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Colegio HISTORIA & HISTOROGRAFIA Cocrderacto Bliona do Fretas Dutra Francois Hartog Regimes de historicidade Presentismo e experiéncias do tempo V edigto VP reimpressao. Tredugéo Andréa Souza de Menezes Bruna Beffart la Rocha de Moraes de Alencar Silva Maria Helena Martins auténtica SUMARIO Prefécio ~ Presentismo pleno ou padrao?. inttodugdo ~ Ordens do tempo, regimes de hisloricidade... As brechas.... . : Do Pacifico ¢ Berlim, istrias universais... zh Regimes de historicidade.... Ordem do tempo 1....... cai Bata Copitulo 1 — thas de historia... See 43 O regime heroico. aA, Do mito ao acontecimento.....:. 54 © trabalho do matentendido: do acontecimento 00 MilO....sssnaeneene a 56 ‘Antiopologia e formas de temporalidade. : 6 Capitulo 2 ~ Ulisses e Santo Agostinh das lagrimas & meditagG0......scee OS Cada dia é um recomego. As lagrimas de Ulisss...... As sereias © 0 esquecimento.... 80 Ulisses ndo leu Santo Agostinho. 83 Copitule 3 - Chateaubriand: entre o antigo 2 0 novo regime de historicidade... 93 A viogem do jovem Chateaubriand... 94 “Historia magistra vitae" 102 Amala norte-americana..... 108 Aexpetiéncia do tempo. 110 Tempo da viagem e tempo na obra "Viagem" AS UNOS re Ordem do tempo 2 a Capitulo 4 - Meméria, histéria, presente......... As crises do regime modemo.. Aascensio do presentismo... As fends do presente... Memeéric e histéria Historias nacionais. Comemorar. O momento dos “Lieux de mémoire’ Capitulo 5-Patriménio e presente. Hisiéra de uma nogio. Os Anligos. Roma. : A Revolucdo Francesa. Rumo & universalizacao........ © tempo do meio ambiente... Condlustio ~ A dupla divida ov 0 presentismo do presente, Oautor... Indice remissivo.. VW3 122 131 133 136 140 149 157 170 183 185 193 195 201 209 220 231 238 247 261 263 INTRODUGAO Ordens do tempo, regimes de historicidade Ninguém duvida de que haja uma ordem do tempo, mais precisamente, ordens que variaram de acordo com os lugares ¢ as Epocas. Ordens tio imperiosas, em todo caso, que nos submetemos 2 clas sem nem mesmo perceber: sem querer ou até nio querendo, sem saber ou sabendo, tanto elas sio naturals. Ordens com as quais entramos em choque, caso nos esforcemos para contradizé-las, As relagdes que uma sociedade estabelece com tempo parecem ser, de fato, pouco discutiveis ou quase nada negociaveis, Na palavra ordem, compreende-se imediatamente a sacessio e 0 comando: os tempos, no plural, querem ou mio querem; eles se vingam também, restabelecent uma ordiem que foi perturbada, fazem ds vezes de justca, Ordem: do tempo vem assim de imediato esclarecer uma expressio, talvez de inicio um tanto enigmética, regimes de historicidade, No inicio do século V a.C., 0 filésof grego Anaximandro ji empregava essa expressio, justamente para indicar que “as coisas que sio [...] se fazem justiga e reparam suas injustigas conforme a ondem do tempo” $ Para Herédoto, a histéria era, no fundo, 0 in tervalo ~ contado em geragdes ~ que fazia passar de uma injustica A sua vinganga ou 4 sua reparagio. Investigando, de alguma forma, os momentos da vinganea divina, 0 hiscoriador é aquele que, gragas a seu saber, pode reunir ¢ desvendar as duas extremidades da cadeia, Anaximsndro, Fragen, Bl, "Pois donde 2 gorig3o para os sre, & ‘compost ere segundo 0 necesro; pos concedem les messes js 29s 00005 pela insti, tendo a ordencio do tempo” (SOUZA, Joué Calan prc, Sho Paul: Abe Culturl, 1988. [Os Peascocs. p16) Esse é realmente o sentido da histéria do rei Creso que, ao passar da flicidade & infelicidade, paga, na quarta geragdo, o erro de seu ances- tral Giges.* Aqui nio exploraremos essa via, a da historia e da justiga, Em seguida, «@ ordem do temps lembra A ordem do discurso, de Michel Foucault, breve texto programético que leva 4 aula inau- gural ministrada por ele no Collage de France, em 1971, ¢ que se revela um convite a refiexio, 4 continuidade do trabalho, fora dali, de outza forma, com outras questdes.’ Fazer com o tempo 0 que Foucault havia feito anteriommente com 0 discurso, nisso buscando pelo menos uma inspitagio. Por fim, A Ordem do tempo & 0 pro- prio titulo do livro substancial que o historiador Krzysztof Pomian dedicou ao tempo: uma historia do “proprio tempo”, precisava 0 autor, “abordado em uma perspectiva enciclopédica”, ou ainda uma historia “filos6fica” do tempo." (© tempo passou a ser 0 centro das preocupagées nio fiz muito. Livros, revistas, coldquios, onde quer que seja, slo testemunhos; a literatura também trata do assunto, 4 sua maneita. “Crise do tempo diagnosticaram imediatamente nosios generalistas do pensamentol E claro que sim, mas ¢ entio? O rétulo significa no miximo: “Aten- a0, problema!”.’ © trabalho de Paul Ricceur, iniciado com a obra *DARBO-PESCHANSKI, Catherine © diane de parodar cns woe de Bria sors ds Univemiade co Brain 198 Sob c cas oe Ge ne Mie Franjois Myth nto logor the ene of Coes, ts BUNTON, Ris Poo tbh elope of ek, Onn: Ox Use res 1009 CAULT, Michel ordon de dio Sio Pal: Lyel, 2095 84. p_ XIE Ver tame, de mesmo tomo em Sur. uot, “La erie de Faves", em Le Dib 7, 1980, p Gallimard, 1999,» 253-262 (CHESNEAUX, Jes. Hate top ps, prt a 1886; LEDUC, jes, Ler EAIDI, 2a. Le wave dp ‘curs com uma nou Tra pce ou wh com wk na oeasiée do momento, no kev" c 18 Tempo e narrativa (1983") e conclufdo com A meméria, a histiria, 6 esquecimento (2000), pode enquadrar comodamente 0 periodo, mostrando um filésofo, que sempre se quis contemporineo de seus contemporineos, primeiramente levado a meditar sobre as aporias da experiéncia do tempo, antes de se mostrar preocupado com “uma politica da justa meméria”. Colocando “em contato direto a experiéncia temporal e a operago narrativa”, Tempo e narrativa, frisa Ricoeur, “no leva em conta a meméria”. Era exatamente essa lacuna que ele pretendia preencher com esse segundo livro, explo- rando “os niveis médios” entce tempo ¢ narrativa'’. Da questio da verdade da historia 4 da fidelidade da meméria, sem renunciar a nenhuma delas. ‘Antes disso, Michel de Certeau jé lembrara com uma frase, er passant, que “sem divida a objetivacio do passado, nos iltimos eres séculos, fizera do tempo o elemento impensado de uma disciplina que nio deixava de utilizé-lo como um instrumento taxinémico”, A observacio convidava 4 reflexio. Estas piginas servem para me experimentar nese campo, partindo de nosso presente, incerrogagio sobre As brechas © proprio curso da histéria recente, marcado pela queda do muro de Berlim em 1989 pela derrocada do ideal comunista trazido pelo futuro da Revalugio, assim como a excalada de miiltiplos fandamentalismos, abalaram, de uma maneira brutal ¢ duradoura, nossas relages com 0 tempo”. A ordem do tempo foi posta em questio, tanto no Oriente quanto ne Ocidente. Como mistos de arcaismo e de modernidade, os fendmenos " RICKEUR, Paul. Mémoire BAD, POMIAN. Leite de Faves aris, Galland, 2002, p. 348-359, fandamentalistas so influenciados, em parte, por uma crise do faturo, enquanto as tradigdes, as quais se voltam para responder as infelicidades do presente, sio, na impossibilidade de tragarem uma perspectiva do porvir, amplamente “inventadas""*. Como articular, nessas condigdes, o pasado, o presente ¢ o futuro? A hist6ria, escrevia Francois Furet em 1995, voltou a ser “esse tanel no qual o homem entra na escuridio, sem saber aonde suas ages © conduzirio, incerto de seu destino, desprovido da seguranca iluséria de uma ciéncia do que ele fiz. Privado de Deus, 0 in dividuo democratico vé tremer em suas bases, no fim do século XX, a divindade historia: angiistia que ele vai ter de conjurar. A essa ameaga da incerteza se une, no seu espirito, o escindalo de um futuro fechado"®. Do lado europeu, todavia, fendas profundas se tinham aberto muito antes: logo apés a Primeira Guerra Mundial, também apés 1945, mas de maneira diferente. Paul Valéry era um bom sismégrafo das primeiras, ele que, em 1919, evocava olhando “de um imenso balcio de Elsinor 0: Hamlet curopcu”, “milhdes de espec- “Ble pensa no tédio de recomesar o passado, na loucura de querer inovar sempre. Ele oscila entre os dois abismos”. Ou quando delimitava, em uma conferéncia de 1935, de maneira mais precisa ainda, essa experiéncia de ruptura de continuidade, dando a “todo homem” o sentimento de pertencer duas eras". “De um lado", prosseguia, “um passado que nio esti abolido nem esquecido, mas uum passado do qual nés no podemos tirar quase nada que nos offente no presente € nos possibilite imaginar 0 futuro, De outro Jado, um futuro de que no fazemos a menor ideia"*. Um tempo desorientado, portanto, situado entre dois abismos ou entre daas eras, 0 qual © autor de egards sur Te monde actuel experienciara e No seuifoentendido em HOBSBAWM, Exc; RANGER, Terence, The inceton of dion (Camidge: Cambridge Unireniry Pre, 1985, TURET, Francois, Le de ison: to Fide communi a XXe sie, Pars Robert Lafont Calman Léry, 1995p 808, VALERY, Pal, Fuss quasi plidgues. tn: (kanes, Pats, G Js Pliage) © 1. p. 998 (Cae primramente emt inglés ene residade cox Annas, 1985). Em 1932, cle eetormavs ‘sles se dignésion de 1919 sobre + confaso do Hamlet euros 1957, Bibloshéque de 20 continuava retomando, Franz Rosenzweig, Walter Benjamin e Ger- shom Sholem também poderiam evocar uma experiéncia andloga na Alemanha dos anos 1920, eles que procuram uma nova visio da historia, repudiando a continuidade e 0 progresso em proveito das descontinuidades e rupearas”. Em Le Monde d’hier [O Mundo de onteni], redigido antes de seu suicidio, em 1942, Stefan Zweig queria testemunhar, ele também, nosso ontem € nosso anteontem, todas as pontes esto rompidas”, Mas jé em 1946, por meio de um editorial com titulo sugestivo, “Face ao Vento”, Lucien Febvre con- vidava todos os leitores dos Annales a “fazer hist6ria”, sabendo que se entrata a partir de entio em um mundo “em estado de insabilidade definitiva”, onde as rufnas eram imensas; mas no qual havia “muito mais do que ruinas, e mais grave ainda; esta prodigiosa aceleracio Ga velocidade que, fazendo colidirem os continentes, abolindo os oceanos, suprimindo os desertos, coloca em contato brusco grupos humanos carregados de eletricidades contritias”. A urgéncia, sob pena de nio se compreender mais nada do mundo mundializado de amanhj, ja de hoje, era olhar, nfo para tris, em direglo 20 que acabava de acontecer, mas diante de si, para frente. “Acabou 0 mundo de ontem, Acabou para sempre. Se nés, franceses, temos uma chance de sair disso ~ & compreendendo, mais ripido ¢ melhor do que outros, essa verdade Obvia. A deriva, abandonando o navio, eu Ihes digo, nadem com vontade”. Explicat “o mundo ao mundo” responder as questdes do homem de hoje, tal é, pois, a tarefa do historiador que enfienta o vento. Nio se trata de fazer do passado tabula rasa, mas de “compreender bem em que ele se diferencia do presente”. Em que ele é pasado. Contetido, tom, ritmo, tudo nas poucas paginas desse manifesto sugere ao leitor que 0 tempo urge ¢ que o presente manda, Desde os anos 1950, Hannah Arendt se mostrara wma perspicaz observadora das rachaduras do tempo, mas no era isso que chamava mais atengio cm seu trabalho naquela época. “Nossa heranga nio & precedida de nenhum testamento”, havia escrito René Char em Folhetos d’Hypnos, antologia de 19462, Por meio desse aforismo ele procurava dar conta da estranha experiéncia da Resistén tomando-a como um tempo de entremeio, no qual um “tesouro’ fora descoberto e, por um instante, estivera entre as mios, mas que ninguém sabia nomear ou transmitir. No vocabulirio de Arendt, esse tesouro era a capacidade de instaurar “um mundo comum” Embora a libertago da Europa estivesse acontecendo, 0s membros da Resisténcia ndo haviam conseguido redigir um “testamento” no qual seriam consignadas as maneiras de preservar e, se possivel, de estender esse espago pitblico que eles haviam comegado a criar © no qual “a liberdade podia surgir". Ora, do ponto de vista do tempo, o testamento, na medida em que diz “20 herdeiro o que seri legitimamente seu, atribui um passado ao futuro" Fazendo justamente dessa fSrmula de Chara frase de abertu de Between Past and lo mais preciso que sua tradugio francesa, La Crise de la culture"), Arendt introduzia 0 conceit de “brecha (gap) entre o passado e 0 futuro” em tome do qual se organizava 0 livro, como “ estranho entremeio no tempo historico, onde se toma consciéncia de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas que ndo sio mais e por coisas que nio sio ainda”, © tempo histérico parecia entio suspenso, Por outro lado, sew estudo pioneiro sobre As origens do totalitarismo a havia levado a concluir que “a estrutura intima da cultura ocidental, com suas crengas, havia destmoronado sobre © CHAR, Rend. Fat Hypo Ins Cares 1h Pléade}.p. 190. Ease anor, sents ene TASSIN, Ftenne, Le ri prs Hannah Are Rivage, 199. p. 32 ARENDT, Hann Em poreugués,0 Lacie de 118, 1972p 13614 lo fanedsconerponde fda cutua". No Bra bras chama Brie o pasa fur nus pmo orginal ea nes: Betven Pat and Fat) ® ARENDT. La ede lection p19 nossas cabe¢as”, em particular o conceito moderno de histéria, fandado na nogio de processo". Mais uma vez, uma experiéncia de tempo desorientado. Em 1968, 0 mundo ocidental e ocidentalizado era atraves- sado por um espasmo que, entre outras coisas, questionava o progresso do capitalismo, ou seja, duvidava do tempo, ele pré- prio como um progresso, como um vetor em si de um progresso ptestes a abalar o presente. Para marcar esse momento, as palavras _fenda e brecha vém sob a pena dos observadores, mesmo que eles nao deixem de observar que so onipresentes as imagens tomadas das gloriosas revolugdes do passado®. Nascidos, em sua maioria, apds 1940, os jovens revoltados de entio podiam, pelo menos na Franca, voltar-se para as grandes figuras da Resisténcia e, ao mes- ‘mo tempo, para os ensinamentos do Livro venmelho do presidente Mao, assim como para as liges dos comunistas vietnamitas, que derrotaram a ex-poténcia colonial em Dien Bien Phu e, algum tempo depois, venceram os Estados Unidos da América, Em seu iiltimo romance, Olivier Rolin dé voz a seu narrador, que fala de si mesmo a sua jovem interlocutora: “E de li, [dos anos 1940-1945], desse desastre que voc8 vem, meu caro: sem ter estado la. Sua geragio nasceu de um acontecimento que ela nio viveu®,” Por um momento, a crise dos anos 1970 (inicialmente petrolifera) pareceu reforcar esses questionamentos. Alguns até se vangloriavam do “crescimento zero"! Acabava-se de sair dos “Trinta Gloriosos” do pés-guerra: anos de reconstrugio, de moderizagio répida, da corrida a0 progresso entre o Leste ¢ 0 Oeste, tendo como pano de fundo a Guerma Fria ¢ a implementagio do desarmamento nuclear. © tema dos “retornos a” (até tornar-se uma formula pronta- -para-pensar ¢ para-vender) ia logo fazer sucesso. Apés 2 subversio dos retornos a Freud ¢ a Marx, vieram os retornos a Kant ou a Deus, ¢ muitos outros retornos relimpagos que se consumiam ARENDT, Hannah. Le origin ttre, Pasi: Gllmard, 2002. (Quarts. p87 MORIN, gas LEFORT, Clade; COUDRAY, Mate. Mal 1968 Ca Be i Fryar 958 "ROLIN, Olver. Tied papi. Pass Seu 2002, p. 36 23 ‘em suas proprias proclamagSes. Os progressos (tecnolégicos), no entanto, continuavam a galope enquanto a sociedade de consumo nfo parava de crescer, exatamente como a categoria do presente, da gual fazia seu alvo e que constituia, de alguma maneira, sua razio social, Apateciam na vida piblica os primeiros passos da revolugio informatica, exaltando a sociedade da informagio, mas também os Programas das biotecnologias. Logo viria o tempo, imperioso, se assim se pode dizer, da globalizagio: da World Economy, peeconi- zando mobilidade crescente ¢ apelando cada vez mais a0 tempo real; mas também, simultaneamente, da World Heritage, sistematizada pela Unesco, tal como a convengio de 1972, “pela protecdo do patriménio mundial culeural e natural” De fato, os anos 1980 viram 0 desabrochar de uma grande onda: a da meméria. Com seu alter ego, mais visivel e tangivel, 0 patriménio: a ser protegido, repertoriado, valorizado, mas também repensado. Construiram-se memoria, fe2-se a renovagio ¢ a nul- tiplicagdo de museus, grandes e pequenos. Um péblico comum, preocupado ou curioso pelas genealogias, pos-se a frequentar os arquivos. As pessoas passaram a interessar-se pela meméria dos lu- gares, ¢ um historiador, Pierre Nora, propés em 1984 0 “lugar de meméria”, Organizadora do grande empreendimento editorial dos Lieu de mémoire [Lugares de memérial, a nogao resultava inicialmente de um diagnéstico baseado no presente da Franca. Ao mesmo tempo, era langado oficialmente Shoah (1985) de Claude Lanzmann, filme extraordinariamente forte sobre o teste~ munho ¢ 0s “nfo-lugares” da meméria, Pondo diante dos olhos do espectador “homens que se colocam na condigdo de testemunha”®, © filme visava, de fato, a abolir a distincia entre 0 passado eo pre~ sente: fazer surgir 0 passado do presente. Ja em 1982, o historiador Yosef Yerushalmi publicara seu livro Zakhor, logo célebre nos dois lados do Atlintico. Com ele, abriam-se os debates sobre histéria e meméria. “Por que, perguntava-se, enquanto o judafsmo através dos tempos foi sempre fortemente impregnado pelo sentido da histria, 4 historiografia teve no maximo um papel ancilar pata os judeus, > DEGUY, Micke, de “Shoah ef de Claude Lanamonn, Pass: 1990, p40 24 e mais frequentemente, ndo desempenhou papel algum? Frente is, provagdes por que os judeus passaram, a meméria do passado foi sempre essencial, mas por que os historiadores nunca foram seus primeiros depositirios®*" Aqui, um pouco mais cedo, Ié, um pouco mais tarde, essa vaga atingju praticamente todas as costas do mundo, senZo todos os grupos sociais: a velha Europa primeiro, mas também ¢ muito os Estados, Unidos, a América do Sul apés as ditaduras, a Russia da glasnost ¢ os ex-paises de Leste europeu, a Africa do Sul apés 0 Apartheid, salvo © restante da Africa, Asia e Oriente Médio (com notivel excegio da sociedade istaclense). Tendo culminado em meados dos anos 1990, o fendmeno seguiu diversos caminhos, variando em diferentes contextos. Mas niio hi diivida de que os crimes do século XX, seus assassinatos em massa ¢ sua monstruosa indiistria da morte sio as tempestades de onde partiram sss ondas memoriais, que acabaram uunindo ¢ agitando intensamente as sociedades contemporineas. O passado nfo havia “passado” e, na segunda ou terceira gerapio, ele estava sendo questionado. Outras ondas, mais “recentes", como 2 das memérias comunistas, vio avangar por muito tempo ainda, seguindo passos diferentes e ritmos defasados™. ‘Meméria comou-se, em todo caso, 0 termo mais abrangente tama categoria mete-historica, por vezes teoldgica. Pretendeu-se fazer meméria de tudo e, no duelo entre 2 meméria ¢ a historia, deu-se rapidamente vantagem & primeira, representada por este personagem, que se tornou central em nosso espaco piiblico: a testemunha®, Interrogou-se sobre o esquecimento, fez-se valer € GOLDBERG, Sybie Anne. Le dope: ess pai Michel, 2000. p 52-53. TOSONCSY Ace M Le pes {eToys das Bue Bs Pap 9H pe te glo man so saves eta hou ous Gar io cc bal, ee es {es Haus fat x Secs Staes 1998 WIEVIOREA. Ate. fa a 15% ARTO, on Arn sere nd ‘hu Sls Hote Anne BU 208235 98 invocou-se o “dever de meméria” e por vezes, também, comegou- ~se a estigmatizar abusos da meméria ou do patriménio®. Do Pacifico a Berlim Em meu trabalho, nio estudei diretamente esses eventos de massa, Nao sendo nem historiador do contemporineo nem analista da atualidade, levei minhas pesquisas para outros caminhos, Tam- pouco slo diretamente aqueles da teoria da historia, mas me esforgo, cada vez que 0 posso, por refletir sobre a histéria fazendo histéria. Nao se trata entio de propor depois de outros, melhor que outros, uma explicagio geral ou mais geral desses fendmenos histbricos contemporaneos. Meu enfoque ¢ diferente, outro meu propésito. Esses fendmenos, eu os apreendo obliquamente, ao me interrogar sobre as temporalidades que os estruturam ou os ordenam. Por que cordem do tempo eles sio sustentados? De que ordem sio portadores ou sintomas? De que “crise” do tempo, os indicios? Para fazer isso, convém encontrar alguns pontos de entrada. Historiador da histéria, entendida como uma forma de histéria intelectual, pouco a pouco fiz minha a constatagio de Michel de Certeau. O tempo tornou-se a tal ponto habitual para o historiador que ele 0 naturalizou ou o instrumentalizou, © tempo é impen- sado, nio porque seria impensivel, mas porque nio o pensamos ou, mais simplesmente, nio pensamos nele. Historiador que se csforga para ficar atento ao seu tempo, observei ainda, como muitos outros, 0 crescimento répido da categoria do presente até que se imponha a evidéncia de um presente onipresente®, O que nomeio aqui “presentismo”, KLEIN, Kerwin. On he emergence of memory i hice dacoune, Reena 269, 2000p 127-150, Plies de Onbt Le Ge Hain, 18,198. Soyer como, srlaneamente, LADORIE, Pe. Les Part da emf mi Pas Daée de Brouwer, 200, p §3-71; ROBIN, Regine, La mimi ate Pais Sock 2003 de France? Antal m1 aureuco” (LAID. Le sane du pre, serdar oe ae present expel REVEL, ego: swags politiques dh pos. Pris Boole ds Hautes Eudes En Slenct Sov, 3301p. 53-7. 26 Pode-se delimitar melhor esse fendmeno? Qual é seu alcance? ‘Que sentido atribuira ele? Por exemplo, no ambito da histéria pro- fissional francesa, 0 surgimento de uma histéria que se reivindica, a partir dos anos 1980, “Histéria do tempo presente” acompanhou ese movimento. Para René Rémond, um de seus defensores mais constantes, “a histéria do tempo presente € uma boa medicagio contra a racionalizacdo a posterior, contra as ilusdes de tica que a distincia ¢ afastamento podem induzir®", Ao historiador foi solici- tado, algumas vezes exigido, que respondesse as demandas méltiplas, a hist6ria contemporinea ou muito contemporinea. Presente em diferentes frentes, essa histéria encontrou-se, em particular, sob 0s holofotes da atualidade judiciaria, durante processos por crimes contra a humanidade, que tém por caracteristica primeira lidar com a temporalidade inédita do imprescritivel Para fazer esta investigagio, a nogio de regime de historici- dade me pareceu operatéria, Eu filara nela uma primeira vez em 1983, para dar conta de um aspecto ~ 0 mais interessante de mew ponto de vista — das propostas do antropélogo americano Marshall a atenglo: a minha pouco mais que a dos outros”, Seriam necessitios outros tempos! Recomegando das reflexdes de Claude Lévi-Strauss sobre as sociedades “quentes” ¢ as sociedades “frias”, Sahlins buscava efetivamente delimitar a forma de histéria que fora prépria ds ilhas Sahlins, mas naquele momento ela no chamou nm AUGE, Mace Letom snes, Pars: Gate, 2003 em que lei sobre o presente perpcuo| ‘jos desragr no tem trip de ve eorarem ra” Gp. 1). Ae fe de nes mundo tide que da ge presertame ¢ sais empl do que aqucle, gave eco, que confeie George W. Stocking 0 fem. "On the mit of rtomado em Ra do Pacifico. Tendo deixado, por assim dizer, a expressio de lado, sem elabord-la muito, ev a reencontrei dessa vez nio mais com os Selvagens € no pasado, mas no presente ¢ aqui; mais exatamente, depois de 1989, ela impés-se quase por si mesma como uma das maneiras de interrogar uma conjuntura, em que a questio do tempo tornava-se pregnante, um problema: uma obsessio as vezes. No intervalo, familiarizei-me com as categorias meta-historicas da “experiéncia” e da “expectativa’, como as trabalhara o histo~ riador alemio Reinhart Koselleck, com a intengio de elaborar uma semaintica dos tempos histéricos. Interrogando as experiéncias, temporais da hist6ria, ele de fato buscava “como, em cada presente, as dimensdes temporais do pasado e do futuro haviam sido correla~ cionadas”. Exatamente isso era interessante investigar, levando em conta as tensdes existentes entre campo de experiéncia e horizonte de expectativa e estando atento aos modos de articulagio do pre- sente, do pasado ¢ do futuro. A nogio de regime de historicidade podia assim beneficiar-se do estabelecimento de um didlogo (nem que fosse por meu intermédio) entre Sablins e Koselleck: entre a antropologia ¢ a histéria. Um coléquio, concebido pelo helenista Marcel Detienne, comparatista mais que decidido, foi a oportunidade de retomé-la ¢ trabalhi-la juntamente com um antropélogo, Gérard Lenclud. Era uma maneira de prosseguir, modificando um pouco, o diélogo intermitente, mas recorrente, fatigante 4s vezes, mas nunca abando- nado, entre antropologia e histéria que Claude Lévi-Strauss havia aberto em 1949. “Regime de historicidade”, escres mos entio, podia ser compreendido de dois modos. Em uma acepcio restrita, ‘como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em. uma acep¢o mais ampla, regime de historicidade serviria para designar “a modalidade de consciéncia de si de uma comunidade Como, retomando 0s termos de Lévi-Strauss (208 quais retornarei), ela “reage” a um “grau de historicidade” idéntico para todas as sociedades. Mais precisamente, a nogio devia poder fornecer um instrumento para comparar tipos de histéria diferen- tes, mas também e mesmo primeiramente, eu acrescentaria agora, para colocar em foco modos de relagio com o tempo: formas da experiéncia do tempo, aqui e lé, hoje e ontem. Maneiras de ser no tempo. Se, do lado da filosofia, « historicidade, cuja trajetéria Paul Ricoeur reconstituiu de Hegel até Heidegger, designa “a condigio de ser histérico”, ou ainda “o homem presente a si mesmo enquanto histériat™” aqui, estaremos atentos 3 diversidade dos regimes de historicidade. Enfim, em 1994, ela me acompanhou em uma estadia em Berlim, no Wissenschafiskolleg, quando os vestigios do Muro ainda no haviam desaparecido ¢ o centro da cidade resumia-se a obras ¢ reformas, em, andamento ou vindouras, quando se discutia a reconstrugio on nio do Stadtschloss, o castelo real, e que as grandes fachadas dos prédios do Leste, destruidas e marcadas por projéteis, tomavam visivel um tempo que, ali, escoara de outro modo. Seria evidentemente filso dizer que cle se paralisara. Com seus grandes espagos vazios, suas obras e suas “sombras”, Berlim parecia para mim uma cidade para historiadores, onde, mais do que em outros lugares, podia aflorar o impensado do tempo (no somente 0 esquecimento, o recalcado, o denegado) Mais do que em nenhuma outra cidade da Europa, talvez do mundo, Berlim deu trabalho, a0 longo dos anos 1990, a milhares de pessoas, do operitio imigrante aos grandes arquitetos interna~ cionais. Chance dos urbanistas e dos jornalistas, a cidade tornou-se um ponto de pasagem obrigatério, at mesmo uma moda, um “bom tema”, um laboratério, um lugar de “reflexio”. Ela suscitou intimeros comentirios e miltiplas controvérsias; produziu massas de imagens, de falas e de textos, provavelmente alguns grandes livros eN. Daaile Paris Harman, 1999, p. 28, Ver 2 spretenagis do dost por DETIENNE, Mutcel. Conpst Henna Pars Seu, 2000. p. 61-80, também". Sem esquecer os sofrimentos ¢ as desilusGes provocadas por essas mudaneas, pois, l mais do que em outros lugates, 0 tempo cra um problema, visivel, tangivel, ineludivel. Que relagdes manter com 0 passado, 0s passados certamente, mas também, ¢ muito, com ‘© futuro? Sem esquecer o presente ou, inversamente, correndo o risco de nada ver além dele: como, no sentido préprio da palavra, habité-lo? O que destruir, 0 que conservar, 0 que reconstruir, 0 que construir, ¢ como? DecisSes e agdes que implicam uma rela~ 20 explicita com 0 tempo, que salta aos olhos a ponto de nio se querer ver? De ambos os lados de um muro, que se tomatia pouco a pouco um muro de tempo, tentou-se de inicio apagar o passado. A de~ claragio de Hans Scharoun ~ “Nao se pode querer construir uma nova sociedade ¢ ao mesmo tempo reconstruir os prédios antigos”” — podia, na verdade, valer para os dois lados". Arquiteto renoma- do, Scharoun, que presidira a comissio de urbanismo e arquitetura imediatamente ap6s a Guerra, constraiu sobretudo 0 audit6tio da Berliner Philharmoniker, Cidade emblemitica, lugar de meméria para uma Europa apreendida como um todo, entre amnésia e dever de memiria, Esta éa Berlim no limiar do séeulo XXI. Nela, aos olhos do flanewr-historiador, ainda se vem fragmentos, vestigios, marcas de ordens de tempo diferentes, como as ordens da arguitetura. Assim, formada as margens das ilhas do Grande Pacifico, a nogio aportou, ao final, em Berlim, no coracdo da historia europeia moderna, Foi nessa cidade que, retrabalhada, ela tomou finalmente forma para mim. Com o titulo Ordens do tempo 1, vamos das ilhas Fidji @ Esquéria, oa do Pacifico estudado por Sahlins ao mar das travessias de Ulisses, 0 herdi de Homero. Seri um duplo exercicio de “olhar distanciado” e um primeiro ensaio da nogio. Antes que Porexemplo, GRASS, Gunther. Toute ne Rei Traci deC, PoccelleB. Lonely. Pas Seu, 1997: NOOTEBOOM, Cees. L jour de mrt, Taudupio de Ph. Noble. Ares: Actes Sad, regime clerente, TERBAY, Ec omagre Paci Ode Jacob, 996; ROBIN, Reg i) Patinsine uma grande travesia nos faga chegar quase diretamente ao fim do século XVIII europeu, uma pequena escala,intitulada “Ulisses no Jeu Santo Agostinho”, permitirs abrir um espaco 4 experigncia cristi do tempo, a uma ordem cristi do tempo e, talvez, a um regime cristo de historicidade. Em seguida, para este momento to forte de crise do tempo nna Europa, inicio e fim da Revolugio Francesa, Chateaubriand sera nosso guia principal. Ele nos levaré do Velho ao Novo Mundo, da Franga 4 América ¢ de volta, Viajante incansivel, “nadador”, como escteveri ao final das Mémoires d’outre-tombe, que se encontrou “na confiuéncia de dois rios”, oscila entre duas ordens do tempo e entre dois regimes de historicidade: o antigo e 0 novo, o regime modemo. De fato, sua escrita jamais deixou de partir dessa mudanga de regime ede voltar a esta brecha do tempo, aberta por 1789. Com Ordem do tempo 2, & nossa contemporaneidade que in- terrogamos em segundo lugar, desta vez diretamente, a partir destas duas palavras mestras: meméria e patriménio. Muito solicitadas, abundantemente glosadas ¢ dectinadas de méltiplas maneiras, ¢s- sas palavras-chave no serio desdobradas aqui por si mesnas, mas tratadas unicamente como indicios, também sintomas de nossa relagio com o tempo ~ modos diversos de traduzie, reftatar, seguir, contrariar a ordem do tempo: como testemunhas das incertezas ou de uma “crise” da ordem presente do tempo. Uma questio nos, acompanharé: estaria em formulago um novo regime de histori~ cidade, centrado no presente? Histérias universais Nio faltaram ao longo da histaria as grandes “‘cronosofias”, isto de profecias ¢ de periodizagdes, seguidas dos discursos sobre a histéria universal — de Bossuet a Marx, passando por Voltaire, Hegel e Comte, sem esquecer Spengler ou Toynbee.'* Engendradas MIAN, L’Ond dere, plON=168; LOWTTH, Kash itl Le pups ‘ee phbpiede Misi 1953). Trad de JF, Kervga, Pars Glia, 20, por interrogagdes sobre o futuro, essas construgdes, tio diferentes quanto possam ter sido os pressupostos que as fandamentavam (quer tenham privilegiado uma perspectiva cfclica ou linear), buscaram fondamentalmente compreender as relagées entre 0 passado e 0 futuro. Descobri-las e fixé-las: dominé-las, para compreender e prever. Na entrada dessa longa galeria, em ruinas ha muito tempo, pode-se inicialmente parar por um momento em ffente 4 estétua que apareceu no sonho de Nabucodonosor, o rei da Babildnia Era uma estitua imensa, aponta a descricio, “cuja cabega era de ouro fino, © peito € os bragos, de prata; 0 ventre e as coxas, de bronze; / as pemas, de ferro; os pés, parte ferro e parte argila”. Eis que uma pedra caiu nio se sabe de onde e acabou pulverizando a estitua da cabega aos pés. Recebido pelo rei, o profeta Daniel, nico capaz de interpretar © sonho, comega declarando: “H4 um Deus nos céus que revela os mistérios e mostrou ao rei Nabuco- donosor 0 que acontecer4 nos préximos dias”. Cada metal e cada parte, explica ele, corresponde a uma monarquia: a uma primeira monarquiia se sucederi uma segunda, depois uma terceira ¢ uma quatta, antes que surja, por fim, a quinta, que serd o reino de Deus para toda a eternidade“, Tal é o significado da visio. Datado de 164 a.C.-163 aC., 0 livro de Daniel tem em vista as realezas babilénica, meda, persa e macedénica, com Alexandre ¢ seus sucessores. Os autores do livro combinam de maneira tinica um esquema metilico com aquele que trata da sucessio dos impérios, j& presente nos historiadores gregos desde Herédoto. Mas desse misto eles fizem algo completamente diferente, inscrevendo-o em uma perspectiva apocaliptica"”. Mais tarde, a identificacio das monarquias soffeu variagdes, 0 povo medo desapareceu e os romanos fecharam © ciclo por muito tempo, mas 0 valor profftico do esquema geral continuava incélume. Uma outra estrutura, igualmente de grande alcance, foi a das, idades do mundo. No século V, Santo Agostinho retomou e ilustrou Danie 2 28-45, As cfe £Baovatd Dhore MOMIGLIANO, Amalio. Daniel et tn cole grecgus de ls succetsion det empices. In Courtuts 4 Mone pene. Trad ce P Farin. Nines: Editor Els, 2002 p, 65-7 sss bilica io dt ediio ds Pine, plead toh oietagie de 32 oF muito tempo © modelo das sete idades do mundo, que servia ainda de arcabougo a0 Discours sur Phistoire universelle [Discurso sobre a histbra universal] de Bossuet no final do século XVI. Colocando diante dos olhos do Delfim “a ordem dos tempos”, 0 autor retoma “essa famosa divisio que fazem os cronologistas da duracéo do mun- do*”, Adio inaugurava a primeira idade enquanto Jesus, a sexta. Ela cortespondia ao sexto dia, idade também da velhice, e devia durar até o fim do mundo®. Mas esse “tempo intermediério” era a0 mesmo tempo velhice ¢ renovacio 4 espera do sabé do sétimo dia, que traria 0 repouso eterno na visio de Deus. Nessas tramas (4 das idades e da sucessio dos impérios somou- ~se mais tarde 0 conceito de transferéncia (translatio) do império), por muito tempo presentes ¢ eficientes na histéria ocidental, ope~ rou-se inicialmente com o humanismo uma divisio em Tempos Antigos, Idade Média (Media Aetas) e Tempos Modernos, Depois a abertura do futuro e do progresso se dissociou progressivamente © cada vez mais da esperanga do fim. Por temporalizagio do ideal da perfeigio™, Passou-se entio da perfeigio 4 perfectibilidade ¢ a0 progresso. Chegando a desvalorizar, em nome do futuro, pasado, ultrapassado, mas também o presente. Nao sendo nada mais do que a véspera do futuro, melhor senio “radiante”, ele podia, até devia ser sacrificado. O evolucionismo do século XIX naturalizou o tempo, enquanto © passado do homem se prolongava cada vez mais. Os seis mil anos da Génese nio passavam de um conto infantil. Teve-se assim, como operadores, os progressos da razio, os estigios da evolucio ou sucessio dos modos de produgio, e todo o arsenal da filosofia da historia. Foi também a idade de ouro das grandes filosofias da historia, 3s quais se sucederam, nos anos 1920, as diversas meditagées sobre a decadéncia € amore das civligagSes, A Decadéncia do Ocidente:esbogo de uma mor- {fologia da hstévia universal, de Spengler, mas também Valéry, jé citado, “desesperando-se” com a histéria e registrando o carter mortal das © BOSSUET,Jeques Bérigne. Disses ioe unison Pars Game Fama, “AUGUSTIN, La di de Dieu, 22, 30, 5 LUNEAU, Auguste, L'Hsaie sal glue, Pane Besachese, 1964, p. 259-33, % KOSELLECK. Le fur pa, em epecil p 315-320, 33 civilizagSes*. A hist6ria universal conquistadora e otimista parecia ter chegado ao fim. A entropia estava ganhando e acabaria por vencer. Nesses mesmos anos, a histéria, ao menos aquela que ambi- cionava tornar-se uma ciéncia social, buscava seriamente outras temporalidades, mais profiundas, mais lentas, mais efetivas, Em busca dos ciclos, atenta is fases © as crises, ela se fez histéria dos pregos®. Foi o primeiro programa de uma histéria econémica e social, como ele se formulou, na Franca, em tomo dos primeiros Annales. Apds a Segunda Guerra Mundial, trés linhas aparecem quanto ao tempo. A arqueologia e a antropologia fisica nfo param de mover ¢ de fazer recuar no tempo 0 surgimento dos primeiros hominideos. Conta-se agora em milhdes de anos, A “revolucio neolitica", finalmente, passou-se ontem, a Revolugio Industrial entio! Entre os historiadores, Fernand Braudel propée a todos os praticantes das ciéncias sociais a longa duragio e convida a assumir a responsabilidade pela “pluralidade do tempo social”, Atenta 3s estruturas, preocupada com os niveis e os registros, cada um com suas temporalidades proprias, 2 hist6ria se dé, por sua vez, como “dialética da duragio”. Nao ha mais tempo tinico e, se o tempo é ator, é um ator multiforme, proteiforme, anénimo também, se é verdade que a longa curacao é esta “enorme superficie de égua quase estagnada” que, inresistivelmente, “leva tudo consigo” A terceira linha, enfim, a mais importante para a nossa propos- ta, € 0 reconhecimento da diversidade de culturas. A obra Raga ¢ hist6ria, de Claude Lévy-Strauss, financiada e publicada pela Unes- co, em 1952, & 0 texto de referencia’. Nessas piginas, ele comega por criticar 0 “falso evolucionismo”, denunciado como atitude que consiste para o viajante ocidental em crer “reencontrar”, por exemplo, a idade da pedra nos indigenas da Austrilia ou de Papua. (Ceres Pas: Gali ad 1969, Bibioth2qae vom Prac su 18° 34 rea A (© progresso, em seguida, é fortemente colocado em pei formas de civilizagio que éramos levados a imaginar “co ‘no tempo” devern, pteferencialmente, ser vistas como “de no espago” Assim, a humanidade “em progresso nio lembi um personagem galgando uma escada, acrescentando, com um de seus movimentos, um degrau novo em comparagio a to aqueles cuyja conquista esti adquirida; ela evoca, antes, um jogac cuja sorte é repartida em varios dados. [...] E apenas de um temp 2 outro que a histéria & cumulativa, ou seja, que as contas se adi- cionam para formar uma combinagio favorivel”™ ‘A essa primeira relativizagio, de principio, precisa-se ainda somar uma segunda, ligada 4 propria posigio do observador. Para se fazer compreender, Lévi-Strauss apela entio para os rudimentos da teoria da relatividade: “A fim de mostrar que o tamanho ¢ a velocidade do deslocamento dos corpos nio sio valores absolutes, mas que dependem da posi¢ao de observador, lembra-se que, para uum viajante sentado 4 janela de um trem, a velocidade e 0 tamanho de outros trens variam conforme estes se desloguem no mesmo sentido ou em sentido oposto. Ora, todo membro de uma culeura € to estreitamente solidario dela quanto esse viajante ideal o é de seu trem®*”, © Sltimo argumento, enfim, que poderia parecer contradi- zet o precedente: nio existe sociedade cumulativa “em si e por si”: uma cultura isolada no poderia ser cumulativa. As formas de historia mais cumulativas, com eftito, foram alcangadas por socie- dades “combinando seus jogos respectivos”, v ntiria ou invo- Juntariamente, De onde a tese final do livro, o mais importante & a distancia diferencial entre culturas. B ali que reside sua “verdadeira contribuigio” cultural a uma histéria milenar, ¢ nio na “lista de suas invenges particulares””, Assim, agora que estamos inseridos em uma civiliza¢io mundial, a diversidade deveria ser preservada, mas com a condigio de percebé-ta menos como contetido do que 9.393.206 % LEVLSTRAUSS. Rachie 397 © LEVE-STRAUSS. Race hile, como forma: conta sobretudo 0 proprio “fato” da diversidade e menos “o contetido histérico que cada época lhe deu’*”. Por meio de suas convenges ¢ suas cartas, a Unesco entendeu (a0 menos parcialmente) a mensagem, tendo em vista que est em elaboracio uma convengio internacional sobre a diversidade cultural. Tais sio 0 principais pontos de um texto, saudado, em um dado momento, como “o tiltimo dos grandes discursos sobre a historia universal Porém, justamente em 1989, o género subitamente reencon- trou uma ampla audigncia com “O Fim da Historia e o Ultimo Homem” de Francis Fukuyama. Como que para uma nova, mas também iiltima floragio? A principio apresentada sob a forma de uum artigo que deu a volta ao mundo, a tese, retomada em seguida em livro, pretendia sugerir que a democracia liberal poderia bem constituir “a forma final de todo govemo humano* ¢, entio, nesse sentido, “o fim da Historia". “O aparecimento de forgas democri- ticas em partes do mundo onde sua presenga nio era esperada, a inscabilidade das formas autoritérias de governo e a completa auséncia de alternativas tedricas (coerentes) 4 democracia liberal nos forgam, assim, a refazer a antiga questo: sera que existe, de um ponto de vista muito mais ‘cosmopolita’ do que era possivel no tempo de Kant, uma histéria universal do homem?”*, Para Fukuyama, a res- posta & sim, mas ele actescenta imediatamente: ela esté terminada*! % LEVISTRAUSS, Raa. ” POMIAN, L’Oxte @ FUKUYAMA, ran ef de Vitae edo homme. Pars Flamin, 1992, p ‘Spt fe Moar, Jacques Dewi Pais: Gale, 1993), Frese de Fukuyaa, al, uenpoco pens que es se, contudo, ds imeropaches preentes bre tempo, por pare a esgiayresberam ma tenga dae do pico. Exploradar dos mecinisinos tempo var © que nome como "vidas hires snundias" documentand 0,0 de ~221, lend para o mundo mederrineo © 0 mado chine) so, ex 1989, Le Syme de hiss (Pai aya Sina preiar eas anise, convencido de que = sa de um defo de ex ss deve peomise que a acem sts de “curs plants" ive, Ver amb ay reflexes de Jen Bechler, que prope ears: Fayrd, 2002 ce sendndicar um aleance Ecquise Pune hse 36 Regimes de historicidade ‘Onde situar a nogo de regime de historicidade nessa galeria de grandes referéncias percorrida rapidamente? Sua pretensio € infinitamente mais modesta e seu alcance, se houver um, bem mais limitado! Simples ferramenta, o regime de historicidade nio pretende falar da histéria do mundo passido, ¢ menos ainda do que esti por vie. Nem cronosofia, nem discurso sobre a histéria, tampouco serve para denunciar o tempo presente, ou para deplord- -lo, mas para melhor esclarecé-lo. historiador agora aprendeu a no reivindicar nenhum ponto de vista predominante. Q que nio 0 obriga de forma alguma a viver com a cabega enterrada na areia, ou unicamente nos arquivos e enclausurado em seu periodo. ‘Tampouco busca reativar uma historia transformada por um tempo fanico, regulado ele mesmo por um tinico staccato do acontecimento ou, ao contririo, pela lentidio da longa ou bem longa duracio. Nio é 0 caso de se privar de todos os recursos de inteligibilidade aportados pelo reconhecimento da pluralidade do tempo social. De todos esses tempos folheados, imbricados, desencontrados, cada um com seu ritmo préprio, dos quais Fernand Braudel, seguido por muito outros, foi © descobridor apaixonado. Eles enriqueceram consideravelmente © questiondrio das ciéncias sociais, tornando-o mais complexo ¢ refinando-o. Formulada a partir de nossa contemporaneidade, a hipétese do regime de hiscoricidade deveria penmitir 0 desdobramento de um questionamento historiador sobre nossas relagSes com 0 tempo. Historiador, por lidar com varios tempos, entre o presente e © passado, ou melhor, passados, eventualmente bem distanciados, tanto no tempo quanto no espago. Este movi- mento é sua (inica especificidade. Partindo de diversas experiéncias do tempo, o regime de historicidade se pretenderia uma ferramenta heuristica, ajudando a melhor apreender, nio 0 tempo, todos os tempos ou a totalidade do tempo, mas principalmente momentos de crise do tempo, perder sua evidéncia as articulagdes do passado, do presente e do futuro. Isso nio é inicialmente uma “crise” do tempo? Seria, dessa maneira, ando um vaivérn quando vém justamen 97 uma forma de esclarecer, quase do ceme, as interrogagdes de hoje sobre o tempo, marcado pela equivocidade das categorias: hi relagdo entre um passado esquecido ou demasiadamente lembrado, entre um futuro que quase desapareceu do horizonte ou entre um porvir ameagador, um presente continuamente consumado no imediatistno ‘ou quase estético ou interminivel, sendo eterno? Seria também uma maneira de langar uma luz sobre os debates miiltiplos, aqui ¢ Ii, sobre a meméria e a histéria, a meméria contra a histéria, sobre 0 jamais suficiente ou 0 jé em excesso de patriménio. Operatéria no espago de interrogagiio assim produzido, a no- io valeria por e para esses movimentos de ida e retomno, Se desde sempre cada ser tem do tempo uma experigncia, nio visamos aqui consideré-la integralmente, indo do mais vivenciado ao mais ela borado, do mais intimo a0 mais compartilhado, do mais orginico 0 mais abstrato®. A atengio, & preciso repetir, incide inicialmente ¢, sobretudo, sobre as categorias que organizam esses experiéncias © permitem reveli-las, mais precisamente ainda, sobre as formas ou os modos de articulag2o dessas categorias ou formas universais, que sio 0 passado, o presente ¢ o futuro™. Como, conforme os lugares, ‘05 tempos e as sociedades, essas categorias, de pensamento € ago a0 mesmo tempo, sio operacionalizadas e vém tornar possivel e per- ceptivel o deslocamento de uma ordem do tempo? De que presente, visando qual passado e qual faturo, trata-se aqui ot Ia, ontem ou ilo de experitci, ver KOSELLECK, Reinhart de Viti. Teadugis| iautes ode), principale p. 201-204, experi huns GENVENISTE, Emile, Probe di 11966, p. 3-13). O veer de « fnuro: “Os conceites de passa, presente eSsro sna taglo que se esabelece ene ua ssie de mixtangs © 3 experéncn uma pessoa 08 Um grupo. Um 8a sparéncis dem presente de um paid ou de ance datewinado no interior dew fino con ‘que pasado, p ‘iecenes, um Gio conceto” ELIAS. Du ump, p85). 38 hoje? A anilise focaliza-se assim em um aquém da histria (como género ou disciplina), mas toda histéria, seja qual for finalmente seu modo de expressio, pressupde, remete a, tradur, trai, enaltece ou contradiz uma ou mais experincias do tempo. Com o regime de historicidade, tocamos, dessa forma, em uma das condigdes de possibilidade da produgio de histérias: de acordo com as relagées respectivas do presente, do passado e do fiaturo, determinados tipos de historia sio posiveis e outros nio. © tempo histérico, se seguirmos Reinhart Koselleck, & pro- duzido pela distincia criada entre o campo da experiéncia, de um lado, e 0 horizonte da expectativa, de outro: ele é gerado pela tensio entre os dois lados*, E essa tensio que o regime de historicidade propde-se a esclarecer, e & dessa distincia que essas paginas se ocu- pam. Mais precisamente ainda, dos tipos de distincia e modos de tensio. Para Koselleck, a estrutura temporal dos tempos modernos, marcada pela abertura do futuro e pelo progresso, caracteriza-se pela assimetria entre a experiéncia ¢ a expectativa, A partir do final do século XVII, essa historia pode esquematizar-se como a de um Gesequilfbrio que nio parou de crescer entre essas duas, sob 0 efeito da aceletagio, De modo que a maxima “quanto menor a experién- cia, maior a expectativa” poderia resumir essa evolugio. Ainda em 1975, Koselleck interrogava-se sobre 0 que poderia ser um “fim” ou uma saida dos tempos modemos. Isso ni se revelaria por uma méxima do gfnero: “Quanto maior a experiéncia, mais prudente e aberta € a expectativa®? Ora, nio foi uma configuragio suficientemente diferente que se impés desde entio? Aquela, pelo contrério, de uma distincia que se tomou maxima entre o campo da experiéncia e o horizonte da expectativa, até o limite da ruptura. De modo que a produgio do tempo histérico parece estar suspensa, Daf talvez essa experiéncia contemporinea de um presente perpétuo, inacessivel e quase imével que busca, apesar de tudo, produzir para si mesmo 0 seu préprio tempo histérico. Tudo se passa como se nfo houvesse nada mais do © KOSBLLECK. Le fe po 316 © ROSELLECK. Le ftw pas, p 326227 20 que o presente, espécie de vasta extensio de Agua agitada por um incessante marulho, E conveniente entio falar de fim ou de saida dos tempos modemos, isto é, dessa estrutura temporal particular ou do regime modemo de historicidade? Ainda nio sabemos. De crise, certamente. E esse momento € essa experiéncia contemporinea do tempo que designo presentismo. Nem discurso sobre a historia universal, nem historia do tem- po, nem mesmo tratado sobre a nogio de regime de historicidade: estas paginas atém-se entio a momentos de historia e em algumas Palavras do momento, elegem alguns personagens famosos ¢ leem ou releem virios textos, questionando todos do ponto de vista das formas da experiéncia do tempo que os constituem ou 0s habitam, sem que eles se deem conta 3s vezes. A investigagao nio busca ent merar todos os regimes de historicidade que puderam ocorrer na longa hist6ria das sociedades humanas. Produzida pela conjuntura presente, a reflexio nio para de colocé-la a distincia, recuando no tempo, esforgando-se por voltar a ela de maneira mais satisfatria, wnias sem jamais ceder & ilusio de domind-la. Mais uma vez, pot co1 viceio intelectual e por gosto, optei pelo “movimento que desloca as linhas”, que privilegia os limites ¢ os limiares, 0s momentos de inflexio ou de reviravolta c as divergéncias, Essa j era a dinimica organizadora do meu livro O espelho de Herédoto. Colocado no limite da Histéria ocidental, de qual lado do limiar estava entio Herédoto? Aquém ou além? Ainda nio ou ji historiador? Pai da histéria ou mentiroso? Pode-se dizer 0 mesmo quando, no espago mais reduzido e também mais contido da his- toriografia francesa, eu me deparei com Fustel de Coulanges. Com le, percorri um século de histéria. Nascido em 1830 e filecido no ano do centenirio da Revolugio Francesa, ele foi historiador, certamente, quase em excesso, mas sem deixar de se encontrar em porte @ faux**: em relagio a uma histéria-ciéncia da qual foi, no en- tanto, um dos mais austeros promotores, no que conceme a uma nova Sorbonne que criou para ele a primeita cétedra de Historia one dfs: enconrarse em ums posite insivel,devqulbrads, ou ene pois siuéns (Now do revaor ge} 40 medieval; e & essa condigio de porte @ faux, que durou para além da sua morte, que me autorizou a constituir o caso Fustel. Quanto a Ullisses, aquele de Mémoire d’Ulysse (Membria de Ulisse, livro de questionamentos sobre a fronteira cultural no mundo antigo, & para mim emblemético dessa perspectiva. Como viajante inangural ¢ homem-fronteira, ele & 0 que nio cessa de colocar fronteiras e de atravessé-las, com 0 risco de se perder. Com © grupo formado pelos que o seguiram, viajantes por uma razo ou outra, no espago da cultura grega, ele traga os contomos de uma identidade grega. ‘Com eles, construfram-se, no espaco e na longa duragio de uma. cultura, esses itinerdrios gregos, atentos aos momentos de crise no qual as percepgdes enevoam-se, infletem-se, reformulam-se Hoje, com os regimes de historicidade, 0 objeto & outro, a conjuntura também. Trata-se de um noyo itinerdrio, agora entre ex- periéncias do tempo e historias, desenvolvendo-se em um momento de crise do tempo. A perspectiva ampliou-se, o presente esti mais diretamente presente, mas perdura a maneira de ver e de fazer, de avangar: o que se tornou minha maneia de trabathar. tek Meus agradecimentos vio para Jean-Pierre Vernant, que me encorajou 4 escrever ext livro ¢ foi seu primi letor, Obrigado a Maurice Olender, que me propds fazt-lo, assim como a Gérard Lenclud, Eric Michaud, Jacques Revel e Michael Wemer. Obrigado, finalmente, aos ouvintes do meu semindro, que toleraram esses “regimes”. al

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