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DEFINITIVAMENTE elé sorriu até o fim da vida — 0 sorriso do adolescente de 17 anos revelado inter- nacionalmente em 1958, na Copa da Sué cia, ecoava com luz.¢ emocao nos painéis coloridos dos edificios modernos de Doha, no Catar, durante a Copa do Mundo. 4 MSE IMORTAL Era a derradeira homenagem, com misto de apreensio e medo, a0 maior jogador de futebol de todos os tempos. Internado no Hospital Albert Einstein, em So Paulo, ja em estagio final do can cer de célon com metastase que o mataria em 29 de dezembro, Pelé era um personagem presen- te, onipresente e incomparavel. Vao-se, ans 82 anos, a felicidade de seus mais de 1000 gols, 0 soco no ar, a magica do tricampeonato mundial pela selecio brasileira. Nio seria exagero dizer que, agora sim, o século XX terminou. A re- dacao de PLACAR gostaria de nunca ter langado esta edigao es pecial, supondo que a cada 23 de outubro o Rei completaria mais ‘carsewuPauLoMacucemLscAR Banca do Antfer ‘Telegram: https:/t.me-bancadoantfer LINDICE] O ilcresceu, rudou oapelida econquisteuamundo Nocampo, sempre nigualével Fora dee fo humano Juca four As fotosmaisextraordindrias ‘comentacas pela prpria Rei Carlos Marana Elefoium dos personagens mais conhecidesglobalmente Sérgio Xavier iho Oscuasegolsqueaimentaram alencacofutebol Marcelo Duarte Osecosinfindavesdaquela nate ddenavembrode1969ne Maracand Aderradeira homenagem dosfilhos no Hospital Alert Einstein, em Sao Paulo: umadas maiores figuras da historia Mauricio Barros um aniversario, eternamente. Co- ‘mo nao pode ser assim, cabe lem- brar da insuperavel manchete do Diério de Noticias de Lisboa, em 1973, quando morreu Pablo Picas ‘ so: “Definitivamente imortal, Pi- ‘caso morreu. Fiquemos com Pelé para sempre, com 0 carinho que le tratava uma bola de futebol. @ Heri Ostia inare's doguarda-costas Ben Brobby.a sombrado craque Olvigado, Pelé 8 E revlstopiscar | Oplacar | @ReustaPtacer | plocsrabil come % DJ Placarbabal com be eprtora A Abril VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA (1907-1990) (1936-2013) Publisher: Fabio Canalo Diretor de RedacSo: Mauricio Lima PLACAR Redator hele Fbio tron Agden tare rand gas Mats ral te peta tnane TDTORMLE AUDINCA Ades Abas bintvonAtnacetna oe onwacors elon DREIONA SeMoMTZACAC Resa ecoesponstnd: Racer Cor Oe ee “E um menino, um garoto. Se quisesse entrar 6 MSS fsonArantesdo Nascimento elegostavade umgolerodaVasco, 0 Bil, ‘Mas como pronunciava errado onomedojagador catiacalogp vrou Pelé 2 ee ~*~ num filme da Brigitte Bardot, seria barrado. (...) INGE| 7 Oe Sele ensdro F) ¥ j , . reo i » ae easel K J a trejetérians histdria do futebol mundial | ia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e... a Ley ..cumprimentd-los com intima efuséo: ‘Como , del "000 ols igi soit trés tacas do muntlo pela selecao ules met, ° alémde duas peo alvinegrasantista vai, colega?’.” Nelson Rodrigues, em crénica de 1958 EMSS SOLEe ors A BOLA COMO DAM eA AMIGA Nunca haverd outro Pelé, cuja trajetoria resume a genialidade de um esportista, possivelmente CoM AnTe (elmo Mole ok MMe Moo) TeLele [e/-0e RSVR H) oe) eee coe) RE Ouest) aes HISTORIA 'm 1968, 0 ano que munca terminou, 0 ar- tista plistico americano Andy Warhol J cunhou uma de suas mais conhecidas | frases, estampada no catdlogo de uma J exposicao em Estocolmo: “No futuro, 4 todo mundo sera famoso por quinze mi- nutos”. Em 1977, dias antes de Pelé pendurar as chu teiras com a camisa verde do Cosmos de Nova York, 0 genio da pop art reescreveu sua maxima depois de apontar a inseparavel Polaroid Long Shot para o rei, base para uma colecio de serigrafias: “Pelé é um dos poucos craques que contrariam minha tese. Em vez de quinze minutos de fama, terd quinze séculos” Pe~ 16, como intuiu Warhol, viverd para sempre. Em 2020, em plena pandemia, instado a dizer o que o Pelé de 80 anos diria ao Pelé de 17, revelado pelo Santos e desco- berto pelo mundo na Copa de 1958, ele imaginou 0 seguinte comentario de um para o outro: “Deus te deu o dom de jogar bola, mas vocé tem de estar bem preparado fisicamente e com a satide em dia, Mas atenco ao que realmente importa: talento foi um presente divino, cuide bem dele”. Numa iinica frase, Pel resumir oito décadas de vida — sempre reconheceu que fora privilegiado e, a partir desse big bang original, tratou de burilar a vantagem de larga- da, como se ela nao houvesse. O condao — cujo sinénimo ¢ inteligéncia — talvez Ihe autorizasse largar mao, mas nunca foi assim. De 1956 a 1977, em 21 anos de carreira profissional, foi sempre o primeiro a chegar aos treinos ¢ 0 iiltimo a abandoni-los. No livro Pelé — Os Dez Coragdes do Rei, 6 jornalista José Castello conta um episédio revela- dor dessa obsessao pela qualidade. Num exercicio de rotina antes da Copa de 1970, que o consagraria com © tri, os pontas e os laterais cruzavam a bola para que os meias ¢ os atacantes finalizassem. Deles se esperava que matassem a bola no peito e depois chu- tassem para o gol. Pelé preferia sempre bater de pri- meira, apesar da insisténcia do treinador Zagallo seus auxiliares. “Ora, se for para matar no peito, fica muito mais fécil, ai nao me interessa”. Em depoimen to exclusivo a revista PLACAR, Tostao, 0 compa- nheiro de gléria no México, iluminou ainda mais a postura rigorosa do maior de todos, homem de 1,73 metro: ‘Além do brilho e da magia, o rei jogava com grande objetividade. Quase nao fazia embaixadas, nao driblava para os lados, mas sempre em direcao ao gol. Sua genialidade e condigao fisica eram natu- rais, geneticamente determinadas. A natureza lhe deu quase tudo, ¢ ele fez a parte que Ihe cabia, jogar do com alegria, garra, determinagao e humildade’ 14 MSE americana Andy Warhol, omestreda popart,admitiu ter cerrado sua previsdo 20 encontrar obrasier: ‘quinzesséculos endo ‘quinze minutos de fama IME 115, HisToRIA C4 Comacamisabranca oSantos, onde comecouacarreira inigualavel ele tez coclubepraiano um dosmais conhecides domundo Em 2012, Marcos Duarte, professor de engenharia biomédica da Universidade Federal do ABC, escrutou ‘o mais plastico dos movimentos de Pelé, a bicicleta, para concluir que ele conseguia estabilizar 0 corpo na horizontal, um atime de segundo antes de tocar a bola, de forma mais eficiente do que todos os outros pares. Duarte depois analisaria com recursos de vi- deo ¢ algoritmos a famosa cabecada contra o goleiro inglés Gordon Banks, em 1970 ~ naquela que é consi- derada a mae de todas as defesas. Pelé subiu mais de 70 centimetros ~ contra “apenas” 50 centimetros do desnorteado zagueiro adversirio, Tommy Wright. Desferiu a bola a 45 quilémetros por hora, velocidade de um chute. £ a ciéncia a servico da beleza no espor- te, que pode ainda ser traduzida pela estatistica. Fo- ram 1283 gols em 1 363 jogos. Ganhou trés titulos mundiais pela selecao brasileira, o primeiro aos 17 anos, e dois pelo Santos. E que outro craque seria lembrado também pelas bolas que nao entraram, co- mo a da defesa de Banks, concessio destinada apenas aos inaleancaveis? As emissoras de televisao e os ca- nais no YouTube nao cansam de repetir dois outros Jances com cinquenta anos de histéria: 0 quase gol contra o goleiro uruguaio Mazurkiewicz, a pelota de um lado, o brasileiro de outro, em cena de lindo balé de corpos; ou entao o chute do meio de campo a tris- car a trave, em ansiosa parabola, para desespero do checo Viktor ¢ espanto do planeta (leia na pag. 46). E recorrente a tentativa de comparacao de Pelé com dois argentinos: Maradona e, mais recentemen- te, Messi —e as novas geractes tém todo o direito de ensaié-las, embora seja initil, porque Pelé foi nico, ¢ atrinca de vit6rias em Copas do Mundo sempre fara diferenca. E talvez.ele nem precisasse ir tio longe, a0 assegurar para o Brasil a posse definitiva da Taca Ju- les Rimet, que depois seria roubada e derretida. Antes mesmo de Pelé ser recebido por reise rainhas, por pa- pas, por Nelson Mandela e Barack Obama, Jimmy Carter e Gerald Ford, por Mikhail Gorbachev e Eliza- beth Il, antes mesmo de parar guerras, porque os ‘oponentes queriam vé-lo em campo (leia na pag. 38), Ia atras, ainda em 1958, o dramaturgo e cronista Nel- son Rodrigues mediu o que se construia: “Dir-se-ia ‘um rei, ndo sei se Lear, se imperador Jones, se etiope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisiveis”. Tudo isso, lembre-se, escrito quando Pelé mal saira da puberdade. E,no entanto, como ressalta Tostdo, nunca Ihe fal- tou humildade, apesar dos mantos invisiveis—embora fosse preciso inventar um recurso que sempre pareceu risivel, mas talvez fosse mesmo necessari zs (HISTORIA | Cape referir a Pelé na terceira pessoa do singular, e o que soava arrogante nada mais era do que um recurso de sobrevivéncia. Um outro modo de expressio era 0 “nds”, o plu- ral majestitico, figura de linguagem adequada a quem tinha sangue azul. Uma coisa era o Edson — aquele que, nos iltimos anos de vida, viveu isolado no Guaruja coma mulher, a empresaria Marcia Cibele Aoki, sem nem mesmo ter podido acompanhar © velorio ¢ enterro do irmao Zoca, que morreu em marco de 2020, durante o distan- cciamento imposto pela pandemia de Covid-19, Era o Edson com dificuldade de loco- mocio depois da cirurgia nos quadris,feita em 2012, alheio fisioterapia, forcado a ‘aprender a mexer no smartphone, evidentemente sem poder viajar. Outra coisa é Pe- le, 0 personagem a respeito do qual nao ha muito mais a dizer. Manter a distancia centre as duas figuras foi uma pratica recorrente do rei. “O narcisismo de Pelé nunca chegou aos pés da vaidade do dedo mindinho de Neymar’, diz.o antropélogo Rober- to DaMatta. “A consciéncia maior de Pelé foi sua modéstia.” Consciéncia que nao significou abandonar a compreensio de sua grandeza. Depois de um encontro com Garrincha, no inicio dos anos 1980, ele chegou a mandar entregar aquele que conhe- ciamos como “a alegria do povo", alquebrado e alcoolizado, uma boa quantia de di- nheiro, porque atravessava dificuldades. Para um amigo fotgrafo que conhecera nos Estados Unidos logo apés se separar da primeira mulher, e que depois se mudara para Paris, Pelé criou uma artimanha de generosidade: desembarcava na capital francesa sem avisar ninguém. Ao amigo, sugeria que fizesse fotos exclusivas, vendi- das em segnida num piscar de olhos — s6 ento, depois de garantir que o compa- nheiro conseguira alguns trocados, é que admitia ter chegado & Europa. E ent2o ou- tras lentes o cagavam, mas ja sem tanto valor de mercado. O despojamento, irmao da generosidade, nao significa, evidentemente, que te- noha tido uma vida sempre reta, campedio em tudo. Pelé foi muito criticado pelo com- portamento com uma filha, Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento, que reconheceu tardiamente — e a amigos nunca escondeu a tristeza ¢ o desconforto pela situacdo, sobretudo depois da morte prematura de Sandra, de cdncer, em 2006, aos 42 anos. Apanhou muito quando disse que 0 povo nao sabia votar, nos anos 1970, ainda debaixo da ditadura militar ("O povo brasileiro nao est preparado para votar, por falta de pratica e de educagao; vota mais por amizade"). Nao adiantou ex- plicar que nao era bern aquilo que havia dito, porque de Pelé se esperava fora de ‘campo o que fazia dentro dele ~ algo humanamente impossivel. Exigia-se que ele fosse como Muhammad Ali, o boxeador que desferia socos como soltava opit politicas agudas, a um s6 tempo icone do esporte e da cultura dos anos 1960 ¢ inicio dos 1970. Mas atencao: o Brasil nao é os Estados Unidos, a heranga da escravidao daqui é diferente do segregacionismo de la. Pelé cresceu na ditadura e Ali, na demo- cracia. O jogador dividia o tempo com os companheiros e o pugilista tinha ligdes coma lideranca radical de Malcolm X — e nas bandas de cé o mito da democracia racial se espraiou sorrateiramente. Foi apenas em 2017, em depoimento exclusive & revista VEJA, que ele tratou pela primeira vez de preconceito, de modo contundente e esclarecedor. “Nunca neguei minha cor de pele, eu gosto de ser negro. Sempre ad- mirei muito meus pais, meus irmaos, toda a minha familia, de pessoas negras. Mas Deus me pés num caminho diferente do da maioria da populacao brasileira e, desde crianga, nunca tive problema com racismo”, disse. “Quando penso no racismo brasi- leiro, eu me lembro sempre do encontro com o Nelson Mandela, quando eu era mi- nistro de Esportes do governo do Fernando Henrique Cardoso. Foi emocionante. O Mandela, com toda aquela grandeza, toda aquela histéria, foi objetivo: ‘Pelé, puxa vida... como pode um pais como o Brasil, ao indo, onde ha um tinico idioma, sem conflitos segregacionistas e insuperaveis como os da Africa do Sul, ter de conviver com tanta fome, com tanta miséria — e com o racismo?". Nem soube 0 que falar, 18 MSE Nadespedida,em 1977. cabrago fratemalem Muhammad Al comparagic indevida entre apestura de dis gigantes OAtletado Século, emeleigdc promovida pelarevistafrancesa Equipe: atrente do velocista ameicano Jesse Owens. que desafiou Hitler fiquei envergonhado.” Para DaMatta, “Pelé era um sujeito de imensa sensibilidade, ‘mas nada indicava que tivesse ciéncia do que poderia simbolizar para a sociedade, para além dos gramados". E convém lembrar, nesse hipotético embate com Ali, ain- da segundo DaMatta, que Pelé, astro de um esporte coletivo, nunca esteve inteira- mente sozinho como o mitico pugilista. Comparé-los s6 seria possivel tendo como régua Andy Warhol: uma das serigrafias de Pelé, daquelas de 1977, foi leiloada em 2019 pelo equivalente a 3,6 milhdes de reais. Uma coma figura de Ali, do mesmo perfodo, foi ao martelo por 42 milhdes de reais. ‘Adiferenca no indice Warhol mostra como a marca Pelé foi maltratada enquan- to jogava. Ele fot vitima de empresirios inescrupulosos, teve maus conselheiros ¢ viveu 0 apogeu antes da explosao do marketing esportivo e da internet. “Ele nunca foi capitalizado como deveria, dada sua dimensio", diz Amir Somoggi, sécio da Sports Value Marketing Esportivo, um dos grandes especialistas no assunto. “Hoje Pelé teria outro tamanho, com as ferramentas da internet, mas convém considerar também o atavico desprezo de um pais que nao aprendeu a cultuar seus idolos.” Estima-se que a marca Pelé chegue atualmente a algo em torno de 100 milhoes de dolares, segundo uma ferramenta confiavel, o Celebrities Net Worth. £ muito, até que se passeie por valores de outros atletas. Messi: 600 milhoes de délares. Neymar: 200 milhées de délares. O.k., os dois estao ainda na ativa. Pegue-se, ent, Michael Jordan, o Pelé do basquete, e com o perdao pelo lugar-comum: ele vale 2.2 bilhdes de délares, atrelados especialmente ao contrato vitalicio com a Nike. Pelé esteve ligado 4 Puma, marca que o atraiu em 1970 e que o namorou em inicia- tivas pontuais, como a celebracio dos cinquenta anos do milésimo gol, em 2019 — ‘mas sem contrato fixo. “Mas Pelé tera sempre valor, simplesmente por ter sido 0 maior de todos os tempos. O legado de sua imagem, envolvido por respeito, é mui- to forte, e nao por acaso seri eternizado’, diz Fabio Kadow, diretor de marketing da Puma no Brasil. Em 2009, depois de muito vaivém, de uma sucesso de desencon- tros, os direitos de imagem de Pelé foram vendidos a uma empresa americana, a Sports 10. Os valores de rendimentos anuais munca foram divulgados, mas havia organizacdo de viagens (quando se podia viajar) e controle de postagens nas redes sociais. Em 2019 foi inaugurada uma loja em Nova York com produtos relacionados & mitica camisa 10, No fim da vida, Pelé tinha uma dupla incansavel a acompanha- Jo: 0 americano Joe Fraga, nos Estados Unidos, e o brasileiro Pepito Fornos, misto de irmao e conselheiro, a voz atenta que parecia buscar sem cessar o bom senso. Era caminho para que Pelé tivesse, enfim, o tamanho de Pelé, e Edson pudesse simplesmente sorrir relembrando a trilha do passado, os detalhes comezinhos simultaneamente gigantescos de uma vida inigualavel. Quem foi seu melhor mar- cador? Pelé: “Beckenbauer, forte mais leal”. E os gols mais importantes? “O primei- ro na Copa de 1958, contra o Pais de Gales, e 0 1000°, porque foi um gol que até hoje ninguém fez e é um recorde”. Ou, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, “o dificil, o extraordinario, ndo ¢ fazer 1 000 gols, como Pelé; é fazer um gol como Pelé” (leta na pag. 54). Cabe também uma frase do cineasta Pier Paolo Pasolini: "No momento que a bola chega aos pés de Pelé, o futebol se transforma em poesia”. E aqui, pela primeira vez nesse obituario, usa-se a palavra futebol, a atividade do rei, ‘mas que parecia nao bastar para descrevé-lo. Em Nova York, no fim dos anos 1970, ele tinha escritério no mesmo prédio onde o ator Robert Redford cuidava de seus negécios, Certa feita, durante um evento empresarial, os dois chegaram juntos ao recinto. Lindo, no auge da fama, Redford ficou impressionado com a quantidade de pessoas que cercaram o brasileiro a cata de um autégrafo e o abandonaram. O gala no vacilou, aproximou-se de Pelé e resumiu a 6pera que agora chegou ao fim: “Ca- ra, como vocé é popular”. Cara, como voce fara falta. @ Saieal 21 [ PELE&EU O MAIOR [IDOLO DE TODOS Depoimento de Juca Kfouri ive a sorte ¢ o privilégio de ter vivido muitas histérias com Pelé. Crianga, eu softia de viver num pais que nunca havia ganhado a Copa do Mundo. Aos 8anos, quando o Brasil levantou a t ¢a Jules Rimet pela primeira vez, Pel s¢ tornou instantaneamente idolo de todas as torcidas: corintianos, palmeirenses, flamenguistas. Ele sé tinha 17 anos ¢ todos o adoravamos. Faco parte da geracao de torcedores do Corinthians que ficou 23 anos sem ser campedo, Naquele tempo, 0 Santos de Pelé era o nosso maior algoz, mas isso nao ti- nha importancia. Palmeiras e Sao Paulo eram os rivais. © Santos era outra coisa. Ele representava o Brasil no mundo, ¢ eu acordava cedo para pegar 0 Fstaddo e ter certeza de que 0 Pelé nao tinha sido vendido. Morria de medo de ele ir embora. Na Copa de 1962, disputada no Chile, aprendi o que era virilha, e me doia a virilha, Dois anos depois, tive de sair do Pacaembu para nio apanhar da minha prépria torcida. Era o dia 6 de de- zembro, um domingo, ¢ 54 476 pessoas bateram o re- corde de puiblico daquele Campeonato Paulista para ver Santos e Corinthians. Ao final do primeiro tempo, oplacar marcava 2a 2, Depois, Pelé fez trés em sequén- ia, o corintiano Silva descontou, Coutinho fez.6 a3 Pelé, sempre ele, anotou o sétimo aos 44 do segundo tempo. Eu, claro, estava no meio dos corintianos — ‘mas nao aguentei e aplaudi o gol. Comecei a levar cas- Comacamisadas cudos e cascas de laranja, pois todos achavam que eu Diretas i: fotode estava de brincadeira, infltrado, Ronaldo Kotschotoi Vida de alvinegro paulistano nessa época era assim. Uma surpresaeuma Eu era catdlico, batizado, ia 4 missa. Sabia que era de~ alegria naredagia 22 1MRE mais sonhar com um titulo nas minhas oragdes. Mas pedia para ganhar do Santos. ‘Mae, eu peco isso a Deus € ele ndo me concede. Nao é possivel, Deus nao existe’, dizia, testando minha fé. O fato é que nao dava para ser apaixonado por futebol e nao ser apaixonado pelo Santos. Eu fumava desde os 12 anos. Em 1963, no se- gundo jogo da final do Mundial de Clubes, o Milan (que jé tinha ganhado a primeira partida, na Itdlia) brit 2 a0 no Maracana. Sai para o quintal para fumar escondido e prometi que se 0 Santos virasse eu para- tia, pois meu pai nao queria e eu ja jogava basquet era o certo a fazer mesmo. No segundo tempo, 4 a 2 para o Peixe. Cumpri a promessa por trés anos. Em 1970, entrei na Abril para trabalhar no arquivo, 0 famoso Departamento de Documentacio, mais conheci- do como Dedoc — justamente para atender a PLACAR, «que foi langada em marco daquele ano. Logo nos primei- os anos tem uma foto de uma visita do Pelé & redacao, em que apareco no fundo, como um papagaio de pirata, admirando tudo aquilo, No ano seguinte, com a eriagio do Campeonato Brasileiro, a revista instituiu a Bola de Prata, para os melhores do torneio, mas decidiu que o ret nio disputaria o prémio — ele era hors-concours. ‘Até se aposentar pelo Santos, em 1974, Pelé sempre se queixava que queria ganhar uma. “Eu ndo tenho a Bola, entende?”, dizia para os repérteres a cada entre- vista. Assim, decidimos fazer a entrega do troféu num almogo com o fundador da editora, Victor Civita, e 0 entao prefeito de So Paulo, Miguel Colasuonno, Mui- tos anos depois, uma nova equipe de editores resolveu entregar a Pelé uma Bola de Prata e ele ficou igual- mente feliz, nunca contou que ja tinha recebido antes Por mim, podia dar quantas bolas ele quisesse. Aquele encontro no terraco do Edificio Abril foi o meu primeiro com Pelé. Eu tinha estado na Vila Bel- miro no jogo de despedida, mas apenas acompa- nhando os colegas que escreviam a reportagem. O rei, evidentemente, nao era para o meu bico. Em 1979 virei diretor de redacdo e seguimos acompanhando 0 maior jogador de futebol de todos os tempos. A me- Ihor lembranga que tenho desse perfodo foi a foto coma camisa das Diretas Jé. A redagio estava empe- nhada na campanha, Sécrates escrevia para a revista, mas foi uma grande surpresa quando o fotdgrafo Ro- naldo Kotscho chegou com a imagem, feita no meio de uma filmagem no Rio de Janeiro. Depois que sai de PLACAR, minha relagao com Pelé se solidificou ainda mais, Desde entdo, sempre desejei que este tex- to s6 fosse publicado depois da minha morte.” @ lucakfourlfldretorderedagdode PLACAR de1979a1095 EMAE 23, MEMORIA O REI PELO PROPRIO REI Em 2014, Pelé fez um passeio pelas fotos mais marcantes das quatro Copas que disputou [ Sérgio Rodrigues ] “Quando marquei o tiltimo gol da final contra a Suécia, fiquei zonzo do choque de cabega com o beque. Como 0 juiz apitou o fim do jogo, pensei: ‘Vou fiear um pouco por aqui’. Af veio o Garrincha me levantar e eu nao parei de chorar. S6 pensava uma coisa: ‘Seré que a minha familia sabia que €poca niio tinha televisao, telefonar > cara mete um gol e diz: ‘Beijo, mae” nte eu falei com meus pais pelo rédio. ramos campede era dificil, Hoj Sé no dia se 24lIMSE MEMORIA “Sempre me pe pa do Mundo. Jo Gilmar. Deus po 261M ro que 1962 foi um momento triste pessoal: eu tinha feito um gol no primeito jogo contra o México, mas senti xa na partida seguinte, contra a Checoslovéiquia. e fiquei. Fiquei toreendo na enem podia ficar no banco, engragado, C uma distensao na Nao esperava fic arquibancada, porque nao estava inseri a até a final da Copa nos eu tinha a certeza no com 0 carinho dos torcedares chil sofreria tanto. Mas gragas a Deus A compensagio mas mes de que, se estivesse jogando, nd fomos campedes, entdo compensou tudo, né foi melhor ainda porque a alegria foi para todos os jogadores e toda a nacdo. Triste mesmo foi quatro anos depois. EMSAE 27 MEMORIA 2B1MSE “Chegamos 3 Inglaterra em clima de ‘4 ganhou’. A preparacdo foi uma loucura, montaram trés times com reservas € tudo, toda hora a equipe mudava. Uma selecdio bicamped nao precisava de tantos testes. Aqui eu. apareco treinando no gol, como sempre gostei de fazer, e lembro que nos dias de preparacilo nds, os jagadores, conversdvamos sobre a importancia, em termos de moral, de ganhar a Copa no pafs onde o futebol nasceu. Infelizmente perdemos para Portugal, me contund ‘no meio do jogo e s6 continuei em campo porque nao havia substitui No avido comecei a orar e decidi me despedir da seleco. Eu tinha jogado trés Copas e sido campedio em duas, Penseis Esta bom, né? Aquela foi pesada para caramba. A contusdo era séria, nos ligamentos do joelho direito, e fiquei seis meses sem jogar no Santos. Nunca tinha ficado tanto tempo fora. Mas af fiquei bom, 0 time comegou a ir bem em 1968, 1969, ¢ veio a cosquinha: e se eu jogasse s6 mais uma?” MEMORIA sce pesto que ficou famoso do soco no ar aqui no jogo em que vencemos a Checoslovéquia por 44a 1, eu ja vinha fazendo desde 0 tempo do Santos e surgiu de modo espontneo, como um desabafo. Eu nunca tinha visto ninguém fazer aquilo. Depois disso, muitos outros jogadores comegaram a dar s0c0s no are alguns comegaram a inventar, a mudar um pouco, dar de baixo para cima, para ndo dizerem que estavam me imitando. pou virando uma marca minha, principalmente por causa do sucesso desta foto, mais ou menos como aconteceu com a bicicleta por causa de uma foto tirada no Maracana. A diferenca é que a bicicleta, todo mundo sabe, era coisa do Lednidas, 0 soco é meu mesmo! ENSA81 31 MEMORIA “O Pelé tinha uma impulsao danada, rapaz. Subia para caramba. O heque esticava a mio e nao aleangava, 0 goleiro também n se gol na final de 1970 contra a Itdlia é um dos que mostram isso. Seu Dondinho, meu pai, era um expert no assunto: o recorde dele de cinco gals de cabega num jogo o Pelé nunca bateu. Ele me ensinou a subir, a dar um segundo impulso quando o corpo esté la em cima, e também a nao fechar os olhos. Em todas as comp. que fazem do Pe outros jogadores, Maradona, Messi, Zidane, Cruyff, sempre existe uma coisa ou outra que dé para diferenciar. A impulsio é uma delas.” 321M = oS = nos me deixam sé de “Aqui os m algao, depois que recebemos a taga ce fomos dar a volta olimpica. Isso era comum. Nao havia alambrados, e nas filmagens que existem do Santos em torneios na Espanha ou na Itélia, por exemplo, acaba 0 jogo e todo mundo entra ‘em campo. Aquele foi o grande presente de Deus, e agradego até hoje ter decidido encerrar ali minha carreira na selegao. ado em 1966, mas daquela maneira, ganhando a Copa e sendo considerado o melhor jogador, foi como 0 meu pai dizia: ‘Quando for pz no melhor momento, porque s Tinha ens que seja Zio logo vao te por para fora’. Parar ali foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida.” INES: PELE&EU UM ATLETA | SIMPLESE |. ACESSIVEL Depoimento de Carlos Maranhao rabalhei durante 42 anos na Editora Abril, dos quais quinze na PLACAR, em trés periodos diferentes. O primeiro de- les foi no lancamento da revista, em margo de 1970. Junto com a edicao ni mero 1 vinha umamoeda como rosto do Pelé, que fez um sucesso extraordinario e, depois, virou item de colecionador. Na redacio, varios de nés tinha- mos algumas delas, que eram usadas literalmente como moeda de troca em coberturas, inclusive no exterior (até hoje preservo duas, que guardo como um tesouro). Dois anos depois, vim de Curitiba para Sao Paulo e logo me coube fazer uma reportagem com Pelé — afi- nal, a relacdo dele com a revista sempre foi muito prdxima. Embora nao fosse um iniciante, um foca, f quei muito nervoso. O fot6grafo Lemyr Martins esta- va comigo e me deu a dica: esperar 0 Pelé no estacio- namento, antes de chegar para o treino. Ele vinha so- zinho no carro, um Mercedes preto. Lemyr se aproxi- mou, 0 cumprimentou e me apresentou. ‘Quanto tempo vocé precisa para a entrevista?’, ele me per- guntou, ‘Meia hora’, respondi. "Ta bom. Quando aca- bar 0 treino, vai para o vestidrio. Algumas pessoas nao acreditam, mas era assim, Em 1972, ele jé era o maior jogador do mundo, era 0 Pelé, 0 idolo, 0 rei. Mas nao tinha assessor, Vocé chegava e o entrevista va. De la para c4, a relacdo da imprensa com os atle- tas mudou profundamente. Pelé sabia que nés, jornalistas, éramos a ponte para os torcedores. Falavamos com o piiblico e ele tinha a 36lIMSE Acaminhodo sramado, em1974, rradespedida pelo Santos: no havia nada programada nogio de que as pessoas é que compram ingressos, as- sistem ds transmissdes pelo radio ¢ pela TV, adquirem ‘0s produtos que os jogadores anunciam, Sem torcedor, eles ndo so nada. Quando Pelé fez seu milésimo jogo pelo Santos, PLACAR acompanhou a partida, disputa- dano Suriname, ¢ levou uma camisa verde e preta com um escudo da revista eo niimero 1000 bordado na frente. Pelé saiu na capa da edigao vestindo o ‘nosso’ uniforme. Em outra ocasiio, vestiu as camisetas de vi- rias selecdes que havia enfrentado. Da para imaginar o Neymar fazendo isso hoje? Em 1974, eu estava na Vila Belmiro quando ele se des- pediu do Santos, naquele famoso jogo contra a Ponte Preta. E curioso lembrar como nao havia nada progra- mado, De repente, Pelé pegou a bola no centro do gra- mado e se ajoelhou. Ninguém esperava, tanto que nao ha grandes fotos, closes, detalhes desse momento glo- rioso do adeus. Era assim, tudo ficil, sem mise en scéne. © maior jogador de todos os tempos, o maior atleta que o mundo ja conheceu, um profissional simples € acessivel. De certa forma, chega a ser surpreendente ele ter se tornado 0 rei do futebol. Como isso aconte- ceu, numa época em que os meios de comunicagao eram tio precérios? As informacdes vinham pelo ra- dio ¢ o som eraruim. As radiofotos tinham uma qua- lidade péssima. Viviamos na pré-histéria das comuni- cagbes, nos anos 1950 ¢ 1960. A Copa de 1970 foi trans- mitida em preto e branco —e pouca gente tinha um aparelho em casa. Na minha infancia, eu era um tor- cedor de radio. O futebol era magico, a gente tinha de acreditar no que os narradores diziam. E, por mais que falem que eles inventavam, as imagens mostram que nio, que era tudo aquilo mesmo. Na Copa de 1962, 4s filmes com trechos dos jogos eram exibidos no ci- nema, com trés ou quatro meses de atraso, Ea plateia vibrava como se fosse ao vivo. Fora do campo, Pelé muitas vezes era criticado. AL guns gozavam das previsdes que ele fazia, como quando apontava favoritos para a Copa e indicava jo- gadores como possiveis sucessores (que ihusio), outros porque nunea denunciou a ditadura militar. Também ‘oatacaram quando fez 0 milésimo gol e 0 dedicou is ceriangas pobres e por afirmar que o brasileiro nao sa bia votar. Tantos anos depois e o problema da desi- gualdade segue ai, tanto quanto a falta de cultura po- litica do pais. Acho que PLACAR fez bem de nao se imiscuir nesse terreno. O cidadao Edson Arantes do Nascimento é menos importante do que o jogador Pe- 1&. Ameu ver, ele tinha mesmo de ser julgado pelo fu- tebol. E,nisso, foi inexcedivel, incomparavel. Mas, co- mo parou ha 48 anos, talvez demore um pouco para as pessoas entenderem o que ele significou." @ IMSS 37 A FAMA QUE SO O 10 ALCANCOU No Rio de Janeiro ou em Moscou, ou em qualquer outro canto do planeta, ele era reconhecido e admirado, imé de inigualdvel atragao Gabrie! Pillar Grossi ‘omo medir a fama de Pelé? © humo- rista Marcelo Madureira teve uma linda ideia nos anos 1990: dar uma volta ao mundo com o rei do futebol, sem passaporte, sem um tostao no bolso, sem lenco nem documento. “Viajariamos, comeriamos e dormiriamos de graga Jembra Madureira. “Visitariamos o papa sem marcar audiéncia, presidentes, cientistas, artistas, (nica e ex- clusivamente por ser Pelé.” A viagem, que infelizmen- te nunca aconteceu, termi onde ter uma bolinh: com os cid Com asenador € pronto — o cidadao do mundo comprovaria sua Robert Kennedy gtandeza indizivel. rovesticria do ‘A imensa repercussio da morte de Pelé, que em mi- Maracand, em nutos se espalhou pelo mundo, ajuda a dar a ideia do robastavavi tamanho universal do personagem. “A morte de um i; jogat eraprec mundo”, estampou o francés L'é ‘Adeus ao rei do = fazeruma pose futebol", anunciow o italiano Corriere della Sera. ‘Dor MAE 39 C/DADAO DO MUNDO morreu Pelé”, chorou o argentino Olé. “Mor reu Pelé, 0 escultor do futebol sem fronteiras’, lamen- tou o portugués O Piblico. Uma manchete mais apro- priada diria: Pelé morreu, se é que Pelé morre. Nao morte. Fica 0 maior idolo da hist6ria do futebol. O Rei 0 Atleta do Século. O brasileiro mais conhecido e ce- lebrado da histéria. Nao havia porta que nao se abrisse para Pelé. Nao havia espanto que nao se demonstrasse ao té-lo pela frente, o gigante de apenas 1,72 metro que fazia com que as pessoas tremessem de nervosas & troca de olhar. Era um rei, mas nao seria exagero tratévlo como SOMES um deus, como muitos faziam. Em 1965, o senador Ro bert Kennedy, irmao do ex-presidente americano John F Kennedy, nao apenas viu um jogo no Maracana co: mo fez questo de ir a0 vestirio — e se deixou foto- grafar ao lado do camisa 10 todo ensaboado e com uma toalhaamarrada na cintura. Trés anos depois, no mesmo estadio, a rainha Elizabeth II, acompanhada do marido, o principe Philip, assistiu da tribuna de honra do Mario Filho a um amistoso entre as selecdes carioca e paulista. Depois da vitoria dos visitantes por 3.2, ela lhe entregou um troféu, nao sem antes afir- mar que Pelé era “incomparavel C/DADAO DO MUNDO Comamae, Celeste ainda viva, ans 00 anos, ecpai Dondinho: le sempre gastava mesmo eradevoltasparacarinho decasa 42\ISE Ele era mesmo colossal. Com Nelson Mandela, 0 lendario ativista que, depois de passar 27 anos preso por lutar contra o regime segregacionista do apar- theid, se tornou presidente da Africa do Sul, a admira- ao era mitua. Quando de sua morte, em 2013, Pelé afirmou: “Ele foi um heréi para mim”. E as imagens dos dois juntos nos enchem de carinho e inspiragao. Quis o destino ~ e ndo ha como negar que hd uma certa poesia nisso — que Pelé morresse logo depois do Mundial do Catar, quando recebeu intimeras home- nagens de jogadores, cartolas e torcedores. Desde a consagracio na Suécia, ele era presenca obrigatoria nas Copas, seja como convidado da Fifa, seja como co- mentarista ou embaixador da bola. No sorteio dos grupos para a Rissia-2018, Pelé chegou a Moscou de cadeira de rodas e, como sempre, foi o centro das aten- ‘Ges ao lado do presidente Vladimir Putin. A outra es- tela convidada para o evento nao hesitou em se ins- talar como coadjuvante: Diego Maradona, que tantos insistiram em comparar a ele, buscando criar uma ri validade que nunca existiu, nao escondia o respeito pelo fdolo vinte anos mais velho e desdobrou-se em cuidados, beijando-the a testa com reverén Nos anos 1980, quando o governo brasileiro autori- zou a emissio de cartes de crédito internacionais, a Mastercard produziu um antincio que resumiu com preciso essa presenca global. Sentado numa poltrona semelhante a um trono, o garoto-propaganda destaca- vaas vantagens do produto para fazer compras no ex- terior e terminava dizendo: “Afinal, vai que vocé nao é reconhecido la fora’. Todos sabiam, em Santos, Jerusa- lém, Adis Abeba ou Toquio, que Pelé era inconfundi- vel, mais famoso do que Jesus Cristo. Pelé abracava 0 mundo, o mundo o abracava, mas ele gostava mesmo era de estar em casa, ao lado dos pais. Como lembra o ex-diretor de PLACAR Sérgio Xavier Filho (leia 0 texto da pag. 44), uma de suas maiores preocupagies era “nao decepcionar aqueles que sempre acreditaram em mim”. Dondinho, 0 pai, morreu em 1996, Ao vé-lo triste pela derrota do Brasil para o Uruguai no Maracanazo de 1950, 0 garoto pro- meteu que um dia ganharia 0 caneco, Celeste Arantes completou 100 anos no iiltimo dia 20 de novembro. Oaniincio da morte de Edson fez, mais uma vez, 0 planeta reverencié-lo, Fica a marca indelével do maior de todos os tempos, aquele que fez tudo antes, os dri- bles, as bicicletas, os gols, as malandragens. Aquele que inspirou criancas e jovens de todos os cantos do planeta a tratar bem a bola. Aquele que popularizou o esporte ¢ ampliou como ninguém os limites do fute- bol brasileiro. Fica a admiragdo sem fronteiras. @ IMAEI4S. [ PELE&EU O DIA EM QUE EU ESCREVI COMO SE FOSSE ELE Depaimento de Sérgio Xavier Filho primeira vez que ele apareceu foi num caixate preto, do tamanho de uma embalagem de panetone. Aquela TY portatil era 0 xodé da familia. la pra praia, viajava pelo interior gat cho, estava onde estivéssemos. A\ xno quarto de um hospital, em meados de 1970, A hér- nia do meu pai nao respeitou 0 calendario esportivo € le foi para a cirurgia no meio da Copa do Mundo. Ao menos a tevezinha nos fazia companhia. E ali, naque- le quarto, o meu primeiro registro na meméria, aos 4 anos incompletos. Tostao dribla, cruza, bola pra Pelé. Gol de Jairzinho. Haviamos vencido a poderosa In- glaterra, campea do mundo no ano em que eu nasci. Talvez a lembranca se perdesse na imaturidade dos ‘meus neurOnios se meu pai nio tivesse tentado come~ morar coma barriga recém-costurada. E 0 “ai, ai, ai” seguido de um sorriso sofrido sempre volta quando revejo o passe genial Virei jornalista esportivo, fui parar na PLACAR. Pe- 1 estava sempre nas reportagens e retrospectivas de fotos. Havia uma contradicao: apesar de muito escre- vermos sobre ele, éramos prisioneiros numa cela cheia de livros, sé que sem as vivéncias. Eue minha turma quase no o vimos em agao. Até que, em 2000, a Abril teve a ideia de fazer um livrao lindo para aproveitar o rico acervo de fotos. fotdgrafo Ricardo Corréa, 0 designer Kiko Farkas eeu assumimos a tarefa. O plano era perseguir 0 iné- dito ou, ao menos, fotos e histérias pouco conhecidas. Foi uma delicia, uma espécie de pés-graduacio em his- téria do futebol. Livro pronto, queriamos, naturalmen- SAIMEE te, um preficio de Pelé. Fui falar com seu brago direito de entio, Celso Grellet. Ele foi pritico. “Isso vai demo- rar e pode nao ficar bom. Escreve vocé e a gente autori- Como assim? Nao sou Pelé em nada, muito menos numa tentativa de tentar pensar pelo proprio, $6 me restava tentar fazer o melhor, “Muito ja se escreveu sobre Pelé nestes anos todos. Foram muitos livros, filmes, ensaios nos varios conti- nentes. Muito ja se disse sobre os gols que ele marcou, 1s gols que nao aconteceram ¢ 0s titulos que ele ga- nhou. Poucos, aliis, entenderam por que falo dele, do Pele, em terceira pessoa, Nao ¢ soberba nem mascara. E que seria impossivel viver a vida real & sombra das, ¢glérias. Dissociar os feitos do Pelé dentro de campo do otidiano do cidadao Edson Arantes do Nascimento apenas uma questo de sobrevivéncia. Embora minha trajetéria jé tenha sido contadae re- contada tantas vezes, folhear este livro foi um prazer imenso. A impressio é que passei a vida inteira acom- panhado de um fot6grafo. No Exército, fazendo um ca- fé na pensio de Santos, chorando nos bracos de Gar- rincha ou mareando um gol qualquer no interior de ‘Sao Paulo, est tudo li. A descrigdo da emogao do dia em que embarquei para Santos, da primeira convoca- 40, das contusdes em 1962 e 1966, das despedidas, as histérias estao todas lé. As histérias de Pelé, 0 idolo que 0 proprio Edson comecou a conhecer quando ti- ha 6 anos de idade, quando nasceu o apelido. Ao ler tudo isso, s6 posso sentir orgulho. Menos pe- los dribles, gols e tagas. Mais pela certeza de ter conse- guido tudo fazendo a coisa certa, cumprindo 0 que set Dondinho e Dona Celeste me ensinaram, culti- Um craquena empatia: fazia questo deolhar nosolhosde quem pedia autégrao ou uma foto, sem jamais ter dadosinais dequesesentiaacimade ‘quem quer quefosse vando as amizades, incentivando os companheiros. No momento em que completo 60 anos, nao ha melhor presente do que olhar para tras e nao se arrepender de nada. Enos préximos sessenta anos espero ndo decepcionar aqueles que sempre acredita- ramem mim. Entende?” ‘A aprovacio foi imediata, e com entusiasmo. “Pelé adorou”, me disse Celso. Nunea tive certeza de que isso aconteceu de fato, mas... Umas quatro ou einco pes- soas vieram me falar que o livro era bacana, “mas legal mesmo foi conseguir que ele escrevesse. £ ele mesmo..”. Nao tive coragem pra contar a verdade. Mas tam- pouco me senti um impostor. Pelé jamais deu sinais de que se sentia acima de quem quer que fosse. Ao contrario. Em todas as vezes que cruzei com ele, chamou minha atengdo a maneira como tratava 0 porteiro, a moca do café, o assistente da fotografia. Fazia questao de olhar nos olhos de quem pedia o autdgrafo ou a foto. Era craque também no carinho e na empatia Sérgio Xavier Fill foidiretor deredacao de PLACAR de 1990.a2012 IME 4S O TRI NO MEXICO ors O CRAQUE UEBROU A ESPINHA Em quatro jogadas geniais, contra Checoslovdquia, Inglaterra e Uruguai (duas vezes), 0 rei quase marcou. Se a bola tivesse entrado, em qualquer uma delas, s6 permaneceria a beleza momenténea. Como os gals nao aconteceram, sGio indeléveis Gabriel Pillar Grossi Vp) €lé fez uma Copa do Mundo particular em ) 1970, no México, que pode ser contada em £7 quatro lances geniais — os quase gols mais, espetaculares de todos os tempos, uma ode a beleza do futebol. E, pensando bem, foi bom aquelas bolas ndo terminarem na re- de, porque haveria algum desencanto, seria frustrante. 1 Nos acréscimos da semifinal, com a vi da contra o Uruguai, 3 a 1 para o Brasil, deu-se a maior das quatro obras-primas, como se Michelange- Jo vestisse a amarelinha. No romance O Drible, um pequeno clissico da escassa literatura futebolistica nacional, o escritor Sérgio Rodrigues dedica as cinco Mazurkiewicz atordoado primeiras paginas a descricéo dos movimentos de oreibateude primeia, balé — de balé, por que nao? Quem mostra a cena ao ‘mas bola, caprichosa, filho em uma “TV velha trambolhuda de tubo de ima- passou ao lade da rave téria garanti- 4GIIMSE O TRI NO MEXICO ors “Olance nao deve ter mais de dez segundos, mas com as interrupgoes de Murilo enche minutos inteiros en- quanto ele narra sem pressa, play, pause, rew, play, 0 que na época foi narrado com assombro.” Num con- tra-ataque rapido, Tostio vé Pelé “se projetando da meia-direita feito um bicho, uma pantera com sangue de guepardo”. O goleiro de origem polonesa Ladislao Mazurkiewicz (1945-2013) se lanca a bola, fora da grande drea. Pelé tem duas opgdes ébvias: chutar dali ‘mesmo ou tentar um drible pela esquerda, para ar matar de canhota rumo ao gol vazio. #sqn. “Ai ele nao faz o certo, faz 0 sublime”, lé-se no livro, “Troca 0 ca- minho batido do gol, o gol certo que tinha feito tantas vezes, pelo incerto que, como veremos, jamais aria. Na TV, enquanto os dois borrdes lentamente se fun- dem, a bola, um descalabro, passa por eles” Pelé tirou opée deu uma meia-lua no goleiro celeste. A redonda de um lado, 0 rei do outro e Mazurka atordoado, de bracos abertos. Pelé, para conseguir dar a volta e reen- contrara pelota, chegou até ela cam o corpo desequ brado, de lado para a meta. O zagueiro Ancheta cor- ABIES Emtréstempos,a defesaci sécul’ apéso cruzamentodelairzinho, acabepada perfeita, ce cima para baixo; a bola uicano gramadaeo goleiroinglés Banks, aa comaumgato, daumtapa debaivo paracims eela sai por sobrec travesszo, de formainacrecitavel reu desesperado para tentar cobrir a meta, O camisa 10 bateu de primeira, com a perna direita. Ancheta deu um carrinho desajeitado, tropegou e caiu. E a bola passou, caprichosa, ao Deus e perde n. “Esse gol que ele nao fez nio é s6 © maior momento da historia do Pelé, é também 0 maior momento da hi do sobrenatura Foi tao espetacul ae se atrapalhou na narrativa. Na edigao em inglés de Febre de Bola, Nick Hornby cometeu um deslize corrigido na tradugdo brasileira, mas ruidoso no ori ginal, ainda que nao diminua a qualidade dos livros tante, que nunca m tbandonow a retina, Horn by se referiu a Maz confundindo as fr Ihado pelas consoantes do jogador ur esta desculpado porque, como anota Sérgio Rodri- ‘gues, “o drible de Pelé em Mazurkiewicz quebrou a es- pinha do destino e o mundo degringolow wicz como “goleiro peruano”, as sul-americanas, embara guaio. Hornby IMSS 49 OTRINO MEXICO Ce u Naquela mesma partida contra o Uruguai, Pelé j nha sido o protagonista de outro lance igualmente inesquecivel. Quando 0 jogo (um dos mais tensos da Copa) ainda estava 1 a 1, 0 goleiro Mazurkiewicz co- brou mal um tiro de meta. A bola, baixa e com pouca forca, quase bateu num zagueito da Celeste, que estava junto a linha da grande rea e precisou se abaixar para no ser atingido, Na intermediaria, Pelé ajeitou o corpo e chutou com tudo, de perna direita, em voleio. A bola foi direto ao centro do gol, mas o arqueiro uruguaio se recuperou a tempo e, para conseguir manter a bola en- tte as duas mios, sem oferecer rebote, precisou dar uma cambalhota — tal a forga da estilingada do brasileiro. mm Pelé 4 havia criado outras duas joias na fase de grupos do Mundial de 1970. Uma delas brilhou no confronto que valia a lideranca do grupo 3, "jogo do século” contra a Inglaterra. Em campo, a detentora da Jules Rimet, camped em 1966, contra os bicampedes brasileiros, donos do titulo em 1958 e 1962. 0 prémio pela vit6ria seria escapar da Alemanha Ocidental nas quartas de final. Logo aos nove minutos, 0 capitio Carlos Alberto, ainda no campo do Brasil, fez um lan- ‘camento em profundidade para Jairzinho, que driblou rapidamente na direcdo da linha de fundo e, quando a bola estava prestes a sair, cruzou alto na pequena rea. Pelé, sempre ele, salton mais alto que 0 zagueiro e cabeceou com forea, para baixo — uma cabecada perfeita, de antologia (“Acertei exatamente como eu esperava, a bola foi aonde eu queria que fosse’”, disse 0 rei anos mais tarde). Em apenas seis décimos de se- gundo, a pelota quicou no chao, a menos de 2 metros do gol, comecou a subir novamente. O goleiro jé es- tava caido e, com enorme agilidade e destreza, dew um tapa de baixo para cima, tirando a redondinha por ci- ma do travessao. “Una defensa impressionante de Banks’, gritou o narrador da TV mexicana. “What a ‘fantastic save by Gordon Banks’, exclamou, aliviado, 0 ‘colega inglés. De la para cé, ja se falou tudo: foi uma defesa que desafiou as leis da fisica, uma defesa que parou o mundo, a maior defesa de todos os tem- pos em um jogo de fute- Ocamisa 10 selamenta bol. Em diversas oca-~ apis tentarogolda sides, Pelé disse que o meio de campo, contraa lance foi mais importan- _Checaslovaquia: nas palavras te que os gols que ele fez defritivasce Nelson na Copa do México. Rodiigues, “Pelénunca Banks, por sua vez, sem: foitzvalte noseugénic® SOMES pre reconheceu que aquele foi um grande momento de sua carreira (que incluiu a conquista da Copa de 1966, jogando em casa). Em 2016, ele relembrou o lance mé- gico. “Em todo o mundo as pessoas ainda se impres- sionam com aquela defesa, Se eu soubesse quo im- portante aquele lance seria até hoje, nao teria impedi- gol. Até hoje eu me pergunto e ndo consigo res- ponder como aquilo aconteceu. Me desculpe, Pelé Banks morreu aos 81 anos, em fevereiro de 2019. Vv Por fim, o derradeiro capitulo desta historia, aqui contada de trés paraa frente, foi escrito logo na estreia, mntra a Checoslovaquia. As duas equipes voltaram do intervalo com o placar marcando 1 a 1.0 dramaturgo € ctonista Nelson Rodrigues descreven a cena a sen modo, superlativo e preciso a um sé tempo. “Recomega apartida e Pelé ainda estava no campo brasileiro. Apa- nha a bola. E, sibito, recebe a visita do proprio genio, Viu que 0 goleiro checo estava fora de posicao, muito adiantado. Fez, ento, o que nao ocorreria a ninguém De onde estava, deu um prodigioso tiro de cobertura. ATV, que nao sabe fantasiar ¢ tem o escriipulo da mais exata veracidade, descreveu-nos o lance.” Do mo- mento em que 0 10 chutou, de dentro do eirculo cen- tral, até o momento em que a pelota voltou a tocar 0 gramado, 60 metros a frente, passaram-se exatos trés segundos. Em 2014, a TV Globo digitalizou as imagens , gracas a um programa de computador, mostrou que abola aleancou 7,3 metros de altura no ponto mais ele vado da parabola, a uma velocidade de 105 quiléme- tros por hora. Sem dispor dessas informacdes, o narra- dor sentenciou, a0 vivo, pelo radio: “Quase, quase, qua- se, quase, quase que ele derruba este estidio se ele faz o gol Seria o gol maior da Copa’. Nelson Rodrigues traduziu o lance assim: “Por um momento, ninguém entendeu. Por que Pelé nao pas- sou? Por que atirava de tao espantosa distncia? Eo goleiro custou a perceber que era ele a vitima. Seu horror teve qualquer coisa de comico, Pés-se a correr, em panico. De vez em quando, parava e olhava. La vinha a bola. Parecia uma cena d’Os Tres Patetas. E, por um fio, nao entra o mais fantastico gol de todas, as Copas passadas, presentes e futuras. Os checos pa- rados, 0s brasileiros parados, os mexicanos parados — virama bola tirar 0 maior fino da trave. Foi um cf nico ¢ deslavado milagre nao ter se consumado esse gol to merecido, Aquele foi, sim, um momento de eternidade do futebol. Pelé nunca foi tao alto no seu genio. Mas por que fez isso? Simplesmente, ali o rei se Vinigaveddas nousha vaian™.@ ENISAE| SI [ PELE&EU | CAMINHANDO SEM LENCO NEM DOCUMENTO Marcelo Duarte ra minha primeira vez com Pelé. Mes- mo tendo trabalhado oito anos na re- H+ vista PLACAR e até entdo outros qua- tro na ESPN Brasil, nunca havia apare- cido uma oportunidade de entrevistar o rei. Carregava isso como uma mécula no meu curricula, Por isso, o convite para realizar ‘uma entrevista para revista Homem Vogue, no ve- ro de 2006, com fotografias de Mauricio Nahas, sur- giucomoa chance da redengfo. Mas, ao mesmo tem- po, como um desafio. O que faltava ainda perguntar a Pelé? Saquei da pasta um exemplar do livro Eu Sou Pelé, a primeira autobiografia dele, escrita em 1961 por Benedito Ruy Barbosa. Comecei lendo alguns trechos do capitulo final, em que Pelé fazia previsdes sobre o seu futuro: “Pretendo jogar, como profissional, apenas até 0 ano de 1965, Depois, se Deus quiser, serei apenas um amador, que jogaré por puro prazer, quando e onde Ihe convier. (..) Serei capaz, até, de voltar a participar de peladas de rua, quando voltar a Bauru, sem dar a minima importancia aos comentarios que possam fa- er. Vou viver, enfim!™ E entio comeceia fazer algumas perguntas. Lendo isso agora, Pelé, da para dizer que tudo o que vocé planejou para a sua vida deu errado? Essa previsdo de jogar até 1965 era baseada no tempo em que ‘meu pai jogou. Ele jogou durante dez, doze anos e ai se ‘machucou. Por isso, e¥ nao podia imaginar que iria dis- putar quatro Copas do Mundo. Acontece que, na Copa de 1962, 0 Brasil foi bicampeao e eu me machuquei. Veio S21 ade 1966 ¢ eu falei que seria a diltima, mas eu me ma- chuquei de novo. Ai pensei: “Caramba, eu vou me des- pedir sem jogar mais uma Copa?” Em 1970, eu estava ‘com boas condigbes fisicas. Na Copa seguinte, em 1974, também estava bem. Até me chamaram para jogar a Copa da Alemanha. $6 que eu decidi parar. ‘Teve alguma coisa que a fama nao Ihe deu? Olha, a gente precisa separar a fama das coisas mate- riais. Sou conhecido no mundo todo. Por isso, 6 piblico pensa que sou milionario, biliondrio. Na realidade, nio sou. Tudo o que eu tenho ganhei do futebol. Dé para cuidar da minha familia — acho que até a proxima ge- ragdo, Mas nao sou milionério. Quanto dinheiro vocé tem agora ai no bolso? Dinheiro? F dificil andar com dinheiro no bolso por- que eu nao tenho muito... (risos). Eu ando com cartao de crédito, com cheque, mas eu ando com pouco di- nheiro. Como eu tinha esse compromisso no estudio, para fotografar, eu nem trouxe a carteira. E documento? Ja esqueceu alguma vez e teve de explicar quem era vocé? Esquecer, nunea esque- ci, Mas jé passei por situagdes engracadas. Estava in- do do Japao para Nova York. Na hora de uma escala, no Havai, algumas criangas se aproximaram para pe- dir autégrafo. Eu precisava de algo duro para apoiar 0 papel e fiz isso em cima do meu passaporte. Entre- uci o papel e a caneta, ¢ o meu passaporte foi embo- 1a junto. Nos Estados Unidos, dificilmente eles dei- xam entrar sem o passaporte. Foram chamar o chefe de policia e eu expliquei o que tinha acontecido. © policial disse: “Quer saber de uma coisa? O meu fi- Iho adora soccer e vocé vai entrar" Vocé anda sempre com sua carteira de identida- de? Sempre. E.coma minha carteira de motorista tam: bém. Dirijo pouco, mas de vez em quando eu pego 0 carro e vou para Santos. Procuro andar sempre nalei. Qual foi a ltima vez que vocé foi ao supermer- cado? Na semana passada, eu estava em Nova York. Passei lé para ver a minha filha Kelly e para conhecer meu netinho mais novo. Fomos comprar uma carne de que eu gosto muito e que é dificil de encontrar aqui. Chama-se ribs, uma carne bem macia. Comprei também endivias, uma mistura de repolho com alfa- ce, Uma ou outra pessoa vinha pedir autografo, mas muito discretamente. Seria bom se eu pudesse fazer isso no Brasil. Coma caranga, um Mercedes: “Dijopouco, mas de vezem quando eu pegoocarrvevou para Santos. Pracuroandarsemprenaler No Brasil, vocé nao consegue sair de casa para essas coisas triviais? No Brasil, nio. Bom, em Santos, ‘eu fui auma padaria, perto do Canal 5, e passei para co- mer um pastel na Ponta da Praia na semana retrasada. Vocé ja pediu autégrafo para alguém? Pedir para mim eu nunca pedi. Geralmente, os idolos vm e pedem primeiro para mim. Mas eu jé pedi para omeu filho, ja pedi para a minha filha, para amigos. No GI Brasil de Formula 1 deste ano, eu entreguei a taca pa rao Michael Schumacher. As minhas filhas, un monte de amigos, todo mundo pediu autografo dele. Quando fui para a Copa, a filha da Assiria me pediu 95 autégrafos do Kaka, do Robinho, que é a paixio dela. Eu vou lie pego. Assim era o Pelé. @ Marcelo Duarte foidiretar deredagao de PLACAR de1995.81098 INAS ISS. GOL1000 Pe a ey ee ee ee ae ae ae q 4 ‘ “SE TIVESSE VAR, NAO SERIA PENALTY” Opasseio sentimental de Pelé aquela noite de 1969, a do milésimo, mostra como os grandes feitos perduram — e como o Brasil pode piorar Luiz Felipe Castro e Alexandre Senechal arlos Drummond de Andrade jé tinha cantado as dores dos ombros que su- portavam 0 mundo, escrevera sobre Jodo que amava Teresa, que amava Rai nundo, tratara de José, para quem a festa acabat into aproximou-se o gol 1 000 de Pelé, Numa crénica de 28 de outubro de 1969, publicada no Jornal do Brasil, ele definiu: ‘O difi- cil, o extraordinario, nao é fazer 1000 gols, como Pelé. E fazer um gol como Pelé”. Um poeta, o maior deles,li- dando com futebot? Passados mais de cinquenta anos, dificil mesmo é medir a relevancia estrondosa daquela marca, estabelecida em 19 de novembro, uma quarta- 19 denovembro, feira, as 23h23 — um misero golzinho, de pénalti, cele- quarta-feira,23h23 brado no Brasil com a mesma pompa e circunstncia roMeracand que o planeta oferecera a chegada do homem a Lua, apompade um quatro meses antes? O milésimo representava 0 apo- ‘momento celebrado geu do rei do futebol, oselo definitiva de mito, antes comoachegada ainda da atuagao que 0 coroari ciohomem Lua tacular desemperiho coma ca INES: do tri, em 1970. E havia o ambiente politico, o cotidiano esmagado pela ditadura mili tar—a festa em torno do camisa 10 do Santos, naquele contexto, seria um respiro, E foi. Na edigdo seguinte ao tento sofrido pelo goleiro argentino Andrada, do Vasco da Gama, aos 34 minutos do segundo tempo — o Santos venceu por 2a 1, de virada, em partida pelo torneio Roberto Gomes Pedrosa, o equivalente ao Brasil rao daq po —,a revista VEJA circulou com uma reportagem de capa atrel daa Pelé. PLACAR ainda nao havia sido lancada. O primeito paragrafo: "O pénalti foi o melhor prélogo para a grande festa. A torcida que viu o jogo no Maracana, quem assistiu a partida pela televiso, quem ouviu pelo ridio, jornalistas, fot6gra- fos, cinegrafistas, dirigentes, jogadores, todos puderam preparar-se diante da ine- vitabilidade do gol nimero 1000", Como num filme de suspense, houve longa p (0 a0 ponto culminante. Quinze dias antes, em jogo contra o Santa Cruz, — sai de 996 p: as depois, contra o Botafo go da Paraiba, em Joao Pessoa (amistoso marcado is pressas, caga-niquel), no dia 14 de novembro, ele converteu um de pénalti (0 999) ¢ terminou a partida como gol 10, “Eunao queria aborrecer os baianos que me espera vam para um jogo oficial, odo festejo do milés Uo parei de chutar em gol’, diria Pelé. “Tinha medo que os jogadores do Botafogo saissem da frente da bola ea deixassem entrar.” Contra o Bahia, em Salvador, em 16 de novembro, deu-se 0 1 a 1, sem a marca do rei. E entao veio o Maracana. Estudiosos do futebol, afeitos ahistérias reversas, depois recontariam todos os gols de Pelé, para estabelecer uma corrego que nunca co- Jou, porque estragaria a magica: 0 1000 teria vindo an- tes, talvez no Recife, talvez em Joao Pessoa Como todo grande instante indelével,e aqueles anos 60 foram prédigos dees, o gol 1000 também ficou atre Jado a uma frase que se perpetuon. Depois de a bola en- trar A esquerda de Andrada, Pelé caminhou até a rede, Depois de sererguido 2a céu,afraseque nunca mes descoaria de suatrajetria Nao {quero estas paremim, Acreditem queeuacho muito maisimportente ajudarascriangas pobres, asnecessitadas” pegou.a pelota, beijou-a e, cercado por uma multidao de microfones, avisou: “Nao quero festas para mim. Acre- ditem que eu acho muito mais importante ajudar as criangas pobres, os necessitados. Vamos pensar no Na- tal dessa gente toda’. Foi o primeiro pronunciamento, digamos assim, politico de Pelé. E 0 caso de medi-lo a olhos contemporaneos. As criancas que passavam fo- me eram retrato de um pais desigual que, no indice Gini, usado para medir a pobreza, estava em 0,581. Pio- rout Hoje est em 0,625, Em entrevista a VEJA, em 2019, Pelé, aos 79 anos, entrou num tiinel do tempo particu- Jar para justificar o famoso comentario social. “Dias, antes, ein Santos, vi uns garotos tentando roubar uns carros. Eu disse: ‘O que vocés estio fazendo ai, mole- ques?’ Eles ainda tentaram se justificar, dizendo que estavam mexendo sé com veiculos de Sao Paulo. Eu dis- se que nao podiam roubar ninguém, caramba. Os garo- tos nem ficaram com medo. Pode um negécio desse? Por isso veio a mensagem do gol 1000.” Para Pelé, fosse nos tempos de agora, seria mais dramitico, ‘porque es- ta todo mundo com arma, muito mais violento”. Insta- doa aproximar ainda mais aquela noite magica do coti- diano que cercava seus derradeiros anos de vida, oeter- no craque fez uma revelagdo que, ela sim, representaria um terremoto revisionista, um irresponsavel desman- cha-prazeres: “Se tivesse VAR, nio seria pénalti”. @ EMSAS IST ( peveacu | Ce OS SEGREDOS DO SUDARIO CANARINHO Mauricio Barros © celular dos meus filhos, j virei sapo ¢ jacaré — com um ganho estético em relacdo a realidade. Os aplicativos fa- zem de tudo com uma imagem. Distor- cem, transformam, acabam com espi nhas, pés de galinha e papadas. Ha muito que qualquer imagem mais inusitada arranca imediatamente um “sera que é montagem?” Nos anos 1970 nao era assim. Havia rudimentos de trucagem, mas nada parecido com o mundo pés- Photoshop. Uma foto era o que era, principalmente no jornalismo. Valia a pericia do autor: luz, enqua- dramento, angulo. Naquele outubro de 1976, quando a quimica fez surgir a imagem no papel, Luiz Paulo Machado, 0 fotdgrafo colaborador de PLACAR, vin que tinha em mios algo especial. E olha que Pelé nem estava dando uma bicicleta ou celebrando um gol com seu tradicional soco no ar. Parecia recla- mar de alguma coisa, uma tabela nao correspondi- da, sabe-se ld... O que havia de estupendo era uma enorme mancha de suor no peito, formando um per- feito coracao. Coisa de outro mundo, como Pelé. Na redacdo, em Sao Paulo, o diretor Jairo Régis achou a composicao tio fabulosa que preferiu guarda- la para uma ocasiao especial — que surgiu doze meses depois, quando PLACAR marcou a despedida definiti- va do craque com um encarte comemorativo, anexado & edigao 389 ¢ batizado de “Documento histérico: 22.anos de Pelé” Na capa do especial, editado por Juca Kfouri, a foto extraordinaria de Machado, cortada pa- ra dar destaque ao rei. A partir dali, a imagem emble- mitica rodou o mundo, Um coragao de suor no peito. SBIMEE Um milagre. Um sudario! E Pelé ainda tinha nascido em Trés Coragées, Minas Gerais, Mas vamos viajar no tempo. No fim de 2013 eu ocu- ava a posigdio que um dia fora de Jairo e Juca quando chegou a noticia do langamento de um livro comemo- rativo da cazreira do ex-jogador. Nao era um livro «qualquer. Impresso em Verona, Itélia, com tiragem nu- merada de 1283 unidades (0 ntimero de gols, é claro), capa ¢ estojo revestidos de seda e lombada em couro, acabamento artesanal de um esttidio de Turim. A in- tencdo dos editores era conquistar endinheirados de olho na “compilagao definitiva’ das melhores fotos do Atleta do Século. No Brasil, o livro foi lancado em um ento pomposo no Museu da Imagem e do Som, em 10 Paulo, com Pelé e Machado presentes. O preco salgado mesmo sem nenhuma atualizacio, passados ito anos: 3600 reais na edigao mais “simples” ¢ 5500 reais na edicdo king. O bénus da mais cara era, justa- mente, a lendaria foto do coragao impressa com pig- ‘mentos minerais, em papel 100% algodao, autografada pelo fot6grafo e pelo rei. Coisa pra enquadrar e por na parede. Ou guardar no cofre. ‘Ao ver a foto, no material de divulgacao, uma per- {gunta nao me saia da caheca. Eu, peladeiro acostumado a suar em bicas varzea afora, precisava saber como era possivel formar-se um coracao de suor num peito hu- mano. “Essa foto é nossa, é de PLACAR. Vamos contar historia dela, explicar essa magica?”, disse ao repérter ‘André Carvalho, que fez aquele semblante de quem se ‘encanta com uma pauta e garantiu: “Deixa comig ‘Oresultado foi um texto de cinco paginas, publica- dona edigao 1386, de janeiro de 2014, explicando como tempce, séem 2014, teve otecido 100% algodao da selegdo, com os punhos ea apertados (0 que retinha os liquids), o peito cabeludo do rei e o fato de ele estar, naquele final de car reira, mais “cheinho” e suando além da conta permitiram que surgisse aquele qua- dro. A cereja do bolo: ainda corrigimos o livro! Até entao, todos acreditavam que 0 jogo em questo era 0 amistoso Brasil 2 x 2 lugoskiv 1971, no Maracand. O editor Marcos Documentagao da Abril, a foto sem cort realizado em 18 d io Silva tinha visto, no Departa e percebeu que no canto esquerdo apare- cia parte do uniforme de um jogador do Flamengo. A confusao sobre a data se deu por culpa da prépria revista, que, ao guardar o slide na gaveta para tal “data espe- ial’, nao seguiu os protocolos de catalogacio, Marcao estava certo. O jogo da foto foi um amistoso em que o Brasil perdeu para o Flamengo por 2 a 0. Pelé jogou apenas meio tempo, mas deixou 0 coragdo em campo. @ Mauricio Barros oidiretor deredagaodePLACARde 2011 a2014 Pee} Pane ist Ce err GOSS RAR A SUA MAO Por quase dez anos fui o guarda-costas do Ben Brobby nasceu em Acra em 1963 Foiguardo-costas deFeléentre2010e2018¢ hoje vive na copta ganeso, andediigeo Arson Africa Secu, sua empresa deprotegdo pessoa Maior de Todos. Aqui vao algumas lembrangas dos dias mais incriveis da minha vida Por Ben Brobby Texto: Christian Carvalho Cruz nesta vila de pescadores chamada Kokro- bite, em Acra, que eu reencontro meuam® go Pelé todos os dias. Eu vivo aqui, aal- guns passos da praia, desde que voltei de Londres. Um lugar calmo, de areias claras, pessoas simples, bom para caminhar, comprar peixe fresco e tomar um trago, Tenho uma vista ampla do aceano. De manha cedo eu gosto de ir até a beira do mar, molhar meus pés e contemplar a imensi- dio entre Gana ¢ o Brasilas marolas levamaminba sau- dade, a minha tristeza, e trazem as recordagées dos me- Ihores anos da minha vida, quando tive a sorte de ser 0 guarda-costas do rei do futebol Tudo comegou em 2010, na festa de 70 anos dele. Esti- vamos no Mandarin Oriental Hotel, em Manhattan, quando o vi pessoalmente pela primeira ver foi al {fico e perturbador. Eu fiquei fascinado, quase em tran- se. Também estavam li 0 Carlos Alberto Torres, o Gior- gio Chinaglia ¢ o pessoal do velho Cosmos. Mas acho que naquele momento, do Bronx Wall Street, ninguém mexia tanto com o ambiente como o Pelé. De longe eu 0 observava, ouvia a sua voz poderosa. Uma mistica en- volvia todo o saguao, algo elevado, e até hoje eu nao consigo explicar isso direito. Foi dificil manter a minha discricdo e a minha racionalidade, as caracteristicas profissionais que tinham me levado até aquele emprego. Eu vinha trabalhando como seguranga pessoal do empresirio inglés Paul Kemsley, que foi vice-presi- dente do Tottenham e cuidou da carreira do cantor Boy George, entre outras atividades. Em 2010, o Paul comprou 6 Cosmos e os direitos da marca Pelé e um dia me chamou a sala dele: —Ben, quetalii cuidar do Pelé? Eu preciso de alguém como voc? para garantir que ele esteja sempre bem (© Paul me conhecia fazia seis anos. Acho que ele enxergava no meu jeito uma mistura de suavidade, EMSA8 161 PERFIL] Coe ealdade e rigor que poderia cair bem no trabalho de guarda-costas do Pelé. Eu nasci em Gana, fui criado por meu avd, um funcionério piblico muito calmo que gostava de jogar damas, e me mudei para Londres 20s 17 anos, Estudei tecnologia da informacdo, Mas um dia vino jornal o anincio de um curso de seguranca pes- soal oferecido por ex-militares do Exército britanico. Fiz o treinamento de seis semanas, gostei, voltei a fa culdade para estudar gerenciamento de riscos, e foi as- sim que entrei no ramo. Eu sempre fui fa de futebol, torcedor do Arsenal, mas jamais imaginei que viveria dias incriveis com 0 maior de todos os tempos. Preciso dizer: apesar de magico, nao era um trabalho ficil. Basicamente porque o Pelé era o Pelé, um sujeito adoravel, educado, que nunca dizia “nao” ou “agora che- {g2", mesmo se estivesse caindo de cansago ou a situacao, pelo aciimulo de pessoas em volta dele, pudesse se tornar ido de dizer “nao” ¢ “agora chega” pelo Pelé. Mas ele nao conseguia. Em qualquer lugar do mundo, se visse um grupo de brasilei- ros seapraximar, podia ser de madrugada, depois de um dia exaustivo de trabalho, me dizia "Pode deixar, Ben. ‘Vamos tirar umas fotos ¢ aia gente vai embora”. Agora mesmo sou capazde ouvir a voz dele me dizendo “Pera, pera, pera’, pra gente parar mais uma veze ele poder dar mais um autografo. O Pelé nao resistia a um grupo de brasileiros, principalmente — espero que a Marcia nao ésteja lendo — se entre eles houvesse uma loira bonita. Houve apenas uma ocasiao em que as coisas real- ‘mente ficaram feias. Foi numa convencao de fazendei- ros no interior do Brasil. Voamos para ki em um jati no particular e quando descemos eu vi que estava tu- do castico, Gente de mais, estrutura de seguranga de menos. Assim que o Pelé terminou o trabalho, fomos para um quartinho que tinham montado para ele to- mar um lanche e descansar, Era uma dessas estruturas pré-montadas de metal e madeira. A multiddo come- ou a cercar o local. Eu olhava pra fora e via mais e mais gente chegando. Nao dava mais pra gente sai Eu temia que as pessoas entrassem. Entao, por ridio, pedi que o motorista encostasse 0 carro na parte de tras desse quartinho. Assim que ele chegou, quebrei uum pedaco da estrutura com socos e pontapése tirei o Pelé por ali. Ele me via chutando a parede e dizia “Cal- ma, Ben, nao fica nervoso. Calma, Ben”. Foi um sufoco. Na maioria das vezes, no entanto, tudo corria bem. Eu chegava aos lugares dois ou trés dias antes do Pelé ¢ cuidava de todo o planejamento. Por onde ele ia entrar, sair, estudava 0s trajetos, calculava o tempo dos deslo- camentos, essas coisas. Meu trabalho era esse: fazer sas fluissem de forma suave, tranquila, com que as c Se bus ES para que o Pelé ficasse confortavel e eu nao precisasse aparecer mais do que ele. No fim do dia, sentavamos para jantar, conversar e contar piadas. Que saudade eu sinto daqueles dias. O Pelé ganhava muitas garrafas de uisque, relbgios, € de vez em quando me dava essas coisas de presente. Também tenho uma camisa da selecao brasileira auto- ¢grafada por ele, claro. Mas, numa noite em Paris, esta- vamos indo para o quarto do hotel e ele me deu 0 maior presente de todos: gravou um video em que cle canta Despacito pra mim, alterando a letra: “Despacito vamos bailar e o Ben vai ajudar. Vamos Ben, vamos bailar, despacito”. Tenho o video no celular € 0 revi neste instante. £ uma lembranca simples e afetuosa: 0 Pelé, 20 meu lado, rindo ao fim de um dia de trabalho A propésito, s6 vio Pelé triste uma vez. Em fevereio dde 2012 nds estévamos no Gabi, tomando café da ma- ha, quando o noticidrio na TV anunciou a morte da intora Whitney Houston, nos Estados Unidos. Ele gos- va muito da Whitney, contava que ia com ela disco teca Studio 54, em Nova York. Ao ouvir aquilo e depois ler sobre as circunstancias em que tinha acontecido, 0 Pelé se fechou. Passou o resto do dia em siléncio, amua- do, muito introspectivo. Me lembrou um pouco o sem blante que eu via em seu rosto nos momentos antes de le pisar num campo de futebol. Qualquer que fosse 0 motivo, receber uma homenagem, dar o pontapé inicial numa partida amistosa, ou entregar um troféu, nessas horas 0 Pelé, mesmo depois de décadas aposentado co- mo jogador, estava invariavelmente sério pensativo, AMfora isso, ele sorria o tempo todo, As vezes se sen tia cansado, pois jé era um senor de mais de 70 anos, ¢ ainda assim mantinha o bom humor. Nos eventos muito chatos, muito longos, em que os anfitrides vi- nham a todo momento a mesa dele para tirar foto, apresentar um amigo, interrompends o jantar, 0 Pelé cochichava pra mim: “Sabe, Ben, nessas horas eu que- ria ser o Edson pra tomar o meu café antes de esfriar”. Ele falava numa boa, com um pouco de pesar, mas nunca com raiva. Eu me enttistecia, porque meu sonho cra poder ajudar o Pelé a tomar o seu café quentinko. Nés nos vimos pela ultima vez em 2018, na Copa da Riissia. E hoje, molhando meus pés no Atlantico, eu penso no meu amigo metido numa encrenca, sem que ‘eu esteja por perto para cuidar dele: ele no céu tentan- do tomar o seu café, cercada de pessoas querendo uma foto ou um autégrafo. Marilyn Monroe, John Lennon e Da Vinci sio os primeiros da fila Até breve, querido Pelé. @ Colaborou Miguel Gelling Cruz EAE IG3. _ Obrigado, Pelé

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