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OESTADO O PODER O SOCIALISMO NICOS POULANTZAS bg coum ert Cree erat Merl eae) desdobramento de um estatismo cada voz eeu arctic at do ocidental. Nos paises dilos de “socials. ace nae ae eee acc) eee C ter ements eum eeun ia PacMan To Dea au eer cen Cie eae) ere ECE ect ers ee ee ee ey Re cen eee tre (eae e cere eect Cee eet ae ea eta rr} Pentre mee ene ets er mem te nec aman cut © 9 desemalvinento da coniribuicae do eee ee ene Coe en ei eters mento pela aprociacao critica de analises EO en tec me rer Sota aac aera eeea gt Sea eae ereet Crna aU acetal SS eee eae See tne Punsalan eaten eget Ios eer ten ereeee ett mee Mesh ree Guest een een mrs oe eee ete Neue eer Cae eae et) errr ees Nani Ente livro de Nicos Poulantzas.pro- poe-s0 enfrentar sigumas das mals dificels questoes politics de nosso Sem divide, algumas delas jé trabalhoe anterlo- no que diz Mas, justamente em rolagho & mals densas de titiglo tedrico e con oltual, este trabalho testemunha. im portante revisita do escritor a sua obra, ‘submetendo-a ao crivo dos seus crit 608 @ de suns proprias auto-criticas. preocupacbes acabam por assu- qul uma dimensto finalista: tra de por no centro dos debates 0 problema da democracia © do soc ‘mo, Ov, mals. precisamente, o probie- ‘na do ‘soclalismo democrético, capaz do superar néo apenas os conhecidos mites da democracia representative ‘mas igualmente apto o levar a ume pratte"vibilizadora do. um soclaliamo dofinitivamente comprometide com 0 desenvolvimento das liberdades @ com o, real poder « mutonomla ds bases po- tien, © Intento” penetra fundo nos tempos modernoe, No mundo seldertal, 0 Ee tado #0 agigant complexifica em tals. proporoées, que parece irremediar volmente assinalar o declinio das de- mocracias politicas, No ambito dos Palsos chamados de “socialismo real”, fom lugar do definhamento do Estado, como provisto por Marx @ Engels, eonstata-se eeu revigoramento cons. tra ‘contemportineos? Quals as matrizes do ‘autoritarismo como prética e discurso? ‘Quals o» Instrumentos que a socledade NICOS POULANTZAS 0 ESTADO, 0 PODER, 0 SOCIALISMO. Traduzido por RITA LIMA Revisto SEVERINO BEZERRA ras Fundador: MAX DA COSTA SANTOS Ficha Catalogratica CIP-Brasil. Catalogacdo-na-t Sindicato Nacional dos Editores aa tee: RJ. Poulantzas, Nicos. 7 18 Estado, o poder, 0 socialismo / Nicos Poulantzas, — lo de Janeiro: Bdicbes (Biblioteca de Ciéncias sociais; v. n. 19) char Tatueto de: L’état, le pouvoir, Ie so- 1. Socialismo T. Titulo II. Série CDD — 335 80-0769 DU — 330,342.15 INDICE Adverténcia INTRODUGAO . |. Sobre a Teoria do Estado . Il, Os Aparethos Ideolégicos: 0 Estado, represséo + Ideologia . Ill, O Estado, os poderes e as lutas . PRIMEIRA PARTE A MATERIALIDADE INSTITUCIONAL DO ESTADO 1, 0 trabalho intelectual ¢ 0 trabalho manual, © saber e 0 poder . ll. A individualizagao 1 —A ossatura do Estado e as técnicas do poder 2—As M.A Lei 1 — Lei e Terror IV, A Nagao. ...., f 1 — A matriz espacial: 0 Territério 2 — A matria temporal ea. histaricidad a tradig&o, 3 — A Nacdo e as Classes . 1 13 13 33 40 55 60 70 70 78 85 85 105 113 123 A32 SEGUNDA PARTE AS LUTAS POLITICAS: O ESTADO, GONDENSAGAO DE UMA RELACAO DE FORGAS . 141 |. 0 Estado e as classes dominantes ....... 145 Nl. Estado e as lutas populares .7......... 161 ll, Para uma teoria relacional do poder . 167 IV. O pessoal do Estado ........, 177 TERCEIRA PARTE © ESTADO E A ECONOMIA HOJE . 187 |. Sobre as fung6es econdmicas do Estado . 190 Ml. Economia e Politica «2... 60... .......00.. 207 Il. Os limites do Estado-Moloch . 220 I. Conclusées provisérias ............. 226 QUARTA PARTE © DECLINIO DA DEMOCRACIA: O Parise AU: TORITARIO. ..... 233 |. Estotismo autoritério © totalitariemo oar, 299 I. A Irresistivel ascenséo da ae ease de Estado ..... 250 WL Partido ‘dominante:'de’ mages 269 IV. © enfraquecimento do Estado . 279 PARA UM SOCIALISMO DEMOCRATICO ......... 287 ADVERTENCIA ‘A urgéncia deste trabalho em sua origem deve-se, inicialmente, a situacdo politica na Europa. Se a ques- téo de um socialismo democratico nao esti na ordem do dia em todo o mundo — longe disso —, apresenta-se todavia em varios paises europeus. Essa urgéncia deve- se igualmente & emergéncia do novo fenémeno — o estatismo autoritério —, que marca grandemente o conjunto dos pafses ditos desenvolvidos. Leva, enfim, & discussdo que tem lugar atualmente na Franca e fora dela em torno do Estado e do poder. Os trabalhos sobre esse assunto apresentam-se sob uma forma dita teérica ou, ao contrario, sob uma forma de intervengao politica direta numa conjuntura preci- sa. Kis ai um velho habito. Tentei livrar-me dele: os problemas atuais sdo suficientemente importantes e no- vos para merecerem um tratamento aprofundado, Por outro lado, hoje, mais que nunca, a teoria nao pode enclausurar-se em sua torre de marfim. Tentar, porém, escapar deste hébito confortavel apresenta inconvenientes que nem sempre pide ou sou- be evitar. Resumem-se na tendéncia a se fazer, num sentido ou noutro, ao mesmo tempo emi demasia ou insuficientemente. Em primeiro lugar, no campo te6ri- co, nao pude, evidentemente, tratar de todos os pro- blemas que se apresentam nesses dominios, assim como néo pude tratar em profundidade daqueles que abordo. Este trabalho no apresenta, portanto, ordenacdo siste- lL mética, Se suas partes se encadeiam e se relacionam umas as outras, pretendem ser esclarecimentos de tais ou tais aspectos das diferentes questdes. Em seguida, no campo politico, no pude tratar de uma conjuntura politica concreta, a da Franca espe- cialmente, em seus detalhes e particularidades. De qualquer forma, a concepeao deste trabalho ex- plica o lugar reduzido ocupado pelas referéncias biblio- gréficas. Sendo a literatura nestes campos imensa, e querendo deixar de lado a rigidez académica, decidi deli- beradamente reduzi-las ao estritamente necessdrio, espe- cificamente aos casos em que cito expressamente um autor e as pesquisas efetuadas na Franca, Isto é igualmente valido para o que se considera como obras cléssicas do marxismo, cujas referencias completas constam de meus livros anteriores, Mas, no tl- timo caso, ndo sao somente estas as razdes dessa decisio. H4 também uma outra: néo pode haver marxismo orto- doxo. Ninguém pode proceder como um guardiéo de dogmas e textos sagrados. Nao tentel me resguardar atras deles, 0 que explica também o emprego neste livro do pronome pessoal e a referéncia a meus proprios tex- tos. Nao que pretenda falar em nome de algum marxis- mo auténtico, mas razées exatamente inversas: assumo a responsabilidade do que escrevo e falo em meu proprio nome. 12 INTRODUCAO 1. Sobre a Teoria do Estado 1 Quem escapa ao Estado e ao poder hoje, e, também, quem disso no fala? A situacéo politica atual, nao so- mente na Franca mas em toda a Europa, é certamente responsivel por alguma coisa. Embora no seja suficiente falar dela, é preciso ten- tar compreendé-la, conhecé-la e explicé-la, Para fazé-lo, néo se deve hesitar em tomar, sem rodeios, os problemas pela raiz, Convém, também, escolher os meios e nfo ce- der as facilidades de uma linguagem analégica e.meta- forica, por mais tentadora que seja e por mais sucesso que atualmente faca, Minhas primeiras consideracoes serdo sem divida bem dridas, porém nao tenho, infelia- mente, como Alphonse Allais, o prazer de renunciar a este capitulo para passar mais rapidamente aos capitu- los seguintes, tao interessantes. : ‘Toda teoria politica deste século sempre propée no fundo, abertamente ou nao, a mesma questao: qual a relagdo entre o Estado, o poder e as classes sociais? Digo exatamente deste século porque néo foi sempre assim, 13 pelo menos sob esta forma. Foi preciso que o marxismo abrisse caminho. Toda teoria politica, desde Max We- ber, ou é dialogo com o marxismo ou prende-se a ele. Em si consciéncia, quem se preocuparia ainda em negar a relacdo entre o poder e as classes dominantes? Ora, se toda teoria politica coloca a mesma questdo, apresenta sempre também, em sua grande maioria e através de intimeras variantes, a mesma resposta: haveria em prin- cfpio um Estado, um poder, que se tenta explicar de miltiplas maneiras, com o qual as classes dominantes estabeleceriam, em’ seguida, tais ou quais relacdes de vizinhanca ou de alianca. Percebem-se estas relacées de maneira mais ou menos sutil, evocando-se os grupos de pressio que agem sobre o Estado ou as engenhosas e sinuosas estratégias que se propagariam nas malhas do poder e que se moldariam aos seus dispositivos. Esta representacao levaria sempre ao seguinte: o Estado e o poder seriam constituidos de um nucleo inicial impene- travel e de um “resto”, que as classes dominantes, agin- do por fora, poderiam 'influenciar ou no qual poderiam se introduzir. , no fundo, tomar a imagem renovada do Estado pela de Jano ou, melhor ainda, pela que jé obce- cava Maquiavel: Poder-Centauro — metade-homem, me- tade-fera, © que muda de um autor a outro é que ora a face-homem, ora a face-fera se coloca do lado das classes. Quando nao vejamos: se assim fosse, como explicar, sendo como por ataque de cegueira, o que constatamos cotidianamente, no como filésofos, mas como simples cidadaos? # cada dia mais evidente que estamos enre- dados nas praticas de um Estado que, nos minimos detalhes, manifesta sua relacio com interesses particula- res e, conseqiientemente, bem precisos. ‘Um certo marxismo, sempre preso a uma certa tra- digo politica, pretende nos dar a resposta: 0 Estado se reduziria & dominag&o politica no sentido em que cada classe dominante produziria seu proprio Estado, & sua medida e A sua conveniéncia, e manipulé-lo-ia & sua von- lade, segundo seus interesses. Todo Estado nfo passaria, neste sentido, de uma ditadura de classe. Concepcao puramente instrumental do Estado que reduz, empre- 4 guemos j4 os termos, aparelho de Estado a poder de Estado, A esta concepeao falta essencial. Néo que o Esta- do nao tenha uma “natureza de classe”, mas justamente © problema, que é 0 de toda teoria politica do Estado, apresentou-se também aos pais fundadores do marxis- mo, embora eles nao o tenham abordado sob o mesmo Angulo. Este problema também os preocupa, ou melhor, 08 obceca. O Estado, insistem, 6 um aparelho especial: possui uma ossatura material propria que ndo é redu- zivel As relagdes (tal e qual) de dominagao politica. O que pode ser formulado para o Estado capitalista da seguinte maneira: por que a burguesia geralmente re- corre, com a finalidade de dominacao, a este Estado na- cional-popular, a este Estado representativo moderno com suas instituigdes proprias, e ndo a um outro? Por- que nao é de maneira nenhuma evidente, longe disso, que, se a burguesia pudesse criar um Estado completo e conforme suas conveniéncias, teria escolhido este Es- tado. Se este Estado Ihe propiciou, e propicia continua- mente, muitos beneficios, ela est4 longe, nao mais hoje do que no passado, de se gabar por isso. Questo candente esta, pois diz respeito igualmente ao estatismo atual, as atividades do Estado que se esten- dem, como se sabe, a todos os campos da atividade da vida cotidiana. Ai também, a resposta dada por este marxismo nao tem atrativos: 0 conjunto destas ativi- dades seria a emanacao da vontade da classe dominante ‘ou dos politicos a seu soldo e sob seu tacdo. Existe ento, é evidente, uma série de fungées do Estado, como a seguranca social, por exemplo, que nao se reduzem unicamente ao dominio politico. 3 Por menos que se tente fugir & imagem de um Estado e do poder; ela se reporta particularmente as for- nante,'depara-te imediatamente com outa, armadilis outra, porém ainda a mesma — a da tradicional réplica. da, teoria politica. Outro marxismo, mais atual ainda, nao consegue evita-lo: evoca a dupla natureza do Es- tado, Haveria por um lado (ainda a grande diviséo) um micleo do Estado, de certa forma separado das classes e 15 de suas lutas. Certamente a explicaciio desse nticleo néo é dada da mesma maneira que nas outras teorias do Estado e do poder; ela se reporta particularmente as for- gas produtivas, as quais se reduzem as relagdes de pro- ducdo, Trata-se da famosa estrutura econémica, onde as classes e suas Iutas estariam ausentes, Ela’ daria lugar a um primeiro Estado, precisamente “especial”, e @ medidas puramente técnicas ou, segundo um termo mais nobre, puramente sociais do Estado. Isto 6, haveria entdo outra natureza do Estado, relacionada desta vez com as classes e suas lutas. Um segundo Estado, um superestado dentro do Estado, em suma, um Estado que agregaria a si o primeiro’ao implantar-se nele, e que seria entao o Estado de classe. Neste caso, o da bur- guesia e da dominacdo politica. Este segundo Estado viria para perverter, viciar, contaminar ou desviar as fungées do primeiro. Referia-me também a um certo marxismo, que chamei de tecnocratismo de esquerda, € que atualmente assola, sobretudo quando nao menciona as forcas produtivas e menciona de maneira prosaica a complexidade intrinseca das tarefas técnico-econdmi- cas do Estado nas chamadas sociedades “pés-indus- triais”, as quais fazem que... ete. Portanto, esta resposta ndo difere tanto da secular resposta da teoria politica tradicional, ou ao gosto do fregués: um Estado-poder a parte, que seria, por con- seguinte, utilizado de tal ou qual maneira pelas classes dominantes. Falamos das coisas como sao: néo se pode- ria falar de uma natureza de classe, mas de uma uliliza- edo de classe do Estado. Usei o termo de dupla natureza do Estado, no entanto este termo ndo engloba a reali- dade dessas andlises. A verdadeira natureza do Estado € 0 primeiro Estado; o outro é um hébito. Como para @ teoria politica secular — a do Estado como metade- homem, metade-fera: o verdadeiro Estado-poder para ela também nao é a metade que est do lado do quintal (do lado das classes), mas a outra que esté do lado do Jardim. So esquematizo para sugerir o seguinte: se toda teoria politica, todas as teorias do socialismo (inclusive © marxismo) giram sempre em torno desta mesma ques- 16 to, é que existe af um problema real. Nao é, muito ao tontrétlo, © Unico neste campo, mas 6 o principal ¢ diz respeito também, supée-se, & questdo da transfor- mac&o do Estado numa transic¢ao para o socialismo de- mocratico. O que quer que seja, 86 hé um meio que neste campo leva a algum ponto, s6 uma resposta. que pode fazer sair do circulo, Tal resposta pode ser dada de maneira simples: o Estado apresenta uma ossatura material propria que nao pode de maneira alguma ser reduzida & simples dominac&o politica. O aparelho de Estado, essa coisa de especial e por conseqiiéncia temi- vel, nao se esgota no poder do Estado. Mas a dominacao politica esté ela propria inscrita na materialidade insti- tucional do Estado. Se o Estado nao é integralmente produzido pelas classes dominantes, néo o é também por elas monopolizado: o poder do Estado (o da burgue- sia no caso do Estado capitalista) est4 inscrito nesta materialidade. Nem todas as acdes do Estado se reduzem A dominagdo politica, mas nem por isso séio constituti- vamente menos marcadas. preciso demonstré-lo. Tentar fazé-lo néo seria, a meu ver, uma tarefa facil, As questées mais simples s80 também, quando verdadeiras, as mais complexas. Para nao se perder nos dédalos e labirintos é preciso nao per- der o fio da meada, Deve-se procurar o fundamento da ossatura material do Estado nas relagdes de produgéo @ na diviséio social do trabalho, néo no sentido que se entende habitualmente, nem no que se acabou de ver. No se trata ai de uma estrutura econémica em que as classes, os poderes e as lutas estariam ausentes. A bus- ca deste fundamento ja estabelece uma relagao entre 0 Estado, com as classes e as lutas, embora nao passe de um primeiro paso, Por se tratar do fundamento, con- centrar-me-ei no seu exame para entrar no debate atual mais amplo sobre o Estado 0 poder. ' 2 preciso, pols, comecar por uma breve revisdo de ie ioaionacave eu proprio fiz em trabalhos an- teriores. a7 A relagio do Estado com as relagdes de produgao jd apresenta o problema da relacdo do Estado e da “base econémica”. Do que se entende precisamente pelo termo “base econémica”, depende a posigao que se adota quan- to a relagéo do Estado e as relagGes de producao e, conse- qientemente, do Estado e das lutas de classes, # mais do que nunca necessdrio demarcar-se da concepcao economicista-formalista, que considera a economia como sendo composta de elementos invariantes através dos diferentes modos de producéo — de natu- reza e de esséncia quase aristotélicas, e como sendo auto- reproduzivel e auto-reguldvel por uma espécle de com- binatéria interna, Essa foi, sabe-se, uma tentacdo per- manente na histéria do marxismo e que mantém-se ainda atual. Esta concepcio, reatando neste ponto com 0 economicismo tradicional, oculta as lutas travadas no cerne mesmo das relagdes de produgao e de exploracio, Considera igualmente o espaco ou campo do econdmico (e, em contrapartida, o do politico, do Estado) como imutavel, possuindo limites intrinsecos, tracados de uma vez por todas por sua pretensa auto-reproducéo, através de todos os modos de producdo, No plano das relacoes do Estado e da economia, esta concepeao, aliés bastante antiga, pode dar lugar a dois equivocos cujas conse- qiiéncias se apresentam freqiientemente agrupadas. Pode, por um lado, respaldar um velho equivoco referente a representacéo topoldgica da “base” e da “superestrutura”’ e considerar assim o Estado como sim- ples apéndice-reflexo do econémico. A relagao do Estado e da economia se converteria, no maximo, na famosa “ago retroativa” do Estado sobre uma base econémi considerada no essencial como auto-suficiente. Trata-se af da concepeo economicista-mecanicista. tradicional do Estado, cujas implicacdes e conseqiiéncias séo agora suficientemente conhecidas para que sobre elas eu me estenda, Porém ela pode dar margem igualmente a um outro equivoco, quando 0 conjunto € concebido sob a forma de instdncia ou niveis por natureza ou esséncia auténomos. Sendo a economia apreendida por uma série 18 de elementos invariantes num espaco intrinseco através dos diversos modos de producio (escravismo, feudalis- mo, capitalismo), a mesma concepeao serd aplicada, por analogia, as inst@ncias superestruturais (Estado, ideo- Jogia). Seré a combinacdo a posteriori destas instancias, por natureza auténomas, que ocasionaré os diversos modos de produgao. A esséncia dessas instancias é ante- rior 4 sua articulagéo no interior de um modo de produgao. Aqui, em vez de tomar as instdncias superestrutu- rais como apéndices-reflexos da economia — esta tiltima concepcao baseada sempre na representacao de um espa- 0 econdmico auto-reprodusivel em si mesmo —, corre- se o risco de substancializi-las e dotd-las de autonomia invariante através dos diversos modos de producao, em relacdo & base econdmica, A autonomia de natureza ‘das insténcias superestruturais (Estado, ideologia) servira de legitimagao & autonomia, a auto-suficiéncia e a auto- reprodugdo da economia, Vé-se pois a conivéncia teérica destas duas concepcoes, que encaram as relac6es entre 0 Estado e 0 econémico como relagoes de ezterioridade de prinefpio, quaisquer que sejam as figuras empregadas para designé-las. Assim, a imagem construtivista da “base” e da “superestrutura” — de uso meramente descritivo, per- mitindo visualizar de certa forma o papel determinante do econémico — nao somente nao pode convir a uma representag&o correta da articulacdo da realidade social, e conseqtientemente de seu papel determinante, como revelou-se com 0 tempo desastrosa em varios ‘sentidos. Tudo se tem a ganhar se nela nao se confia;.hé muito tempo que nfo @ utilizo na andlise do Estado. Estas concepgdes repercutem igualmente sobre a decomposicao e construcao dos objetos passiveis de tra- tamento tedrico. Apresentam em comum o fato de admi- tirem como possivel e legitima uma teoria geral da eco- nomia enquanto objeto epistemologicamente isolavel, teoria do funcionamento trans-histérico do espaco eco- némico. As diferenciagses do objeto-economia nos diver- sos. modos. de produgdo ilustrariam simplesmente 19 metamorfoses internas de um espaco econémico auto- regulado, de limites inalterdvels, metamorfoses e trans- formagées de que a teoria geral da economia (a “ciéncia econémica”) desvendaria o segredo. Estas duas concep- ges divergem no plano das chamadas superestruturas, Chegando a resultados opostos, uns tao falsos quanto 08 outros, Para a primeira concepeao, é inaceitavel todo tratamento especifico dos campos superestruturais de objeto proprio. Nesse caso a teoria geral fornece apenas ‘as bases para a explicacdo de superestruturas — refle- xos meciinicos da base econémica. Em contrapartida, para a segunda concepcio, a teoria geral da economia deve desdobrar-se por analogia numa teoria geral de todo campo superestrutural, e nesse caso do campo politico — Estado. Esta teoria geral do Estado também deve ter como fim especifico e isolado o Estado atra- vés dos diversos modos de producéo: sendo o Estado um objeto epistemolégico, deve possuir limites inalte- raveis que Ihe seriam atribuidos por excluséo, fora dos limites intemporais da economia. As fronteiras intrin- secas do objeto-economia, realidade auto-reproduzivel do interior por forca de suas lels internas, tende as fronteiras intrinsecas do exterior, isto ¢, do Estado, es- paco imutdvel, pois que envolve o proprio espago imu- tdvel da economia, Concepgdes erréneas. Afinal de que se trata? 1. © espago e o lugar da economia, o espaco das relagdes de producao, de exploracao e de extracéo do excesso de trabalho (espaco de reprodugio e de acumu- lacio do capital e de extragéo da mais-valia no modo de producdo capitalista) jamais constituiu, nem nos outros modos de producio (pré-capitalistas), nem no capitalismo, um nivel hermético e enclausurado, auto- reprodurivel e depositério de suas prdprias “leis” de funcionamento interno. O politico-Estado (valido igual- mente para a ideologia), embora sob formas diferentes, sempre esteve constitutivamente presente nas relacdes de producdo, e assim em sua reprodugdo, inclusive no estagio pré-monopolista do capitalismo, contradizendo 20 uma série de ilusées relativas ao Estado liberal, que su- postamente néo interfere na economia, a ndo ser para friar e manter “‘a infra-estrutura material” da produ- giio. # bem verdade que o papel do Estado em relagio fT economia modifica-se ndo somente no decorrer dos diversos modos de producdo, mas também segundo os estagios e fases do proprio capitalismo. De qualquer for- ma, estas modificagdes nao podem, em hipétese alguma, inscrever-se numa figura topoldgica de base, pois o Es- tado, instdneia sempre exterior & economia, ora inter- viria’ nas relagées de produgdo penetrando no campo tconémico, ora manter-se-ia de fora agindo apenas em sua periferia. © lugar do Estado em relacfio & economia nada mais é que a modalidade de uma presenca consti- tutiva do Estado no seio das relacdes de producao e de sua reprodugéo. 2. Isto quer dizer que tanto os conceitos de eco- nomia como os de Estado nao tém e nem podem ter a mesma extenséo, 0 mesmo campo e o mesmo sentido nos diversos modos de producao. Mesmo num nivel abstra- to — assim como nao podem ser tomados como formas puramente econémicas resultantes de uma combinatéria Sempre diferencial de elementos econdmicos em si inva- Tiantes, movendo-se num espaco fechado e de limites intrinsecos — também nao formam combinatérias en- tre estes elementos ¢ elementos invariantes de outras instancias (do Estado), concebidas também como subs- tancias imutaveis. Em suma, um modo de produgio néo 60 produto de uma combinacao entre diversas instan- cias em que cada uma possuiria previamente, a0 se relacionar, uma estrutura intangivel. # 0 modo de pro- duc&o, unidade de conjunto de determinagées econd- micas, politicas e ideoldgicas, que delimita as fronteiras desses espacos, delineia seus campos, define seus tespec- tivos elementos: 6 primeiramente seu relacionamento ¢ articulagao que 0s forma, Isto se faz em cada modo de 3. Nos modos de produgao pré-capitalistas embora 08 produtores diretos estivessem separados do objeto do trabalho e dos meios de produc&o, na relacdo de proprie- dade econémica, nao estavam separados na segunda relacdo constitutiva das relagdes de produgéo — a rela- cdo de posse. Os produtores diretos (os camponeses ¢ 0s servos no feudalismo, por exemplo) estavam ligados a estes objetos e meios, conservavam um dominio relative do processo de trabalho e podiam acionar estes processos sem a interveneao direta do proprietério. A conseqiién- cia disto é 0 que Marx chama de “imbricacao” estreita ou “mixagem" do Estado e da economia. O exercicio da violéncia legitima esta organicamente implicito nas re- lagées de producio para que haja extorsio do excesso de trabalho aos produtores-detentores da posse do objeto e dos meios de trabalho. Devido as nitidas relacdes entre © Estado e a economia, consideramos que essas mesmas relagdes apresentam contorno, extensAo e sentido total- mente diferentes no capitalismo, No capitalismo, os produtores diretos estéo total- mente despojados de seu objeto e meios de trabalho; les estéo separados nao somente na relacdo de pro- priedade econdmica, como também na relacdo de posse. Vé-se 0 aparecimento dos “trabalhadores livres”, pos- suindo apenas sua forga de trabalho e nao podendo introduzir-se no processo de trabalho sem comprometi- mentos do proprietdrio, comprometimento representado juridicamente pelo contrato de compra e venda da for- ga de trabalho. # esta estrutura precisa das relagdes de producdo capitalista que transforma a forca de trabalho, em mereadoria e o excesso de trabalho em mais-valia, e que da lugar igualmente nas relacdes do Estado e da economia a uma separagdo relativa (acumulagéo do capital e produgao da mais-valia), base da ossatura ins- titucional propria ao Estado capitalista, pois traca os novos espagos ¢ campos relativos respectivamente ao Estado e & economia. Contudo a separagio do Estado e do espago de reproducao, especitico ao capitalismo, néo deve ser tomada como efeito particular de inst”incias essencialmente auténomas:e compostas de elementos invariantes, qualquer que seja 0 modo de producéo; 22 porém, e sim, como caracteristica propria ao capitalis- mo, na medida em que ele cria novos espagos do Estado e da economia, transformando seus prdprios elementos. Esta separagéo nao nos deve levar a crer em real exterioridade do Estado e da economia, como se o Es- tado s6, do exterior, interviesse na economia. Esta sepa- racdo é a forma precisa que encobre, sob o capitalismo, a presenca constitutiva do politico nas relacdes de pro- ducéo e, dessa maneira, em sua producdo. A separacio do Estado e da economia e a presenca-acio do Estado na economia, que nao de uma tinica e mesma figura das relagdes do Estado e da economia sob 0 capi- talismo, atravessam, embora modificadas, toda a his- toria do capitalismo, todos os seus estagios e fases: pertencem ao duro cerne das relagoes de producdo capi- talistas. Tanto quanto no estdgio pré-monopolista o Es- tado nao era realmente exterior ao espaco de reprodu- co do capital, seu papel no capitalismo monopolista, notadamente ma fase atual, n&o conduz, e muito pelo contrério, & aboligéio da separacdo entre o Estado e a economia. Trata-se de uma andlise corrente e inexata tanto das relagdes do Estado e da economia no estégio pré-monopolista (chamado de livre concorréncia ou libe- ral) do capitalismo, quanto das relacdes entre o Estado ea economia no estagio e na fase atual. As modifica- oes substanciais dessas relagdes através da historia do capitalismo, prendendo-se As modificagdes de suas re- lagdes de produg&o, nao passam de “formas transforma- das” dessa separacio e da presenca-acao do Estado nas relagdes de producéo. Ora, precisamente na medida em que o-espaco, 0 campo € portanto os eonceitos do politico-Estado e da economia (relagées de producéo) apresentam:se de ma- neira diferente nos diversos modos de produgo, segue-se cus, conte, oda norsk, ormalat, 6 ha 2a neira.que néo poderia haver uma teoria geral da econo- ee teeeas “eléncinecondmiea”), endo umn ite atray iversos m« Peeetadin tanh eden. elon, Haven nas eats geral”” do politico-Estado (no sentido da “‘ciéncia” ou da “sociologia” politica), tendo ela mesma um objeto 23 te6rico invariante através destes modos. Seria legitimo se 0 Estado constituisse uma insténcia por natureza ou por esséncia autdnoma, posuidora de fronteiras inal- terdveis, e se essa insténcia contivesse em si as leis de sua propria reproducao historic. Emprego a expressio teoria geral no sentido proprio de um corpus tebrico sistematico que possa ao mesmo tempo explicar, a par- tir de proposigées gerais e necessérias, os tipos de Esta- do nos diversos modos de producao como expressées sin- gulares de um mesmo objeto tedrico, e expor as leis de transformagao que marcariam em ‘seu lugar proprio as metamorfoses deste objeto, de um modo de producéo a outro, isto 6, a passagem-transicao de um Estado a ou- tro. Em contrapartida, o que é perfeitamente legitimo 6 uma teoria do Estado capitalista, construindo um obje- toe um coneeito especificos, possibilitado pela separacao do Estado da economia sob o capitalismo. O mesmo ocor- re quanto A legitimidade de uma teoria da economia capllalista, possivel em yirtude da separagao das rela- Ges de produgao-processo de trabalho do Estado, # bem verdade que se podem lancar sicbes tebrjods porits relatioes Go Petaao® tds tex: porien, ‘© mesmo valor das teorias de Marx relativas “4 produ- do em geral”, isto é, nao poderiam pretender ser esta- futo da teoria geral do Estado, Em virtude do dogma- tismo prodigioso inerente & apresentacéo das proposi- Ges gerais sobre o Estado dos clissicos do marxismo sob a rubrica “teoria marxista-leninista do Estado”, ainda remanescente, é importante assinalar esta tendéncia. Pude constatdla, quando do recente debate sobre a di- tadura do proletariado no interior do POF, junto a certos defensores da “manutencdo” desta nogdo, notadamente E. Balibar no seu livro: Sobre a ditadura do. proleta- Na realidade nfo se encontra nos cléssicos do mar- xismo uma teoria geral do Estado, Néo que nao tenham podido ou sabido desenvolver plenamente uma teoria semelhante, mas sim porque ndo poderia haver uma teoria geral do Estado. Questo terrivelmente atual, observada especialmente no debate desenvolvido no seio da esquerda italiana. Em dois artigos de grande reper- 4 cussio de N. Bobbio, eseritos ha pouco tempo, ele acen- tua o fato de o marxismo nao dispor de uma teoria geral do Estado, Intimeros marxistas itallanos sentiram-se obrigados a responder que uma teoria semelhante existe em “gestacio” nos classicos do marxismo e que se trata apenas de desenvolvé-la, afirmando pois sua legitimi- dade Mesmo néo sendo boas as razées de Bobbio, o argumento continua valido: ndo existe teoria geral do Estado, pois ndo poderia haver. Nese ponto, é preciso ser rigido com todas as criticas, de boa ou de mé 16, que recriminam as pretensas caréneias do marxismo ao ni- vel de uma teoria geral do politico e do poder. Um dos méritos do marxismo é justamente o de ter afastado, neste caso como em outros, os grandes devaneios meta- fisicos da filosofia politica, as vagas e nebulosas teori- zacées gerais e abstratas que pretendem revelar os gran- des segredos da Histéria, do Politico, do Estado e do Poder. Fato este que deve ser hoje mais do que nunca observado num momento em que, face as preméncias politieas na Europa e particularmente na Franca, vé-se mais uma vez esta dissimulagao tipica do ressurgimento das grandes sistematizacées Filosoficas Primeiras e Der- radeiras do Poder, as quais s6 fazem, na maioria das veres, ruminar as proposicdes gastas da mais tradicional metafisica espiritualista. De Deleuze aos “novos fil6- sofos” seria longa a lista’ dos que inundam inconseqtien- temente o mercado de conceltos das grandes Nocdes terroristas e mistificadoras do Déspota, do Principe, do Senhor e de outras da mesma lavra. Atualmente na Franca 0 Congresso filoséfico se diverte; no fundo, po- rém, nada disso é divertido. Os problemas reais sao bem graves e complexos para serem resolvidos por gene- ralizagées ultra-simplificadoras e grandiloqiientes, que jamais conseguiram explicar 0 que quer que-seja. Néo que haja caréncias do marxismo nas anilises do Estado e do poder, o fato é que as caréncias nao es- t&o onde as procuramos. O que custou caro as massas populares em todo o mundo nao foi a auséncia no marxismo de uma teoria geral do Estado ¢ do Poder, mas certamente 0 dogmatismo escatolégico e profético que nos deu durante muito tempo um sistema teérica semelhante com o nome de “teoria marxista-leninista”* do Estado. As caréncias reais, e conseqtientemente im- portantes do marxismo a este respeito, referem-se aos dominios em que a teorizacéo é legitima. Mostrei em Poder politico e classes sociais*, assim como em trabalhos posteriores, que estas caréncias, cujas causas tentei ex- plicar, levam ao mesmo tempo as proposicdes gerais e & teoria’ do Estado capitalista. Um dos seus efeitos atuais é a auséncia de anélise suficientemente desenvolvida e satisfatéria dos regimes e do Estado nos paises do Leste. Na medida em que nao poderia haver teoria geral do Estado estabelecendo leis gerais que regulassem as transformacGes de seu objeto através dos diversos modos de producao, também nao poderia haver teoria seme- Thane referente a transicao de um Estado a outro, mente & passagem do Estado capitalista ao Esta- do socialista. Uma teoria do Estado capitalista fornece elementos importantes no que se refere ao Estado em transiggo a0 socialismo. Estes elementos, porém, néo tém a mesma categoria da teoria do Estado capitalista. e sim formam uma categoria particular no seio das pro- posigdes te6ricas gerais sobre o Estado. 86 poderiam constituir nodes tedrico-estratégicas no estado prdtico, funcionando como guias para a aco e, no maximo, como painéis indicadores, Nao pode e nem poderia haver modelo possivel de um Estado de transicio ao socialis- mo, nem receita infalivel teoricamente garantida, a nao ser para um pais em particular, o que também nao pretendo fazer nas andlises do presente trabalho sobre © Estado de transico ao socialismo nos paises da Eu- ropa ocidental. & preciso decidir de uma vez por todas que andlise fazer, sabendo-se agora que nao se pode pe- dir a uma teoria, por mais cientifica que seja, 0 que ela nao pode dar — e ai se inclui o marxismo, que per- manece uma real teoria da acdo. Sempre existe uma distancia estrutural entre a teoria e a prdtica, entre a teoria e o real. Duas disténcias que se resumem a uma, Tal como os filésofos do Tluminismo nfo sfo “responsdveis” pelo totalitarismo do Ocidente, o marxismo nao é “responsé- vel” pelo que se passa a Leste, Ndo 0 € 6 no sentido comum em que no Leste seria um marxismo desviado, © que inocentaria o marxismo puro, e, sim, porque ha a distancia entre a teoria e a pratica valida para qual- quer teoria, e portanto para o marxismo. Querer redu- zi-la € querer que qualquer teoria exprima qualquer coisa, fazer em nome da teoria o que quer que seja. Este vazio nfo representa um obstéculo instrans- ponivel, muito pelo contrario, pois é justamente neste vazio sempre aberto que se precipitam as vanguardas dos contestadores. Sabe-se agora que néo ha teoria — qualquer que seja e por mais liberal — que possa, na pureza de seu discurso, impedir seu eventual emprego com fins de poder totalitario pelos encobridores da dis- tancia entre teoria e pratica, e defender-se dos aplicado- res de textos e os redutores do real, que sempre poderio alardear a propria pureza da teoria. A culpa nao cabe a Marx, nem a Platao, a Jesus, a Rousseau ou a Voltaire. © responsavel por Stélin nao ¢ Marx; por Napoledo Bonaparte, Rousseau, Franco — Jesus; nem. por Hitler © culpado & Nietzche, ou por Mussolini — Sorel, mesmo se suas idéias foram usadas, sob alguns pontos de vista, em sua propria pureza, para encobrir totalitarismos. © contrario disso é o que atualmente nos dizem os “novos filésofos”, que até agora, que eu saiba, nao acharam resposta melhor para o problema, a nao ser repetir Karl Popper‘, porém com muito menos intel géncla e sutileza, quando afirmam que 0 universo con- centracionario é causado por sistemas tedricos ditos “fechados”, haja visto o aspecto estatal dos mestres pensadotes que os inspiraram. A distancia entre a teo- ria eo real explica na verdade o que, sem isso, 6 um paradoxo colossal: os totalitarismos utilizaram-se jus- tamente de pensadores que no contexto de sua época foram ineontestavelmente menos estatais que muitos outros; utilizaram Jesus, Rousseau, Nietzche, Sorel, Marx, enfim aqueles para quem © preocupacao cons- tante e primordial foi o enfraquecimento do Estado. Volto & minha resolugdo: nao considerar a distan- cia entre a teoria e o real, querer reduzir a qualquer 2 prego @ distancia entre teoria e pratica é querer que 0 marxismo exprima o que quer que seja. Nao se pode pedir ao marxismo, ao “‘verdadeiro” marxismo, a receita infalivel e expurgada de desvios de uma auténtica tran- sicéo ao socialismo democratico, pois trata-se de algo que ele nao pode dar, assim nao pode demarcar o ca- minho para as sociedades do Leste. Isto no quer dizer que nao se possa analisar & luz do marxismo uma parte importante (pois o marxismo em si nao explica tudo, nem poderia fazé-lo sozinho) do Estado nos paises do “‘socialismo real” (U.R.S.S., Europa Ocidental, China), isto 6, nos paises em que se tentow uma certa transi¢ao ao socialismo e chegou-se & situa- cdo que sabemos. & evidente que, para fazé-lo, as andli- Ses histéricas (do tipo ‘“‘as condicdes coneretas desses paises”) ou as de estratégia politica que as seguiram, em- ‘bora indispensaveis, séo insuficientes. Seré que seria ne- cessério construir uma teoria marxista geral do Estado que explicasse os aspectos totalitérios do poder nesses Palses, de maneira andloga 28 varias generalizagses sim- plificadoras que nos dao do outro lado, do modo terro- rista que se sabe, os diversos especialistas em goulags? Nao o ereio, embora (melhor: porque) o problema do totalitarismo seja terrivelmente real. Nao pode ser apreendido em sua totalidade por generalizagces tota- lizantes, Pondo as cartas na mesa, diria que s6 se pode estabelecer as premissas de uma andlise simultanea do totalitarismo moderno e de seus aspectos nos paises do Leste, desenvolvendo as proposigées tedricas gerais sobre 0 Estado e, também, definindo a teoria do Estado capi- talista em ‘suas ligacdes com as relacdes de producao ¢ a divisdo social capitalista do trabalho. Duas coisas que tentarei fazer indicando as raizes do totalitarismo. Claro esté que s6 posso partir de premissas, pois o atual Estado nos paises do Leste é um fendmeno especi- fico e complexo, e nao se pode reduzi-lo ao Estado em desenvolvimento em nossas, sociedades, objetivo princi- pal deste trabalho, Nesses paises o Estado esta longe de ser uma simples variante do Estado capitalista, Estou pouco propenso a achar que as raizes € o segredo de cer- tos aspectos totalitérios do Estado nos paises do Leste esto (pois 0 capitalismo ndo é a fonte de todos os ma- les*) entre outras causas, mas fundamentalmente no que chamarei de aspectos capitatistas desse Estado: as rela- Ges de producao e a divisdo social do trabalho que o suportam, Emprego propositalmente @ expresséo aspec- tos capitalistas, e a titulo indicativo, pois — quer se trate de caracteres capitalistas remanescentes num socialis- ‘mo autoritério em particular, ou de influéneias de um meio envolvente capitalista em paises socialistas, ou entdo de um resultado, e em que medida esses paises de efetivo capitalismo de Estado emergem sob nova rou- pagem, eis um problema particular que néo desejo abor- dar —. pois é muito importante e merece ser estudado convenientemente. Minha posicéo tem conseqiiéncias mais amplas, j4 que algumas de minhas andllises, indo além do Estado em e incluindo também o Estado capitalista em suas ligagdes com as relagdes de producto e a divisio social-do trabalho, referem-se igualmente, Jevando-se em conta seu fim especitico, ao Estado nos paises do Leste. # necessério lembrar-se constantemente disso, por isso me encarregarei de lembré-lo quando ne- cessério. Voltando ao Estado capitalista, reafirmo que sua teoria s6 terd carater cientifico se conseguir explicar a reproducdo e as transformag6es historicas de seu objeto nos lugares em que esas transformacoes esto ocorren- do, nas diversas formacdes sociais, lugares da luta de classes; e isto se conseguir explicar as formas de Estado segundo os estagios e fases do capitalimo (Estado libe- ral, Estado intervencionista etc.), a distincao entre essas formas e as formas de Estado de excecao (fascismos, di- taduras militares, bonapartismos), formas d 1e em paises concretos. 4 teoria do Estado capitatista ser separada da histéria de sua constituioao e de sua re- producéo. Nem por isso deve-se cair no positivismo e no em- pirismo e construir o objeto tedrico do Estado capitalis- ta a partir de um modelo ou tipo ideal, isto 6, por indu- gdo-adigéo comparativa de tracos caracteristicos de Giversos Estados capitalistas concretos. Isso quer dizer simplesmente que, mantendo a distancia entre modo de producdo (objeto abstrato-formal em suas determina. Ges econdmicas, ideolégicas e politicas) e formagdes s0- ciais coneretas (articulacdes num momento histérico dado de varios modos de producéo), essas formacdes so- clais néo devem ser tomadas como simples ajuntamen- tos-coneretizacdes espaciais de modos de produgao re- produzidos abstratamente, logo um Estado conereto, simples realizago do Estado do modo de producdo ca. pitalista. As formacies sociais so 0 lugar real de exis- téneia e de reproducao, portanto do Estado em suas formas diversas, as quais nao podem ser deduzidas do modelo capitalista de Estado que designa um objeto abs- trato-formal. Colocar o Estado capitalista em primeiro lugar quanto as relagdes de producdéo nao significa construir a partir disto 0 objeto teorico deste fetade Objeto-tipo que no prosseguimento seria particularizado ou concretizado de uma maneira ou de outra segundo a luta de classes em uma ou outra formacdo social. Uma teorta do stado capitalista s6 pode ser elaborada ao se relacionar este Estado com a histéria das lutas politicas dentro do capitalismo, 3 Recapitulando: se as relacdes de produedo tragam © campo do Estado, este desempenha contudo um papel auténomo na formacéo dessas relacdes. A ligacdo do Es- tado as relagdes de producéo constitui a primeira relacdo do Estado com as classes sociais e a luta de classes. No que diz respeito ao Estado capitalista, a separacdo rela- tiva das relagdes criadas pelas relacdes de ‘producao constitui o fundamento organizacional de sua ossatura organica e revela sua ligacdo com as classes sociais e a luta de classes sob o capitalismo. O processo de producdo é fundamentado na unidade do processo de trabalho e nas relacdes de producao (elas mesmas incluindo um dupla relacéo — a de proprieda- de econémica e a de posse). Esta unidade é realizada pelo primado das relagées de produgao sobre 0 processo de trabalho, freqtientemente chamado de “forcas pro. 30 incluindo a tecnologia e 0 processo técnico. Contrarlamente, aa; esonomisiamo tradicional que cles diretamente ao teenicismo e que vé apenas de produg&o a simples cristalizacéio-envoltorio-reflexo de um proceso tecnolégico das forcas produtivas como tais (assim, sendo importante na origem do processo de pro- dugio a concepeao das relacdes entre base e superestru- tura reflexo), ¢ o primado das relacdes de produgao sobre as forcas produtivas que da a sua articulacao a forma de processo de produgao e de reproducéo. Embora as forcas produtivas possuam uma materialidade propria que néo se pode ignorar, elas se organizam, contudo, segundo relagdes de producio dadas (o que nao exclui nem as contradigées entre elas, nem seu desenvolvimento de- sigual no seio de um processo que é conseqiiéncia deste primado), Nao é a passagem do moinho a vento ao moi- nho @ vapor que explica a passagem do feudalismo ao capitalismo. Toda obra de Marx o comprova, apesar das anbigiiidades que contém, fruto da influéncia da ideo- logia do progresso téenico da filosofia Huminista, que 0 acompanha até nos trabalhos de sua maturidade. Deste primado decorre a das relagées poli- ticas (e idbologteas) no sei das relaces de producao. As relagdes de producao e as ligacdes que as compoem (propriedade econémica/posse) traduzem-se sob a form: de poderes de classe que sio organicamente articulados as relagdes politicas e ideolégicas que os consagram e le- gitimam. Estas relagdes nao se sobrepdem simplesmente a relacoes de producao jé existentes, nao atuam sobre elas retroativamente numa relagdo de exterioridade de prin- cipio ou num ritmo de @ posteriori cronologico. Estao presentes, de maneira especifica a cada modo de produ- cdo, na formacao das relagdes de produgio, AS relacdes politicas (e ideolégicas), contudo, néo intervém mee mente na reproducao das relagdes de produgéo seg hemaelin stale sorbent daupalbesorspatinetoiien a reproducdo oculta a formacéo das relagdes de pro- duigho, lntzodusindo diretamente aa relagben pollticn ed: légicas, conservando nas relagdes de producao sua pureza original de autogeragéo. Estando as relagdes politico- ideologicas desde j4 presentes na formagio das relagbes 31 de produgdo, desempenham um papel essencial em sua reprodugao, e dese modo o processo de produgio e de explorado ¢ ao mesmo tempo processo de reproducio das telagées de dominacao/subordinacéo politica e ideo- logica. Deste dado fundamental decorre a presenca do Estado, especifica para cada modo de produgéo, o qual concentra, materializa e encarna as relagées politico-ideo- logicas nas relagdes de producao e sua reprodugao. # enfim deste dado que decorre a primeira atuagio do Estado na formagéo e reproducao das classes sociais, em suma na luta de classes. As relagdes de producio, sua ligagéo com as relagdes de dominio/subordinagao politica e ideoldgica, definem lugares objetivos (as clas- Ses sociais) que 840 distingoes no conjunto da divisdo social do trabalho (relagdes de produgao que tém papel determinante, relagdes politicas, relagdes ideologicas). Esse resultado do primado das relagdes de produgio sobre as forgas produtivas implica igualmente na colo- cacéo das classes sociais no proprio seio das relagdes de produgo, £ a diviséo social do trabalho, tal como se apresenta nas relagoes politicas e ideolégicas no seio do processo de trabalho, que detém a primazia sobre a di- visio técnica do trabalho. Isso nao significa que a divi- so técnica do trabalho seja redutivel a diviséo social, porém que ndo existe nem se reproduz a ndo ser inserida na divisao social. Assim os lugares de classe, que se traduzem por poderes, consistem, no selo das relagdes de produgio, em praticas e em lutas de classe. Bem como essas rela- g6es € a divisdo social do trabalho no constituem uma estrutura econdmica exterior (prévia) as classes sociais, também ndo pertencem a um campo exterior ao ‘poder e ds lutas, Nao existem classes sociais anteriores sua contestacdo, isto é, as suas lutas. As classes sociais nao se colocam “em si” nas relagdes de produgao para entrar na luta (classes “para si”) somente depois ou noutro lugar. Situar o Estado em sua ligacdo com as relagdes de produgao € delinear os contornos primeiros de sua presenca na luta de classes. 32 0 Estado, Repressdo + Ideologia? © Estado tem um papel essencial nas relagdes de produgéo e na delimitacdo-reprodugio das classes. so- ciais, porque ndo se limita ao exercicio da repressao fi- sica organizada. O Estado também tem um papel espe- cifico na organizacio das relacdes ideolégicas e da ideologia dominante. Deter-me-ei agora nese aspecto: © papel eminentemente positivo do Estado também nao se limita A dupla represséo + ideologia. ‘A ideologia nao consiste somente ou simplesmente num sistema de idéias ou de representacdes, Compreende também uma série de prdticas materiais extensivas aos nabitos, aos costumes, ao modo de vida dos agentes, e assim se molda como cimento no conjunto das praticas sociais, af compreendidas as praticas politicas e econd- micas. As relagdes ideolégicas séo em si essenciais na constituicéo das relagdes de propriedade econdmica ¢ de posse, na divisdo social do trabalho no préprio selo das relagdes de producéo. O Estado nao pode sancionar e reproduzir o dominio politico usando como meio ex- clusivo a represso, a forca ou a violéncia “nua”, e, sim, lancando méo diretamente da ideologia, que legitima a violéneia e contribui para organizar um consenso de certas classes e parcelas dominadas em relac&o ao poder publico. A ideologia nao ¢ algo neutro na sociedade, 56 existe ideologia de classe. A ideologia dominante consis- te especialmente num poder essencial da classe domi- nante. 2 Desse modo, @ ideologia dominante invade os apa- relhos de Estado, os quais igualmente tém por fungao elaborar, apregoar e reproduzir esta ideologia, fato que é importante na constituicéo e reprodugdo da diviséo social do trabalho, das classes sociais e do dominio de classe. Esse é por exceléncia o papel de certos aparelhos oriundos da esfera do Estado, designados aparelhos ideo- Idgicos de Estado, mesmo que pertencam formalmente 33 ao Estado ou conservem um juridico “privado”: Igreja (aparelho religioso), aj eseolar, aparelho oficial de informagées (radio, televisdo), aparelho cultural etc. Resta lembrar que a ideologia dominante intervém na organizagao dos aparelhos aos quais compete principal- mente o exercicio da violéncia fisica legitima (exército, policia, justica-prisiio, administracao). H& uma distingéo entre aparelhos repressivos ¢ ideol6gicos cujos limites so bem nitidos. Antes de men- cioné-la, lembro 0 papel repressivo do Estado, As vezes tio evidente, sobre 0 qual quase néo se fala. Insistir no papel do Estado nas relacdes ideolégicas nao deveria levar, como acontece com freqiiéncia’, a subestimar seu papel de repressor. Em primeiro lugar, é preciso distinguir a violéncia fisica organizada, no sentido proprio do termo, da vio- léncia sobre 0 corpo. Um dos aspectos essenciais do po- der, condigaio de sua instauragao e manutengao, ¢ a coer- G0 dos corpos, e também a ameaca sobre os corpos, a ameaca mortifera, Claro que o corpo nao é uma simples naturalidade biolégica, mas uma instituicao politica: as relagdes Estado-poder com o corpo séo muito mais com- Plleadas e extensas do que aa relagdes com a repressio fada impede que a sustentacao do Estado seja sempre @ marca constrangedora sobre os corpos por meios fisi- cos, a manipulagdo e a devoracgéio dos corpos. Essa sus- tentagdo se da duplamente, alias: pelas instituigdes que atualizam a sujei¢éo corporal e a ameaca permanente de mutilagao (prisdo, exéreito, policia); pela instauragéo por parte do Estado de uma ordem , que a0 mesmo tempo institui e gera os corpos, dando-ihes, for- ma, dobrando-os e encerrando-os nas instituicdes e apa- relhos. O Estado é capaz em sua materialidade, de reno- var, disciplinar e consumir os corpos dos stiditos, em suma, de introduzir na propria corporalidade dos stidi- tos-objetos a violéncia do Estado. Se nfo se pode falar de mortificacéo corporal por parte do Estado —o que levaria & imagem de um corpo primeiro naturalmente livre e em seguida corrompido politicamente, quando 56 existe corpo politico —, existe contudo nesta ordem cor- poral, um efetivo adestramento e arregimentacio dos x corpos, operado por dispositivos fisicos apropriados. Quando virmos o papel da lei, tratarei mais a fundo desse problema e veremos que o Estado capitalista apre- senta particularidades marcantes. ‘A concep¢ao que sustenta a distingdio entre apare- thos repressivos e aparelhos ideoldgicos do Estado re- quer, porém, reservas profundas, pois esta distingao 86 pote ser considerada a titulo meramente descritivo e indicativo, Se ao mesmo tempo esta concepedo, baseada nas andlises de Gramsci, tem o mérito de ampliar o es- paco do Estado nas instituigdes ideolégicas, nao impede, entretanto, que de fato funcione de maneira restritiva. Do modo como foi sistematizada por L. Althusser’, apdia- no pressuposto da existéncia de um Estado que 36 agiria, sé funcionaria pela repressao e pela doutrinagao ideolégica. Essa concepcao supde de certa forma que a eficdcia do Estado esteja no que proibe, exclui, impede de fazer, ou entéo-no que , mente, oculta ou faz crer: que este funcionamento ideolgico baseia-se em praticas materiais, e nao altera a analise restritiva do papel do Estado. Considera ainda o econémico como instancia auto-reprodutivel e auto-reguladora, onde o Estado apenas coloca regras negativas do “jogo” eco- némico. O poder politico nao esta presente na economia, 36 poderia organizé-la, nela ndo poderia engajar-se de- vido @ uma positividade propria, pois s6 existe para im- pedir (pela repressio e pela ideologia) as intervengdes perturbadoras. Trata-se de uma antiga visdo juridica do Estado, a da filosofia juridico-politica dos primér- dios do Estado burgués e que jamais correspondeu & realidade. evidente que com tal concepedo de Estado é im- possivel compreender a formagdo das relacées de prodi cdo. Isto {4 é verificavel na transico do feudalismo 0 capitalismo e no estdgio da livre concorréncia ow libe- ral do capitalismo, Isto ainda é mais valido, e em par- ticular, para o Estado atual, que introduz-se no proprio cerne da reproducio do capital. Em suma, o Estado também age de maneira positiva, cria, transforma, rea- liza, Nao se pode tomar as atuais agdes econémicas do Estado, a menos que se faga. um jogo de palavras, sob 35 © exaustivo Angulo da repressio e da doutrinagdo ideo- légica, ficando claro, contudo, que estes aspectos exis- fo pt na materialidade das atuais fungdes do Estado. E ainda: 6 imposs{vel por meio do binémio repres- sdo-ideologia definir 0 dominio do poder sobre as massas dominadas e oprimidas sem cair numa concepedo poli- cial ou idealista do poder. O Estado dominaria as mas- sas, quer pelo terror policial ou pela repressio interio- rizada — pouco importa aqui —, quer pela impostura e pelo ilusdrio, O Estado defende — proibe e/ou ilude, pois precavendo-se de identificar ideologia e ‘‘conscién- cia errada”, o termo ideologia s6 faz sentido se admitir que os procedimentos ideolégicos comportam uma es- trutura de ocultagdo-inversio. Acreditar que o Estado 86 age assim 6 completamente errado: a relacéo das massas com poder e o Estado, no que se chama espe- cialmente de consenso, possui sempre um substrato ma- terial. Entre outros motivos, porque o Estado, trabalhan- do para a hegemonia de classe, age no campo de equilfbrio instével do compromisso entre as classes do- minantes e dominadas, Assim, 0 Estado encarrega-se ininterruptamente de uma série de medidas materiais positivas para as massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concess6es impostas pela luta das clas- ses dominadas, Eis af um dado essencial, sem 0 qual néo se pode perceber a materialidade da relacao entre o Es- tado e as massas populares, se fosse considerado o bind- mio repressao-ideologia. O que ¢ igualmente, em tltima inst@ncia, o fundamento, com a ténica sobre 0 aspecto consentimento, de toda a série das atuais concepcdes do poder, particularmente as que se desenvolvem em torno do fendmeno fascista." pela imagem do Estado-poder, segundo 0 binémio repressao-ideologia, que se tenta ex- plicar a base de massa do fascismo: as massas teriam ‘desejado” a repressio ou teriam sido mistificadas pela ideologia fascista. Considerar como unicas categorias do Estado repressio-interdito e ideologia-encobrimento leva forgosamente a subjetivar as razées do consentimen- to (porque se diz sim ao interdito) e a situd-las seja na ideologia (no sentido de ilusao: os fascistas iludiram as 36 massas), seja pelo desejo da represséio ou amor ao Se- nhor. Ora, mesmo o fascismo foi obrigado a tomar uma série de medidas positivas as massas (reabsorcio do desemprego, manutencéo e as vezes melhoria do poder real de compra de certas categorias populares, legislacio dita social), o que nao exclui, bem a0 con- trério, o aumento na exploracdo das massas (por meio da mais-valia relativa). Que o aspecto ideolégico-engodo esteja sempre presente, isto néo altera o fato de que o Estado também age pela produgéo do substrato mate- rial do consenso das massas em relacéo ao poder. Se 0 substrato difere de sua apresentacdo ideolégica no discurso do Estado, nao é contudo redutivel a mera propaganda, Evidentemente, nfo séo esses os tinicos casos da eficdcia positiva do Estado; esses exemplos, porém,-bas- tam no momento para mostrar que sua agdo ultrapassa de muito a repressio ou a ideologia. ‘Acrescenta-se, por outto lado, um mal-entendido quanto & representacio do Estado em relacio ao bind- mio represséo-ideologia: a representacéo da ideologia dominante é confundida com mero encobrimento ou dissimulagdo das metas e objetivos do Estado, o qual 86 produziria um. discurso unificado, permanentemente mistificador, e s6 progrediria envolto em segredo e sem- pre dissimulado. # errado por varias razdes: uma das funcdes do Es- tado que ultrapassa o mecanismo de inversdo-encobri- mento proprio & ideologia, refere-se desta vez a0 papel de organizador em relagdo as proprias classes dominan- tes e consiste também em dizer, formular, declarar aber- tamente as tdticas de reproducdo de seu poder. O Estado nao produz um discurso unificado, e, sim, varios, en- carnados diferentemente nos diversos aparelhos de acordo com a classe a que se destinam; discursos diri- gidos as diversas classes, Ou entio produz discurso seg- mentar ¢ ttagmentado segundo as diretrizes da estra- tégia do poder. O discurso, ou segmentos de discurso dirigidos & classe dominante e suas fragées, e as vezes 37 também as classes de apoio, sio na realidade discursos- confissées de organizacéo. O Estado jamais se esconde, nem as taticas que representa; nao que se trate de con- cilidbulos de ante-sala que se tornam conhecidos contra a vontade do Estado, mas porque a um certo nivel o dizer da tatica 6 parte integrante das disposicdes do Es- tado com vistas a organizar as classes dominantes, é parte do espaco cénico do Estado em seu papel de re- presentagdo dessas classes (caso patente, o famoso dis- curso de De Gaulle em maio de 68). Um fato de aparén- cia paradoxal é que tudo, ou quase tudo que a burguesia © 0 poder realmente fizeram, foi dito, declarado, cata- logado publicamente em algum lugar por um dos dis- cursos do Estado, mesmo se incompreendido na época, Hitler jamais escondeu o designio de exterminar os judeus. Num certo nivel, o Estado, nao somente o ver- dadeiro, declama a verdade de seu poder, como também assume 0s meios de elaboracdo e formulagao das taticas politicas. Produz o saber ¢ as técnicas de saber, que, im- bricadag na ideologia, de muito a superam. As estatis- ticas “burguesas” e 0 “INSEE”, por exemplo, elementos do saber do Estado com fins de estratégia politica, néo 8&0 mera mistificacao. Claro que a palavra do Estado nao é a de qualquer pessoa, nem ven de qualquer lugar; existe ai um segre- do do poder e um segredo burocratico. Segredo que néo equivale contudo a um papel univoco de siléncio, porém mais precisamente ao de instauracao no seio do’ Estado de circuitos tais que favorecem a enunciagdo a partir de alguns de seus centros. No que diz respeito A classe dominante, o siléncio burocrético nfo passa, na maio- ria dos casos, de organizador da palavra. Se o Estado nem sempre diz sua estratégia ao discursar & classe do- minante, é que freqiientemente receia desvendar seus designios as classes dominadas. Se, no seio do Estado, ha taticas que se realcam, a estratégia nao passa de resultante da conduta contraditéria de entrechoques entre as diversas taticas e circuitos, redes e aparelhos que as encarnam e portanto nem sempre é sabida ou conhecida previamente no (e pelo) Estado, portanto nem sempre é formulavel discursivamente. 0 indice de ideologizagdo do discurso e também das praticas materiais do Estado ¢ portanto flutuante, va~ Havel e diversificado segundo as classes e fragdes de classe as quais se dirige o Estado e sobre as quals age. ‘A verdade do poder escapa freqtientemente as massas populares, néo porque o Estado a esconda, mascare ex- pressamente; sim, porque, por raz6es infinitamente mais complexas, as massas néo conseguem compreender 0 discurso do Estado as classes dominantes. Enfim, quando a aco do Estado ¢ vista apenas atra- vés do bindmnio repressio-Ideologia no que diz respelto aos aparelhos de Estado, isso nos leva especialmente: a) A decompor o exercfcio do poder em dois grupos de aparelhos: os aparelhos repressivos e os aparelhos ideolégicos do Estado. O maior inconveniente 6 que isso reduz a especificidade do aparetho econémico de Estado, diluindo-a nos diversos aparelhos repressivos e ideolé- gicos, e torna Lmposs{vel a localizagéo da malha do Es- fado onde por exceléncia se concentra o poder da fracio hegeménica da burguesia, oculta enfim as modalidades necessarias A transformacéo desse aparelho econémico no caso de transi¢ao ao socialismo, em relag&o as mo- dalidades necessdrias & transformagio dos aparelhos re- pressivos e ideol6gicos. b) A distinguir de maneira quase nominalista ¢ cane aihiel conta aparelhos como repressivos (agindo principalmente pela repressio) € como ideolégicos (agin- do principalmente pela ideologia), o que é discutivel. De acordo com as formas de Estado e regime e de acordo com as fases de reproducao do capitalismo, certos apare- thos podem deslocar-se de uma esfera a outra, acumular ‘ou permutar fungdes. Exemplo caracteristico @ 0 exér- cito, que em certas formas de ditadura militar trarisfor- ma-se diretamente em aparelho ideoldgico-organizador, funcionando principalmente como partido politico da burguesia. Desnecessério assinalar 0 constante papel ideolégico de uma série de aparelhos repressivos (justi- ca, prisdo, policia), de tal como que esta classificacao taxionémica derivada do critério, aliés bem vago, de “prineipalmente” (principalmente repressivos ou princl- palmente ideolégicos), tende a desaparecer. Em suma, a formulacao do espaco estatal em termos de aparelhos repressivos e aparelhos ideolégicos s6 pode ser considerada a titulo puramente descritivo e levan- do-se em conta as restricdes ja feitas. Tem o mérito de ampliar a esfera estatal, nela incluindo uma série de aparethos de hegemonia, geralmente “privados”, e de insistir na aco ideolgica do Estado, mas nem por isso deixa de implicar numa concepedo do Estado e de sua acdo que ainda permanece bem restritiva. Il. © Estado, os Poderes e as Lutas © papel decisivo do Estado nas relacées de produgdio ena luta de classes ja esta presente em sua formacio, portanto em sua reproducdo. Enquanto que uma das caracteristicas da histéria teérica do marxismo no seio da III Internacional foi a de ter negligenciado a especificidade do espaco politico proprio ao Estado e seu papel essencial (a superestrutura como simples apéndice da base), as criticas feitas atual- mente ao marxismo referem-se ao seu pretenso “esta- tismo”. Enquanto o marxismo negligenciava o Estado, tratava-se de economicismo; quando fala do Estado, trata-se de estatismo. As criticas nao se restringem & pratica politica stalinista e & realidade sécio-politica dos s do Leste, mas A propria teoria marxista. Ora, se 0 Estado desempenha o papel que aca- bo de indicar, permanece a tese de que, ao contrario do que se 1é atualmente, o poder nio se identifica e nao se reduz, no marxismo, ao Estado. Se considerarmos no ‘proceso de producio a pri- mazia das relagdes de producdo sobre as forcas produ- tivas, somos levados a considerar que as relagdes de 40 Go fundamental da exploragdo: a propriedade econd- mica espelha notoriamente a capacidade (o poder) de Gestinar os meios de producéo a determinadas utiliza- ges e de, assim, dispor dos produtos obtidos, da posse, Ga capacidade de ativar os meios de producio ¢ de co- mandar o processo de trabalho, Estes poderes situam-se na rede de relagdes entre exploradores e explorados, nas oposicdes entre priticas de classes diferentes; em suma, na luta de classes, pois esses poderes inscrevem-se num sistema de relagdes de classes. Porque é precisamente considerando 0 proceso econémico ¢ as relagées de pro- Gugao como rede de poderes, que se pode compreendér que as relagdes de produgio, como poderes, esto ligadas constitutivamente as relagses politicas e ideoldgicas que as consagram ¢ legitimam. ¢ que estdo presentes nas re- lacées econémicas. a Vé-se bem que: I — As relagdes de poder no marxismo no estéo, ‘como sustentam Foucault e Deleuze, “em situagio de exterioridade em vista de outros tipos de relacées: pro- cesso econémico. © processo econdmico é luta de classes e portanto relacdes de poder (e nao somente de poder econémico) : levando-se em conta que esses pode- res so especificos, na medida em que estao ligados & ex- ploragfio (0 que raramente ¢ considerado por Foucault e Deleuze). No caso da luta de classes, o poder liga-se a lugares objetivos, ancorados na divisao de trabalho, e designa a capacidade de cada classe de realizar seus in- teresses, nao podendo portanto ele fugir as relagdes eco- némicas, Essas relagdes de poder, lastreadas na produgéo da mais-valia e na ligacdo aos poderes poli- tico-ideolégicos, materializam-se nas instituigdes-apare- Thos especificos que séo as empresas-fabricas-unidades de produgao, lugares de extragio da mais-valia e de exercicio desses poderes. 41 It — 0 poder nfo é de nenhuma forma redutivel ou identificével a0 Estado, embora Foucault e Deleuze assim o digam do marxismo, porque o “poder seria poder do Estado, estaria ele mesmo localizado num aparelho do Estado. ..”” e “identificar-se-ia ao Estado." As rela- ‘ces de poder, como é 0 caso da divisdo social do traba- Tho e da luta de classes, ultrapassam de muito o Estado. ‘Mesmo que abandonemos uma definicao juridica limitada do Estado que surpreendentemente permanece em Foucault e Deleuze, ainda assim essas relacées ul- trapassam-no. O conjunto de aparelhos de hegemonia, mesmo juridicamente privados, faz parte do Estado (aparelhos ideolégicos, culturais, igreja ete.), enquanto que para Foucault e Deleuze o Estado limita-se sempre ‘ao micleo piiblico (exéreito, policia, prisio, tribunais etc.), 0 que lhes possibilita dizer que o poder existe fora do Estado tal como o concebem, isto é, uma série de Tugares, supostos como fora do Estado (aparelho satide- asilos, hospitais, aparelhos esportivos ete.). Porém esses lugares constituem, apesar de tudo, lugares de poder, tanto mais por se ‘incluirem no campo estratégico do Estado. Digo tanto mais e, nao, embora (inclufdos no Es- tado) porque o poder ultrapassa de muito o Estado, mesmo quando concebido em termos amplos e genéricos. Em primeiro lugar, quando relacionados as classes sociais e as lutas de classes, os poderes nao sao reduti- veis ao Estado. # especialmente o caso dos poderes nas relagdes de produgdo, apesar de suas intersegdes com 0 poder politico e consequiéncia do fato de que sua liga- 40. a0 Estado nao ¢ de exterioridade. Ainda hé mais: © Estado capitalista, particularmente em sua forma atual, além de que deve ser concebido de maneira mais ampla, concentra cada ves mais em si as varias formas de poder, interferindo sempre mais em todas as esferas da realidade social, dissolvendo 0 tecido social tradicio- nalmente “privado”, e infiltrando-se totalmente nas tra- mas e setores do poder, de todo poder de classe. Origi- nando-se na atual forma de separacdo entre trabalho intelectual e trabalho manual a intima relagdo entre 42 Estado e saber — diretamente instaurada pelo discurso do Estado e portanto constituindo técnica politica para cocupago pelo Estado dos campos de consumo coletivo (transportes, habitacao, satide, assisténcia social, lazer), em que os poderes ideolégico-simbélicos materializados nas produgdes (habitagdes, centros culturais etc.) pro- Iongam diretamente as relacdes estatais —, as ligacdes entre os poderes de classe e o Estado tornam-se cada vez mais estreitas. Dito isto, nao é menos verdadeiro que os poderes de classe, e nao apenas os econdmicos, ultrapassam sempre o Estado. O discurso do Estado, mesmo quando estendido a seus aparelhos ideoldgicos, nao esgota todo discurso politico, discurso que inclui, con- tudo, em sua estrutura um poder de classe. Da mesma forma 0 poder ideolégico jamais se esgota pela acio do Estado e de seus aparelhos ideologicos. Estes, assim como néo criam ideologia dominante, também nao so fatores primordiais e exaustivos de reproducdo das relagdes de dominio/subordinacao ideolégica. Os aparelhos ideolé- gicos apenas elaboram e expardem a ideologia dominan- te, pois como j4 dizia Max Weber no é a Igreja que cria e perpetua a religido e, sim, a religiao que cria e perpe- tua a Igreja. Em suma, as relag6es ideologicas apresen- tam sempre um lastreamento que transcende os apare- Thos e que j4 so em si relacdes de poder. Isso nos obriga a recapitular uma proposicéio suple- mentar: se 08 poderes de classe no sao redutiveis ao Estado e sempre transcendem seus aparelhos, é que estes poderes fundamentados na divisio social do trabalho e na exploragao detém a primazia sobre os aparelhos que os encarnam, notadamente o Estado. O que corresponde a exprimis de vanbaira Hota § prOnoaleoe deauntO qual, na complexe relacdo luta de classes/aparelhos, so as lutas que detém o papel primordial ¢ tal, lutas (econémicas, politicas, ideolégicas) cujo campo, j4 visto ao nivel da exploracdo e das relagdes de produ- ‘cdo, no é outro senao o das relacdes de poder. Deve-se por isso dizer que o Estado tem apenas um papel secundario, desprezivel na existéncia material do poder? Para fugir da imagem de um Estado totalitdrio, cair na ilusdo de um Estado como simples apéndice do social? Nada disso. © Estado tem um papel constitutivo na existéncia e reprodugdo dos poderes de classe, e em especial na luta de classes, o que explica sua presenca nas relagées de produgdo. Tem um papel constitutivo, e deve-se compreender a proposi¢ao no sentido proprio, © que implica dizer que se afasta de toda uma corrente atual, que, insistindo na primazia do “social” no sentido mais vago do termo (a “Sociedade” como principio “‘ins- tituinte” do Estado), chega exatamente & imagem do Estado como apéndice do social. Corrente que na forma atual é conhecida na Franca sobretudo pelas andlises e pela evolucdo dos autores da Revista, dos anos 50, So- clalisme et Barbarie (Lefort, Castoriadis etc.). Através das criticas de estatismo que dirigem ao marxismo, inei- dem nos mesmos erros do marxismo instrumentalista”': © Estado como simples apéndice das Iutas e do poder. Essa corrente é importante pelas andlises que faz como também pela maneira com que se prende a tradicao li- bertaria do movimento trabalhista francés, especial- mente de certos setores da C.F.D.T. e a tendéncia “Assis- ses du Socialisme” do Partido Socialista'*, Dependéncia & corrente de autogestao, resultado de um grande qiti- proqué: trata-se de basear uma politica de autogestéo na importaneia que pée na necessidade de formas de democracia direta na base, numa teoria que despreza 0 papel real do Estado. Na melhor das hipéteses, trata-se fai de tomar os desejos por realidades, deduzir uma poli- tica antiestatal de uma visdo segundo a qual o Estado quase desaparece em seu papel proprio, Ora, é 0 papel terrivelmente real do Estado que necessita de uma tran- sigdo ao socialismo amplamente apoiada na democracia direta, e isto implica o conhecimento exato do Estado e de seu papel atual. Tanto isso é verdade que uma certa tradig&o do socialismo estatal jacobino deriva, também, da instrumental de ‘um Estado como simples apéndice do social e das classes. Estado cujo fortaleci- mento ilimitado nao traria conseqiiéncias nefastas, pois se trataria de um Estado operério, simples apéndice da classe operdria. Porém, para circunscrever exatamente 0 papel cons- titutivo do Estado nas relagées de produgao e nas lutas 44 de classes, portanto nas relagdes de poder, é preciso se- parar esta questo em seu conceito histérico, de uma vez para sempre, da questdo da origem cronolégica e da gé- nese (quem nasceu primeiro, 0 ovo ou a galinha, o Es- tado ou a luta de classes/relagdes de producao) ; 6 preciso romper radicalmente com a corrente positivista-empi- rista, visto historicista, até no selo do marxismo. Na ordem de explicaeéo tedrica, falar de um campo social de divisdo de trabalho em classes e de poder de classe anterior & existéncia do Estado, de uma base originaria- mente primeira (no sentido cronolégico e geneal6gico) que em seguida geraria o Estado, e que certamente in- terviria depois — porém somente depois — néo faz sen- tido de forma alguma. Onde existe divisio de classes, hié portanto luta e poder de classe, existe o Estado, o poder politico institucionalizado, Nao ha nessa ordem Tuta e poder de classe anterior ao Estado ou sem o Estado, “estado natural” ou “estado social”, como pretendia toda uma tradigfio que currega os sinais evidentes da fi- losofia politica do Ituminismo (a do contrato social an- terior ao Estado). O Estado baliza desde entao o campo de lutas, af incluidas as relagdes de produgdo; organiza ‘0 mercado e as relagdes de propriedade; institui o domi- nio politico e instaura a classe politicamente dominante; marca e codifica todas as formas de divisdo social do trabalho, todo o real no quadro referencial de uma so- ciedade dividida em classes. Assim, se (uma) histéria é (a) historia da luta de classes, se as sociedades “primitivas” sem Estado sio sociedades sem (esta) historia ¢ que esta hist6ria nao existe sem Estado, Nao ha uma histéria de lutas onde, um dado momento, o Estado seja fruto e resultado, pois esta historia ¢ inimagindvel sem Estado. Nao que a par- tir do momento em que o Estado apareceu tenhamos entrado num tempo irremediavel (a Histéria), ou que enquanto haja homens haverd Estado; porém, como di- zia Marx, fim da divisdo de classes significa fim do Es- tado, e por isso mesmo fim de um certo tempo que ndo 60 final dos tempos, porém o fim de uma certa historia, que ele chamava também de pré-histéria da humanidade. A divisio em classes e a luta de classes nfo podem ser imaginadas como origem do Estado, como um prin- cipio de génese do Estado. Deve-se por isso concluir que isso pée em diivida a proposicao essencial do fundamen- to do Estado nas lutas sociais, o papel determinante das relagdes de produedo e, em geral, a primazia das lutas e ligacdes do poder em relacio ao Estado? Em suma, colocar assim o problema do Estado é fazer estatismo? Proponho o problema de maneira tortuosa para de- senrolar 0 novelo embaralhado das varias tendéncias atuais que, se tém em comum o fato de colocar em dui- vida este fundamento do Estado e do poder nas lutas de classes, diferem em outros pontos. Deixarei para mais tarde a problematica de Foucault, que consiste no essen- cial em unir a ligacio do Estado e das relacées de pro- dug&o, dos poderes econdmicos e dos poderes politicos, um terceiro principio, a um “diagrama” de Poder co- mum aos diversos poderes em um dado momento. Pelo menos esta concepedo nao se aventura numa teoria ge- ral do poder desde a origem dos tempos, nao vé no Estado © fundamento de todo 0 real social. ® exatamente isso que faz a corrente atual chama- da “nova Filosofia”, que, numa pretensiosa e oca meta- fisica do Poder e do Estado, restabelece, desde B. H. Levy a A Glucksmann, uma velha tradicao institucionalista, ‘ou seja, o Estado como fundador e instituinte de toda relagdo’ social, forma aprioristica de todo real social possivel, arquiestado originério no qual as lutas sociais seriam apenas reflexo e so teriam existéncia através dele. Nao 6 0 marxismo e, sim, essa concepedo que reduz todo poder ao Estado e vé no poder a conseqiléncia desta realidade primeira que ¢ 0 poder do Estado. Tudo é sem- pre réplica do Mestre, do Estado, e da Lei( a teoria psi- canalista Lacaniana ‘assim obriga), pols, assim como as lutas, s6 haveria um real social, poder, lingua, saber, discurso, escrita ou desejo através dele.’ Mal radical ¢ incontornével por qualquer tipo de luta, toda luta sendo © substituto e a imagem do Principe, formada nas ar- madilhas oriundas de um Poder Estado eterno cuja pe- renidade decorre de uma universalidade e necessidade de cardter metafisico. & entao fundamento-origem de 46 tudo, fundamento porque origem e vice-versa, O totall- tarismo estatal 6 ao mesmo tempo original e eterno, pois o tema de toda Histéria possivel é o Estado: na rea- lidade, em Kant ¢ Hegel que se encontra. Vé-se que 0 Estado é tudo; o que 6 respondido de maneira simetricamente inversa pela outra corrente que mencionei, que considera a mesma problematica, porém diz que 0 social é tudo, sendo o Estado apenas o apén- dice institufdo, Mudou'o peso dos termos Estado e so- ciedade, a problemética continua a mesma, a de uma causalidade mecanica e linear baseada em um princf monista simples e calcada em uma metafisica das origens. % preciso entdo relembrar certas andlises feitas hé muito tempo por intimeras pessoas: o papel determi- nante das relagdes de producdo, a primazia das lutas de classe sobre o Estado e seus aparelhos néo podem ser considerados segundo uma causalidade mecanica, transposta além disso em causalidade cronologica linear, 0 que tinhamos chamado de historicismo, Esta determi: nag&o e esta primazia nem por isso significam, obriga- toriamente, uma existéncia histérica anterior ao Estado; se 6 ou nAo 0 caso, ouso dizer, é outro problema. Isso é vélido de infcio para as ligacdes entre o Estado e as relagdes de producio, de tal ou tal modo de producao e para a transicéo de um modo de produgéo a outro. Marx 0 estabeleceu perfeitamente quando diferenciou tais ou quais relacées de producdo como “pressupostos” ou prius logique de tal ou qual Estado, de uma_prece- dénca histérico-cronolégica daqueles sobre estes. A de- terminagao do Estado pelas relacées de producao, a pri- mazia das lutas sobre 0 Estado inscrevem-se-em tempo- ralidades diferenciais para cada um, em historicidades proprias a desenvolvimento desigual uma forma de Es- tado pode preceder, na ordem da génese histérica, as relagdes de producao As quais corresponde. Séo intime- ros os exemplos na obra de Marx, e eu mesmo j& mos- trei que tal 6 0 caso do Estado absolutista na Europa, Estado de dominante capitalista, enquanto as relacGes de produc&o ainda”apresentam dominante feudal. at Exemplos indicativos no que se refere as relagdes de tal ou tal forma de Estado e de tais ou tais relagdes de produco e luta de classes que tém, porém, maior am- plitude, pois atingem a origem do Estado. Vé-se que a questo da origem histérica do Estado, a da ordem de Sucessio entre, de um lado o Estado e de outro as rela- de produg&o e os poderes de classe, na historiogra- da génese, nfo ¢ teoricamente idéntica ao funda- mento do Estado nas relagdes de producdo, nas lutas de classes e nas relagdes de poder. ‘esse aspecto, uma série de mal-entendidos devem- se a Engels. Diria’ esquematicamente que Engels, tribu- tario da problematica historicista da causalidade linear, tentou fundamentar o primado da diviséo em classes e suas lutas no Estado, calcando o problema justamente na génese do Estado, cedendo desse modo ao mito das origens, Um dos objetivos de A Origem da familia, da propriedade privuda ¢ do Estado é demonstrar a apari cdo historicamente primeira, nas socledades chamadas primitivas, da divisdo em classes nas relagdes de produ- Go; divisio que teria como conseqiiéncia o nascimento do Estado; supostamente uma “prova” da determinacio e fundamento do Estado nas relagées de producao, 8 evidente que isto nfo pode ser prova, mesmo supondo que a investigagao historica de Engels seja correta, pois 86 0 seria se 0 marxismo fosse um historicismo integral. Também ¢ evidente que uma ordem inversa de emergéncia histérica na série das origens nao poderia fornecer prova do contrario, a ndo ser que compartilhe- mos dessa problematica historicista. Refiro-me especial- mente aos trabalhos de Pierre Clastres, que, defendendo que a passagem das sociedades sem Estado as socieda- des de Estado se faria por meio de uma emergéncia pri- meira do poder politico, emergéncia que precederia a divisdo em classes nas relacées de produgfo, cria 0 ar- gumento de um papel fundamental e determinante do Estado em relacdo A divisio em classes. Argumento si postamente definitivo da critica contra o marxismo: “f portanto o extrato polities que ¢ decisivo, e nio a mu- 48 danca econémica... E se se deseja conservar os con- ceitos marxistas de infra-estrutura e superestrutura, é necessério, entdo, reconhecer que a infra-estrutura é 0 politico, que a superestrutura é 0 econémico. ..” E ain- da; “A relago politica do poder precede e fundamenta a relagao econdmica de exploracio, Antes de ser econd- mica, a alienagao 6 politica, o poder esté antes do traba- tho, 0 econémico é derivado do politico, a emergéncia do Estado determina o aparecimento das classes.”"* Trata- se de exemplo brilhante de raciocinio historicista de cau- salidade linear, empregando neste caso a mesma pro- blematica de Engels. Supondo que as andlises de Clastres sejam historicamente pertinentes, assunto em que nao vou tomar partido, naé existe contradicéo com o mar- xismo, pois que ‘“fundamento” do Estado nas relagdes de producdo-divisdo de classes no significa necessaria- mente prévia “origem” destas relacoes em relacéo a0 Estado. Essas andlises néo questionam o papel determi- nante das relagdes de producdo e a primazia das lutas sobre o Estado; so apenas prova nesse sentido para uma problemética positivista-empirista, e mesmo histo- ricista, que confunde origem e fundamento. #, entre outros, 0 caso de B. H. Levy'* quando evoca as andllises de Clastres em apoio da tese de eternidade do Estado, fundamento, pois origem de tudo. Nao somente as lutas de classes detém a primazia sobre o Estado e 0 ultrapassam, como as relagdes de poder também ultrapassam 0 Estado em outro sentido: as relagées de poder néo englobam completamente as relagoes de classe e podem ultrapassar as proprias rela~ Ges de classes. Isso evidentemente nao quer dizér que ndo tenham nesse caso pertinéncia de classe, que néo se situem no terreno do dominio politico ou que nao sejam um inicio, mas que nao provém do mesmo funda- mento da divisio social do trabalho em classes, que néo sdo nem homélogas nem isomorfas. Esse é especialmen- te 0 caso das relacdes homem-mulher. Sabe‘se agora que a divisfio em classes nao 6 0 terreno exclusivo de consti- tuigao de todo poder, mesmo sabendo-se que nas socie- dades de classe todo poder encobre uma. significacdo de classe. A conseqiiéncia, jé se sabe; transformar os

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