o que fazer; quando suspeito, Os EE são um instrumento de mudança, e quer passem
fico mais alerta, vou com mais cuidado e estou mais por uma eleição de vida ou mesmo por um crescimento
atento. (p.334) espiritual, neles está em jogo uma conversão, que
é a versão teológica da mudança psíquica. Vividos
Regras a observar para ter o sentir verdadeiro, que “com grande ânimo e liberalidade”, levam sempre
deve ser o nosso, na Igreja militante [EE 352-370 – a experimentar uma humanidade, que implica uma
após Quarta Semana]: transformação do ego, numa trama psíquica e es-
Inácio educa-nos na relação com a Instituição, com piritual, em diferentes níveis. Aquele que busca os
os superiores, com os iguais e com todos. Tomar por EE, quer o queira ou não, traz uma histórica psíquica
certo que isso se aplica a qualquer instituição, como que o condiciona, bloqueando ou libertando; fazer
a de trabalho, e inclusive a instituição família; e não os EE é colocar essa sua história humana dentro
apenas à relação com Igreja. desse itinerário que o transformará, integrando todas
suas dimensões pessoais. Aquele que “dá os EE”
Atentar como em todas as Regras acima, Inácio acompanha aquele que “os faz” com enorme respeito
está propondo que se desenvolva um olhar para si à sua liberdade, oferecendo-lhe seu senso comum,
mesmo; uma introspecção que se volta para o pró- seu realismo, seus conhecimentos, sua experiência,
prio Ego, mas para poder pensá-lo à luz de outras e contemplando a viabilidade humana, consciente
possibilidades, de outro jeito de ser e proceder no do mistério de Deus. A Psicologia aqui considerada
mundo, tendo a Cristo como modelo de seguimento. não é um luxo e nem leva a um individualismo inti-
Estar na vida e socializar-se é encontrar um modelo mista; ela está a serviço da comunidade humana,
de seguimento que satisfaça e que dê oportunida- pois não se esquece de que o exercitante dos EE é
de para o uso dos melhores recursos que se tem, uma pessoa solidária, fruto e agente de uma história
buscando equilibrá-los na relação com o próximo. que a chama a se libertar, mas vinculada a um povo,
Entre muitas outras coisas, um processo de Psica- no seguimento de Jesus.
nálise também visa facilitar que este processo se dê,
sempre tomando a própria pessoa e seus valores Meissner afirma³² que no processo do desenvolvimento
como referência para o crescimento e expansão de de uma identidade psicológica, a pessoa adquire um
si. O processo dos EE visa o mesmo, um “acertar na sentido consciente de sua própria e única identidade
vida”, mas desde um “para” (que busca a imitação de individual, em continuidade com sua personalidade
Cristo) que norteia o viver e dá sentido ao existir. E e com a satisfatória integração dos subsistemas es-
toda essa experiência tem como corolário a busca da truturais que formam seu corpo e sua mente, assim
interlocução com Deus (com a divindade, se assim como um sentido de solidariedade a um conjunto de
preferirmos falar), sempre considerando que o que valores que tem relação com um contexto social e
se deseja alcançar é a transcendência de si mesmo. cultural específicos. Por sua vez, a identidade es-

6.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em termos da vivência de fé, a semente que ³¹ Parábola evangélica Mt 13,8.

140 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


piritual é algo cujo crescimento e maturação supõe dade, nem paciência, nem discrição para regular ou
que a pessoa aceite e responda à ação da graça; e medir estas virtudes” ³⁴. A discrição ou discernimento
esse crescimento é mais firme quando se constrói passa a ser o centro de sua disposição espiritual;
sobre a base sólida de uma identidade psicológica ela o torna capaz de descobrir que até a oração
madura. Do ponto de vista psicológico, a pessoa é pode ser uma tentação, quando não for “discreta”; ou
levada a conceber o efeito da Graça como uma in- seja, quando impedir a realização do projeto total³⁵.
fluência que enche de energia o seu Ego, consciente Desse modo, a discrição ou “bom juízo” passam a
ou inconscientemente, capacitando-o para mobilizar ser a chave de uma identidade espiritual madura e
seus próprios recursos e funções. formada, qualidade que sempre deverá ter o Geral da
Companhia de Jesus (Const. 735), mesmo que lhe
Podemos encontrar o desenvolvimento dessas iden-
faltem outras qualidades. Na verdade, isto é reflexo
tidades no Inácio maduro, depois de sua longa pe-
da chave de sua própria identidade espiritual, vale
regrinação exterior e interior. Se a graça atua sobre
dizer, do efeito transformador da graça sobre seu
todo o psiquismo, em consecução de uma identidade
psiquismo. Da impulsividade anterior restou pouco.
espiritual madura, poderíamos dizer então que Iná-
O Super-Ego deixou de ser persecutório e rígido. O
cio saiu de uma etapa muito distante da realidade
Ego cumpre suas funções e é a porção da vida aní-
exterior, em que estava submerso em suas grandes
mica que, mediante uma adequada auto-observação,
fantasias narcisistas ou em sua atormentada submis-
pode normatizar a relação do interno com o externo.
são a um Super-Ego sádico, para um tempo em que
estabeleceu adequadas relações objetais, dirigindo E se o Inácio maduro de Roma aspira a que seus
sua Pulsão de Vida para fora de si. Assim, o interes- seguidores vivam também uma identidade espiritual
se por estabelecer vínculos espirituais com outras sedimentada, pode-se dizer que “não parece lhes
pessoas – as “conversões espirituais” passam a ser dar outra regra... senão aquela que a discreta cari-
sua ocupação principal – substituiu o seu anterior dad lhes ditar” (Const. 582). Assim resume Eduardo
isolamento. Psicanaliticamente, podemos dizer que Montagne:
a libido narcisista converteu-se em libido objetal, e
que as pulsões de vida neutralizaram as pulsões de Poderíamos dizer então que para Iná-
morte. O Super-Ego flexibilizou-se e permitiu o forta- cio maduro, o sacrifício, a renúncia e a
lecimento do Ego. Desse modo, a estrutura egóica abnegação, tão importantes para quem
permitiu-lhe estabelecer vínculos objetais adequa- quer comprometer toda sua vida no
dos e criativos, na busca de um projeto pessoal, projeto, deixam de ser uma expressão
e em consonância com a busca de um projeto em
masoquista de submissão a um objeto
comum com outros companheiros. Ficou para trás
sádico externo ou interno, e convertem-
a etapa do Inácio-eremita de Manresa, vestido de
-se em uma conseqüência do Princípio
farrapos e com cabelo, barba e unhas crescidas³³
, submerso em seus próprios pensamentos, e em de Realidade que rege o Ego. Ao Ego
suas grandes consolações e desolações. Nas etapas ficará a decisão consciente de acei-
seguintes – Alcalá, Salamanca, Paris – apareceu tar, postergar ou deixar de lado uma
o Inácio-universitário, em relação estreita com um exigência pulsional. Desse modo, as
grupo de companheiros que ele congrega em torno exigências instintivas do Id ou as recri-
de um projeto comum, que inspira e alenta. E neste minações tanáticas do Super-Ego pas-
projeto estão os EE, experiência fundamental que sam pelo filtro de uma estrutura egóica
traduz seu próprio itinerário, com toda a riqueza da fortalecida, e que os tempera com sua
experiência acumulada. Uma serena visão crítica mediação³⁶.
permitiu-lhe tomar distância da idealização de figuras
religiosas e de grandes penitências, e reconhecer que Assim, vemos que a identidade espiritual madura de
naquela época “não olhava a circunstância alguma Inácio não tem a ver somente com a realidade interior,
interior” (isto é, não havia discriminação suficiente mas sim que é precisamente a possibilidade de assu-
do exterior, que ele tomava falsamente como próprio, mir a realidade exterior, em toda sua complexidade,
criando uma identidade artificial) “nem sabia o que
era humildade” (isto é, vivia no inautêntico, submerso
em um falso encontro consigo mesmo), “nem cari-
³³ LOYOLA, Inácio de. Autobiografia de Santo Inácio, p.50-57 (Aut.
18-19).
³⁴ LOYOLA, Inácio de. Autobiografia de Santo Inácio, p.46-47 (Aut.
³² W.W.Meissner, Psychological notes on the Spiritual Exercises, citado 14).
por MONTAGNE, Eduardo. In: Psicología y ejercicios ignacianos. p. ³⁵ LOYOLA, Ignacio de. El relato del peregrino: autobiografia. Bilbao:
267. Mensajero, s/d, p.44-45 (Aut. 55).

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 141


situando-se frente a ela com uma resposta pessoal. Colección Manresa, v. 5/6, Bilbao/Santander:-
Isto só acontece na medida em que o isolamento Mensajero/Sal Terrae, s/d, 2v.
narcisista cede lugar a um adequado investimento
libidinal no mundo externo, que encontra então uma BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São
verdadeira significação e ressonância interior, e que Paulo: Martins Fontes, 2005.
torna a pessoa capaz de nutrir e definir o projeto
pessoal. CHÉRCOLES MEDINA, Adolfo. Apontamentos
Para concluir, recapitulamos o que já vimos, colo- para dar Exercícios espirituais de s. Inácio de
cando três pontos em destaque: Loyola. Segunda versão. Impresso, 2009,
1. A dimensão psicológica da pessoa está sem- DICCIONARIO de Espiritualidad Ignaciana.
pre presente na consecução de uma identidade Organizado pelo GEI, Grupo de Espiritualidad
espiritual: quaisquer que sejam as influências Ignaciana. Colección Manresa, n.38, Bilbao/
externas que as regras de discernimento as- Santander: Mensajero/Sal Terrae, 2007.
sinalem em termos de “bom espírito” e “mau
espírito”, estas influências serão experimenta- COLEÇÃO DOCUMENTA S.J. Pedagogia
das como fenômenos psicológicos que alteram, Inaciana - uma proposta prática. 6ª ed., São
modificam ou transformam dinamicamente a Paulo: Ed. Loyola, 1993.
estrutura psíquica.
2. A identidade espiritual é alcançada mais DOLTO, Françoise. O evangelho à luz da Psi-
plenamente quando construída sobre uma canálise. [Entrevistada por Gérard Sévérin],
identidade psicológica madura, discriminada Rio de Janeiro, Imago Ed.Ltda., 2 vol., 1979.
tanto de núcleos narcisistas que isolam da
realidade ou a deformam, assim como discri- DOLTO, Françoise. Solidão. São Paulo: Martins
minada de severos conflitos intrapsíquicos de Fontes, 1998.
tipo neurótico, como pode ser um Super-Ego
persecutório e rígido. DOLTO, Françoise. A fé à luz da psicanálise.
[Entrevistada por Gérard Sévérin]. Campinas,
3. Uma espiritualidade, nos dias de hoje, tem SP: Ed. Verus, 2010.
que possibilitar àquele que crê, a consecução
de uma identidade espiritual que necessaria- DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Crer depois
mente leve em conta os desafios da realidade de Freud. São Paulo: Ed. Loyola, 2003.
externa, e do dinamismo do mundo psíquico
pessoal. Só assim o crente pode formular, em DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Orar depois
comunhão mútua com outras pessoas, aquilo de Freud. São Paulo: Ed. Loyola, 1998.
que chamamos Vontade de Deus.
DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psicoanáli-
Pois é assim que tanto INÁCIO como FREUD nos
dão o testemunho de uma busca infatigável da ver- sis y religión: el diálogo interminable. Madrid:
dade, da autenticidade no encontro consigo mesmo Editorial Trotta, 2000.
e com os demais. Na perspectiva de ambos, o que
possibilita uma relação autêntica é a possibilidade
DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Psicodiná-
de discriminar o Eu e o Outro; ou seja, é a possibi- mica de los Ejercicios Ignacianos. Colección
lidade de interpenetrar-se, sem perder-se de si. A Manresa, n. 30, Bilbao/Santander: Ediciones
identidade psicológica e espiritual situa-se nesse Mensajero/Sal Terrae, s/d.
estreito espaço em que se dá o registro dessa dife-
rença entre o Eu e o Outro. DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. “Inácio de
Loyola à luz da psicanálise” (1ª. parte). In:
Revista Itaici. São Paulo, 2006, n.66, p. 25-45.
REFERÊNCIAS
DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. “Inácio de
ALEMANY, Carlos e GARCÍA-MONGE, José Loyola à luz da psicanálise” (2ª. parte). In:
A. (ed.) Psicología y ejercicios ignacianos. Revista Itaici. São Paulo, 2007, n.67, p.63-78.

KHAN, M. Masud R. La intimidad del sí mismo.


Madrid: Editorial Saltés, 1980.
³⁶ MONTAGNE, Eduardo. In: Psicología y ejercicios ignacianos. p.
269. LEWIS, Carl S. A abolição do homem. São

142 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Paulo, SP: Martins Fontes, 2010.

LOYOLA, Inácio de. Autobiografia de Santo


Inácio (até Manresa) [Introdução e notas de
Maurizio Costa, sj.] São Paulo: Loyola, s/d.

LOYOLA, Inacio de. Diário Espiritual de Santo


Inácio de Loyola. São Paulo: Edições Loyola.
2007.

LOYOLA, Ignacio de. El relato del peregrino:


autobiografia. Bilbao: Mensajero, s/d.

LOYOLA, Santo Inácio de. Exercícios Espiritu-


ais [Orientou a tradução e fez anotações: pe.
Géza Köveczes.]. 1ª. ed., Porto Alegre, 1996.

LOYOLA, San Ignacio de. Obras. 6 ed. Madrid:


Biblioteca de autores cristianos, 1997

MAIA, Pedro Américo. “Uma experiência de


Deus: Os ‘Exercícios Espirituais’ de Santo Iná-
cio: texto e contexto (IV)”. In: Revista Itaici. São
Paulo, 1995. n.25, p.51-58.

MARTINI, Carlo, in GARCÍA LOMAS, Juan M.


(Ed.). “Ejercicios Espirituales y mundo de hoy”-
Congreso Internacional de Ejercicios. Bilbao/
Santander: Ediciones Mensajero/Sal Terrae,
s/d.

PAIVA, R. O Caminho do peregrino. 3ª. ed.,


São Paulo, Ed. Loyola, 2007.

RAMBLA BLANCH, Josep. In: Maestros de la


sospecha, críticos de la fe. Centre d’Estudis
Cristianisme i Justícia. Série Estudios. n.12.
Barcelona.

TETLOW, Joseph A. Os exercícios espirituais


no século XX, texto fotocopiado, sem referên-
cia.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 143


CAPÍTULO
19

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: A PERSPECTIVA DE


ESTUDANTES DE PSICOLOGIA

RESUMO
O presente trabalho visa explanar sobre a implicação da Psicologia
Cleison Guimarães
Pimentel com a diversidade sexual e gênero, bem como os aspectos sociais
FAMETRO diante dos preconceitos e estigmas ainda existentes na sociedade
referentes ao assunto. Foram analisadas as concepções de 3
Aline Carlos do Vale estudantes do curso de Psicologia de uma faculdade de Ensino
FAMETRO Superior da cidade de Manaus, cursando o 4º período, turno matutino,
Ana Carolina da Rocha sobre questões referentes a gênero e diversidade sexual no contexto
Gonçalves social atual. Foi realizada uma pesquisa bibliográfica e de campo, com
FAMETRO o intuito de analisar e discutir as questões debatidas em torno dessas
duas temáticas no âmbito acadêmico. O estudo pressuposto também
Barbara Suelen Lima buscou salientar a importância da Psicologia estar relacionada com
dos Santos
FAMETRO
as questões da diversidade sexual e analisar como os estudantes da
área estão sendo preparados para lidar com essas questões. Diante
Kassia Thamiris dos disso, se dá a importância de estudar a questão acerca da diversidade
Santos Freire sexual e gênero a fim de saber como os estudantes de Psicologia
FAMETRO estão entendendo o assunto, despertar interesses e proporcionar
subsídios para manter uma posição de futuros psicólogos perante
Maria Karolina Dias da os conflitos ligados ao tema. Além disso, a relevância se mostra,
Costa
principalmente por razão de a Psicologia estar sendo frequentemente
FAMETRO
mencionada nas discussões a respeito da homossexualidade, entre
ativistas do movimento e instituições religiosas. E, evidentemente,
esse debate está longe de acabar.

Palavras-chave: Gênero; Diversidade Sexual; Psicologia.

10.37885/200400170
1. INTRODUÇÃO Conforme a necessidade de se compreender de for-
ma mais detalhada, descrevendo e interpretando
Refletir sobre o envolvimento da Psicologia nas o fenômeno estudado, este estudo foi estruturado
questões que abrangem a diversidade sexual e gê- mediante a orientação da abordagem de pesquisa
nero representa a oportunidade de construir sujeitos qualitativa.
sociais críticos que reproduzam em sociedade uma De acordo com Pimentel (2015) essa abordagem
nova mentalidade em relação à orientação sexual, torna-se exitosa para uma investigação em que os
extinguindo o preconceito e encontrando mecanismos fenômenos humanos não passam por uma quantifica-
para que a violência de gênero seja abrandada de ção, pelo contrário, precisa-se de um olhar que vem
forma a efetivar mais um espaço político de vivência desde sua gênese. Além disso, contribui pela busca
de direitos humanos. de significados que envolvem “os valores e atitudes
Borges (2016, p. 1-2) afirma que há uma necessidade dos sujeitos que falaram de um espaço profundo das
de estudos acadêmicos para uma compreensão mais relações” (ALMEIDA, 2015, p. 23).
aprofundada sobre o tema, levando os estudantes Diante disso, foram analisadas as concepções de 3
a conviverem e aceitarem a diversidade, além de estudantes do curso de Psicologia de uma faculdade
compreenderem como as identidades são construí- de Ensino Superior da cidade de Manaus, cursando
das e quais são as estratégias de enfrentamento aos o 4º período, sobre questões referentes a gênero e
preconceitos, que implicam no sofrimento psíquico e diversidade sexual no contexto social atual.
na violência (verbal e física) daqueles que não são
aceitos dentro das suas escolhas. Segue abaixo (Tabela 1) a identificação dos parti-
cipantes que fizeram parte desta pesquisa. Todos
Desse modo a pesquisa aqui apresentada teve por tiveram seus nomes preservados e trocados por
objetivo analisar as concepções de estudantes de pseudônimos (nomes de flores), com o intuito de
Psicologia sobre questões referentes a gênero e resguardar suas identidades e manter válida a ética
diversidade sexual no contexto universitário, especi- que permeia a elaboração deste trabalho.
ficamente investigando o papel da Psicologia no que
se refere às questões relativas à diversidade sexual,
identificando também as divergências e convergên- Tabela I: Participantes da Pesquisa
cias entre os relatos de estudantes da Psicologia
em relação ao tema Gênero e Diversidade Sexual.

2 . MÉTODO
Este artigo é resultado de um trabalho realizado
na disciplina “Pesquisa em Psicologia” do Curso de
Para a coleta de dados foi utilizado um questionário
Psicologia.
com 5 perguntas abertas. Os questionários trazem
Para a realização deste estudo, foi escolhida a aborda- perguntas previamente formuladas, seguindo uma
gem qualitativa. Entendemos por pesquisa a atividade estruturação, onde todos os participantes respondem
básica da ciência na sua indagação e construção da as mesmas perguntas permitindo uma comparação
realidade. É a pesquisa que alimenta atividade de de respostas através do mesmo conjunto de pergun-
ensino e construção da realidade. É a pesquisa que tas, onde as diferenças iram refletir a subjetividade
alimenta a atividade de ensino e a atualiza frente à (BONI e QUARESMA, 2005).
realidade do mundo (MINAYO, 2010 p. 16)
Como o objetivo desta pesquisa consistiu em ana-
As primeiras informações sobre a temática deram- lisar as concepções dos estudantes de psicologia
-se de forma exploratória por meio de livros, textos, sobre as questões referentes ao gênero e a diversi-
pesquisas em periódicos, análise bibliográfica e es- dade sexual, optou-se pela formulação de perguntas
truturação dos capítulos que auxiliaram no esclare- abertas para que assim os discentes discorressem
cimento. Esse procedimento foi realizado para uma sobre as suas compressões sobre o tema de forma
apropriação do tema aqui estudado, abarcando os a manifestar a sua subjetividade.
principais conceitos e reflexões já produzidas em
Diante disto, foram formuladas as seguintes per-
outras literaturas. Gil (2010, p.77) fundamenta a im-
guntas para o questionário, sendo apresentadas no
portância deste procedimento, pois proporciona ao
quadro abaixo.
pesquisador uma abrangência de fenômenos muito
mais ampla do que teria se pesquisasse o fenômeno
apenas diretamente.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 145


Somando-se a isso, Joan Scott (1995) dentro do
Quadro I: Perguntas seu arcabouço na teorização de gênero o define
afirmando que:

Minha definição de gênero tem duas


partes e dois subconjuntos, que estão
inter-relacionados, mas devem ser ana-
liticamente diferenciados. O núcleo de-
finição repousa numa conexão integral
entre duas proposições: (1) o gênero é
um elemento constitutivo de relações
sociais baseadas nas diferenças per-
cebidas entre os sexos e (2) o gênero
é uma forma primária de dar significado
às relações entre os sexos (p.86).

Ademais, passamos a compreender de maneira mais


ampla a problemática da desigualdade entre os sexos.
Ao longo da história do homem, ele foi identificado
como pertencente a categoria do gênero masculino,

3.RESULTADOS E DISCUSSÕES
frente a sua estrutura biológica esteve em um patamar
de poder acima da mulher, pertencente ao gênero
feminino (FIGUEIRÊDO e BARROS, 2014, p. 203).
Além disso, Amaral et al. (2017) afirma que o conceito
3.1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA de gênero é amplo e flexível dependendo do contexto
Neste tópico serão apresentadas as concepções já histórico atual, assim como, não é estático, e sim,
construídas pela literatura científica sobre as questões maleável com os preceitos da época, ou seja, esses
gênero e diversidade sexual de forma a contextua- conceitos de transformação mediante ao tempo são
lizar a temática. reguladores de normas que regem a sociedade, e
também por meio delas é formado a identidade de
gênero do indivíduo levando em conta os aspectos
3.1.1 DEFINIÇÃO DE GÊNERO E como cultura familiar, social e religiosidade.
CONSTRUÇÃO SOCIAL
Sobre a construção social de gênero e sua denominação
As questões sobre gênero estão ganhando noto- são variadas dependendo da cultura que permeia a
riedade. Para tal, as informações precisam estar pessoa, todas essas formulações sobre o que é ser
explicitas. De acordo com Figueiredo e Barros (2014) homem ou mulher na sociedade envolvem diversos
gênero é um elemento que está relacionado à con- fatores históricos que tendem a perduram até hoje
vivência social, construído culturalmente, ancorado na sociedade. Como, por exemplo, as características
nos discursos das diferenças biológicas entre os implementadas para cada gênero como modo de
sexos. Essas discussões sobre gênero é de funda- falar e vestir são reforços para a manutenção dos
mental importância uma vez que as desigualdades comportamentos de gêneros.
se estabelecem pela falta de esclarecimentos. Por
Esse comportamento ocorre desde cedo, nas brin-
isso se tem vários vertentes esclarecimentos. Por
cadeiras onde se apresenta os objetos diferentes
isso se tem vários vertentes sobre o conceito de
para cada sexo, em que a boneca é para menina e
gênero. Na concepção de Meyer (2010) o conceito
carrinho é para os meninos. Por isso, Favero (2010,
de gênero passa:
p.01) diz que:
[...] a englobar todas as formas de
“As relações são construídas. Em nos-
construção social, cultural e linguística
sa sociocultura, a experiência do femi-
implicadas com os processos que dife-
nino e masculino faz referência a signi-
renciam mulheres de homens, incluindo
ficados particulares representados nas
aqueles processos que incluem seus
brincadeiras e nos brinquedos infantis,
corpos, distinguindo-os e separando-os
na moda, as telenovelas, dentre muitos
como corpos dotados de sexo, gênero
exemplos”.
e sexualidade” (p.16).

146 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Devido às construções sociais que definem o que é A problematização dessa temática é essencial, uma
certo ou errado para cada gênero executar, se constrói vez que os preconceitos estão enraizados. Os pre-
as desigualdades e estas por sua vez constroem os conceitos surgem a partir de uma estigmatização,
preconceitos presentes na sociedade. Esses pre- bem como afirma Gomes, Reis e Kurashige (2013) a
conceitos podem estimular a falta de conhecimento estigmatização da orientação homossexual é resul-
sobre as questões de gênero podendo estagnar co- tado das categorizações de formas de sexualidade
nhecimentos mais amplos sobre estudos de gênero. e classificações de pessoas.
Os preconceitos estão também nas mínimas tarefas
3.1.2 SEXUALIDADE E A DINÂMICA do cotidiano. O preconceito sexual se estimula atra-
DO PRE-CONCEITO vés de “piadinhas”, “brincadeiras” e várias maneiras
de bullying e surgem como algo automatizado e,
Sexo, identidade de gênero e orientação sexual são muitas vezes, encontra-se estereotipado à luz do
três âmbitos distintos de expressão ou vivência social comportamento conservador.
de uma pessoa. E são várias as possibilidades de
compreensão e expressão dentro de cada âmbito. Silva (2013, p. 15) expõe:

Esses constructos são compreendidos pelo senso O entendimento sobre preconceito é


comum (e por diversas pessoas) como algo cristalizado algo dinâmico, pois envolve relações de
e criado de forma a não ser permitida uma diversi- poder em diversas instâncias: sociais,
dade de vivencias e práticas, contudo, os estudos
políticas, econômicas, culturais, sim-
de gênero trazem uma compressão que supera este
bólicas e também o que aprendemos a
pensamento, como bem coloca Kotlinski (2012) Assim
conceituar por “raça” ou “etnia”, “cor”,
como o sexo não define necessariamente a identi-
dade de gênero, a identidade de gênero não define “classe”, “gênero”, “diversidade”, etc.
a orientação sexual de uma pessoa. Explicitando
esta dinâmica quando falamos sobre sexualidade. Porém, todas as relações sociais que resultam em
inúmeros preconceitos são, antes de tudo, ausên-
Precisamos ressaltar ainda que a partir deste olhar cias de respeito à diversidade sexual e cultural en-
cristalizado, a sexualidade é vista como um tabu e de tre os homens/mulheres de sociedades diferentes,
uma forma delimitada, sendo remetida mais ao lado que entraram em contato e obtiveram trocas sociais
reprodutivo, sendo exaltando os aspectos biológicos. desde o princípio do processo de transformação da
Connel (2009, APUD SENKEVICS e POLIDORO, humanidade.
2012) coloca que esta visão determinista, voltada
para a biologia, esta elencada em um fazer cientifico
sustentando por um senso comum e que ganha forças
quando é somada a influência das compreensões
3.1.3 O VALOR SIMBÓLICO DA SEXU-
que circulam no meio cultural e social.
ALIDADE
Diante deste contexto, a sexualidade na verdade A sexualidade é, sem dúvida, uma construção. Cons-
se refere propriamente ao exercício do autoconhe- trução de valores modernos, de comportamentos
cimento, do respeito ao próximo e da ressignificção éticos, de um processo consecutivo da percepção
do que vem a ser sexo, sexualidade, orientação se- de quem somos em condições históricas e culturais.
xual, assim como os diversos conceitos que fazem É um conceito dinâmico que vai se modificando de
parte do cenário “Sexualidade”, ultrapassando uma acordo as posições do sujeito e que não se refere
compreensão superficial, indo para uma mais ampla somente à questão do ato sexual, mas também com
e diversa (SILVA, 2013, p. 20). a relação do indivíduo com o corpo e a cultura en-
volvendo desejo, afeto e erotismo.
Portanto, um entendimento dos conceitos mais am-
plos da sexualidade nos permite levar para debate o Portanto, é válido aclarar que o conceito de sexua-
preconceito sexual, a violência contra a orientação lidade não se resume às questões biológicas refe-
sexual “homo”, a discriminação, exclusão de grupos rentes ao ato sexual e prazer físico, e se conecta à
minoritários, e especialmente discutir o respeito e a um conjunto de valores e normas que, socialmente,
tolerância, para uma convivência harmoniosa entre definem o que é compreendido como certo e errado,
todos os grupos e sujeitos sociais que foram cultu- apropriado e inapropriado, digno e indecente (CIRI-
ralmente educados dentro de uma estrutura social BELLI; RASERA, 2019, p. 3).
machista, que contribui ainda mais para a repro- Os conceitos “homem” e “mulher” abrigam o que, a
dução de preconceitos para aqueles que fogem das partir da concepção de gênero, são entendidos como
heteronormatizações (SIL-VA, 2013, p. 20). “masculino” e “feminino”. Estes conceitos carregam
consigo dimensões simbólicas a respeito da vida

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 147


social destes sujeitos, que compõem percepções de afirmação da diversidade sexual, de avanços,
de público e privado que precisam ser interpretados lutas e conquistas cotidianas. Com a emergência
no contexto social em que estes se inserem (SILVA, de movimentos sociais reivindicando a aceitação
2013, p. 21). Em outras palavras, homens e mulheres, de práticas e relações divorciadas dos modelos he-
de acordo com a categoria de gênero, são corpos gemônicos, levou-se à arena política e ao debate
com diferenciações sexuais e que, independente jurídico a ideia dos direitos sexuais, especialmente
do órgão genital, os comportamentos podem ser dos direitos de gays, lésbicas, travestis e transexuais
masculinos ou femininos. (RIOS, 2011, p. 291).
De acordo com Caballero (2016, p. 46): Rios (2011, p.291) expõe ainda que:

Bourdieu e Beauvoir constatam uma Os Direitos Sexuais devem ser com-


dominação/opressão que reside na preendidos no contexto da afirmação
ralação entre masculino e feminino, a dos Direitos Humanos, ao invés de
partir das quais se criam homens ou apartá-los e concebê-los de modo
mulheres, ou, como diria Beauvoir, paralelo aos princípios fundamentais
como os indivíduos se tornam mulhe- consagrados na Declaração Universal
res ou homens. Beauvoir relata densa- dos Direitos Humanos de 1948. Nesta
mente a educação das meninas para perspectiva dos Direitos Humanos, a
se tornarem mulheres; o que determina trajetória dos direitos sexuais tem en-
o habitus para serem moças bemcom- frentado desafios e originalidade.
portadas.
Para tal, os Direitos Sexuais, além de concretiza-
Diante disso, é notório que desde muito cedo, ho- ções dos princípios mais caros ao paradigma dos
mens e mulheres são “ensinados” a se comportar e Direitos Humanos (liberdade, igualdade e proteção
agir como tal. Desde a roupa (vestido e saia para à dignidade), são desafios presentes e necessários
meninas, por exemplo), os brinquedos (bola ou um para a concretização da democracia, especialmente
carrinho para meninos) e até à postura (“senta como em contextos como o brasileiro, onde não há forte
uma menina”) são disposições para que o indivíduo tradição na promoção destes valores.
se torne a mulher ou homem que está destinada (o)
Por isso, “cada pessoa tem o direito de reproduzir
a ser. Isso acaba, de certa forma e em alguns con-
e elaborar de modos diferentes a compreensão da
textos específicos, corroborando para a criação de
sexualidade” (TORRES, 2013, p. 10). Neste sentido,
rótulos que definem a mulher como ‘frágil e emotiva’
a luta contra a homofobia, que produz a discrimina-
e o homem como ‘racional’, por exemplo.
ção por orientação sexual sofrida por gays, lésbicas,
Os estereótipos de “masculinidade” e “feminilidade” travestis e transexuais, é emblemática e crucial. De
que a sociedade impõe a determinados indivíduos, acordo com Minayo (2006) esse engendramento de
“gays” e “lésbicas”, como o “homem afeminado” e a preconceitos e violência “é um fenômeno sócio-his-
“mulher masculinizada”, colaboram para a reprodução tórico e acompanha toda a experiência da humani-
do preconceito e da discriminação de um aspecto dade” (p.1260). É justamente nesse ponto que são
que é particular, o “modo de ser de cada um de nós”. necessárias políticas públicas para viabilizar de for-
ma igualitária os direitos, bem como, à execução
Desse modo, a construção da sexualidade é diá- e aplicabilidade das conquista por leis e diretriz já
ria. Constante. Contra todas as formas de poder, existente. Somando se a isso, a Organização Mundial
de discriminação, de preconceitos, de legitimidade de Saúde reitera que:
sexual e de imposições culturais (SILVA, 2013, p.
22). Diante disso, ambientes de que promovem o
[...] A proteção do direito à livre orienta-
ensino, bem como as escolas e institutos de ensino
ção sexual e identidade de gênero não
superior, são espaços privilegiados para desconstruir
naturalizações, criando novos sentidos e significados é apenas uma questão de segurança
a respeito de sexualidade e gênero. pública mas também de saúde, de di-
reitos humanos e de cidadania, e tam-
bém envolve, de maneira significativa,
3.1.4 OS DIREITOS HUMANOS E a saúde mental e a atenção a outras
SEXUAIS NA DIVERSIDADE vulnerabilidades próprias desses seg-
mentos (BRASIL, 2008, p.23).
Direitos humanos, sexuais e de reprodução são nor-
mas jurídicas que necessitam de uma abordagem,
Ademais, Roa (2013) afirma que “a legislação de
impreterivelmente, de afirmação de papéis sociais,

148 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


um país pode ajudar a incorporar os grupos vulne- carência dentro dos debates em sala de aula.
ráveis ao exercício de uma cidadania plena, que
É observado ainda, dentro de uma das narrativas,
lhes garantisse o exercício de seus direitos sexuais”
que seria pertinente a extensão dessa inserção não
(p.230). Somente assim, os Direitos Sexuais são
apenas ao curso de Psicologia, mas também aos
desenvolvidos. Superar injustiças e construir padrões
demais. Através dessa ação seria uma forma de re-
mais democráticos e pluralistas no convívio social
passar informações muitas vezes desconhecidas por
onde a diversidade e o respeito são valores básicos
parte dos acadêmicos, e até o início de um combate
e necessários para todos.
a ideias pré concebidas, funcionando assim como
uma psico-educação.
3.2 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Araújo e Camargo (2012) contribuem com ambos os
Diante do que foi proposto nas observações para que relatos ao enfatizarem que a inserção de debates
pudéssemos chegar a um parecer sobre a temática, sobre gênero e diversidade sexual nesse ambien-
Borges et al (2013, p. 732) diz que: te de aprendizagem possibilitaria aos discentes a
sensibilização do respeito ao outro e que falar sobre
“os discursos que circulam no campo esses temas é uma questão social e política, que
acadêmico justifica-se pelo fato de que deve estar ao alcance de todos, uma vez que somos
os discursos produzidos nesse contexto enquanto ser subjetivos e sociais.
específico, mais do que um lugar de Claro, é desafiador a ideia de transformar concep-
difusão de conhecimento, são dotados ções vindas de longos anos, no entanto, a propos-
da capacidade de constituir o próprio ta contribuiria para o rompimento de perspectivas
campo discursivo”. cristalizadas pelo senso comum acerca de gênero
e sexualidade, que muitas vezes são geradoras de
Nesse sentido, sentiu-se a necessidade de indagar preconceitos e discriminação.
aos entrevistados, com a finalidade de verificar a
Em contraponto, também há discentes que acre-
concepção dos mesmos, sobre a inserção do tema
ditam que a temática é bem discutida no ambiente
debatido na grade curricular, uma vez que se suben-
acadêmico, como diz Violeta:
tende que dentro de uma instituição é relevante ter a
perspectiva dos acadêmicos que estão diretamente
em contato com os conteúdos ex-postos dentro de “Não identifico deficiência, pelo contrá-
sala. rio, creio que o tema é bem trabalha-
do e estudado de forma que abranja o
Assim, Gênero e Diversidade Sexual para Tulipa é olhar dos estudantes.”
compreendido como:
Entendemos que os discursos sobre Gênero e Diver-
“Um tema pouco falado, embora seja sidade Sexual no ambiente acadêmico são diversos
algo importante a tratar com os alu- sendo permeados por distintos posicionamentos, o
nos, e dessa forma podendo fazer ati- que nos leva a refletir sobre como essas duas te-
vidades como palestras, mas não algo máticas estão sendo explanadas neste meio. No
chato e cansativo, mas com uma forma entanto o que se observa pelas falas supracitadas é
dinâmica a trabalhar o tema”. que muito ainda precisa ser feito, para que ocorram
inclusão e aceitação da maneira como cada um vive
Em concordância, a estudante Camélia ressalta que: e com quem quer viver.
Borges et al (2013, p. 732) ainda diz que a plura-
“Esse tema deveria ser, mais expan- lidade de atuação profissional de psicologia, (com
dido em outras áreas também, pois o pesquisa, formação e intervenção) necessitando de
preconceito e a falta de conhecimento contínuo investimento na qualificação profissional
faz com que essa temática seja vista para o combate das desigualdades sociais. Trazer
como, revelação de homossexuais, se- a ótica de gênero para a psicologia tradicional (que
xualidade excessiva e uma infinidade preza um campo neutro e disciplinar) tem sido um
de outras coisas.” dos grandes desafios que esta área vem enfrentan-
do, uma vez que para a discussão desta temática é
Dentro dos discursos apresentados é perceptível que necessário um posicionamento político e um olhar
ambas defendem a ideia de que se trata de um tema interdisciplinar.
importante a ser inserido na grade curricular visando Acerca da disciplina “Psicologia de Gênero” e a forma
mais notoriedade, e que esse ainda se encontra em que ela pode contribuir ou prejudicar a formação e

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 149


exercício da profissão de futuro psicólogo, Tulipa diz: É fato que ainda nesses discursos volta a vir em pauta
à necessidade de esclarecer mais aos discentes as
“Sim, pode contribuir em esclarecer e dúvidas e barreiras que ainda se encontram entre
mostrar aos alunos o quão é importan- os mesmos e Gênero e Sexualidade.
te conversar sobre esse assunto, pois Sobre a influência da Psicologia no atual posiciona-
infelizmente existem alunos com pre- mento acerca do tema “Gênero e Diversidade Sexual”,
conceito em relação em falar sobre o os entrevistados revelam:
tema, pois não se interessam a saber
como é, pois tem a mente fechada a “A psicologia abriu ainda mais a mi-
isso, e depois de formados é de uma nha mente a esse tema, embora já
grande importância para que não seja soubesse um pouco sobre, ao cursar
um estúpido ao exercer sua profissão”. psicologia sei que meus pensamentos
evoluíram bem mais.” (Tulipa)
Violeta e Camélia ainda reintegram, respectivamente:
“Apenas fortificou o que já acreditava,
“Só vem a contribuir, pois nós estudan- que isso é algo de suma importância e
tes e futuros psicólogos temos que ter aceitável.” (Violeta)
flexibilidade para debater diversos as-
suntos e abrir a mente daqueles que de “Eu já tinha uma opinião positiva sobre
certa forma não compreendem o tema.” o tema, e só veio para melhorar e es-
“Sim, contribui para o conhecimento clarecer certas dúvidas e até mesmo
sobre gênero, tirar dúvidas sobre a reforçar sobre a diversidade sexual”
disciplina, saber diferenciar, ajudar os (Camélia)
clientes a solucionar seus conflitos.”
A psicologia aponta a importância da subjetividade
Essas três perspectivas vem acrescentar que a com- e de seu respeito, além de ser capaz de despertar
preensão dos estudos acerca de gênero e sexualidade nos discentes da área o interesse em elaborar es-
torna-se imperativa para a Psicologia refletir sobre a tratégias que combatam o preconceito, promovendo
própria produção acadêmica, como esta ciência tem o respeito, dignidade e alteridade.
absorvido as concepções sobre a temática no dia
a dia do ensino e, como o conhecimento adquirido Como contribuição para o debate do tema de gênero
na graduação vem contribuir para o futuro exercício e diversidade sexual, podemos perceber nas discus-
da profissão. sões dos entrevistados, que essa permite ainda na
graduação o esclarecimento de dúvidas, transmis-
A formação do profissional de psicologia e como são dos debates presentes na atualidade e reforça
essa será vivenciada afeta a qualidade do exercí- a relevância de se estar a par do que envolve as
cio da profissão, de seus serviços prestados. Essa subjetividades humanas.
formação deve, portanto, propiciar aos acadêmicos
um conjunto amplo e diversificado de conhecimen- Maia e Pastana (2018) integram nessa ideia enfa-
tos teóricos e práticos permitindo a compreensão tizando que é necessário aprofundar-se refletindo
do seu objeto de estudo, respeitando a formação acerca da organização social que são geradores
de um profissional que tenha compromisso com a dos elementos em debate, entendendo que somos
realidade do homem na atualidade. (ASSUNÇÃO; repercussões da mesma sociedade e envolvidos com
SILVA. 2018, p.5). as questões que debatemos.

Através dessa amplitude de informações na quali- As mesmas autoras ainda revelam que é indispensável
ficação durante a graduação torna-se possível que que o profissional de psicologia possa considerar a
esse profissional se liberte dos estigmas provindos existência da diversidade do sujeito, buscando ques-
do desconhecimento acerca do tema e passe a ter tionar a reprodução de normas, valores e praticas
um olhar livre de julgamentos, garantindo assim aos heteronormativas, e para que isso seja possível é
seus futuros pacientes uma abordagem pautada na necessário que durante a construção do profissional
humanização e ética. ainda na graduação, seja possível existirem momentos
que sejam possíveis as reflexões sobre a questão
Do ponto de vista da condução das discussões, de gênero e diversidade sexual.
nota-se que, tanto para o gênero quanto para as
sexualidades, prevalece uma discussão baseada Por a graduação de psicologia possibilitar a expan-
em acepções fixas sobre as identidades sexuais. são do senso crítico dos discentes acerca da reali-
(BORGES et al., 2013, p. 740). dade nas aulas, principalmente na instituição onde

150 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


foi realizada a pesquisa que atualmente adota uma “Sim, (as leis) são boas. Assim como
metodologia ativa, onde os discentes também são para qualquer área da sociedade, há
protagonistas nas aulas, acaba assim possibilitando coisas a serem melhoradas”.
uma abertura de ideias perante os debates dos con-
teúdos expostos. Esse método é bastante propicio Camélia contrapõe:
para despertar o interesse dos discentes na pesquisa
sobre os temas, visando contribuir com as aulas e Não, porém, as leis são bem claras
consequentemente o interesse sobre o tema. para todos, igualdade para todos, mas,
Compreende-se, portanto que a inserção do deba- a população carece de ter leis mais
te sobre questões de gênero e diversidade sexual, específicas, como por exemplo, a Lei
possibilitaria que os discentes o interesse sobre o Maria da Penha, já existiam leis sobre
tema, uma vez que seria reforçado dentro de sala a violência, tiveram que especificar por
relevância do debate da diversidade para a profis- conta da população precisar de mais
são e sociedade, além disso, exerceria a função de apoio em relação a mulher, a mesma
agregar, com a seriedade que ela traz como ciência, coisa no caso dos homoafetivos, exis-
nessa construção de sujeitos críticos. tem leis para todos, porém, por conta
A partir das falas percebe-se mais um exemplo da de preconceitos e estereótipos, preci-
importância de discutir sobre Gênero e Diversidade saria sim de uma lei mais específica.
Sexual no ambiente acadêmico, a fim de construir
sujeitos sociais críticos que reproduza em sociedade Observam-se, a partir dessas duas concepções, as
uma nova mentalidade em relação ao tema, extinguin- divergências nos discursos referentes às leis e que
do o preconceito e acabando com a “patologização” beneficiam a população LGBT do Brasil. Em relação
quanto ao gênero e às sexualidades. aos direitos humanos, as produções acadêmicas
constituem uma produção discursiva múltipla, que
Temas como direitos humanos, direitos sexuais e nos leva a refletir sobre a necessidade de uma am-
políticas públicas precisam sim ser discutidos, não pliação de estudos referentes a essa temática, bem
podendo estar fora dos temas para a Psicologia. como estratégias metodológicas diversificadas que
Elas são necessárias para uma formação integral e levem a uma compreensão mais abrangente sobre
crítica dos futuros profissionais, mas além de uma gênero e diversidade sexual.
simples preocupação com conteúdo, é preciso es-
tar atento para as demandas atuais da sociedade, Assim, estudos que objetivam refletir sobre o tipo de
que possibilitam para a criação de projeto e práticas conhecimento que a Psicologia tem produzido, tem
novas que possam responder a essas demandas. papel importante para desestabilizar regras rígidas
(BORGES, 2013, p. 743) referentes ao que é masculino e feminino e as sexu-
alidades. Essas versões, uma vez naturalizadas são
É evidente assim, que esses temas podem vir a serem ensinados e aprendidos nas Universidades, trazendo
beneficiadores de manutenção e/ou superação das profundos efeitos nas práticas profissionais nos diver-
opressões sofridas dentro desse contexto de gênero sos campos em que a psicologia atua, como clínica,
e sexualidade, e reforçando. trabalho, no ensino, pesquisa, políticas públicas e
Ao existirem programas governamentais que tenham da família. (BORGES et al. 2013, p. 743)
por objetivo o atendimento das necessidades universais Quando se fala sobre uma preparação, de um futuro
e não apenas de apenas uma parcela da população, profissional, para atender um indivíduo que esteja
pode contribuir para a luta contra a desigualdade passando por conflitos relacionados à sua sexuali-
existente por exemplo. dade, Violeta e Camélia relatam:
Jesus (2016) nos relembra que embora a Consti-
tuição brasileira datada de 1988, especificamente “Ainda há muito a aprender, mas sim,
em seu artigo 3º, enfatize a igualdade de direitos e estou preparada.” (Violeta)
defenda o não preconceito, buscando a promoção
do bem para todos, ainda é possível perceber que “Sou aluna do 4º período, ainda tem
muitos (em principal a população LGBT) ainda têm muitas coisas para aprender e expe-
seus direitos prejudicados e a dignidade humana rimentar, eu sou muito tranquila em
ameaçada, abrindo assim uma contradição entre a relação de apenas dar minha opinião
lei e a realidade. sobre assuntos esporádicos no caso
No que se refere a leis suficientemente boas para de gênero, mas, não de atender um
atender a população LGBT de nosso país, Violeta diz: indivíduo, isso é bem mais delicado de
tratar, pois são conteúdos intensos e

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 151


conflitantes.” (Camélia) vivências igualitárias dos LGBTS”. Essas temáticas
tornam-se profícuas para que se possam enfrentar
A partir das duas concepções, nota-se a necessi- preconceitos tão latentes na sociedade que mutilam
dade ainda de se proceder as investigações sobre os direitos que o ser humano tem quanto cidadãos.
os discursos que transitam no curso de Psicologia,
bem como a imprescindibilidade de uma ampliação
de estudos sobre gênero e diversidade sexual nos
REFERÊNCIAS
cursos para que se possam formar indivíduos capa-
zes de lidar com as diversas situações com as quais ALMEIDA, D. P. Quando a cura não se mostra
estarão se deparando em sua prática profissional. alcançável: Sentidos e significados da cronici-
dade em um diálogo entre portadores da sida/

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
aids e esclerose múltipla. Dissertação (Mes-
trado) Universidade Federal do Amazonas¬_
O assunto nos faculta um empoderamento de UFAM, Manaus. 2015.
que estamos em um processo de mudanças, len-
tas, porém que estão ocorrendo, evidenciando que AMARAL, A. M et al. Adolescência, Gênero e
se precisa de uma discussão mais ampla acerca sexualidade: Uma revisão integrativa. Revista
da temática. Em suma maioria a sociedade ainda Enfermagem Contemporânea. v.6, n.1, p.62-
tem seus preconceitos que são visíveis em muitos 67, 2017.
comportamentos.
ARAÚJO, R. P; CAMARGO, F. P; Gênero Diver-
Gênero e Diversidade Sexual ainda é um tema sidade Sexual e Currículo: um diálogo possível
desconhecido, pois quando se tem um diálogo, fica e necessário In IRINEU, B. A; FROEMMING,
perceptível a ignorância de muitos que qualificam C.N (org). Gênero, Sexualidade e Direitos:
os semelhantes como uma aberração da natureza, Construindo Políticas de Enfrentamento ao
estigmatizando com palavras de baixo escalão e
Sexismo e a Homofobia. Palmas, 2012.
insultos. A repulsa acaba levando a não aceitação do
outro, acontecendo até mesmo dentro de um ambiente ASSUNÇÃO, M. M. S; SILVA, L. R. Formação
familiar. Logo surgem alguns questionamentos, será
em psicologia e diversidade sexual: atraves-
que esses pais não aceitam seus filhos? Ou tem
samentos e reflexões sobre identidade de gê-
medo de que suas proles sofram por suas escolhas?
nero e orientação sexual. Pretextos-Revista da
A sociedade ainda é machista e autoritária. Mesmo a Graduação em Psicologia da PUC Minas, v. 3,
pesquisa revelando uma pequena e discreta melhora n. 5, p. 3-5, 2018.
no pensar dos participantes entrevistados, ainda há
muito a ser feito para que se evitem as exclusões BRASIL. Ministério da Saúde. Temático pre-
que os LGBTs sofrem, onde buscam ter seus direitos venção de violência e cultura de paz III. Bra-
garantidos, não de forma desordeira, mas por meios sília: Organização Pan-Americana de Saúde,
de leis que lhes assegurem o direito de ir e vir e com p. 23, 2008.
quem bem quiser, pois são cidadãos que lutam por
uma sociedade humanizada. BONI, V; QUARESMA, S. J. Aprendendo a en-
Portanto, levar a temática para ser dialogada no nível trevistar: como fazer entrevistas em Ciências
acadêmico é proveitoso, visto que, a Psicologia vem Sociais. Revista Eletrônica dos Pós-Graduan-
sendo constantemente inserida em debates e dis- dos em Sociologia Política da UFSC. v.2, n.1
cussões sobre o assunto, pois busca um bem estar , 2005, p. 68-80.
físico e psíquico dos indivíduos; além de procurar
uma maior compreensão sobre a relevância desses BORGES, I. A. Gênero, Sexualidade e Diver-
dois grandes temas para evolução da educação, sidade na Educação. Faculdade de Ciências
no que diz respeito às diferenças e ao combate a da Educação e Saúde – FACES. Brasília/DF,
violência, na perspectiva dos alunos de Psicologia 2016, p. 1-20.
e ampliar para outras áreas do conhecimento que
serão passadas de forma clara para a sociedade. BORGES, L. S et al. Abordagens de Gênero
e Sexualidade na Psicologia: Revendo Con-
A partir desse trabalho surgiram possíveis temáticas ceitos, Repensando Práticas. Revista Psicolo-
que podem ser aprofundadas e estudadas, “diver- gia: Ciência e Profissão, v.33, n.3, p. 730-745,
sidade sexual: desestigmatizar os estereótipos por
2013.
meio de políticas públicas”; “Sou igual a você: Leis
que asseguram a inclusão na sociedade tornando as CABALLERO, A. I. M. A desigualdade entre os

152 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


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Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 153


CAPÍTULO
20

IDEAÇÃO SUICIDA EM PESSOAS IDOSAS: CONTRIBUIÇÕES


DA TERAPIA COGNITIVO - COMPORTAMENTAL

RESUMO
Este estudo trata-se de uma revisão de literatura, a qual objetiva
Cintia Glaupp Lima dos
Santos analisar como a Terapia Cognitivo-Comportamental pode contribuir
ESTÁCIO para o tratamento de pessoas idosas com ideação suicida. O interesse
em realizar esta pesquisa surgiu da constatação do alto número de
Lívia Maria Monteiro pessoas idosas com o desejo de se matar. Uma intervenção adequada
Santos pode contribuir para a prevenção, manutenção e tratamento da
ESTÁCIO
saúde mental e qualidade de vida do idoso, evitando, possivelmente,
o sofrimento oriundo da ideação suicida. Nessa perspectiva, a
Maria das Graças Teles
TCC se coloca como estratégia terapêutica que pode orientar o
Martins
ESTÁCIO psicoterapeuta quanto às intervenções apropriadas e eficazes diante
desse tipo de situação. Para a realização da pesquisa foi utilizada
uma bibliografia oriunda de artigos localizados nas seguintes bases
de dados: Biblioteca Virtual em Violência e Saúde da BIREME e
SciELO. Foram utilizados também livros que se relacionam com os
objetivos da pesquisa. A Terapia Cognitivo-Comportamental possui
recursos eficientes para a remissão dos sinais e sintomas referentes
ao desejo de morrer. A pessoa com ideação suicida é aquela que se
posiciona mais próxima dos atos suicidas, pois possui um desejo
de acabar com a própria vida. Assim, poderá expressar crenças
distorcidas sobre si mesmo, o mundo e o futuro, apresentando,
portanto atitudes disfuncionais em relação às experiências vividas.
As estratégias que compõem as intervenções terapêuticas fazem
parte de um plano de segurança elaborado de forma colaborativa
entre terapeuta e paciente, as quais buscam a modificação de crenças
desadaptativas, um significado para a vida e o aumento da habilidade
de resolutividade de problemas.

Palavras-chave: Terapia Cognitivo-Comportamental; Idea-

ção Suicida; Idoso.


10.37885/200400142
1.INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva analisar as contribuições da
2.CAMINHO METODOLÓGICO
Para a verificação empírica do problema apre-
Terapia Cognitivo- Comportamental no tratamento de sentado neste estudo, faz-se essencial delinear o
pessoas idosas com ideação suicida. Por isso identi- caminho metodológico a partir do emprego da pesqui-
fica os principais fatores de risco para pensamentos sa bibliográfica, prática comum aos trabalhos desta
suicidas entre idosos, descreve as principais distor- natureza, que se apropriam de fontes bibliográficas
ções cognitivas dessa população com intenção de para se fundamentar.
se matar e caracteriza as estratégias de intervenção
A principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside
da terapia cognitivo- comportamental voltada para
no fato de permitir ao investigador a cobertura de
esse público no que se refere a essa problemática.
uma gama ampla de fenômenos. Esta vantagem se
O interesse em realizar esse estudo surgiu da carência torna particularmente importante quando o proble-
em pesquisas no Brasil e na América Latina sobre a ma de pesquisa requer dados muito dispersos pelo
intenção suicida (SILVA et al, 2015) e da constatação espaço (GIL, 2010, p.50).
do crescente número de suicídio entre idosos.
Este estudo se construiu considerando uma delimi-
Minayo e Cavalcante (2010) afirmam que a população tação do universo, que se concretizou a partir de um
idosa brasileira vem crescendo, logo problemas sociais levantamento bibliográfico pertinente e de acordo
e de saúde que atingem esse público merecem um com o tema que se investigou.
olhar atento da sociedade em geral, pois as taxas de
Desse modo, para a realização da pesquisa foi utili-
suicídio na população brasileira acima de 60 anos
zada uma bibliografia oriunda de artigos localizados
é o dobro quando comparado com a população em
nas seguintes bases de dados: Biblioteca Virtual em
geral. No que concerne às tentativas de suicídio, os
Violência e Saúde da BIREME e SciELO. As pala-
dados são ainda maiores.
vras-chaves utilizadas foram os vocábulos cruzados
Segundo pesquisa desenvolvida por WHO/Euro Mul- “ideação suicida e idoso”, “terapia cognitivo- compor-
ticentre study of Suicidal Behavior apud Minayo e tamental e idoso” e “terapia-cognitivo- comportamental
Cavalcante (2010), treze países da Europa evidenciam e suicídio”, as quais resultaram na identificação de 14
uma média de 29,3/100.00 casos de suicídio entre artigos, que foram lidos, resultando em 7 referências
pessoas idosas com mais de 65 anos e uma taxa relevantes para o tema deste estudo, publicados
ainda maior de tentativas de suicídio 61,4/100.000. entre 2005 e 2015. Foram utilizados também livros
que se relacionam com os objetivos da pesquisa.
Embora se constate o aumento de idosos brasileiros,
no país há uma escassez de políticas públicas rela- Foram seguidas as orientações estabelecidas por
cionadas ao tema, prejudicando, assim a elaboração Gil (2010) no que se refere aos objetivos das lei-
e desenvolvimento de tratamento adequado à inten- turas que se fizeram na pesquisa bibliográfica que
ção de morte por autoviolência (SILVA, et al, 2015). são as seguintes: identificação das informações e
dados apresentados pelos materiais; organização
Nesta perspectiva, compreende-se ser necessária
das relações entre essas informações e o problema
e pertinente a realização desta pesquisa que pode
proposto; análise da consistência das informações
contribuir para a prevenção, manutenção e tratamento
e dados apresentados pelos autores.
da saúde mental e qualidade de vida do idoso, evitan-
do, possivelmente, o sofrimento oriundo da ideação Para o cumprimento dos aspectos éticos e legais o
suicida. Além disso, esse estudo pode colaborar para projeto que originou esta pesquisa foi submetido ao
que mortes sejam evitadas, orientando o psicólogo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Estácio
quanto às intervenções terapêuticas eficazes diante de Macapá, para emissão da certidão de isenção. O
desse tipo de situação. trabalho foi baseado em uma metodologia qualitati-
va com revisão bibliográfica, portanto não utilizou o
A Terapia Cognitivo-Comportamental, por intermédio
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
de Aaron Beck e colaboradores, se apresenta como

3.
abordagem que investiga os fatores de risco de pes-
soas com ideação suicida e que já tentaram abreviar
TERAPIA COGNITIVO - COMPORTA-
suas vidas, logo pode disponibilizar recursos para
MENTAL E IDOSO COM IDEAÇÃO
o atendimento do idoso com intenção de cometer o
SUICIDA
suicídio, possibilitando meios para a reestruturação
O envelhecimento da população antes visto como um
de pensamentos distorcidos e o desenvolvimento de
fenômeno possível é, na atualidade, uma realidade.
habilidades para a solução de conflitos.
A população de pessoas com mais de 65 anos no
Brasil “cresceu de 2,8% em 1960 para 3,1% em

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 155


1970, 4% em 1980, 4,8% em 1991 e 5,1% em 2000. experiências se não conduzidos de forma adequada
Prevê-se uma taxa de (...) 7,7% em 2020” (NERI, poderá contribuir para pensamentos autodestrutivos.
2013, p. 16).
Segundo WENZEL; BROWN; BECK, (2010) os ido-
Neri (2013) ainda sustenta que com o avanço do sos possuem maior probabilidade se comparados a
envelhecimento aumenta a necessidade de oferta adultos jovens de vivenciarem graves doenças, que
de serviços de reabilitação cognitiva e de apoio psi- podem resultar em “mobilidade restringida, perdas
cológico a idosos, já que o avanço da velhice está interpessoais e perda de papéis profissionais” WEN-
associado a um risco aumentado de vulnerabilidade ZEL; BROWN; BECK, (2010, p. 226). Tais eventos
e disfuncionalidade. A psicologia do envelhecimen- colaboram conforme os autores para a ideação suicida.
to focaliza as mudanças nos desempenhos cogniti-
Essas situações podem trazer dificuldades para o
vos, afetivos e sociais, bem como as alterações em
enfrentamento e ressignificação cognitiva, dessa for-
motivações, interesses, atitudes e valores que são
ma, são “possíveis às manifestações do desejo de
característicos dos anos mais avançados da vida
se matar ou alguma ação nesse sentido” (MINAYO;
adulta e dos anos da velhice.
CAVALCANTE, 2010, p. 754), prejudicando a crença
Os acontecimentos no decorrer da vida influenciam o na capacidade de realizar ações que resultarão no
desenvolvimento humano, colaborando para a maneira efeito pretendido, circunstância que poderão preju-
como a pessoa irá reagir diante dos obstáculos. Logo dicar a escolha dos comportamentos, resultando em
a concepção e ações do indivíduo serão singulares, baixa qualidade de vida.
visto que são provenientes da história de vida de
A esse respeito Wenzel; Brown e Beck (2010) escla-
cada um (FORTES; NERI, 2013).
rece que intervenções voltadas para a manutenção
As percepções positivas sobre suas experiências e do senso de autoeficácia ocupa papel primordial no
sobre sua vida colaborarão significativamente para a desenvolvimento do bem- estar dos idosos.
saúde mental desse sujeito e para o pronto restabe-
Para isso se faz necessário um planejamento ade-
lecimento quando vivenciarem situações que causem
quado por parte da saúde pública para criação e
sofrimento. Ainda possibilita que o idoso exerça um
manutenção desse bem- estar , a fim de que seja
alto poder de resolutividade de problemas.
evitada a consumação do suicídio. Vê-se na Terapia
A forma como esse indivíduo se percebe influen- Cognitivo - Comportamental (TCC) um recurso eficaz
ciará na construção e manutenção de uma velhice no tratamento desses idosos e na não realização
“bem-sucedida”, podendo desfazer a ideia de que do suicídio.
velhice e envelhecimento possuem relação direta e
A TCC se baseia no princípio de que “as experiên-
obrigatória com doenças e inatividade (NERI, 2013). O
cias emocionais das pessoas são determinadas pela
idoso na sociedade ocidental contemporânea embora
maneira como percebem, interpretam e julgam as
ainda viva sob a sombra de estigmas de inatividade
implicações dessas situações” (WENZEL; BROWN;
e improdutividade, já constrói um novo perfil para
BECK, 2010, p. 51), logo uma intervenção adequada
sua atual realidade.
pode contribuir para uma avaliação do pensamento
O idoso com ideação suicida é aquele que se posi- de forma realista e mais adaptativa, levando o pa-
ciona mais próximo dos atos suicidas, pois possui ciente a uma melhora em seu estado emocional e
um desejo de acabar com a própria vida, poderá ex- no seu comportamento (BECK, 2013).
pressar crenças distorcidas sobre si mesmo, o mundo
A TCC se coloca como estratégia psicoterapêutica
e o futuro, apresentando, portanto “mais atitudes
que pode colaborar na construção de uma reestrutu-
disfuncionais do que outros pacientes psiquiátricos”
ração cognitiva do paciente que poderá vê o mundo,
(WENZEL; BROWN; BECK, 2010, p. 66), fator que
o outro e a si mesmo, a partir de um olhar menos
pode ocasionar incoerências na avaliação dos fa-
disfuncional, resultando numa melhora do humor do
tos, podendo “gerar reações emocionais dolorosas
paciente e no aumento de sua qualidade de vida.
e comportamento disfuncional” (WRIGHT; BASCO;
Com base na conceitualização cognitiva pode ser
THASE, 2008, p. 19).
possível a seleção de intervenções adequadas para
Essa autora sustenta que enfermidades físicas como a demanda trazida pelo paciente, no caso desse
o câncer ou ainda idosos acometidos por doenças estudo a ideação suicida de idosos.
graves, quando em seu estágio terminal podem
Pensamentos automáticos podem ser identificados,
se apresentar de modo mais vulnerável a ideação
devendo o terapeuta e paciente segundo Beck (2013)
suicida, além disso, doenças psiquiátricas como a
investigar as motivações que fundamentam essas
depressão e fatores sociais como a perda de uma
cognições. Para isso técnicas podem ser usadas
pessoa querida podem ser considerados fatores de
com o intuito de evidenciar tais pensamentos e suas
risco para a abreviação da vida. Esses eventos e
crenças a fim de oportunizar ao paciente a elaboração

156 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


de um modo de pensamento saudável. sentadoria, impossibilidade de exercer a profissão
por surgimento de doenças crônicas” (SOUSA et al,
Além disso, o terapeuta deverá orientar o paciente,
2014, p. 398), afetam diretamente os idosos, devido
objetivando que seu cliente perceba e compreenda
às mudanças de seus papeis sociais.
seus pensamentos desadaptativos, para, então, agir
frente as questões que surgem e que podem trazer Deve-se mencionar também a morte de uma pes-
sofrimento. O terapeuta deve ensinar seu paciente soa querida, principalmente de um cônjuge; medo
a ser seu próprio terapeuta, trabalhando em prol de do prolongamento da vida sem dignidade, trazendo
sua saúde psíquica e sua autonomia. prejuízos econômicos e emocionais aos familiares;
isolamento social; ou situações de dependência fí-

4.RESULTADOS E DISCUSSÕES
sica ou mental diante das quais o idoso se sente
humilhado. (MINAYO; CAVALCANTE, 2010).
Existem muitas variáveis associadas aos pensamentos
e atos suicidas, que devem ser avaliadas pelo psicólogo
4.1 FATORES DE RISCO PARA IDEA- e usadas para formar um entendimento abrangente
ÇÃO SUICIDA ENTRE IDOSOS do nível de risco de suicídio de um paciente idoso,
buscando o trabalho preventivo e evitando o auto
Diante da análise da literatura, considera-se que os aniquilamento. (WENZEL; BROWN; BECK, 2010).
principais fatores de risco para ideação suicida são
as variáveis: Patológicas, Psicológicas e Sociais.
Minayo e Cavalcante (2010) afirmam que no caso dos 4.2 DISTORÇÕES COGNITIVAS DE
idosos, o processo de adoecimento mental, problemas IDOSOS COM INTENÇÃO SUICIDA
de saúde física, isolamento e à falta de suporte social,
são um dos fatores que se relacionam à ocorrência As cognições influenciam indelevelmente as emo-
de suicídio. A presença de algumas doenças graves ções e os comportamentos gerando pensamentos
é considerada um fator de risco para o suicídio de disfuncionais e distorções cognitivas que contribuem
pessoas idosas. para a manutenção das psicopatologias.

Os autores são unânimes em afirmar que na variá- A maneira que as pessoas reagem frente a uma
vel patológica, podemos elencar a depressão maior, dada situação definirá os seus comportamentos que
limitações físicas como dificuldade locomotora, trans- consequentemente causarão distorções cognitivas.
tornos mentais e câncer. Essas doenças geralmente Botega (2014) afirma que outro aspecto a ser lem-
acometem os idosos, o que pode levá-lo a ideação brado é que uma tentativa de suicídio sempre vem
suicida. acompanhada de pensamentos disfuncionais, que
elevam o risco de uma futura efetivação desse intento.
Nos casos de doenças graves pesam muito para Por esse motivo, as tentativas devem ser encaradas
os idosos, a convivência com dores físicas que se com seriedade dando especial atenção a pessoa que
intensificam e problemas ligados ao desempenho tentou se suicidar, utilizando como uma das principais
sexual, que criam uma situação insuportável. estratégias para se evitar a morte autoinflingida.
No que se refere ao câncer existe sempre a amea- As razões mais frequentes de distorções cognitivas
ça da morte, em razão disso pode apresentar para em idosos com ideação suicida estão associadas as
o idoso, consequências sérias em relação ao seu suas crenças de desvalor, despropósito, inadequação,
estado mental. (CAVALCANTE et al, 2014). de desamparo ou o simples fato de se sentirem fardo
Fatores Psicológicos também afetam e agravam a para as pessoas. (WENZEL; BROWN; BECK, 2010).
ideação suicida de idosos, e está relacionado direta- Com os pensamentos suicidas os idosos ficam mais
mente com a desesperança, luto patológico e solidão. vulneráveis a cometer o suicídio propriamente dito,
Wenzel, Brown e Beck (2010) afirmam que a de- em razão disso não sentem mais a vontade de viver,
sesperança é prevalente entre idosos em eventos devido às várias dificuldades enfrentadas na velhice
no contexto de vida que foram marcados por per- e o não apoio familiar influênciam na tomada de
das interpessoais. O luto patológico aparece como decisão do idoso.
síndrome que é distinta de depressão associada a Os pensamentos de suicídio variam desde o remo-
uma perda, que vem em acréscimo com a solidão to desejo de estar simplesmente morto, até planos
que geralmente é experimentada entre aqueles que minuciosos de se matar. Os pensamentos relativos
moram sozinhos. à morte devem ser sistematicamente investigados,
Fatores de risco preocupantes em relação à ideação uma vez que essa conduta poderá prevenir atos sui-
suicida estão no contexto social e cultural, “apo- cidas, dando a possibilidade ao doente de expressar

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 157


o que está a sentir. 293). A distorção presente na percepção da própria
vida colabora para a concepção e manutenção da
Essas distorções afetam a visão que a pessoa com
dor sentida pelo paciente.
ideação suicida apresenta sobre si mesma, suas
experiências, relacionamentos e desenrolar de sua À vista disso, a TCC assevera como elemento precí-
vida. A ativação desses padrões cognitivos negativos puo para a elaboração de seu plano de intervenção
resulta nos sinais e sintomas t´picos da ideação sui- a ideia de que são as interpretações dos fatos que
cida. Dessa forma, o idoso se ver incompetente para colaboram para o sofrimento psíquico do indivíduo e
fazer alguma atividade, acredita que suas interações não propriamente o fato (SAFFI; SAVOIA; LOTUFO
sociais são desagradáveis, causando isolamento e NETO, 2009).
sentimentos de solidão (FERREIRA; LIMA; ZERBI-
NATTI, 2012) É necessário destacar que em casos de idosos
com ideação suicida a TCC poderá trabalhar para
De acordo com Cavalcante et al (2015) o idoso deve transformar pensamentos e comportamentos desa-
readaptar sua vida, uma vez que as distorções cog- daptativos oriundos dos problemas de vida, refletir
nitivas aparecem associadas ao isolamento social, acerca desses problemas a fim de que o paciente se
ansiedade, qualidade de vida, saída dos filhos e empodere de estratégias e recursos que favoreçam
aposentadoria, causando à desorganização cognitiva a resolutividade de suas dificuldades, além de iden-
e à falta de esperança. tificar possibilidades para vivenciar o cotidiano de
forma prazerosa (WENZEL; BROWN; BECK, 2010).
É importante para o idoso manter o seu equilíbrio
emocional e psíquico. Necessitando reorganizar o Em relação às intervenções analisadas a partir da
tempo livre, a ausência de horários e de responsabi- literatura especializada foram descritas neste estudo
lidades laborais. Também a vida conjugal tem de se de modo aleatório, visto que seu desenvolvimento se
readaptar a um novo convívio, pois a saída dos filhos realizará conforme as especificidades identificadas
de casa, por um lado, e o abandono das atividades na avaliação de cada paciente. São elas:
profissional afeta a rotina do idoso.
• Identificação de razões para viver: na avaliação
Wenzel; Brown e Beck (2010) afirmam que expe- do idoso suicida observa-se uma ênfase em pensa-
riências de vida negativas, problemas de saúde, mentos disfuncionais. Desse modo o terapeuta deverá
conflitos interpessoais ou rejeição, experiências em ação colaborativa com o paciente, “identificar
traumáticas e aposentadoria são motivações para razões para viver” (WENZEL; BROWN; BECK, 2010).
distorções cognitivas. Essa identificação ajuda o paciente a se contrapor
diante de cognições de desesperança (WENZEL;
Camargo e Andretta (2013) sustentam que o objetivo
BROWN; BECK, 2010).
principal da TCC no enfrentamento da ideação suicida
é produzir mudanças nos pensamentos e nas crenças • Aumentando as atividades prazerosas: o idoso
do paciente para que com isso seja possível modifi- com pensamentos suicidas frequentemente não iden-
car déficits cognitivos e comportamentais, tornando tifica atividades prazerosas no seu dia-a-dia. Assim
essa mudança duradoura. Essa teoria tem o intuito faz-se necessário que a partir de técnicas da TCC,
de auxiliar na identificação de distorções cognitivas sejam descobertas fontes de prazer do paciente, que
e consequentemente alteração de humor. podem aumentar suas razões para viver. De acordo
com Wenzel, Brown e Beck (2010) dessa forma, o
idoso combaterá pensamentos de desesperança.
4.3 INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS
Para isso o terapeuta poderá junto com o paciente
ALICERÇADAS NA TCC PARA IDO- elaborar uma agenda de atividades prazerosas, as
SOS COM IDEAÇÃO SUICIDA quais poderão vir acompanhadas de uma lista de
A TCC segundo Beck (2013) é uma forma de psico- motivos para viver.
terapia que se realiza a partir de estrutura própria, • Identificação de Erros Cognitivos: A TCC sus-
desenvolve-se em curto prazo, direcionada para o tenta que podem existir pensamentos automáticos
presente, voltando-se para o tratamento de diversos equivocados, por isso a relevância em se trabalhar
transtornos psíquicos de diferentes populações, cul- juntamente com o idoso com comportamento suicida,
turas diversas e faixa etária distinta por intermédio o reconhecimento e identificação desses erros que
de uma relação terapêutica colaborativa. podem levá-lo a uma interpretação desacertada do
As intervenções terapêuticas dessa abordagem momento experenciado (WRIGHT; BASCO; THASE,
objetivam modificar as crenças disfuncionais, que 2008). Esse recurso poderá colaborar para diminuir
“influenciam os pensamentos automáticos, que tam- a relutância do idoso em buscar ajuda de outros,
bém recebem influência de determinada situação característica comum em idosos, segundo Wenzel;
vivida” (SAFFI; SAVOIA; LOTUFO NETO, 2009, p. Brown e Beck (2010).

158 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


• Resolução de problemas: a sensação de auto- uma análise do risco de suicídio.
eficácia no que se refere à resolutividade de pro-
• Retomada da sessão anterior: esse momento
blemas fica comprometida no paciente idoso, visto
objetiva ligar as sessões, fazendo um breve resumo
que frequentemente está vivendo um momento de
do que aconteceu na sessão anterior. Dessa forma, o
sobrecarga por conta das novas circunstâncias e dos
terapeuta poderá avançar em temáticas introduzidas
novos papéis que se apresentam. O terapeuta deve
no último atendimento.
com a ajuda de o próprio paciente contribuir para a
avaliação de possíveis soluções. O terapeuta pode • Estabelecimento da agenda: a partir da agenda,
pedir para que o paciente elenque as situações em terapeuta e cliente são orientados a seguir um dire-
que foi capaz de resolver seus problemas. Dessa cionamento, guiando-os a fim de que não desviem-se
maneira, o paciente poderá resgatar e aumentar de seus objetivos
seu sentimento de autoeficácia (WENZEL; BROWN;
BECK, 2010). • Revisão da Tarefa de Casa: a tarefa de casa é
estratégia imprescindível na TCC, pois colabora para
• Melhorando os Recursos Sociais: é muito comum a prática de atividades pertinentes para a construção
em casos de ideação suicida, o idoso acreditar que da autonomia do paciente, que aplicará as habilida-
as pessoas não se importam com ele. Logo melhorar des aprendidas para a resolução de seus problemas.
essa concepção é um dos objetivos do processo Alicerçado nessa revisão, o terapeuta saberá se o
terapêutico, fortalecendo as relações do paciente paciente está incluindo os aprendizados do setting
com seus familiares e amigos. Assim como tam- terapêutico em sua rotina.
bém estimular o estabelecimento de novos vínculos
(WENZEL; BROWN; BECK, 2010). • Discussão de Itens da Pauta: a partir da discussão
dos itens da pauta, o paciente discorrerá sobre as
• Reestruturação Cognitiva: a TCC pode ajudar situações que lhes tem gerado sofrimento. Diante do
o paciente a reconhecer esquemas e pensamentos conhecimento de tais fatos, o terapeuta conduzirá a
desadaptativos, para então modificá-los. Para isso terapia apoiado nas estratégias que dispõe a TCC.
o terapeuta poderá usar o questionamento socrático
(WRIGHT; BASCO; THASE, 2008). • Sínteses Periódicas: o terapeuta elabora sínte-
ses do que está se tratando. Reafirma o problema
• Psicoeducação: o paciente trabalha de forma e a conclusão construída mediante a discussão da
colaborativa na TCC, terapeuta e cliente possuem demanda.
atribuições específicas que contribuem para a eficácia
do método psicoterapêutico. Assim a Psicoeducação • Tarefa de Casa: o investimento do paciente na
consiste na aprendizagem do paciente em utilizar-se tarefa de casa é essencial para um resultado eficaz
de elementos da teoria para sua melhora. Objetiva-se do processo terapêutico. Ainda, por intermédio dela,
que o paciente tenha o conhecimento necessário de o terapeuta saberá se o paciente está aderindo ao
si, da abordagem e de seu sofrimento a fim de que tratamento.
possa se tornar seu próprio terapeuta (WRIGTH, et • Síntese Final e Feedback: o final de cada sessão
al, 2012).O paciente poderá dispor de recursos que é dedicado para uma síntese do que foi tratado.
colaboram para a extinção dos pensamentos suicidas. Essa estratégia é essencial para que o terapeuta
• Prevenção da Recaída: desde o início do trata- compreenda o que pensa e o que sente o paciente
mento a prevenção da recaída já se faz presente na suicida em relação ao atendimento psicoterapêutico
psicoterapia fundamentada pela TCC. A Psicoedu- e aos temas abordados. Esse pode ser um momento
cação é um elemento importante da Prevenção da incômodo para o paciente, especialmente, quando
Recaída, pois objetiva a orientação do paciente em se trata de circunstâncias concatenadas com a ide-
relação a habilidades que precisa desenvolver. A ação suicida.
tarefa de casa, por sua vez, colabora para a prática Essa estrutura possibilita o incremento da eficácia da
do que se deve aprender (WRIGTH, et al, 2012). teoria sustentada pela TCC, contribuindo para que
É necessário destacar que a TCC se apresenta a partir os pacientes compreendam melhor os objetivos do
de uma estrutura definida, porém não engessada, processo psicoterapêutico, organizando “seus esforços
que a maioria das vezes se realiza, de acordo com em direção à recuperação e intensificação do apren-
Wenzel, Brown e Wenzel; Brown e Beck (2010) por dizado” (WRIGHT; BASCO; THASE,, 2008, p. 28).
intermédio, do delineamento seguinte:
• Verificação de Humor: a cada início de sessão
o terapeuta conduz a psicoterapia para avaliar o
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por intermédio das análises realizadas na li-
humor do paciente entre a última e a atual sessão.
Tal recurso é relevante para que o terapeuta faça teratura dos autores nomeados neste estudo cons-
tata-se que o idoso necessita de acompanhamento

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 159


na área da Psicologia a fim de que sejam realizadas CAVALCANTE, F. G. et al. Instrumentos, es-
intervenções cognitivas, afetivas, comportamentais tratégias e método de abordagem qualitativa
e sociais, vislumbrando a diminuição do sofrimento sobre tentativas e ideações suicidas de pes-
psicológico e bem- estar biopsicossocial tanto para
soas idosas. Ciência & Saúde Coletiva. Rio
o paciente quanto para seus familiares.
de Janeiro, vol. 20, n. 6, 2015, p. 1667-1680.
Nesta perspectiva, a TCC apresenta-se como teoria Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/csc/
que pode apoiar o manejo do trabalho do terapeuta, v20n6/1413-8123- csc-20-06-1667.pdf. Aces-
visto que suas estratégias de intervenção viabilizam so em: 10 fev. 2016. FERREIRA, H.G.; LIMA,
um novo olhar do paciente para si e para a proble- D.M.X.S.;
mática abordada na psicoterapia, auxiliando-o na
remissão dos sinais e sintomas referentes ao desejo ZERBINATTI, R. Atendimento Psicoterapêu-
de morrer. tico cognitivo-comportamental em grupo
As estratégias que compõem as intervenções te- para idosos depressivos: um relato de ex-
rapêuticas fazem parte de um plano de segurança periência. Revista SPAGESP, vol.13, n.2, p.
elaborado de forma colaborativa entre terapeuta e 86-101, 2012. Disponível: http://pepsic.bv-
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um significado para a vida e o aumento da habilidade d=S1677-29702012000200010. Acesso em:
de resolutividade de problemas. mar.2016.
A estrutura trabalhada nas sessões também contribui FORTES, A.C.G.; NERI, A.L.; Eventos devida
para o avanço do tratamento, visto que possibilita o e velhice humano. In: NERI, A. L.; YASSUDA,
aprendizado de habilidades necessárias para a iden- M.S. (Orgs) Velhice bem- sucedida: aspectos
tificação de sinais de alerta em relação aos eventos,
afetivos e cognitivos. 4.ed. Campinas, SP: Pa-
cognições, comportamentos e emoções ativadores do
pirus, 2012.
desejo de morrer. Assim, o paciente terá condições
para agir diante dos efeitos desencadeados, podendo
GIL, Antônio C. Como elaborar projetos de
usar estratégias cognitivas e comportamentais que
pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010.
fortalecem o paciente com recursos, os quais pro-
porcionam a diminuição da ideação suicida. MINAYO. C.S.; CAVALCANTE, F.G. Suicídio en-
Cognições, sentimentos e comportamentos são vistos tre pessoas idosas. Revista Saúde Pública. Rio
e revistos, colaborando para que o paciente mude de Janeiro vol. 44, n. 4, ago. 2010. Disponível
sua interpretação em relação aos fatos, produzindo, em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
assim reestruturações cognitivas, que potencializam ciarttext&pid=S0034-89102010000400020.
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Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 161


CAPÍTULO
21

IDOSO E TECNOLOGIA: APRENDIZAGEM E SOCIALIZAÇÃO


COMO FATORES PROTETIVOS PARA UM ENVELHECIMENTO
SAUDÁVEL

RESUMO
O envelhecimento é realidade mundial, assim como a tecnologia,
Cláudia Cibele Bitdinger
Cobalchini relacionada à informatização e à internet, tem tomado espaço nas
UP mais diversas relações cotidianas e na prestação de serviços.
Através de uma revisão de literatura, o artigo teve como objetivo
Bruna Fernanda Alves compreender como a tecnologia beneficia os idosos, e se ela
UNIANDRADE é um fator protetivo de socialização para que ele possa manter
Lucas Lauro da Silva contato com outras gerações. O envelhecimento é alvo ainda de
UNIANDRADE representação pejorativa por parte de outros segmentos etários, ao
Thiago Bellei de Lima mesmo tempo que tem se apresentado, em virtude do aumento de
UP longevidade, uma oportunidade para ampliação de aprendizagens. E
as universidades abertas para terceira idade, ao lado da necessidade
de atualização para acesso a serviços, têm se configurado num
espaço privilegiado para estimulação de processos cognitivos,
atividades físicas e socialização. Na abordagem histórico cultural,
na qual a mediação cultural e a interação social são motores do
desenvolvimento, compreende-se a manutenção das situações de
aprendizagem, assim como a socialização, fatores primordiais para
o envelhecimento saudável. A aprendizagem de recursos por meio
da informática ao mesmo tempo que insere o idoso no mundo digital,
pela ampliação de conhecimento, também estimula seus processos
cognitivos e promove mais interações sociais, com grupos, familiares.
E a intergeracionalidade tem se apresentado como outra dimensão
nutrida de modo a incentivar a aprendizagem e a inclusão social do
idoso.

Palavras-chave: Idoso; Tecnologia; Socialização; Universi-

dade da Terceira Idade; Aprendizagem.


10.37885/200400134
1. INTRODUÇÃO dispõe que a realização de cursos especiais para
idosos deverão incluir conteúdo relativo às técnicas
Arnaldo Antunes, em comemoração ao seu de comunicação, computação e demais avanços
avanço para além dos 50 anos de vida, lançou uma tecnológicos, para sua integração à vida moderna.
música em que afirma que: “a coisa mais moderna Oferecer ao idoso acesso às tecnologias possibilita
que existe nessa vida é envelhecer”. E eis a pers- maior integração à comunidade eletrônica, sociali-
pectiva atual, ampliação do segmento populacional zação com amigos e familiares, reduzindo o isola-
de idosos em nível mundial. E no Brasil, segundo mento social e a exclusão, portanto incluir o idoso
estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e na era digital permite a manutenção dos seus papéis
Estatística (IBGE), 25,49% da população brasileira sociais, maior autonomia e qualidade de vida (ZENI
será idosa (acima dos 65 anos) no ano de 2060. A et al., 2014).
expectativa de vida, que é a idade máxima que uma Através de uma revisão de literatura, o artigo teve
pessoa nascida em um determinado período e local como objetivo compreender como a tecnologia be-
provavelmente viverá, tem aumentado, no Brasil essa neficia os idosos, e se ela é um fator protetivo de
expectativa é de 76 anos (IBGE, 2019), e esses ga- socialização para que ele possa manter contato com
nhos da longevidade demonstram um declínio nas outras gerações.
taxas de mortalidade (PAPALIA; FELDMAN, 2013).
Diante do que se tem apresentado como realidade,
é de se questionar como se tem configurado a vida
de quem está chegando em novas prospecções. 2.ENVELHECIMENTO
GIAS
E TECNOLO-

O processo de envelhecimento envolve os diferen-


tes aspectos cronológicos, biológicos, psicológicos À medida que avança o envelhecimento nas pessoas,
e sociais. As representações sociais da velhice es- o declínio cognitivo ocorre mesmo sem relacionamento
tão relacionadas às condições históricas, políticas, com processos patológicos (DINNIZ, 2013). O declínio
econômicas, geográficas e culturais (SCHNEIDER; em mecanismos cognitivos, como memória opera-
IRIGARAY, 2008). Um estudo com o objetivo de cional, é inevitável no processo de envelhecimento,
descrever as representações sociais do idoso e da em virtude do desgaste do sistema nervoso, que está
velhice através do olhar de adolescentes, adultos e presente em função da idade, contudo, é possível
idosos, apontou definições como, por exemplo, que atuar na perspectiva de prevenção em situações
o idoso é alguém que merece mais cuidado, precisa específicas do ensino e da aprendizagem voltada às
de carinho, atenção e muito respeito, é alguém com pessoas que possuem 45 anos ou mais. Estimulan-
muita experiência para passar. Vários participantes do o desenvolvimento das habilidades necessárias
concordaram que a sociedade não valoriza o idoso, para o uso da tecnologia é possível trazer, para a
sendo ele desrespeitado, discriminado e abandona- pessoa idosa, mais praticidade em sua vida, visto
do. Os idosos entrevistados afirmaram não existir que grande parte dos recursos que são utilizados no
idosos, mas sim terceira idade; a recusa em se de- dia-a-dia das pessoas atualmente está relacionado
nominarem idosos é a tentativa de não assumirem à tecnologia (KACHAR, 2010). Atualmente, em ati-
os aspectos negativos relacionados à ideia de idoso vidades que há poucos anos não se utilizavam da
como alguém que não se cuida, fica em casa espe- tecnologia, hoje já são executados por meio dela.
rando a morte. Os entrevistados dizem, no entanto, Por exemplo, em Curitiba, para facilitar o acesso às
não se sentirem assim, mas se sentem como novos Unidades Básicas de Saúde foi criado um aplicativo
e jovens, que apenas a idade cronológica passou para smartphones no qual a pessoa pode agendar
(MARTINS; CAMARGO & BIASUS, 2008). procedimentos, gerando assim maior praticidade ao
usuário do Sistema Único de Saúde (SUS).
Atualmente o idoso está ocupando diversos âmbitos
sociais, sejam nos locais de trabalho, de estudo, em Segundo Kachar (2010), os cursos que envolvem a
diversos espaços de convivência, e se inserindo nas inclusão digital precisam estar planejados de acordo
plataformas digitais. A tecnologia também adentrou com o perfil da população para a qual serão ofertados,
esses espaços por isso surgiu a necessidade de isso envolve fatores como faixa etária, linguagem
dominar os recursos da informática para se sentir adaptada para promoção ao acesso de diferentes
incluso numa sociedade globalizada (WASSERAN et recursos tecnológicos. Com o crescimento da po-
al., 2012; & ZENI et al., 2014). Houve um aumento pulação brasileira idosa, espaços abertos à terceira
significativo de idosos usando as redes sociais; a idade em universidades estão em expansão (PAULA,
proporção de idosos que acessam a internet subiu 2009), chamados de Universidades da Terceira Idade,
de 24,7% (2016) para 31,1% (2017), segundo infor- os quais têm, como algumas das suas funções, a
mações do Cetic Brasil. promoção de saúde e a socialização. A Maturidade
Positivo é o espaço da Universidade Positivo que
O § 1º do artigo 21 do Estatuto do Idoso (2003) tem como proposta ofertar um programa que dispu-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 163


sesse de cursos livres para exercício do corpo e da A Psicologia Histórico-Cultural adota o materialismo
mente aos maiores de 50 anos. O espaço é aberto histórico e dialético como teoria, método e filosofia;
para pessoas a partir dos 50 anos e dispõe de diver- o homem nessa perspectiva é um ser ativo, social e
sos cursos e oficinas livres adaptados à população histórico. A sociedade representa a produção histórica
envelhescente. Além da Universidade Positivo, em do homem, que através do seu trabalho produz sua
Curitiba existem outras Universidades Abertas Para vida material (BOCK; GONÇALVES & FURTADO,
a Terceira Idade, como a Universidade Federal do 2015). Pensar no envelhecimento através da Psico-
Paraná (UFPR), Pontífice Universidade Católica do logia Histórico-Cultural é compreender que o homem
Paraná (PUC-PR), Faculdade Bagozzi, entre outras. e sua subjetividade devem ser observados a partir de
sua historicidade, vivências e suas relações sociais.
Uma das maiores demandas da Maturidade Positivo
Cada momento histórico carrega consigo um olhar
são os cursos relacionados à tecnologia, como cur-
para a velhice; atualmente a sociedade hipervalori-
sos de informática básica e oficinas para sistemas
za o novo, dada a tecnologia que a cada dia surge
operacionais de smartphones (android e iOS). Para
com novas atualizações e lançamentos, fazendo
Silveira, Parrião & Fragelli (2017), nos dias de hoje,
com que o velho seja ultrapassado e descartado
existe uma dependência cada vez maior da tecno-
a todo momento (MARTINS, 2013). O velho aqui é
logia à medida em que ela se insere no cotidiano, e
entendido tanto em seu aspecto material, como um
isso também se aplica aos idosos, ou seja, o motivo
equipamento ultrapassado, por exemplo um apare-
desta demanda na Maturidade Positivo está direta-
lho de telefone celular, como a pessoa que não se
mente relacionado ao modelo atual de sociedade,
mantém atualizada, que está fora do mercado de
onde a tecnologia vincula-se às atividades básicas
trabalho, que não representa a juventude.
do dia-a-dia, como, por exemplo, checar o saldo de
uma conta bancária por meio de computadores e/ Apesar de Vygotsky não ter se debruçado a estu-
ou celulares. dar diretamente os fenômenos do envelhecimento
é possível, em suas obras, compreender diversas
Além das atividades do dia-a-dia, relacionadas a
características do desenvolvimento humano, como o
saúde, compras, acesso a outros serviços, a internet
processo de aprendizagem. Um aspecto fundamental
pode ser utilizada como uma ferramenta de apren-
do aprendizado é a criação da zona de desenvol-
dizagem. Segundo Garcia (2001), atualmente existe
vimento proximal, ou seja, o aprendizado estimula
uma tendência ao uso de tecnologias avançadas na
diversos processos internos de desenvolvimento, que
área de educação e, dentre estas, a internet é um
são capazes de atuar na interação da criança com o
dos principais dispositivos de ensino pela numerosa
ambiente. O aprendizado é um aspecto necessário e
quantidade de informação disponível em sua rede,
universal do processo de desenvolvimento humano
além de permitir acesso em mais de um formato, como
das funções psicológicas culturalmente organizadas e
áudio, fotos ou textos. A apropriação de conhecimentos
especificamente humanas (VYGOTSKY, 1991). Assim,
relacionados à tecnologia, em específico a utilização
a interação entre os mais experientes (neste caso
de computadores, celulares ou outras ferramentas
da rede mundial de informações, nos meios digitais,
conectadas à internet, facilita o acesso a uma gama
os mais jovens) e os menos experientes (neste caso
de informações que podem ser enriquecedoras a
os idosos) produz, por meio das relações interge-
quem tem a disponibilidade para pesquisar. Para os
racionais, o meio privilegiado de aprendizagem e,
idosos, a internet também pode ser uma ferramenta
portanto, de desenvolvimento. Nesta perspectiva, a
para a socialização; aplicativos de celular voltados
máxima sobre o envelhecimento é a perspectiva da
à comunicação e a redes sociais atualmente estão
continuidade do desenvolvimento.
populares entre todas as idades (GARCIA, 2001).
Esta possibilidade de socialização também é um A tecnologia permitiu novas possibilidades de apren-
ponto positivo para o incentivo da tecnologia para dizagem, a internet tem sido a principal ferramenta
pessoas idosas, visto que as interações sociais podem de ensino relacionando à produção de informações
estar mais restritas por conta das representações em rede. As plataformas digitais podem ser usa-
sociais que as pessoas mais jovens, e os próprios das para integrar idosos no processo de ensino e
idosos, possuem a respeito da velhice. Para Mori aprendizagem, a partir da motivação para novas
& Silva (2010), é preciso estimular as pessoas ido- aquisições, assim como o preparo para o contato
sas a vivenciarem o lazer e nutrirem atividades que com novos serviços. O uso da internet pelos idosos
propiciem momentos de prazer e socialização ao representa diversos aspectos positivos, como a ca-
seu dia-a-dia. pacidade de manter contato com pessoas distantes,
a diminuição do sentimento de solidão, a realização

3.PSICOLOGIA
de serviços bancários online facilitando as tarefas
HISTÓRICO-CULTU- diárias, o acesso a informações atualizadas, a prática
RAL: SOBRE O ENVELHECIMENTO de atividades intelectuais, seja através da escrita,
entre outros (GARCIA, 2001).

164 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


A relação do homem com o ambiente externo tem saudável, e Hyung Hur (2016) demarcaram justamente
como intermédio a relação do homem com outros que a participação em atividades de aprendizagem
homens, ou seja, sua atividade está ligada à comu- desempenhadas em centros sociais com idosos pode
nicação, que é condição indispensável e específica favorecer o desenvolvimento da autoeficácia como fator
do desenvolvimento humano na sociedade. Desde protetivo para o envelhecimento. Tal qual o proposto
o seu surgimento, a vida em grupos permitiu a re- por Bertoldo et al. (2014), que sugeriu a criação e
tenção coletiva do conhecimento, e, posteriormente, participação em redes sociais e grupos comunitários
com a aquisição da linguagem, foi possível reter na como estratégia importante para promover Saúde
memória esses conteúdos e transmiti-los para ou- mental entre os idosos, e circunscreveu a ausência
tras gerações, condições estas fundamentais para o destes programas ou a menor participação na vida
estabelecimento da cultura humana (BOCK; GON- social à maior presença de sintomas de depressão.
ÇALVES; FURTADO, 2015). As formas atuais de
Um dos locais privilegiados de ação preventiva para o
comunicação ocorrem através de meios eletrônicos,
desenvolvimento do envelhecimento saudável pode ser
incluir os idosos nesses espaços é permitir o diálogo
a Universidade Aberta para a Terceira Idade (UnATI).
intergeracional, é abrir novos espaços de socializa-
Esta configura-se em um espaço de aprendizagem
ção e aprendizagem, sendo que estas relações são
que oferece aos idosos a integração cultural, social e
fundamentais para a qualidade de vida das pessoas,
esportiva. Esse programa universitário costuma gerar
considerando que somos seres sociais.
participação voluntária, mesmo diante dos medos e

4.PARA
incertezas pelo desconhecido. Outro objetivo é a inte-
UM ENVELHECIMENTO SAU- gração dos idosos com diferentes gerações, sendo a
DÁVEL tecnologia uma das ferramentas que promovem essa
aproximação e socialização (ADAMO et al., 2017).
Apesar da concepção ideal e integral que a Organi- Incentivar a população idosa a ocupar os diferentes
zação Mundial de Saúde adota sobre saúde, ao se espaços de convivência estimulam trocas afetivas,
considerar a população idosa, deve-se compreen- de experiências e de conhecimentos.
der que a maioria apresenta uma ou mais doenças
crônicas. Assim, para se definir um envelhecimento Criar oportunidades para aquisição de novos apren-
saudável novos constructos são associados, como dizados possibilita maior qualidade de vida para to-
o de capacidade funcional (RAMOS, 2003). dos os envolvidos, facilitada pela interação entre
gerações diversas, o que propicia transformações
Na dimensão biológica, são considerados os hábitos sociais (GOULART; FERREIRA, 2012). A convivência
e comportamentos, como alimentação saudável, prá- dos idosos com outros grupos etários pode ampliar
tica de exercícios físicos e o não tabagismo. Aderir sua satisfação pessoal, com o estabelecimento de
a esse estilo de vida pode ser um fator protetivo e novas interações que os desafiam para aquisição
preventivo de diversas doenças crônicas, que são de novos conhecimentos assim como os tiram da
as principais causas de mortalidade da população solidão (BASSOLLI; PORTELLA, 2004). Estas re-
idosa, a doença cardíaca, o acidente vascular cerebral lações podem se dar por redes sociais, grupos de
(AVC) e a doença pulmonar. Na dimensão psicológica, convivência, entre outras modalidades de interações.
o olhar positivo e otimista no envelhecimento pode
ser consequência de uma rede de apoio fortalecida, As relações intergeracionais, segundo Oliveira (2011),
qualidade de vida e atividades individuais e sociais têm a afetividade como cerne para aprendizagem
do cotidiano do idoso, que permitem ter uma melhor mútua, mudando formas de ser, sentir, pensar em
perspectiva do futuro. A fé e a espiritualidade tam- todos os envolvidos, pautadas na partilha (LOPES,
bém são aspectos relacionados ao envelhecimento PARK, 2007). E é no espaço de convivência e de
saudável, pois podem contribuir para a superação aprendizado nos projetos universitários em que se
de dificuldades, trazer um significado para a vida podem exercitar as trocas intergeracionais, ainda mais
e ensinar virtudes como compaixão, altruísmo, sa- quando se tem a inclusão digital um caminho para a
bedoria e gratidão. As relações sociais dos idosos inclusão social (BIZELLI et al., 2009), favorecendo
com familiares, amigos, vizinhos corroboram para a a socialização com os novos padrões de relações
longevidade e resiliência; o trabalho voluntário, por assim como estimulando cognitivamente, assim como
exemplo, pode influenciar positivamente a saúde do motoramente, dentre outras necessidades.
idoso, por ocupar uma posição social valorizada. A Junto aos projetos desenvolvidos para população
autonomia e independência, como tomar decisões e idosa, outro ponto a destacar é a necessidade de
executar tarefas sem auxílio também são valorizadas envolvimento de uma equipe interdisciplinar no cuidado
nesse momento de vida (TAVARES et al., 2017). do idoso, o que pode promover maior qualidade de
Ramos (2003), dentre os fatores que proporcionam vida (JACOB FILHO, 2009). As várias áreas do saber
que os idosos vivenciem esta fase da vida de forma disponibilizadas para a construção de intervenções

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 165


junto aos idosos permitem uma visão integral de seu REFERÊNCIAS
desenvolvimento, ao ponto de nutrir também entre os
profissionais valorização e criação de novas tecnolo-
ADAMO, Chadi Emil et al. Universidade
gias para facilitar a inserção social e ativa do idoso.
aberta para a terceira idade: o impacto da
educação continuada na qualidade de vida

5. APRENDIZAGEM, TECNOLOGIA,
INTERGERACIONALIDADE E ENVE-
LHECIMENTO
dos idosos. Rev. bras. geriatr. gerontol., Rio
de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 545-555, Aug.
2017. Available from <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
Ao retomar o objetivo do presente ensaio, que se 9 8 2 3 2 0170 0 0 4 0 0 5 4 5 & lng = e n & n r m =i -
dispôs, por meio de um levantamento bibliográfico so>. Access on 13 Oct. 2019. http://dx.doi.
(não sistematizado), compreender como a tecnologia org/10.1590/1981-22562017020.160192.
beneficia os idosos, e se ela é um fator protetivo de
socialização para que ele possa manter contato com BASSOLI, Silvana, PORTELLA, Marilene Ro-
outras gerações, pode-se afirmar que a manutenção drigues. Estratégias de atenção ao idoso:
dos idosos em situação de aprendizagem se apre- avaliação das oficinas de saúde desenvolvi-
senta como um fator de desenvolvimento imprescin- da em grupos de terceira idade no município
dível. A possibilidade de se assumir como um sujeito de Passo Fundo- RS. Estudo interdisciplinar
aprendente, em que se dispõe a manter-se ativo na envelhecer, Porto Alegre; 6: 111-122, 2004.
construção de novas interações com a realidade,
repercute de forma a promover melhor qualidade de BOCK, Ana Mercês Bahia et al. (Org.). Psico-
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programas ofertados pelas universidades/faculdades,
em Psicologia. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2015.
a exemplo das UNATIs, a oportunidade de fazer in-
teragir dois temas que propiciam a inclusão social BRASIL. IBGE. (Org.). Projeção da população.
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acesso a serviços e bens hoje cada vez mais informa-
tizados, ampliando sua autonomia e independência. BRASIL. Lei nº 10.741, de 01 de outubro de
Assim como incentiva a interação com outras faixas 2003.: Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá
etárias, cujos encontros promovem transformações outras providências.
nas formas de pensar, viver, sentir a todos os en-
volvidos, isto é, novas aprendizagens tanto para os CETIC.BR (Brasil) (Ed.). TIC Domicílios: Indiví-
idosos quanto para outras gerações. Manter-se ativo duos. 2017. Disponível em: <https://www.cetic.
socialmente apresenta-se como primordial à projeção br/tics/domicilios/2017/individuos/>. Acesso
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medida em que se valoriza o saber já vivenciado no
decorrer de sua vida e a disposição em nutrir novas GARCIA, Heliéte Dominguez. A TERCEIRA
relações com a sociedade. IDADE E A INTERNET: UMA QUESTÃO PARA
Dentre os fatores protetivos ao envelhecimento sau-
O NOVO MILÊNIO. 2001. 160 f. Dissertação
dável, destacam-se as atividades sociais (manter-se (Mestrado) - Curso de Ciência da Informação,
em interações grupais), de aprendizagem (como os Faculdade de Filosofia e Ciências, Universida-
desafios que a interação com novos recursos digi- de Estadual Paulista, Marília, 2001.
tais), de estimulações das diversas dimensões do
desenvolvimento (cognitiva, física, espiritual), de GOULART, Denise, FERREIRA, Anderson Ja-
projeto de vida (para alimentar aspirações futuras). ckle. Aprendizagem digital de idoso: Um novo
Diante deste universo que se desvela para o idoso, desafio. Educação & Envelhecimento. EdiPU-
certamente novas configurações de subjetividade se CRS. Porto Alegre, 2012.
desenham ao lado da produção de novos recursos
tecnológicos para ampliação da qualidade de vida, JACOB FILHO, Wilson. Fatores determinantes
assim como na criação de espaços de convivência do envelhecimento saudável. BIS, Bol. Inst.
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166 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


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e tecnologias móveis.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 167


CAPÍTULO
22

INICIAÇÃO ESPORTIVA E ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE: O


DISCURSO E A PRÁXIS

RESUMO
O presente trabalho refere-se a parte de um trabalho de conclusão
Maria Luiza Bertoni
UNIFAE
do curso de Licenciatura que está sendo desenvolvido como
requisito de obtenção do grau de licenciado em Educação Física.
Cassio José Silva
Iniciação esportiva entende-se como o período em que a criança
Almeida
UNIFAE aprende de forma específica e planejada a prática de uma ou mais
modalidades esportiva, onde seu objetivo é dar continuidade ao seu
desenvolvimento e não a competição regular (RAMOS, 2008). A
iniciação esportiva é importante para o desenvolvimento integral da
criança. Tendo como objetivo a reflexão, sistematização, avaliação,
organização e a crítica do processo educativo por meio do esporte
(LEONARDI, 2014). O objetivo do trabalho é questionar a forma como
o esporte é conduzido pedagogicamente na escola, observando como
o esporte é desenvolvido nas aulas de educação física do ensino
fundamental I, no Município de São João da Boa Vista – SP, e observar
o discurso e a práxis em relação a iniciação esportiva na escola. A
coleta de informações será desenvolvida a partir da observação das
aulas de educação Física que tem como referência as participações
obrigatórias decorrentes das horas de estágio. A abordagem da
pesquisa é qualitativa e participativa. Todo esse conteúdo oriundo
das sessões de estágio será transcrito em texto e posteriormente
analisado segundo a metodologia da análise de conteúdo de BARDIN
(2013). As análises mostram que no primeiro e segundo ano do ensino
fundamental houve iniciação esportiva precoce, porém não houve
uma especialização precoce. Já no terceiro, quarto e quinto ano do
ensino fundamental, identifica-se que a iniciação esportiva está na
sua fase correta, não identificando especialização precoce.

Palavras-chave: Iniciação Esportiva; Especialização Preco-

ce; Pedagogia do Esporte.


10.37885/200400045
1. INTRODUÇÃO (BETTI, 1991).
O esporte no contexto escolar é entendido como
Iniciação esportiva entende-se como o período uma manifestação da cultura corporal de movimento,
em que a criança aprende de forma específica e caracterizando-se pela prática motora. Suas regras
planejada a prática de uma ou mais modalidades proporcionam aos adversários iguais condições de
esportivas, onde seu objetivo é dar continuidade ao vencer, mantendo assim, a incerteza do resultado
seu desenvolvimento e não a competição regular (GONZÁLEZ, 2006).
(RAMOS, 2008). A iniciação esportiva é importante
para o desenvolvimento integral da criança, des- A função da educação física como componente cur-
de que seja respeitada cada fase de aprendizado. ricular da educação básica é introduzir e integrar o
Quando as fases são atropeladas e as competições aluno na cultura corporal de movimento, formando o
são mais importantes que o lazer e a vivência da cidadão para usufruir do jogo, do esporte, da dança
criança naquela determinada modalidade, aconte- e qualquer outra prática de aptidão física em benefi-
ce a especialização precoce que tende reduzir as cio da qualidade de vida (BETTI E ZULIANI, 2002).
possibilidades educacionais do esporte na infância, O esporte escolar é uma importante ferramenta de
influenciando ao abandono precoce da prática espor- inclusão social, oportuniza o aprendizado da cultura
tiva (GALATTI, 2012), trazendo consequências sérias da comunidade, além de ser formativo (MACHADO,
para o desenvolvimento social, intelectual e motor 2011).
da criança. A pedagogia do esporte vem investigar a
prática educativa e está presente desde a iniciação O esporte da escola permite que as diferenças existam,
esportiva ao treinamento de alto rendimento. Tendo onde na mesma aula participam meninos e meninas,
como objetivo a reflexão, sistematização, avaliação, gordo e magro, o portador de necessidades espe-
organização e a crítica do processo educativo por ciais. Para que isso aconteça é necessário adaptar
meio do esporte (LEONARDI, 2014). A Pedagogia o esporte para encaixá-lo na realidade daquela de-
do Esporte está presente desde a iniciação esportiva terminada sala de aula. Infelizmente existe na aula
ao treinamento de alto rendimento, passando pela de educação física escolar a formação de atletas,
formação de professores e treinadores. O esporte caracterizando o esporte na escola, visando o auto
também está presente na educação física escolar nível e o rendimento (SOLER, 2003).
para que os alunos possam vivenciar a cultura cor-
Baseando-se na ideia que a nova geração é educada
poral de movimento.
para uma sociedade competitiva, o esporte funciona
Esse trabalho pode contribuir para um melhor enten- como um mecanismo de mobilidade social; oferece a
dimento da forma com que o esporte é trabalhado oportunidade de aprendizagem de diferentes papéis
dentro do ambiente escolar, para que se possam sociais e por fim a competição reflete os valores
propor novas formas de desenvolvê-lo onde discurso importantes na sociedade (MATTOS, 2013).
e a práxis caminhem próximas no ensino aprendiza-
A prática esportiva oferece vantagens a nível físico,
gem da iniciação esportiva dentro da escola e que
melhorando a saúde e a forma física, além de pre-
as fases de aprendizagem sejam respeitadas.
venir doenças; e a nível psicossocial, desenvolve a
Com isso o objetivo do trabalho é questionar a forma capacidade de liderança e iniciativa, a auto-disciplina,
como o esporte é conduzido pedagogicamente na auto-confiança, auto-estima, respeito pela autoridade,
escola, através da observação de como o esporte da competitividade e cooperação (MACHADO, 2011).
é desenvolvido nas aulas de educação física do en-
A prática esportiva na escola deve ser diferente das
sino fundamental I, além de questionar o discurso e
instituições não escolares (escolinhas de futsal, bal-
práxis em relação a iniciação esportiva na escola.
let, etc.) que focam no rendimento e perfeição de
movimentos e sistematização das práticas corporais.
A disciplina da educação física na escola não deve
1.1 ESPORTE NA ESCOLA OU desconsiderar as escolinhas para que os alunos
ESPORTE DA ESCOLA conheçam e compreendam as diversas formas de
vivenciar o esporte, como lazer, participativo e de
Esporte é a modalidade definida como uma ação social
rendimento (LIÇÕES DO RIO GRANDE, 2010).
institucionalizada, com regras, que se desenvolve
com base lúdica, em forma de competição entre dois O esporte também é definido como prática social,
ou mais oponentes, onde o objetivo é determinar um com isso é necessário que o aluno compreenda que
vencedor ou mesmo o recorde através de compara- a prática esportiva não é só jogar com o objetivo de
ção de desempenho, o resultado é determinado pela vencer, é necessário entender os valores sociais e
habilidade e estratégia do participante, sendo para morais, normas e regras a serem cumpridas, portanto
este gratificante intrinsecamente e extrinsecamente é necessário que ele conheça suficientemente o es-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 169


porte para criticá-lo e compreende-lo (KUNZ, 2006). e o sentimento de pertencer a um grupo (GALATTI,
2012).
Infelizmente algumas políticas educacionais esta-
beleceram movimentos estudantis para adoção de Outra prática esportiva prazerosa se faz com os Jo-
estereótipos de atletas, levando à esportivização da gos Cooperativos, este está centrado na união, sua
Educação Física Escolar, causando a seletividade estrutura é cooperativa como processo de supera-
e competitividade onde os professores passaram ção de desafios e de busca de objetivos comuns,
a montar equipes para representar as escolas em e não como busca de vitória sobre os adversários.
competições, assim o professor se dedicava aos É desafiador propor um jogo cooperativo perante
alunos escolhidos enquanto os outros ficavam sem aqueles que entendem o jogo como sinônimo de
aulas (MOREIRA, 2011). competição, já que essa prática está enraizada em
nossa cultura ocidental (MOREIRA, 2011).
O esporte está em um processo de transformação
didática, sendo a escola fundamental nesse processo A prática esportiva infantil oferece alguns aspectos
estimulando os alunos a ter o acesso ao esporte. positivos quando se evita o fanatismo de resultados
Nesse sentido o diálogo entre o professor e aluno é imediatos, sendo elas: auxilio no desenvolvimento
importante para construir de forma clara e objetiva corporal, psíquico e social; transmissão de experi-
o processo de ensino aprendizagem. O papel do ência e meios que auxiliam a autovalorização e o
professor é motivar e envolver os alunos no conte- reconhecimento de capacidades individuais próprias,
údo planejado e deixá-los seguros para realizar as a influencia positiva sobre sua auto-imagem e con-
atividades (QUADROS, 2014). cepção de vida; além de oferecer a criança liberda-
de e participação nas decisões, desenvolvendo sua
autonomia e independência (KUNZ, 2006).
1.2 INICIAÇÃO ESPORTIVA
Iniciação esportiva entende-se como o período em 1.3 ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE
que a criança aprende de forma específica e pla-
nejada a prática de uma ou mais modalidades es- Especialização precoce acontece quando a criança
portivas, onde seu objetivo é dar continuidade ao é especializada em determinado esporte antes da
seu desenvolvimento e não a competição regular idade apropriada, sem fazer a prática das atividades
(RAMOS, 2008). motoras (RAMOS, 2008).

A primeira experiência da criança com a modalidade O treinamento especializado precoce no esporte ocorre
esportiva escolhida é decisiva para manter ou perder quando as crianças (antes da fase da puberdade)
o gosto pela prática da mesma, nesse primeiro contato iniciam um processo de treinamento planejado e
ela deve sentir-se recompensada, útil e hábil pelo organizado a longo prazo, no mínimo três sessões
desafio que se expôs e risco que assumiu, pois uma semanais, com o objetivo do aumento do rendimento
experiência negativa pode causar traumas e afastar e participação periódica em competições (KUNZ,
a criança da prática esportiva. O esporte infantil deve 2006).
ser mais lúdico e menos rígido, representado por A especialização precoce tende reduzir as possibili-
uma atividade alegre e prazerosa (MACHADO, 2011). dades educacionais do esporte na infância, influen-
A iniciação esportiva começa aos oito anos de idade, ciando ao abandono precoce da prática esportiva.
nessa fase devem ser trabalhadas as habilidades Consequentemente a criança escolhe outras opções
motoras e destrezas específicas e globais através de lazer de uma forma sedentária (televisão e vi-
de movimentos básicos e jogos pré-desportivos. deogame), podendo se estender até a fase adulta
Aos dez anos de idade inicia-se o aperfeiçoamento (GALATTI, 2012).
desportivo, nessa fase são introduzidos elementos
técnicos, táticas e regras através de jogos educativos No esporte, a especialização precoce é a exigência
e atividades esportivas com regras. Aos doze anos a prematura da realização dos gestos técnicos com
criança já é introduzida ao treinamento, aperfeiçoando perfeição e eficiência, antecipando as fases da apren-
as técnicas individuais, além de desenvolver as qua- dizagem esportiva, sendo mais importante a execução
lidades físicas necessárias para a prática desportiva das tarefas do que a compreensão do esporte e o
escolhida (RAMOS, 2008). prazer em sua prática (SILVA et al., 2009).
A prática esportiva prazerosa traz benefícios à crian- Os erros cometidos na especialização precoce torna
ça, tanto biológicos aumentando o gasto calórico e a iniciação esportiva pouco atrativa e traumática,
controlando o metabolismo basal, quanto socioafetivo fazendo com que perca seus inúmeros benefícios
principalmente nos jogos esportivos coletivos (JECs), de ser prazerosa, diversificada, rica em aprendiza-
pois articulam a prática esportiva com a convivência gem motora, técnica e tática, além dos valores e

170 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


modos de comportamento que são proporcionados alizarem, atribuindo ao esporte novos significados
às crianças (GALATTI, 2012). (PAES; BALBINO, 2005).
O treinamento especializado precoce acarreta em O esporte ensinado deveria contribuir para que a
problemas para a vida da criança e também em seu criança se descobrisse, aprendesse cooperação e
futuro, são elas: formação escolar deficiente; a unila- autonomia, pois quem joga coopera, tem oportuni-
teralização de um desenvolvimento que deveria ser dade de rever as suas atitudes, reconhecer o próprio
plural; participação reduzida em atividades, brinca- esforço, assim como coletivo e alheio, também pode
deiras e jogos infantis, que são indispensáveis para compartilhar ideias, concentrar-se, aproximar-se de
desenvolver a personalidade na infância. A saúde outras pessoas, conviver com as diferenças, com a
física e psíquica também são comprometidas com vitória e derrota, colocar-se disponível, expressar
o treinamento especializado precoce, sendo os de sentimentos, solidarizar-e e criar estratégias para
ordem psíquica mais graves onde houve desilusões, interagir com os desafios da disputa (MOREIRA,
fracassos ou até mesmo pela falta de talento para 2011).
a modalidade ou o esporte de forma geral (KUNZ,

2.METODOLOGIA
2006).

A coleta de informações foi desenvolvida a partir


1.4 PEDAGOGIA DO ESPORTE da observação das aulas de educação Física que
tem como referência as participações obrigatórias
A pedagogia do esporte investiga a prática educati-
decorrentes das horas de estágio. A abordagem da
va, tendo como objetivo a reflexão, sistematização,
pesquisa é qualitativa e participativa. Todo esse con-
avaliação, organização e a crítica do processo edu-
teúdo oriundo das sessões de estágio será transcrito
cativo por meio do esporte. O processo educacional
em texto e posteriormente analisado segundo a me-
pelo esporte desenvolve a criticidade, autonomia,
todologia da análise de conteúdo de BARDIN (2013).
liberdade de expressão e a reflexão, formando um
indivíduo cidadão (LEONARDI, 2014). A pesquisa foi dividida nas seguintes fases: obser-
vação, participação, transcrição das observações
Galatti, 2014 completa que a pedagogia do esporte
em texto, seguido da análise do conteúdo.
estuda e intervém no processo de ensino, vivência,
aprendizado e treinamento do esporte nas suas di-

3.RESULTADOS E DISCUSSÕES
versas manifestações e sentidos.
A iniciação esportiva nos primeiros anos de idade
escolar é vista positivamente quando são considerados
os benefícios que o esporte proporciona para seus
praticantes na dimensão biopsicossocial. Portanto, 3.1 ANALISE DAS TABELAS DE
é necessário evitar a especialização precoce que CATEGORIZAÇÃO
reduz esses benefícios pela cobrança de resultados,
sobrecarregando fisicamente e psicologicamente as A partir das observações das aulas do 1º ao 5º ano
crianças e também adolescentes que se destacam do ensino fundamental, foram tabelados os indica-
no esporte, e a exclusão dos que não se destacam dores de inter-relação: esporte da escola, esporte na
reduz os benefícios sociais que a prática esportiva escola, iniciação esportiva e especialização precoce.
proporciona (GALATTI, 2012).
O esporte infantil que se preocupa com a participa-
ção de todas as crianças, sendo cooperativo, lúdico,
reflexivo assume a pedagogia que se contrapõe às
ideias de seletividade de especialização esportiva
precoce (MOREIRA, 2011).
A pedagogia da educação física e dos esportes tem
como objeto de estudo as formas de manifestação
humana, o movimentar-se do homem, tanto no campo
dos esportes sistematizados, como no mundo que
não abrange o esporte, ou seja, o contexto onde
vive, família, trabalho (KUNZ, 2006).
A pedagogia do esporte na infância preocupa-se
em ampliar as possibilidades das pessoas se re-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 171


Tabela 1

Tabela 2

Tabela 3

As tabelas 1, 2 e 3 correspondem ao 1º ano do ensino com habilidades motoras e destrezas específicas


fundamental, observa- se que é trabalhado o esporte e globais através de movimentos básicos e jogos
handebol, porém com a característica de esporte da pré- desportivos. Percebe-se que as crianças têm
escola de forma lúdica, através do jogo de queimada, muita dificuldade em jogar a bola com uma mão,
porém já ensina algumas regras do esporte e gestos elas tendem a jogar com as duas, não compreen-
motores, mesmo não sendo muito cobrado o esporte dem a delimitação do campo de jogo, não respeitam
nessa série, observa-se que a iniciação esportiva é as linhas, ultrapassa o campo, invadindo a área do
precoce nessa fase, pois as crianças têm em média time adversário, a área do cemitério (que no caso
seis anos de idade, e de acordo com Ramos, 2008, corresponde a área do goleiro).
a iniciação esportiva inicia-se aos oito anos de idade
Tabela 4

172 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Tabela 5

Tabela 6

As tabelas 4, 5 e 6 apresentam o 2º ano do ensino Isso acontece pelo fato da escola ser particular e
fundamental, o esporte trabalhado também foi o han- participar de competições de diversas modalidades
debol, nessa série é trabalhado da mesma forma, esportivas, tanto coletivas como individuais, por isso,
porém com um pouco mais de cobrança do professor os professores trabalham com os esportes desde
e pela idade das crianças nessa fase escolar pode o primeiro ano do ensino fundamental até o último
também caracterizar uma iniciação esportiva precoce. ano do ensino médio.

Tabela 7

Tabela 8

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 173


Tabela 9

Tabela 9 As tabelas 7, 8 e 9 correspondem ao 3º ano Agora com oito anos de idade e pelas características
do ensino fundamental, a modalidade trabalhada é das aulas, o jogo pré-desportivo, o desenvolvimento
o handebol, estão presentes na aula o esporte da das habilidades motoras e destrezas específicas
escola e o esporte na escola, inicia-se com o jogo e globais através de movimentos básicos, ca-
pré-desportivo (queimada) e depois passa para o jogo racterizam a iniciação esportiva respeitando as fases
de handebol propriamente dito, primeiro utilizando de desenvolvimento.
meia quadra e depois passando para a quadra inteira.

Tabela 10

Tabela 11

Tabela 12

174 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


As tabelas 10, 11 e 12 representam o 4º e o 5º ano BETTI, M. Educação física e sociedade: a edu-
do ensino fundamental, como citado anteriormente o cação física na escola brasileira de 1º e 2º
esporte da escola está presente no jogo da queima- graus. São Paulo: Movimento, 1991.
da e o esporte na escola caracterizado pelo jogo de
handebol, utilizando a quadra inteira, com as regras BETTI, M.; ZULIANI, L. R.; Educação Física
e uma exigência do professor maior. Nessas séries escolar: uma proposta de diretrizes pedagó-
são cobradas as posições corretas para atacar e
gicas. Revista Mackenzie de Educação Física
defender, o professor fica em quadra fazendo o papel
e Esporte. São Paulo, V.1, N.1, p.73-82, 2002.
de técnico, instruindo os jogadores. Para finalizar a
modalidade é realizado um campeonato interno para DARIDO, S. C. Educação fisica na escola:
desenvolver melhor as habilidades da modalidade.
questões e reflexões. Araras, SP: Topázio,

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
1999.

GALATTI, L. R; PAES, R.; SEOANE, A. M. Pe-


Observou-se que no primeiro e segundo ano do dagogia do esporte e obesidade: perspecti-
ensino fundamental houve iniciação esportiva preco- vas para um estilo de vida saudável com
ce, porém não houve uma especialização precoce.
base na adequada iniciação esportiva na
Justifica-se pelo fato de terem seis anos quando a
infância. Pensar a Prática, Goiânia, v. 15, n.
iniciação é indicada a partir dos oitos anos de idade.
A iniciação esportiva inicia-se aos oito anos de idade,
2, p. 272550, abr./jun. 2012.
nessa fase devem ser trabalhadas as habilidades
GALATTI, L. R; REVERDITO, R. S; SCAGLIA,
motoras e destrezas específicas e globais através
de movimentos básicos e jogos pré-desportivos (RA-
A. J; PAES, R. R; SEOANE, A. M. Pedagogia
MOS, 2008). do esporte: tensão na ciência e o ensino dos
jogos esportivos coletivos. Rev. Educ. Fís/
Chegando ao terceiro ano do ensino fundamental, UEM, v. 25, n. 1, p. 153-162, 1. trim. 2014.
já com oito anos, identifica- se que a iniciação es-
portiva está na sua fase correta, não identificando GONZÁLEZ, F. J. Projeto curricular e educa-
especialização precoce. Os anos seguintes quarto ção física: o esporte como conteúdo escolar.
e quinto também caracterizam a iniciação esportiva Chapecó: Argos, 2006.
sem especialização precoce. Pois o treinamento es-
pecializado precoce ocorre quando o treinamento é KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica
realizado em longo prazo, no mínimo três sessões do esporte. 7 ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. Pag
semanais objetivando aumento de rendimento e par- 49-54, 64 LEONARDI, T. J; GALATTI, L. R;
ticipação periódica em competições (KUNZ, 2006), PAES, R. R.; SEOANE, A. M.; Pedagogia do-
não sendo identificadas essas características, pois a esporte: indicativos para o desenvolvimento
prática é realizada somente nas aulas de educação
integral do indivíduo. Revista Mackenzie de
física escolar.
Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 13,
Este trabalho não tem pretensão esgotar o assunto, n. 1, p. 41-58, ago. 2014.
até mesmo pela falta de tempo, disponibilidade da
escola, portanto sugere que outras pesquisas sejam LIÇÕES DO RIO GRANDE: Linguagens Có-
desenvolvidas a fim de aprofundar na questão - es- digos e Suas Tecnologias Arte e Educação
pecialização precoce dentro do ambiente escolar -, Física – Caderno Do Professor – Ensino Fun-
principalmente durante as aulas de educação física damental e Ensino Médio. 2010.
onde o principal objetivo é envolver a maior quan-
tidade de alunos. MACHADO, A. A; GOMES, R. Psicologia do
Esporte da Escola à Competição. 1ª Ed. 2011.
REFERÊNCIAS P.20, 55, 56, 57, 60.

MATTOS, M. G; NEIRA, M. G. Educação Física


ALMEIDA, C. J. S. A contribuição dos jogos na Adolescência: construindo o conhecimento
cooperativos em situação de vulnerabilidade na escola. 6ª Ed. São Paulo: Phorte, 2013. P.
social. Dissertação (mestrado), UNIFAE, São 94.
João da Boa Vista, 2012.
MOREIRA, E. C.; PEREIRA, R. S. Educação
BARDIN, L. Análise do Conteúdo. Lisboa: Edi- física escolar: desafios e propostas 2. 2.ed.-
ções 70, 2007. 2013. -Várzea Paulista, SP: Fontoura, 2011.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 175


PAES, R. R.; BALBINO, H. F. Pedagogia do
esporte: contextos e perspectivas. Rio de Ja-
neiro: Guanabara Koogan, 2005.

QUADROS, R. B.; STEFANELLO, D.; SAWIT-


ZKI, R. L. A prática da cultura esportiva nas
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RAMOS, A. M.; NEVES, R. L. R. A iniciação


esportiva e a especialização precoce à luz da
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Rev. Pensar a prática 11/1: 1- 8, jan./jul. 2008.

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métodos de ensino: entre a especialização e
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Coruña: 2009.

SOLER, R. Educação Física Escolar. Rio de


Janeiro: Sprint, 2003. P 90.

176 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
23

LEITURA E MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA: ANÁLISE DE AÇÕES


À LUZ DA TEORIA HISTÓRICO CULTURAL

RESUMO
A leitura sempre se apresentou como um importante subsídio para
Luanna Freitas Johnson
DINTER UEM/UNIR
a formação do cidadão crítico e reflexivo. É papel fundamental da
escola, favorecer o desenvolvimento de tal habilidade através de
Tainara Braga Lima
práticas pedagógicas ofertadas pelos professores, mediadores no
GEIFA
processo de construção de conhecimento. A presente pesquisa
buscou então compreender a importância da mediação pedagógica
para a aquisição de habilidades de leitura a partir da teoria Histórico-
Cultural desenvolvida por Lev Vygotsky, o qual defende que o homem
não nasce pronto, mas precisa da interação com outros para se
constituir e modificar o meio em que vive. A pesquisa se configura
como qualitativa na modalidade estudo de caso. Nessa perspectiva,
buscamos identificar ações de mediações pedagógicas voltadas
para a leitura a partir da análise de um projeto denominado Clube
de Leitores Pérola do Mamoré, realizado no Campus da Unir de
Guajará-Mirim, projeto este que juntamente com seus colaboradores
se classificou como instrumento mediador, pois levou todos os
participantes a construírem seus próprios conhecimentos através
das experiências vivenciadas, e favoreceu ainda a aprendizagem e o
desenvolvimento de forma conjunta principalmente ao que se refere
a habilidades de leitura.

Palavras-chave: Leitura; Mediação Pedagógica; Apropriação

Cultural.
10.37885/200400008
1. INTRODUÇÃO com o meio.
Leontiev (1978), afirma que o indivíduo precisa adquirir
A leitura está presente no cotidiano do ser hu- o que foi alcançado pela sociedade humana, pois, o
mano desde as situações mais habituais às mais que a natureza lhe dá ao nascer não é suficiente para
complexas. Ela ocupa um importante lugar no de- que ele viva em sociedade. Por sua vez, Vygotsky
senvolvimento do homem, pois, a vida é mediada (2007) enfatiza a necessidade da natureza social
pela palavra, afinal as possibilidades de leitura são para que ocorra o aprendizado humano. Pode-se
diversas. dizer então, que a máxima da Teoria Histórico- Cul-
Nesse contexto, pode-se considerar que a mediação tural acerca da humanização do indivíduo perpassa
pedagógica torna-se um instrumento facilitador para questões socioculturais.
aquisição de tal habilidade. Vale salientar que a intenção aqui não é fazer uma
O presente artigo busca compreender esse processo reflexão profunda sobre tal teoria, mas destacá-la
à luz da Teoria Histórico-Cultural que tem suas origens como uma abordagem que fornece pressupostos
nos estudos de Lev Vygotsky. Em sua concepção e fundamentos para subsidiar um olhar sustentado
o indivíduo constrói seu conhecimento a partir da em concepções ativas acerca do desenvolvimento,
interação com o outro, na ausência do homem não aprendizagem, formação dos sujeitos e mediação.
se constrói outro homem. Ao longo dos anos, pretende-se que a educação
Acredita-se que o tema abordado apresenta relevân- contribua para a formação de um indivíduo crítico,
cia, pois, no âmbito escolar o professor é o principal responsável e atuante no meio em que está inserido
responsável por mediar o processo de aquisição de a partir da aquisição e apropriação do conhecimen-
habilidades principalmente ao que se refere à leitura, to cientifico, pois, como afirma Leontiev (1978), a
base do processo de alfabetização e da formação criança não nasce dotada de conhecimento, mas
da cidadania. é pela educação que ela se torna verdadeiramente
humana. A educação então propicia ao ser humano
A concretização desta pesquisa justificou-se pelo o desenvolvimento de funções psíquicas superiores.
entendimento de que ainda há muito para refletir e
agir em prol do processo de aquisição da leitura que Vygotsky (1994) chamou de Funções Psíquicas Supe-
geralmente não tem sido valorizada como deveria. riores ou Funções Psicológicas Superiores (FSP), os
Nesse sentindo, pretende-se que este trabalho possa mecanismos utilizados propositalmente pelos homens
colaborar no processo de compreensão dos aspectos cuja finalidade é organizar adequadamente a vida
que envolvem leitura e mediação pedagógica, bem mental de um indivíduo em seu meio. O autor relacio-
como possibilitar o planejamento de práticas que na as seguintes FPS: Sensação, atenção, memória,
desenvolvam e incentivem o hábito de ler tal qual o linguagem, pensamento, emoção, escrita e leitura.
projeto aqui exporto. É notória e indiscutível a importância do desenvol-
vimento das Funções Psíquicas Superiores, porém,

2.TEORIA
abordaremos mais detalhadamente acerca da leitura,
HISTÓRICO-CULTURAL E pois, esta é fundamental para o processo de formação
A LEITURA do indivíduo crítico, reflexivo e atuante no meio em
que se encontra inserido.
Para compreender a leitura como um processo de
formação crítica e reflexiva, acredita-se ser neces- A inserção da leitura na vida do ser humano ocorre
sário recorrer a uma abordagem teórica que possa desde o seu nascimento, pois, como afirma Freire
subsidiar a compreensão acerca da aprendizagem (1989, p.9) ‘‘ A leitura do mundo precede a leitura
e do desenvolvimento. Nessa perspectiva recorreu- da palavra’’. Ou seja, bem antes de a criança ler as
-se a Teoria Histórico-Cultural visando entender os palavras, a criança lê o mundo através dos seus
elementos envolvidos na aquisição da leitura como órgãos sensoriais, como tato, visão, paladar. Assim,
um processo de instrumentalização do indivíduo para é no contato com o mundo que ela constrói símbo-
atuar de forma crítica na sociedade. los singulares que futuramente se transformarão em
significados compartilhados socialmente. Em outras
Para a teoria Histórico-Cultural, o ser humano evolui palavras, antes mesmo da alfabetização a criança
de uma condição primitiva a uma condição cultural a já sabe ler, mas não as palavras grafadas e sim a
partir da aquisição do conhecimento científico. Tan- vida e o mundo.
to Vygotsky quanto Leontiev, representantes desta
abordagem teórica, afirmam que o desenvolvimento A leitura é à base do processo de alfabetização, da
do indivíduo é resultado de um processo sócio–histó- formação da cidadania e participação social. Além
rico, onde o mesmo se desenvolve não apenas pela disso, o ato de ler contribui para o desenvolvimento
maturação biológica, mas também pela interação da imaginação e da criatividade, aumenta o voca-

178 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


bulário, expande o horizonte cognitivo e exercita recebe ideias e constrói seu saber (FERNANDES;
o cérebro. O processo de leitura começa fora da PANIAGO, 2014).
escola e continua dentro dela, por isso, é de suma
Soares (2010) destaca que, de modo geral as pessoas
importância que inicialmente o leitor tenha contato
leem pouco e os alunos não leem. Segundo a autora,
com leituras associadas ao seu contexto, leituras
isso se deve às diversas formas de atrativos e de
que façam sentido a ele.
lazer que ocupam o tempo dos sujeitos impedindo
Dessa forma, é necessário que o professor que está que seja dada à leitura o seu valor e importância
na linha de frente mediando esse processo apresente como instrumento no acesso ao conhecimento.
uma nova postura e repense a sua prática pedagó-
Diante dessa realidade, para o desenvolvimento e
gica, a fim de desde as séries iniciais incentivar e
incentivo da leitura, a ação do professor é indispen-
instigar nos alunos o prazer e o gosto pela leitura
sável, ele precisa assumir a condição de mediador,
e, principalmente, fazer com que reflitam sobre o
fazendo com que o aluno descubra por si a magia e
significado do ato de ler, pois, não basta apenas
o encanto da leitura. Mediar este processo de des-
saber ler, é preciso entender o quão importante e
cobertas é papel do professor, que só pode fazê-lo
benéfico é esse ato.
se ele também for um leitor. Kriegl (2002) contribui

3.MEDIAÇÃO
ao dizer que ninguém se torna leitor por obediên-
E FORMAÇÃO DE LEI-
cia, ninguém já nasce gostando de leitura, mas é
TORES
o exemplo dos adultos como referência que pode
favorecer o interesse. Gostar de ler não é um dom,
Mediação é um conceito fundamental na teoria de
mas um hábito que se adquire e aprender a ler não
Vygotsky. Para ele ‘‘a relação do homem com o mundo
é uma atividade natural, para a qual o aluno se ca-
não é uma relação direta, mas uma relação mediada,
pacita sozinho. Entre livros e leitores há importantes
sendo os sistemas simbólicos os elementos interme-
mediadores (NUNES, 2012).
diários entre o sujeito e o mundo’’. (OLIVEIRA, 2002,
p 24). Essa concepção liga o desenvolvimento da .A fim de reverter essa situação e favorecer o de-
pessoa à sua relação com o ambiente sociocultural senvolvimento de habilidades de leitura despertando
em que vive e a sua situação de organismo que não nos alunos o interesse pela mesma é preciso mediar
se desenvolve plenamente, sem o suporte de outros à aquisição e posteriormente o gosto pela leitura. E
indivíduos de sua espécie. essa é uma tarefa que requer estímulos significati-
vos. A partir daí o professor deve elencar diversas
Desde o nascimento, o indivíduo, estabelece uma
vantagens, como a de que elas conheçam mundos
constante interação com os adultos, que frequente-
novos e realidades diferentes para que, desta for-
mente o incorporam às suas relações e a sua cultura.
ma, elas possam construir sua própria linguagem,
A mediação dos adultos permite que os processos
oralidade, valores, sentimentos e ideias, essas tais,
psicológicos mais complexos tomem forma. Assim, o
que levarão para o resto da vida.
ser humano que vive em constante desenvolvimento
relacionando-se com o mundo e a coletividade onde A fim de transformar um sujeito em leitor, é neces-
vive, vai construindo o seu conhecimento através de sário que o professor o estimule-o a produzir e ouvir
uma interação mediada por diversas relações intra textos, para que assim ele possa desenvolver suas
e interpessoais. competências e habilidades, instigando a leitura como
um método de libertação da criatividade e da reflexão
Estudos sobre mediação pedagógica são relativa-
crítica do cidadão. Porém, é preciso extrapolar as
mente recentes e estão relacionados à teoria históri-
barreiras da leitura, não a olhar apenas como mero
co-cultural, que destaca o ensino como instrumento
procedimento escolar e sim como ferramenta que
favorecedor do desenvolvimento humano. As ideias
oferece ao leitor uma visão ampla do mundo.
relacionadas à mediação pedagógica iniciam-se no
Brasil com Paulo Freire. Para Freire (1996, p. 21), Portanto, o professor não deve simplesmente ressaltar
“ensinar não é transferir conhecimento, mas criar sobre a importância da leitura, mas principalmente
as possibilidades para a sua própria produção ou a mediar o seu interesse pelo ato, tal incentivo deve
sua construção”. iniciar-se preferencialmente nos anos iniciais, fase
em que todos os gostos estão sendo formados, e
Nesse cenário de ensino-aprendizagem, pode-se dizer
assim, lograr-se a um êxito maior no objetivo; formar
ainda que o professor não é apenas o sujeito que
leitores.
ensina nem o aluno apenas o aprendiz que recebe
um saber pronto, pois, as relações pedagógicas se
dão de forma dialógica. O professor é um mediador
que não dá o conhecimento, ele a compartilha, ao
tempo em que desperta o conhecimento, ele também

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 179


4. ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO tabelas, gráficos, o corpo, a música, projetos, feiras
PEDAGÓGICA NO PROCESSO DA e entre outros. Esses trabalhos facilitarão o processo
LEITURA de aquisição de leitura principalmente ao que se
refere às crianças.
As ações de mediação devem ser utilizadas com o

5.METODOLOGIA
intuito de beneficiar a aquisição do hábito; do prazer
pela leitura, pois, estão ligadas as atividades que
consideram a interação, a comunicação, a exposição
Através de um estudo de caso, realizou-se a
de ideias, a criatividade e a produção coletiva do
análise do projeto Clube de Leitores Pérolas do Ma-
conhecimento como meio que favorece o processo
moré desenvolvido por acadêmicos da Universidade
de aprendizagem dos alunos de maneira lúdico- pe-
Federal de Rondônia (UNIR), campus de Guajará-Mi-
dagógicas.
rim, cuja principal finalidade era criar um espaço de
A leitura é uma ferramenta de suma importância interação com a leitura para crianças da comunidade.
para a contribuição da criatividade e imaginação, Para conhecer nosso objeto de estudo partimos da
além de favorecer o aprendizado, a comunicação análise do projeto, dos relatórios e de registros fo-
e instrumentar o indivíduo para atuar de forma crí- tográficos das atividades desenvolvidas.
tica na sociedade. Mas tal prática tem sido pouco
Considerando ainda nosso objetivo de identificar ações
repensada, desenvolvida e incentivada. Todavia, o
de mediação pedagógica voltadas para a leitura,
professor é o principal responsável por estimular e
analisamos os relatórios das atividades executadas,
produzir variadas condições para desenvolver o ato
realizamos observação participante durante os encon-
de ler. Para Neves (1998) o papel do professor com
tros, além de análise de fotos e conversas informais
a leitura está além de apresentar o que será lido.
com participantes do projeto, tanto crianças como
acadêmicos e voluntários.
[...] É ele quem auxilia a interpretar e

6.APRESENTAÇÃO
a estabelecer significados. Cabe a ele
criar, promover experiências, situações
E ANÁLISE DOS
DADOS
novas e manipulações que conduzam
à formação de uma geração de leitores
Os dados coletados foram analisados em consonân-
capazes de dominar as múltiplas for-
cia com o referencial teórico e apresentados a partir
mas de linguagem e de reconhecer os das seguintes categorias: 1. Conhecendo o Clube
variados e inovadores recursos tecnoló- de leitores Pérolas do Mamoré 2. Mediações peda-
gicos, disponíveis para a comunicação gógicas e a promoção da leitura no clube de leitores
humana presentes no dia-a-dia. (p.14).

O professor deve mediar esse processo logo nos anos 6.1 CONHECENDO PROJETO CLUBE
iniciais utilizando ações pedagógicas que tornem tal DE LEITORES PÉROLAS DO MAMORÉ
prática mais atrativa e prazerosa, tais como: Realizar
contação de histórias, caminhada da leitura, troca da O projeto Clube de leitores Pérola do Mamoré foi
leitura, modernizar as histórias tradicionais, efetivar idealizado por uma docente do Departamento Acadê-
feiras e salas de leitura, utilizar aventais de histórias mico de Ciências da Educação (DACE) do Campus
e saias literárias. Cada professor, de acordo com sua de Guajará-Mirim, tendo a adesão de outros cinco
história de leitura e as necessidades de seus alunos, professores, quarenta e nove acadêmicos dos cursos
tem condições de avaliar o melhor caminho a ser de Pedagogia, Letras e Gestão Ambiental, além de
traçado. Porém, para que haja êxito na formação sete egressos e voluntários. Inicialmente 108 crian-
do leitor, é preciso efetuar uma leitura estimulante, ças com idade entre 3 e 12 anos foram inscritas, a
reflexiva e diversificada. maioria dos inscritos eram da própria comunidade
e\ou filhos de acadêmicos.
Dessa forma ficam perceptíveis que o uso de dife-
rentes recursos possibilita diferentes experiências e A proposta de criação do projeto considerou a preca-
visões de mundo. E assim, é importante propor-se a riedade de espaços onde o sujeito possa desenvolver
observação, análise e discussão de outros materiais o hábito de ler, pois, a cidade não dispõe de biblioteca
além de livros para que os alunos façam a leitura de pública, nem livrarias ou bancas de revistas, assim
outros materiais. Nesse sentido podem ser utilizados o projeto teve como finalidade oferecer aos parti-
recursos como quadros, charges, figuras, fotogra- cipantes um espaço dinâmico, criativo e interativo
fias, lista telefônica, jornais, revistas, histórias em de desenvolvimento da leitura e a apropriação do
quadrinhos, outdoors, camisetas, cartões, mapas, mundo cultural, além de oportunizar aos acadêmicos

180 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


uma maior aproximação entre a teoria e a prática isso, sentiam-se valorizadas o que resultava no fa-
pedagógica. vorecimento de suas expressividades.
A motivação que levou a iniciativa do projeto apresenta A observação desses fatores possibilita-os identifi-
consonância com a concepção de Leontiev (1978), car que o Projeto em pauta configurou-se como um
e Vygotsky (2007) ao afirmarem a necessidade da importante instrumento de mediação.
sociedade proporcionar ao indivíduo aquilo que foi
construído historicamente para que ele possa torna-
-se um cidadão. Dessa forma, considerando que as 6.2 MEDIAÇÕES PEDAGÓGICAS E A
condições para o incentivo do hábito de leitura na PROMOÇÃO DA LEITURA NO CLUBE
cidade de Guajará-Mirim são escassas, acredita-se DE LEITORES
que mediações como estas oportunizam as crianças
o contato com leituras associadas ao seu contexto, Sabe-se que o ato de ler é um processo de suma
leituras que façam sentido a eles. importância para o desenvolvimento humano e apro-
priação da cultura, pois, o contato com a língua escrita
Para o desenvolvimento das oficinas, os acadêmicos
e diferentes tipos de linguagens possibilita maior
e voluntários foram organizados em grupos conforme
compreensão do contexto em que o sujeito está in-
a identificação entre as pessoas. Sendo assim, a
serido, tornando-o mais capaz de criar alternativas
maioria dos grupos fora formados a partir da turma
para melhoria de sua vida e comunidade.
em que cursavam a faculdade. Cada grupo ficou
então com uma média de sete a dez participantes Nessa perspectiva, foram organizadas no projeto
que foram denominados monitores. Em cada grupo, oficinas temáticas tais como: História dramatizada,
uma pessoa assumiu a responsabilidade de coorde- história com arte, história cantada, história bilíngue
nar a equipe, sendo denominados coordenadores e história ilustrada.
de oficina.
Em conformidade com a teoria Histórico-Cultural o
Assim, juntamente com a equipe preparava as ati- convívio da criança com outras pessoas, sejam elas
vidades voltadas para o tema da sua oficina. Tais adultas ou também crianças, é de fundamental im-
atividades desenvolvidas tinham como objetivo inserir portância para o seu desenvolvimento. A organização
a prática da leitura na vida dos participantes de uma desse espaço de convívio também passa a ter muita
forma lúdica com a intenção de provocar aprendi- importância, conforme seja estimulante e provocador
zagem significativa, estimular a construção de novo de situações de movimento, diálogo e gestualidade.
conhecimento e principalmente mediar e despertar
o desenvolvimento de habilidades de leitura. A participação de crianças que ainda não sabiam
ler palavras grafadas, possibilitando suas inserções
Durante os encontros, que aconteciam mensalmente, no mundo da leitura logo na primeira infância é um
as crianças participantes eram recebidas no Campus aspecto importante a destacar, pois, este futuramente
com uma acolhida e em seguidas eram encaminhas facilitará o seu processo de aprendizagem, o inte-
para suas oficinas conforme sua faixa etária de idade resse e a aquisição do hábito de leitura.
e, ao término das atividades nas oficinas era ofer-
tado a elas um lanche partilhado promovido pelos Outro aspecto é o fato de que os acadêmicos e vo-
colaboradores do projeto. luntários do projeto não desempenharam o papel de
transmissores de conhecimento, mas mediadores,
A carga horária de cada etapa foi de 40h/a, sendo pois, o objetivo da mediação pedagógica é leva as
distribuídas em reuniões de planejamento, organi- crianças a construírem seus próprios conhecimentos
zação de oficinas, processo de inscrição e divulga- através de suas experiências, e isso era oportunizado
ção e encontros com a realização de oficinas. Os a elas através das atividades realizadas nas oficinas,
encontros aconteciam nas instalações do Campus as ações dos mediadores colaboravam ainda para
de Guajará- Mirim, apenas o último encontro foi re- o desenvolvimento de diversas funções psíquicas
alizado em uma escola Municipal. superiores principalmente ao que se refere à leitura,
função psíquica está que dá origem ao desenvolvi-
A partir da análise das fotos bem como observações
mento de outras, como a imaginação, a memória, a
e conversas informais, foi possível perceber o en-
percepção, a linguagem, o pensamento e a escrita.
volvimento das crianças nas atividades que sempre
participavam com muito entusiasmo e empolgação. Vale a pena destacar ainda a diversidade de atividades
Ao mesmo tempo, em que as crianças se divertiam estimulantes oferecidas às crianças que participa-
com as atividades lúdicas proposta em cada oficina ram do projeto, pois, como afirma Prado (1996) a
elas aprendiam e consequentemente se desenvol- tarefa de mediar à aquisição e o gosto pela leitura
viam. As crianças, eram sujeitos ativos no projeto, requer estímulos significativos a fim de possibilitar
participavam, davam sugestões, questionavam, por a construção de sua linguagem, oralidade, valores,

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 181


sentimentos e ideias, essas tais, que as crianças mente o desenvolvimento e o gosto pela leitura, mas
levarão para o resto da vida. também o desenvolvimento de diversas funções psí-
quicas superiores que se originam da leitura como
O projeto em pauta oportunizou que as relações
o pensamento, a memória, a linguagem e escrita.
pedagógicas entre os acadêmicos e as crianças se
Além de favorecer a socialização, melhorar satisfato-
dessem dialogicamente, pois, não foram apenas às
riamente o vocabulário, desenvolver a concentração
crianças as beneficiadas, mas também os acadê-
e o pensamento crítico.
micos que tiveram a oportunidade de construírem
novos saberes e estabelecer relação entre teoria e Podemos também concluir com desenvolvimento
a prática. deste trabalho e a participação no projeto que o ho-
mem é transformado através da educação e moldado
Os acadêmicos, na condição de futuros profissionais
pelo meio que o cerca, seja através de um projeto
tiveram oportunidade de desenvolverem-se também
mediador, seja através de práticas pedagógicas me-
em consonância com todos os conceitos da teoria,
diadoras, pois, embora a cidade de Guajará-Mirim
pois ao trabalharem em equipe, planejarem, desen-
não dê aos seus moradores condições necessárias
volverem atividades e atuarem como mediadores
para a apropriação de cultura e desenvolvimento
receberam uma grande contribuição para suas for-
de habilidades de leitura, o projeto juntamente com
mações, pois, a partir de tal experiência poderão
os seus mediadores desempenharam essa função,
atuar de forma mais consciente ao que se refere
favorecendo a aprendizagem e o desenvolvimento
à aprendizagem, desenvolvimento e aquisições de
tanto das crianças participantes como dos acadê-
habilidade de leitura de seus futuros alunos.
micos e voluntários.

7.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura é uma das funções psíquica superior
REFERÊNCIAS
FREIRE, P. A importância do ato de ler em três
que além de ser base do processo de alfabetização artigos que se completam. 23ª Ed. São Paulo:
é também prática fundamental para o processo de Cortez, 1989.
formação do indivíduo crítico e reflexivo, é através
dela que o indivíduo adquire cultura, expande a sua FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes
visão de mundo e o seu vocabulário. Para que a Necessários à Prática Educativa. São Paulo:
prática da leitura se transforme num hábito, o seu Paz e Terra, 2002.
processo de apropriação deve ser dá de forma pra-
zerosa seja em casa, no meio social ou na escola KRIEGL, M.L de S. Leitura: um desafio sempre
que é a principal responsável nesse processo. atual. Revista PEC, Curitiba, 2002. LEONTIEV,
De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, o compor- A. O desenvolvimento do psiquismo. 1.ed. São
tamento do ser humano é histórica e culturalmente Paulo: Moraes, 1978.
determinado pela estimulação do meio, por isso faz-se
necessário instrumentos mediadores que auxiliem o NUNES, I. et al. A importância do incentivo à
processo de aprendizagem principalmente ao que se leitura na visão dos professores da escola Walt
refere à aquisição de habilidades de leitura. Sendo Disney. In.: Revista eletrônica online. Editora:
assim o processo de aquisição de leitura ocorrerá REFAF, 2012.
de forma mais significativa através da mediação, ou
seja, do contato com outra pessoa que desempe- OLIVEIRA, M.K. de. Aprendizado e desenvol-
nhará o papel de mediador, que no caso da escola vimento. Um processo sócio-histórico. 4 ª Ed.
será realizado pelo professor. São Paulo, 2002.
Muitas são as ações pedagógicas que favorecem o PRADO, M. D. L. O livro infantil e a formação
desenvolvimento do indivíduo em relação à leitura, do leitor. Petrópolis: Vozes, 1996.
nessa pesquisa buscamos analisar a mediação reali-
zada no clube de leitores Pérola do Mamoré, projeto SOARES, M. A Importância da Leitura no
este que se qualificou como um instrumento mediador, Mundo Contemporâneo. E-revista ISSN 1645-
pois, facilitou, instigou e incentivou a aquisição de 9180, Nº 16, OZARFAXINARS. Fev. 2010.
habilidade de leitura nas crianças participantes de
uma forma prazerosa, além disso, os acadêmicos SILVA, E. T. Leitura na escola e na biblioteca:
participantes também foram importantes mediadores 8. Ed. Campinas: Papirus, 2003. VYGOTSKY,
nesse processo. L.S.; LURIA, A.R. e LEONTIEV, A.N. Lingua-
Vale ressaltar aqui que o projeto não propiciou so- gem, desenvolvimento e aprendizagem. 11 ª

182 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Ed. São Paulo: ícone, 2010.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 183


CAPÍTULO
24

LIDERANÇA DE EQUIPES SOB SITUAÇÃO DE ESTRESSE: UMA


COMPARAÇÃO ENTRE DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES
ESPECIAIS E EQUIPES DE TRABALHO

RESUMO
A presente pesquisa fora realizada com o intuito de visualizar quais
Daniel Andrei Rodrigues
da Silva são as características mais esperadas de lideres sob situação de
CNEC extremo estresse. Realizando assim uma comparação direta entre
militares de operações especiais e equipes de trabalho de uma
empresa financeira.

Palavras-chave: Operações Especiais; Gerenciamento de

Equipes; Liderança.
10.37885/200400013
1. INTRODUÇÃO buintes não se sentirem liderados, confortáveis e
sem perspectiva positiva, jamais terão a confiança
A liderança, uma posição difícil, onde são ne- para acreditarem no valor da sua contribuição para
cessárias diversas características e habilidades para aquela empresa.
que seja possível ser considerado um excelente líder, Ambos grupos de trabalho colocados em cenário de
principalmente quando há diversas adversidades. crise e estresse. Qual é a expectativa sobre seus
Situações conflitosas e tempos de crise demandam líderes e quais são as características positivas que
que os elementos que estão na posição de geren- são esperadas sob as adversidades, vejamos os
ciar subordinados e contribuintes, se destaquem e gráficos abaixo:
liderem através de circunstâncias tempestuosas que
muitas vezes são caminhos inexplorados, sem uma Com uma amostragem de 20 respondentes Operadores
clara visão do que vem a frente, mas mesmo assim de Operações Especiais, chega-se a estes resultados
manter a confiança e otimismo dos liderados. respectivamente. Com a maior porcentagem e valor,
está o “outros”, por conta de respostas dadas em
A grande questão é: o que é necessário para que outras opções que, porém, não se enquadram nas
em situações de estresse as equipes não percam a cinco mais selecionadas. Na segunda maior porcen-
confiança e motivação no seu trabalho, fazendo-os tagem está a Capacidade Estratégica, a habilidade
acreditar em seu líder e considera-lo excelente nes- de delegar tarefas inteligentemente e planejar sob
sas situações? Para responder esta pergunta foram estresse; Controle Emocional, habilidade de se manter
realizadas pesquisas quantitativas, com 15 (quinze) calmo mesmo sobre grande pressão; Honestidade
possibilidades de resposta, através de formulários sobre a situação, comunicar a realidade da situação,
online e distribuídos em diversas plataformas digi- sua gravidade, prós e contras; Postura consultiva,
tais, em dois grupos de trabalho, bem distintos, po- deixar os subordinados darem suas opiniões, solicitar
rém que tem uma característica universal, há seres novas ideias, buscar um consenso, tomar decisões
humanos nesses grupos. Um grupo de operadores baseadas no conhecimento de todos.
de Operações Especiais e uma equipe de trabalho
de uma empresa financeira. Para melhor entender Gráfico 1 – Características de excelentes líderes de
destacamento de Operações Especiais
sobre a situação de liderança nestes dois grupos,
vejamos os contextos abaixo.
Os operadores de Operações Especiais, são aque-
les que são treinandos nos níveis mais rigorosos
do mundo e enfrentam missões de características
não convencionais de riscos elevadíssimos. Esses
militares são de um nível de excelência altíssimo
em todos graus hierárquicos, mas mesmo assim a
demanda por líderes com excelentes qualidades é
de fundamental importância, mesmo que na maioria
das vezes ocorre uma liderança compartilhada entre
os operadores, onde a situação determina quem
vai fazer a tomada de decisão, baseada em espe-
cialidade e experiência, sendo isso parte da cultura
desses destacamentos, porém sempre havendo
aquele que é encarregado do planejamento tático.
Fonte: Elaboração própria (2018)
Tendo em vista que suas missões são de alto risco,
o estresse também é elevado, portanto muito de
seu treinamento é para desenvolver a tenacidade Podemos concluir que as características consideradas
mental ou seja manter-se equilibrado mesmos nas as essências para excelentes líderes de destaca-
situações de maior desconforto e perigo. mentos, são baseadas em capacidade receptivida-
de e intelectual, ética pessoa e controle emocional.
As equipes em empresas e corporações, se diver- Na situação de estresse ou seja em combate de
gem muito de uma organização para outra, a cultura Operações Especiais, os liderados se sentem mais
organizacional não é homogênea. O recurso humano confiantes quando o seu líder de destacamento de-
continua sendo uma pessoa, singular, com emoções monstra consciência situacional total, interagindo com
e pensamentos. Quando um empreendimento está a equipe o tempo todo, seja delegando tarefas de
em crise, muitos são as ideias nebulosas de todos maneira inteligente, comunicação mais transparente
integrantes da mesma, medos e inseguranças. Os possível, horizontal e com a falta da necessidade
líderes das equipes são essências nesses momentos ser o chefe o tempo todo, sendo capaz de escutar
críticos. Pois é de maneira lógica que se os contri-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 185


sugestões e transforma-las em missão. por líderes com capacidade intelectual, ética com seu
grupo, assim como a capacidade de escutar estão
Com uma amostragem de 34 respondentes de uma
sendo gritantes. Os cenários são muito diferentes,
equipe de trabalho de uma financeira, chega-se a
mas os respondentes são seres humanos. Incrível
estes resultados respectivamente. Com a maior
que mesmo que treinamentos diferentes, o requisi-
porcentagem e valor, está o “outros”, por conta de
to para os lideres serem vistos com excelência no
respostas dadas em outras opções que, porém, não
cumprimento das tarefas, foram semelhantes.
se enquadram nas cinco mais selecionadas. Na se-
gunda maior porcentagem está a Postura Ativa ou Com estes dados, podemos concluir que mesmo
Agressiva, que é quando o líder diante de um proble- com áreas de atuação tão distintas é principalmente
ma, não tarda em buscar a solução, proativamente importante termos mais conhecimento sobre nossa
saem em busca de meios para que seja resolvida própria equipe ainda mais quando tratarmos de con-
a situação; Ter bom relacionamento com a equipe, tribuintes e subordinados. Acima de todo podemos
conhecer a fundo seus contribuintes, ter cordialidade, aprender com qualquer grupo de trabalho, devemos
ter respeito e ser respeitado pela sua equipe; Capa- agregar o máximo de conhecimento, como foi feito
cidade Estratégica, a habilidade de delegar tarefas com o grupo de operações especiais. O que podemos
inteligentemente e planejar sob estresse; Ter espirito aprender ainda que estes operadores e o que eles
inovador e adaptável, não ser estagnado diante um podem aprender com empresas. A junção total do
problema, mesmo que situação demande flexibilidade conhecimento, a quebra de barreiras, nos levará a
na adaptação; Lealdade com a equipe, ser o líder criar lideres com a maior diversidade possível para
que se coloca a frente, tem como primordial a sua enfrentar qualquer situação que surja no seu horizonte.
equipe; Controle emocional, habilidade de se manter
calmo mesmo sobre grande pressão.
Gráfico 2 – Características de excelentes líderes de
equipes de trabalho

Fonte: Elaboração própria (2018)

Nas equipes de trabalho de empresas os contribuintes


também preferem líderes mais ativos e com integra-
ção total com os membros da mesma. A capacidade
intelectual e coerente no momento de delegar tarefas,
assim como a postura ativa ou agressiva, partici-
par ativamente no momento de situações de crise
e estresse, ainda com a disposição de ser flexível
e ser adaptável, o que abre um leque de vertentes.
Fazendo exigência na ética e integridade do líder
perante sua equipe, sendo leal e ainda tendo boa
relação com todos os integrantes, mas não bastante
ser político, mas demonstrar a sua lealdade.
Com a análise dos dois gráficos, o que podemos
notar é a semelhança entre as respostas. Os seres
humanos que responderam os questionários têm
atribuição de uma divergência de realidade gigan-
tesca, sendo enfrentando missões de combate reais
de alto risco e mortalidade e a outra com o estresse
da rotina, crise e alta carga de trabalho. A demanda

186 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
25

MEU PET, MEU AMPARO, MEU CAMINHO SEGURO: A HISTÓRIA


DE VIDA DE PESSOAS COM DEPRESSÃO PÓS-ADOÇÃO

RESUMO
Dados recentes comprovam um número de pessoas com diagnóstico
Cindy Gomes Bezerra
UFAM
de depressão aumentado de forma alarmante. A psicologia tem
se reinventado no desenvolvimento de técnicas e procedimentos
Ewerton Helder Bentes
não medicamentosos que auxiliam no combate aos transtornos
de Castro
UFAM depressivos. Nessa linha, métodos envolvendo animais domésticos
vêm se destacando e se colocando como opção às intervenções
psicoterapêuticas convencionais em quadro depressivo. A pesquisa
teve como objetivo, compreender a trajetória de vida de uma pessoa
com diagnóstico de depressão e a sua vivência com um animal de
estimação à luz da Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, para
isso, foram realizadas entrevistas áudio gravadas com 3 pessoas
diagnosticadas com transtorno depressivo. Utilizou-se o método
fenomenológico de pesquisa em psicologia, através de uma entrevista
áudio gravada e encontradas 5 categorias de análise: a) O quadro
clínico; b) O início da relação: o pet veio até mim; c) E esse-outro
se faz presente em meu viver; c) E esse-outro se faz presente em
meu viver; d) Tenho alguém à minha espera: as impossibilidades
são agora possibilidades, cuidado; e) E meu olhar sobre mim e
sobre a vida, modifica. Conclui-se que o processo de adoção do
animal foi sobremaneira importante para cada um dos participantes,
uma vez que, o conviver os fez ir além do quadro nosológico em que
se encontravam e os fez perceber a dimensão do cuidar e do ser
cuidado.

Palavras-chave: Depressão; Animais domésticos; Psicolo-

gia; Fenomenologia.
10.37885/200400010
1. INTRODUÇÃO

Estima-se que cerca de 350 (trezentos e cin-


Nessa pesquisa, foram abordados aspectos relevan-
tes sobre a convivência com animais de estimação
durante a vivência de um transtorno depressivo. Es-
quenta) milhões de pessoas em todo o mundo sofrem colhi essa temática, pois, durante minha trajetória
com algum tipo de transtorno depressivo, segundo a de vida, sempre estive em contato com animais de
Organização Mundial de Saúde (OMS), as projeções estimação e reconheço influências positivas da con-
para esse cenário apontam uma tendência ao aumento vivência com esses animais, fatores como: suporte
desses transtornos para os próximos anos. As carac- afetivo, noções de cuidado e companheirismo são
terísticas básicas consistem em humor triste, vazio normalmente benéficos a qualquer ser humano, in-
ou irritável, acompanhado de alterações somáticas dependentemente de idade, sexo, raça ou crenças.
e cognitivas que afetam significativamente a capa-
Considerando que a depressão consiste em um trans-
cidade de funcionamento do indivíduo (AMERICAN
torno onde a característica principal é o rebaixamento
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014) e a classifi-
do humor, tem-se que aspectos importantes como
cação do tipo de depressão dependerá de fatores
a autoestima, autoimagem e nível de energia do
como a intensidade e duração desses, bem como
indivíduo são gravemente afetados, logo, os fatores
dos prejuízos causados pela condição do paciente.
citados acima podem ter um impacto maior quando
Sendo assim, a psicologia, aliada a diversas áreas apresentados a um indivíduo com depressão, visto
do conhecimento, vem avançando em pesquisas que se tratam de elementos cruciais para a supera-
que visam à prevenção e tratamento dos transtornos ção dessa condição.
depressivos, testes para avaliar o estado depressivo
Ações recentes, onde a inserção de animais em di-
de pacientes e busca por métodos de tratamento
versos contextos é reconhecida como algo benéfico
que auxiliam na condução das psicoterapias vêm
ao desenvolvimento humano, têm incentivado cada
sendo desenvolvidos de forma a atender ou mes-
vez mais estudos sobre o uso de animais domésticos
mo amenizar a realidade apontada por essas pro-
enquanto suporte para diversos tratamentos na área
jeções. Da mesma forma, o uso de psicofármacos
da saúde, sendo assim, considero que este estudo
vem aumentando e novos tipos de medicamentos
poderá contribuir para a construção de alternativas
estão se apresentando ao mercado, causando uma
a métodos tradicionais de combate à depressão,
transformação na maneira de lidar com as deman-
utilizando-se de elementos que podem ser facilmente
das que são apresentadas pelo paciente em estado
inseridos, ou aproveitados, no dia a dia dos sujeitos.
depressivo. Nesse contexto, a psicologia em sua
abordagem humanista luta pela não medicalização Diante disso, alguns questionamentos surgem: a)
da vida, buscando desmistificar a ideia de que um como é conviver com um animal de estimação du-
fármaco, por si só, poderá recuperar o indivíduo ple- rante a vivência com depressão? b) o que muda
namente de seu estado depressivo. com a chegada de um pet ao ambiente do sujeito
depressivo? c) qual a importância do animal nesse
Nesse sentido, dentre as pesquisas recentes que
processo?
envolvem métodos não medicamentosos para au-
xiliar no combate à depressão, destaca-se a Terapia Busquei trabalhar o significado da vivência desses
Assistida por Animais (TAA), que consiste no uso sujeitos utilizando o método fenomenológico de pes-
de animais domésticos durante o processo de psi- quisa por considerar o mais adequado para aten-
coterapia visando uma mudança significativa nos der aos objetivos deste trabalho. Assim, o objetivo
quadros dos pacientes. A partir desse pressuposto, deste estudo foi compreender a trajetória de vida
estuda-se a possibilidade de utilização indireta de de uma pessoa com diagnóstico de depressão e a
animais como método terapêutico (I SIMPÓSIO DE sua vivência com um animal de estimação à luz da
ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA CRIANÇA E Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty.
DO ADOLESCENTE, 2009), ou seja, a convivência
com os pets fora do espaço da psicoterapia pode
auxiliar na melhora dos quadros de depressão.
Logo, esta pesquisa procurou desenvolver tais premis-
2.REVISÃO DE LITERATURA
Para os fins desta pesquisa, devem-se considerar
sas, buscando compreender os aspectos subjetivos
inúmeros aspectos teóricos que circundam o tema
que envolvem o processo de depressão e como a
em questão, sendo assim, é importante destacar os
convivência com animais de estimação se apresenta
conceitos relacionados aos transtornos depressivos
enquanto fonte de apoio e suporte emocional nessa
e suas classificações, em seguida, será realizada
conjuntura. Para tal, a abordagem fenomenológica
uma breve descrição sobre a interação homem-a-
- existencial foi utilizada como base teórica para a
nimal considerando o que se tem estudado até o
análise dessas subjetividades.
presente momento, por fim, irei discorrer sobre a

188 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


fenomenologia de Merleau-Ponty, que será a base cada cultura (...).
teórica para a análise dos dados que serão obtidos
da execução da pesquisa. Logo, em uma perspectiva fenomenológica, há de se
analisar a experiência vivida do ser-no-mundo que
vai para além da questão da sintomatologia preconi-
2.1 TRANSTORNOS DEPRESSIVOS: zada pelos parâmetros do Diagnostic And Estatiscal
UMA BREVE CONCEITUALIZAÇÃO Manual of Mental Disoders (DSM V), Leite (2009)
destaca a importância da atitude fenomenológica no
O manual diagnóstico e estatístico dos transtornos psicodiagnóstico de um indivíduo com depressão,
mentais indica 7(sete) tipos de transtornos depressi- para a autora, esta deve compreender o indivíduo em
vos, dentre estes, os mais comumente diagnosticados sua existência, tomando o quadro sintomatológico
são o transtorno depressivo maior e o transtorno como uma forma de expressão no mundo:
depressivo persistente (distimia). Ambos possuem
como características principais a perda de prazer/ (...) experiência subjetiva é, portanto,
interesse e humor deprimido na maior parte do dia, a
soberana, e o diagnóstico apenas pode
principal diferença entre os dois é o tempo mínimo no
ser realizado, conforme tal perspectiva,
qual o sujeito permanece nessa condição que, para
o transtorno depressivo maior é de duas semanas como consequência da relação inter-
e de até dois anos para a distimia. subjetiva. (LEITE, 2009)

Outros sintomas que podem contribuir para o diagnóstico Segundo Moreira (2007) a ideia de um diagnóstico
desses transtornos são: perda ou ganho significativo dever ser vista enquanto um processo de reconhe-
de peso, insônia ou hipersonia, agitação ou retardo cimento e de compreensão do sujeito, superando a
psicomotor, fadiga ou perda de energia, sentimen- ideia de rotulação do indivíduo, inserindo-o numa
tos de inutilidade ou culpa excessiva, diminuição determinada categoria de doença mental. De acordo
na capacidade de concentração e ideação suicida com as considerações de Bloc et al. (2015), o sujeito
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). em depressão remete-se constantemente a seu corpo
como parâmetros para discorrer sobre si na prática
Além disso, é necessário que os sintomas sejam
clínica, logo, sob uma perspectiva fenomenológica,
observáveis e causem prejuízos significativos no
temos que a descrição da situação do sujeito de-
funcionamento social do indivíduo, nesse sentido,
pressivo trata-se de uma descrição da experiência do
Cavalcante (1997) aponta a possibilidade de consi-
corpo vivido, o que é corroborado por Merleau-Ponty
derar a depressão como um processo de interação
(2015) ao afirmar que o corpo é nossa expressão no
social e definida a partir de questões culturais:
mundo, a figura visível de nossas intenções, ou seja,
o ponto de partida de nossas experiências subjetivas,
A depressão passa a existir a partir de
sendo assim, a vivência sob a ótica da depressão
uma interação social dada e, desse constitui-se uma das formas de ser-no-mundo que
modo, pode ser compreendida como são vivenciadas a partir do corpo.
um fenômeno cuja dimensão maior ou
primária é um processo de interação
social. Assim, é multidefinida e sempre 2.2 ASPECTOS PSICOLÓGICOS DAS
resultado de uma nomeação regulada RELAÇÕES ENTRE O SER HUMANO
pela comunidade. E OS ANIMAIS: O QUE SE SABE ATÉ
AGORA?
Bloc et al. (2015) corrobora com essas afirmações
pelo resultado de suas pesquisas, concluindo que Apesar de ser um tema de pesquisa relativamen-
as condições socioeconômicas vigentes contribuem te recente, o relacionamento humano com animais
para a manutenção e surgimento de novos casos domésticos é muito antigo, e as pessoas precisam
de depressão: dos animais em suas vidas (GRANDIN; JOHNSON,
2006, p. 185-186). As formar de lidar com esse re-
Pesquisa fenomenológica transcultural lacionamento mudou ao longo dos anos, desde os
sobre depressão realizada em Forta- antigos egípcios que viam alguns animais como seres
leza, Boston e Santiago mostra que, místicos, até os tempos atuais onde a tendência é
trata-los como parceiros dos seres humanos e não
ainda que não haja variação na sinto-
como propriedade. Segundo Manucci (2005) os ani-
matologia, a experiência vivida asso-
mais fazem parte de todas as culturas e o contato
ciada a estes sintomas varia de acordo
que se tem com cães e gatos é o ultimo elo como o
com os diferentes processos culturais passado recente em que os seres-humanos trocaram
subjetivos que são característicos de

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 189


o campo pela cidade. co. Teixeira (2015) sugere que essa prática pode
ter surgido a partir da percepção dos médicos ou
Seguindo essa tendência, a ciência vem avançan-
enfermeiros de que a relação entre um paciente e
do em pesquisas que estudam os benefícios dessa
um animal, oferecia melhora no quadro psíquico. A
parceria à saúde dos seres humanos e dos animais:
mesma autora também discorre sobre a experiência
de Nise da Silveira que, durante suas pesquisas,
A relação humano-animal é definida relatou significativas mudanças em pacientes através
pela Associação Americana de Medi- da interação com animais:
cina Veterinária como “uma relação di-
nâmica e mutuamente benéfica entre “Desde a adoção da pequena cadela
pessoas e outros animais, influenciada Caralâmpia (1955) por um doente que
pelos comportamentos essenciais para frequentava uma de nossas oficinas,
a saúde e bem estar de ambos. Isso verifiquei as vantagens da presença
inclui as interações emocionais, psico- de animais no hospital psiquiátrico. So-
lógicas e físicas entre pessoas, demais bretudo o cão reúne qualidades que o
animais e ambiente.” (FARACO, 2008) faz muito apto a tornar-se um ponto de
referência estável no mundo externo.
Ainda segundo Faraco (2008), os animais podem Nunca provoca frustrações, dá incon-
desempenhar os papéis de facilitador social, veículo dicional afeto sem nada pedir em troca,
simbólico para a expressão de emoções, foco de traz calor e alegria ao frio ambiente do
atenção e agente tranquilizador, objeto de apego,
hospital. Os gatos têm um modo de
fonte de suporte social e instrumento vivo para apren-
amar diferente. Discretos, esquivos,
dizagem de novas estratégias e formas de pensar e
agir (CORSON,1975; FREUD, 1959; WILSON, 1984; talvez sejam muito afins com os esqui-
WINNICOTT, 1953; BONAS, MCNICHLOLAS; COLLIS, zofrênicos na sua maneira peculiar de
2000; KATCHER, 2000). Esses papéis possuem re- querer bem” (Nise da Silveira 1982:81).
levância significativa para a promoção de saúde no
ser humano, segundo Heiden e Santos (2009) a De semelhante maneira, pesquisas vêm evoluin-
convivência com animais ajuda na diminuição do do para o estudo do uso indireto dos animais em
estresse, combate a depressão e o isolamento e psicoterapias, ou seja, pessoas podem apresentar
estimula a prática de exercícios físicos e cognitivos. significativas melhoras em seus processos de trata-
mento enquanto convivem com animais domésticos,
Esses pressupostos da interação entre seres huma- tal como resulta a pesquisa de Bonatti et.al.(2009),
nos e animais, apontam para um crescente estudo indicando que o uso indireto de animais em terapia
sobre o potencial terapêutico da inserção de animais tem promovido um maior vínculo, interação e comu-
em diversos ambientes: nicação entre o paciente e as terapeutas.

Uma das explicações para o potencial


terapêutico de animais é que, por ser 2.3 A FENOMENOLOGIA PRECO-
agradável, a interação com animais NIZADA POR MAURICE MERLEAU-
possui um papel reforçador de certos -PONTY
comportamentos além de permitir a Em se tratando de suas bases filosóficas, a fenome-
redução da ansiedade, produzir sen- nologia sofre variações a partir do pensamento que
sação de calma e segurança, facilitar a sustenta (MOREIRA, 2004), assim, fenomenologia
a comunicação, interação social, ade- proposta por Merleau-Ponty tem como característica
mais ser um instrumento para aprendi- básica a superação do pensamento dualista (LEITE,
zagem de comportamentos adequados 2009), isso significa dizer que, para o autor, não existe
que podem ser generalizados a outras a separação entre o que é físico ou psíquico, tudo
situações. (I SIMPÓSIO DE ATENÇÃO constitui o nosso ser-no-mundo, vivenciado através
INTEGRAL À SAÚDE DA CRIANÇA E do corpo:
DO ADOLESCENTE, 2009).
(...) o ser no mundo pode distinguir-se
Logo, surgem práticas como a Terapia Assistida por de todo processo em terceira pessoa,
Animais (TAA) que visam aprimorar o tratamento de toda modalidade da res extensa,
oferecido aos pacientes, no campo de saúde mental, assim como de toda cogitatio, de todo
por meio da interação do sujeito com animais como conhecimento em primeira pessoa ―
cachorros e cavalos durante o processo terapêuti- e que ele poderá realizar a junção do

190 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


“psíquico” e do “fisiológico” (MERLEAU- corpo, a ele é atribuída uma potência
PONTY, 2015) expressiva que lhe é imanente: o corpo
é intencionalidade que se exprime, e
Logo, pode-se denominar a fenomenologia de Mer- que secreta a própria significação (Fur-
leau-Ponty como uma releitura do que se é proposto lan; Bocchi, 2003).
por Husserl enquanto estudo das essências. Segundo
Moreira (2004), trata-se de uma análise mundana A questão da “intencionalidade da consciência” tam-
partindo do princípio de que não temos a capacida- bém é um fator relevante na teoria de Merleau-Ponty,
de de praticar a redução fenomenológica de forma pois trata-se de um dos conceitos preconizados por
plena, devendo o pesquisador assumir sua posição Husserl, onde é apresentada a ideia de que a cons-
mundana em relação ao fenômeno observado: ciência está sempre voltada a um objeto (chamado
objeto intencional) ou seja, temos consciência de
Há aqui a consideração da intersubjeti- alguém ou de algo, se pensamos, pensamos sobre
vidade, já que o objeto pesquisado não algo ou alguém, se temos medo, temos medo de
é um animal ou uma coisa inanimada, algo (MATTHEWS, 2011), logo, não se trata de um
mas um ser humano, diferente em al- pensamento voltado ao objetivo e, sim em como as
guns aspectos, mas tão humano quan- coisas aparecem a nossa consciência através de
to o pesquisador. (DAOLIO; RIGONI; nossa condição corpórea.
ROBLE, 2012) Sendo assim, faz-se necessária a busca pelo sig-
nificado da vivência do indivíduo com depressão,
A partir daí o fenômeno a ser estudado não mais através de sua corporeidade, buscando dentro desse
será a essência do objeto, mas sim o significado da cenário a experiência do ser-com, ao explorar a rela-
experiência vivida: ção com um outrem que, apesar de não apresentar
forma humana, constitui-se um ser vivo portador de
(...) tanto Husserl como Merleau-Ponty intencionalidade, sendo capaz de agir e modificar
eram fenomenólogos, mas o que eles o meio onde vive, gerando novos significados à vi-
queriam dizer por experiência os se- vência do indivíduo.
parou. Husserl entendeu o fenômeno

3.MATERIAIS E MÉTODOS
a partir da história imanente da cons-
ciência, Merleau-Ponty a partir de um
ponto de vista mundano de encarnação Para a realização do escopo deste projeto, ou
corporal e intersubjetiva, como uma si- seja, a compreensão sobre a trajetória de vida de
tuação histórica. (JOHNSON, 1996) uma pessoa com diagnóstico de depressão e sobre
como a sua vivência com um animal de estimação
Nesse sentido, entende-se que não se pode discorrer insere-se nesse processo, utilizei a abordagem qua-
sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, sem levar litativa em pesquisa, tendo em vista a busca pelos
em consideração as questões relacionadas à corpo- significados da vivência dos sujeitos através da
reidade do indivíduo, visto que a própria questão da descrição fenomenológica, coletando informações
intersubjetividade está marcada em uma “condição junto à pessoa, já que a vivência não encerra um
corpórea”, essa condição apreende os significados sentido em si mesmo, mas adquire um significado,
do mundo, que não são dados apenas sob suas para quem a experimenta, relacionado à sua própria
condições biológicas, mas também pelas condições maneira de existir.
relativas à cultura do indivíduo. “(...) o corpo é o local
da experiência com o outro e com o mundo. O corpo A pesquisa qualitativa se preocupa com aspectos da
possibilita e inaugura a existência e a presença do realidade que não podem ser mensurados, centran-
ser no mundo” (DAOLIO; RIGONI; ROBLE, 2012), é do-se na compreensão e explicação da dinâmica das
através do corpo em movimento que se adquire os relações sociais (FONSECA, 2002; MINAYO, 2014).
significados das vivências, visto que a expressão de Para esta última autora, esse tipo de pesquisa é
sua intencionalidade é dada por meio de seus gestos: focado no trabalho com os significados, motivações,
aspirações, crenças, valores e atitudes.
Merleau-Ponty diz que eu só consigo A pesquisa qualitativa, por meio do método fenome-
compreender a intencionalidade do ou- nológico, foi privilegiada no presente estudo pelo
tro – e sua atitude para comigo – por- fato de ser o melhor meio para a compreensão da
que através do meu corpo posso torná- vivência de pessoas diagnosticadas com transtornos
-la minha. Assim, encontramos em seu depressivos que experimentam a convivência com
pensamento um lugar especial para o animais de estimação. Giorgi e Souza (2010) refe-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 191


rem que o conhecimento narrativo está direcionado O método fenomenológico de pesquisa em Psicolo-
para as vicissitudes das intenções humana. Tendo gia segue o conceito epistemológico de consciência
em conta que se por um lado, o conhecimento pa- intencional. Além disso, introduz algumas mudanças
radigmático se preocupa com provas empíricas e em relação ao método filosófico, de modo a que este
com verdades universais, o narrativo move-se pe- possa ser transportado para o contexto da investiga-
los meios da verossimilhança e do sentido da vida ção científica (GIORGI & SOUZA, 2010; CASTRO,
humana. Não se está, assim, buscando a verdade 2009; MARTINS & BICUDO, 2005).
empírica, da relação causa e efeito, na promoção
da dicotomia sujeito/objeto, mente/corpo, mas se
reconhece a interdependência destas instâncias. 3.2 MÉTODO FENOMENOLÓGICO
O significado da existência humana é construído PSICOLÓGICO DE GIORGI
a partir da experiência e dos estados intencionais
Amedeo Giorgi, seguindo a mesma proposta do mé-
do sujeito, assentados em sistemas simbólicos da
todo fenomenológico de investigação em psicologia,
cultura, que acionam os processos de interpretação
sistematizou um método constituído por uma com-
da vida cotidiana.
ponente descritiva, configurado por quatro passos
(Quadro 2), explicitado em seguida:
3.1 MÉTODO FENOMENOLÓGICO DE
PESQUISA EM PSICOLOGIA

Quadro 2: Passos do método fenomenológico psicológico de Giorgi

192 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Fonte: PEREIRA, D.G. & CASTRO, E.H.B. Pesquisa fenomenológica: o método de pesquisa In: CASTRO,
E.H.B. (Org.) Práticas de pesquisa em Psicologia Fenomenológica. Curitiba: Appris, 2019, p. 15-32.

tempo e passou a conviver com o animal – gato – no


momento de descoberta da depressão. Atualmente
não faz mais terapia e adotou mais uma gata.
3.3 CONHECENDO OS COLABORA-
A segunda participante foi Mérida*, 33 anos, psicó-
DORES DA PESQUISA
loga e professora de graduação, mora com a mãe e
A pesquisa foi realizada com três participantes, um um irmão. Relatou ter uma personalidade distímica
homem e duas mulheres. desde a adolescência. Faz terapia com psicólogo
e acompanhamento com psiquiatra desde muito
O primeiro entrevistado foi Peter Pan*, 23 anos, jovem. Passou um longo período sem vida social,
servidor público e aluno de graduação de Análise trabalhando em um ambiente em que sofria assédio
e Desenvolvimento de Sistemas. Mora com o pai e moral por parte dos colegas de trabalho e tinha von-
com dois gatos. Foi diagnosticado com depressão tade de se suicidar. Começou a conviver com uma
e ansiedade por uma psicóloga em um momento de cadelinha a um ano e diz que depois disso nunca
muitas perdas – separação dos pais, término de um mais teve crises graves de depressão ou vontade
namoro de cinco anos, não conseguiu passar em de se suicidar. Largou o emprego que lhe fazia mal
um concurso público que realizou, estava cursando e começou a dar aula de graduação, seu grande
uma faculdade com a qual não se identificava e não sonho, alem disso voltou a pensar no doutorado e
tinha forças para abandonar e perdeu um “cargo de a reconstruir a vida social, já pensa em um relacio-
líder” na igreja que frequentava. Fez terapia por um namento amoroso, por exemplo.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 193


A última participante chama-se Jasmim*, 32 anos,
3.4.1 O QUADRO CLÍNICO
fonoaudióloga e veterinária, mora com a mãe. Diag- […] depois de um tempo pra cá eu des-
nosticada inicialmente com ansiedade e posterior- cobri que tava com depressão, Inicial-
mente com depressão e episódios de síndrome do
mente eu tive diagnóstico de ansieda-
pânico. Faz acompanhamento com psiquiatra, que
de, que depois evoluiu para depressão,
a diagnosticou, até hoje. Fez terapia por um tempo
depois abandonou. Começou a conviver com uma e eu tive um quadro de síndrome do
cadelinha há cinco meses e relata que se sentiu pânico, que eu não consigo mais entrar
acolhida e que houve mudanças consideráveis em em avião, eu tenho medo. Antes eu não
seus quadros de ansiedade e depressão. tinha agora eu tenho. Aí teve uma vez
que eu fiquei muito… muito perturbada,
Foi utilizada a entrevista fenomenológica onde o cri- uma época da faculdade, que o médico
tério fundamental foi obter descrições detalhadas e me deu até um atestado de afastamen-
concretas das experiências dos participantes. Procu-
to de alguns dias e deu um laudo para
rei me certificar da adequabilidade das descrições,
eu entregar para os professores de an-
assegurando quando, a partir destas, é possível que
siedade e depressão associada (inaudí-
sejam geradas diferentes estruturas de significados
de caráter psicológico, sobre o tema de estudo. Para vel)... foi de uns dois, ou três anos para
isto, foi importante a descrição ser o mais específica cá. Eu estava no pico da minha crise
e concreta, tanto quanto possível, relacionada não de depressão. A minha amiga viu que
tanto ou apenas com racionalizações apresentadas eu não estava bem e disse: “aí, eu vou
pelos participantes da pesquisa, mas com a subje- te dá um cachorrinho, pra vê se ela é a
tividade incorporada, tal como é experienciada na tua cura para a depressão. Pra vê se tu
vida cotidiana (GIORGI & SOUZA, 2010). foca a atenção nela. Dá carinho pra ela
e dispersa um pouco dos teus proble-
Cheguei aos primeiros sujeitos da entrevista por meio
mas psicológicos”. Aí, eu estava muito
de indicação realizada por terceiros, a partir daí,
depressiva, só queria ficar na cama,
solicitei às pessoas entrevistadas que indicassem
outros de seus pares, que tenham vivenciado situ- deitada o tempo todo, mas já tomando
ação semelhante, para participar da pesquisa. Esse os medicamentos (Peg)
método é denominado bola de neve e geralmente é Eu sempre tive... fazia terapia desde o
realizado em pesquisas cujo acesso ao público-alvo início da faculdade, desde 2001, e eu
é dificultoso (VINUTO, 2014) sempre tive a personalidade meio dis-
tímica, tendia a ficar mais melancólica,
Procedimento
sempre foi assim. Só que quando foi
A entrevista áudio foi realizada a partir de uma ques- em 2013 começou a ficar muito pesado,
tão norteadora que apresentava desdobramentos. começou a ficar difícil, aí foi quando eu
Assim, foi formulada a seguinte questão: Como fui diagnosticada, comecei a fazer trata-
foi conviver com um animal de estimação durante mento com psiquiatra e tudo, e a minha
o período em que você vivenciou a depressão? terapia foi sendo, enfim, voltada mais
As ações foram feitas de acordo com os preceitos para isso. Já havia desconfiança de eu
éticos da Resolução CNS 466/12 e Resolução CNS ter... a possibilidade de eu já ter esse
510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Os partici- transtorno há um tempo. Mas aquela
pantes assinaram o Termo de Consentimento Livre história, a gente estuda isso, mas quan-
e Esclarecido (TCLE), informando a voluntariedade do é com a gente a gente quer fazer de
em participar do trabalho, reconhecendo os riscos e conta que não tem nada acontecendo,
benefícios do mesmo e permitindo a áudio gravação que a gente tá ótimo. E aí beleza eu
de suas vozes. tive diagnóstico. E eu passei por um
processo muito difícil, a minha depres-
são é bem pesada, tanto que eu faço
3.4 COMPREENSÃO DO VIVIDO
uso de medicamento constante e tudo.
Considerando o que pressupõem Pereira & Castro É aí desde quando eu fui diagnosticada
(2019), amparados em Giorgi & Souza (2010), foram com depressão vários amigos meus fa-
elaboradas categorias de análise, apresentadas em lavam para mim assim: “Leah, arruma
seguida: um bichinho, vai te ajudar”. E eu pen-
sava: eu não vou ter um bichinho, eu
não estou cuidando nem de mim. Por

194 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


que a depressão é basicamente isso, Merleau-Ponty (2015) desdobra a reflexão sobre a
você não enxerga sentido. Eu achava percepção para a questão do corpo. A percepção
que nem cuidar de mim valia a pena. é a experiência original do corpo com o mundo ao
então eu sempre respondia: “não, eu seu redor. O corpo não é um espaço objetivado em
não vou ter um bichinho porque eu contraposição a alma, mente ou inteligência. O corpo
acho que eu não tenho que... Ninguém passa a ser considerado como corporeidade, ou seja,
mais além de mim pode sofrer com o é o elo vivo com a natureza, fonte de conhecimentos
e sentidos existenciais. Portanto, não se trata de um
meu transtorno. Beleza (Perdita)
“eu penso” como uma etapa para o conhecimento,
E eu tava em processo de terapia de
trata-se de um conhecimento que se funda senso
depressão ainda e não ligava muito pro
corporalmente.
gato. Dava comida pra ele, dava água,
tudo bem... mas, tipo, quando ele que- Baseado em Merleau-Ponty, se pode afirmar que
ria ficar perto para fazer carinho eu não o corpo sabe, o corpo compreende e os sentidos
queria. Mas, meu contato com ele foi existenciais se manifestam corporalmente. Afirma ele
assim. Quando eu comecei a ter conato “A união entre a alma e o corpo não é selada por um
mais assim com ele, porque assim, eu decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um
sempre achei que gato não era uma objeto, outro sujeito. Ela se realiza a cada instante
no movimento da existência” (2015, p.131).
figura... não era um animal que se
apegava muito ao dono, achei que se Segundo Merleau-Ponty, o corpo que vive e está no
apegava mais ao ambiente, a coisas mundo, é o “meu corpo”, e, portanto, não pode ser
do tipo [...] Eu já tinha ido pra terapia reduzido a um mero objeto. Dessa forma, o homem
porque eu já estava com depressão. Na existe e percebe o mundo corporalmente e ressalta
verdade eu estava num estágio muito “meu corpo tem seu mundo ou compreende seu
avançado de depressão, né, eu não mundo sem precisar passar por ‘representações’,
tinha percebido isso. Eu tinha tido... sem subordinar-se a uma ‘função simbólica’ ou ‘ob-
uma vez eu estava indo pra faculda- jetivante” (p.295).
de, estava dirigindo, estava chegando Compreende que existir significa ser um corpo, que o
perto da faculdade eu tive uma crise viver sempre se dá corporalmente e que é no corpo
de ansiedade, que eu não sabia que que se dá à relação homem-mundo. O corpo não é
era crise de ansiedade na época, eu uma massa material, pois toda experiência humana é
fiquei muito com falta de ar, eu entrei sempre corporal. Assim, não se pode separar corpo
em pânico que eu não sabia onde eu e consciência. Sua filosofia interroga a experiência
tava, não sabia o que eu fazia e eu tava vivida do homem encarnado, pois onde há corpo,
dirigindo e não sabia o que fazia. Eu fui há história vivida. O corpo sintetiza a história e a
pro hospital fizeram um monte de exa- relação do indivíduo com o mundo e antecede todo e
me e tava tudo normal. A médica me qualquer conhecimento intelectual. Daí a importância
que o teórico concede ao irrefletido como fonte de
falou: “olha isso pode ser psicológico”
conhecimento. O corpo não é mera representação de
e me encaminhou para o psiquiatra ou
conteúdos da mente. O homem não tem um corpo,
psicólogo e aí, mas eu não dei muita
mas é um corpo que percebe e é percebido.
bola [...] Só que aí chegou num ápice
que eu não tava conseguindo sair de Em Merleau-Ponty (2015), o corpo não é uma reunião
casa. Cheguei... aí foi o dia que eu pedi de órgãos justapostos no espaço. O corpo é não
ajuda mesmo ao meu pai. Que eu che- dividido, sabe-se da posição dos membros por um
guei pra sair... ele trabalhava na mesma esquema corporal. A espacialidade do corpo não é
escola que eu estude e aí... ele já tinha como a dos objetos, uma “espacialidade de posição”,
saído mais cedo de carro e eu ia de mas uma “espacialidade de situação”, ou seja, a
fixação do corpo ativo em um objeto, a situação do
ônibus, aí eu cheguei na porta, com a
corpo em face de suas tarefas.
chave na mão pra sair, eu comecei a
me tremer e chorar muito como se eu Assim, não é um “corpo objetivo” que movemos,
tivesse, sei lá, perdido alguém mesmo. mas um “corpo fenomenal”. Merleau-Ponty (2015)
Aí eu chorei muito e aí eu reconheci: recoloca o corpo em seu lugar original, como fonte e
“Cara, eu preciso de ajuda. Eu to num origem do conhecimento, afirmando que o corpo é o
momento muito ruim”. (Rajjah). pivô do mundo, ou seja, o meio pelo qual temos um
mundo. A vida é sustentada por um “arco intencional”
que projeta em torno do indivíduo seu passado, seu

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 195


futuro, seu meio humano, sua situação física, sua mas tem gente que pega o bichinho e o
situação ideológica, sua situação moral e faz com bichinho dá trabalho, o bichinho é difícil
que ele esteja situado sob todos esses aspectos. É , faz sujeira, roe coisas... a Tori nunca
esse arco intencional que faz, segundo o que está fez nada errado, nada, nada. Foi mui-
exposto na Fenomenologia da Percepção, a unidade to engraçado porque eu levei ela para
entre sensibilidade e motricidade. casa e eu ficava atrás dela o tempo
Dessa forma, segundo Merleau-Ponty (2015, p.212) todo para ver o que ela tava fazendo,
o corpo é um “sistema de potências motoras ou de E aí eu fiquei: “gente essa cachorra
potências perceptivas [...] não é objeto para um ‘eu não faz xixi, a cachorra não faz xixi.
penso’: ele é um conjunto de significações vividas que A cachorra tá entupida, eu vou levar a
caminha para seu equilíbrio”. Não se apreende um cachorra no veterinário “. E aí no final
hábito por meio da associação, mas pela apreensão do dia eu resolvi, no final do dia, eu fui
da significação motora do mesmo. O indivíduo existe passear com ela. Até isso, ela só faz as
para si mesmo pela experiência de seu corpo e pelo coisas dela quando leva ela para fazer,
corpo assume o espaço, os objetos e instrumentos, a ela é muito boazinha . Então assim, es-
relação homem-mundo é indissociável, pois concebe truturalmente não teve impacto, se for
o sujeito como sujeito encarnado no mundo. falar do dia a dia, do cotidiano. (Perdita)
Sob quais perspectivas é considerada a corporeidade Tá, quando eu tive acesso a ele minha
em um “corpo depressivo”? Creio que sob o olhas avó tava viajando e esse gato tava na
da corporeidade silenciada, que não consegue se rua da minha irmã e ele sofria muito
perceber pertencendo a um “locus” ao qual pode- porque tinha cachorros muito grandes
ria ser atribuído um qualificativo de segurança, de e ele se escondia em uma cano na
pertença propriamente dita. Assim, sob esse viés casa da minha avó. Aí, todo dia o meu
do ensimesmamento, diria da corporeidade ensi- cunhado ia lá e alimentava ele. Aí toda
mesmada, é que nossos participantes recordam a vez que meu cunhado chegava, minha
situação em que se encontravam no momento da irmã chegava, ele saia do cano pra pe-
entrada dos animais em suas vidas. dir comida. Como minha avó não gosta
de gato, e meu pai gosta, ela (sugeriu
que meu pai pegasse esse gato. Aí
3.4.2 O INÍCIO DA RELAÇÃO: O PET meu pai quis, ele tinha mais ou menos
VEIO ATÉ MIM um mês, um mês e meio, e ele foi lá pra
casa e, eu não gostava de gato, odia-
Aí essa minha amiga viu que eu tava
va gatos na realidade, amava cachorro.
num momento depressivo e eu falei que
Queria ter um cachorro, mas meu pai
tinha a intenção de ter um cachorrinho.
não queria ter. Aí tudo bem, meu pai
Cachorro é mais amigável, e te procura
adotou esse gato e, acho que mais ou
quando quer carinho, é mais aconche-
menos em uma questão de duas a três
gante. Aí foi… ela vai fazer agora cinco
semanas, meu pai precisou viajar. Ele
meses, é uma pequenininha e eu ga-
já tinha viagem marcada e viajou e eu
nhei ela ano passado em Dezembro..
fiquei sozinho com o gato. (Rajjah)
aí foi quando eu descobri que tava com
depressão um animalzinho porque tava
As coisas oferecem suas faces e o indivíduo as per-
me sentindo muito sozinho. Aí eu pe-
cebe de diversos pontos de vista espaciais e tem-
guei ela pra criar e ela fez cinco meses
porais, para Merleau-Ponty (2006, p.17) “Deve-se
agora (Peg) compreender de todas as maneiras ao mesmo tempo,
Aí eu adotei a Tori, que é a minha ca- tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos
chorrinha, tô com ela vai fazer um ano os aspectos as mesmas estruturas de ser”. Ou seja,
agora. Então foi assim que ela entrou as vivências são únicas e singulares e se dão por
na minha vida, foi uma paixão à pri- meio do corpo, este que estabelece com o mundo
meira vista. Estranho. No meio de uma uma relação pré-objetiva, pré-conscientes, de caráter
crise depressiva [...] Para mim, assim, dialético de modo algum causal ou constituinte. Para
eu tive sorte... tem gente que ganha Merleau-Ponty a relação do sujeito e do objeto é uma
um bichinho... eu adotei a tori adulta, relação de ser segundo a qual, paradoxalmente, o
ela é uma cachorrinha e eu já peguei sujeito é seu corpo, seu mundo e sua situação e de
ela adulta, ela é de pequeno porte... certa forma estabelece com estes uma troca, o que

196 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


de acordo com Merleau-Ponty (2006, p.03) “Tudo o de si mesmo e do “me deixar cuidar”.
que sei a respeito do mundo, mesmo pela ciência,
eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma
experiência de mundo sem a qual os símbolos da 3.4.3 E ESSE-OUTRO SE FAZ PRE-
ciência não significariam nada”. SENTE EM MEU VIVER
Por meio das vivências busca-se através da feno-
No início eu não queria pegar ela por-
menologia voltar às coisas mesmas com o intuito de
que eu tava depressiva e eu achava
revelar a abertura ao mundo e aos outros, tendo em
que eu não tinha condições de cuidar
vista que “a verdade não habita o homem interior,
ou antes, não há homem interior, o homem está no de ninguém , nem de um animal. Ini-
mundo e é no mundo que ele se conhece” (MER- cialmente eu tava relutante.. aí, como
LEAU-PONTY, 2006, p.06). é filhote a gente tem que ter um pouco
mais de cuidado, mais atenção… aí, no
De acordo com o que Merleau-Ponty afirma em sua início eu fiquei um pouco amedrontada,
teoria, não se trata de um corpo que se apropria insegura...eu não me sentia capaz de
de novos conhecimentos, mas de um corpo arre-
cuidar dela. Mas com o passar do tem-
batado que desloca sua corporeidade em direção
po eu fui me apegando muito, nela…
ao que ainda não sabe, porém intui como possibi-
ela foi… às vezes eles percebem quan-
lidade. Antes do outro, o mundo é uma extensão
do corpo do indivíduo, com o outro, o mundo é uma do a gente não tá bem, eles chegam
possibilidade de intermédio entre um indivíduo e o perto, pedem carinho e tal… aí, no iní-
outro. Uma correlação na qual se modifica e se é cio foi assim, eu não me sentia segura.
modificado, de acordo com Merleau-Ponty (2004, Achava que não era capaz, mas agora,
p.48) “Só sentimos que existimos depois de já ter nossa… ela é minha companheirinha.
entrado em contato com os outros, e nossa reflexão Toda vez que eu to meio assim pra bai-
é sempre um retorno a nós mesmos que, aliás, deve xo ela vem e me anima. Quando eu tô
muito à nossa frequentação do outro.” em crises depressivas, e eu só quero fi-
car deitada, ela parece que sente e co-
O ser é potencialidade de um horizonte de experiências
meça a latir, começa a querer chamar
possíveis. Horizonte esse configurado pelo campo
de experiências perceptivas de um corpo fenomenal. a atenção e aí, as vezes, minha mente
Essa é a tese fundamental de Merleau-Ponty. distrai e foca nela e eu acabo esque-
cendo da minha crise por um momento.
A percepção que se tem de uma determinada situação aí eu parei de tomar os remédios para
ou vivência é uma experiência motivada e pré-pesso- dormir e me foquei em cuidar dela de
al, descrita pelo filósofo francês como comunhão ou noite. Eu acabei que consegui dormir
coexistência. Não é o sujeito que cria o mundo ou o
bem porque ela sempre dormia no meu
objeto que se inscreve no ser. Eu e mundo, sujeito e
colo e eu acabava cochilando pra cui-
objeto, atualizam-se e articulam-se em um campo de
dar dela, cuidando dela aliás. E depois
experiências para além da perspectiva dicotômica.
Daí o termo comunhão ou coexistência, ser e mundo foi melhorando porque eu fui focando
estão mutuamente implicados em uma dinâmica de só nela, tipo, cuidando dela entendeu.
reconhecimento e reencontro, determinada não por As vezes me dava uns momentos de
um ou por outro, mas pelos dois em sua relação. fúria porque eles latem muito e é mui-
Afirma ainda “[...] Nós temos em mãos nossa sorte, to irritante latido… mas aí eu respirava
tornamo-nos responsáveis por nossa história por fundo, me acalmava, e ia vê o que ela
meio da reflexão, mas também por uma decisão em queria, porque sempre quando eles la-
que engajamos nossa vida[...]”. tem eles querem alguma coisa. Aí eu
acaba que respirava, me controlava e ia
Engajamento. É neste sentido que os participantes
cuidar dela. Mas,inicialmente, eu tava
nos trazem o início da relação com seus animais
de estimação. O que a princípio poderia denominar no início do meu processo de depres-
como “algo mais a ser feito” passa por mudanças e são e depois foi amenizando. Ela meio
a relação se estabelece, plena de sentidos e signi- que me fez esquecer um pouco sobre
ficados. O cuidar do outro é designativo do cuidar os meus problemas. (Peg)
eu nunca quis que é responsabilidade
de eu ficar bem ficasse sobre alguém,
nem sobre ela, mas ela me faz sentir
bem comigo mesma, eu não preciso ser

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 197


outra coisa além de mim. Isso foi muito minha relação com esse gato começou
diferente, isso não teve terapia que me a mudar (Rajjah)
desse. Apesar de terapia ter me feito
muito bem, lógico. A terapia é necessá- Segundo Merleau-Ponty (2015), o conhecimento
ria, mas são sensações que a palavra do outro possibilita o conhecimento de si, eu e o
não dá conta. A palavra não te dá isso. outro, estão mutuamente envolvidos em uma rela-
Só você experienciando. Então, com ção de trocas. É neste momento que o seu pensa-
ela eu sinto que tá ok, eu tô fazendo mento avança na compreensão da relação eu-outro.
um bom trabalho... e isso é f***, isso é Contudo, não em uma perspectiva a partir de um
muito forte quando você acha que não ato relacional com o animal a partir da consciência
intencional, mas a partir da experiência do corpo
é suficiente para nada. Foi isso. Des-
pela intercorporeidade: o eu e o outro são órgãos de
culpa, eu sou chorona mesmo (Perdita)
uma mesma intercorporeidade (VIEIRA DE MELO
[...] E eu gostava mesmo de cachorro, & CALDAS, 2013).
então quando ele chegou foi muito in-
diferente pra mim. E a minha relação O meu corpo transforma-se assim no lugar originário
passou... eu comecei a amar mesmo, onde o mundo faz e se faz sentido, não porque não
ter afeto por ele, depois desse episódio pode impedi-lo, mas porque a única forma de ser
que eu relatei no início. E todas as ve- aquilo que ele é, i. e. sujeito de percepção, é abrin-
zes que eu chegava da faculdade ele do-se a uma realidade que se sugere a ele. Neste
sentido, o meu mundo, ou seja, o mundo que me é
sempre tava na porta me esperando, e
dado a perceber tem a marca indelével deste corpo
eu só tinha visto isso ser relatado, vê
de carne e osso que é também o meu. Não podemos
mesmo acontecer, com cachorro né?!
por isso considerar que o corpo, enquanto sujeito
Que quando você chega ele ta na por- de percepção, seja um mero depósito passivo do
ta esperando, ou então, quando você mundo percebido (PADELHA, 2007).
chega ele chega vai com você pra fazer
carinho e tal. E eu nunca tinha visto nin- Diz-nos Renaud Barbaras que a especificidade da
guém relatar isso com gato e eu achei percepção “não é nem apreender um sentido, nem
muito diferente e, quando eu tinha isso, receber passivamente um conteúdo, é abrir uma
quando eu chegava em casa e sentia dimensão segundo a qual a coisa pode aparecer
em pessoa” (1997, p.54). Quando se diz que “estar
que tinha alguém me esperando, um
aberto” é uma predisposição natural ou estrutural do
gato me esperando, um animal me es-
corpo, não significa apenas que o corpo é receptivo,
perando, alguém me esperando, era... mas, sobretudo que ele se predispõe a ser algo para
me ajudou muito. Me ajudou muito a além daquilo que possui em próprio. O corpo pró-
entender. Teve muitas vezes que eu prio merleaupontyano só poderia ser um hospedeiro
tava mal, que não tinha ninguém pra meramente passivo se a ação do mundo sobre ele
contar e eu só ficava com ele, e chora- se tornasse totalitária. Neste caso, os papéis seriam
va perto dele, ou então fazia carinho e invertidos: a espontaneidade seria colocada do lado
tava chorando e ele sempre tava perto. do mundo e a passividade do lado do corpo, cons-
Então foi quando eu comecei a desen- tituindo este um agregado onde o mundo se vinha
volver essa relação de amor com esse dizer, o que tende a acontecer com o advento da
gato [...] Mas aí eu lembro que teve um ontologia no pensamento do autor de Le visible et
dia que eu tinha umaprova que eu fiz l’invisible.
no Ifam, que eu não consegui resolver Considerando o exposto, percebe-se que o corpo
nada da prova porque ainda tava num revela muitos fatores além de idade, gênero, raça.
período bem complicado, e aí em sentei Estão lançados modos singulares de ação diante de
no sofá comecei a chorar e ele veio e fatores diversos, expressões de significação intrínse-
sentou do meu lado e ficou com a ca- cas, o corpo sendo a própria significação. Segundo
beça no meu colo. E daí eu comecei a Oliveira et al (2010), o corpo representar a forma
ter uma interação maior com esse gato. como o ser se encontra no mundo, é o propulsor
Né, foi aí que eu comecei a entender das vivencias, é o possibilitador da existência. Reis
que animais, de forma geral, eles sen- (2011) traz a obra de Merleau-Ponty, O Olho e o
tem o que a gente tá sentindo e eles Espírito, a relação do corpo com a obra de arte. Só
se colocam ali pra confortar, ou alguma é possível compreender a arte no seu próprio corpo,
coisa do tipo. Foi assim que eu tive a na pintura, na dança, na poesia. Assim, se dá o pro-
cesso com o homem, só é possível compreendê-lo

198 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


na sua corporeidade, no seu gesto, no seu modo de [...] Por que é impressionante cara, eu
agir e se expressar. fiquei gripada semana passada,super
gripada, fiquei bem doente, e aí eu quis
E o ato inicial de perspectiva passa a uma configu-
ração pluridimensional. O pet não é mais “apenas” ficar deprimida, porque tudo é gatilho…
o pet. É meu, faz parte do meu mundo, sou um ser- e aí eu fui ficando deprimida, deprimi-
-no-mundo com um pet que cuido e que me cuida, da, e assim… Ela deita do lado e ela
para quem eu faço falta e, por sua vez, me faz falta. fica olhando, aí se eu não brinco ela
chama, então é como se ela fosse meu
ponto de luz quando tudo fica mais es-
3.4.4 TENHO ALGUÉM À MINHA curo. Ela é. Eu existo melhor, eu me
ESPERA: AS IMPOSSIBILIDADES sinto eu depois dela, com ela. E se eu
SÃO AGORA POSSIBILIDADES, CUI- for pensar no antes era… era triste, era
DADO frio, era infeliz, vazio. E aí, como eu te
falei, agora até com a minha mãe eu
Percebia. Percebia uma grande melho- converso. Sabe, a gente compartilha
ra. Tanto que falei para os meus amigos a vida por causa dela. Ela obrigou a
que ela foi meio que minha cura pra gente a se relacionar. (Perdita)
depressão porque teve uma época que É muito bom. Ele continua fazendo al-
eu estava sem remédio, desses cinco gumas coisas, por exemplo, quando
meses eu fiquei um mês sem remédio, eu chego do trabalho, toda vez que eu
aí eu só tinha ela. Ela meio que foi meu abro a porta ele tá lá, sempre me es-
remédio assim pra depressão. Toda vez perando. E eu brinco muito com ele,
que eu tava em crise eu ia lá brincava porque como ele é jovem ele é muito
com ela e fazia carinho e ela me tirava hiperativo, então é muito agitado [...]
da crise.... quando eu queria só deitar, Eu me sinto.. me sentia acolhido, mes-
dormir, tomar remédio para dormir, eu mo com um animal, não como um ser
olhava pra ela e via que ela tava que- humano que pode me abraçar e tal,
rendo brincar , chamar a atenção e eu mas eu me sentia acolhido, eu sentia
ia lá e brincava com ela e não tomava que ele me entendia. Então, toda vez
o remédio. Eu não fugia dos meus pro- que eu tava chorando perto dele, ou
blemas, eu lidava com eles através do que eu tava fazendo carinho nele, eu
meu amor por ela. Tanto que eu não me sentia que aquilo era recíproco. Que se
vejo mais sem ela. (Peg) ele pudesse ele estaria fazendo aqui-
E quando a Tori chegou em casa eu lo por mim naquele momento. Então,
tinha por que voltar para casa, eu que- acho que o principal balanço que eu
ria estar em algum lugar, sabe? Que faço é esse, que antes faltava alguma
era um lugar que eu não tinha, antes coisa, né?!... de afetividade, alguma
eu não tava bem em canto nenhum, coisa assim, de poder demonstrar. Eu
Agora eu tô bem nos lugares porque sempre quis ter um animal de estima-
eu sei que eu vou voltar para casa e ção, mas sempre pensei no cachorro
eu vou ficar bem com ela. E aí eu co- e, quando fui presenteado com esse
mecei a questionar uma série de coisas gato, de adotar esse gato, é ainda mais
[...] depois que a Tori entrou na minha especial porque, além de a gente po-
vida eu sai do emprego onde eu estava, der ajudar ele que também tava numa
eu comecei a investir na coisa que eu situação muito ruim morando na rua,
sempre sonhei e nunca tive coragem a gente também recebeu em troca um
porque eu achei que não merecia, que animal dócil e carinhoso que gosta de
é da aula. Então hoje eu tô dando aula. tá perto da gente. Que gosta de dá ca-
Eu converso com a minha mãe o dia rinho e que gosta de receber carinho
inteiro, a minha mãe sabe as coisas da também (Rajjah)
minha vida, ela não sabia antes. Eu
converso com meu irmão, por exem- Cresmasco (2009) também cita a obra Fenomenolo-
plo, que a gente não conversava nada gia da Percepção como proposta de Merleau-Ponty
porque a gente é muito diferente, e hoje para descobrir os significados rumo à compreensão
eu converso com ele e ele me apoia humana, o comportamento na forma de “um conjunto

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 199


de reações significativas” (p.52). O objetivo de uma paciente, antes eu era muito irritada. É
pesquisa ou de uma psicoterapia, utilizando-se dos como se fosse criança que exige nossa
pressupostos de Merleau-Ponty, será compreender atenção e quer que a gente esteja ali
os sentidos oriundos da comunicação do sujeito com focada. Eu fiquei menos irritada, pas-
o mundo. sei a ser mais carinhosa, porque antes
Merleau-Ponty (2015) cita o cego que utiliza da ben- eu não era, eu era meio bruta. Acho
gala como instrumento para perceber o mundo, como que é isso [...] Então, quando eu tive
uma extensão de seu próprio corpo, assim como a Hermione eu passei… é como se eu
o pole possibilita ao sujeito perceber o mundo por tivesse tendo o primeiro filho. Eu passei
outros olhares, por outras possibilidades de esquema a ter mais paciência, eu passei a ter
corporal. Uma nova figura, uma nova coleção de mo- mais tempo pra brincar com ela, por-
vimentos, utilizando a barra vertical, que propõe uma que antes eu só chegava em casa ia
nova percepção sobre o ser-no-mundo e aquisição tomar banho, ia comer e ia pra cama…
desse mundo e suas potencialidades. porque os gatos eles não são assim…
O comportamento tem uma conotação intersubje- eles só vão lá, só querem água fresca e
tiva, pois no outro revejo a legitimação do sentido comida. Cachorro não, ele late quando
da conduta, um reflexo de possibilidades, em que tu chega, ele te lambe quando tá feliz,
o sujeito se confirma na comunicação com o outro. quando pega ele no colo ele abana o
Essa conduta se expande pela fala e pelo gesto. rabinho.. nossa, é muito bom vê um
Na linguagem, o sujeito conota sentido ao que quer cachorrinho abanando o rabinho pra
expressar. (FURLAN & BOCCHI, 2003) você, lambendo tua cara, quando tu tá
triste eles parecem que sentem quando
O corpo é instrumento da comunicação. Na relação
dele com o mundo, no sentido dado às coisas, tor- você tá triste porque eles vão lá e te
namo-nos seres sociais, significando as palavras e olham de um jeito, ficam te olhando…
inter-agindo. Este contexto merlopontiano contra- aí quando a gente faz carinho eles vão
diz ao trazido pelo empirismo que vê a linguagem lá e retribuem esse amor. E antes eu
objetivada e o sujeito inexistente, sendo ela reflexo não era assim, eu passava pelas crises
de fenômenos externos a ele e não dele. Assim, tomando remédio, só me medicando. E
como no intelectualismo que vê a linguagem como agora eu percebi que eu posso passar
mero instrumento e não representação do sujeito. pelas crises com a ajuda dela, é… por-
(FURLAN & BOCCHI, 2003) que ela meio que me tira das minhas
crises quando eu to com ela brincando,
O objetivo é compreender “a relação entre palavra
e sentido na origem do fenômeno expressivo”, a fazendo carinho, essas coisas. Então,
compreensão da fala e do gesto corporal. Nem toda ela me trouxe essa… essa relação de
manifestação é biológica, mas construída dentro de amor para com alguma pessoa. Como
sua cultura e de modo individual. Uma mesma emo- se fosse um filho mesmo. (Peg)
ção pode ser esboçada de formas diferentes, sob E o engraçado é que eu sempre tive
um signo diferente, diante de um mesmo motivador. vários medos, eu sempre tive uma pa-
(FURLAN & BOCCHI, 2003) ranoia com negócio de beleza. “Porque
eu sou feia. O mundo só é fácil para
O meu corpo expressa tristeza e angústia, o pet fica
quem é bonito, e isso, e aquilo e não
junto de mim. O meu corpo expressa alegria, o olhar
do pet para mim é também de alegria. E assim o sei o quê”. E com a Tori eu já fui para
cuidado se torna a mola primeva para que a relação concurso de beleza com ela, e ela não
seja pautada no companheirismo, na parceria, no é bonita. Ela é muito esquisita, mas eu
“um estar ao lado do outro”, independentemente do acho ela linda na esquisitice dela. Ela
teor que motivou aquele comportamento. A emoção, é perfeita na esquisitice dela. Então,
o sentimento de bem querer atinge reciprocidade tal eu já fui para concurso desfilar lá com
que o “olhar” do participante sobre si mesmo e sobre ela, foi muito engraçado. É aí com ela
a vida, transforma. eu sinto, sabe, parece que eu tô me
sentindo inteira [...] então assim, des-
de que ela chegou eu acho que se eu
3.4.5 E MEU OLHAR SOBRE MIM E pensei que era melhor morrer eu devo
SOBRE A VIDA, MODIFICA ter pensado, sei lá, umas 5 vezes, só. E
antes era um pensamento constante, a
O que mudou? Eu passei a ser mais

200 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


cada passo da minha vida era isso que sentidos e significados. Assim, sentidos, metas e
eu pensava. Então, eu tenho pensado limitações oriundas da adoção vão propiciando a
bem menos… então desde que ela che- significação de si mesmos a partir das dificuldades
gou eu não penso mais nisso. Às vezes já vividas e que a pouco e pouco parecem desapa-
eu penso lógico, fica tudo meio difícil, recer ou minimizar em decorrência da presença do
maior… as coisas perdem o sentido. animal com cada um dos participantes.
Mas com ela eu não tenho mais esse Entretanto, percebe-se que, conforme pressupõe
pensamento de que é melhor morrer, Merleau-Ponty (2015) , o corpo próprio aliado à
de que é melhor que as coisas aca- consciência é que emite o sentido atribuído à es-
bem porque não tem jeito, sabe? Então sas transformações. Inicialmente vivenciadas sob
eu sinto… Ela faz com que eu mereça a égide da dor e do sofrimento e da sensação de
existir. É essa a sensação que eu te- estar incapacitados, enredados e aprisionados pela
nho. Então desde que ela chegou as consequência da doença em si mesma, após a ado-
minhas crises tem sido muito mais le- ção dos pets, ocorre a transformação. O mundo não
ves, nem se compara. No momento em é mais visto sob a cor cinza, sob o olhar da tristeza
que eu fico mais… eu me diminuo, que e da incapacidade. Eis a corporeidade. A vivência
eu fico pequenininha, que eu fico mais significativa de uma situação onde não existe um
corpo que sofre, mas sim, um ser encarnado que
triste, eu ainda consigo olhar as coisas,
sente a dor, a expressa, a significação. Não existe
me levantar e ir atrás, então sim, ela…
apenas um corpo-objeto que é acometido pelo esta-
me mostrou o que eu sou possibilidade.
do depressivo, conjuntamente há um corpo-sujeito
Um bichinho que só sabe latir, e comer que também ressente, que também significa, que
e fazer coco me mostrou que eu sou também atribui sentido, um sentido agora redimen-
possível. Eu sou possível, não é que sionado em prazer, em alegria, em contentamento
eu tenha possibilidades, é que eu sou por ter a certeza de que alguém os espera, alguém
possível. A minha existência da manei- trouxe outro brilho ao olhar, alguém introduziu cor
ra que eu sinto, que eu acredito, que em suas vidas.
eu sempre acreditei, que eu sempre

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
sonhei, mas que eu não consegui en-
contrar meio, ela foi o meio. (Perdita)

E meu corpo passa por transformações que resultam Realizar a pesquisa com um tema envolvendo
em mudanças no meu dia a dia. O corpo vivencia animais de estimação e poder conciliar algo que
as transformações. vivo no dia a dia –convivência com pets – com a
parte acadêmica foi extremamente satisfatório. Como
Corpo: Na obra Fenomenologia da Percepção, o tutores de animais de estimação atualmente, e de
autor francês elabora uma distinção entre o corpo vários outros durante a vida, sabemos da importân-
objetivo, que tem o modo de ser de uma coisa, e cia deles e do quanto podem ser benéficos para o
que é “o corpo do animal, analisado, decomposto ser humano em diversas situações. O sentimento
em elementos” e o corpo fenomenal ou corpo pró- existente entre pets e seus tutores vai muito além
prio, que a um só tempo é eu e meu, no qual me do sentimento de posse, por parte do humano, ou
apreendo como exterioridade de uma interioridade de necessidade, por parte do animal. O sentimento
ou interioridade de uma exterioridade, que aparece é de companheirismo, aconchego e amor mútuo.
para si próprio fazendo aparecer o mundo, que, por-
tanto, só está presente para si próprio a distância e Realizar as entrevistas com tutores que passaram
não pode se fechar numa pura interioridade. Assim, por situações tão difíceis e que encontraram em uma
o corpo fenomenal é um corpo-sujeito, no sentido relação tão pura, acolhimento e motivos para seguir
de um sujeito natural ou de um eu natural, provido e ressignificar suas vidas, mostrou que esses pe-
de uma estrutura metafísica, mediante a qual ele quenos seres possuem uma capacidade de empatia
é qualificável como poder de expressão, espírito, e solidariedade digna de qualquer ser humano. O
produtividade criadora de sentido e de história. A que lhes falta de racionalidade lhes é compensado
todos estes elementos, a esta vivência nossa nas com a capacidade de amar e perdoar incondicional-
situações que se nos ocorrem no cotidiano, Merle- mente. Durante as entrevistas foi comum ouvir que
au-Ponty (2015) compreende como corporeidade. os animais “sentiam” que os tutores estavam aden-
trando em quadro depressivo e que prontamente se
Corporeidade: Conceito elaborado pelo autor, designa aproximavam e se colocavam a “disposição” para
o desenho das nuances que a adoção de um animal acompanhá-los. Também foi muito comum ouvir que
e as modificações contínuas em seu ser, dando-lhe os animais passavam de “bichos” para a condição

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 201


de filho, tal era o sentimento de responsabilidade afeto. Notou-se que os entrevistados afirmam que
que surgia em relação aos pets. houve um estranhamento na adoção do animal, do
sentimento de incapacidade, pois achavam que não
Tudo isso mostrou que quando a relação ser huma-
eram capazes de cuidar de si mesmo devido o diag-
no-animal existe de forma respeitosa, responsável e
nóstico prescrito. Cabe afirmar, que a responsabilidade
mútua os ganhos psicológicos, emocionais e físicos
pela vida do animal contribuiu no cuidado de si e do
podem ser inúmeros.
outro (o animal doméstico), além disso, perceber
Desenvolver esta pesquisa possibilitou crescimen- que ao cuidar do animal é possível ir além, ir além
to profissional e pessoal imensuráveis. Conviver da doença, desenvolver potenciais que eram antes
com animais e perceber/sentir que são seres com ocultados pelo transtorno depressivo.
capacidade de raciocínio, ainda que limitada, e com
uma disposição para o acolhimento inigualável é REFERÊNCIAS
incrível, mas poder pesquisar mais profundamente
e buscar entender como os processos de sentidos
ASSOCIATION, American Psychiatric. MA-
e significados atribuídos a esses animais por seus
tutores ocorrem e como a psicologia pode fazer uso
NUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE
disso foi enriquecedor demais para os pesquisadores. TRANSTORNOS MENTAIS: DSM V. Porto Ale-
gre: Artmed, 2014
Para compreender a trajetória de vida das pessoas
que participaram dessa pesquisa e a sua vivência BLOC, Lucas et al. Fenomenologia do corpo
com um animal de estimação usou-se os parâmetros vivido na depressão. Estudos de Psicologia,
conceituais da Fenomenologia de Maurice Merleau- Natal, v. 20, n. 4, p.217-228, dez. 2015.
-Ponty. Trabalhar o significado da vivência desses
sujeitos utilizando o método fenomenológico, levando CAVALCANTE, Simone N. Notas sobre o fenô-
em consideração que a vivência não encerra um meno depressão a partir de uma perspectiva
sentido em si mesmo, mas adquire um significado, analítico-comportamental. Psicologia Ciên-
para quem a experimenta, relacionado à sua pró- cia e Profissão, São Paulo, v. 17, n. 2, p.2-
pria maneira de existir como já explicitado antes, 12, jan. 1997. http://dx.doi.org/10.1590/s1414-
e nos colocando diante do entrevistado, não como 98931997000200002.
portadores de todo o saber e sim, como sujeito que
também possui suas experiências e subjetividade, CREMASCO, Maria Virgínia F. Algumas contri-
buscou-se pelos significados da vivência dos sujeitos buições de Merleau-Ponty para a Psicologia
através da descrição. em “Fenomenologia da percepção”. Revista
Usando a pesquisa fenomenológica foi possível da Abordagem Gestáltica, Goiânia, XV (1),
melhor compreensão dos sentidos dessa interação 51-54, jan-jun, 2009. Recuperado em 04 de
homem-animal, já que o método fenomenológico fevereiro de 2019, em http://pepsic.bvsalud.
prima pela descrição da experiência. E a partir dos org/pdf/rag/v15n1/v15n1a08.pdf
relatos dos participantes foi possível buscar todas
as unidades de significado e posteriormente orga- DAOLIO, Jocimar.; RIGONI, Ana Caroline. C.;
nizá-las dentro da Psicologia. ROBLE, Odilon J. Corporeidade: o legado de
Marcel Mauss e Maurice Merleau-Ponty. Pro-
Como fruto desta pesquisa sobre a interação dos pets
com pessoas em situação de depressão resultam: a posições, Campinas, v. 23, n. 3, p.179-193,
construção de alternativas a métodos tradicionais de nov. 2012.
combate a esta patologia; e o uso do animal como
uma ferramenta valiosa para minimizar o sofrimento
FARACO, Ceres B. Interação humano-animal.
das pessoas que passam pelo processo de depres- Ciênc. Vet. Tróp, Recife, v. 11, n. 1, p.31-35,
são. Um dos pilares que sustenta este transtorno é abr. 2008.
a solidão e o pet passa a “trabalhar” como um tipo
de suporte que permite a pessoa doente ter carinho, FURLAN, Reinaldo & BOCCHI, Josiani C. O
atenção e afeto. O animal doméstico transpõe seu corpo como expressão e linguagem em Mer-
significado de ser doméstico para o ser família. A leau-Ponty. Estudos de Psicologia, v. 8, n. 3,
relação desenvolvida é importantes para a saúde Natal, set./dez., 2003.
mental daquele que necessitam de suporte externo.
GIORGI, Amedeo & SOUZA, Daniel. Método
Com a pesquisa é ainda possível afirmar que o su- fenomenológico de investigação em psicolo-
jeito pode encontrar significado para sua existência gia. Lisboa, Portugal: Fim do Século, 2010.
a partir do cuidado com o animal que retorna com

202 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


HEIDEN, Joyce; SANTOS, Wellington. Benefí- Vínculo, v. 7, n. 1, São Paulo, jun, 2010.
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Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 203


CAPÍTULO
26

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE MORTE EM CRIANÇAS


SAUDÁVEIS

RESUMO
Viver e morrer: a certeza cotidiana. O objetivo deste estudo foi
Julia Roveri Rampelotti
PUCPR
investigar o desenvolvimento do conceito de morte em crianças. Foram
investigadas 3 dimensões do conceito de morte biológica - Extensão,
Najla Maryla Maltaca
Significado e Duração. Aplicou-se individualmente o Instrumento
PUCPR
de Investigação do Conceito de Morte. Participaram do estudo 40
Vittoria do Amaral crianças saudáveis, com idades entre 5 e 6 anos (compreendendo o
Ceccato de Lima
estágio de Piaget pré-operacional), das quais 22 são meninas e 18
PUCPR
são meninos, todos de nível socioeconômico médio. Os seguintes
Cloves Antonio de resultados foram encontrados: 52,5% dos participantes apresentaram
Amissis Amorim uma dimensão de Extensão desenvolvida; 20% apresentaram uma
PUCPR dimensão de significado desenvolvida; e 55% apresentaram conceito
adequado de dimensão Duração. Os dados confirmam estudos
anteriores, que apontam que indivíduos de condição socioeconômica
semelhante geralmente apresentam resultados semelhantes.
Neste estudo, as dimensões Extensão e Duração do conceito de
morte foram identificadas sem lacunas cognitivas para o estágio
de desenvolvimento. Entretanto, apenas 20% dos participantes
apresentaram a dimensão de Significado desenvolvida, o que sugere
influência cultural com prevalência da negação da morte. Assim, evita-
se uma compreensão cognitiva completa do fenômeno, ainda que a
cultura brasileira, nesse momento, seja violenta e as crianças sejam
diariamente expostas às notícias de morte.

Palavras-chave: Criança; Morte; Conceito de Morte.

10.37885/200400018
1. INTRODUÇÃO plicá-la. É comum a personificação desse conceito,
ou seja, a compreensão da morte como se fosse
A morte faz parte do desenvolvimento de cada uma pessoa.
indivíduo e é sentida pela criança antes mesmo de ser Speece & Brent (1984) analisaram alguns compo-
vivenciada concretamente. A partir do momento que a nentes básicos que auxiliam na compreensão de
criança percebe a ausência de sua mãe, seu animal como as crianças enxergam a morte: universalidade,
de estimação foge ou algum brinquedo é perdido, irreversibilidade e não funcionalidade. Universalidade
significados e qualidades passam a ser atribuídos a compreende o entendimento de que todas as coisas
esse conceito. Essas situações representam perdas vivas morrem. Esse conceito engloba a inevitabilidade
que servem como ponto de partida para a busca da e a possibilidade imediata da morte. A irreversibilidade
compreensão da morte (KOVÁCS, 1992). entende a morte como final, permanente e envolve o
Dado a complexidade e importância desse assunto reconhecimento de que não é possível reverter esse
no ciclo vital dos indivíduos, o desenvolvimento do estado. A não funcionalidade se refere à cessação de
conceito de morte tem sido objeto de estudo para todas as funções definidoras da vida após a morte.
muitos pesquisadores (KOOCHER, 1973; TORRES, Nunes et al. (1998) afirma que o conceito de mor-
1979; NUNES et al., 1998). Segundo Torres (1996), te como um fenômeno permanente e irreversível é
o desenvolvimento desse conceito começou a ser entendido apenas no período operatório concreto.
estudado no ano de 1934 por Schilder e Wechsler, Koocher (1973) e Nagy (1948) relatam que as crian-
teve continuidade com os estudos de Nagy em 1948 ças no pré-operatório compreendem a morte como
e se intensificou nas décadas seguintes. Em sua temporária e reversível, além de serem capazes de
maioria, as pesquisas a respeito desse tema abordam mencionar algumas alternativas para reviver coisas
dois métodos de exploração que se entrelaçam: a mortas e de negarem a sua própria morte.
idade e o nível de desenvolvimento global da criança.
A maioria dos estudos destacam essa perspectiva,
Em relação ao desenvolvimento cognitivo, a teoria mas alguns autores apontam que tal compreensão
de Piaget nos disponibiliza alguns conceitos teóricos pode diferir conforme a cultura, religião, experiên-
que servem como ponto de partida para essa com- cias prévias do indivíduo e nível socioeconômico
preensão. Piaget afirma que as crianças passam por (TORRES, 1996; KENYON, 2001; ROAZZI, DIAS
quatro estágios do desenvolvimento intelectual que E ROAZZI, 2010).
influenciam a maneira da criança perceber o mundo:
estágio sensório-motor (0-2 anos); pré-operatório (2-7 Roazzi, Dias e Roazzi (2010) ressaltam que há duas
anos); operatório concreto (7-11 anos) e o estágio maneiras de encarar a morte, a partir de uma pers-
operatório formal (11-12 anos) (KOOCHER, 1973; pectiva secular-biológica, onde é entendida como
NUNES et al., 1998). irreversível, ou a partir de um ponto de vista me-
tafísico-religiosa, que exemplifica a interpretação
O presente estudo tem como foco principal crian- de diversas religiões de que a morte não é o fim,
ças de 5 a 6 anos, que se encontram no estágio mas uma transição. Brent et al. (1996) aborda essas
pré-operatório. Para Piaget (1983), é nesse está- duas perspectivas, trazendo explicações naturais
gio que ocorre um aumento significativo do uso de que explicam a morte a partir das leis científicas, e
símbolos, imagens e palavras, para representar ou explicações não naturais, referindo-se à uma força
significar eventos. Entretanto, o entendimento da maior para explicar a reversibilidade. Como consequ-
criança a respeito dos eventos ainda está baseado ência de crenças religiosas, é possível que a criança
no pensamento lógico e racional, manifestado pela atribua conceitos não naturais e adote uma postura
falta de reversibilidade, ou seja, incapacidade de metafísico-religiosa para fundamentar a morte. Para
desfazer mentalmente uma ação. o autor, essa postura indica um entendimento mais
O período pré-operatório também é marcado pelo maduro a respeito de assunto, pois considera outras
animismo e realismo. Isso implica em um pensamento alternativas de explicação que não sejam apenas
infantil caracterizado pela tendência em dar vida e “morte ou vida”.
consciência à objetos inanimados. A criança considera Em relação ao efeito das experiências no indivíduo,
que imagens, nomes, sentimentos e pensamentos Yalom (1980) e Furman (1978) citados por Torres
são a essência do objeto. Como consequência disso, (1996) concluem que em certas condições, como a
a morte adota corporeidade (PIAGET, 1983). perda, as crianças podem compreender o conceito
Os estudos de Nagy (1948) e de Kübler-Ross de morte como irreversível antes do que a teoria do
(1969/2008) vão de encontro com essa ideia. Para desenvolvimento cognitivo propõe. Além disso, Kenyon
as autoras, crianças de 5 a 9 anos entendem que (2001) relata que crianças com alguma experiência
a morte existe, mas incluem fantasias ao tentar ex- prévia, seja a própria doença ou a morte de alguém
próximo, também podem apresentar um entendimento

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 205


maior sobre o conceito de não-funcionalidade. do a assinatura do Termo de Consentimento Livre
Esclarecido (TCLE) por parte dos responsáveis e
Outros fatores que podem influenciar a compreen-
aplicado individualmente o “Inventário de Sondagem
são da criança a respeito do assunto são os meios
de Desenvolvimento do Conceito de Morte”, elabo-
de comunicação. Os desenhos infantis apresentam
rado e validado por Wilma da Costa Torres (1979).
cenas recorrentes de personagens feridos que se
curam rapidamente e de super-heróis que desafiam O Instrumento avalia três dimensões a respeito do
e sobrevivem às situações de morte. Isso pode in- conceito de morte. A dimensão Extensão tem como
fluenciar o entendimento da criança a respeito da objetivo avaliar o conceito de universalidade, apre-
imortalidade e irreversibilidade da morte, por provocar sentando 11 itens que questionam o grau de compre-
a ideia da violência como algo natural e o fim da vida ensão dos indivíduos acerca dos seres que morrem
como reversível (KOVÁCS, 2008). (ex.: Passarinho morre? Por quê? Sol morre? Por
quê?). A dimensão Significado conta com 17 itens
Torres (1996) realizou um estudo a respeito da influ-
que avaliam o entendimento da criança a respeito
ência do nível socioeconômico na compreensão da
da não-funcionalidade da morte (ex.: Como você
morte. A autora aponta que crianças em condição
sabe que alguém está dormindo ou acordado? Os
de carência e marginalidade, em comparação com
mortos se movem ou não? Por quê?). Por fim, a di-
crianças de nível socioeconômico médio/alto, não
mensão Duração envolve 8 itens que avaliam o grau
estruturam as etapas cognitivas de acordo com a
de compreensão das crianças acerca do tempo de
idade. Como consequência disso, podem apresentar
permanência da morte, ou seja, o entendimento da
maior dificuldade para entender o conceito de uni-
criança a respeito da irreversibilidade da morte (ex.:
versalidade, mas compreendem melhor o significado
Se uma pessoa morresse, o que você faria por esta
da morte e a irreversibilidade, possivelmente pelo
pessoa morte? Deixaria a pessoa morta no hospital
contato direto e maior exposição às situações de
até que ela melhorasse?).
risco de vida. Fernández (2000) ressalta que, como
consequência dessa relação direta, as crianças em A seguir, é possível observar uma tabela a respeito
ambientes rurais entendem a realidade da morte das dimensões desenvolvidas em relação ao gê-
antes que crianças em ambientes urbanos. nero das crianças e uma tabela com as dimensões
desenvolvidas de acordo com a idade das crianças.
O uso de eufemismo e metáforas ao comunicar a
criança sobre a morte também pode influenciar no Tabela 1. Dimensões desenvolvidas de acordo com o
entendimento sobre o conceito. No período pré-ope- gênero dos participantes.
ratório, a criança não apresenta total capacidade de
abstração, podendo levar a metáfora ao contexto
real (COX et al., 2005; LIMA & KOVÁCS, 2011). Por
esses motivos, Elias (2001) ressalta a importância
de se discutir a respeito da morte com a criança.
Para o autor, é comum que os adultos evitem tocar
nesse assunto com receio de transmitir seus pró-
prios medos e angústias, além de terem uma vaga
sensação de que esse tema possa ser prejudicial Após o Instrumento de Sondagem do Conceito de
para a criança. A experiência da morte pode ter efeito Morte - Torres (1979) ser aplicado individualmen-
altamente traumático na vida de uma criança, então te, coletou-se as seguintes respostas: 52,5% dos
nada seria mais benéfico do que a familiaridade com participantes apresentaram a dimensão Extensão já
a finitude da vida. desenvolvida; 20% apresentaram dimensão Signifi-

2.COLETA DE DADOS
cado desenvolvida e 55% apresentaram o conceito
de Duração adequado. Esses resultados podem ser
visualizados na Tabela 1, que não especifica a faixa
O presente estudo foi desenvolvido na disciplina etária de cada criança.
de Tanatologia do curso de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, campus de Curitiba.
O objetivo do estudo foi investigar o desenvolvimento
do conceito de morte em crianças saudáveis. Par-
ticiparam 40 crianças de 5 e 6 anos, sendo 22 do
gênero feminino e 18 do sexo masculino. Dentre as
crianças entrevistadas, dez delas tinham apenas 5
anos de idade e 30 crianças tinham 6 anos de idade.
Todas as crianças estavam matriculadas no Ensino
Fundamental. Para a coleta de dados, foi solicita-

206 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Tabela 2. Dimensões desenvolvidas de acordo com as pessoa morre.
idades dos participantes.
Entre essas 19 crianças, 12 eram praticantes de alguma
religião. Roazzi, Dias e Roazzi (2010) afirmam que a
religião pode influenciar no entendimento da morte
como uma transição, não como um fim. Para essas
crianças, foi recorrente o uso de justificativas como
“o espírito vive, o corpo não”, “os mortos nos escutam
do céu” e “a alma vai para o céu”, evidenciando a
influência do discurso religioso quando questionadas
sobre o que acontece quando alguém morre.
Como citado anteriormente, o presente artigo aborda
crianças na fase pré-operatória, descrita por Piaget
(1983) como um período marcado pela irreversibilidade.
Kovács (2008) afirma que os meios de comunicação
podem influenciar no desenvolvimento desse conceito
A Tabela 2 revela a análise dos resultados por ida- por mostrar personagens que desafiam e sobrevivem
de, indicando quais dimensões as crianças de 5 e situações de morte, passando a ideia da morte como
6 anos elaboraram. A percentagem foi calculada de manipulável e reversível. Entre as crianças que não
acordo com cada idade, considerando que 10 crian- atingiram a dimensão Duração, quatro crianças afir-
ças tinham 5 anos de idade quando entrevistadas, maram que quando “uma pessoa morre, vira zumbi”
e 30 crianças tinham 6 anos de idade. Com isso, e “morto só se levanta se for zumbi” e duas crianças
foi possível observar um aumento significativo das responderam que uma pessoa torna a viver “quando
dimensões desenvolvidas de acordo com a idade recebe um beijo do amor verdadeiro”. É possível que
dos participantes. as respostas dessas crianças tenham sido influen-
ciadas pelos meios de comunicação. Segundo Cox,

3.RESULTADOS E DISCUSSÕES
Garrett e Graham (2005), as crianças que ainda não
apresentam um completo entendimento da morte
normalmente preenchem seus questionamentos com
A análise dos dados foi realizada a partir das
elementos fantasiosos, que podem ser obtidos a
informações obtidas na aplicação do Instrumento de
partir das mídias infantis, como os filmes da Disney.
Sondagem do Conceito de Morte de Wilma Torres
(1979). Durante a aplicação do Instrumento, não foi Apesar disso, 55% dos participantes do estudo apre-
notado nenhum desconforto, verbalizações de medo sentaram a dimensão Duração formada, mostrando
ou pedidos para interromper o questionário. Apesar um resultado diferente do esperado pela teoria pia-
disso, foi possível perceber que algumas crianças getiana. Torres (1996) apresenta alguns estudos que
demonstraram surpresa quando o assunto “morte” mostram que a compreensão de irreversibilidade não
foi abordado. Paiva (2008) aponta que esse tema está diretamente associada à estrutura operacional
entrou no rol de assuntos proibidos para crianças. Os concreta, podendo ser assimilada no pensamento
adultos subestimam a criança e adotam uma postura pré-operacional. Nunes et al. (1998) ressalta que as
de negação frente a isso, minimizando e afastando a crianças entre os 5 e 7 anos apresentam o conceito
criança do significado da morte. Para a autora, essa formado por estarem fazendo a transição entre os
atitude pode ser entendida como uma tentativa de dois períodos, mas que a cultura pode exercer grande
proteger a criança e explica a surpresa das crianças influência no conceito de morte em particular.
ao serem questionadas sobre o assunto.
Em relação à não-funcionalidade, nenhuma criança
Segundo Lopes (2013), quando se tem receio de que de 5 anos e apenas 23% das crianças de 6 anos
os infantes não estejam preparados para compreen- apresentam esse conceito formado. Siqueira (2003)
der a morte, é comum que os adultos apresentem argumenta que as crianças nessa faixa etária ainda
soluções fantasiosas como “descansou” ou “foi para o não conseguem fazer a distinção apropriada entre
céu” em uma tentativa de facilitar seu entendimento. seres animados e inanimados, podendo influenciar
Cox, Garret e Graham (2005), Lima e Kovács (2011) no não desenvolvimento desse conceito. Além dis-
afirmam que a criança pode levar essas metáforas ao so, Kane (1979) citado por Torres (1996) relata que
contexto real por ainda não apresentar total capaci- as crianças compreendem primeiro a cessação dos
dade de abstração. Acredita-se que como influência aspectos visíveis, como comer e falar, enquanto os
disso, 19 crianças apresentaram o uso de eufemismos aspectos cognitivos mais sutis, como sonhar e sentir,
como “virou anjinho” e “viraram estrelas” em seus são mais difíceis de serem assimilados por necessi-
discursos para explicar o que acontece quando uma tarem de inferências por parte da criança. A resposta

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 207


“não” para a pergunta “os mortos se movem?” e comparadas com as crianças de 6 anos, foi possível
“sim” ou “não sei” para “os mortos sonham?” foram perceber um aumento no percentual dessas dimensões,
recorrentes nos discursos das crianças de 5 anos. onde 56% das crianças de 6 anos desenvolveram
Extensão, 23% desenvolveram Significado e 30%
Gesell (1971) citado por Torres (1996) afirma que
desenvolveram Dimensão. Apesar de autores como
nas idades de 6 a 7 anos é comum a associação da
Piaget (1983) e Nunes et al. (1998) afirmarem que
morte à causa específicas, como doença, assassi-
as crianças no pré-operatório ainda entenderiam a
nato e velhice. Nesse período, a morte ainda não é
morte como temporária e reversível, os dados dessa
vista como um processo biológico, mas em termos
pesquisa apontam o contrário. Apesar disso, os dados
de experiência humana específica. Esses dados fo-
demonstram que há um aumento na compreensão
ram encontrados nas respostas de 26 crianças, que
dos conceitos de irreversibilidade, não-funcionalidade
apontaram alguma causa externa, como “homem
e universalidade de acordo com a idade. Ou seja,
morre quando fica velho, “morre de acidente”, “se
apesar das crianças entrevistadas ainda estarem
for atropelado” ou “com espada, faca ou tiro” para
inseridas no estágio pré-operatório, há uma crescente
explicar a morte. Entre a variedade de causas de
compreensão desses conceitos com o aumento da
morte apontadas pelas crianças, a mais recorrente
idade, assim como afirma Piaget, mas apresentado
foi a velhice. Para Piaget (1961), as explicações a
de maneira precoce quando comparado aos seus
respeito da causalidade da morte estão intimamente
estudos.
ligadas às experiências individuais. Segundo Torres
(1979), a velhice é uma das explicações mais fre- Com isso, pode-se afirmar que os resultados des-
quentes por ser, provavelmente, a que o adulto usa te estudo demonstram nitidamente que a criança,
para ajudar a compreensão da criança. desde uma etapa precoce, já possui entendimento
e representação da morte, que permite reafirmar
Em relação ao conceito de universalidade, Beauchamp
a proposição inicial quanto à necessidade de uma
(1974) citado por Torres (1996) relatou que crianças
abordagem do tema com a mesma. Estas pesquisas
de classe média tendem a ser mais realistas nas
sobre a aquisição do conceito de morte em crianças
suas respostas. Isso vai de encontro com os dados
são muito importantes quando se considera a ne-
obtidos na pesquisa, onde mais da metade (52,5%)
cessidade de falar com elas sobre a morte. Neste
das crianças atingiram a dimensão Extensão.
caso, podem-se usar palavras e experiências que

4.CONCLUSÃO
sejam compreendidas pela criança. Não se trata de
evitar o tema e sim, de trazê-lo para uma dimensão
que possa ser assimilada pela criança, de acordo
Por falta de dados, o presente estudo não ava- com o seu nível de desenvolvimento.
liou a influência da cultura, do nível socioeconômico
e de experiências prévias no desenvolvimento do Entre tantas realidades humanas a mais desafiadora
conceito de morte. Além disso, o entendimento a é a morte. Morrem-se várias vezes na mesma vida,
respeito da morte não obteve diferenças significativas seja por meio de mortes simbólicas, seja pelas tran-
em relação ao gênero das crianças. Já em relação sições inevitáveis, com o avanço da idade, seja pelas
às dimensões avaliadas, destacou-se a dimensão perdas físicas e afetivas que acontecem como ônus
Duração. Mais da metade das crianças entrevistadas da existência. Assim, apesar do número pequeno de
apresentaram essa dimensão formada, contradizen- publicações no Brasil, os resultados da busca trazem
do os estudos de Piaget (1983) que afirmar que informações relevantes sobre o assunto pesquisado
as crianças nessa faixa etária ainda são marcadas e reforçam a ideia de que desenvolvimentos teóricos
pela irreversibilidade. Diversos fatores podem ser na área são de fundamental importância. Falar sobre
apontados para isso, mas os principais encontrados morte suscita medos, ansiedades, angústia, além da
na literatura abordam a cultura, nível socioeconômi- vontade de evitar o assunto. Entretanto, a morte faz
co, as experiências prévias, religião e os meios de parte da vida e é necessário tratá-la da forma mais
comunicação. É possível encontrar estudos contra- natural possível, especialmente quando se conversa
ditórios a respeito da influência desses fatores no sobre o assunto com uma criança.
entendimento da criança sobre a morte, apesar disso, Finalizando, observa-se que os estudos sobre o tema
o consenso é geral quando abordada a importância tiveram início nos anos 30 e 40, ocasionando uma
de discutir o tema morte com as crianças, evitando sensação de esgotamento do assunto. Entretanto, da
a mistificação do tema. mesma forma que a aplicação da teoria piagetiana
Outro fator importante a ser observado são as di- em contextos educativos é uma meta ainda distante,
mensões desenvolvidas de acordo com a idade dos pode-se inferir que os profissionais que se ocupam
participantes. Entre as crianças da 5 anos, 40% delas de criança diante da morte não têm acesso a essas
desenvolveram Extensão, 0% desenvolveram Sig- publicações e, de alguma forma, atuam mais por
nificado e 20% desenvolveram Dimensão. Quando intuição do que por protocolos baseados em evidên-

208 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


cias. Por esse motivo, destaca-se a importância da na morte na literatura infantil. Monografia (Gra-
continuidade de estudos na área. Por esse motivo, duação em Comunicação Social), Universida-
destaca-se a importância da continuidade de estu- de Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
dos na área.
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Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 209


CAPÍTULO
27

PERCEPÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA


SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS QUE PROMOVEM A
CRIATIVIDADE NA ESCRITA

RESUMO
O objetivo principal do capítulo é apresentar uma pesquisa que
Gláucia Madureira Lage
e Moraes investigou a percepção de professores de Língua Portuguesa sobre
distintos aspectos relativos a práticas pedagógicas que promovem a
Eunice Maria Lima
criatividade na escrita. Foram entrevistados 12 docentes do segundo
Soriano de Alencar
ciclo do ensino fundamental. Os resultados revelaram ser a elaboração
de textos pouco trabalhada pelos professores, tendo sido dadas como
justificativas a falta de tempo gerada pelo número elevado de alunos
e carga horária extensa. Um percentual expressivo de docentes
considerou pouco criativas as produções textuais discentes, embora
a quase totalidade tenha se avaliado como profissionais inventivos e
apontado diversas estratégias para facilitar a escrita de textos criativos
em sala de aula. Indicaram como fatores limitadores à expressão
da criatividade nas produções textuais, elementos relacionados aos
estudantes, professores e escola. Os resultados trazem implicações
para a formação de professores de Língua Portuguesa no que diz
respeito à criatividade na redação de textos em sala de aula.

Palavras-chave: Docentes; Escrita; Professores; Língua Por-

tuguesa.
10.37885/200400169
1. INTRODUÇÃO pelos professores os relacionados ao aluno, como
dificuldades de aprendizagem e desinteresse pelo
A necessidade de se investir no desenvolvi- conteúdo ministrado. Observou-se que apesar de
mento das habilidades criativas do aluno tem sido muitos professores apresentarem formação peda-
reconhecida de forma crescente nessas últimas dé- gógica com reduzido conhecimento a respeito de
cadas. Uma das justificativas para tal é a relevância criatividade, não consideraram este aspecto como
de se preparar os estudantes para o mundo incerto e um limitador à promoção de condições adequadas
complexo do trabalho na sociedade do conhecimento ao cultivo da expressão criativa em sala de aula.
globalizado, que requer pessoas aptas a utilizar sua Uma outra questão registrada (Carnaz, 2013) foi o
capacidade criativa. Além de ser apontada como excesso de tecnologia na sociedade contemporâ-
uma das habilidades indispensáveis no século XXI nea, que poderia levar a uma expressão mecânica
(Hartley & Plucker, 2014; Kaufman & Sternberg, 2010; e impessoal, pois à medida que a criança cresce e
Treffinger, Schoonover, & Selby, 2013), os benefícios avança em sua vida escolar, é comum que deixe de
da criatividade para o bem estar emocional e sua se dedicar a atividades meramente criativas, como
associação com motivação e desempenho escolar desenho livre, para mergulhar no mundo tecnológico
têm sido também ressaltados (Alencar & Fleith, 2009; e reprodutivo das novas mídias.
Fleith & Alencar, 2010; Omdal & Graefe, 2017; Rubens-
tein, McCoach, & Siegle, 2013; Wechsler & Souza, A escrita criativa apresenta-se como uma das melhores
2011). Essas são algumas das razões que levaram oportunidades de instigar os processos de pensa-
diversos países a introduzir políticas educacionais mento, fantasia e divergência em sala de aula. Por
voltadas para o desenvolvimento do potencial cria- isso, a imaginação das crianças deve ser valorizada,
tivo de estudantes (Cheung & Leung, 2013; Hartley estimulada, para que brotem ideias e, atrás delas,
& Plucker, 2014; Smith-Bingham, 2007). De forma uma história (Carnaz, 2013). Entretanto, a escola,
similar, no Brasil, o desenvolvimento desse potencial acostumada a trabalhar com a dicotomia certo/er-
como um dos objetivos educacionais encontra-se rado, exibe modelos a serem seguidos, deixando
incluído em diretrizes governamentais (Brasil, 2004; de oferecer ao aluno a possibilidade de construir
2007). Entretanto, o sucesso dessas diretrizes está seus próprios métodos criativos. O resultado dessa
em serem transformadas em práticas efetivas na ideologia dominante são produções textuais muitas
sala de aula vezes corretas, mas isentas de personalidade e de
criatividade, vazias de sentido e recheadas de fra-
Observa-se que, embora a criatividade seja, muitas ses feitas (Britto, 2006; Costa, 2006; Franchi, 2008).
vezes, considerada importante pelos professores e Assim, o que poderia ser uma oportunidade ímpar
que exista uma vasta literatura a respeito de caracte- para se trabalhar a criatividade, torna-se uma ativi-
rísticas de ambientes educacionais e procedimentos dade maçante, utilizada, muitas vezes, para castigar
didáticos que estimulam a expressão criativa (Alencar, alunos e turmas irrequietas ou para preencher um
2007; Alencar, Braga, & Marinho, 2016; Alencar & tempo ocioso (Costa, 2006).
Fleith, 2009; Beghetto, 2010; Cropley, 2005; Fleith,
2007; 2011; Fleith & Alencar, 2006; Kaufman, Be- Por ser um ato solitário, que exige tempo, concen-
ghetto, & Pourjalali, 2011; Martínez, 2003; Nakano tração, preocupação com o seu leitor imaginário e
& Wechsler, 2007; Treffinger, Schoonover, & Selby, por ser, em tese, mais formal do que a fala, a escri-
2013; Wechsler, 2002), tem sido constatado que o ta constitui-se em castigo para muitos estudantes.
desenvolvimento da criatividade não constitui priori- Talvez estes sejam alguns dos motivos que levam
dade nos diversos níveis de ensino, não recebendo as pessoas a escreverem tão pouco. É difícil ver os
as habilidades criativas a atenção devida. De modo alunos felizes quando são solicitados a produzir um
geral, o ensino se apresenta de maneira formal e tra- texto; pelo contrário, é frequente ser um momento
dicional, baseado no modelo de motivação extrínseca de resistência e dificuldade. O mesmo não ocorre
e de avaliação por notas. A maioria dos professores quando são chamados a contar uma história ou ler
desconhece os efeitos positivos de uma prática do- um livro. Ler e falar são mais práticos que escrever,
cente mais criativa para a motivação e participação já que não exigem tanto conhecimento de ordem
do aluno em sala de aula e carece de informações sintática, morfológica e ortográfica, que tolhem a
suficientes relativas a procedimentos incentivadores língua escrita e a impedem de ser mais espontânea
da criatividade discente (Alencar, Fleith, Boruchovitch, (Britto, 2006; Costa, 2009; Cunha & Santos, 2005).
& Borges, 2015; Oliveira & Alencar, 2012). Escrever inclui pensar. Assim como a criatividade,
Pesquisas a respeito de fatores cerceadores à pro- a escrita não é uma questão de dom, pois seria um
moção de condições adequadas ao desenvolvimen- erro imaginar que podemos buscar fora de nós, na
to da criatividade discente (Alencar & Fleith, 2008; inspiração, a explicação para a nossa aptidão ou
2010) indicaram como entraves mais apontados inaptidão para a escrita. Tampouco podemos dizer

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 211


que escrever é apenas uma questão de técnica, prática pedagógica promotora da expressão criativa
embora não se possa escrever sem alguma técnica. (Alencar & Fleith, 2008; Carvalho & Alencar, 2004;
Porém, não se começa a escrever simplesmente Mariani & Alencar, 2005; Oliveira & Alencar, 2007;
depois de adquirir determinada técnica ou inculcar Souza & Alencar, 2006.). Entretanto, uma análise
os conselhos arrolados pelos manuais de redação da literatura indica que a criatividade na produção
(Bernardo, 2010; Guedes, 2009). Assim, para aqueles de textos de alunos e elementos que facilitam ou
que acreditam que escrever é questão de inspiração dificultam o professor de língua portuguesa a utilizar
e dom, Sawyer (2012) apresenta três importantes estratégias para o fomento da mesma são temas
lições que não devem ser esquecidas nem por quem ainda muito pouco explorados, apesar da sua rele-
pretende ensinar a escrever nem por quem pretende vância. Três estudos (Azevedo, 2007; Bragotto,1994;
aprender a escrever: Silveira Neto & Andrade, 2009) incluíram intervenções
utilizando-se a criatividade na escrita ou reescrita de
Escrever é um ato trabalhoso: este requer tempo,
textos, sem analisar, porém, os fatores que facilitam
reflexão, disposição para fazer e desfazer, reescrever,
ou dificultam o professor a incentivar a criatividade
apagar, encontrar a palavra precisa, a expressão
nas produções textuais de seus alunos. Diante dessa
correta, até que o texto venha à luz, pronto para ser
realidade, e considerando o papel do professor no
lido e julgado. Não se escreve do nada. É preciso
processo de estimulação da criatividade discente,
planejar, pesquisar, organizar, refletir, ler e reler o
desenvolveu-se a pesquisa descrita neste capítulo.
escrito, até que este soe coerente e capaz de con-
Foram seus objetivos: (a) verificar a frequência e a
vencer o leitor.
forma como os professores trabalhavam a produção
Os Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Por- de textos em sala de aula; (b) averiguar como ava-
tuguesa (BRASIL, 1997) também fazem menção a liavam as produções textuais dos alunos no que diz
isso, sugerindo a discussão em sala de aula de certas respeito à criatividade; (c) identificar se a criatividade
fantasias existentes em torno dos grandes escrito- foi um tema focalizado na formação do professor no
res, como a facilidade que eles teriam de redigir. O curso de Letras; (d) investigar a percepção que os
documento alerta para o fato de que, quando pronto, professores de Língua Portuguesa tinham de sua
o texto não deixa traços do caminho percorrido para própria criatividade na tarefa de ensinar a redigir; (e)
sua produção. Entretanto, é de suma importância examinar os procedimentos pedagógicos utilizados
mostrar aos alunos que escrever não é fácil para para propiciar o desenvolvimento da criatividade na
ninguém, nem para aqueles que estão acostumados produção textual; e (f) detectar fatores que dificultavam
a essa gratificante tarefa. uma maior expressão da criatividade nas produções
textuais.
Escrever é um ato consciente e direcionado: as pa-
lavras não virão num momento divino de inspiração.
A atividade escrita exige um processo cognitivo de
elaboração, coordenação e integração. Para Sawyer
(2012), o mito romântico de que o escritor não precisa
2.MÉTODO
Participaram da pesquisa 12 professores de
suar para escrever foi, em muitos momentos histó- Língua Portuguesa do segundo ciclo do ensino fun-
ricos, alimentado pelos próprios escritores; porém, damental, sendo seis da rede pública e seis da rede
recentes pesquisas mostram que todo bom escritor particular de ensino do Distrito Federal. Quatro eram
tem um objetivo que precisa ser buscado, e um bom do gênero masculino e oito do feminino, com idades
livro pode levar anos para ser finalizado. entre 28 e 58 anos, e tempo de experiência como
Escrever é uma atividade colaborativa e socialmen- docente de 3 a 21 anos. No tocante à formação
te construída: ninguém escreve sozinho. Segundo acadêmica, todos eram graduados em Letras, tendo
Ferreira (2008), um texto não é somente composto nove deles realizado cursos de pós- graduação.
de elementos verbalmente expostos. Inclui também Para a coleta de dados, foi utilizada a entrevista
elementos contextuais sobrevindos das relações so- semiestruturada, cujo roteiro incluía duas partes. A
ciais e históricas dos sujeitos envolvidos no proces- primeira era composta por questões de identificação
so de comunicação. Daí a importância do outro na e a segunda por perguntas abertas sobre o fenômeno
constituição do sentido. investigado. Nesta última, foram incluídos aspectos
Nota-se que numerosas pesquisas foram realizadas referentes ao trabalho dos professores no que dizia
no país a respeito da extensão em que professores respeito às produções textuais discentes, como, por
de distintas disciplinas do ensino básico, como Geo- exemplo, a frequência com que estas eram solicitadas
grafia e História, e de cursos da educação superior, em sala de aula. Também foi sondada a percepção
como Letras e Pedagogia, utilizavam procedimentos que os docentes tinham da criatividade na produção
pedagógicos promotores da criatividade, identifican- textual dos alunos e na própria tarefa de ensinar a
do-se ainda fatores facilitadores e inibidores a uma redigir, se a criatividade foi tema focalizado durante a

212 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


formação dos participantes no curso de graduação, fessor “E”).
quais os procedimentos pedagógicos que utilizavam
para a promoção da criatividade nas produções es- Ao serem indagados sobre a criatividade nas pro-
critas e fatores que dificultavam sua maior expressão duções escritas dos estudantes, dois professores
nas produções textuais. alegaram ser difícil encontrar textos criativos entre
os produzidos por seus alunos. Um dos docentes,
A coleta de dados foi realizada nas escolas em que
que lecionava em escola pública, apontou a falta de
os docentes lecionavam, em dias e horários previa-
embasamento dos discentes como um fator preju-
mente agendados, tendo sido as entrevistas gravadas
dicial a uma produção textual com essa caracterís-
em áudio e posteriormente transcritas literalmente
tica; para ele, as dificuldades básicas com relação
em seu conteúdo. Utilizou-se a análise de conteúdo
à escrita impossibilitavam a criação de textos mais
seguindo-se as recomendações de Mostyn (1985),
elaborados. Para outro professor, que lecionava em
Bardin (2004) e Bauer (2008) para análise das res-
escola particular, o problema estava no conhecimento
postas obtidas. Estas foram categorizadas por meio
raso dos educandos; segundo ele, os jovens eram
de procedimentos de classificação das unidades de
bombardeados por muitas informações, mas não
significação. Foi feita, então, a contagem de suas
se aprofundavam nelas, gerando textos com pouca
frequências e calculadas as respectivas porcentagens
textualidade:
(uma descrição detalhada do método é apresentada
em Moraes & Alencar (2015).
A gente tá com alunos que são nati-
vos digitais... Eu percebo que eles têm

3.RESULTADOS
Uma análise das respostas referentes à frequ-
inúmeras ideias, mas eles têm uma di-
ficuldade absurda de desenvolver as
ideias. Então eles têm, eles pincelam,
ência de produções de texto indicou que não havia eles fazem exatamente a reprodução
uma ocasião específica para a solicitação destas pro- do mundo deles... Eu percebo essa di-
duções em sala de aula, tendo os docentes apontado ficuldade da profundidade no assunto
que realizavam um trabalho de preparação para a (Professor “I”).
escrita, com explanação sobre determinados temas
e debates a respeito de algum acontecimento ou Seis professores afirmaram que apenas algumas
fato da vida cotidiana. Além disso, os professores produções escritas podiam ser consideradas criati-
sublinharam que reconheciam a importância desse vas. Para esses, um texto era considerado inventivo
exercício para o aprimoramento da escrita, embora quando estava bem fundamentado, demonstrando
apenas cinco disseram solicitar aos alunos produ- conhecimento sobre o assunto, ou quando apre-
ções semanais. Entre os demais, um informou que sentava teor humorístico ou desafiador. Também o
exigia uma produção textual a cada bimestre, dois esforço pessoal do aluno, no sentido de produzir
requeriam de dois a três textos por bimestre, dois algo mais elaborado, de inovar e de surpreender,
solicitavam uma produção escrita ao mês e dois foi citado como indicador de uma produção criativa.
exigiam produções escritas de 15 em 15 dias. Por outro lado, o medo de ser avaliado e a falta
Constatou-se, pois, que a produção escrita não era de pré-requisito foram apontados como alguns dos
uma prática que fazia parte do dia a dia dos estu- fatores que impediam uma produção textual mais
dantes. A maioria dos docentes apontou a falta de fecunda. Seguem exemplos de respostas obtidas:
tempo, gerada pelo número elevado de alunos e
carga horária extensa, como o maior obstáculo para Quando eles conhecem a respeito do
uma prática mais efetiva nesse sentido, situação assunto, e eles têm a ciência do que
ilustrada pelas seguintes respostas: vão escrever, eles conseguem ser
criativos... Senão as redações ficam
O fator, assim, de serem muitos alunos, sem criatividade, acho que por conta
muitos textos pra gente corrigir, atrapa- também deles não conhecerem sobre
lha (Professor “A”). o assunto (Professor “H”).
Infelizmente o professor de Português... Além deles não terem o pré-requisito,
ele tem que dar aula de gramática, de eles têm assim o medo de serem jul-
redação, de produção de texto, de in- gados (Professor “D”).
terpretação de texto, então fica muito
complicado pra gente, sozinho, fazer Quatro professores consideraram que os textos ela-
tudo. Fora o tempo que a gente tem borados em sala eram criativos, sublinhando como
que ter para corrigir as redações (Pro- indicadores de criatividade o domínio do assunto e o

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 213


grau de informação apresentado nas produções dos Ao avaliarem a própria criatividade no ensino da re-
alunos. O acesso a informações através das mídias dação, dos 12 professores entrevistados, 11 se viam
foi assinalado como fator positivo para o incremento como profissionais criativos. Para a maioria destes,
da criatividade e do poder de argumentação, já o a criatividade na docência estava relacionada com
excesso de regras e correções como o que mais o próprio esforço e iniciativa, ou seja, suas aulas
prejudicava a inventividade de uma produção es- eram criativas porque se empenhavam para que isso
crita, por tolher a liberdade do aluno. A poesia foi o acontecesse, buscando novidades para os alunos, se
tipo de texto mais lembrado como aquele em que atualizando, pesquisando, reinventando formas de
a criatividade era mais percebida, por ser o gênero ensinar e utilizando todos os recursos disponíveis, a
no qual os estudantes se sentiam mais livres para fim de que suas aulas não se tornassem cansativas,
se expressar. A resposta de um desses professores como ilustrado na fala transcrita a seguir:
é transcrita a seguir:
Eu me acho criativa sim... Não quero
Elas são criativas. Acho que o grande nada pronto, eu faço, reinvento, então
problema da docência em língua por- só por aí eu já acho que sou criativa
tuguesa é, nessa fase, você começar (Professor “E”).
a corrigir tanta coisa nos textos e fa-
zer com que a criança tenha medo de Para alguns dos entrevistados, a criatividade no ensi-
escrever, porque o resultado nunca é no de redação estava relacionada às características
favorável a ela... Então, eu procuro tra- pessoais do próprio docente, como a flexibilidade e a
balhar muito com poemas... porque a adaptabilidade. Também a capacidade de improvisar
poesia gera uma certa liberdade e a foi apontada como uma qualidade:
criatividade aparece mais (Professor
“B”). Eu me considero um professor criativo
porque, modéstia à parte, eu consigo
Todos os docentes, sem exceção, afirmaram não ter trabalhar com o momento, eu consigo
tido disciplina relacionada à criatividade em seu curso improvisar com o que tem, com o mo-
de graduação, sendo esse atributo algo adquirido mento, com a situação e fazer daquilo
em outros cursos, outras áreas ou com a prática, uma aula (Professor “A”).
como ilustrado na resposta a seguir:
O gosto pela arte e as próprias habilidades artísticas
Não, eu não tive nenhuma disciplina re- do professor foram outras características pessoais,
lacionada com criatividade. Eu procurei citadas por alguns entrevistados, ao avaliar a sua
dentro da minha formação fazer disci- criatividade no ensino de redação:
plinas de outros cursos. Eu fiz discipli-
nas de artes plásticas. Isso contribuiu Eu gosto muito de arte... Junta a arte
bastante (Professor “A”). com a língua portuguesa, então eu re-
almente acho que saem coisas criativas
Apenas três professores alegaram não terem senti- (Professor “E”).
do falta de uma disciplina que tratasse do tema, ou Eu tenho muitas habilidades manuais...
por sempre terem se considerado pessoas criativas, Então eu faço eles fazerem muita ati-
ou porque a própria experiência foi lhes mostrando vidade manual além da redação... Não
caminhos. Os demais professores (n= 9) alegaram tem que ficar preso ao livro (Professor
que seria importante ter aulas de criatividade na gra- “G”).
duação, principalmente no tocante ao alinhamento
entre teoria e prática. Também foi ressaltado que Apenas um dos professores não demonstrou se-
uma disciplina desse tipo no curso de Letras pode- gurança quanto a sua própria criatividade, embora
ria auxiliar o educador a reconhecer e respeitar os tivesse ressaltado que se esforçava para utilizá-la.
alunos mais criativos: Seu principal receio era perder o controle da turma,
o que sugere que a ideia de criatividade deste pro-
Não, eu não tive. Eu senti falta, por- fessor estava relacionada ao excesso de liberdade
que você começa a trabalhar outras e à anarquia:
questões, enxergar os alunos na sua
diferenciação, respeitar o aluno que é Acho que poderia ser mais criativa. Eu
diferente, o aluno que pensa diferente acho que eu fico com medo de perder
(Professor “G”). o controle da disciplina da sala... Essa

214 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


questão de eu ser criativa, eu vou que- ve (Professor “F”).
rer que eles sejam também, e alguns Eu acho que poderia trabalhar com
vão... Vou ter medo de que alguns ex- os outros professores também. A gen-
trapolem, que saiam fora do meu con- te deveria ter em mente assim: ler e
trole (Professor “J”). escrever é compromisso de todos os
campos, de todas as matérias. É com-
Foram examinadas estratégias utilizadas pelos pro- promisso de todos. E a gente vê que
fessores para facilitar o surgimento de textos criativos esse é um compromisso que é jogado
em sala de aula, inferidas a partir das experiências pro professor de português, sendo que
relatadas pelos entrevistados. Estes apontaram al- poderia ter produções em História, po-
gumas práticas que tinham levado a bons resultados deria ter produções em Geografia (Pro-
nas produções escritas, como: aumento e diversi- fessor “K”).
ficação de leituras, utilização de recursos variados
para dinamizar as aulas, envolvimento com a arte,
Foi também indagado aos entrevistados se eles
maior liberdade para o aluno, menor apego às nor-
percebiam o uso, por parte dos demais professo-
mas e regras rígidas para a escrita, busca de maior
res, dos procedimentos considerados por eles como
aproximação com a realidade dos educandos aliando
essenciais para o desenvolvimento da criatividade
teoria à prática, maior incitamento à revisão e reescrita
nas produções textuais dos alunos, bem como de
dos textos e divisão da responsabilidade da leitura e
práticas adotadas pela escola para este fim. Cinco
da escrita com outras disciplinas, conforme alguns
docentes afirmaram que nem os professores nem
depoimentos transcritos a seguir:
a escola têm colocado em ação os procedimentos
pedagógicos necessários e os motivos mais alegados
Aumentar o número de leituras é muito para isso foram: ausência de interdisciplinaridade,
importante... Explorar aquelas tirinhas falta de atualização por parte dos professores, falta
de cotidiano, ampliar mesmo o exercí- de preparo para lidar com alunos criativos e falta de
cio da leitura, trabalhar também com estrutura física e apoio institucional. Um dos docen-
textos humorísticos (Professor “A”). tes apontou como falha da rede pública a ausência
Eu acho que tem que envolver música, de separação entre as aulas de Língua Portuguesa
poesia, pintura, tudo dentro da redação, e Redação, sobrecarregando os professores, que
como incentivo (Professor “F”). optavam por privilegiar o conteúdo dos livros por
Não fugir da realidade... Muitas vezes ser mais prático e gerar menos trabalho. Seguem
os professores vêm de padrões arcai- depoimentos obtidos:
cos e não tentam se renovar, e isso vai
distanciando cada vez mais os profes- Eu acho que não. Eu acho que a escola
sores dos alunos deles. Porque a re- deixa muito na mão dos professores.
alidade deles é outra, a gente precisa E há professores, infelizmente, dentro
ser próxima da realidade dos nossos da Secretaria de Educação, que não
alunos... O mundo é muito rápido, o procuram se reciclar, infelizmente (Pro-
mundo tá corrido, então, qual é o pro- fessor “E”).
blema de pedir uma produção escrita No geral, eu acho que as escolas não
de um aluno e a gente produzir isso incentivam a criatividade, elas esperam
num blog? (Professor “I”). que o aluno tenha uma resposta pa-
drão. E quando ele foge dessa resposta
Além dos procedimentos pedagógicos já utilizados com padrão, não tá bom. E os professores
sucesso, também foram sugeridas algumas ações, não estão preparados pra lidar com as
mais diretamente ligadas à escola, que poderiam respostas que não são padrão (Profes-
contribuir para o desenvolvimento da criatividade sor “G”).
nas produções escritas, como liberdade para que
os docentes pudessem desenvolver seu trabalho e, Os demais entrevistados (n = 7) afirmaram que tanto
novamente, a divisão da responsabilidade da leitura a escola quanto os professores realizavam um tra-
e da escrita com outras disciplinas, que não somente balho positivo no sentido de incentivar a criatividade
a Língua Portuguesa: na escrita, sinalizando os seguintes fatores como
os que mais contribuíam para o seu incremento:
Quando a escola dá liberdade, o pro- liberdade para trabalhar, proximidade com o univer-
fessor cresce... Se você trabalhar com so dos alunos aliando teoria à prática, utilização de
alegria, com liberdade, você desenvol- mídias complementares, apresentação e aplicação

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 215


de variedade textual para os alunos e inserção de (Professor “L”).
toda a escola em projetos comuns. Seguem falam
ilustrativas: Com relação aos professores, os elementos assi-
nalados como impeditivos de uma ação mais eficaz
Aqui em particular, nós colocamos em foram: falta de tempo gerada pelo elevado número
prática, sim. Os professores, eles sem- de alunos em sala, cobrança de resultados baseada
pre trabalham dessa forma... utilização em nota, exigência rigorosa de uma norma padrão
dessas mídias complementares, utiliza- e falta de sensibilidade para o reconhecimento do
ção de músicas, de filmes, da internet, aluno criativo, que acaba se anulando para atender
e isso acaba por facilitar o aluno na às exigências do professor. Isso pode ser observado
nas seguintes respostas:
questão de como produzir o texto, de
onde tirar as ideias do texto (Professor
“L”) O fator, assim, de serem muitos alunos,
Sim, a escola aqui... ela trabalha com muitos textos pra gente corrigir atrapa-
muitos projetos, que visa (sic) a ques- lha nossa própria capacidade de po-
tão dos temas transversais e esses der dar resposta, de corrigir mesmo os
projetos trabalham de uma forma mais textos... Então isso atrapalha, porque
lúdica, com algumas temáticas, e isso a gente poderia cobrar mais (Professor
desperta no aluno e incentiva a criati- “A”)
vidade dele (Professor “B”) Muitas vezes esses textos criativos eles
não são bem vistos. Tem alguns profes-
No que diz respeito aos fatores que dificultam uma sores, “ah, ele não tá escrevendo nada
maior expressão da criatividade nas produções textuais, com nada”... “fugiu muito da proposta”,
os participantes tanto se referiram aos alunos quanto ou “não era isso que eu queria”... e o
aos professores e escola. Quanto aos primeiros, os aluno acaba pensando mais no que ele
aspectos mais mencionados foram: falta de leitura, acha que vai conseguir com nota do
ocasionada pelo desvio de atenção por novas mídias que se expressando livremente (Pro-
e medo do julgamento alheio. Também a falta de fessor “G”)
pré-requisito, a ausência da prática de escrita fora
do contexto escolar, a carência de incentivo em casa, No que tange à escola, a falta de material, a estrutura
o desinteresse do aluno e a visão da escrita como inadequada e condições precárias de trabalho, bem
um ato punitivo foram apontados como elementos como a ausência de incentivo na área de produção
pessoais impeditivos de uma expressão criativa na de textos foram as falhas mais citadas, mas apenas
escrita, conforme declararam alguns entrevistados: por professores da rede pública:

Eles falam bastante, expressam muito Na escola pública, nós somos muito
oralmente, mas na hora de passar para limitados, nós não temos muito mate-
o papel, eles têm uma dificuldade enor- rial pra trabalhar, nós não temos muito
me, muitos por medo... Eles se preo- tempo pra poder tá trabalhando esse
cupam muito em ser avaliados. Então material com o aluno (Professor “C”)
eles evitam escrever... Além deles não

4.DISCUSSÃO
terem o pré-requisito, eles têm assim
o medo de serem julgados (Professor
“D”). Um dos objetivos da pesquisa aqui descrita
Eu percebo é falta de incentivo de foi investigar a frequência com que eram utilizadas
casa... É falta de desenvolvimento da produções de texto em sala de aula por parte de pro-
responsabilidade até mesmo com o fessores de língua portuguesa. Foi constatado que,
fator entregar trabalho, entregar a ati- embora os docentes reconhecessem o crédito desse
vidade (Professor “K”). exercício para o progresso na escrita, a produção
O problema da produção textual no textual era pouco praticada por ser, segundo eles,
contexto escolar é que muitos alunos uma tarefa que exigia muito de seu tempo devido ao
acreditam que a redação é um ato pu- elevado número de alunos em sala e, consequente-
nitivo. Chegou atrasado, tem que fa- mente, de textos para corrigir. Tal resultado está em
zer uma redação. A redação sempre foi sintonia com pesquisas anteriores sobre barreiras
vista como algo punitivo para o aluno à promoção da criatividade no ensino, em que o
elevado número de alunos foi um dos entraves mais

216 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


apontados (Alencar & Fleith, 2008; 2010; Alencar et necessidade de existir, não somente uma disciplina
al., 2015; Carvalho & Alencar, 2004). de criatividade, mas um sistema de ensino-aprendi-
zagem criativo, onde os futuros professores possam
Dos professores entrevistados, apenas um número
vivenciar o que posteriormente farão na prática, pois,
reduzido desenvolvia um trabalho mais ativo de produ-
apesar de admitir o valor da criatividade para uma boa
ção textual pelos alunos. Assim, ainda que houvesse
aula, muitos sentem dificuldade em incluí-la optando
duas aulas de redação por semana, uma delas era
por seguir estratégias previamente estabelecidas no
dedicada à interpretação de textos e apenas uma
livro didático quando possível.
à escrita propriamente dita. Isso vai de encontro ao
que apregoam vários autores, entre eles, Sawyer No tocante às práticas pedagógicas utilizadas para
(2012), o qual, ao focalizar a criatividade no domínio um maior afloramento da criatividade nas produções
da escrita, sinaliza que somente se pode adquirir tal textuais dos alunos, os entrevistados apontaram vários
competência por meio de muito exercício. procedimentos, entre eles a utilização de recursos
variados para dinamizar as aulas, maior liberdade
No que tange à percepção dos professores sobre a
para o aluno se expressar, aproximação com a re-
criatividade nas produções textuais, chamou-nos a
alidade dos educandos, menor apego às normas e
atenção o fato de vários docentes terem relacionado
regras rígidas, procedimentos estes típicos do pro-
criatividade à liberdade e à arte, assim como ocorre
fessor interessado no desenvolvimento do potencial
no senso comum. A associação entre criatividade e
criativo de seus alunos (Alencar, 2007; Alencar &
artes, acreditando-se que a primeira se manifesta
Fleith, 2009; Cropley, 2005; Fleith, 2007; Wechsler,
apenas em produções relacionadas à segunda, é
2002). Por outro lado, para um número expressivo
uma das ideias errôneas largamente discutidas na
de docentes não há, por parte dos professores de
literatura de criatividade (Alencar & Fleith, 2009;
modo geral e da escola, empenho em utilizar pro-
Treffinger et al., 2013).
cedimentos pedagógicos que estimulem a produção
Professores alegaram também ser a poesia o gênero criativa discente, o que já havia sido anteriormente
em que se podia perceber com mais frequência a apontado em pesquisas com amostras de professo-
capacidade criativa dos alunos, devido ao caráter de res de outras disciplinas (Carvalho & Alencar, 2004;
liberdade que acompanha o gênero e por ser este o Mariani & Alencar, 2005;) do ensino fundamental e
espaço em que os alunos poderiam falar de questões da educação superior (Amaral & Martínez, 2009;
mais subjetivas. Se considerarmos que a poesia é Oliveira & Alencar, 2007; Souza & Alencar, 2006).
cheia de regras (há que se atentar para a rima, a
No que diz respeito aos fatores que dificultavam a
métrica, a separação das estrofes, a musicalidade
expressão da criatividade nas produções de texto
etc.), as declarações não se justificam. Franchi (2008)
dos alunos, de forma similar ao observado em es-
observa que tem sido comum entre os professo-
tudos anteriores com amostras de professores da
res uma atitude negativa quanto à possibilidade de
educação superior (Alencar & Fleith, 2010; Lima &
exploração criativa da gramática. Um dos motivos,
Alencar, 2014; Oliveira & Alencar, 2007), elementos
segundo o autor, é que enquanto a criatividade é
relacionados ao aluno (como a falta de leitura e de
produto de uma conduta original, assistemática e
pré-requisito e carência de incentivo em casa), ao
dinâmica, a gramática, de forma contrária, representa
professor (como falta de tempo devido ao elevado
“assujeitamento” dessa liberdade a determinados
número de alunos em sala) e à escola (como estru-
padrões teóricos e formais. Desse modo, de acordo
tura inadequada e condições precárias de trabalho)
com o autor, é comum muitos professores ainda
foram apontados. Entretanto, em contraste com as
acreditarem que a criatividade só pode vir à tona
pesquisas anteriormente citadas, em que o maior
quando o aluno se expressa livremente, o que faz
número de entraves à expressão da criatividade dizia
com que pensem que apenas a poesia, a arte, a
respeito ao aluno, no presente estudo os elementos
música, a expressão corporal, o desenho livre sejam
restritores se distribuíram igualmente entre alunos,
apropriados à expressão criativa.
professores e escola.
De forma consistente com pesquisas prévias (e.g.,
Embora a amostra desta pesquisa tenha sido pequena
Oliveira & Alencar, 2007), evidenciou-se a concor-
e os seus resultados não possam ser generalizados,
dância dos entrevistados a respeito da importância
ela trouxe contribuições para ampliar o conhecimento
de uma disciplina relacionada à criatividade na licen-
a respeito da criatividade no ensino, em especial,
ciatura, tendo vários deles ressaltado que a gradua-
na produção de textos, tópico este pouco explorado
ção deixava muito a desejar no que dizia respeito à
pela literatura disponível. Os dados obtidos apontam
prática, o que significa uma lacuna em sua formação.
que os participantes relacionaram várias estratégias
Essa constatação reforça o que apregoam alguns
pedagógicas utilizadas por eles para favorecer a
autores (Beghetto, 2010; Martínez, 2003; Oliveira &
expressão da criatividade discente na sua produção
Alencar, 2007; Souza & Alencar, 2006) a respeito da
textual. Entretanto, sublinharam também a necessi-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 217


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São Paulo: Loyola.

• Este texto constitui uma versão reformulada


de artigo originalmente publicado na revista
Estudos de Psicologia, 2015, 32(4), 743-753,
que permitiu sua reprodução.

220 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
28

PERFIL PSICOLÓGICO DE USUÁRIOS DE CRACK

RESUMO
A dependência química é um assunto multifacetado e estudado por
Bruna Monique de
Souza diferentes profissionais da saúde, uma vez que o aumento de usuários
UNOESC da substância do crack cresce a cada ano e vem desenvolvendo
uma população consequentemente doentia, acercada de perdas
Scheila Beatriz Sehnem em diferentes âmbitos da vida pessoal, profissional e social. Este
trabalho de investigação teve como objetivo identificar as principais
características da personalidade dos sujeitos usuários de crack,
bem como avaliar as funções mentais superiores. Participaram da
pesquisa sete sujeitos usuários de crack que frequentavam um centro
de atenção psicossocial do meio oeste de Santa Catarina. Para a
coleta dos dados, utilizou-se dos instrumentos psicológicos BFP,
de Nunes, Hutz e Nunes (2010), cujo objetivo é analisar o perfil da
personalidade e o teste Neupsilin, de Fonseca, Salles e Parente
(2009), que analisa as funções mentais superiores. A coleta ocorreu
de forma individual em data pré-agendada com os usuários. Como
se trata de um teste psicométrico e eles têm o poder de escolher a
resposta que julgam encaixar com sua realidade, a sociabilidade é
o item que mais apresentou declínio, indiciando dificuldade em se
ressocializar no meio em que estão inseridos. Dessa forma, conclui-se
que os sujeitos também se assemelham por não possuírem tomada
de decisão, terem compulsão pela droga e falta de iniciativa diante das
coordenadas da vida. Com o auxílio dos instrumentos psicológicos
utilizados denota-se a dificuldade em realizar problemas situacionais,
colocar-se verbalmente sobre determinadas situações e a falta de
iniciativa frente à tomada de decisão sobre aspectos pessoais

Palavras-chave: Dependência Química; Crack; Usuário de

Crack.
10.37885/200400016
1. INTRODUÇÃO Conforme apontam alguns dados do Relatório Bra-
sileiro Sobre Drogas, desenvolvido pelo Secretaria
A utilização de substâncias ilícitas é um assunto Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD, 2009),
interdisciplinar e perdura na vida do ser humano há em nível de Brasil, em uma pesquisa realizada entre
séculos. Antigamente, as drogas eram utilizadas de o ano de 2001 e 2005, as drogas com maior uso na
diferentes formas, estando presentes em distintas vida, em 2001, foram: maconha (6,9%), solven-
culturas, rituais religiosos e fins medicinais. Nos dias tes (5,8%), orexígenos (4,3%), benzodiazepínicos
atuais, seu uso tornou-se frequente e acelerado, (3,3%) e cocaína (2,3%); em 2005: maconha (8,8%),
com facilidade em conseguir a substância, que se solventes (6,1%), benzodiazepínicos
tornou corriqueira, aumentando progressivamente a (5,6%), orexígenos (4,1%) e estimulantes (3,2%).
compulsão por drogas, como consequência, o ex- De 2001 para 2005, houve aumento nas estima-
cesso em busca pelo prazer tende a desencadear tivas de uso na vida de álcool, tabaco, maconha,
e desenvolver a dependência química. solventes, benzodiazepínicos, cocaína, estimulan-
O uso das drogas é tão antigo quanto o ser humano, tes, barbitúricos, esteroides, alucinógenos e crack e
porém, conforme a humanidade foi se transformando, diminuição nas de orexígenos, xaropes, opiáceos e
sua utilização e a simbologia da utilização também anticolinérgicos. Ainda na mesma pesquisa, referente
sofreram alterações. Antigamente, as drogas eram à região Sul, no mesmo período de 2001 a 2005, o
utilizadas em rituais religiosos, em comemorações, Relatório Brasileiro Sobre Drogas (SENAD, 2009)
como medicações nos vários tipos de doenças e, apresentou aumento nas estimativas de uso de álcool,
frequentemente, sacerdotes, feiticeiros e adivinhos tabaco, maconha, solventes, estimulantes, esteroi-
orientavam o uso da droga na cura dos males da des, opiáceos, alucinógenos e crack e diminuição
vida causados pelas forças sobrenaturais (CORRÊA, nas de benzodiazepínicos, cocaína, barbitúricos e
2014). anticolinérgicos.

Com as transformações tecnológicas e científicas Diante dos dados apresentados pelo Lenad (2012),
do ser humano, que culminaram no início do ca- aproximadamente, 6 milhões de brasileiros, ou seja,
pitalismo, revolução industrial e científica, a busca 4% da população, já experimentaram a cocaína, tan-
excessiva por prazeres, distração, diversão, ociosi- to intranasal quanto fumada, aproximadamente, 2
dade, em um mundo que passa a impor, de um lado, milhões de brasileiros já fizeram o uso de cocaína
as guerras cotidianas de sobrevivência das classes fumada (crack), no mínimo, uma vez na vida, sendo
desfavorecidas e, de outro, a monotonia do confor- 1,4% de adultos e 1% de jovens. Um em cada cem
to proporcionado pelas boas condições financeiras adultos usou crack no último ano, o que representa
dos indivíduos, trazem um novo sentido ao uso de 1 milhão de pessoas, o que demonstra ser uma das
drogas. Nesse contexto, ela deixa de lado seu uso drogas mais utilizadas entre os brasileiros.
em rituais e começa a ser utilizada como fonte de O crack se faz presente entre a população desde
prazer. Prazer este proporcionado pela alteração meados de 1980, tornando-se mais comum conforme
da consciência. A droga, assim, torna-se um gran- o tempo transcorre. A droga surgiu nos Estados Uni-
de produto (lícito ou ilícito) do capitalismo, sendo dos, na década de 1980, em diferentes cidades e em
transferida de um uso religioso e coletivo para um distintos momentos, tornando-se comum entre alguns
uso individual com prazer imediato. E a ciência, por grupos de usuários. É caracterizada por ser de fácil
sua vez, aprimora, transforma e potencializa seus acesso e causar maiores adrenalinas, apresentando
usos e efeitos (GERALDO, 2018). preço reduzido em comparação com outras drogas,
Surgem, desse modo, várias substâncias em todos o que a tornou altamente consumível. O processo do
os âmbitos da saúde pública, sendo possível cons- uso do crack no Brasil teve mudanças graves com o
tatar algumas das drogas no CID-10. Conforme a passar dos anos, tornando-se um problema grave,
classificação mundial de Doenças Mentais, no que diz o qual necessita de soluções urgentes e eficazes
respeito a “Transtornos mentais e de comportamento (RIBEIRO; LARANJEIRA, 2012). O processo do uso
decorrentes do uso de substâncias psicoativas”, como do crack no Brasil teve mudanças drásticas com o
álcool, opioides (morfina, heroína, codeína, diversas passar dos anos, tornando-se um grave problema
substâncias sintéticas); canabinoides (maconha); se- que necessita de soluções eficazes. O acréscimo
dativos ou hipnóticos (barbitúricos, benzodiazepíni- do uso do crack no Brasil é notável e de grandes
cos); cocaína; outros estimulantes (anfetaminas e proporções em todas as regiões do país, acarretando
substâncias relacionadas à cafeína); alucinógenos; relevantes problemas sociais. Percebe-se, ainda, que
tabaco; solventes voláteis, a dependência química o aumento do uso do crack atinge várias camadas
torna-se uma questão de saúde pública (ORGANI- sociais, idades, gêneros e regiões do país, trazendo
ZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 1993). dificuldades cada vez maiores em cessar seu uso,
o que dificulta a saúde física e mental.

222 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Algumas pesquisas realizadas pelos autores Conceição
2.1 DEPENDÊNCIA QUÍMICA
et al. (2016) e Zanotto e Assis (2017), recentemente A dependência química está presente em todos os
com usuários de crack, demonstram preocupação no locais do mundo, fazendo parte da saúde pública e
aumento precoce de usuários. Segundo Conceição privada, conforme esclarecem Pratta e Santos (2009,
et al. (2016) relatam, alguns sujeitos passaram a usar p. 203). Na atualidade, tal dependência corresponde
o crack no começo da idade adulta e outros dados a um fenômeno amplamente divulgado e discutido,
apresentam a influência de amigos no processo de uma vez que o uso abusivo de substâncias psicoati-
escolha, a busca pelo prazer também é um quesi- vas tornou-se um grave problema social e de saúde
to em destaque. De um lado, cada vez mais há a pública em nossa realidade. A humanidade vive em
preconização do desejo de experimentar a droga, constante modificação, na qual o homem busca prazer
do outro, a imagem que a sociedade tem do usu- em todas as atividades que desempenha, tentando
ário de crack é negativa. Por fim, entre os meios modificar o humor, as percepções e as sensações
de comunicação e mídias ocorre uma oscilação de por meio das substâncias psicoativas, tornando-se
informação, conforme aborda a pesquisa de Zanotto dependente químico com o uso frequente da droga
e Assis (2017): “[...] O discurso veiculado nos meios (MICHEL, 2001). Segundo Michel (2001, p. 74), a
de comunicação constrói no senso comum um perfil procura de bem-estar e prazer é natural, fazendo
negativo sobre os usuários de crack, permeado por parte da vida de todos, o erro, todavia, consiste em
preconceito e estigma.” (ZANOTTO; ASSIS, 2017, querer buscá-los usando drogas. A dependência
p. 771). química é caracterizada pela necessidade de usar
Com base em Bastos e Bertoni (2013), que realiza- substâncias constantemente sem interromper o uso
ram uma pesquisa nacional sobre o uso de crack de entorpecentes, o qual irá desenvolver diferentes
e outras drogas, com usuários de crack, é notável comportamentos.
o aumento do uso da droga, com crescimento de De maneira geral, as reações no organismo dos
uso em todas as capitais do Brasil, destacando-se usuários são múltiplas, ao optar por fazer o uso fre-
algumas regiões do país em comparação com outras, quente de drogas, perde-se a falta de controle e o
com maiores concentrações no sul e nordeste. A limite para cessar o consumo, transformando sua
maior concentração de usuário é do sexo mascu- dependência em síndrome, que é caracterizada por
lino, elencando um escore de 75% em relação ao ser um alto grau de dependência.
sexo feminino, a idade está atrelada a adultos jovens
com, aproximadamente, trinta anos de idade. A etnia Segundo a Classificação Mundial de Doenças Mentais
apresenta dados significativos relacionados à cor de (CID-10) (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE,
pele, demonstrando um índice de 80% de pessoas 1993, p. 74), a síndrome de dependência se carac-
não brancas. Referente à escolaridade, em nível teriza por:
de Brasil, a pesquisa apresenta dados de que 55%
dos usuários têm o ensino fundamental e o restante Um conjunto de fenômenos fisiológicos,
são os que se alfabetizaram, os não alfabetizados, comportamentais e cognitivo, no qual o
os que concluíram o ensino médio e, ainda, apare- uso de uma substância ou uma classe
ce o índice de 4% que cursaram o ensino superior de substâncias alcança uma priorida-
(BASTOS; BERTONI, 2013). de muito maior para um determinado
Sabe-se que o uso abusivo de qualquer droga, atu- indivíduo que os outros comportamen-
almente, é considerado pela Organização Mundial tos que antes tinham mais valor. Uma
de Saúde (OMS) como uma doença, o que pode característica descritiva central da
causar alterações no funcionamento cerebral por síndrome de dependência é o desejo,
meio de manifestações de sinais e sintomas espe- frequentemente forte, algumas vezes
cíficos, que consistem na presença de um agrupa- irresistível [...].
mento de sintomas cognitivos, comportamentais e
fisiológicos. Neste ínterim, surge a necessidade de Os dependentes químicos encontram-se, na maioria
realizar o presente trabalho de investigação, com o das vezes, desestabilizados, sem o entendimento
objetivo de identificar as principais características de de que necessitam ajuda profissional, chegando ao
personalidade de usuários de crack, identificando os ponto de não controlar o desejo e a fissura pela droga,
danos cognitivos causados pela ingestão prolongada desestabilizando, assim, sua vida pessoal, social e
da droga. seu meio familiar. Os usuários encontram tratamento
especializado nos Centros de Atenção Psicossocial

2.REVISÃO DE LITERATURA
(CAPS), onde existe tratamento especializado para
usuários de drogas, com uma equipe multidisciplinar,
com Enfermeiro, Assistente Social, terapeuta ocupa-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 223


cional, Psicólogo e um Médico Psiquiatra. “A reforma dente das drogas e logo se intoxica de forma grave,
psiquiátrica defendeu a substituição dos manicômios em decorrência da alta dosagem de substâncias.
por centros de acolhimento e tratamento resultando
Segundo o DSM-V (ASSOCIATION AMERIC PSY-
nos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), os
CHIATRIC, 2014, p. 563):
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), leitos psiqui-
átricos em hospital geral, etc.” (BORBA; SCHWARTZ;
KANTORSKI, 2008). Com a ajuda especializada na Indivíduos com intoxicação aguda po-
abordagem da dependência química, é possível re- dem apresentar fuga de ideias, cefa-
alizar um diagnóstico com precisão e eficaz, para, leia, ideias de referências transitórias
dessa maneira, tratar adequadamente a patologia. e zumbido. Pode haver ideação para-
noide, alucinação auditiva com sensório
De acordo com a Classificação Mundial de Doenças
claro e alucinações táteis, as quais os
Mentais (CID-10) (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA
indivíduos normalmente reconhecem
SAÚDE, 1993, p. 74-75), para se obter um diagnóstico
como os efeitos da droga.
definitivo de dependência, o usuário deve apresen-
tar no mínimo três requisitos em algum momento
durante o ano anterior: Diante da complexidade que a dependência quími-
ca exerce na vida cotidiana do usuário é oportuno
perceber que o abuso de drogas é um desgaste à
a) Um forte desejo ou senso de compul-
preservação da saúde psíquica, cognitiva e social,
são para consumir a substância;
transformando-se em um grave problema de saúde
b) Dificuldades em controlar o compor- pública e privada, o qual necessita de apoio para
tamento de consumir a substância em realizar tratamento amplo e com qualidade para
termos de seu início, término ou níveis esses sujeitos.
de consumo;
c) Um estado de abstinência fisiológi-
co quando o uso da substância cessou 2.1.1 CRACK
ou foi reduzido, como evidenciado por:
A substância decorre da cocaína, a qual é fumada
síndrome de abstinência [...].
em vez de ser inalada, são realizados alguns proce-
dimentos, nos quais a cocaína é transformada com
Denota-se que para diagnosticar com exatidão um soda cáustica ou bicarbonato de sódio, para então
dependente químico é necessário ter precisão a ser fumada. Ao ser introduzido, o crack produz mo-
respeito das características apresentadas por ele, dificações internas na corrente sanguínea e passa
conforme o DSM-V (2014, p. 563), características pelo pulmão de forma acelerada. Ao fazer o uso o
associadas que apoiam o diagnóstico: sujeito sente uma sensação de alta confiança, poder
e excitação, porém, com o uso prolongado o efeito
Quanto injetados ou fumados, os es- é reverso, desenvolvendo a depressão, paranoia e
timulantes geralmente produzem uma irritabilidade (MICHEL, 2001).
sensação imediata de bem-estar,
autoconfiança e euforia. Alterações A droga é caracterizada por ser de fácil acesso e causar
comportamentais drásticas podem se grandes adrenalinas, apresentando preço reduzido em
comparação com outras drogas, o que tornou amplo
desenvolver rapidamente com o trans-
seu consumo (RIBEIRO; LARANJEIRA, 2012). Este
torno por uso de estimulantes. Com-
vem acarretado de vários fatores pertinentes, como
portamento caótico, isolamento social,
a negociação, o preço reduzido e sua acessibilidade.
comportamento agressivo e disfunção O consumo da droga é caracterizado por ser barato,
sexual podem resultar do transtorno por ocasionando maior facilidade com crescimento no
uso de estimulantes de longo prazo. número de dependentes da substância. Segundo
Ribeiro e Laranjeira (2012, p. 34), “O consumo da
O aumento da dosagem de drogas é sinônimo de substância atingiu uma faixa de usuários atraídos
compulsão e desejo, pois o usuário não consegue pelo preço reduzido em relação à cocaína, outros
evitar o uso, tornando-se frequente a vontade de usar em busca de efeitos mais intensos”.
dosagens maiores. Conforme o DSM-V (ASSOCIA-
TION AMERIC PSYCHIATRIC, 2014, p. 565), “as É considerada uma das drogas mais fortes existen-
compulsões são interrompidas apenas quando acaba tes no mundo, ao experimentar pela primeira vez o
o estoque de estimulantes ou quando o indivíduo fica usuário se torna dependente logo de início, causando
exausto. O uso diário crônico pode envolver doses várias delimitações e prejuízos em sua estrutura,
altas ou baixas, frequentemente com aumento da aumentando gradativamente a quantidade do uso
dose ao longo do tempo.” O sujeito se torna depen- da pedra, com a necessidade de usar doses cada

224 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


vez maiores sem perceber seu uso constante. Se- população geral de usuários do CAPS. Dos 14 indi-
gundo Júnior e Schneider (2012), cada vez mais os víduos foi possível realizar a pesquisa com apenas 7
serviços de saúde recebem pessoas que necessitam sujeitos, ou seja, 50% da amostra geral. Justifica-se
de algum auxílio por conta do uso de crack. a ausência dos demais: não houve contato telefônico
com dois sujeitos, 3 sujeitos não aguardaram serem
Independentemente se inalada ou fumada ambas
chamados para entrevista e dois não se sentiram
as formas de usar o crack são prejudiciais à vida e
confortáveis em participar do processo. Todos os
à saúde, acumulando inúmeras sequelas pessoais
sujeitos frequentavam regularmente o CAPS Vida
e sociais. Conforme destaca Silva (2000, p. 11 apud
Ativa, de Herval d’ Oeste, no período de março a
JÚNIOR; SCHNEIDER, 2012, p. 62), a dependência
abril do ano de 2018. Os critérios de desígnio para
química que esta substância causa é responsável
definir a amostra foram: (a) Ter idade entre 18 e 65
por diversos problemas sociais, como o tráfico de
anos, em razão de pré-requisitos dos instrumentos
drogas, assaltos, prostituição, superlotação das ca-
utilizados; (b) Ter escolaridade do ensino fundamen-
deias e dos hospitais. O usuário de crack demonstra
tal completo, conforme estabelecem as regras dos
dificuldade em cessar o uso da substância, tornando
instrumentos; (c) Ambos os sexos; (d) Ser usuário de
o tratamento mais dificultoso, haja vista que o sujeito
crack; (e) Estar em abstinência no mínimo de uma
encontra maior dificuldade em passar pelo período
semana. Após a verificação da permanência desses
da abstinência.
usuários foi realizado o contato telefônico agendando
É um período difícil o processo de abstinência, que a entrevista e as aplicações dos instrumentos, que
resulta em alterações de ânimos, complicações diá- aconteceram nas dependências do CAPS.
rias, desestabilização emocional, com complicações
Os instrumentos utilizados foram uma entrevista se-
e reações físicas de maneira a complicar a rotina do
miestruturada composta por 16 perguntas, variando
sujeito. Conforme CID-10 (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL
entre múltipla escolha e descritiva, e dois testes psi-
DA SAÚDE, 1993, p. 77), “Os sintomas físicos variam
cológicos, o BFP (Bateria Fatorial de Personalidade),
de acordo com a substância que vinha sendo usada.
de Nunes, Hutz e Nunes (2010), para traçar o perfil
Perturbações psicológicas, ansiedade, depressão e
da personalidade dos usuários a partir dos cinco
transtornos de sono são também aspectos comuns
grandes fatores de Personalidade, e o teste Neupsilin,
de abstinência.” O usuário de crack demanda maior
de Fonseca, Salles e Parente (2009), no intuito de
cuidado e atenção, os sintomas físicos e psicológi-
analisar as funções mentais superiores dos sujeitos.
cos são gerenciados de diferentes maneiras, sendo
possível observar as desiguais reações em cada Todos os participantes assinaram o Termo de Con-
situação em específico. sentimento Livre e Esclarecido, disponibilizando-se
a participar do presente trabalho de investigação, o

3.MÉTODO
qual ocorreu nos dias 16 de abril de 2018 e 21 de
maio de 2018. Os encontros tiveram uma duração
de aproximadamente 1 hora e 30 minutos. Os dados
O modelo de pesquisa utilizado foi o exploratório foram organizados e tabulados a partir da teoria dis-
que, segundo Gil (2007), tem por objetivo fornecer ponível e dos objetivos propostos nesta pesquisa.
maior intimidade com o problema e torná-lo mais

4.ANÁLISE DOS DADOS


claro, auxiliando com maior exatidão para formular
hipóteses.
Foi realizado no Centro de Atenção Psicossocial um Este trabalho pauta-se na relevância de inves-
breve levantamento a respeito dos usuários ativos e tigar o perfil psicológico de sujeitos dependentes de
com frequência nas atividades propostas pela institui- crack que frequentam um Centro de Atenção Psi-
ção, diagnosticados com dependência química em cossocial do Meio-Oeste catarinense. Corroboram
crack, segundo o CID-10, o qual se estabelece ao e respondem os objetivos específicos da pesquisa
F19. Segundo a Classificação Mundial de Doenças os instrumentos; uma entrevista para analisar o per-
Mentais (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, fil sociodemográfico; e dois testes psicológicos, o
1993, p. 69), o F19 caracteriza-se por transtornos BFP, de Nunes, Hutz e Nunes (2010), que tem por
mentais e de comportamento decorrentes do uso objetivo analisar o perfil da personalidade, e o teste
de múltiplas drogas e do uso de outras substâncias Neupsilin, de Fonseca, Salles e Parente (2009), que
psicoativas. O levantamento das fontes de informa- analisa as funções mentais superiores. A partir dos
ções e classificação de quantos usuários estavam resultados coletados, os dados foram organizados
ativos foi realizado e disponibilizado pelo Centro de e apresentados nos tópicos a seguir.
Atenção Psicossocial.
A amostra da pesquisa foi de 14 usuários dependen- 4.1 PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO
tes químicos de crack, que corresponde a 100% da

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 225


Com o objetivo de apresentar os sujeitos que compu- balhei em uma grande empresa, tive um bom cargo
seram este trabalho de investigação, foi organizada agora trabalho por dia como pedreiro”, a S4 relata
a Tabela 1, na qual as variáveis que se referem ao que “Eu trabalhava como agente de saúde, mas
perfil sociodemográfico do sujeito foram organiza- estou sem emprego e isso prejudicou meu vício,
das de forma didática para melhor compreensão, sou do lar.” Os dados da pesquisa de Souza et al.
explanando o primeiro objetivo específico. (2016) confirmam que existe uma grande dificuldade
em reinserir o dependente químico ao mercado de
Participaram da pesquisa 7 sujeitos dependentes de
trabalho, os resultados do estudo mostram pouca
crack, que frequentavam com assiduidade o CAPS
adesão empregatícia em razão da falta de plane-
de um município do Meio-Oeste de Santa Catarina,
jamento e estabilidade estruturada.
os quais tinham acompanhamentos semanais em
grupos específicos para dependentes químicos. A espiritualidade vem ganhando cada vez mais
espaço no tratamento da dependência química, a
Tabela 1 – Descrição dos participantes da pesquisa mostra geral apresentou 5 sujeitos pertencentes à
religião evangélica e 2 pertencentes ao catolicismo,
o que se nota maior adesão religiosa. A S 4 comenta
que “eu era católica, mas foi na igreja evangélica
que eu consegui um pouco de forças para encarar
a vida.” Conforme esclarece a pesquisa de Abdala
et al. (2010), a religiosidade funciona como fator
preventivo secundário ou terciário, ajudando-os no
abandono do consumo ou até na redução drástica,
expondo-os a um menor prejuízo.
No que diz respeito à escolaridade dos 7 avaliados,
apenas 2 concluíram o ensino médio, os demais
participantes frequentaram até o ensino fundamental.
Fonte: Os autores
Segundo eles, não foi possível prosseguir com os
estudos, pois o uso das drogas estava em grandes
Em relação aos resultados apresentados na Tabela proporções e delimitava a sociabilidade dos sujeitos
1, pode-se compreender que a idade dos sujeitos na escola. Essa semelhança nas variáveis também
encontra-se na média de 35 anos, é um grupo adulto foi encontrada na pesquisa Ribeiro et al. (2011) e
jovem, predominantemente do sexo masculino, sendo observa-se que a grande maioria apresenta baixa
5 homens e 2 mulheres na amostra geral. Ao serem escolaridade, tendo apenas o ensino fundamental
questionados a respeito da idade que iniciaram o incompleto.
uso do crack, as respostas variaram, porém, em sua
maioria, experimentaram a droga ainda na adoles- O período de abstinência do crack entre os sujeitos
cência. Este dado vem ao encontro da literatura de variou de sete a quarenta e cinco dias, 2 respon-
Capistrano (2013), a qual explora que a busca por deram que fazia apenas uma semana que estavam
tratamento e reabilitação caracteriza-se em adultos sem usar drogas, 2 estavam limpos há 15 dias, 3
jovens, com idade média de 35,2 anos. estavam em abstinência de trinta dias ou mais, o
que se nota a dificuldade em manter-se limpo por um
Dos sete sujeitos participantes da pesquisa apenas longo período e a dificuldade em mudar os hábitos.
1 indivíduo possuía o estado civil casado, os demais O estudo de Rigotto e Gomes (2002) fomenta que o
participantes eram solteiros. No que diz respeito à grande desafio da recuperação é substituir a rotina
quantidade de filhos foi variável, sendo que 5 dos 7 centrada na droga por novos hábitos, evitando o
sujeitos têm filhos, no entanto, o contato é distan- retorno aos comportamentos destrutivos anteriores.
te, sem maiores vínculos, demonstrando ausência
afetiva e desestrutura familiar. Segundo a pesquisa O início do uso do crack vem acomunado de dife-
de Nimtz et al. (2014), as consequências do consu- rentes contextos apresentados pelos participantes,
mo de drogas repercutem em perda de confiança e 4 enfatizaram que o uso iniciou, pois tinham curio-
quebra de vínculos familiares, sendo a separação sidade sobre os efeitos transmitidos pela droga, os
conjugal a mais atingida. demais passaram a usar o crack por influências sociais
e perdas significativas externas. A S2 acrescenta
A forma de arrecadar dinheiro com emprego fixo é que “Comecei usar por curiosidade, uma amiga me
um problema para os usuários, dos cinco sujeitos ofereceu, depois gostei e usei cada vez mais.” O
apenas dois trabalham por mês, dois trabalham por achado literário de Sanchez (2004) esclarece que
dia de obra executada, e três estão desempregados a busca pelo uso de drogas varia do histórico de
sem renda mensal, o que dificulta a manutenção do vida do sujeito, visto que há os fatores de riscos e
lar. O S7 corrobora com essa informação: “Já tra-

226 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


a vulnerabilidade que podem ser encontrados em predeterminar as consequências futuras.
casa, na escola, sociedade, etc.
A falta de iniciativa é comum entre o meio da depen-
dência química. Os resultados demonstram a falta de
4.2 CARACTERÍSTICAS DE PERSO-
enfrentamento dos problemas e a falta de percepção NALIDADE EM DEPENDENTES DE
de si. Percebe-se que um dos sujeitos entrevistados CRACK
buscou ajuda quando enfartou, conforme pode ser
Estudar um sujeito requer observar sua história no
observado na fala de S2: “Quando vi que estava
uso de drogas, envolvendo a investigação de suas
magra e fraca”; 3 buscaram auxílio depois de um
emoções, comportamentos, atitudes e a diferença
período de uso; 1 percebeu que precisava de ajuda
que cerca sua individualidade. Esse quesito vem
quando deixou de honrar seus compromissos e 1
explanado na Tabela 2, buscando responder o pró-
nunca percebeu que necessitava de ajuda, a família
ximo objetivo específico. Segundo Pasquali (2003
teve que intervir. O achado literário de Ferreira et
apud FIGUEIRÓ et al., 2010), a personalidade com-
al. (2015) aponta que alguns dependentes químicos
preende aspectos relacionados à emoção, sociabi-
não se empenham em cessar o consumo de dro-
lidade, reatividade, energia e interação com o meio
gas, iniciam o tratamento apenas em decorrência da
ambiente. A personalidade pode ser entendida de
pressão familiar e do esforço para conseguir vaga
diferentes âmbitos, já os comportamentos devem ser
para a internação, contudo, não o conclui.
percebidos, as teorias comportamentais entendem a
Quanto ao perfil sociodemográfico dos sujeitos, ob- dependência química como um comportamento es-
serva-se que, de modo geral, a dependência química truturado a partir da presença de estímulos, positivos
afetou todos os relacionamentos e áreas sociais da ou negativos (DIEHL; CORDEIRO; LARANJEIRA,
vida do sujeito, de modo a perder o contato direto 2011). Nesse sentido, foi utilizada a Bateria Fatorial
com a própria família. A desestrutura familiar vem de Personalidade (BFP), que se trata de “um instru-
acompanhada por perdas significativas e por meio mento psicológico construído para a avaliação da
da pesquisa foi possível perceber que os setes su- personalidade a partir do modelo dos cincos grandes
jeitos responderam que, no decorrer do uso rotineiro fatores (CGF), que inclui as dimensões: Extroversão,
do crack, perderam dinheiro, prejudicaram a saúde, Socialização, Realização, Neuroticismo e Abertura
mas o índice de maior representação de perdas nas a experiências.” (NUNES; HUTZ; NUNES, 2010, p.
esferas da vida foi a familiar, como relata o S3: “Eu 13). Os determinantes apresentados são oriundos do
perdi minha família, meu emprego, as pessoas boas resultado obtido a partir da pesquisa realizada com 7
que tinha por perto, tudo foi prejudicado, tudo foi sujeitos usuários de crack do Meio-Oeste catarinen-
perdido, tudo foi deixado de lado.” O S5 coloca que se, participantes do Centro de Atenção Psicossocial
“Quando eu percebi já tinha perdido minha família e (CAPS). A demonstração dos resultados foi dividida
não tinha mais saúde, emagreci bastante ao ponto em quesitos avaliadores: abaixo da média, mediano
de perder minhas forças.” Ainda sobre as perdas e acima da média.
ocasionadas pelo uso do crack, o S7 acrescenta:
“Eu era encarregado de uma empresa, mas eu já Tabela 2 – Escores e classificação obtidos nos fatores
estava tão viciado na pedra que não me importava do BFP
mais com nada, depois de um tempo perdi tudo, a
esposa, amigos e o emprego.” A pesquisa de Reis
e Moreira (2013) apresenta a sobrecarga que as
famílias têm com o convívio com um membro familiar
dependente do crack, por vezes, impregnada pelo
sofrimento da família como um todo. Fonte: os autores

Nota-se que a compulsão é motivada pela procura de O fator Neuroticismo, segundo Nunes, Hutz e Nunes
prazer instantâneo e os sete sujeitos acrescentaram (2010, p. 21),
já terem feito uso do crack em maiores dosagens
do que pretendiam. Dentre os sujeitos, o S1 e o S2 [...] é relacionado às características
relataram estar sob o efeito das substâncias maconha emocionais das pessoas, quando
e álcool no dia da entrevista, os demais relataram
apresentado em alto nível identifica-se
estar limpos, mas não por muito tempo, visto que a
indivíduos propensos a vivenciar mais
vontade e a compulsão por usar são maiores. Con-
intensamente sofrimento emocional, in-
forme apontam Evren e Durkaya (apud RIBEIRO;
LARANJEIRA, 2012, p. 391), a impulsividade envolve cluindo ideias dissociadas da realida-
vários comportamentos, em geral expressos de forma de, ansiedade excessiva, dificuldade
prematura e compulsiva de forma instantânea, sem de tolerar frustação, impulsividade e

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 227


vulnerabilidade. (2015), descreve-se que o uso poderá acarretar de-
ficiências em determinados comportamentos sociais,
Foram obtidos expressivos resultados, totalizando 6 tanto pela ação das substâncias no organismo quanto
sujeitos com escore acima da média, sendo somente pelo isolamento a que esse indivíduo se submete
1 sujeito abaixo da média. Nesse sentido, altos índices durante os períodos críticos de abuso das drogas.
de neuroticismo são percebidos em dependentes
No item realização “que descreve características
químicos em decorrência da vivência frequente de
como grau de organização, persistência, controle e
afetos negativos e quanto maior o índice, maior a
motivação” (NUNES; HUTZ; NUNES, 2010, p. 21),
chance de recaídas e dificuldades em abandonar o
os resultados descrevem 6 sujeitos acima da média
vício (MACIEL; YOSHIDA, 2006).
e 1 sujeito mediano, verificando assim um alto nível
O fator extroversão de organização, controle sobre si e sobre seus atos,
o que vem ao desencontro sobre a situação que os
[...] representa as formas como as pes- mesmos se encontram, onde crescem os prejuízos
soas interagem com os demais e in- acarretados com o uso contínuo de substâncias, pre-
dica o quanto elas são comunicativas, judicando o controle sobre as situações e dificultando
falantes, ativas, assertivas, responsi- a tomada de decisão. Nota-se ambiguidade diante do
resultado apresentado, visto que a pontuação dos 7
vas e gregárias. Sujeitos com escores
sujeitos apresentou-se alta, demonstrando possuírem
altos em extroversão indicam ser uma
personalidade persistente, controle sobre si, seus
pessoa sociável, ativa, falante, otimis-
atos e motivação. Por ser um teste psicométrico,
ta, isso vale para quando mediano, já o avaliando tem a opção de assinalar o que julga
quando baixo tendem de serem sujeitos encaixar com sua personalidade. Silva (2008) es-
reservados, sóbrios. (NUNES; HUTZ; clarece que os testes psicométricos usam a técnica
NUNES, 2010, p. 19). da escolha forçada, escalas em que o sujeito deve
simplesmente marcar suas respostas.
O resultado obtido diante da pesquisa foram 4 sujeitos
acima da média, 2 sujeitos com resultado mediano e O fator abertura “se refere aos comportamentos ex-
1 abaixo da média. Para Bandeira e Nickel (2011, p. ploratórios e ao reconhecimento da importância de
488), a extroversão em altos percentis pode facilitar ter novas experiências.” (NUNES; HUTZ; NUNES,
o uso de drogas, pela facilidade de se comunicar e 2010, p. 21). Os resultados atribuídos na pesquisa
fazer novos amigos, a atitude extroversão vai ao apresentam 4 sujeitos com escore mediano, 2 su-
encontro da atitude e do comportamento de um de- jeitos acima da média e 1 sujeito abaixo da média.
pendente químico diante da droga, sendo que agem Indivíduos com escores dentro da média e acima
impulsivamente e são motivados a experimentar a da média tendem a ser pessoas curiosas, imagi-
droga, seja por amigos ou conhecidos. nativas (NUNES; HUTZ; NUNES, 2010, p. 21). Os
dados corroboram para descrever a dificuldade que
O quesito socialização a curiosidade traz na vida dos usuários, o hábito de
conhecer novas experiências e estar aberto a novos
[...] descreve a qualidade das relações desafios aumenta o uso de substâncias, tendo em vista
interpessoais dos indivíduos e se rela- que a abertura a novas experiências se sobressaiu
ciona aos tipos de interações que uma perante o resultado dessa faceta. Segundo Diehl,
pessoa apresenta ao longo contínuo, Cordeiro e Laranjeira (2011, p. 39), o consumo de
que se estende da compaixão e em- drogas ocorre em ondas, com novas substâncias
patia ao antagonismo. Quando o resul- sendo colocadas no mercado e despertando a curio-
tado apresenta-se alto e ou mediano sidade dos usuários.
tendem a ser pessoas boas, genero- Referente aos resultados explanados nota-se que os
sas, prontas para ajudar o outro, já no dependentes de crack expõem facilidade em retomar
escore abaixo da média são indivíduos o uso e abuso da droga, tendo em vista apresen-
que tendem a serem cínicos, não co- tarem impulsividade, curiosidade, abertura a novas
operativos, manipuladores e irritáveis. experiências, dificuldade de tolerar frustração, o iso-
(NUNES; HUTZ; NUNES, 2010, p. 20). lamento social e a dificuldade em tomar decisões, o
que ocasiona a busca pelo uso, sem conseguir evitar
Os resultados mais representativos estão dentro da a impulsividade e a curiosidade por novas drogas.
média com 4 sujeitos e abaixo da média com 2 sujei- A partir dos resultados descritos e apresentados na
tos. As relações interpessoais e habilidades sociais presente pesquisa percebem-se os prejuízos desen-
estão em comum exigência na vida do dependente cadeados pelo uso do crack, comprometendo a saúde
químico. Com base na pesquisa de Gaia e Leonardo

228 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


física e emocional degradando perdas constantes de com comprometimento. Essa esfera solicita que o
emprego, falhas em relacionamentos, distanciamento avaliando reconheça dia da semana, mês, ano, lo-
familiar e exclusão social. Os prejuízos cognitivos são calização que se encontra, estado e país (ÁVILA;
de grande relevância, pois acarretam dificuldades MIOTTO, 2003). Geralmente, as avalições neurop-
na realização de tarefas diárias, impossibilitando o sicológicas iniciam-se com tarefas de orientação
crescimento emocional em decorrência do uso de- temporoespacial, com a intenção de verificar se o
sordenado. sujeito tem noção do lugar em que se encontra. Sua
perda pode indicar um prejuízo cognitivo genérico e
complexo (FONSECA; SALLES; PARENTE, 2009,
4.3 FUNÇÕES COGNITIVAS p. 14).
A cognição pode ser interpretada como um conjunto Na função Atenção, somente 1 sujeito apresentou
de funções mentais, de encaixes cognitivos capazes comprometimento, os demais demonstraram não
de armazenar, adquirir e usar o conhecimento, sendo ter comprometimento na presente esfera. Confor-
uma área da psicologia que estuda a atenção, percep- me esclarecem Ribeiro e Laranjeira (2012, p. 257),
ção, memória, raciocínio e aprendizagem (FREITAS; alterações neurobiológicas provocadas pelo consumo
AGUIAR, 2011). O cérebro é um órgão que está em de cocaína na região do córtex cingulado parecem
constante modificação. Segundo Draganski e Gaser estar relacionadas a déficits no controle da atenção.
(apud RIBEIRO; LARANJEIRA, 2012, p. 46), o cérebro Os resultados apresentados vêm de encontro aos
é um órgão capaz de se adaptar, de ser esculpido achados na literatura, pois déficits de atenção são
pelas demandas externas, fenômeno denominado frequentes entre usuários de cocaína e crack (GIL-
neuroplasticidade. LEN et al., 1998 apud CUNHA, 2005).
O consumo de drogas principalmente, o álcool e a No que diz respeito à Percepção, 4 sujeitos apre-
cocaína, acarretam perdas significativas na vida do sentaram não ter comprometimento, entretanto S3,
sujeito, desencadeando danos cerebrais, alteran- S4 e S6 apresentaram comprometimento na esfe-
do as áreas cognitivas especialmente, as funções ra. A percepção é o movimento pelo qual a pessoa
mnemônicas, atencionais e executivas, como, por toma ciência da realidade, consciência do mundo e
exemplo, na memória de trabalho; controle e seleção de atributos que a cercam (LEOPARDI, 1999 apud
de resposta (intenção); resolução de problemas e MAÇANEIRO, 2008). Segundo Hoff et al. (1996 apud
tomada de decisões (KOLLING et al., 2007). A neu- CUNHA, 2005), o uso de cocaína afeta componentes
ropsicologia é o encontro entre cognição, comporta- da percepção, como velocidade perceptomotora.
mento humano e as funções cerebrais, sendo elas
alteradas ou preservadas (KRISTENSEN; ALMEIDA; Ao avaliar a Memória apresentou-se comprometimen-
GOMES, 2001). Ao trabalhar a dependência de drogas to em 2 sujeitos (S2 e S5), os demais pesquisados
é importante fazer uma análise geral do quadro de estavam dentro do esperado. As etapas da memó-
comprometimentos físicos, psicológicos, cognitivos ria se desenvolvem em três quesitos: codificação,
ou neuropsicológicos. Nesta pesquisa a avaliação armazenamento e registro, sendo a primeira etapa
cognitiva é respaldada por meio do instrumento psi- informações interpretadas, a segunda as consoli-
cológico Neupsilin, explanada na Tabela 3, conforme dadas, e a terceira buscadas, quando necessário
as diretrizes do manual, apresentadas como sem (FONSECA; SALLES; PARENTE, 2009, p. 18). O
comprometimento e com comprometimento. fator memória apresentou pouco prejuízo entre os
sujeitos, o que vem de encontro aos achados lite-
Tabela 3 – Escores e classificação obtidos nos fatores rários, como a pesquisa de Ferreira e Colognese
do Neupsilin (2014, p. 198), realizada com usuários de crack e
cocaína, na qual avaliaram a memória com o auxílio
do instrumento psicológico Neupsilin, e apresentou
prejuízos severos dentre os fatores avaliados do
teste. O estudo de Quioca e Sehnem (2017) reafirma
a presença do prejuízo na memória, pois 5 dos 9
sujeitos apresentaram prejuízos.
No fator Habilidades aritméticas, 5 sujeitos demons-
traram comprometimento na resolução de problemas
matemáticos. Segundo Fonseca, Salles e Parente
Fonte: os autores (2009, p. 18), a acalculia frequentemente ocorre em
associação com distúrbios de linguagem (afasias),
No quesito Orientação temporoespacial, o resultado mas existem descrições de dupla dissociação en-
entre os 7 sujeitos demonstrou apenas 2 indivíduos tre afasias e falha no processamento numérico. As

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 229


dificuldades de processar números e quantidades cia química, atrelando diferentes justificativas para
e de realizar cálculos aritméticos são chamadas usar o crack. É certo que as situações mudam de
discalculias (GUALBERTO; ALOI; CARMO, 2012). história para história e isso expõe a vulnerabilidade
em cada contexto social.
Na Linguagem, 3 sujeitos demonstraram comprome-
timento no processamento de interpretações linguís- A dependência química, como já pautado, é um assunto
ticas, leitura e escrita. A linguagem pode ser oral ou antigo, sendo mistificado no decorrer das épocas,
escrita, seus componentes podem ser estudados, antigamente usada para a cura, rituais religiosos e
sendo eles receptivos, ou compreensivo e produtivo, outros, entretanto, nos dias atuais, torna-se uma
ou expressivo, divididos em três níveis de complexi- grande preocupação na base nacional, crescendo
dade de unidades linguísticas: palavra, sentença e o índice de pessoas usuárias de drogas que, após
discurso (FONSECA; SALLES; PARENTE, 2009, p. certo tempo de uso, desenvolvem doenças sexu-
19.) É uma função cortical superior, com sistema de almente transmissíveis, orgânicas, psicológicas e
símbolos que são combinados de modo sistemático arrombo ao meio social. A importância de estudar
e orientados para armazenar e trocar informações dependência química e usuários de crack torna-se
(SCHIRMER; FONTOURA; NUNES, 2004). com o passar dos anos cada vez mais importan-
te, visto que se encontra em aumento as taxas de
Praxias, para Fonseca, Salles e Parente (2009, p.
usuários de crack e um descontrole social sobre o
20) são as habilidades dirigidas à execução gestual,
acréscimo de viciados.
diferentes movimentos compõem um gesto, de forma
que a práxias se refere a um processo de execução A partir dos resultados obtidos na presente pesquisa
de um ou de uma série de movimentos, quando apre- verificam-se semelhanças entre os perfis estudados,
sentados com dificuldades são nominados apraxias. apresentando igualdade de idade, religião, relacio-
Os resultados evidenciaram apenas 1 sujeito com namentos conjugais, perdas – consequentes do uso
comprometimento na presente função. Os dados –, nível de escolaridade, dificuldades em cessar por
da pesquisa de Ferreira e Colognese (2014, p.198) longo período o uso da substância; o fator da curio-
corroboram, detectando sutis déficits nas praxias de sidade fica em evidência, sendo o desencadeador
usuários de cocaína e crack. primordial do primeiro uso da pedra, e o isolamento
social, que atinge os âmbitos de desemprego, afas-
Quanto às funções executivas, em Resolução de
tamento da família e a dificuldade de inserir-se ao
Problemas, 4 (S1, S3, S4 e S7) apresentaram com-
meio novamente. Já no âmbito das funções mentais
prometimento. Segundo Fonseca, Salles e Parente
superiores denota-se em comum exigência a dificul-
(2009, p. 20), as funções executivas estão envolvidas
dade em resolver problemas pessoais, dificuldades
no controle e na regulação de processos cognitivos
de linguagem e a falta da tomada de decisão frente
mais simples, englobando metas e perspectivas do
aos novos rumos de suas vidas.
futuro.
Percebe-se a falta da sociabilidade dos usuários, de
O maior quesito que demonstrou comprometimento
modo a dificultar a reinserção social, desenvolvendo
em 100% dos participantes foi a Fluência Verbal. Os
grandes problemas de isolamento, os quais afetam
achados literários de Ribeiro e Laranjeira (2012, p.
o desemprego, exclusão e o afastamento de fami-
255) esclarecem que a função executiva está desem-
liares, além disso, a restrição de lugares que podem
penhada no controle cognitivo de todos os processos
frequentar vai se estreitando, de modo que acabam
direcionados para um objetivo, em especial, àqueles
por ficar somente no âmbito do lar, uma vez que a
que demandam atenção, que não sejam rotineiros e
sociedade deixa de lado esses sujeitos.
partam da vontade do indivíduo. Os prejuízos cogni-
tivos encontrados na pesquisa são de grande rele- As considerações acometidas verificam a vulnerabi-
vância, pois os sete sujeitos são usuários de crack lidade dos sujeitos, a exclusão social, a dificuldade
e apresentaram alterações e comprometimentos em de tomar decisões e as complicações na linguagem,
suas funções superiores, obtendo maior prejuízo na ou seja, falar sobre si e sua doença. A falta de ini-
fluência verbal. ciativa e a dificuldade em tomar decisões dificultam
a resolução de problemas fáceis do cotidiano, como
escolher parar de usar o crack e outras drogas, tor-

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
O aumento nas taxas mundiais de usuários
nar-se um ex-usuário ou permanecer e se autossa-
botar frente ao uso.
Considerando os aspectos apresentados na pre-
de crack encontra-se em constantes modificações,
sente pesquisa, enfatiza-se a importância de rea-
sofrendo acréscimos oriundos de sujeitos à procura
lizar novos estudos a respeito dessa temática, já
pela droga. Nota-se que cada vez mais pessoas
que a taxa de usuários cresce em todas as classes
jovens estão entrando para o mundo da dependên-
sociais, tornando-se precocemente alta a procura

230 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


pelo crack por pessoas cada vez mais jovens. Esta tratamento: análise de prontuários. Esc. Anna
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que os próximos estudos sejam estruturados de
forma que os usuários não venham a manipular os
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instrumentos, uma vez que a manipulação faz parte
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234 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
29

PLANTÃO PSICOLÓGICO NA ASSISTÊNCIA A URGÊNCIA


PSÍQUICA DA COMUNIDADE

RESUMO
Este artigo descreve o relato de experiência de um grupo de
Benedita Nádia Silva
Pereira estudantes do projeto de extensão chamado “Plantão Psicológico”,
UNINTA que se trata de um serviço voltado para a escuta psicológica urgente
da comunidade. É um projeto do Centro Universitário INTA (UNINTA),
Francisco Flávio Muniz na cidade de Sobral, Estado do Ceará, e conta com a participação
Rufino de um Psicólogo Clínico, professor da instituição e 15 acadêmicos de
UNINTA
Psicologia do oitavo semestre. Com base na Abordagem Centrada na
Pessoa (ACP) de Carl Rogers, tendo por base a obra intitulada “Um
Francisca Telma
jeito de Ser” e “Tornar-se Pessoa” de Carl Rogers. A prática do grupo
Vasconcelos Freire
UNINTA ocorre no Núcleo de Atendimento de Práticas Integradas (NAPI),
no UNINTA. O presente capítulo foi realizado por meio de Relato
Leidiane Carvalho de de Experiência da prática de atendimento ofertado à comunidade
Aguiar acadêmica e para a comunidade externa nas proximidades da
UNINTA universidade. Foi possível aprender que o acolhimento e a escuta
é importante no espaço do Plantão, pois as questões do paciente
Marcelo Franco e Souza
são ouvidas e valorizadas, de forma empática e sem julgamentos.
UECE/UNILAB
Atendemos demandas diversas de sofrimento psíquico e após os
atendimentos, ocorrem reuniões para discussão sobre os casos
atendidos. Compreendemos que o acolhimento psicológico tem
sido favorável tanto para pacientes quanto para os acadêmicos
de Psicologia, uma vez que grande parte dos pacientes atendidos
apresentou boa evolução durante o processo de retorno. Assim, os
discentes, como plantonistas, têm a oportunidade de articular a teoria
com a prática, aprimorando assim seus conhecimentos e adquirindo
experiência profissional para melhor desempenho profissional.

Palavras-chave: Plantão Psicológico; Prática Clínica; Acolhi-

mento Psicológico.
10.37885/200400174
1. INTRODUÇÃO quinzenais, voltados para as supervisões, oriundo
dos estudos e a discussão acerca das diferentes
O Plantão Psicológico é um atendimento de demandas envolvendo hipóteses diagnósticas e
apoio emergencial que é destinado a pessoas que possíveis transtornos mentais.
buscam ajuda em situações de crise causadas por O mundo contemporâneo tem demandado novas
diversos fatores relacionados com vivências diárias formas de inserção do Psicólogo, na verdade, uma
que resultem em perda de equilíbrio emocional. Não nova postura, um novo olhar sobre ele. A definição
tem como proposta seguir com atendimentos psico- de clínica, em função disso, não pode mais se res-
terapêuticos, mas caso os extensionistas evidenciem tringir ao local e à clientela que atende, trata-se,
que o paciente necessita de psicoterapia, é realizado sobretudo, de uma postura diante do ser humano e
de imediato um encaminhamento para outros serviços sua realidade social, exigindo, portanto, do Psicólogo,
que possa dar suporte a demanda apresentada. O uma capacidade reflexiva continuamente exercitada
Plantão Psicológico pode ser realizado em hospitais, em relação à própria prática, da qual se origine um
clínicas, escolas e instituições. posicionamento ético e político (DUTRA, 2004). O
Segundo Tassinari (2010), Plantão Psicológico é um processo de escuta exige cuidado objetivando pro-
tipo de atendimento psicológico que se completa em mover a minimização de sintomas de ansiedade,
si mesmo, realizado em uma ou mais consultas sem depressão e riscos de suicídio.
duração predeterminada, objetivando receber qualquer

2.METODOLOGIA
pessoa no momento exato (ou quase exato) de sua
necessidade, para ajudá-la a compreender melhor
sua emergência e, se necessário, encaminhá-la a
O presente capítulo foi realizado por meio de
outros serviços de saúde metal. Tanto o tempo da
um relato de experiência, como também por pesquisa
consulta, quanto os retornos, dependem de decisões
e revisão de literatura com embasamento teórico na
conjuntas do plantonista e do cliente, tomadas no
Psicologia Humanista. Foi realizado consulta a litera-
decorrer da consulta. O plantonista e o cliente vão
tura por meios eletrônicos na base “SciELO” feito a
juntos procurar no “momento já” as possibilidades
pesquisa com os descritores “Plantão Psicológico”
ainda não exploradas, que podem ser deflagradas a
e “Acolhimento Psicológico”, assim como a leitura
partir de uma relação calorosa, sem julgamentos, na
das obras intituladas “Um jeito de Ser” e “Tornar-se
qual a escuta sensível e empática, a expressividade
Pessoa” de Carl Rogers. Foram encontrados três
do plantonista e seu genuíno interesse em ajudar,
artigos e destes, foi realizada a leitura completa.
desempenham papel primordial.
Utilizamos Scorsolini (2015), Souza (2016) e Braga
O presente artigo é um relato de experiência dos
(2019). Estes autores perceberam que a utilização
extensionistas do Plantão Psicológico do Centro Uni-
da Abordagem Centrada na Pessoa torna possível
versitário INTA-UNINTA que é realizado semanalmente
ao extensionista compreender como utilizar recursos
no Núcleo de Atendimento de Práticas Integradas
de atitude facilitadora para proporcionar a clientela
(NAPI), nos três turnos, de segunda à sexta- feira,
buscar em si auto-compreensão e adquirir conhe-
com intuito de acolher as demandas da comunidade
cimento de suas atitudes tornando-se responsável
externa e comunidade acadêmica.
por tomada de decisões.
O trabalho é realizado por 15 extensionistas e um
Psicólogo clínico professor da instituição. O público
alvo é a comunidade externa e a população aca-
dêmica da referida instituição, oportunizando uma
3.RESULTADOS E DISCUSSÕES
O Plantão Psicológico do Centro Universitário
escuta e um acolhimento à pessoa no momento de INTA-UNINTA teve inicio no ano de 2018 no mês de
crise, proporcionando um ambiente empático, como março. No principio ocorreu um processo seletivo
também capacitando os discentes para futuro pro- para selecionar os extensionistas, foram aprovados
fissional na Psicologia, bem como otimizar a fila de 15 alunos. Nas atividades foi apresentado o crono-
espera do NAPI. grama programático para todo o ano letivo, onde
Os extensionistas são orientados, por meio de ca- durante seis meses, foi realizado estudos teóricos
pacitações, sobre a construção e fundamentos do com base na perspectiva rogeriana e sua abordagem
principal objetivo da modalidade do Plantão Psi- centrada na pessoa. Após as leituras dos textos havia
cológico, sobre a conduta e o exercício clínico no contextualização sobre as temáticas abordadas para
processo de atendimento afim de que se torne um aprendizagem e respaldo preparatório para atuação
profissional capacitado,que saiba realizar a escu- psicológica prática. Em 2019 o Plantão passou a
ta e o acolhimento necessário. Posteriormente, ao prática dos atendimentos dos extensionistas através
longo dos atendimentos, são realizados encontros do NAPI.

236 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


O Plantão Psicológico baseia-se no modelo de acon- os encontros quinzenais, todos os extensionistas
selhamento psicológico proposto por Carl Rogers, tiveram tempo de preparação para iniciar a prática
onde inicialmente Rogers começou a questionar esse clínica. Todos os atendimentos realizados pelos aca-
modelo de aconselhamento e propõe uma mudança dêmicos de psicologia foram supervisionados pelo
de perspectiva dando maior importância ao cliente e Professor e Psicólogo Clínico da instituição citada.
não ao seu problema, pensando principalmente na Cada extensionista realiza uma escuta psicológica
possível possibilidade de ajudar o cliente. Sobre esta com base de aprendizagem teórica, após a escuta
escuta Rogers diz: “Constato […] que ouvir traz con- ao cliente são protocolados registros no prontuário
sequências. Quando efetivamente ouço uma pessoa do cliente com apenas anotações de identificação, a
e os significados que lhe são importantes naquele fala e demanda do cliente é mantida em total sigilo,
momento, ouvindo não suas palavras, mas ela mesma, cumprindo assim a ética profissional.
e quando lhe demonstro que ouvi seus significados
Após os acolhimentos psicológicos ocorrem reuniões
pessoais e íntimos, muitas coisas acontecem. Elas
para analisar os casos clínicos, dessa forma enri-
se sentem aliviadas […] tornam-se mais abertas ao
quece o aprendizado dos acadêmicos como também
processo de mudança”. (ROGERS, 1983, p. 6).
atende as demandas de sofrimento psíquico que se
Morato (1999) diz que Rogers não se deteve somen- apresentam na comunidade e na instituição UNINTA.
te na técnica e voltou-se para as possibilidades da Despertando nos extensionista uma prática de pes-
relação de ajuda e, quisa em que o clínico se implica em uma situação
concreta, se abrindo à experiência de facilitar a cons-
(...) caminhou no sentido de não se trução de sentido do próprio sujeito que pede ajuda.
restringir unicamente a prática clínica A partir do inicio dos atendimentos dos extensio-
tradicional, ou seja, da psicoterapia, e nistas no NAPI foi evidenciado que o acolhimento
seguiu o caminho do aconselhamen- psicológico contribui para a diminuição de usuários
to psicológico. Não se fechou em uma em fila de espera para atendimentos de longo prazo,
prática clínica. Ouvindo as demandas otimizando assim auxilio aos demais serviços que
sociais e reformulando este campo estão em lotação.
em função das demandas, foi possível
De acordo com Sterian (2003), a psicoterapia de
dirigir se para outros contextos que,
emergência pode ser indicada como prevenção ou
também demandavam ajuda: escolas/
como tratamento. Na prevenção seus objetivos seriam
educação, grupos, conflitos sociais,
evitar que um problema pontual se transforme em
empresas. Amalgamando essas expe- uma desordem psíquica organizada, como também
riências, passou a repensar como a ori- uma situação aguda passe a ser uma doença crônica
gem de tensões, conflitos e crises dos e dentro de um quadro crônico preexistente surja
homens e pessoas encontram-se nas uma causa de uma incapacidade definitiva. Sterian
diversas situações do relacionamento (2003) propõe o atendimento de emergência como:
humano. Ou seja, da condição humana
no mundo com os outros” (p. 82). A possibilidade de o indivíduo se ver
enquanto tal. Fazer uma pessoa pen-
A partir da citação fica claro que o foco principal é sar em si mesma não apenas como um
acolher qualquer demanda trazida pelo cliente, es- diagnóstico, um número ou uma unida-
tando lado à lado para ajudar com apoio psicológico de de consumo, oferecer-lhe a chance
de forma empática. de reinserir-se em sua própria história
Sendo assim, o Plantão Psicológico surge como uma de vida, de assumir-se enquanto sujeito
modalidade de prestação de serviços semelhante de seus próprios desejos, necessida-
com a postura da clínica em que o psicólogo passa des e possibilidades. Para que, a partir
a estar totalmente comprometido com a escuta e daí, ela possa elaborar as limitações ou
sensível às demandas que chegam conscientemente frustrações que sua existência for lhe
que talvez o encontro seja único. Sobretudo sabemos trazendo. (p. 34).
que não é uma psicoterapia e nem se propõe substi-
tui-la. O Plantão Psicológico é uma prática da clínica Nos atendimentos sabemos que devemos está prepa-
contemporânea e que é possível utilizar sua prática rados para situações inesperadas e de emergências,
em diversos locais com ampliação e ocupação do que nossa atuação dependerá do que se apresenta
profissional Psicólogo em espaços que necessitem a partir do próprio cliente, sempre somos orientados
do fazer psicológico como demanda emergencial. pelo nosso Professor Psicólogo sobre quais habili-
Com base no referencial teórico estudado durante dades básicas para ser praticadas, como também

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 237


em mente que o cliente é único, e que o essencial
é enfocar a experiência do cliente ao invés do seu
problema. Empatia, congruência, com escuta aten-
ciosa e não-diretiva.

4.CONCLUSÃO
A prática no Plantão Psicológico nos proporcio-
nou diversos momentos de vivência peculiar sendo
possível despertar nos acadêmicos extensionistas
um olhar diferenciado para cada caso a partir de suas
especificidades. Foi possível evidenciar que a teoria
e prática são fundamentais para realizar um bom
atendimento psicológico. Evidenciamos na prática
que o acolhimento promove reflexão e potencializa
mudanças significativas no alivio de angústias para
as pessoas que procuraram o serviço no momento
de suas urgências.
Destaca-se ainda que as atividades que desempe-
nhamos no Plantão Psicológico é uma complemen-
tação da formação acadêmica que veio enriquecer
nosso aprendizado quanto profissionais psicólogos
e psicólogas, assim como estamos contribuindo no
atendimento de demandas psíquicas da comunidade
e desenvolvimento da universidade e da comunidade
externa em promoção da saúde mental.

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238 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
30

PRÁTICA DE MARATONAS NA LONGEVIDADE: OLHANDO


PARA A AUTO - ESTIMA

RESUMO
A longevidade é realidade vivida hoje por um número crescente de
Maria Arlene de Almeida
Moreira pessoas ao redor do mundo. Nessa vivência, a Organização Mundial
PUC-SP de Saúde (OMS-WHO, 2002) aconselha a prática da atividade física,
como um dos fatores que contribui para a qualidade de vida de
Ceneide Maria de idosos. Entretanto, a atividade física contribui apenas como um dos
Oliveira Cerveny fatores responsáveis pelo envelhecer com saúde. O envelhecer bem
PUC-SP
também depende de um cuidar de si, vencer a solidão com novas
redes, cultivar a autoestima, livrar-se de crenças negativas, sanear
as cicatrizes da alma que nos impedem de ser felizes, além de uma
alimentação saudável e acesso à oportunidades. Este estudo foi tema
de dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação
da segunda e, numa abordagem qualitativa de Estudo de Casos,
focalizou 06 (seis) seniores com mais de 60 anos que encontraram
formas de manter-se ativos na longevidade praticando maratonas. Os
aspectos motivacionais, os sentimentos e os resultados percebidos e
presentes nos contextos, pessoal, familiar e social dessas pessoas,
antes e depois da prática da corrida e participação em maratonas
foram apreciados nas mudanças que ocorreram na qualidade de vida
desses participantes.

Palavras-chave: Longevidade; Longevidade e visibilidade;

Atividade Física e Envelhecimento; Envelhecimento e Famí-

lia; Autoestima.
10.37885/200400163
1.INTRODUÇÃO
A Longevidade é uma realidade vivida por um
3. SOBRE ENVELHECIMENTO, SOCIA-
BILIDADE, EXERCÍCIOS FÍSICOS E
AUTOESTIMA
grande número de pessoas ao redor do mundo. E
diferentes autores referendam a receita do que seja Quando se pensa em envelhecimento, o desejável
“envelhecer com saúde”. é que se tenha qualidade de vida, autonomia, no-
vos interesses e possibilidades de realizações dos
A pergunta, que nos fazemos ainda hoje, é se um mesmos, ausência de patologias debilitantes e uma
dia, com os novos descobrimentos, avanços em rede social expansiva viva. Nem sempre isso ocorre.
tecnologia e medicamentos a ciência descobrirá a
fonte da eterna juventude. Jacob Filho (2006) entende O envelhecimento em si não é sinônimo de doença,
haver um equívoco, se se supõe que os avanços da mas uma fase da vida em que, mesmo com alte-
ciência poderão nos levar um dia à eterna juventu- rações fisiológicas naturais, podemos ser pessoas
de. Existem diversas alterações fisiológicas naturais envelhecidas e saudáveis.
que concorrem no envelhecimento e elas não são
Alguns estudos realizados por autores em diferen-
passíveis de reversão pelos tratamentos estéticos
tes países mostram uma boa correlação entre en-
em voga. Estes tratamentos estéticos podem ser
velhecimento, sociabilidade, autoestima e prática de
importantes para a autoestima e obtenção de um
exercícios físicos.
aspecto jovial, mas não significa que parecer jovem
é ser saudável. Steptoe, Oliveira, Demakakos e Zaninotto (2014) referem
que viver saudável inclui, também, a sociabilidade.

2.ENVELHECIMENTO:
OU PROBLEMA?
CONQUISTA Estes autores acompanharam 6.500 pessoas, com
idade entre 52 a 79 anos num período de oito anos
(2004 a 2012) em estudo pela University College of
Tótora (2008) discute se o envelhecimento é uma London. Concluíram que a possibilidade de morte
conquista individual, ou um problema. E refere que precoce para as pessoas que vivem isoladas era
o envelhecimento ultrapassa o status de conquista 26% mais frequente do que aquelas que alimenta-
individual, para dizer respeito, também a questões de vam sua vida social. Nestas, era encontrada uma
políticas públicas e de acesso ao sistema de saúde associação de altos índices de secreção de cortisol,
e assistência social para muitos que o vivem. Para pelo estresse motivado com a falta de contato físico
além do fato de as taxas de natalidade da população e também inflamações.
estarem em declínio da esperança de vida ao nascer Liu, Wrosch, Miller e Pruessner (2013), da Universida-
ser alta, o envelhecimento aponta consequentes pro- de Concordia, Québec, acompanharam por 04 anos
jeções de gastos em saúde que oneram o Estado. 147 adultos com mais de 60 anos e concluíram em
Mas há outros eventos que impactam o bem enve- seus resultados que uma boa autoestima diminui o
lhecer, como as migrações de famílias novas que aparecimento de doenças em seniores. Para esses
buscam nas capitais ou no estrangeiro melhores autores, a autoestima funciona como uma proteção
oportunidades de trabalho. Estes eventos trazem contra o estresse e a ansiedade, favorecendo a re-
preocupações em relação ao envelhecimento da siliência e a capacidade de superar os problemas, à
população no futuro, em duas direções: no indivi- semelhança de um sistema imunológico emocional.
dual, pela escassez de apoio familiar e de rede; no Kross, Berman, Mischel, Smith e Wager (2011) da
institucional, por conta da ausência de contribuinte Universidade de Michigan, utilizaram ressonância
financiador do sistema saúde e o governo pode ter magnética e mapearam as zonas cerebrais da dor
que pensar no planejamento de ações restritivas de nos cérebros dos voluntários analisados. Verificaram
gastos públicos com saúde. que as dores físicas ou emocionais, não se confi-
O envelhecimento da população, que já ocorria na guram como fenômenos distintos e compartilham
Europa nos idos da década de 70, atinge hoje países as mesmas zonas cerebrais. Podemos supor, por
antes tidos como jovens, como é o caso do Brasil estes estudos que, alimentar nossa autoestima e
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, rede social é prática saudável, não importa a idade
2010 e adequações de anos posteriores¹). que tenhamos.

4.LONGEVIDADE E MARATONAS:
OLHANDO PARA A AUTOESTIMA

¹ HTTP://www.censo2010.IBGE.gov.br/sinopse/index.ph

240 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS- a sequência da participação. Critérios de partici-
WHO), a atividade física é um dos fatores que contri- pação: para a inclusão do participante na pesquisa
bui para a qualidade de vida. Esse órgão aconselha deu-se mediante a tríade concorrente: a) Ter 60 anos
a prática de atividade física de baixo impacto para ou mais; b) Praticar a modalidade corrida há mais
idosos, como prevenção de agravos à saúde. de 3 anos; e c) Ter pelo menos participado de uma
maratona. A “amostra” constituída foi homogênea e
A corrida e a participação em maratonas é uma prá-
serviu aos objetivos do estudo.
tica esportiva acessível e inclusiva, mas não é de
baixo impacto. Não restringe sua prática a idade Quanto à consideração da variância intergrupo, o
ou o sexo. Tem sido adotada por pessoas de várias critério de diversificação externa restou comprome-
faixas etárias, inclusive com 60 anos e mais, que se tido pela necessidade de a “amostra” ter que ser
fazem presentes nos parques, ruas e provas nacio- homogênea. Como mecanismo compensatório, in-
nais e internacionais. Mas a prática exige dedicação cluiu-se a presença feminina como um diversificador
e disciplina. interno (intragrupo). Apesar do pequeno número de
participantes, a “amostra” apresentou-se represen-
O estudo que aqui se apresenta é uma síntese da
tativa com a saturação, isto é, pela repetição dos
Dissertação apresentada e defendida para a obten-
resultados: operacionalmente e la permitiu colher
ção do título de mestre em Psicologia Clínica, no
dados; e metodologicamente permitiu generalizar
Departamento de Psicologia Clínica da Universidade
os resultados para o universo da análise (saturação
Católica de São Paulo, intitulada Maratonas e Lon-
dos dados).
gevidade: um olhar para a autoestima (MOREIRA,
CERVENY, 2013).
O estudo é ilustrativo da forma de como viver a lon-
gevidade com a postura de enfrentamento individual
5.ABORDAGEM PARA A PARTICIPA-
ÇÃO. ENTREVISTA E ROTEIRO
frente ao viver. Os dados originais foram colhidos
Uma entrevista individual semi - estruturada, na qual
no período de 2011 a 2013. O ponto de partida é
se estabeleceu a interação pessoa idosa- pesquisa-
a escolha da modalidade esportiva corrida e parti-
dor foi o meio pelo qual se procedeu à abordagem
cipação em maratonas por pessoas na faixa etária
dos participantes. Nela, se procurou estabelecer um
abordada (60 anos e mais). No decorrer da pesquisa,
vínculo comunicativo de empatia, de relação não
os atores apontam mudanças no modo de viver e
hierárquica e de escuta ativa, para deixar o inter-
sentir a vida na longevidade. Material e Método.
locutor à vontade para expor a sua narrativa sem
Enquanto pesquisa qualitativa, ela se embasa em
censuras. No entendimento de Poupart (2010) a en-
conceitos do sistema novo - paradigmático e teorias
trevista individual semiestruturada é um instrumento
de múltiplas áreas do conhecimento, portando, são
apropriado para a abordagem, por ser dotada de: a)
consideradas a intersubjetividade, a complexidade
Base epistemológica, a qual permite ver / sentir a
e a instabilidade do fenômeno. A escolha do objeto
perspectiva do ator social; b) Base ético - política, a
é, nos termos de Stake (1994), um Estudo de caso
qual permite compreender a conduta desse ator; e c)
coletivo e as autoras se debruçam sobre o sentido
Base metodológica, porque reconhece a presença
da ação corrida e participação em maratona.
do ator social no informante.
O objetivo geral da investigação pretendeu identificar
O roteiro foi pré - elaborado e nele inclusas algumas
e compreender a participação de pessoas idosas que
perguntas lineares para traçar o perfil do entrevistado;
correm e participam de maratonas, sendo a atividade
perguntas reflexivas para explorar: 1. sua relação
corrida considerada prática de esporte, que contribui
com a corrida; 2. com a participação em maratonas;
para a qualidade de vida. Objetivos específicos:
3. o motivo da escolha da prática esportiva; 4. os
a) Identificar os aspectos motivacionais na partici-
sentimentos presentes no pré e pós a participação;
pação em maratonas; b) Identificar mudanças nos
5. aspectos referentes ao apoio da família; 6. se
contextos pessoal, familiar e social; e c) Identificar os
motivo de exemplo para familiares e amigos pela
sentimentos do maratonista nos períodos imediatos
prática e participação.
antes e depois da participação em maratona. Obje-
tivos secundários: considerar se os sentimentos e As perguntas da entrevista objetivavam investigar
as reflexões das autoras ante os resultados podem as mudanças na vida que o participante podia ou
ou não validar o objetivo proposto. Método: para a não ter notado com a prática adotada e participa-
escolha dos participantes foi a “bola de neve” (Pi- ção em maratonas; o número de maratonas que já
res, 2008), segundo a qual cada participante indica participara. Elas abordavam aspectos da ação com
o próximo a ser inserido na pesquisa. No presente possibilidades de estabelecer um padrão que per-
caso, cada participante contribuiu com a referência mitisse generalizar resultados. Esse guião permitiu
de dois nomes, um feminino e outro masculino, para acessar dados diretamente dos atores participantes

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 241


e não constituiu uma camisa de força. Testado, pos- Quadro 1: Universo da Amostra
teriormente foi submetido aos demais participantes.
Entrevistas. Todas foram gravadas em seu inteiro
teor e cumpridas as exigências relativas ao teor da
pesquisa, ao respeito ao sigilo, ao Termo de Consen-
timento Informado (TCI) e mesmo, à possibilidade
de desistência da participação a qualquer momento.
Todas as anotações realizadas e as transcrições das
narrativas foram lidas, codificadas e categorizadas,
com o objetivo de estabelecer padrões de ação, seja
no projeto piloto, ou nas entrevistas individuais rea-
lizadas, levando em conta as devidas retificações.
Sobre os participantes. Foram seis os participantes
do estudo (P1, P2, P3, P4, P5 e P6), sendo três
homens e três mulheres. Critério etário: As idades
variaram entre 61 a 81 anos entre os homens; e 68 a
80 anos, entre as mulheres. Nacionalidade: Quanto Fonte: Moreira e Cerveny, 2013
à origem, participaram 01(um) português; 01 (um)
espanhol; 02 (dois) brasileiros; 01 (um) sansei (filha

6.RESULTADOS
de nissei com issei); e 01 (um) oriundi (descendência
italiana). Profissões: 01 comerciante, 02 advogados,
01 costureira, 01 professora de piano, 01 professor
As narrativas dos participantes evidenciam que
universitário (Quadro 1. Universo da amostra, MOREI-
os entrevistados perceberam mudanças em suas vidas
RA E CERVENY, 2013), o qual especifica o Universo
desde o início da prática esportiva. Os participantes
da Amostra). Motivação para a escolha da prática
percebem que a idade impõe algumas restrições
esportiva. Todos os seis (06) participantes iniciaram
ao corpo, mas que sabem ser preciso respeitar os
a prática corrida pela facilidade e possibilidade de
limites pessoais, cuidar do corpo e dar atenção aos
escolha no horário do fazer. Quatro (04) deles em
sinais de alerta. Importante também é ter atenção
face a problemas de saúde; um (01), para apoiar
quanto aos excessos e disciplina no treino referem
o filho mais velho, que decidira participar de uma
que as mudanças trazidas com a prática do esporte
maratona; um (01) aos 60 anos fora convidado a
abrangem aspectos múltiplos e amplos da vida co-
participar de pesquisa sobre longevidade e seden-
tidiana nas esferas pessoal, familiar e profissional.
tarismo o que lhe marcou o retorno ao esporte e à
As mudanças atingem a família, a rede de amigos,
modalidade corrida e, desde então, continuava a
a visibilidade e o respeito com que são vistos. Essa
praticar e participar em maratonas (P1). Passado
visibilidade se dá com a admiração por participar de
esportivo pessoal ou de parentes. Um (01) dos
provas como maratonas, as quais são provas duras,
participantes (P3) fora atleta amador por 10 anos
que exigem treino, adequação de hábitos e disci-
na juventude, tendo parado porque percebera a ne-
plina. Cada prova finalizada alimenta a autoestima,
cessidade de estudar para dar um futuro à família
com efeitos secundários que se irradiam no traba-
e filhos; dois (02) tinham histórias de antecedente
lho, nos relacionamentos com pessoas de todas as
paterno que praticara remo (P5) e maratonas (P4),
faixas etárias nas comunidades que frequentam, na
este último no Japão, sempre exitoso e com boas
vivência da conjugalidade, no modo como são vistos.
colocações; dois (02) não tinham histórico de ante-
Passam a inspirar pessoas mais velhas ou mais
passados praticantes de esporte (P1 e P2).
novas e isso é gratificante. Uma grande variedade
de pensamentos e sentimentos lhes vêm à mente
no imediatamente antes e após a participação em
maratonas. A experiência de participação em provas
anteriores faz com que eles se sintam mais segu-
ros, ou cuidem para não cair em erros já cometidos.
Não dispensam os cuidados prévios e tomadas de
tempo do treinamento, a dieta, o tempo de sono, a
hidratação e o modo de vida sem excessos.
Níveis de resultados. No primeiro nível de resulta-
dos foram encontrados padrões de ação e de sen-
timentos e codificados em 04 (quatro) categorias e
19 subcategorias.

242 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Quadro 2: Categorias e Subcategorias

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 243


Fonte: Moreira e Cerrveny, 2013

Segundo Nível de Resultados. Os sentimentos safios, ter confiança, muitos amigos,


e reflexões dos autores enquanto observadores- compreensão dos familiares, melhor
participantes, quando respondem a si mesmos à disposição para a vida e o trabalho. O
pergunta “Como a prática de correr maratonas lhes sentimento de ser um campeão;
afetou a vida? ”
Para P1: Para P2:

Oportunidade de ser feliz, vencer de- Poder manifestar sentimentos e emo-


ção por vencer desafios; ser motivo de

244 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


orgulho para os filhos e também de cui- combater a depressão.
dados e experimentar sentimentos de
igualdade em grupos de pessoas muito
diferentes. E estão todos de calção, são 6.1 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
todos iguais;
Quanto ao objetivo geral os atores: fisicamente,
Para P3: maior bem-estar quando praticam a atividade; psi-
cologicamente, melhor condição afetiva e cognitiva.
Nas relações familiar e rede social: melhora no re-
Uma mudança total, a crença (que
lacionamento familiar e incremento da rede social.
pôde ser vivida) de que querer é poder, A atividade física lhes impõe disciplina, hábitos e
o conhecimento do poder do corpo e estilo de vida mais saudáveis; e eles se percebem
das letras, uma outra condição social; participantes e integrados.
ver que necessitava estudar, deu- me
uma visibilidade duradoura e a opor- Quanto aos objetivos específicos: a) A motivação
tunidade de mudar o panorama para para a participação em maratonas representa um
meus filhos. Devolveu-me a saúde; desafio auto- imposto que traduz novos interesse e
realização; b) As mudanças são percebidas, recursi-
vas e inundam a vida dos participantes em âmbitos
Para P4:
variados. A participação em maratonas é incentivada
no meio familiar e o benefício da prática atinge não
Libertou meu corpo e minha mente
só a família, mas o laboral e o social. Reverbera
devolveu-me a saúde, fez-me acredi- em integrações sociais alargadas, com formação de
tar em mim mesma, ser determinada, novas redes de convívio; c) Quanto aos sentimentos
aumentou meu círculo de amigos, deu- e as sensações decorrentes da prática, referem ser
-me a oportunidade de ser motivo de uma satisfação que se repete a cada maratona, uma
orgulho do marido, dos filhos e do pai emoção intensa recorrente. O terminar a maratona é
(só ela corre como o pai, apesar de ser sempre uma vitória, que os faz vencedores e dá-lhes
mulher). Deu-me um lugar no mundo, visibilidade social e aumento da autoestima.
a oportunidade de melhorar meu dia,
Quanto ao objetivo secundário: os sentimentos e as
de ajudar os outros, porque Deus me
reflexões das autoras validam os objetivos propostos.
ajuda;

Para P5: 6.1 CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO


Devolveu-me a saúde, impôs- me um As autoras entendem que o presente estudo am-
estilo de vida. Mostrou-me que também plia o campo de observação para as alternativas
no esporte importa planejar e fazer (ca- de como viver a longevidade. Mostra que a pessoa
beça e treino). Deu- me oportunidade com mais de 60 anos também e ainda é capaz de
de conhecer pessoas que se preocu- vencer desafios autoimpostos, o que lança estilhaços
pam com o bem estar físico (…); man- na imagem construída do idoso de alguém não mais
ter a determinação para atingir capaz de aprender, sonhar e concretizar.
os objetivos. Hoje sou motivo de admi-
ração da família… Descobri a capaci-
dade de ter controle sobre meu corpo, 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
de ter consciência das mudanças que Durante a realização deste estudo, tivemos a oportu-
o tempo inscreve no corpo e de me ver nidade de reunir o pensamento de autores de áreas
com respeito; do conhecimento humano, colher e partilhar histórias
de vida e fazer uma metáfora da maratona com a vida.
Para P6: Importante salientar como os participantes alimentam
a autoestima com as vitórias que alcançam sobre si
A atividade esportiva representa uma mesmos. Percebemos que o importante para eles
porta pela qual passam a alegria, a ju- não é a competição em si, mas realizar o que se
ventude, solidariedade na família e o propuseram como objetivo. Ao treinarem, aumentam
companheirismo, além de proporcionar sua rede social, combatem a solidão, fortalecem o
saúde é um modo de reencher a vida e sistema imunológico e jogam fora os pensamentos
e as crenças negativas. Se a dor advém por alguma

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 245


entorse, procuram ajuda na fisioterapia e repousam Poupart, J (2008). A entrevista de tipo qualita-
para novamente poderem recomeçar. E recomeçam, tivo: considerações epistemológicas, teóricas
dando sentido às suas vidas, com esperanças de e metodológicas. In: Poupart, J et al. A pes-
novas realizações e maiores desafios auto-impos-
quisa qualitativa. Enfoques epistemológicos e
tos na percepção da capacidade de levar a força
metodológicos. Trad. Ana Cristina Nasser. Pe-
expansiva da vida, persistindo no realizar e terem
fé em si mesmos, construindo para si um modelo
trópolis: Ed. Vozes, p.215-253. Título original:
diferenciado de subjetivação. La recherche qualitative (Coleção Sociologia);

Stake, R.E (1994). Case Studies. In: Denzin,


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Vozes; p.154-211;

246 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
31

REPRESENTAÇÃO SOCIAL ACERCA DA VIOLÊNCIA


INTRAFAMILIAR PARA IDOSOS DE UM MUNICÍPIO DO OESTE
DE SANTA CATARINA

RESUMO
A Violência Intrafamiliar contra a Pessoa Idosa é vista como algo
Jeane Samara Zucchi
UNOESC
“normal” e “cultural”, pois muitas vezes a sociedade trata o idoso
como um objeto passível de descarte a qualquer momento, não
Carmen Lúcia Arruda de
demonstrando cuidados sociais, especialmente, familiares para
Figueiredo Dagostini
UNOESC com aquele que envelhece. O objetivo desta pesquisa qualitativa foi
investigar a representação social acerca da violência intrafamiliar para
idosos de um Município do Oeste de Santa Catarina. As entrevistas
foram realizadas no ambiente domiciliar do idoso, gravadas e,
posteriormente, transcritas para análise de conteúdo. A partir da
análise de coleta de dados identificaram-se relatos de violência
intrafamiliar e abandono, assim como drogas, religião, educação e
herança como potencializadores da violência intrafamiliar contra a
pessoa idosa. Concluiu-se que existe a naturalização da violência
pelos idosos, numa perspectiva de que o vitimizador deve ser
protegido pela vítima, sobressaindo-se às crenças de amor e união
num ambiente onde se propaga a violência.

Palavras-chave: Violência Intrafamiliar; Idosos; Família; Pro-

pagação da Violência.
10.37885/200400119
1.INTRODUÇÃO
A expectativa é que por volta do ano 2025, a
2.VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR
Com o acelerado aumento da expectativa de
população será de mais ou menos 32 milhões de vida a população brasileira está envelhecendo ra-
idosos. Desse modo, a velhice passa a se tornar um pidamente. Os idosos ficam à mercê da sociedade
problema social (MAIA; CASTRO; JORDÃO, 2010), e de famílias sem preparo, que os enxergam como
complexo e crescente, com entraves sociais, pesso- um peso e como pessoas sem valor, não estando
ais e familiares, visto que a velhice entra como uma preparados para responsabilizar-se por seus velhos,
categoria social e culturalmente construída, possuin- fato este que se torna um dos potencializadores da
do um componente preconceituoso e estereotipado violência contra a pessoa idosa.
que a associa a múltiplas patologias, denotando um
A violência é considerada um fenômeno cultural e,
período vital fragilizado e debilitado, estando, assim,
muitas vezes, um acontecimento normal, em que
relacionada a uma fase negativa do curso da vida
“a sociedade e muitos dos idosos consideram que
(MAIA; CASTRO; JORDÃO, 2010).
as condutas são normais da idade” (SÃO PAULO,
Em se tratando da velhice como um problema so- 2007), tornando-se uma relação social conflituosa,
cial, é possível observar que a sociedade não está na qual os agressores buscam posições, domínios
preparada para lidar com esse público, visto que os e vantagens em uma estrutura que lhes garantam
idosos são tratados como objetos que não possuem poderes reais ou simbólicos em detrimentos de outros
mais prestígio e que devem ser descartados. Sob (FALEIROS et al., 2009).
tal ótica, é possível verificar a presença da violência
Comumente, a violência ocorre dentro do âmbito
enraizada dentro da sociedade, assim como no próprio
familiar, corrompendo o direito do idoso, em que
ambiente familiar do idoso, seja física, psicológica,
a família tem o dever de prover cuidados e zelar
financeira, afetiva, sexual, negligência, abandono,
pela saúde, integridade e convivência social e co-
entre outras.
munitária (BRASIL, 1988). A violência intrafamiliar
Em geral, os idosos economicamente melhores são torna-se uma das questões mais complexas, uma
levados para instituições de longa permanência para vez que envolve a família nuclear dos idosos e tra-
idosos, enquanto aqueles com condições inferiores ta-se de um processo circular, em que o mais forte
acabam abandonados em seus lares. Mesmo aqueles tem poder sobre o mais fraco, cujo poder implica
que passam a conviver sob o mesmo teto de sua submissão do mais fraco por meio de estratégias,
família, vivem em um ambiente de tensão e medo mecanismos, dispositivos e arranjos que o levam
que, a qualquer momento, a família possa se negar a curvar-se perante o mais forte (FALEIROS et al.,
a ajudar. Além disso, pode haver um acelerado au- 2009, p. 2), provocando abusos físicos, psicológicos
mento do processo de finitude do idoso, tanto pela e sexuais, abandono, negligência, abuso financeiro,
família quanto pelo próprio idoso, deixando, dessa autonegligência (MINAYO, 2005) e, em muitos casos,
maneira, de ser um “fardo” (FERRETO, 2010). até mesmo a morte.
A violência se propaga com intensidade nos lares Pode-se compreender a violência intrafamiliar como:
dos idosos, diante de tal situação sentiu-se a ne-
cessidade de investigar por meio de uma questão Toda e qualquer ação ou omissão que
central: qual a representação social dos idosos em prejudique o bem estar, a integridade
relação à violência intrafamiliar? física e psicológica, ou a liberdade e o
Para responder a esta questão se faz necessário direito ao pleno desenvolvimento de um
compreender as chamadas representações sociais integrante do núcleo familiar. Pode ser
(RS), que são concomitantes de grupos sociais que cometida dentro ou fora de casa, por
se comunicam e interagem entre si a respeito de as- qualquer membro da família que este-
suntos do cotidiano. As RS são construídas por meio ja em relação de poder com a pessoa
de imagens e significados, o que permite ao indivíduo agredida e inclui também as pessoas
e à coletividade, ao falar de determinado objeto, re- que exercem a função de pai ou mãe,
meter-se ao pensamento pelo qual se reportam a ele, mesmo sem laços de sangue. (BRASIL,
mesmo não estando presente (MOSCOVICI, 2003). 2001, p. 15).
Para Jodelet (2001), as RS se tornam necessárias
“porque nos guiam no modo de nomear e definir Na maior parte dos casos, os agressores são filhos
conjuntamente os diferentes aspectos da realidade e filhas e as mulheres são em maior proporção as
diária, no modo de interpretar esses aspectos, tomar vítimas, conforme Faleiros (2007). Segundo Alves
decisões e eventualmente posicionar-se frente a eles (2008), os agressores e as pessoas responsáveis
de forma defensiva.” pelos maus-tratos aos idosos, residindo no mesmo

248 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


domicílio, utilizam-se da proximidade para coagir agressores, devendo-se, sobretudo, à vinculação à
e ameaçar a pessoa idosa, minimizando as pos- honra, à cumplicidade, à confiança e também pelo
sibilidades de denúncia e motivação do idoso em autoritarismo do agressor, provocando na vítima
procurar ajuda. medo em quebrar a confiança construída dentro do
ambiente familiar (FALEIROS, 2007). A Secretaria
Agregado à violência intrafamiliar, a violência mani-
de Saúde de São Paulo, no Caderno de Violência
festa-se de diferentes maneiras, sendo elas: negli-
Contra a Pessoa Idosa, complementa: “muitas vezes,
gência, a qual se refere à omissão de cuidados e no
em defesa do agressor (filho, filha, neto, neta...) o
atendimento às necessidades do idoso por vontade
idoso se cala, omite e muitas vezes, somente a morte
própria; violência financeira, que se caracteriza pela
cessará a cadeia dos abusos e maus tratos sofridos.”
exploração ou posse dos bens ou dinheiro do idoso,
sem seu consentimento ou com uso de ameaça por Dentro desse contexto, apurar a representação social
parte do agressor; violência afetiva, que se confi- em relação à violência intrafamiliar contra a pessoa
gura no abandono da família, sem a manutenção idosa para idosos é de suma relevância social e
dos laços afetivos, independentemente se a família acadêmica, pois são fundamentais a criação e o
presta auxílio financeiro ou não; violência psicoló- aprimoramento de políticas públicas que resguar-
gica, que se trata de agressões verbais, gestuais dem e zelem a integridade, saúde física, emocional
e restrições na vida social e familiar do idoso, de e psicológica dos idosos, assim como expor para
forma direta ou velada; violência social, que priva a sociedade os sentimentos e representações dos
o idoso da participação e interação com os ami- idosos sobre uma temática polêmica e pouco falada
gos, familiares, grupos e comunidade ao seu redor; pelo corpo social.
abandono, quando aquele que deveria zelar pelo

3.METÓDO
idoso o abandona, sem informação de contato ou
sem repassar o dever de cuidado a outro; violência
sexual, que se configura por insinuações sensuais
e prática sexual indesejada por meio de ameaça ou Trata-se de uma pesquisa de opinião, com
violência; violência física, que é a agressão física ou abordagem qualitativa, realizada com 31 idosos es-
a indução a acidentes, por intolerância, vingança, colhidos de forma intencional, com subsídio de uma
implicância ou qualquer outro motivo; e violência instituição do Município do Oeste de Santa Catarina,
institucional, quando o idoso recebe atendimento de com idade igual ou superior a 60 anos, que sofreram
má qualidade, baseado numa relação de hierarquia ou não algum tipo de violência intrafamiliar.
entre quem trabalha na instituição e quem deveria Os dados da pesquisa foram coletados a partir de
receber auxílio (OAB, [2017?]). uma entrevista semiestruturada, já que, segundo
Minayo (2005) elucida mais duas maneiras de vio- estudos, esse tipo de entrevista é muito comum em
lência: autonegligência, que diz respeito à conduta pesquisas com idosos, por tratar-se de uma técnica
da pessoa idosa que ameaça a sua própria saúde que concede maior flexibilidade para trabalhar com
ou sua segurança, pela recusa de prover cuidados esse grupo específico, por esse tipo de entrevista
necessários a si mesma; e violência medicamentosa, não ser inteiramente focalizado, e, desse modo, me-
quando a administração medicamentosa feita por nos cansativo (GOMES; OLIVEIRA; ALCARÁ, 2016).
familiares, cuidadores e profissionais é feita de forma Os participantes da pesquisa foram contatados e
indevida, aumentando, diminuindo ou excluindo os entrevistados em seus domicílios, sendo informados
medicamentos. dos objetivos da realização da pesquisa, e, em se-
guida, os idosos que concordaram em participar do
Outro potencializador relevante para o desenvolvi- estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre
mento da violência é a plataforma socioeconômica, e Esclarecido, impresso em duas vias.
em que as dificuldades fazem com que o indivíduo
persiga o idoso para conseguir com que este lhe As entrevistas foram gravadas com o intuito de manter
repasse suas economias, podendo tornar-se depen- a fidedignidade dos dados coletados, além de pos-
dente dele. Ademais, a família pode considerar que sibilitar maior número de informações para posterior
o idoso é uma despesa a mais para ser dividida, análise. Foi assegurado o sigilo da pessoa entrevis-
acarretando em discórdias e violações de direitos tada, sendo que cada uma durou entre 30 minutos e
(FALEIROS et al., 2009). uma hora, aproximadamente. As perguntas realiza-
das tiveram o objetivo de identificar a representação
Minayo (2003) expõe que a impossibilidade de falar social da violência intrafamiliar para os idosos. As
dos maus-tratos está implicada com o constrangi- principais questões a serem discutidas foram: Qual
mento ou por temerem punições e retaliações de sua opinião em relação à violência cometida contra
seus agressores. O segredo ou conluio familiar faz os idosos dentro da família? E quais são os princi-
com que os idosos violentados não denunciem seus pais motivos para a ocorrência da violência? A partir

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 249


dessas questões e por intermédio das demandas de benefício, dependendo de seu marido para sus-
trazidas pelos idosos, foram realizadas perguntas tentá-la, incluindo a filha mais velha (44 anos) que
auxiliares consideradas oportunas. Findadas as en- reside junto com o casal. Afirma Tortosa (2004, p. 47)
trevistadas, foram transcritas e submetidas à análise que essa falta de perspectiva, aliada à dependência
de conteúdo, sendo possível identificar conteúdos econômica, pode ser considerada fator de risco para
de violência e questões pessoais dos motivos que a ocorrência dos maus-tratos. Os outros filhos que
levam os familiares a cometerem a violência. Des- residem junto com os pais possuem trabalho próprio.
taca-se que o referente trabalho de conclusão de
Em relação à situação econômica, 8 idosos são
curso seguiu todos os preceitos éticos e políticos
aposentados, 2 são aposentados por invalidez e 2
referentes a pesquisas com seres humanos, tendo
idosos recebem duas aposentadorias e usam os
sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
benefícios para a manutenção da casa e seu sus-
com Seres Humanos (CEP) sob n. 2.727.787, da
tento. Observou-se que dos idosos que recebem
Fundação Universidade do Oeste de Santa Catarina
ajuda de seus filhos é somente para medicamentos
– Unoesc Joaçaba.
e serviços de saúde, há, ainda, um idoso que recebe
ajuda financeira de seu filho para pagar o aluguel da

4.RESULTADOS E DISCUSSÕES
O grupo participante desta pesquisa apresentou
casa onde vive. Apenas um casal de idosos recebe
assistência dos filhos em todas suas necessidades.
Dos treze participantes, a autonomia e a indepen-
um total de 31 idosos. Dentre estes, 38,7% não foram dência apresentavam-se preservadas. Em relação
localizados; 6,45% mudaram-se de cidade e/ou de à saúde física, foram apresentadas as seguintes
bairro, não sendo possível a localização; 16,12% é doenças: asma, diabetes, pressão alta, mal de Parkin-
casal, sendo que, dos casais, 6,45% a mulher res- son, gastrite, fibromialgia, câncer, esclerose crônica,
pondeu, 3,22% o homem respondeu e 6,45% o casal catarata, doença cardiovascular, incluindo acidente
respondeu; 3,22% óbito recente e 19,35% residem de trabalho, que impossibilitou o idoso de trabalhar.
sozinhos. Dessa forma, foram entrevistados somente O Idoso 13 relata que “a nossa doença é a velhice.”
51,61% da população pretendida para a pesquisa. (informação verbal).
Os medicamentos são adquiridos pelos próprios idosos,
Quadro 1 – Identificação dos idosos segundo
numeração, idade, sexo, estado civil, religião e situação nos postos de saúde e/ou na farmácia municipal. Em
econômica relação à ocupação dos idosos, estes frequentam a
igreja, pescam, limpam a casa, frequentam o grupo
de idosos de seus bairros, saem com os amigos e
uma idosa refere que sua única ocupação é ir ao
médico.
A relação intrafamiliar se articula às relações sociais.
A família não está separada da sociedade; ela so-
brevive e vive em condições sociais determinadas
de produção, cultura, distribuição de riqueza e de
acesso a oportunidades e política. A violência in-
trafamiliar é um processo complexo de interseção
e combinação de dinâmicas e da estrutura familiar
com a dinâmica e a estrutura social (FALEIROS et
al., 2009), como visto no relato da idosa 2 (81 anos)
Fonte: os autores
“é o tipo de criação dos filhos, antigamente criavam
É importante observar que 61,53% da população perto das famílias e hoje são criados na rua e nas
entrevistada são do sexo feminino, enquanto que drogas.” (informação verbal).
apenas 38,46% são do sexo masculino; 38,46% A idosa 5 também se refere ao tipo de “criação”,
são viúvos; 53,84 são casados e 7,69 são divor- mencionando: “eu acho que é a educação que tem
ciados; 84,61% são de religião católica e 15,38% nos dias de hoje; hoje não se pode mais surrar, não
são de religião evangélica; 76,92% possuem mais se pode mais dar um exemplo; às vezes tem crian-
de 70 anos e 23,07% possuem menos de 70 anos, cinhas que você não pode ir à casa dos pais que
todos têm filhos. Todos os idosos da pesquisa são eles te mandam ‘calar a boca’, e os pais admitem
responsáveis pelos seus domicílios. Em relação à né.” Refere-se, ainda, às leis de proteção à crian-
moradia, dos treze idosos, 07 residem sozinhos e ça como potencializadoras de uma má educação:
06 residem com filhos, sendo que somente 01 idosa “mas vamos fazer o que, a lei é um pouco culpada
não é aposentada e não recebe nenhum outro tipo também, não pouco, bastante; as crianças já sabem

250 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


‘não me dê um tapa porque eu vou dar queixa’, e eles com desavenças e tudo, é melhor não
vão mesmo, pode ser criança mas eles vão, eles já ter, seria melhor. [Idoso 13, 94 anos].
sabem tudo”, complementa: “o mais importante é, (informações verbais).
não precisa surrar, é só não deixar fazer o que não
deve.” (informações verbais). A idosa 7 fala que a família é “tudo” e enfatiza “se
Os valores familiares e a religião também podem ser não tivesse filhos, eu seria aqui sozinha né.” A fa-
observados: “eu não era assim com a minha família, mília também é vista como um lugar de união, co-
sempre fiz o possível, mas, deixar eles responderem operação e paz: “família pra mim tem que ser uma
para os mais velhos e deixar toda liberdade, nunca família unida, se dar bem com o outro, paz.” [Idosa
fiz isso; porque a gente tem que ter autoridade; Je- 8]. Ainda dentro dessa visão, a idosa 5 refere-se que
sus mesmo diz na Bíblia que ‘umas varada’ numa “a família é tudo, uma pessoa dentro de casa que
criança, é o bem pra ela, pra ela não sofrer quando se comporta, pra mim é tudo, é metade da doença,
for mais velha né [...]” (informação verbal, idosa 5); não tem doença que supere sem a família; não tem
“eu nunca fiz nada pra minha mãe e nem pra minha jeito, a gente sempre foi uma família sincera, pobre,
sogra; é saber o tipo de expressão que tu vai dar pra mas sincera.”
aquela senhora, pra pode tu receber” (informação Algumas situações levam a refletir a respeito de que
verbal, idosa 8). relações afetivas foram e são possíveis nas famílias
A religião também é observada como suporte e na ausência de uma convivência mínima que garanta
segurança: “mas eu me agarro em Deus, eu sou a manutenção da identidade familiar e o sentimento
evangélica, eu tenho que acreditar, não importa a de pertencimento de seus membros (PENSO; MO-
religião, Deus é um só, o que me segura é isso aí.” RAIS, 2009), como visto no relato da idosa 5: “mãe
[Idosa 8, 65]; “sempre fui fiel a Deus.” [Idosa 10, 80] e pai não tem mais valor; na minha época e agora,
(informações verbais). com os pais é bem diferente; a gente ouve cada
coisa que é triste de ver; vão lá pro asilo, com 12
A falta de religiosidade ou um espírito ruim também filhos, isso é justo?” O idoso 9 também menciona o
são mencionados pelos idosos como determinantes poder das relações familiares no cuidado ao idoso,
da violência: “eu pra mim acho que tem uma coisa e refere que a violência contra a pessoa idosa “é
que ataca ela, um espírito ruim” [Idosa 8]. A idosa 7 uma vergonha” e comenta sobre uma Instituição de
(70 anos) refere: “eu nunca fui em outras igrejas [...] Longa Permanência do Município “os pais cuidam dos
é aqueles que não vão na igreja, porque eles não filhos a vida toda, e os filhos jogam lá, abandonam
conhecem a Deus.” (informações verbais). lá, é uma pouca vergonha mesmo.”
É possível verificar a indignação dos idosos em re- O olhar estigmatizador e negativo da velhice também
lação à violência intrafamiliar, quando mencionados são observados nos relatos dos idosos:
os cuidados que tiveram por seus entes em vida e no
leito de morte: “nós fizemos de tudo pra ele poder Como que eles vão dar apoio pros ‘véio’
viver né, tudo. Mas tem gente que maltrata né? Eu se eles não têm ensinamento nenhum?
acho ridículo.” (informação verbal, idosa 7). Eles têm nojo dos ‘véio’, os ‘véio’ es-
A família é um lugar de afeto e de cobranças e obri- torvam; e uma vez a gente amava os
gações, mas ambas as situações estão imiscuídas velhinhos, a gente respeitava, não por
e interferem mutuamente (FALEIROS, 2007). Nos obrigação, mas porque a gente era edu-
discursos dos idosos 1, 2, 4, 6, 9 e 13 aparece o cado, gostava mesmo; hoje os velho
sentimento de amor e de afeto quando questionados estorvam, e eu não entendo o porque,
sobre a família: porque é muita liberdade né, é muita
liberdade da juventude, das crianças,
Família é a melhor coisa que tem. [Ido- de tudo. (informação verbal, idosa 5).
so 1, 81 anos].
A família é do casal, a família é tudo. Pode-se observar que “para os idosos, o uso de dro-
[Idosa 2, 81 anos]; Família é tudo pra gas lícitas e ilícitas é outro fator para a ocorrência de
mim [...] [Idosa 4, 75 anos]; maus tratos aos idosos na família” (FALEIROS et al.,
Família significa tudo, tudo que é de 2009, p. 10), o que pode ser observado pela fala do
bom né? [Idosa 6, 61 anos]; Família é idoso 1 (81 anos), quando menciona: “Tá triste [...]”,
tudo. [Idoso 9, 69 anos]; e expressa que é a “maconha” que faz com que o
Família é tudo né, é um bloco de seres sujeito agrida e maltrate o idoso. A idosa 7 menciona
humanos na mesma casa. Uma família que a droga é um dos potencializadores da violência
e completa: “se eles não têm dinheiro, eles matam
unida, agora, se é uma família desunida
para pode comprar.” [Idosa 07]. O idoso 9 menciona

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 251


que o que desencadeia a violência “em primeiro lugar 11 (88 anos) coloca: “eu criei 11 filhos e dei a parte
é a droga” e afirma a “falta de caráter” dos jovens para todos eles.” Sua esposa, a idosa 10, argumenta
quando se trata de matar para comprar (informações “até que eles não tinham ganhado a parte deles, eles
verbais). Tortosa (2004, p. 46) complementa que os vinham sempre, depois que ganharam a parte deles,
sujeitos consumidores de drogas estão predispostos não ‘vimo’ mais ninguém.” (informações verbais).
a vitimizarem seus familiares com mais frequência
Além disso, existe a representação pelo desejo de
do que aqueles que não utilizam drogas.
que os idosos morram, o que pode ser observado
Além do uso de drogas, propriamente dito, a idosa 10 nas falas dos idosos 3 e 5:
referiu-se ao consumo de bebidas alcoólicas como um
dos fomentadores da violência. Enfatiza que quem a [...] eu acho que eles vão matar todo
consome dentro de sua própria casa é seu marido, mundo que..., os “véio”; Agora já tão
observando-se maus tratos vindos do mesmo para matando, os idosos tão sem comida,
com a idosa: “é a bebida. Tu pensa que a bebida não ganham comida, tem um monte de
faz bem pra uma pessoa?”, e complementa que “a pessoa idosa que não tem comida; Vai
bebida é uma desgraça na família, no mundo inteiro.
fazer o que, tem que aguentar. O que o
Acho que quando chega num certo ponto a bebida
idoso vai fazer contra o novato? [Idoso
‘cozinha os miolo’ e acaba ‘loquiando’, a pessoa fica
3, 73 anos].
loca, fica fora das ideia.” (informação verbal).
Eu tenho família aqui que conheço: ó
Chavez (2002 apud MINAYO, 2003) assinala que os “paiaça” tu não sabe de nada, porque
agressores físicos e emocionais dos idosos usam tu não morre “véia”, porque tu não en-
álcool e drogas em uma proporção três vezes mais tende nada. [Idosa 5, 77 anos]. (infor-
elevada do que os não abusadores. Dentro dessa mações verbais).
perspectiva, confirma-se a fala da idosa 10 “em pri-
meiro lugar ele ganha aposentadoria que nem eu é 10 Quanto às expressões de violência e morte, cons-
a 12 litrão de vinho por semana.” Em uma pesquisa tatou-se violência psicológica e física na relação
realizada por Anetzberger et al. (1994 apud MINAYO, conjugal entre um casal de idosos entrevistados.
2003) foi apontado que 50% dos abusadores entre- Durante a entrevista houve desejos verbalizados de
vistados tinham problemas com bebidas alcoólicas. morte por parte dos idosos: o idoso 11 refere “Deus
O idoso 13 e sua esposa, a idosa 12, comentam a tem que te matar [...]” e a idosa 10 argumenta: “[...]
falta de respeito e a violência urbana como preceitos ele pegou uma forma que ‘tava’ em cima do fogão
para a violência: “por falta da pessoa pensar um [...] me largo aquela forma na cabeça, me quebrou
pouco antes de ofender a pessoa idosa, trate com os óculos, tá, aí eu tinha a chaleira e larguei uma
carinho” [Idosa 12]; “até muitas vezes pela violência chaleirada de água nele, ‘ma’ era fria a água e não
urbana, todas essas coisas que tá acontecendo e fez nada” e complementa “não respeito nem as fi-
descarrega em cima dos ‘véio’.” [Idoso 13] (infor- lhas” (informações verbais), podendo ser observados
mações verbais). indícios de violência sexual enraizados dentro do
núcleo familiar.
Pode-se verificar a representação da violência na
fala dos idosos voltada para a violência financeira, Observa-se que filhos e parentes próximos afastam-
“às vezes é por causa de herança né, a maioria né.” -se de suas responsabilidades e para a violência
[Idosa 2, 81 anos]. Minayo (2005) refere a violência explícita apenas sugerem “os filhos diz assim ‘fica
financeira como uma relação de poder que implica no quarto, fica no quarto, fica fechada no quarto que
pressão sobre o outro para ceder dinheiro, seja por daí o pai não briga’ então, o que eu sou da vida?”
intermédio de chantagem, retenção de salário, pressão (informação verbal, idosa 10).
para vender a casa e doar a herança e apropriação Indícios de abandono e negligência também podem
de compras, entre outros. ser observados, em especial, na fala do idoso 3 (73
O olhar errôneo de que os idosos, por serem pessi- anos), quando menciona que os filhos não ajudam
mistas ou por limitarem sua herança para os filhos nada e “visitam ‘poco, poco, poco’, uma, duas ve-
são os culpados pelos maus-tratos e violência: “às zes por ano”, ainda coloca: “família é tudo, porque
vezes tem idosos que eles são assim (gestos) dão eles têm que ajudar”, podendo ser observada uma
só pra um e pro outro não dão [...] herança ou ser visão de que “a família deve ser um local de união
muito pessimista, não adianta ser pessimista, se tu e solidariedade, de confiança e afeto, apesar dos
é gente boa com os filhos, os filhos são gente boa conflitos que ela venha a vivenciar (FALEIROS et
com a gente.” (informação verbal, idosa 7). al., 2009, p. 16). Observou-se que o idoso 9, mesmo
referindo-se à ideologia que família é tudo, ficam
Ainda dentro desse contexto de herança, o idoso nítidos os indícios de abandono e negligência em

252 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


decorrência de sua residência estar suja, com restos feitas ante os maus-tratos diretamente pelos idosos,
de comida e terra espalhados, dando a impressão contudo, apenas uma idosa verbalizou a ocorrência
de não ser limpa há anos. da denúncia pelos vizinhos “mas aqui nós temos
vizinhos [...] ‘ma’ tem quem enxergava as coisas e
Verifica-se que a incapacidade de lidar com o pro-
denunciaram os filhos pra assistência social, dai a
cesso de envelhecimento por parte dos familiares
assistência social veio e agora eles têm que vir duas
encontra-se como outro potencializador da violência:
vezes por semana limpar a casa, que nem limpam,
né (risadas).” [Idosa 10].
Eu acho que não deveria existir violên-
cia né? Só que a pessoa idosa também Ficou claro que “para os idosos, são muitas as razões
faz as faltas né, faz os erros, quando para silenciar os maus-tratos intrafamiliares. Medo,
esquece alguma coisa, ou coloca al- amor pelos filhos, culpa, vergonha” (FALEIROS et
guma coisa no lugar depois não acha al., 2009, p. 18), “eu considero por ele [filho] né, não
quero assim, botar fogo na fogueira, se eu contar
e fica braba, fica reinando, “nois” aqui
tudo o que ela faz, que ela é grossa assim comigo,
entre “nois” às vezes a gente discute,
ele não vai gostar, então fico quieta.” [Idosa 12] (in-
mas nunca “ficamo” emburrado um com
formações verbais).
o outro, nunca aconteceu “deu” ser vio-
lentada, às vezes me xingam mais eles Percebe-se que os modelos de pensamento e de
tem razão de me xingar completa “eu representações acerca da violência para os idosos
não tenho razão, eles tem razão”. (in- são compartilhados (FALEIROS et al., 2009). Obser-
formação verbal, idosa 6, 61 anos). va-se que para os idosos o que determina a violência
é a falta de religiosidade, o uso de drogas lícitas e
Para Saraiva e Coutinho (2012, p. 115), “Frequente- ilícitas, a herança e a educação. As representações
mente, diversas expressões da violência e maus-tratos são fixadas em uma perspectiva negativa de morte,
contra a pessoa idosa são tratadas como uma forma de culpa e de que os idosos estorvam, partilhando
‘normal’ e ‘naturalizada’ de agir, ficando ocultas, nos um olhar de que o vitimizador tem as razões de
usos, nas ideias, nas crenças, nos costumes e nas provocar a violência e que esta é um processo nor-
relações entre as pessoas.” mal do envelhecimento, uma vez que os idosos são
culpados pelas “faltas” que fazem.
Confirmação de violência física também pôde ser
observada, especialmente, no relato da idosa 8,
quando conta que ela e o marido foram agredidos
fisicamente pela filha mais velha que reside junto com
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da pesquisa realizada foi possível ob-
o casal e menciona: “eu já passei por isso, ainda ‘to’ servar a propagação da violência intrafamiliar na
passando, melhorou um pouco, ‘ma’ que tá difícil tá.” sociedade e de como esta afeta diretamente a vida
É possível observar que a velhice é vista como uma e as representações sociais do idoso. As evidências
fase de descanso e paz por parte dos idosos, em de violência mascaradas nas falas das vítimas pu-
especial, pela idosa 8: “com essa idade precisamos deram ser observadas.
de descanso e respeito.” Afirmam Faleiros et al. (2009, Conclui-se que a violência intrafamiliar está articulada
p. 13) que a representação da velhice como um com todas as formas de violência, formando uma
tempo de tranquilidade foi perturbada pela violência: relação conflituosa, complexa e viciosa. As crenças
“eu precisaria morrer para não sofrer mais.” [idosa religiosas e os valores familiares estão enraizados e
10] (informações verbais). muito presentes nas falas dos idosos, sendo possível
A impossibilidade de fazer os afazeres domésticos, observar que para os idosos a família significa tudo,
de conseguir gerenciar as atividades de vida diárias confirmando a ideologia de que o ambiente familiar
de forma efetiva, sem esquecimentos ou constran- deve ser provedor de paz, amor, segurança e cui-
gimentos, tornam a velhice uma fase da vida vista dados, contudo, a violência que se propaga cessa
como uma doença por parte de alguns idosos: “a a esperança de que a velhice seria um tempo de
idade traz tanta consequência” [Idoso 13]; “já pensou paz, descanso e cuidados. A vergonha e a culpa
chegar nessa idade? Eu não esperava. Não pen- por pensarem serem os responsáveis pela prática
sava que a gente perdia assim, a memória” [Idosa da violência são escondidas pelos sentimentos mas-
12], completa “o que mais judia a gente é a velhice.” carados de dor e tristeza.
(informações verbais). A violência intrafamiliar é uma das questões mais
Diante dos discursos das violências veladas, fica- complexas (FALEIROS et al., 2009) de enfrentamen-
ram notórias as formas particulares para suportar to frente às políticas de proteção ao idoso, pois se
os maus-tratos. É visto que não existem denúncias encontra vinculada com crenças e valores familiares,

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 253


em uma perspectiva de proteção pelo vitimizador e nise. (Org.). As representações sociais. Rio de
normalização da violência na velhice pela vítima. Janeiro. Ed. UERJ, 2001.
Diante desses resultados, torna-se indispensável pre-
parar a sociedade que envelhece para que possam MAIA, Gabriela Felten da; CASTRO, Graciele
ter um envelhecimento saudável e com qualidade de Dotto; JORDÃO, Aline Bordin. Ampliando a Clí-
vida, tornando-se crucial conscientizar a juventude nica com Idosos Institucionalizados. Revista
quanto ao envelhecimento saudável e àquele que Mal Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 10, n.
provém de doenças e cuidados secundários, sen- 1, p. 193-210, mar. 2010.
sibilizando-os para a extinção da violência contra a
pessoa idosa, ademais, faz-se necessária a criação MINAYO, Maria Cecília. Violência contra Ido-
e melhoria das políticas públicas que visam à prote- sos. Cadernos de Saúde Pública, v. 19, n. 3,
ção, ao cuidado e à prevenção a todas as formas de p. 783-791, 2003.
violência praticadas contra a pessoa idosa.
MINAYO, Maria Cecília. Violência contra Ido-
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sabedoria. 2. ed. Brasília, DF: Secretaria Es-
pecial dos Direitos Humanos, 2005.
ALVES, C. M. L. Rompendo o silêncio: uma
breve análise sobre a violência familiar contra MOSCOVICI, Serge. Representações sociais.
idosos em São Luís, Maranhão. Revista Kairós Investigações em psicologia social. Petrópolis:
Gerontologia, São Paulo: PUC, v. 11, n. 2, p. Vozes, 2003.
81-94, 2008.
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BRASIL. Constituição (1988). Emenda Cons- [2017?]. Folder.
titucional n. 229, de 1988. Constituição da
República Federativa do Brasil. Brasília, DF, PENSO, Maria Aparecida; MORAIS, Ivalda
1988. Alves de. O Ciclo da Violência em Famílias
com Idosos. In: FALEIROS, Vicente de Paula.
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JODELET, Denise. Representações sociais:


um domínio em expansão. In: JODELET, De-

254 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
32

SAÚDE MENTAL DE ESTUDANTES DA ÁREA DA SAÚDE: UM


ENSAIO SOBRE CURRÍCULO INTEGRADO, HUMANIZAÇÃO
E RESILIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR

RESUMO
Esse ensaio pretende discutir sobre aspectos causadores de
Evely Najjar Capdeville
UFMG
estresse, ansiedade e sofrimento mental em estudantes da área
da saúde, das universidades brasileiras. Ressalta-se que esses
transtornos de origem psicológica, estão presentes durante a
formação em saúde e podem se estender para a vida profissional.
Estudos indicam que tal fenômeno tem sido associado a afastamentos,
doenças, fadiga, cansaço, dificuldades para adaptação ao meio
acadêmico, falta de tempo para dedicar ao lazer e a vida pessoal,
obsessão pelo trabalho técnico, excesso de cobrança pessoal,
frustrações relacionadas ao curso e dificuldades inerentes à relação
professor-aluno profissional-paciente. Alguns fatores psicossociais
relevantes são a transição do ensino médio para o ensino superior,
a maior mobilidade entre cidades acompanhada do afastamento da
rede de proteção da família, Nesse trabalho, propomos estratégias de
enfrentamento do fenômeno, a partir de três eixos de ação, a saber:
1- reflexão sobre o currículo integrado; 2- sensibilização e capacitação
para a humanização das relações professor-aluno e profissional de
saúde-população; 3- ações de promoção e prevenção em saúde
mental destinadas ao desenvolvimento de autoconhecimento e
resiliência em estudantes. Como resultado espera-se a indissociação
entre formação e praxis em saúde, a abordagem crítica na formação
acadêmica, o fomento às relações que promovam dialogicidade,
humanização e escuta qualificada, no âmbito coletivo-institucional e
a necessidade de aprimorar o olhar para questões que ultrapassam
os limites das singularidades dos sujeitos e se instalam no âmbito
ampliado da formação em saúde.

Palavras-chave: Saúde do Estudante; Formação Profissional

em Saúde; Saúde Mental; Humanização; Currículo.


10.37885/200400122
1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, um número cada vez


às habilidades motoras e cognitivas, que interferem
na atenção, codificação de informações, memória,
compreensão e raciocínio (6). A ansiedade e a de-
maior de doenças emocionais tem acometido estu- pressão podem ser geradas por fatores diversos,
dantes das universidades brasileiras, acompanhado que incluem a mudança brusca no estilo de vida e
de afastamentos por doenças geradas por estresse, a exposição a um determinado ambiente que leva
ansiedade e sofrimento mental. O absenteísmo, as a pessoa a sentir angústia, etc.
reprovações, as ausências nas aulas por problemas
Em relação aos cursos de graduação da área da
emocionais vem adicionando de forma assustadora
saúde, encontramos um panorama semelhante ao
as estatísticas das Instituições de Ensino.
descrito pelos dados da população brasileira. Estudos
Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS apontam a presença de ansiedade e estresse em
(1), 9,3% dos brasileiros, ou seja, 18,6 milhões de estudantes de graduação na área de saúde, com
pessoas sofrem de algum tipo de transtorno de an- forte tendência a aumentar, ao longo do curso, e que
siedade no país, considerando dados de 2015. Essa podem se estender para a vida profissional.
é a maior incidência de transtornos de ansiedade
A International Federation of Medical Students’ As-
no mundo.
sociations of Brazil - IFMSA Brazil (7) ressalta que
Dados do Instituto de Psicologia e Controle Do Stress dentre os sintomas mais presentes durante a formação
– IPCS (2), a partir de uma pesquisa realizada com na saúde estão fadiga, cansaço, dificuldades para
2.195 brasileiros, identificou 34,26% de pessoas que adaptação ao meio acadêmico, falta de tempo para
relatam estar vivenciando estresse extremo e 37,79% dedicar ao lazer e a vida pessoal, obsessão pelo
consideram que o estresse está aumentando. Além trabalho técnico, excesso de cobrança pessoal, frus-
disso, os entrevistados afirmaram que 55,60% deles trações relacionadas ao curso e dificuldades inerentes
sofrem ou já sofreram de ansiedade, 23,20% tem ou à relação professor-aluno e profissional-paciente.
tiveram o diagnóstico de depressão e 10,37% tem ou
Outros estudos apontam, ainda, que os alunos de
tiveram transtorno do pânico. Ressalta-se que todos
graduação da área da saúde estão apresentando
esses transtornos são de origem psicológica. Outras
estresse e ansiedade durante o desenvolvimento dos
doenças psicossomáticas como a gastrite (32,64%),
cursos, em decorrência, principalmente, da necessi-
asma ou outra doença respiratória (20,45%) também
dade de mudança de hábitos para se adaptarem às
surgiram associadas ao estresse.
demandas da graduação, desde o primeiro semestre
Assim, a década atual foi considerada a década da (8,4). Muitos fatores podem colaborar para a presença
ansiedade, por irradiar a alta demanda de casos de destes sintomas entre os estudantes, dentre eles a
ansiedade e estresse (3). O estresse pode ser defi- transição do ensino médio para o ensino superior,
nido como a junção de respostas físicas e mentais o processo de adaptação a novas metodologias e
provenientes de estímulos estressores que favorecem demandas do ensino superior e as fortes expectativas
o desgaste físico e mental do indivíduo, causado relacionadas ao futuro profissional.
por esse processo. Sempre que os sintomas de es-
No ensino médio, os estudantes vivenciam, muitas
tresse persistem por um longo intervalo de tempo,
vezes, uma metodologia voltada mais para o ensino
podem correr sentimentos ligados à ansiedade e a
e a avaliação tradicional e no ensino superior encon-
depressão. Dessa forma os mecanismos de defesa
tram metodologias ativas e avaliação voltada para
passam a não responder de uma forma adequada,
estas metodologias (9). A passagem do ensino médio
aumentando assim a possibilidade do surgimento
para o ensino superior na área da saúde implica em
de doenças, incluindo as psicossomáticas.
uma mudança significativa de um paradigma edu-
A ansiedade, por sua vez, pode ser caracterizada cativo bancário, centrado nos conteúdos a serem
por uma apreensão que surge em decorrência de memorizados, para um paradigma progressista, como
eventos considerados ameaçadores. Está relaciona- afirma Freire (10) que convoca os estudantes para
da a estados psicológicos vinculados a adequação uma dimensão ativa, consciente e transformadora
social e ao sucesso competitivo (4). No estado de frente ao mundo.
ansiedade, o indivíduo tende a supervalorizar o grau
Vale ressaltar também, que com as mudanças no
e a probabilidade de perigo e a subestimar a sua
sistema de entrada no ensino superior, no Brasil,
capacidade de enfrentamento àquela situação (5).
há uma maior mobilidade entre cidades e vamos
A ansiedade está associada a sintomas como taqui-
encontrar uma maior incidência de estudantes pro-
cardia, tontura, dor de cabeça, dores musculares,
venientes de outras cidades e até de outros estados,
formigamento, suor, além de insônia, tensão, irrita-
que precisam se estabelecer longe da família e ficam
bilidade e angústia. Níveis elevados de ansiedade
sem uma rede de proteção e pertencimento.
podem causar autopercepções negativas relacionadas

256 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Há, também, uma grande parcela de estudantes Muitos relatam sobrecarga nas atividades acadêmi-
ingressantes no ensino superior, provenientes de cas associada a sinais de ansiedade, estresse e até
escolas que desenvolvem metodologias tradicionais depressão. Alguns relatam problemas mais graves
de ensino-aprendizagem. Dessa forma, os discentes como transtorno do pânico e autolesões. Somam-
são impactados emocionalmente e cognitivamente -se a isso problemas familiares e interpessoais que
com as demandas requeridas por um novo paradigma enfrentam cotidianamente.
educativo, pois a matriz sustentadora de uma prática
Moreira, Vasconcellos e Heath (12) ressaltam a ne-
pedagógica progressista compreende as relações
cessidade de implementar estratégias institucionais
humanas mediatizadas pelo mundo e os outros, em
à formação, para que os estudantes desenvolvam
uma perspectiva histórica e crítica. Essa matriz de
habilidades de autocuidado e consequentemente maior
formação com ênfase problematizadora desafia os
sensibilização para o cuidado do outro. Para fazer
educandos - futuros profissionais de saúde, através
frente a esses desafios, tem se buscado melhoria
de situações existenciais concretas, e, assim, ao
dos processos e metodologias educativas, aumento
direcionarem seu olhar para elas, provoca-os para
da satisfação e qualidade de vida dos estudantes,
a ação e a responsabilização em saúde.
minimização dos danos do estresse, ansiedade e so-
Encontramos, ainda, no ensino superior, uma com- frimento mental, aumento da efetividade educacional.
plexidade dos conteúdos das unidades curriculares
Segundo o Forsa-Cobem - Fórum de Serviços de
e a longa jornada diária de atividades acadêmicas,
Apoio do Congresso de Educação Médica, algumas
associadas a fatores psicossociais que os jovens
Instituições no país têm implementado os chamados
enfrentam, constituindo grande desafio que precisa
Programas de qualidade de vida educacional, por
ser superado pelos estudantes e são fatores interve-
entender que o estudante é o grande foco da orga-
nientes para o surgimento de ansiedade e estresse
nização de ensino. Vários projetos têm sido execu-
nos discentes. Especialmente, para o estudante da
tados, com ênfases em aspectos e atores diferentes
área da saúde atingir os objetivos pessoais e atende
– estudantes, professores, família.
às exigências da formação, precisa estar prepara-
do nas dimensões física, social e psicológica para Diante desse cenário, perguntamos: como promover
o enfrentamento das situações adversas, além de saúde mental e prevenir ansiedade, stress e sofrimento
necessitar de um aparato estrutural dentro e fora da mental em estudantes do ensino superior? Como os
universidade, que muitas vezes não tem. docentes podem contribuir nesse processo? E qual
é o alcance da responsabilidade das Instituições de
E, não somente aspectos do ambiente físico ou ques-
Ensino? É possível favorecer o desenvolvimento de
tões relacionadas ao ensino devem fazer parte das
habilidades sociais e interpessoais para o enfrenta-
preocupações educativas das instituições, mas também
mento desses desafios postos para a formação na
há necessidade de proporcionar aos estudantes uma
área de saúde? Como fazer isso?
rede de apoio e espaço de discussões, vivências e
preparação emocional para o desenvolvimento de A proposta desse ensaio é apresentar algumas pos-
habilidades pessoais, sociais e interpessoais, ne- sibilidades de intervenção institucional, para o desen-
cessárias para a manutenção da qualidade física e volvimento de um paradigma educativo fundamentado
psíquica de vida. nos processos de humanização, autoconhecimento
e resiliência dos estudantes da área de saúde, na
Outro fator que pode somar aos demais fatores já
formação superior. Diante disso, vimos propor uti-
expostos é a competência de desempenho prático dos
lizar ferramentas psicopedagógicas e psicossocias
estudantes, que cada vez mais cedo eles realizam
buscando instrumentalizar os discentes, docentes e
atendimentos aos pacientes, sob supervisão, em
Instituições de Ensino a lidarem com essas questões
diferentes contextos de assistência, desde hospitais
fundamentais, de forma a favorecer a criação de
até ambulatórios. Além disto, esses estudantes estão
ações preventivas e a redes de proteção psicossocial
constantemente em contato com a dor, sofrimento
e psicoafetiva, no âmbito institucional.
emocional, lidando com a intimidade corporal e emo-
cional, atendendo pacientes gravemente doentes, Nessa perspectiva, vimos propor três eixos de ação,
em estado terminal ou enfrentado a morte - aspectos a saber: 1- reflexão sobre o currículo integrado; 2-
poucos explorados durante sua formação. sensibilização e capacitação para a humanização
das relações professor-aluno e profissional de saú-
Segundo Capdeville (11), a presença de estresse,
de-população; 3- ações de promoção e prevenção
ansiedade e sofrimento mental nos alunos pode ser
em saúde mental destinadas ao desenvolvimento
identificada através de sintomas, tais como: crises
de autoconhecimento e resiliência em estudantes.
de choro, desmaios (síncopes), desinteresse, apatia,
A seguir desenvolveremos esses eixos.
cansaço, relatos de insônia, absenteísmo, baixo de-
sempenho acadêmico por parte dos discentes, etc.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 257


2. DESENVOLVIMENTO Em vista desses elementos, esse trabalho vem res-
saltar o papel das Instituições de Ensino, que pos-
suem cursos de graduação na área da saúde, como
formadoras de sujeitos que podem contribuir para a
2.1 REFLEXÃO SOBRE O CURRÍ- transformação do cenário atual de uma sociedade
CULO INTEGRADO “doente” para uma sociedade “saudável”. Os egres-
sos da formação em saúde devem ser capazes de
O número de profissionais de saúde formados, no construir o próprio conhecimento, no sentido de não
Brasil, vem crescendo a cada ano. Segundo dados reproduzir e sim transformar a realidade, orienta-
publicados pela pesquisa Demografia Médica 2018 dos pelas dimensões biopsicossociais do processo
(13), o crescimento da população médica, nas últi- saúde-doença.
mas cinco décadas, aumentou 7,7 vezes. Enquanto
isso, a população brasileira aumentou 2,2 vezes. Para romper tais desafios fazem-se necessárias
Entretanto, esse salto não trouxe os benefícios que a mudanças curriculares e propostas político-peda-
sociedade espera em termos de melhoria do acesso gógicas que possam dar conta de tais conteúdos,
e da assistência em saúde, pois não se trata ape- com incorporação de docentes que trabalham em
nas de aumentar o número de profissionais, mas uma perspectiva ativa e com estratégias educacio-
sim de formar profissionais capacitados para atuar nais significativas. Está posto, portanto, o desafio
priorizando a saúde e não a doença. de incorporar as orientações propostas nas diretri-
zes curriculares à formação na área da saúde. As
Vale ressaltar que as revisões curriculares dos Cursos, Instituições formadoras precisam organizar sabe-
realizadas recentemente, por entender a graduação res e práticas da formação no sentido do trabalho
como um dos estágios do processo formativo, rea- interprofissional, que além de enunciado deve ser
firmam a necessidade na mudança do paradigma materializado nas práticas formativas (14).
biomédico, curativista e a-histórico da formação,
historicamente predominante. Nessa direção, pre-
conizam a urgência em superar práticas educacionais
2.2 SENSIBILIZAÇÃO E CAPACITA-
fragmentadas, tecnicistas e descontextualizadas e
promover a qualificação do futuro profissional de
ÇÃO PARA A HUMANIZAÇÃO DAS
saúde no paradigma coletivista, histórico e social
RELAÇÕES PROFESSOR - ALUNO E
focado em ações de promoção, prevenção, recu- O PROFISSIONAL DE SAÚDE - POPU-
peração e reabilitação da saúde, na perspectiva da LAÇÃO
integralidade da assistência (14).
Como a formação pode preparar para uma praxis
As diretrizes curriculares preconizadas pelo Minis- humanizada e humanizadora? A humanização e a
tério da Saúde, para a formação na área de saúde, busca da dialogicidade nas relações são premissas
propõem o perfil de um profissional generalista, com orientadoras para a formação de profissionais na área
visão de mundo humanista, crítica e reflexiva, ativo, da saúde e para uma praxis crítica. O processo de
comprometido com a prática do diálogo com a po- formação precisa, também, ser humanizado. Nessa
pulação e que correlaciona o conceito ampliado de medida, os currículos de graduação em saúde de-
saúde a uma mudança de perspectiva do sistema vem incorporar não apenas habilidades de domínio
(15). Formar profissionais de saúde para a melhoria cognitivo e técnico, mas também, habilidades sociais,
da qualidade de vida das pessoas é o grande desafio relacionais e atitudinais que serão essenciais para os
da realidade brasileira, pois ainda faz-se necessária saberes e práticas do futuro profissional de saúde.
essa mudança em uma perspectiva coletivista.
Pensar um currículo humanizado na área da saúde
É necessário considerar o campo da formação em exige o exercício de prerrogativas epistêmicas fun-
saúde a partir da complexidade que lhe é própria, damentais, que valem tanto para as relações profes-
tendo em vista a multiplicidade dos territórios, co- sor-aluno quanto para as relações entre o profissional
munidades e necessidades de saúde da população. de saúde e a população. Para cumprir tal propósito, é
As simplificações e generalizações no campo da necessário considerar algumas condições, tais como:
educação e da saúde tendem a incorrer em análises tomar o ser humano em sua totalidade, reconhecer
reducionistas e mecanicistas, tanto no processo de os aspectos subjetivos, conscientes, intencionais,
construção do conhecimento, quanto em relação às incorporar a dimensão social, bem como tratar a
ações. A complexidade da realidade histórica e so- população em uma perspectiva progressista, que
cial da saúde no Brasil se faz em interface com os reconhece o ser humano como capaz de auto-realiza-
sujeitos–usuários dos serviços e exige uma prática ção, liberdade, criatividade, afeto, responsabilização
do profissional de saúde ajustada a esse contexto. e potencialidade.
A formação em saúde exige uma pedagogia cons-

258 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


ciente da dinâmica das relações que se constroem de podem e devem estar atentas aos discentes e
entre os diversos protagonistas e precisa superar a contribuir para promover saúde e prevenir doenças
contradição educador-educando, bem como a hierar- associadas a fatores emocionais, tais como ansie-
quia histórica entre as profissões da saúde, a partir dade, sofrimento mental e estresse. Porém, como
da dialogicidade. O fenômeno da formação implica promover a saúde mental de estudantes de cursos da
em uma variedade de processos e multifatores que área da saúde? É relevante destacar a necessidade
interferem favorecendo ou dificultando os aprendiza- de um olhar atento em relação a vulnerabilidades
dos mútuos. Esses fatores precisam ser olhados com psicossociais e individuais que vem emergindo na
lentes ampliadas de forma a evitar fragmentações e sociedade contemporânea e a possibilidade dessas
inviesamentos que colocam a responsabilidade pelo vulnerabilidades serem detectadas no contexto es-
aprendizado em apenas um dos pólos do processo, colar, para um trabalho coletivo e em rede.
a saber – o estudante ou o professor, o técnico ou
De uma maneira geral, as questões pedagógicas
o especialista, etc (14).
se misturam com questões de natureza emocional
A praxis humanizada em saúde exige a conexão e relacional dos estudantes. Conflitos com profes-
com a materialidade do campo, do tempo, do espaço sor, colegas, turma, ou mesmo com a Instituição, e
e dos sujeitos que se constituem em um contexto também consigo mesmos, em geral, estão associa-
permanentemente mutável. E, nessa linha de dia- dos à ausência ou a não participação nas aulas e
logicidade, praticar uma concepção de currículo e atividades, dificuldades em geral, inadequação do
de processos educativos nas Instituições de Ensino método de estudo, reprovações ou diminuição de
Superior em saúde significa trabalhar em uma pers- produtividade acadêmica. E, também, alguns conflitos
pectiva emancipatória e crítica, em todos os âmbitos identificados em relação ao professor sinalizam para
das relações humanas (11). a necessidade de investigar mais profundamente
as suas origens e fazer uma análise cuidadosa de
Isso implica a valorização e a construção do conhe-
situações recorrentes.
cimento a partir da leitura do mundo, respeitando a
territorialidade, a aprendizagem significativa, propondo Algumas vezes, a escuta de cada caso, seja de docente
significados e sentidos que direcionem para uma ou discente, evidencia outros motivos subjacentes,
prática de saúde que gere qualidade de vida para como por exemplo, no caso do ensino superior: conflitos
as pessoas. E, isso nos leva a considerar, também, relacionados à escolha profissional, conflitos pessoais
a necessidade de se criar estratégias curriculares e familiares, problemas de saúde que demandam
que oportunizem a existência de um diálogo inter- afastamentos prolongados, questões pessoais que
profissional horizontal e o diálogo em saúde, com demandam acompanhamento psicoterápico e/ou me-
a população (14). dicamentoso, dificuldades em acompanhar o curso,
reconhecimento da existência de um desconforto em
As relações entre o profissional de saúde e os usuários
relação a si mesmo e sua habilidade em conduzir
deve se pautar pela capacidade de escuta sensível. E
os desafios que se apresentam durante o curso etc.
essa escuta é obviamente algo que vai mais além da
possibilidade auditiva de cada um. Escutar significa a No âmbito das ações Institucionais, recomenda-se
disponibilidade permanente por parte do sujeito que uma equipe multiprofissional capacitada para conduzir
escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do e fomentar as ações de promoção e prevenção em
outro, às diferenças e aos saberes do outro. saúde mental. Dentre as possibilidades de ação,
deve-se estimular uma cultura de hábitos saudáveis,
Há muitos desafios a serem enfrentados no exercício
qualidade de vida e cultivo do equilíbrio entre ativi-
das profissões da área da saúde. Há necessidade
dades acadêmicas e de lazer entre os estudantes.
de inventar e reinventar os processos educativos,
É importante trabalhar na construção de projetos
as relações dialógicas, as didáticas e metodolo-
que valorizem o protagonismo estudantil, as poten-
gias e as práticas com a mesma agilidade em que
cialidades e talentos dos estudantes, direcionando
muda o mundo, a relação homem-mundo, as rela-
para alternativas culturais e artísticas, que envolvam
ções entre humanos, a relação entre as diversas
também a família e que favoreçam a interação social
categorias profissionais da área da saúde (16, 17).
e os compartilhamentos entre os estudantes.
2.3 AÇÕES DE PROMOÇÃO E PRE- Salientamos que a inserção e o acompanhamento
VENÇÃO EM SAÚDE MENTAL DESTI- da (o) Psicóloga (o) Escolar e Educacional, nas Ins-
NADAS AO DESENVOLVIMENTO DO tituições de Ensino, contribui para identificar, preve-
AUTOCONHECIMENTO E RESILIÊNCIA nir e intervir de forma coletiva, sistêmica e também
EM ESTUDANTES individual, com estudantes. Destacamos, ainda, a
relevância de tomarmos a inclusão, enquanto desafio
necessário, bem como o cuidado com o desenvolvi-
As Instituições de Ensino Superior na área da saú-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 259


mento de laços sociais, como fator potencializador se autoafetarem mutuamente.
do sentimento de pertencimento, entre jovens.
Tal como os átomos e seus movimentos, conectados
Dentre algumas frentes de atuação destacamos: e afetando uns aos outros, propomos a indissociação
entre formação e praxis em saúde, como um modus
1. Colaborar para a compreensão e para a mudança
operandi praticado pelas Instituições de Ensino em
atitudinal, nas relações interpessoais e nos proces-
saúde.
sos intrapessoais, de educadores e educandos, no
processo de ensino aprendizagem. Nessa perspectiva, em um movimento de declinação,
agir de forma a afetar positivamente esses sujei-
2. Cultivar o olhar reflexivo sobre o processo de
tos, a partir da oferta de caminhos curriculares que
ensino-aprendizagem, a partir de um movimento
favoreçam a formação e a praxis sustentada pelo
contínuo de invenção e reinvenção de novas for-
paradigma coletivista, histórico e social, relações
mas de perceber e resolver conflitos, bem como a
que promovam dialogicidade, humanização e escuta
interlocução entre as dimensões coletiva e individual.
qualificada, no âmbito coletivo-institucional.
3. Estimular a valorização e a capacitação perma-
E o movimento de declinação/escuta sobre a saúde
nente dos educadores, de forma a contribuir para a
mental de estudantes da área da saúde, reporta à
melhoria das condições de socialização, formação
necessidade de refletir sobre os fenômenos causa-
e humanização nas relações.
dores de sofrimento, sentimentos de ansiedade e/
4. Projetos desenvolvidos no âmbito coletivo, tais ou depressão, estresse, autolesionismo, bem como
como oferta de oficinas para grupos de estudantes, conflitos diversos e dificuldades que os estudantes
de forma a favorecer o acolhimento e o sentimento vêm enfrentando.
de pertencimento do estudante, e, assim, contribuir
Mas, ainda, e, sobretudo, a partir do cuidado com a
para estimular autoconhecimento, autocontrole, re-
qualidade das relações entre os diversos segmentos
siliência e autoestima na formação acadêmica.
no contexto institucional. Há necessidade de ações
A promoção de ações preventivas, a oferta de ativi- preventivas envolvendo todos os atores do processo
dades culturais, o desenvolvimento de autonomia, educativo: alunos, docentes, pais e a comunidade
segurança, autovalorização e flexibilidade são as- escolar em geral. Essas ações devem ter agenda
pectos psicológicos a serem fortalecidos e favore- permanente no calendário institucional e constituir
cem a saúde dos diversos atores nas Instituições um cardápio de ofertas contínuas aos estudantes.
Formadoras. Outro importante desafio é a reflexão
A promoção de ações preventivas e a oferta de ati-
sobre as tensões vividas na atividade docente, o
vidades culturais para os estudantes de cursos da
adoecimento de professores, as longas jornadas de
área da saúde compõem um escopo de alternativas
trabalho e a valorização da profissão. É necessário
formativas e pedagógicas para desenvolvimento pro-
ampliar a sensibilidade e a percepção de todos em
fissional e humanização no percurso formativo e nas
relação ao sofrimento psíquico dos estudantes e
relações institucionais.
outras questões emergentes, tais como autolesão
e ideação suicida. A prevenção primária se faz necessária a partir da
identificação e a possível modificação de fatores

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
estressores, impedindo que sintomas já manifestos
se tornem patológicos, tão logo os estudantes co-
mecem a manifestá-los.
Esse ensaio vem alertar sobre a necessidade
de uma abordagem crítica em relação à formação A prevenção secundária, através da identificação
acadêmica, às relações entre os diversos atores precoce de transtornos emocionais e psiquiátricos já
envolvidos no processo formativo e reafirma a ne- instalados, alerta para a necessidade de uma pronta
cessidade de aprimorar o olhar para questões que intervenção terapêutica visando impedir a progressão
ultrapassam os limites da singularidade dos sujeitos dos sintomas.
e se instalam no âmbito ampliado da formação em É necessário cuidar também da prevenção terciária,
saúde. através de acolhimento, apoio e acompanhamento
Como nos ensina Freire (10), é fundamental diminuir dos processos de ensino-aprendizagem. E, princi-
a distância entre o que se diz e o que se faz. Nesse palmente, trabalhando na construção de projetos
sentido, entendemos a formação deve se declinar que valorizem as potencialidades e talentos dos es-
sobre os estudantes/futuros profissionais de saúde. tudantes, direcionando para alternativas culturais e
O termo em latim clinámen, originariamente usado artísticas, que envolvam também a família.
pelo filósofo atomista Epicuro, se refere ao movi- O protagonismo estudantil e a parceria com diretórios
mento imprevisível e a capacidade dos átomos em

260 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


acadêmicos é fundamental para a implementação (7) International Federation of Medical Stu-
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Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 261


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262 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
33

TRABALHO HOME-OFFICE: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES À


SUBJETIVIDADE DO TRABALHADOR

RESUMO
Através da revolução tecnológica ocorrida nos últimos anos, o mundo
Tamara Natácia Mulari
Coneglian tem passado por muitas mudanças. A tecnologia propiciou relações
UEM mais “flexíveis”, encurtou a distância e o tempo, abrindo espaço para
o trabalho à distância de qualquer parte do mundo, como é o caso do
Guilherme Elias da Silva teletrabalho, inclusive da sua própria casa, o chamado teletrabalho
UEM home-office. Todas essas mudanças no jeito de se trabalhar exigem
adaptações dos trabalhadores, e por esse motivo o tema se torna
tão importante, pois é necessário entender quais são as implicações
desse novo jeito de se trabalhar para a subjetividade do trabalhador.
Dessa forma, esse capitulo terá o objetivo de fazer uma breve
discussão de quais são as possíveis consequências do modelo
de teletrabalho home-office para a subjetividade do trabalhador e
consequentemente para sua saúde mental. Essa discussão será feita
à luz da psicossociologia, que se preocupa em investigar os processos
de engendramento do psíquico e do social em uma perspectiva
necessariamente pluridisciplinar, enfatizando os processos criativos e
construtivos do sujeito, sua capacidade de mobilização, de agir frente
as situações de trabalho. O texto também questiona se as condições
desse trabalho está contribuindo para a formação de um trabalhador
com a subjetividade fortalecida, capaz de ser um potente agente de
transformação e capaz de construir sentido para o seu fazer; ou se
em vez disso, se as condições do trabalho home-office, podem estar
contribuindo para um fazer individualista e solitário, visto que é um
trabalho feito a partir de casa (distante da organização) e tem suas
relações interpessoais mediadas pela tecnologia.

Palavras-chave: Psicossociologia; Trabalho; Home-Office.

10.37885/200400154
1. INTRODUÇÃO pois carregava em si a possibilidade
de flexibilizar o local e o tempo do tra-
Através do advento da globalização, são per- balho, com reflexos na remuneração e
ceptíveis na atualidade, novas configurações sociais, nas condições contratuais.
econômicas e tecnológicas, as quais fazem emergir
profundas modificações no mundo trabalho. Os traba- Dentro do Teletrabalho, uma das novas formas fle-
lhadores e as organizações, por consequência, estão xíveis de trabalho - qual vem ganhando cada mais
se adaptando aos novos modos de desenvolvimento visibilidade - que surgiu na década de 70 do último
de tarefas e atividades, conforme esses surgem e se século é o home-office¹ (trabalho em domicílio). A
estabelecem. Desse modo, tornam a flexibilidade e modalidade de trabalho home-office se caracteri-
a capacidade de suportar as mudanças frequentes za pela inserção em um espaço, sem tamanho ou
nos modos de gestão, necessárias à sobrevivência propriedades definidas, e localizado na residência
profissional (BARUCH, 2001; ROSA, 2010 citado do trabalhador, sendo muito comum o uso de tec-
por RAFALSKI; ANDRADE, 2015). nologias informacionais para a realização das ati-
vidades (ELLISON, 1999; LIM & TEO, 2000, citado
Essas tendências, somadas ao avanço tecnológico, por RAFALSKI; ANDRADE, 2015).
são propensas para a implantação de um novo modelo
de trabalho, chamado teletrabalho. O teletrabalho, O sociólogo Bauman (2001), em seu livro Moderni-
no que tange à flexibilização do jeito de se trabalhar, dade Líquida, menciona que “não importa mais onde
acompanhado de uma forma de controle do próprio está quem dá a ordem – a diferença entre ‘próximo’
trabalho, permite relações mais diretas e flexíveis e ‘distante’... está a ponto de desaparecer” (p. 16).
entre os trabalhadores e também romper os limites Quando a distância percorrida numa unidade de
da distância. tempo passou a depender da tecnologia, de meios
artificiais de transportes, os limites à velocidade de
Existem variadas definições para o teletrabalho, mais movimento existentes, conseguiriam, ser transgre-
é importante observar como permanece, para vários didos, “apenas o céu era agora o limite, e a moder-
autores, a ideia de que o uso das novas tecnologias de nidade era um esforço continuo, rápido e irrefreável
comunicação e a flexibilidade configuram o teletrabalho. para alcançá-lo” (p. 16). Como consequência disso,
Trope (1999) diz que o teletrabalho caracteriza-se Quadrado (2006) ainda complementa que a globali-
pela “utilização de ferramentas de telecomunicações zação, reforçada pela ampliação do uso da internet,
para receber e enviar o trabalho” (p. 13). enfraquece as fronteiras e as formas nacionais de
O teletrabalho surge então, como uma nova forma identidade cultural.
de trabalho flexível que se originou da introdução do Para Mendonça (2010), a nomenclatura do homeoffice
instrumental da informática e da telecomunicação é exclusividade do uso do local residencial, mesmo que
[telemática] no processo produtivo das organizações: partilhado por outros moradores. Explicita, também,
o computador em rede. A evolução da tecnologia da que as atividades possuem horários estabelecidos
informação e da comunicação e a crescente afir- de forma mais flexível e são de cunho profissional,
mação e difusão da internet, aliados à estratégia sejam elas de empresários/autônomos ou ligadas a
empresarial de descentralização e externalização uma organização privada, como, por exemplo, de
produtiva de trabalho, mudaram a geografia laboral prestação de serviços. Para fins de definição deste
(TROPE, 1999). estudo, trabalhar em homeoffice se caracteriza por
Nas palavras de Jardim (2003, p. 38): desempenhar as atividades profissionais no mesmo
ambiente em que se reside.
(...) o prefixo ‘tele’ está sendo entendi- O trabalho home-office tem sido propagado pelas
do como telecomunicações, mas quer organizações e pela mídia como meio de trabalho
dizer ‘distância’; por esse motivo, a eficiente e viável. É considerado um modelo adaptado
primeira acepção do teletrabalho é o aos avanços tecnológicos e equivalentes quanto aos
trabalho a distância, para depois ser ganhos e às perdas de empregados e empregadores,
acoplada a expressão “uso da conexão um modo de trabalho a ser amplamente realizado ‘no
informática na execução do trabalho, futuro’ (RASMUSSEN & CORBETT, 2008; WARD &
substituindo o contato físico com os co- SHABBA, 2001 citado por RAFALSKI; ANDRADE,
legas pelo contato virtual”. (...) Quando 2015).
se pensa na desconcentração da ativi- No Brasil, uma pesquisa realizada em 2016 pela SAP
dade assalariada deve-se ter em mente Consultoria em RH¹ que teve o apoio institucional
que o teletrabalho atendeu a esse pa- da SOBRATT (Sociedade Brasileira de Teletrabalho
radigma [da deslocalização produtiva], e Teleatividades) e o patrocínio da GCONTT (Gru-

264 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


po de Consultoria em Teletrabalho), revelou alguns tivo, que ele esteja disponível a qualquer momento,
dados sobre o Teletrabalho. A pesquisa foi feita com que assuma responsabilidades e arque com os riscos
325 empresas de diferentes segmentos e portes, de de seu trabalho. Flexível o suficiente para contornar
diversas regiões do país. O interesse por parte das a instabilidade atual do sistema econômico e supe-
empresas também aumentou, o que reflete em um rar-se em frequentes situações de adversidade, ele
crescimento de 47% no número de participantes, pode ser comparado, aqui, como um super-humano
em relação à primeira edição. - aquele que faz sempre melhor e mais rápido.
A pesquisa apresentou três movimentos distintos de Gaulejac (2007) considera que nesse novo modelo
crescimento da prática em comparação ao estudo empresarial de organização imposta à sociedade, e
de 2014: 50% de aumento no número de empresas com foco (intangível) na informação, há a substituição
que estão implantando a prática, 15% de aumen- dos antigos padrões das fábricas - as forças produtivas
to no número de empresas que estão estudando já não estão no corpo, mas sim na intangibilidade da
a implantação da prática e de 28% de aumento na mente e subjetividade dos trabalhadores. A subjeti-
formalização da prática. Junto a esse movimento, vidade passa a ser cerceada pelos novos padrões
foi possível identificar o interesse das empresas em empresariais; os afetos, desejos e ações do sujeito
obter informações sobre esse modelo, somente o ficam todos à mercê dos interesses econômicos e
evento de lançamento da segunda edição do estudo organizacionais.
contou com a participação de mais de 80 empresas
A sociedade atual é marcada por um desenvolvimento
(SOBRATT, 2016).
paradoxal, na qual a riqueza e a pobreza aumentam,
Ainda sobre a pesquisa, foi possível identificar que assim como o conhecimento e a ignorância, a proteção
dentre as diversas formas do Teletrabalho no Brasil, e a insegurança. Além disso, há uma falta de sentido
68% de empresas são praticantes da modalidade generalizada nas tarefas realizadas pelas pessoas,
home-office; nos Estados Unidos e Canadá esse somada a uma condução perversa no processo de
número chega a 85%; França e Alemanha com 77%. trabalho, assinalado pela competitividade que aceita
Apesar de menor quando comparado a outros países, qualquer tipo de regra e ética (GAULEJAC, 2007).
já é perceptível a tendência de aumento no mercado
A dinâmica de subjetivação do trabalhador que dá
brasileiro (SOBRATT, 2016).
origem aos processos da sua identidade, bem como
Através desses dados é possível a interpretação que o sentido do trabalho, o sentido da vida, das relações
a modalidade home-office no Brasil, apesar de nova, interpessoais, originada do espaço do trabalho não é
está em larga expansão, e que suas tendências e explicada apenas do ponto de vista biológico, psico-
práticas está adquirindo características das grandes lógico ou social. A organização do trabalho contém
multinacionais, como é o caso da gestão baseada aspectos biopsicossociais que podem determinar
em resultados. Quadrado (2006) diz que a socieda- as manifestações dos processos de subjetividade
de “pós-moderna” adotou a performance como seu dos trabalhadores.
motor impulsionador, os resultados, a funcionalidade
e o pragmatismo capitalista está em primeiro lugar
e é o que rege todo o resto.
Gaulejac (2007) complementa que a gestão con-
2.OBJETIVOS
Diante desse contexto, é importante buscar
temporânea é apresentada como uma tecnologia de compreender como estão se delineando as con-
poder, sendo ela própria uma ideologia que legitima sequências que esses novos formatos de trabalho
a mercantilização do ser humano. As formas atuais contemporâneos, neste caso o home-office, podem
de gestão formam um conjunto de técnicas e saberes estar implicando para a subjetividade do sujeito; e
práticos que visam orientar condutas e estabelecer se essas implicações estão contribuindo para for-
uma certa “cultura corporativa” (p. 20) que mobilize mação de um sujeito solitário, individualista, e quiçá,
as subjetividades para a realização de um ideal de sem sentido de vida. Além disso, será importante
indivíduo adequado às exigências da nova ordem investigar como está a potência de agir do sujeito,
econômica, limitando o sujeito de escolha de seus cerceada por tantos novos controles que o trabalho
próprios desejos e ações. Exige-se do trabalhador home-office acarreta.
home-office que ele seja autônomo, polivalente, cria-
Assim, este estudo tem o objetivo de explorar es-
sas implicações à subjetividade do trabalhador que
atua home-office. Como destacam os autores Bas-
tos, Rodrigues, Moscon, Costa e Pinho (2013 citado
¹ SAP Consultoria em RH é uma consultoria que há mais de 20 anos
por RAFALSKI; ANDRADE, 2015) novas formas de
atua no desenvolvimento e implantação de projetos voltados para
trabalho, como home-office ainda são pouco estu-
Soluções em Gestão de Cargos, Funções, Carreira e Remuneração.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 265


dadas. Tendo em vista que há carência de estudos poderamento empresarial frente aos sacrifícios exi-
com a população brasileira, este trabalho objetiva gidos dos trabalhadores. O avanço das tecnologias
ampliar os conhecimentos acerca deste novo modo informáticas, muita usada para mediação do trabalho
de configuração do trabalho. Em especial, por meio home-office, instituiu uma “ditadura do tempo real”
de uma leitura implicada com a “causa” compreensiva (GAULEJAC, 2007, p. 41).
da modalidade organizacional de trabalho e seus
Nessa sociedade o lucro deve ser imediato e os
impactos ao campo subjetivo e de saúde do (tele)
prazos são cada vez mais curtos. Dessa forma, a
trabalhador home-office.
economia já não está a serviço do desenvolvimento

3.MÉTODO
da sociedade, torna-se um fim em si, para o qual toda
a sociedade deve se direcionar. O ritmo da vida indi-
vidual, social e institucional passa a ser determinado
Como metodologia, realizou-se o levanta- pelo ritmo das corporações (GAULEJAC, 2007). Ou
mento bibliográfico de publicações como artigos e seja, o trabalhador tem a liberdade de trabalhar na
livros referentes ao contexto histórico e social, as casa dele, no horário que ele quiser, sem justificar
transformações no mundo do trabalho, com foco as horas trabalhadas, porém deve entregar os re-
no novo modelo de trabalho crescente do Brasil, o sultados e lucros que a organização propõe dentro
home-office e suas relações com a subjetividade do ritmo dela.
dos trabalhadores.
Ainda sobre esse imediatismo, Bauman (1998) faz
Este trabalho também traz alguns artigos e teses de uma análise sobre avanço que a sociedade está
estudiosos sobre o tema do trabalho home-office no vivenciando, avanço ao qual exige dos indivíduos
Brasil. Já a análise crítica do modelo de trabalho ho- que o mesmo acompanhe o ritmo acelerado das
me-office foi fundamentada pelas teorias dos autores mudanças globais, questionando e criticando a ma-
da Psicossociologia e Sociologia do Trabalho, tais neira como o indivíduo lida com essas cobranças e
como: Enriquez, Sennett, Bauman, Gaulejac, entre ritmo, ele não consegue se preparar e se firmar em
outros autores, que tratam da relação entre homem algo sólido, se já lhe é cobrado uma nova mudança;
e organização na contemporaneidade e suas con- e assim lhe é posto um ritmo a ser seguido pela
sequências à subjetividade e saúde do trabalhador. sociedade. Bauman (1998, p. 112) questiona:
Levando em conta que a psicossociologia se ocupa
das relações entre o coletivo e o individual, o psí- Como pode alguém investir numa reali-
quico e o social, o objetivo e o subjetivo, buscando zação de vida inteira, se hoje os valores
compreender o sujeito inserido historicamente em um são obrigados a se desvalorizar e, ama-
determinado contexto social e na complexidade de nhã, a se dilatar? Como pode alguém
sua dinâmica psíquica (ARAUJO; SOARES, 2016), se preparar para a vocação da vida, se
essa abordagem teórica fornecerá as bases nesse habilidades laboriosamente adquiridas
trabalho, para fazer uma leitura de sujeitos capazes se tornam dividas um dia depois de se
de nomear as próprias inquietações, de elaborar tornarem bens? Quando profissões e
significações e de se mobilizarem, a fim de modificar empregos desaparecem sem deixar
a si mesmos e às situações de crise ou sofrimento notícia e as especialidades de ontem
em que estão envolvidos. são antolhos de hoje?

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A ênfase à flexibilidade que as organizações


Além dessa cobrança de acompanhamento e ritmo
de trabalho experimentado pelo trabalhador, Trope
(1999) aponta que os controles antes externos aos
buscam, e segundo Sennett (2015), a crítica às formas trabalhadores estão sendo substituídos pela auto-
rígidas de burocracia, exigem trabalhadores mais nomia e autocontrole das próprias pessoas, através
ágeis, abertos às mudanças a curto prazo. Essa da liberdade de ação, a flexibilização dos horários
flexibilidade costuma ser entendida como sinônimo e o abandono do cartão de ponto, como é o caso
de maior liberdade para as pessoas moldarem suas do trabalho home-office. A autonomia do trabalhador
vidas. As empresas buscam flexibilidade por meio home-office passa por uma mudança, pois mesmo
de estruturas mais soltas e com maior autonomia o trabalhador tendo algumas regalias de liberdade
individual. O que na verdade, ao invés de acabar das suas atividades, o trabalho é cerceado pelos
com as regras do passado, essa nova ordem impõe controles propiciados pelo formato “autônomo” de
novos controles. entrega do trabalho, pois se ele não precisa cumprir
horas, outros cumprimentos serão [altamente] co-
Na sociedade que requer alta competitividade, a brados desse trabalhador, em troca de seu salário.
guerra econômica serve de justificativa para o em-

266 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


Essa autonomia requerida pelas organizações, através de trabalho home-office, estes são igualmente aco-
do autocontrole significa uma diminuição da força metidos pelas consequências do individualismo - o
que o homem tem de ser singular, de ser um sujeito isolamento e a perda de contado com outras pessoas.
pensante, crítico, com ação de transformação, pois Se levado em consideração que o trabalho tem im-
fica preso às exigências da organização que agora portância para a constituição psíquica das pessoas,
se tornou uma auto exigência. existe uma grande preocupação em entender como
se constitui a subjetividade do sujeito e das relações
Para fazer a gestão do trabalho home-office, as orga-
desses trabalhadores.
nizações adotam o controle através dos resultados,
das entregas. Levando este aspecto em considera- Essa preocupação se torna ainda maior, visto que o
ção, Gaulejac (2007) diz que as organizações de trabalho é constituinte do ser humano. Ele também
hoje acreditam que a experiência humana possa ser pode ser analisado como forma de identidade dos
traduzida em cálculo, aonde os índices e os indica- indivíduos, o qual define a personalidade dos traba-
dores meritocráticos converteram o ser humano em lhadores e as remodela, estabilizando suas persona-
fator econômico equivalente à matéria-prima e às lidades e seus desejos, colocando-os na realidade
ferramentas de produção. Dessa forma, a finalidade e possibilitando que se instaure a temporalidade na
máxima de lucro prevalece sobre o valor imaterial qual o indivíduo se desenvolve (ENRIQUEZ, 1999).
intrínseco à vida humana. O ser humano, considerado um ser de desejo e de
pulsão, vive em busca de sentido para sua vida e sua
Além disso, para manter um padrão de qualidade
existência. Ao considerar que o trabalho faz parte
do trabalhado feito pelos trabalhadores home-offi-
da constituição do homem, à medida que as formas
ce, e evitar que cada trabalhador faça do seu jei-
de trabalho se modificam, impactam diretamente o
to, as organizações passam as tarefas cada vez
sentido de vida e existência do trabalhador; influen-
mais delimitadas para os sujeitos. Castillo (2009),
ciando seus processos subjetivos, seus desejos, seus
complementa que essas normas de padronização
relacionamentos, sua forma de ver a si, os outros e
de trabalhado, têm contribuído para uma tayloriza-
o mundo a sua volta.
ção do trabalho home-office e para uma perda de
controle sobre o trabalho individual. Esse fato leva Pyöriä Pyöriä (citado por CASTILLO, 2009, p. 35) faz
à criação de padrões e normas, baseados em nú- a definição de equipes virtuais, que seriam as equipes
mero e métrica iguais a todos, e leva à introdução que se relacionam através do teletrabalho, em uma
obrigatória dessas normas pelos trabalhadores, o análise um pouco mais sociológica, considerando que
que reintroduz uma dinâmica de desqualificação. essas equipes se constroem: a) pelo uso das tecno-
Esse fato faz com que os trabalhadores tenham cada logias da informação; b) pelo desenho independente
vez menos autonomia e liberdade para executar e das partes importantes do seu trabalho; c) por uma
criar seu trabalho, devendo obedecer aos padrões formação profissional alta”. A categoria de trabalho
e números que a organização impõe. Esse cenário home-office é um dos tipos mais comuns existente
diminui sua potência de criação, abafando cada vez dentro das equipes virtuais, e o trabalho marcado
mais a sua riqueza subjetiva. “pelo desenho independente das partes importantes
do seu trabalho” é um elemento primordial para que
A partir do momento que existe uma prescrição ex-
o sujeito trabalhe em casa sozinho.
cessiva da atividade, cerceada por números, de-
sempenho e performence previamente esperados, Segundo Sennett (2015), o homem sente falta de
existe uma imensa contradição esperada do trabalho, relações humanas constantes e objetivos duráveis,
e isso acarreta consequências para o sentido que e diante das implicações da sociedade atual ocasio-
o trabalhador tem sobre o seu trabalho realizado. na-se no próprio homem o registro de um sentimento
Sobre isso, alerta-se sobre o excesso de prescrição de inquietação e angústia, principalmente no que diz
das atividades, pois o trabalho não está reduzido às respeito à relação com o outro. Diante desse con-
relações sociais nem ao salário e às relações de texto, esse distanciamento ocasionado pelo formato
poder, o que está prescristo nunca consegue atender de trabalho home-office contribui ainda mais para o
a toda a necessidade de trabalho (ABDOUCHELLI; aumento dessa angústia no trabalhador.
DEJOURS; JAYET; 2015). As máquinas podem, até,
O distanciamento do outro dificulta o processo de
substituir as padronizações, mas a inteligência hu-
estabelecimento de uma relação durável, constan-
mana e a criatividade são únicas e impossíveis de
te e de segurança. Como exemplo, há um estudo
serem normatizadas. Portanto, o trabalho é também
feito com trabalhadores home-office, dos autores
a criação do novo, do inédito, por isso é necessário
Rasmussen e Corbett (2008, citado por RAFALSKI;
iniciativa, autonomia de fato e engenhosidade.
ANDRADE. 2015), aonde eles apontam que podem
Além do impacto do excesso de prescrição do trabalho ocorrer consequências significativas devido à má
sofrido pelos trabalhadores, aliados à modalidade adaptação ao novo ambiente de trabalho, como a

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 267


falta de planejamento das atividades e a sensação de si próprio com alguém que existe e
de isolamento e o distanciamento da empresa, que tem importância para o outro, transfor-
contribui para diminuir a segurança profissional dos mando o trabalho em um meio para a
trabalhadores. Ward e Shabba (2001 citado por RA- estruturação psíquica do homem.
FALSKI; ANDRADE. 2015), por sua vez, dividiram
os fatores que podem influenciar no comportamen- O papel do outro para o reconhecimento do traba-
to organizacional em dois aspectos - psicológico lho do sujeito que está home-office fica extremante
e social -, apontando que problemas relativos ao limitado, visto que suas relações estão cerceadas
distanciamento de outros profissionais são comuns pelas barreiras da tecnologia, do computador, da
neste modelo de trabalho. distância, etc. Considerando que o papel atribuído
Sardeshmukh, Sharma e Golden (2012 citado por as relações com o outro de extrema importância para
RAFALSKI; ANDRADE. 2015) em pesquisa com 417 os processos subjetivos do trabalhador, a categoria
teletrabalhadores e home-officers, observaram que home-office pode se tornar extremamente nociva e
os principais efeitos negativos identificados foram o limitante para o sujeito que trabalha sozinha em casa,
aumento da ambiguidade profissional e a redução podendo levar este teletrabalhador a uma espécie
do suporte e do feedback. Foram obtidos, também, de “alienação social”, termo usado pelo antropólogo
dados indicativos de que sentimentos de solidão, Sigaut (1990 citado por GERNET, 2010, p. 63), o
irritabilidade, preocupação, culpa e estresse estavam qual é muito usado na teoria do reconhecimento
associados aos impactos negativos do trabalho em na psicodinâmica do trabalho:
home-office (Golden, Veiga, & Dino, 2008; Mann
& Holdsworth, 2003; Pratt, 1984; Ward & Shabba, O reconhecimento dos outros é indis-
2001 (citado por RAFALSKI; ANDRADE. 2015). Essa pensável para a validação de uma des-
redução de feedback e suporte, somado ao culto ao coberta iniciadas na confrontação com
individualismo que o trabalho home-office acarreta, a realidade. Se o indivíduo tiver afas-
fica evidenciado na análise que o autor Quadrado tado da realidade e do reconhecimento
(2006) faz do homem contemporâneo, afirmando alheio, é devolvido à solidão da loucu-
que atualmente o homem “perdeu a bússola e anda ra, conhecida como “alienação mental”.
por si só” (p. 11). Quando ele mantém relacionamento
As relações do trabalhador home-office passam por razoável com a realidade por meio de
algumas transformações, elas deixam de ser dialógica, seu trabalho e seu trabalho não é re-
de propiciar a transferência de troca de conhecimento conhecido pelos outros, é condenado
com colegas de trabalho, o trabalhador home-office à solidão alienadora que Sigaut define
precisa buscar o conhecimento, tirar suas dúvidas, e como “alienação social”.
é estimulado a buscar um “fazer” solitário, mediado
pelo computador, ele precisa aprender a ser autôno- Portanto, a “alienação social” se torna extremamente
mo e fazer suas atividades sozinho. Por sua vez, o delicada e não sustentável a longo prazo para quem
trabalhador home-office deixa de ter a possibilidade com ela se depara, pois ou o indivíduo é convocado
do diálogo simultâneo com seus colegas de trabalho a refletir sobre o relacionamento que mantém com a
e chefia, deixa também de ver a expressão dos mes- realidade, pelo qual é levado a se questionar; ou se
mos, de poder tirar suas dúvidas e questionamentos mantem firme em sua convicção, correndo o risco
em tempo real (LUZ; NETO, 2016). de cair na autorreferência e na megalomania. Tan-
to uma quanto a outra situação não são saudáveis
O trabalho como elemento constituinte da subjetivi-
para o sujeito e se tornam perigosas no ponto de
dade do sujeito, permite que ele tenha potência de
vista de identidade (GERNET, 2010). Assim, o re-
ação, é constituinte de identidade, de desejos, de
conhecimento do trabalho pode ser então portador
vontade, e por isso é uma das razões pelas quais
de emancipação e transformação se for associado
ganha tanta importância na vida do indivíduo. O tra-
a um teste sobre a experiência da realidade, e essa
balho, segundo Mendes e Marrono (p. 27, 2002):
realidade e reconhecimento só podem ser vivencia-
dos na relação com o outro.
(...) faz com que a maioria dos traba-
lhadores não perca o desejo de perma-
necer produzindo, além de ter, nessa
atividade, a oportunidade de realização
e de identidade para construir-se como
5.CONCLUSÃO
Paralelamente a essa fragmentação da pers-
sujeito psicológico e social. O ato de pectiva e do sentido do trabalho, é exigido cada vez
produzir permite um reconhecimento mais o culto ao individualismo, que no home-office
pode ser confundido como autonomia. Em seus es-

268 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


critos “O indivíduo preso na armadilha da estrutura sustentação sobre as instâncias mediadoras entre
estratégica”, Enriquez (1997) relata que jamais na o indivíduo e a sociedade, ou seja, os grupos, as
história o mesmo esteve tão encerrado nas malhas organizações e as instituições. Nesse sentido, ela
das organizações como hoje. Fazendo essa cami- não se ocupa estritamente do objeto trabalho, mas
nhada para a libertação do ser humano do “grilhão como foi abordado neste estudo, é necessário en-
coletivo”, e preso na organização, o sujeito perde tender e analisar as molduras contextuais, como as
sua liberdade com seu próprio corpo, seu modo de instituições, organizações, mercados, e relacionais,
pensar e sua psique. O trabalhador nunca esteve como o coletivo, o grupo, as relações de trabalho,
tão emaranhado nos processos organizacionais, nas quais tem lugar o trabalho.
tão pouco livre em relação à sua subjetividade, e
Ao enxergar o homem e o mundo a sua volta nesse
diminuto de sua potência de ação e transformação
viés, a psicossociologia do trabalho, segundo Lhuillier
da realidade.
(2014, p. 6), “compreende a ação do homem sobre
O culto ao individualismo, o distanciamento das seu ambiente, ação que põe em jogo suas razões e
relações humanas, a fragmentação do sentido do até mesmo suas possibilidades de existir”. Ao con-
trabalho, segundo Sennett (2015), que dá caráter aos siderar a importância que o trabalho tem na vida de
vínculos empregatícios frágeis da nova sociedade uma pessoa, e acrescenta-se aqui a consideração
capitalista hipermoderna corrói a confiança, a lealdade, que Antunes (2004) salienta que além de fazer parte
o compromisso mútuo, e limita o amadurecimento da construção da identidade, o trabalho contribui para
da confiança. As experiências mais profundas de dar sentido à vida da pessoa, se faz emergente o
confiança, como, por exemplo, o estabelecimento entendimento mais aprofundado de como o teletra-
de em quem confiar, com quem contar diante de balho em modalidade home-office está afetando a
uma tarefa de difícil solução, a quem buscar num constituição do sentido de vida para o trabalhador,
momento de insegurança são construídas na informa- através dos novos controles impostos à sua subje-
lidade. “Esses laços sociais levam tempo para surgir, tividade, para que esse novo formato de trabalho
enraizando-se devagar nas fendas e brechas das não seja mais uma forma de limitar seus processos
instituições” (SENNETT, 2015, p. 24). E questiona: subjetivos e tirar seus desejos, potência de ação e
de transformação da realidade atual.
Como se podem buscar objetivos de
longo prazo numa sociedade de curto REFERÊNCIAS
prazo? Como se podem manter rela-
ções sociais duráveis? Como pode um ABDOUCHELLI, E.; DEJOURS, C.; JAYET, C.
ser humano desenvolver uma narrativa Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da
de identidade e história de vida numa escola Dejouriana à análise de prazer, sofri-
sociedade composta de episódios e mento e trabalho. São Paulo: Atlas, 2015.
fragmentos? As condições da nova
economia alimentam, ao contrário, a ANTUNES, R.; ALVES, G. As mutações no
experiência com a deriva no tempo, de mundo do trabalho na era da mundialização
lugar em lugar, de emprego em empre- do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n.
go (SENNETT, 2015, p. 27). 87, p. 335-351, Maio/Ago. 2004. Disponível em
http://www.cedes.unicamp.br.
O obstáculo pré-estabelecido para a formação do
vínculo da relação de confiança instituído no mo- ARAUJO, J. N. G. SOARES, M. P. I. Atividade
delo de trabalho home-office, acaba dificultando o de trabalho e relações de poder: uma interven-
processo de cooperação entre os homens, o qual, ção organizacional numa empresa do ramo da
quando existente, atua na mobilização subjetiva no aviação. Psicologia em Revista, Belo Horizon-
trabalho, e por outro lado, quando esse vínculo não te, v. 22, n. 1, p. 185-201, abr. 2016.
consegue ser estabelecido, pode acarretar inclusive
algumas “patologias da solidão”. Sem cooperação, BASTOS, A. V. B.; PINHO, A. P. M.; COSTA,
existe um aumento do individualismo, o social e co- C. A. Significado do trabalho: um estudo entre
letivo do trabalho acabam sendo fragilizados, e por trabalhadores em organizações formais. Revis-
fim, ocorre as consequências para a própria forma ta de Administração de Empresas, São Paulo,
de subjetivação do homem, da forma dele enxergar
v. 35, n. 6. P. 20-29, 1995.
suas relações e o mundo, e se enxergar no mundo.
Ao fazer a análise do potencial de ação do homem BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Ja-
diante as condições sociais que são criadas para e neiro: Jorge Zahar Ed., 2001. BAUMAN, Z. O
por ele, a psicossociologia vem contribuir para dar mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janei-

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 269


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270 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


CAPÍTULO
34

TRANSTORNO DO PÂNICO: NEUROBIOLOGIA, SINTOMATOLOGIA


E DIAGNÓSTICO.

RESUMO
O Transtorno do Pânico é um conjunto de manifestações patológicas,
Melissa Tavares Lima
UNAMA
com ataques inesperados e repentinos de pânico que são
caracterizados por um medo intenso, associados a efeitos físicos,
Suellen de Oliveira
somando-se a quatro ou mais sintomas que podem ser cognitivos
Barbosa
UNAMA ou somáticos e que logo acarretam em prejuízos significativos, tanto
psíquicos, quanto funcionais. Objetivo: Repensar o Transtorno do
Sarah Medeiros Pânico (TP) por meio de aspectos específicos como a neurobiologia,
Tavoglieri sintomatologia e o diagnóstico. Metodologia: Análise do TP utilizando
UNAMA o procedimento de revisão de literatura. Usaram-se dois artigos
publicados em revistas eletrônicas (Revista Brasileira de Psiquiatria
Greg Luan dos Anjos e Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul), disponíveis na
Cardoso
UNAMA
plataforma digital Scielo e o manual diagnóstico reconhecido como
referência na Psiquiatria (DSMV).
Marcos Vinicius Lebrego
Nascimento
UNAMA

Palavras-chave: Transtorno de Pânico, Neurobiologia, Diag-

nóstico diferencial.
10.37885/200400037
1. INTRODUÇÃO louquecer”); uma mudança desadaptativa significativa
no comportamento relacionada aos ataques (p. ex.,
O Transtorno do Pânico é um conjunto de ma- comportamentos que têm por finalidade evitar ter
nifestações patológicas, com ataques inesperados ataques de pânico, como a esquiva de exercícios
e repentinos de pânico que são caracterizados por ou situações desconhecidas). A perturbação não
um medo intenso, associados a efeitos físicos, so- é consequência dos efeitos psicológicos de uma
mando-se a quatro ou mais sintomas que podem substância (p. ex., droga de abuso, medicamento)
ser cognitivos ou somáticos e que logo acarretam ou de outra condição médica (p. ex., hipertireoidis-
em prejuízos significativos, tanto psíquicos, quanto mo, doenças cardiopulmonares). A perturbação não
funcionais. é mais bem explicada por outro transtorno mental
(p. ex., os ataques de pânico não ocorrem apenas
em resposta a situações sociais temidas, como no

2.OBJETIVO
Repensar o Transtorno do Pânico (TP) por meio
transtorno de ansiedade social; em resposta a ob-
jetos ou situações fóbicas circunscritas, como na
fobia específica; em resposta a obsessões, como
de aspectos específicos como a neurobiologia, sin- no transtorno obsessivo-compulsivo; em resposta à
tomatologia e o diagnóstico. evocação de eventos traumáticos, como no trans-
torno de estresse pós-traumático; ou em resposta à

3.MÉTODOS E MATERIAIS
separação de figuras de apego, como no transtorno
de ansiedade de separação) (DSM – V, 2014). Par-
tindo de aspectos neuroanatômicos, alguns estudos
Análise do TP utilizando o método de revisão
encontraram uma relação importante entre o medo
de literatura. Usaram-se dois artigos publicados em
condicionado em animais e o TP. De acordo com
revistas eletrônicas (Revista Brasileira de Psiquia-
Mezzasalma et al. (2004), os ataques de pânico se
tria e Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul),
originam de pontos no tronco cerebral que compre-
disponíveis na plataforma digital Scielo e o manual
endem a transmissão serotoninérgica (serotonina)
diagnóstico reconhecido como referência na Psiquia-
noradrenérgica (noradrenalina), sendo a ansiedade
tria (DSM-V).
ativada por estruturas do sistema límbico. Além disso,
o núcleo central da amígdala recebe informações

4.RESULTADOS
sensoriais diretamente das estruturas do tronco cere-
bral e do tálamo sensorial, permitindo uma resposta
a estímulos potencialmente perigosos (apud Gorman
O estudo dos materiais proporcionou a ob-
et al., 1989). Outras contribuições sugerem que sub-
servação de um conjunto de sintomas psicológicos
tipos de receptores serotoninérgicos exercem uma
e físicos manifestados durante um pico de tempo,
elaborada forma de controle de diferentes tipos de
aproximadamente 10 minutos, que causam prejuízos
ansiedade, dessa forma a serotonina poderia faci-
na vida social e pessoal do indivíduo (SALUM et al.,
litar ou inibir distintos tipos de medo em diferentes
2009). Conforme o DSM-V, o TP se refere a ataques
regiões cerebrais (MEZASSALMA, 2004 apud De-
de pânico inesperados e recorrentes. Um ataque de
akin & Graeff, 1991). É necessário a realização de
pânico é um surto abrupto de medo ou desconforto
uma investigação minuciosa do caso do paciente
intenso que alcança um pico em minutos e durante
em questão para se fazer o diagnóstico correto do
o qual ocorrem quatro ou mais de uma lista de 13
Transtorno do pânico.
sintomas físicos e cognitivos: palpitações, coração
acelerado, taquicardia; sudorese; tremores ou abalos;

5.CONCLUSÃO
sensações de falta de ar ou sufocamento; sensações
de asfixia; dor ou desconforto torácico; náusea ou
desconforto abdominal; sensação de tontura, insta-
Conclui-se então que o Transtorno do Pâni-
bilidade, vertigem ou desmaio; calafrios ou ondas
co é um distúrbio de ansiedade caracterizado pela
de calor; parestesias (anestesia ou sensações de
ocorrência constante e inesperada de ataques de
formigamento); desrealização (sensações de irre-
pânico, com sensações extremas de medo e deses-
alidade) ou despersonalização (sensação de estar
pero, combinadas a sintomas físicos e emocionais
distanciado de si mesmo); medo de perder o controle
que causam prejuízos irreparáveis à vida pessoal
ou “enlouquecer”; medo de morrer. Pelo menos um
e social do indivíduo. Observaram-se também alte-
dos ataques foi seguido de um mês (ou mais) de uma
rações importantes em aspectos neuroanatômicos
ou de ambas as seguintes características: apreensão
e neurofisiológicos, que combinados com outros fa-
ou preocupação persistente acerca de ataques de
tores, podem desencadear ou agravar ainda mais
pânico adicionais ou sobre suas consequências (p.
os sintomas do TP.
ex., perder o controle, ter um ataque cardíaco, “en-

272 Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1


REFERÊNCIAS
ARISTIDES VOLPATO CORDIOLI (Porto Ale-
gre) (Ed.). Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais: DSM 5. 5. ed. Porto
Alegre: Artmed, 2014. 992 p. Traduzido por:
Maria Inês Corrêa Nascimento.

MEZZASALMA, M., VALENÇA, A., LOPES,


F., NASCIMENTO, I., ZIN, W. NARDI, A. Neu-
roanatomia do transtorno de pânico. Revista
Brasileira de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 26,
n. 3, pp.202-206, 2004. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/rbp/v26n3/a10v26n3.pdff.
Acesso em: 4/03/2019

SALUM, G., BLAYA, C. MANFRO, G. Trans-


torno do pânico. Revista de Psiquiatria do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 31, n. 2,
pp.86-94, 2009. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/rprs/v31n2/v31n2a02. Acesso
em: 02/03/2019.

Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 273


SOBRE OS
ORGANIZADORES

Eloisa Rosotti Navarro


Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), na linha de pesquisa
em Educação Matemática. Mestre em Educação em Ciência e em Matemática pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR), na área de Tecnologia e Educação Matemática (2015). Licenciada em
Matemática pela Universidade Estadual de Maringá - UEM (2012). É Assessora Pedagógica de
Matemática na Positivo Soluções Didáticas (Curitiba, PR). É pesquisadora na UFPR e na UFSCar,
sendo membro dos grupos de pesquisa: GPTEM - Grupo de Pesquisa sobre Tecnologias na Educação
Matemática e GPEFCom - Grupo de Pesquisa Formação Compartilhada de Professores, Escola e
Universidade, respectivamente. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Matemá-
tica. Atua, principalmente, no tema: Teoria Histórico-Cultural e Tecnologias Digitais na Educação.

Rogério de Melo Grillo


Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (2014). Possui
Mestrado em Educação pela Universidade São Francisco (2012), campus Itatiba/SP. Licenciatura
Plena em Educação Física (2005) e Especialização em Educação Física Escolar (2007) pelo Centro
Universitário Claretiano de Batatais/SP. Graduação em Pedagogia pela FAFIBE (MG). É Assessor
Pedagógico de Educação Física na Editora Positivo (Curitiba, PR). É pesquisador do Grupo de
Estudos e Pesquisa em Educação Física Escolar (EscolaR - UNICAMP) e do Centro de Estudo
sobre Ludicidade e Lazer (CELULA - UFC). Fez estágio doutoral na Argentina, sob a orientação
da profa. Dra. Carolina Duek (UBA/Conicet). Atualmente, realiza estágio de Pós-Doutorado no PP-
GECT da UFSC, sob orientação da profa. Dra. Regina Célia Grando. Realiza pesquisas na área
de Educação, com ênfase em Jogo, Brinquedo, Didática, Lúdico e Psicologia Histórico-Cultural.
Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 275

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