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IV.

Aplicabilidade do
Direito Brasileiro

1. O que é o "Direito brasileiro"?

Quando se faz menção ao termo


direito, pode-se estar fazendo
referência à ciência do direito e ao
objeto por esta estudado.

O que interessa ao presente


estudo é, sobretudo, a concepção de
Direito, nem tanto no que diz respeito
a sua definição, mas, mais
especificamente, qual a abrangência
da expressão Direito brasileiro.

Os operadores do direito, no dia a


dia, acabam usando determinadas
expressões sem, por algumas vezes,
respeitar seu real significado, ou, por
outras ocasiões, sem as dotar de sua
concreta extensão.

E é exatamente isso que pode


ocorrer com a expressão direito,
quando utilizada como o direito
aplicável ou o conjunto de regras de
direito a caracterizar certa relação
jurídica, inclusive a relação jurídica
processual, tanto no âmbito da
jurisdição estatal como na arbitral.
Afinal o que é o direito? Tem
sentido, por exemplo, afirmar-se que o
direito se confunde com a lei, como
queriam os juristas, na França pós
revolucionária, como vimos nos itens
anteriores deste estudo? Que sentido
há em se dizer que a lei é fonte do
direito, assim como o que são os
princípios, a jurisprudência e a
doutrina 1?

A nosso ver, o direito é a pauta de


conduta a que indivíduos se
submetem. E, essa pauta de conduta
a que os indivíduos se submetem não
se confunde, necessariamente, com a
literalidade do dispositivo legal2. Não
se confunde com a letra seca da lei.

Melhor ainda seria dizer que o


direito não se confunde com aquilo
que a letra da lei revela à primeira
vista. Na lição, sempre brilhante, de
Barbosa Moreira: "O ordenamento
jurídico evidentemente não se exaure
naquilo que a letra da lei revela à
primeira vista. Nem é menos grave o
erro do julgador na solução da
quaestio iuris quando afronte norma
que integra o ordenamento sem
constar literalmente de texto algum"3 •

De onde vem, afinal, a norma que


determina pautas de condutas para o
jurisdicionado, se não é daquilo que
revela, num primeiro momento, a lei
escrita?
A pauta de conduta dos indivíduos
é, a nosso ver, o resultado da
integração de uma série de elementos
que inclui, principalmente, a lei, os
princípios, a jurisprudência, as
súmulas vinculantes e, atualmente, os
precedentes vinculantes, tudo isso à
luz de construções doutrinárias
sedimentadas ao longo do tempo.

Assim, o direito é a pauta de


conduta 4 que decorre da
compreensão concatenada de uma
série de elementos, de forma
integrada 5, a saber: (i) a lei escrita; (ii)
a lei interpretada pelos Tribunais; (iii)
a lei compreendida pela doutrina; (iv)
os precedentes e as Súmulas
Vinculantes; (v) os princípios
jurídicos.

Enfim, o direito6 é o resultado da


engrenagem de todos esses
elementos. Eles estão unidos de
forma indissociável. Uns não vivem
sem os outros. Do conjunto emerge o
direito, como uma espécie de
amálgama de todos esses elementos.
O direito é um ordenamento jurídico
que deve tender à coerência 7 •

Aqui voltamos a fazer referência a


uma forma de abordagem comum na
teoria geral do direito, no sentido de
considerar os elementos de que aqui
tratamos como sendo,
exclusivamente, fontes do direitoª.
Contudo, em nosso entender, ver-
se esses elementos, unicamente,
como fontes do direito é um equívoco,
já que são, também, integrantes do
direito. É como se o direito se auto
alimentasse. Uma espécie de
autopoiese 9 •

Neste aspecto, partilhamos da


posição de Willis Santiago Guerra 1º,
para quem o direito é f ruto do
processo da autopoiese. O direito se
auto gera: é alimentado pelos
próprios elementos que o fazem ser,
que o fazem existir11 •

Assim, por exemplo, a doutrina


baseia-se na própria doutrina; a
jurisprudência se justifica nos
precedentes, a nova lei pode surgir
para encampar posições
jurisprudenciais pacificadas ou
mesmo para acolher críticas feitas no
plano da doutrina. Vê-se, pois, com
clareza, que os elementos que
integram o próprio direito, vale dizer,
que SÃO o direito, SÃO base para que
ele se mantenha, viva e sobreviva e,
ainda, para que se renove 12 .

A Constituição é direito. A lei é


direito. A jurisprudência é direito13 . A
doutrina é direito14 .

Além disso, o direito é mutante,


muito embora deva ser estável ("The
law must be stable but must never
stand sti/1 - Roscoe Pound" 15). Deve, o
direito, adequar-se às necessidades
do dia a dia da sociedade por ele
regulada. Conforme Jean Cruet 16 :
"Nous voyons tous les jours la société
refaire la loi, on n'a jamais vu la loi
refaire la société".

Ainda sob o aspecto da


necessidade de um direito em
constante adaptação, porém, sem
perder a sua caraterística de
estabilidade, a lição de Teresa Arruda
Alvim: "li est interessant d' observer
que dans la mesure exacte ou le droit
se prête à engendrer de la prévisibilité,
il perd sa capacité relative à 1
, adaptabilité et vice versa" 17 •

A realidade social está sujeita a


constantes mudanças, hoje muito
mais rápidas e com maior facilidade,
em virtude das possibilidades que a
tecnologia oferece.

O direito, por sua vez, deve ser o


espelho das necessidades sociais, de
forma a regrar, coerentemente, e com
base no princípio da isonomia, a vida
dos indivíduos 1ª, de forma rente às
suas necessidades.

Portanto, a outra conclusão não


podemos chegar, senão à de que o
direito necessita de uma atualização
rápida: caso contrário, não poderá
cumprir com o propósito de sua
própria existência.
Se dependermos, contudo, do
processo legislativo com o fim de
alcançarmos a desejável aderência do
direito às necessidades da sociedade,
isso ocorrerá de forma muito lenta,
muito mais lenta do que a que se
espera 19 - e é necessária - com o fito
de que o direito possa, de forma
eficiente, disciplinar a vida dos
indivíduos em sociedade, num Estado
de Direito.

Em virtude de todos esses


aspectos é que devemos admitir que,
em certas circunstâncias, a mudança
do direito se afigura muito mais fácil e
rápida, pelas mãos do Juiz do que
pelas mãos do legislador2º. Adiante,
trataremos desse tema com mais
vagar.

Se um dia o juiz foi considerado a


bouche de la /oi - boca da lei -21 , por
que não o ter, em nossos dias atuais,
como a bouche du droit - a boca do
Direito?22

Nem se diga que esta afirmação


seria indevidamente reducionista do
fenômeno jurídico. Tal assertiva está,
como pretendemos demonstrar, em
harmonia absoluta com o que antes
afirmamos a respeito daquilo que,
para nós, é o direito, se
considerarmos que o Juiz, ao julgar,
se utiliza de todos os elementos
(como: Constituição, lei, doutrina,
jurisprudência) que compõem o
direito, a fim de dizer o próprio direito.

Nesse caso, o Juiz, muito mais do


que, somente, subsumir o caso à lei -
e daí o conceito de juiz como a
bouche de la foi - , leva em
consideração todos os elementos que
estão à sua disposição, sejam os
elementos externos assim
considerados os elementos do direito
- , sejam os elementos internos -
aqueles especificamente
relacionados ao caso posto à sua
. -
aprec1açao.

Quando falamos em elementos


externos do caso, fazemos menção a
todos os instrumentos de que pode, e
deve, se utilizar o Juiz, com vistas a
julgar. São, como vimos: a lei
interpretada, os precedentes, a
jurisprudência etc., enquanto os
elementos internos são aqueles que
se referem, diretamente, ao caso
posto à apreciação do Judiciário
(fatos, provas etc.).

E é nesse momento que o Juiz faz


o direito, adequado à realidade social
e adaptado à atualidade23 .

E o direito visa, dentre outros


objetivos, à segurança jurídica 24 •

Relevante que relembremos a lição


de Canaris 25, que, fazendo alusão aos
princípios da proporcionalidade e da
insuficiência, sustenta pelo poder de
criar do juiz, quando da omissão ou
da insuficiência, por parte do
legislador ordinário, sobretudo diante
de situação relacionada a direito
fundamental.

Nesse aspecto, portanto, é que


temos o precedente como um
instituto de extrema relevância social,
pois que essa decisão do Juiz - que
faz o direito - deve, por força dos
princípios constitucionais da
isonomia e da segurança jurídica, ser
aplicada a todos os futuros casos
subsequentes que sejam iguais, ou
substancialmente iguais, ainda que
diferentes em aspectos acidentais,
àquele em que proferida a decisão.

Naturalmente que a figura do


precedente, com a sua eficácia de
caráter vinculante no grau forte - em
conformidade com a classificação
que adotamos neste estudo - será
aquela assim tratada pela lei, isto é,
conforme os arts. 927, inciso Ili; 988,
inciso IV e § 5°, inciso li; 1.030, inciso
1, alíneas a e b e 1.039 do NCPC.
E é esse o precedente a que nos
referimos como um dos elementos
componentes e formadores do direito.
É esse precedente que temos como o
próprio direito; como fruto do
exercício da atividade jurisdicional
cuja metáfora seria o Juiz: bouche du
droit.
O precedente, uma vez resultante
da análise, pela autoridade judicante,
de todos os elementos que lhe foram
submetidos à apreciação, será um
novo componente do direito, de forma
que adquire poder normativo e tem
"força de lei", não só entre as partes
do processo em que proferida a
decisão, mas, também, futuramente,
para todos os casos idênticos, ou
semelhantes, desde que tenham a
mesma ratio e/ou a mesma essência
jurídica 26 . Essa é a essência do
precedente vinculante.

2. O princípio da legalidade

O que sustentamos no tópico


anterior poderia gerar dúvidas quanto
à sua compatibilidade com o princípio
da legalidade, cuja relevância se
confunde, historicamente, com o
conceito de Estado de Direito.

Com base numa concepção, a


nosso ver, hoje ultrapassada, o
princípio da legalidade significaria
que os indivíduos só estariam sujeitos
a fazer, ou deixar de fazer algo, senão
em virtude de lei21stricto sensu, de
modo que as posições adotadas
neste ensaio poderiam ser
interpretadas como violação ao
mencionado princípio constitucional.

Contudo, pensamos não ser dessa


forma que o princípio da legalidade
deva ser compreendido2ª, em vista do
que, hoje, se entende por direito 29 .

Como dissemos no tópico


antecedente, ao termo direito deve-se
atribuir um significado, uma
interpretação, bastante abrangente30 •
Ele não é, pura e simplesmente, a lei.
Mais do que isso, o direito é o
resultado da amálgama de elementos
que são indissociáveis: a pauta de
conduta dos indivíduos.

Na lição de Cláudia Lima Marques,


ao prefaciar a obra de Ricardo Luiz
Lorenzetti3 1 : "A experiência jurídica
não se esgota na lei. Cada vez mais, a
exata apreensão sobre o que é o
direito depende de uma profunda
compreensão da jurisprudência (law
in action) e da doutrina (law in the
books), representativa da elaboração
científica daquilo que é jurídico".

O princípio da legalidade, em sua


literalidade, é aquele segundo o qual
as pessoas têm o direito de saber
como devem se comportar, como
devem planejar as suas condutas.
Isso porque a pauta de conduta que
os indivíduos devem obedecer está
previamente prevista. O princípio da
legalidade deve trazer, senão, ao
menos, garantir, a realização da
segurança jurídica aos
jurisdicionados.
E, a pauta de conduta - como visto
anteriormente - não é somente a lei,
mas decorre de um conjunto de
elementos, pelo que, o princípio da
legalidade deve ser entendido,
atualmente, de uma forma muito mais
ampla, a abranger todos esses
elementos, quais sejam: a
constituição, a lei, a doutrina, a
jurisprudência e, também, os
precedentes vinculantes.

A afirmação supra torna-se ainda


mais visivelmente verdadeira quando
nos deparamos com a relevância que
o NCPC deu ao papel dos Tribunais -
por meio da valorização dos
precedentes, tornando-os vinculantes
em certas circunstâncias-, bem como
às súmulas e às súmulas vinculantes.
Mas não só, pois que até a própria
jurisprudência pacificada tornou-se
elemento de extrema relevância com
o NCPC.
Vejamos, por exemplo, o art. 489, §
1 º, inciso V do NCPC, que admite que
o juiz decida com base em
precedentes, o que não significa, em
absoluto, que não deva citar a lei de
que se vale para decidir: é a lei, na
versão que lhe terá sido dada pela
tese adotada no precedente citado.

O mesmo há de se dizer quanto ao


previsto no art. 966 do NCPC, ao
estabelecer o cabimento de ação
rescisória por força de ofensa à
norma jurídica (inciso V).

A hipótese consistente em
ausência de distinção entre a questão
discutida no processo, cuja decisão
se pretende rescindir, e o padrão
decisório constante de súmula ou de
precedente vinculante oriundo de
casos repetitivos (§ 5°) dá ensejo ao
ajuizamento da rescisória,
exatamente com base no
mencionado inciso V (art. 966).

Isso nem precisaria estar previsto


no § 5° do art. 966 do NCPC, pois é
dessumível da adequada
compreensão do próprio dispositivo
legal em comento, ao fazer menção à
norma jurídica (aí incluído, portanto, o
precedente vinculante).

Veja-se, assim, que o próprio NCPC


desempenha, de certo modo, papel
revolucionário no conceito de direito,
aproximando-o daquilo que,
efetivamente, para nós, é o direito.

Considera-se norma jurídica -


direito, portanto também o
precedente!

A intenção da Constituição, em
seu art. 5°, inciso li, ao utilizar a
palavra lei, tratando do princípio da
legalidade, foi, entendemos, a de fazer
menção ao direito.
Em virtude disso, propomos a
releitura do mencionado dispositivo
constitucional, da seguinte maneira:
"ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude do direito".

Veja-se, a esse propósito,


interessante e oportuna lição de
Teresa Arruda Alvim Wambier32,
inclusive citando autores clássicos,
como Pontes de Miranda, que vem a
reforçar o quanto aqui se sustenta .

Diz a referida autora que, quando o


legislador se referia à violação à lei
como causa de pedir apta a ensejar
cabimento de ação rescisória, estava-
se, na verdade, referindo-se à ofensa
ao direito, ao ordenamento jurídico 33 , e
não à lei, considerada em sua
literalidade.

E, uma vez que o direito está em


constante mudança, sua evolução
pode ser fruto de duas grandes
ordens, a considerar: (i) dos atos
decisórios do Poder Judiciário e (ii)
dos atos do legislador.

Segundo reflexão feita por parte da


doutrina, o discrimen a ser
considerado para a possibilidade da
criação do direito, pelo Poder
Judiciário ou pelo Legislativo, está no
direito material objeto da
normatização.
Para as hipóteses em que o objeto
normatizado esteja relacionado a
tipos jurídicos penais, tributários ou
de direito administrativo, por exemplo,
não há o que se falar na evolução do
Direito por força da jurisprudência.

Para esses casos, o sistema é


muito mais rígido e deve,
necessariamente, ser regrado através
de leis34 •

Há outras situações, contudo,


como, por exemplo, no que toca às
questões relativas ao direito de
família, em que a evolução do direito
mostra-se absolutamente viável - e
até aconselhável que o seja - através
de atos do Poder Judiciário35 . É o
caso, por exemplo, da compreensão
acerca de determinados conceitos
relacionados à união estável ou
direitos decorrentes da união
homoafetiva.

Muito comum - e bastante


aceitável - que para as hipóteses
vislumbradas de direito de família, a
jurisprudência se coloque à frente -
temporalmente falando do
legislativo e altere o direito,
adequando-o à realidade do
momento.

Isso não deve ocorrer, comumente,


com as questões relacionadas aos
direitos administrativo e tributário os
quais, diga-se, novamente, são
estruturados em função de princípios
que preservam, de maneira
acentuada, valores como segurança
jurídica e previsibilidade,
diferentemente do que ocorre em
outras áreas, em que a importância
que se dá à busca da solução correta
supera a que se atribui àqueles
valores antes mencionados.

É relevante que se compreenda o


porquê dessa diferença: a alteração
da jurisprudência tem, sempre, salvo
no caso de haver modulação36, efeito
retroativo. A mudança da pauta de
conduta, quando ocorre por obra do
juiz, acaba por servir de base para
avaliar casos que ocorreram à luz da
orientação superada, o que gera
surpresa, indesejável e, de rigor,
inadmissível, como regra, no âmbito
do direito tributário ou penal.

Veja-se que a própria modulação é


sinal evidente de que o legislador
reconhece que decisões judiciais
geram pauta de conduta: orientação
para os outros tribunais e para o
próprio jurisdicionado. Trata-se da
preocupação do legislador de criar
normas de direito "intertemporal"
também para a mudança da
jurisprudência.

Um rápido parêntesis acerca da


importância e da coerência na
aplicação da técnica de modulação
dos efeitos das decisões, para o que
citamos a lição de Marinoni: "O
emprego das técnicas de modulação
dos efeitos temporais exige cautela.
Obstaculizar a retroatividade de
efeitos pode gerar resultados
inconsistentes ou tratamento
desigual para casos iguais."37

As mudanças em áreas como as


relativas à família devem ocorrer
muito mais rapidamente do que em
outros ramos do direito, por força do
dinamismo das relações envolvidas,
de forma que, para essas situações,
se espera uma resposta, também
muito mais rápida, do direito. É aí que
entra o dinamismo da função
normativa do Judiciário, através de
suas decisões consistentes nos
precedentes vinculantes e
formadoras da jurisprudência.

O efeito retroativo de que se


reveste a jurisprudência, o que se
aplica, também, ao instituto do
precedente, tem a relevan1e missão
de orientar a posição dos
jurisdicionados, no sentido de
desafiar determinada tese em juízo,
ou não3 ª. Mais uma vez, a
previsibilidade e a segurança que se
esperam do direito.

3. Os Três Poderes
A tese aqui apresentada poderia
levar à provocação de que estaríamos
diante de típico caso de desrespeito à
tripartição dos Poderes, conforme
estabelecido no art. 2° da
Constituição Federal39 .

Por isso, justamente, é que parece,


historicamente, sempre ter havido
muita hesitação, por parte dos
juristas, em admitir que a atividade
interpretativa do juiz envolve,
necessariamente, algum grau de
criatividade 40 •

Não é como entendemos, contudo.


E, nossa posição não é isolada e
possui respaldo em clássicos como
Carlos Maximiliano41, cuja escola,
muito embora bastante antiga, já
ponderava acerca do quanto aqui
tratamos:

Não se viola o princípio da divisão


dos poderes; porque o sistema
preconizado apenas 'concilia as
exigências da forma com as da vida
social multímoda e continuamente
evolvente' (1 ). Assim como o químico
põe em combinação elementos
diversos e chega a uma resultante
independente da sua vontade, assim,
também, o juiz ante certas relações
de fatos e normas jurídicas gerais,
obtém solução feliz, porém não filha
do seu arbítrio (2). Ele age mais como
investigador do que criador; a sua
argúcia revela-se em se não apegar a
um texto incompleto, para o caso, e
recorrer inteligentemente a uma
combinação; preferir o conjunto ao
dispositivo isolado, o Direito à regra, a
ciência revelada por um Código
inteiro, ou por diversos, a um artigo
só, distinto, com um raio de ação
limitado, restrito.

Embora o princípio da divisão dos


poderes, observado sem restrições, o
que, aliás, se não pratica em país
nenhum, extinga o antigo papel
criador do Direito, atribuído à
jurisprudência; o dever de decidir os
litígios, sejam quais forem as
deficiências da lei escrita, força a
magistratura a reivindicar, em parte, a
sua velha competência e assim
tornar-se, de fato, uma dilatadora e
aperfeiçoadora das normas rígidas
(3).

A função normativa do Judiciário42


não viola, a nosso ver, a tripartição
dos poderes, pois que a lei,
necessariamente, deve ser
interpretada e, quando se interpreta,
acrescenta-se algo àquilo que já
existe43, motivo pelo qual, plausível a
afirmação de que há uma função
normativa na própria atividade de
interpretação da lei.

A criatividade envolvida na
interpretação pode ser graduada. Sim,
se estivermos diante de uma cláusula
geral, por exemplo, é natural que o
julgador tenha um poder normativo
muito maior, em virtude da própria
natureza da cláusula geral que, como
já vimos neste estudo, concede uma
grande flexibilidade na sua
interpretação.

Se, contudo, estivermos diante de


hipótese de interpretação de um
conceito dito determinado, a liberdade
conferida ao julgador não o será na
mesma intensidade que quando da
aplicação de uma cláusula geral.

A intensidade da função normativa


do Judiciário, assim, tem ligação
direta com a linguagem e com a
técnica legislativa adotadas pelo
legislador para aquela determinada lei
objeto da interpretação judicial. Sua
amplitude dependerá, sempre, da
natureza da norma: dura ou frouxa .

Assim, muito embora vivamos em


Estado de Direito em que vige a
tripartição de poderes 44, o fato de o
Judiciário criar uma norma, por meio
de precedente que deverá,
obrigatoriamente, ser aplicado aos
casos subsequentes que sejam
iguais, ou substancialmente iguais,
ainda que diferentes em aspectos
acidentais, isso não significa que o
Judiciário estaria usurpando
competência que não é sua.

Isso porque, repita-se, a função


normativa de que aqui tratamos
acaba sendo quase que uma
consequência inexorável da atividade
judicante, que cabe ao Poder
Judiciário. Se, para aplicar a lei, é
necessária a prévia interpretação e se
a interpretação resulta na criação, a
função normativa ( criação da norma)
do Juiz é resultado natural de sua
atividade. Em alguns momentos com
maior intensidade, em outros com
menos.

Ademais, é sabido que o


Judiciário, no Brasil, toma decisões
que, não fosse a deformidade que
aqui ocorre, seriam de competência
do Poder Executivo.

É muito comum, por exemplo, o


Judiciário ser instado a se manifestar
acerca de questões atinentes às
políticas públicas 45 • De fato, são
comuns ações de particulares que
pleiteiam do Judiciário decisões no
sentido da liberação de um
determinado remédio pelo sistema
público de saúde.

Também não são incomuns


medidas judiciais, inclusive ações
civis públicas, em que se questiona a
superlotação de cadeias públicas ou
tratamentos médicos negados pelo
Poder Público46 .

A dificuldade que se coloca para o


Judiciário, nessas circunstâncias, é a
ausência da visão do todo que o
administrador tem, enquanto sua
visão (do Judiciário) é limitada ao
caso concreto e não ao contexto em
que ele se insere.

Isso tudo faz com que o Juiz tenha


de ir muito além da mera aplicação da
letra da lei. Muito além da, somente,
interpretação da lei. É necessário que
ele faça uso de todos os elementos
quantos lhe forem possíveis, com
vistas a atingir um julgamento
qualificado. É a interpretação do
direito47 - este com a amplitude com
que trabalhamos neste estudo -
aplicada pelo juiz que é o: bouche du
droit.

A situação aqui mencionada, sob


certo aspecto, poderia ser vista como
a gerar invasão de competência do
Executivo pelo Judiciário, mas,
também neste caso, assim não deve
ser considerada. É a necessidade
social que clama a participação do
Judiciário naquilo que o Executivo
deixa de realizar, quando a sua é a
primária obrigação.

Muito bem-vindas, como sempre,


as palavras de Arruda Alvim, em
palestra proferida na PUC-SP48,
quando afirmou que o juiz, ao exercer
o Poder Normativo, também ínsito à
sua atividade - como ocorre quando
da criação de um precedente - , não
legisla. Para o Professor, o ato
criativo/normativo do juiz não viola a
regra da tripartição dos poderes por,
apenas, interpretar a lei (cuja criação
é função primária do Legislativo),
inserindo um novo elemento no
direito. Essa atividade do juiz é
exercida de forma derivada.

Daí por que podermos concluir que


o poder normativo do Judiciário
equivale, em certa medida, a um
poder de legislar, de criar direito, pois
que derivado (secundário) 49 .

Neste ponto, vale inserir ao bojo


deste trabalho, a lição de Michele
Taruffo, ao tratar o direito como o
diritto vivente 50, que resulta da
jurisprudência criada pelos Juízes.
Nesse contexto, o direito é a própria
jurisprudência. O Juiz é responsável
pela criação da norma!

3. 1. Casos em que se verifica o


poder normativo do juiz

Em vista da relevância da matéria,


entendemos pertinente a abertura de
um tópico específico, onde possamos
ilustrar o que, atualmente, compõe
tema que tem sido muito explorado
pelos juristas e que vem sendo
chamado de ativismo judicial.

Nesse caso, como vimos nos itens


anteriores deste estudo, o Juiz acaba
por, independentemente da aplicação
da lei, criar uma norma.

É o que vemos nos seguintes


julgados:
A) Administrativo. Servidor
Público. Nascimento de múltiplos.
Concessão da licença-paternidade
com a mesma duração da licença-
maternidade. Valor do auxílio-
natalidade devido por cada filho.
Aplicação da equidade. Fins sociais e
exigências do bem comum. Princípios
do melhor interesse da criança e da
prioridade absoluta . Princípio da
igualdade entre os filhos. Proteção
constitucional da família e da criança.
Atualização monetária e juros.

1 . A Constituição Federal, em seu


art. 226, garante proteção especial do
Estado à família e à criança. O art.
227, prevê como dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à
criança, com absoluta prioridade, o
direito à vida e à saúde, bem como à
convivência familiar. O art. 229, por
sua vez, estabelece o dever dos pais
de assistir, criar e educar os filhos
menores.

2. O nascimento de múltiplos, no
caso em julgamento de gêmeos, requer
o acompanhamento de mais de uma
pessoa para o atendimento das
necessidades básicas dos recém-
nascidos.

3. A presença do pai e sua


participação na rotina dos bebês são
fundamentais no desenvolvimento da
relação de convivência e de afeto entre
pais e filhos, autorizando a concessão
da licença-paternidade com a mesma
duração da licença-maternidade.

4. Em caso de parto múltiplo, o


valor do auxílio-natalidade deve ser
multiplicado pelo número de filhos.
Inconstitucionalidade incidental do §
1 °, do art. 196, da Lei nº 8. 112/1990.

5. A utilização da equidade,
especialmente nos casos em que a lei
não oferece decisão adequada,
encontra respaldo na Lei dos Juizados
Especiais.

6. Parcial provimento para que a


atualização monetária e juros seja em
conformidade com o art. 1°-F da Lei
n. 9.494/1997, com a redação da Lei
n. 11. 960/2009, incluindo a taxa
referencial e os juros de forma
simples, conjuntamente, desde
quando devidos os valores em atraso.

(TRF-4, Recurso Cível 50096 79-


59. 2016.4.04. 7200/SC, 3ª Turma
Recursai de se, j. 27.04.2017, v.u., rei.
Juiz Federal João Batista Lazzari, DJe
28.04.2017).

Interessantes Trechos do voto do


relator do acórdão a serem destacados
- a demonstrar o poder normativo do
judiciário:

"Em momento anterior, quando da


interposição do Recurso de Medida
Cautelar nº 5017114-
84.2016.4.04.7200 pelo Autor do
presente feito, este Relator entendeu
pela impossibilidade de criação de
norma especial para o caso concreto.

Contudo, analisando todos os


pontos que compuseram a
fundamentação da sentença, tenho
~
que o recurso nao merece
acolhimento.

A Constituição Federal, em seu art.


226, garante proteção especial do
Estado à família e à criança. O art.
227, prevê como dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à
criança, com absoluta prioridade, o
direito à vida e à saúde, bem como à
convivência familiar. O art. 229, por
sua vez, estabelece o dever dos pais
de assistir, criar e educar os filhos
menores.

Logo, nota-se que o texto da Carta


Magna fundamenta-se na prevalência
dos Princípios do Melhor Interesse da
Criança e da Prioridade Absoluta,
previstos, também, no art. 4° da Lei n.
8.069/90 - Estatuto da Criança e do
Adolescente.

Conforme observado pela decisão


do juízo da origem, de fato, há que se
considerar que o nascimento de
gêmeos requer a presença de mais de
uma pessoa para o atendimento das
necessidades básicas dos recém-
nascidos. E, no caso concreto, não se
está a debater o apoio de um terceiro
na rotina de cuidados com os bebês.
Trata-se de reconhecer a importância
da participação do progenitor paterno
na constituição da família, não
apenas como provedor material, mas
também sentimental.

Observa-se, da evolução histórico-


temporal dos direitos à licença-
maternidade e à licença-paternidade,
trazida pela sentença, o avanço de
uma compreensão do poder público,
tanto em suas esferas legislativas
como na jurisprudência dos tribunais,
acerca da função essencial de tais
direitos que é a proteção do interesse
do menor no estabelecimento de
laços afetivos fundamentais ao seu
desenvolvimento saudável.

No que tange à atual positivação


dos direitos relacionados ao recém-
nascido, destaco o resumo
apresentado pela sentença:

(a) A Constituição Federal assegura:

- a igualdade entre homens e


mulheres (art. 5°, inciso I), inclusive em
termos específicos quanto à sociedade
conjugal (art. 226, § 4°);

a absoluta prioridade no
atendimento à criança, colocando-a "a
salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão" (art. 227);
- 120 dias de licença-maternidade
(art. 7°, inciso XVIII) e 5 dias de
licença-paternidade (art. 7°, inciso XIX,
CF, ele art. 1O,§ 1°, ADCT);

(b) Para o julgamento de matéria


correlata - licença-maternidade à
adotante servidora pública -, o Plenário
do STF fez interpretação sistemática
da Constituição "à luz da dignidade da
pessoa humana, da igualdade entre
filhos biológicos e adotados, da
doutrina da proteção integral, do
princípio da prioridade e do interesse
superior do menor':·

(e) A legislação infraconstitucional


A

preve:

- licença-maternidade no mesmo
prazo para a mãe biológica e para a
mãe adotiva, independentemente da
idade da criança;

- possibilidade de gozo da licença-


maternidade pelo pai nos casos de
falta da mãe (por morte ou por adoção
pelo empregado);

- possibilidade de postergação de
60 dias à licença-maternidade e de 15
dias à licença-paternidade, nos casos
de inserção da empresa ao Programa
Empresa Cidadã.

Nota-se que, o nascimento de


múltiplos, com todas as suas
implicações, não foi tratado pela lei.
Porém, tramita na Câmara dos
Deputados o PL nº 2932/2008,
oriundo do PLS nº 300/2007, que
busca assegurar a prorrogação da
licença-maternidade em 60 dias nos
casos de nascimento múltiplo,
prematuro ou de criança portadora de
doença ou malformação grave.

Entretanto, nas palavras da


magistrada sentenciante:

Apesar de os estudos caminharem


no sentido de ampliação da licença-
maternidade com a prorrogação de
sua duração destinada às mães,
tenho que, no caso de nascimento de
múltiplos, em princípio, essa possível
extensão não assegurará o que se
busca : assegurar o direito dos
menores a sua proteção integral,
minimizando eventual negligência
propiciada pela impossibilidade de
atenção e cuidado simultâneos pela
mesma pessoa.

Dessa forma, considerando que o


desenvolvimento dos bebês é
simultâneo, assim como os cuidados
que demandam, e que não podem ser
atendidos por uma única pessoa, no
caso, a mãe, sem prejuízo da
proteção integral dos recém-nascidos,
urge reconhecer-se a necessidade da
presença do pai na rotina das tarefas
básicas.
Insta salientar que, além do apoio
com os cuidados básicos, a presença
do pai e sua participação na rotina
dos bebês são fundamentais no
desenvolvimento da relação de
convivência e de afeto entre pai e
filhos. Rememoro, do estudo do caso
elaborado pela médica especialista
em Medicina da Família, Dra.
Fernanda Naspolini Zanatta, citado
pela sentença, o seguinte trecho:

A figura paterna no contexto dos


primeiros meses da criança e no
auxílio a amamentação é de suma
importância. Quando falamos de
gêmeos, essa importância é ainda
maior. Sabe-se que a presença da
figura paterna ativamente nos
cuidados a criança auxilia na formação
do vínculo com a mesma,
consequentemente tendo efeito
protetor no desenvolvimento de sua
personalidade e saúde psíquica.

Resta evidente que, a formação de


um ser humano psicologicamente
saudável tem intrínseca relação com
os laços afetivos formados em sua
infância. Daí, a importância de se
proteger e valorizar,
constitucionalmente e
infraconstitucionalmente, a instituição
familiar, base da sociedade.

Ainda, no que diz respeito ao


pagamento em dobro do auxílio-
natalidade, entendo que a sentença
também não merece reparos.
Efetivamente, o fato gerador para o
pagamento do auxílio-natalidade é o
nascimento de filho. Desse modo, à
luz do princípio da igualdade entre os
filhos, não poderia o legislador
autorizar o pagamento de apenas
metade do benefício no caso de
nascimento múltiplo, como consta do
§ 1 º, do art. 196, da Lei 8.112/1990,
em flagrante inconstitucionalidade.

Concluo que, os direitos


pretendidos dão melhores condições
para o exercício da paternidade,
possibilitando o pleno atendimento
aos interesses das crianças.

Na ponderação de valores, cabe ao


juiz analisar o caso concreto com base
do princípio da equidade e oferecer a
decisão que seja mais justa em favor
das crianças.

A utilização da equidade,
especialmente nos casos em que a lei
não oferece decisão adequada,
encontra respaldo na Lei dos Juizados
Especiais. Em síntese, nos Juizados
Especiais o juiz pode adotar em cada
caso a decisão que reputar mais justa
e equânime, atendendo aos fins
sociais das leis e às exigências do
bem comum, consoante previsão
contida no art. 6° da Lei 9.099/1995.

Entendo, assim, aplicável a


equidade neste caso, com base nas
provas produzidas e na situação
pessoal e social das partes, e em
respeito aos Princípios da Prioridade
Absoluta e do Melhor Interesse da
Criança, protegidos
constitucionalmente.

Dessa forma, tenho que a decisão


do juízo de origem está em harmonia
com os preceitos constitucionais de
proteção da criança, da família e da
igualdade entre os filhos, tutelando o
direito de cuidados para com as
crianças e o desenvolvimento da
relação de convivência e de afeto
entre pais e filhos.

Portanto, considerando os
judiciosos argumentos da sentença,
revejo o entendimento outrora
exposto para, no mérito, manter a
decisão recorrida.

Prejudicado o agravo da União".

B) RECURSO REPETITIVO

Administrativo. Conselho regional


de medicina veterinária. Registro de
pessoa jurídica. Venda de
medicamentos veterinários e
comercialização de animais vivos.
Desnecessidade. Lei n. 5. 517/68.
Atividade básica não compreendida
entre aquelas privativamente
atribuídas ao médico veterinário.
Recurso submetido ao rito dos
recursos repetitivos.
1. O registro da pessoa jurídica no
conselho de fiscalização profissional
respectivo faz-se necessário quando
sua atividade básica, ou o serviço
prestado a terceiro, esteja
compreendida entre os atos privativos
da profissão regulamentada,
guardando isonomia com as demais
pessoas físicas que também
explorem as mesmas atividades.

2. Para os efeitos inerentes ao rito


dos recursos repetitivos, deve-se firmar
a tese de que, à míngua de previsão
contida da Lei n. 5. 517168, a venda de
medicamentos veterinários - o que não
abrange a administração de fármacos
no âmbito de um procedimento clínico
- bem como a comercialização de
animais vivos são atividades que não
se encontram reservadas à atuação
exclusiva do médico veterinário.

Assim, as pessoas jurídicas que


atuam nessas áreas não estão
sujeitas ao registro no respectivo
Conselho Regional de Medicina
Veterinária nem à obrigatoriedade de
contratação de profissional
habilitado. Precedentes.

3. No caso sob julgamento, o


acórdão recorrido promoveu
adequada exegese da legislação a
respeito do registro de pessoas
jurídicas no conselho profissional e
da contratação de médico-veterinário,
devendo, portanto, ser mantido.
4. Recurso especial a que se nega
provimento. Acórdão submetido ao
rito do art. 543-C do CPC/1973,
correspondente ao art. 1.036 e
seguintes do CPC/2015.

(STJ, REsp 1338942/SP, 1 ª Seção,


j. 26.04.2017, rei. Min. Og Fernandes,
DJe 03.05.2017).

Interessantes Trechos do voto do


relator do acórdão a serem destacados
- a demonstrar o poder normativo do
judiciário:

"A obrigatoriedade do registro de


pessoa jurídica no conselho
profissional fundamenta-se na
atividade básica ou na natureza dos
serviços por ela prestados. Verifica-
se, a propósito, a redação do art. 1 °
da Lei n. 6.839/80: ( ...).

O art. 27 da Lei n. 5.517/68


também contempla, de forma ampla,
a previsão de que as pessoas
jurídicas que exploram atividades
próprias da profissão de médico-
veterinário devem registrar-se no
respectivo Conselho Regional de
Medicina Veterinária. ln verbis: ( ... ).

Como se observa, a redação desses


normativos, por ser demasiadamente
genérica e imprecisa, enseja diversos
litígios a respeito do dever de registro
das pessoas jurídicas nos respectivos
conselhos profissionais, tornando
ainda mais importante a atividade do
intérprete da lei.

É muito comum confundir-se a


obrigatoriedade do registro no
conselho de fiscalização das
profissões pelo simples fato de a
pessoa jurídica praticar quaisquer das
atividades privativas da profissão
tutelada. Segundo esse raciocínio, se
a pessoa jurídica se valesse, em
qualquer etapa de sua atividade ou
processo produtivo, de profissional
sujeito à inscrição no conselho,
também deveria realizar o respectivo
registro.

Esse entendimento, no entanto, é


equivocado, pois a finalidade dos
normativos em questão é justamente
promover o controle direto da pessoa
jurídica pelo respectivo conselho
profissional quando sua atividade-fim
ou o serviço prestado a terceiro
estejam compreendidos entre os atos
privativos da profissão
regulamentada, guardando isonomia
com as demais pessoas físicas que
também explorem as mesmas
atividades. (...).

Quanto ao simples comércio


varejista de rações, acessórios para
animais e prestações de serviços de
banho e tosa em animais domésticos,
não há maiores dúvidas de que não
são funções especificamente
atribuídas ao médico-veterinário, o
que dispensa o registro no respectivo
conselho de fiscalização profissional,
bem como a responsabilidade técnica
do veterinário. Esse foi o
entendimento adotado no acórdão
recorrido, o qual não foi sequer objeto
de impugnação pelo recorrente.

A irresignação, por sua vez, reside


no tocante às atividades de
comercialização de animais vivos e
de medicamentos veterinários.

No pertinente à comercialização
de medicamentos veterinários, o que
não abrange, por óbvio, a
administração de fármacos no âmbito
de um procedimento clínico, também
não há respaldo na Lei 5.517/68 para
exigir-se a submissão dessa atividade
ao controle do conselho de medicina
veterinária, seja por meio do registro
da pessoa jurídica, seja pela
contratação de responsável técnico,
ainda que essa fiscalização seja
desejável.

Nos termos da jurisprudência do


STF, a limitação da liberdade do
exercício profissional está sujeita à
reserva legal qualificada, sendo
necessário, além da previsão em lei
expressa, a realização de um juízo de
valor a respeito da razoabilidade e
proporcionalidade das restrições
impostas e o núcleo essencial das
atividades por ela regulamentadas.
Nesse sentido, nota-se o RE
511. 961 /SP, Rei. Ministro Gilmar
Mendes, Tribunal Pleno, DJ.
13.11.2009.

À míngua de prev,sao em lei,


permanece a liberdade de atuação dos
agentes privados, haja vista a
necessidade de observância do
princípio da reserva legal para
autorizar-se o exercício do poder de
polícia nessa extensão. (. ..).

O mesmo ocorre, por seu turno, no


que concerne à venda de animais
vivos. Isso porque, ainda que os
animais expostos à venda demandem
assistência técnica e sanitária, a
atividade básica ou preponderante da
pessoa jurídica, nesses casos,
consiste na comercialização.

Registre-se que, de acordo com a


redação do art. 5°, alínea 'e', da Lei
5.517/68, a direção técnica e sanitária
dos estabelecimentos comerciais que
exponham animais ou produtos de
sua origem apenas ocorrerá se
possível. Desse modo, ainda que se
compreenda o contexto histórico em
que foi inserida a expressão 'sempre
que possível', não cabe conferir-lhe
interpretação extensiva, haja vista o
regime da estrita legalidade que
vigora no âmbito das limitações ao
exercício da atividade profissional.

Considerando-se que a
comercialização de animais não se
enquadra entre as atividades
privativas do médico-veterinário, as
pessoas jurídicas que exploram esse
mercado estão desobrigadas de
efetivarem o registro perante o
conselho profissional respectivo e,
como decorrência, de contratarem,
como responsáveis técnicos,
profissionais nele inscritos."

C) RE 878694 e RE 646721 51

Tratam-se de casos em que houve


a declaração de inconstitucionalidade
do art. 1 .790 do CC:

Teor da decisão: O STF, apreciando


o tema 809 da repercussão geral, por
maioria e nos termos do voto do
Ministro Relator, deu provimento ao
recurso, para reconhecer, de forma
incidental, a inconstitucionalidade do
art. 1. 790 do CC/2002 e declarar o
direito da recorrente a participar da
herança de seu companheiro em
conformidade com o regime jurídico
estabelecido no art. 1. 829 do Código
Civil de 2002. Vencidos os Ministros
Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo
Lewandowski, que votaram negando
provimento ao recurso. Em seguida, o
Tribunal, vencido o Ministro Marco
Aurélio, fixou tese nos seguintes
termos: "É inconstitucional a distinção
de regimes sucessórios entre cônjuges
e companheiros prevista no art. 1. 790
do CC/2002, devendo ser aplicado,
tanto nas hipóteses de casamento
quanto nas de união estável, o regime
do art. 1.829 do CC/2002». Presidiu o
julgamento a Ministra Cármen Lúcia.
Plenário, 10.5.2017. (STF, RE
878694/MG, Tribunal Pleno, j.
10.05.2017, rei. Min. Roberto Barroso,
DJe 15.05.2017)

Decisão: O Tribunal, apreciando o


tema 498 da repercussão geral, por
maioria e nos termos do voto do
Ministro Roberto Barroso, que redigirá
o acórdão, deu provimento ao recurso,
para reconhecer de forma incidental a
inconstitucionalidade do art. 1.790 do
CC/2002 e declarar o direito do
recorrente de participar da herança de
seu companheiro em conformidade
com o regime jurídico estabelecido no
art. 1.829 do Código Civil de 2002,
vencidos os Ministros Marco Aurélio
(Relator) e Ricardo Lewandowski. Em
seguida, o Tribunal, vencido o Ministro
Marco Aurélio (Relator), fixou tese nos
seguintes termos: "É inconstitucional
a distinção de regimes sucessórios
entre cônjuges e companheiros
prevista no art. 1.790 do CC/2002,
devendo ser aplicado, tanto nas
hipóteses de casamento quanto nas
de união estável, o regime do art.
1.829 do CC/2002". Ausentes,
justificadamente, os Ministros Dias
Toffoli e Celso de Mello, e, neste
julgamento, o Ministro Gilmar
Mendes. Presidiu o julgamento a
Ministra Cármen Lúcia. Plenário,
10.5.2017. (STF, RE 646721/RS,
Tribunal Pleno, j. 10.05.2017, rei. Min.
Marco Aurélio, red. p/ acórdão Min.
Roberto Barroso, DJe 15.05.2017)

D) "Transexuais têm direito à


alteração do registro civil sem
1
realização de cirurgia 52
'.

Independentemente da realização
de cirurgia de adequação sexual, é
possível a alteração do sexo
constante no registro civil de
transexual que comprove
judicialmente a mudança de gênero.
Nesses casos, a averbação deve ser
realizada no assentamento de
nascimento original com a indicação
da determinação judicial, proibida a
inclusão, ainda que sigilosa, da
expressão "transexual", do sexo
biológico ou dos motivos das
modificações registrais.

O entendimento foi firmado pela


Quarta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) ao acolher pedido de
modificação de prenome e de gênero
de transexual que apresentou
avaliação psicológica pericial para
demonstrar identificação social como
mulher. Para o colegiado, o direito dos
transexuais à retificação do registro
não pode ser condicionado à
realização de cirurgia, que pode
inclusive ser inviável do ponto de vista
financeiro ou por impedimento
médico.
No pedido de retificação de
registro, a autora afirmou que, apesar
de não ter se submetido à operação
de transgenitalização, realizou
intervenções hormonais e cirúrgicas
para adequar sua aparência física à
realidade psíquica, o que gerou
dissonância evidente entre sua
imagem e os dados constantes do
assentamento civil.

Sexo psicológico

O relator do recurso especial da


transexual, ministro Luis Felipe
Salomão, lembrou inicialmente que,
como Tribunal da Cidadania, cabe ao
STJ levar em consideração as
modificações de hábitos e costumes
sociais no julgamento de questões
relevantes, observados os princípios
constitucionais e a legislação vigente.

Para julgamento do caso, o ministro


resgatou conceitos essenciais como
sexo, identidade de gênero e
orientação sexual. Segundo o ministro,
as pessoas caracterizadas como
transexuais, via de regra, não aceitam
o seu gênero, vivendo em desconexão
psíquico-emocional com o seu sexo
biológico e, de um modo geral,
buscando formas de adequação a seu
sexo psicológico.

O relator também lembrou que,


apesar da existência de princípios
como a imutabilidade do nome,
dispositivos legais como a Lei de
Registros Públicos preveem a
possibilidade de alteração do nome
que cause situação vexatória ou de
degradação social, a exemplo das
denominações que destoem da
aparência física do indivíduo.

Direito à felicidade

Na hipótese específica dos


transexuais, o ministro Salomão
entendeu que a simples modificação
de nome não seria suficiente para a
concretização do princípio da
dignidade da pessoa humana. Para o
relator, também seriam violados o
direito à identidade, o direito à não
discriminação e o direito fundamental
à felicidade.

Se a mudança do prenome
configura alteração de gênero
(masculino para feminino ou vice-
versa), a manutenção do sexo
constante do registro civil preservará
a incongruência entre os dados
assentados e a identidade de gênero
da pessoa, a qual continuará
suscetível a toda sorte de
constrangimentos na vida civil,
configurando-se, a meu juízo,
flagrante atentado a direito existencial
inerente à personalidade, ressaltou o
relator.

Exemplos internacionais
O ministro também citou exemplos
de países que têm admitido a
alteração de dados registrais sem o
condicionamento à cirurgia. No Reino
Unido, por exemplo, é possível obter a
certidão de reconhecimento de
gênero, documento que altera a
certidão de nascimento e atesta
legalmente a troca de identidade da
pessoa . Iniciativas semelhantes
foram adotadas na Espanha, na
Argentina, em Portugal e na Noruega.

Assim, a exigência de cirurgia de


transgenitalização para viabilizar a
mudança do sexo registrai dos
transexuais vai de encontro à defesa
dos direitos humanos
internacionalmente reconhecidos -
máxime diante dos custos e da
impossibilidade física desta cirurgia
para alguns -, por condicionar o
exercício do direito à personalidade à
realização de mutilação física,
extremamente traumática, sujeita a
potenciais sequelas (como necrose e
incontinência urinária, entre outras) e
riscos (inclusive de perda completa
da estrutura genital), destacou o
relator.

Acompanhando o voto do relator, a


Quarta Turma concluiu que o chamado
"sexo jurídico" - constante do registro
civil com base em informação
morfológica ou cromossômica - não
poderia desconsiderar o aspecto
psicossocial advindo da identidade de
gênero autodefinida pelo indivíduo, "o
qual, tendo em vista a ratio essendi
dos registros públicos, é o critério que
deve, na hipótese, reger as relações do
indivíduo perante a sociedade".

Complexidades jurídicas

O ministro Salomão também


apontou que as complexidades
jurídicas geradas pelo
reconhecimento dos direitos dos
transexuais não operados já são
perceptíveis no universo das pessoas
que decidiram se submeter à cirurgia .

Ademais, impende relembrar que o


princípio geral da presunção de boa-fé
vigora no ordenamento jurídico.
Assim, eventuais questões novas
(sequer cogitáveis por ora) deverão
ser sopesadas, futuramente, em cada
caso concreto aportado ao Poder
Judiciário, não podendo ser
invocados receios ou medos
fundados meramente em conjecturas
dissociadas da realidade concreta",
concluiu o ministro ao acolher o
recurso especial da mulher.

Nesse sentido, também:

Apelação. Retificação de registro


civil. Extinção do processo sem
julgamento do mérito. Pedido de
alteração de sexo em virtude de
transexualismo. A cirurgia de
transgenitalização não é requisito
para a retificação de assento ante o
seu caráter secundário. O
procedimento cirúrgico tem natureza
complementar, visando a
conformação das características e
anatomia ao sexo psicológico. Quanto
à forma das alterações, devem ser
feitas mediante ato de averbação
com menção à origem da retificação
em sentença judicial. Aplicação do
artigo 515, §3°, do Código de
Processo Civil. Sentença reformada
para permitir a alteração do sexo civil
do apelante. Recurso provido.

(TJSP, AC 1027203-
86.2015.8.26.0100, 1Oª Câmara de
Direito Privado, j . 20.09.2016, rei. Des.
J.B. Paula Lima, DJe 21.09.2016).

E) Recurso Especial. Direito de


Família. Filiação. Igualdade entre
filhos. Art. 227, § 6°, da CF/1988.
Ação de investigação de paternidade.
Paternidade socioafetiva. Vínculo
biológico. Coexistência. Descoberta
posterior. Exame de DNA.
Ancestralidade. Direitos Sucessórios.
Garantia. Repercussão Geral. STF.

1. No que se refere ao Direito de


Família, a Carta Constitucional de
1988 inovou ao permitir a igualdade
de filiação, afastando a odiosa
distinção até então existente entre
filhos legítimos, legitimados e
ilegítimos (art. 227, § 6°, da
Constituição Federal).
2. O Supremo Tribunal Federal, ao
julgar o Recurso Extraordinário nº
898.060, com repercussão geral
reconhecida, admitiu a coexistência
entre as paternidades biológica e a
socioafetiva, afastando qualquer
interpretação apta a ensejar a
hierarquização dos vínculos.

3. A existência de vínculo com o


pai registrai não é obstáculo ao
exercício do direito de busca da
origem genética ou de
reconhecimento de paternidade
biológica . Os direitos à
ancestralidade, à origem genética e
ao afeto são, portanto, compatíveis.

4. O reconhecimento do estado de
filiação configura direito
personalíssimo, indisponível e
imprescritível, que pode ser
exercitado, portanto, sem nenhuma
restrição, contra os pais ou seus
herdeiros.

5. Diversas responsabilidades, de
ordem moral ou patrimonial, são
inerentes à paternidade, devendo ser
assegurados os direitos hereditários
decorrentes da comprovação do
estado de filiação.

6. Recurso especial provido.

(STJ, REsp 1618230/RS, 3ª Turma,


j. 28.03.2017, rei. Min. Ricardo Villas
Bôas Cueva, DJe 10.05.2017).
Interessantes Trechos do voto do
relator do acórdão a serem destacados
- a demonstrar o poder normativo do
judiciário:

Não há mais fala r em uma


hierarquia que prioriza a paternidade
biológica em detrimento da
socioafetividade ou vice-versa. Ao
revés, tais vínculos podem coexistir
com idêntico status jurídico no
ordenamento desde que seja do
interesse do filho.

Com efeito, o Supremo Tribunal


Federal (STF), em 21/9/2016, julgou o
Recurso Extraordinário (RE) nº
898.060, com repercussão geral
reconhecida (tema 622), sobre a
questão, qual seja: a prevalência da
paternidade socioafetiva sobre a
biológica, fixando contornos acerca
da multiparentalidade.

Ao deliberar a respeito do mérito


da questão, o STF, por maioria, optou
por não afirmar nenhuma prevalência
entre as referidas modalidades de
vínculo parental, apontando para a
possibilidade de coexistência de
ambas as paternidades.

A relataria do relevante recurso na


Suprema Corte incumbiu ao Ministro
Luiz Fux e a tese fixada restou assim
sintetizada: 'A paternidade
socioafetiva, declarada ou não em
registro público, não impede o
limitar ao mero reconhecimento, sem
maiores consequências no plano
tático. (...).

A pessoa criada e registrada por


pai socioafetivo não precisa, portanto,
negar sua paternidade biológica, e
muito menos abdicar de direitos
inerentes ao seu novo status familiae,
tais como os direitos hereditários.

F) Recurso especial - Direito Civil -


Registros públicos - Retificação de
registro civil - Prenome utilizado pela
requerente desde criança no meio
social em que vive diverso daquele
constante do registro de nascimento -
Posse prolongada do nome
Conhecimento público e notório -
Substituição - Possibilidade - Recurso
provido.

Hipótese: Trata-se de ação de


retificação de registro civil de
nascimento, pela qua l a autora
pretende a alteração de seu prenome
(Raimunda), ao argumento de que é
conhecida por Danielle desde criança
e a divergência entre o nome pelo
qual é tratada daquele que consta do
seu registro tem lhe causado
constrangimentos.

1. O princípio da imutabilidade do
nome não é absoluto no sistema
jurídico brasileiro.
2. O nome civil, conforme as regras
dos artigos 56 e 57 da Lei de
Registros Públicos, pode ser alterado:
a) no primeiro ano após atingida a
maioridade, desde que não prejudique
os apelidos de família; ou b)
ultrapassado esse prazo, por justo
motivo, mediante apreciação judicial e
após ouvido o Ministério Público.

3. Caso concreto no qual se


identifica justo motivo no pleito da
recorrente de alteração do prenome,
pois é conhecida no meio social em
que vive, desde criança, por nome
diverso daquele constante do registro
de nascimento, circunstância que tem
lhe causado constrangimentos.

4. Recurso especial conhecido e


provido.

(STJ, REsp 1217166/MA, 4ª Turma,


j . 14.02.2017, rei. Min . Marco Buzzi,
DJe 24.03.2017).

Interessantes Trechos do voto do


relator do acórdão a serem destacados
- a demonstrar o poder normativo do
judiciário:

Esta Corte Superior, com amparo


na orientação doutrinária acerca do
tema, tem adotado posicionamento
mais flexível acerca da imutabilidade
ou definitividade do nome civil,
especialmente nas hipóteses em que
se alega justo motivo, que deve ser
aferido caso a caso. Ademais, 'O
princípio da imutabilidade do nome
não é absoluto no sistema jurídico
brasileiro'. (REsp 1304718/SP, Rei.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
Terceira Turma, DJe 05/02/2015).

Essa flexibilização se justifica, pelo


próprio papel que o nome desempenha
na formação da personalidade da
pessoa.

Esclarece Marcelo Rodrigues, na


segunda edição atualizada da obra
Tratado de Registros Públicos e
Direito Notarial: 'Existindo
desencontro entre o registro e a vida,
o que não raro acontece e desde que
não se vislumbre fraude - que não
pode ser presumida -, que prevaleça a
vida'. (São Paulo: Atlas, 2016. p. 98).
Esse é exatamente o caso dos autos,
no qual evidencia-se o desencontro
entre 'o registro' e 'a vida', em
decorrência da posse prolongada do
prenome da requerente - Danielle,
circunstância esta a justificar a
alteração ora pretendida. ( ...).

Ademais, deve"'.se levar em conta,


em razão do caráter de subjetivismo
que envolve o tema, em certos casos,
embora o prenome não pareça
potencialmente vexatório, na peculiar
situação experim entada pelo
indivíduo, pode ser que lhe afete
intimamente e cause
constrangimentos. Por isso, caso a
caso, merece ser avaliado de acordo
com as suas especificidades.

G) Recurso Especial. Direito


autoral. Internet. Disponibilização de
obras musicais. Tecnologia
streaming. Simulcasting e
webcasting. Execução pública.
Configuração. Cobrança de direitos
autorais. Ecad. Possibilidade.
Simulcasting. Meio autônomo de
utilização de obras intelectuais.
Cobrança de direitos autorais. Novo
fato gerador. Tabela de preços.
Fixação pelo ecad. Validade.

1. Cinge-se a controvérsia a saber:


(i) se é devida a cobrança de direitos
autorais decorrentes de execução
musical via internet de programação
da rádio OI FM nas modalidades
webcasting e simulcasting
(tecnologia streaming); (ii) se tais
transmissões configuram execução
pública de obras musicais apta a
gerar pagamento ao ECAD e (iii) se a
transmissão de músicas por meio da
rede mundial de computadores
mediante o emprego da tecnologia
streaming constitui meio autônomo
de uso de obra intelectual,
caracterizando novo fato gerador de
cobrança de direitos autorais.

2. Streaming é a tecnologia que


permite a transmissão de dados e
informações, utilizando a rede de
computadores, de modo contínuo.
Esse mecanismo é caracterizado pelo
envio de dados por meio de pacotes,
sem a necessidade de que o usuário
realize download dos arquivos a
serem executados.

3. O streaming é gênero que se


subdivide em várias espécies, dentre
as quais estão o simulcasting e o
webcasting. Enquanto na primeira
espécie há transmissão simultânea
de determinado conteúdo por meio de
canais de comunicação diferentes, na
segunda, o conteúdo oferecido pelo
provedor é transmitido pela internet,
existindo a possibilidade ou não de
intervenção do usuário na ordem de
-
execuçao.

4. À luz do art. 29, incisos VII, VIII,


"i': IX e X, da Lei nº 9.610/1998,
verifica-se que a tecnologia streaming
enquadra-se nos requisitos de
incidência normativa, configurando-se,
portanto, modalidade de exploração
econômica das obras musicais a
demandar autorização prévia e
expressa pelos titulares de direito.

5. De acordo com os arts. 5°, inciso


li, e 68, §§ 2° e 3°, da Lei Autoral, é
possível afirmar que o streaming é
uma das modalidades previstas em lei,
pela qual as obras musicais e
fonogramas são transmitidos e que a
internet é local de frequência coletiva,
caracterizando-se, desse modo, a
execução como pública.
no caso do simulcasting, a despeito do
conteúdo transmitido ser o mesmo, os
canais de transmissão são distintos e,
portanto, independentes entre si,
tonando exigível novo consentimento
para utilização e criando novo fato
gerador de cobrança de direitos
autorais pelo ECAD.

9. Está no âmbito de atuação do


ECAD a fixação de critérios para a
cobrança dos direitos autorais, que
serão definidos no regulamento de
arrecadação elaborado e aprovado
em Assembleia Geral, composta
pelos representantes das
associações que o integram, e que
contém uma tabela especificada de
preços. Inteligência do art. 98 da Lei
nº 9.610/1998.

1O. Recurso especial provido.

(STJ, REsp 1559264/RJ, 2ª S., j .


08.02.2017, rei. Min. Ricardo Villas
Bôas Cueva, DJe 15.02.2017).

Interessantes Trechos do voto do


relator do acórdão a serem destacados
- a demonstrar o poder normativo do
judiciário:

Logo, a exploração por meio da


internet distingue-se das outras
formas de uso de obras musicais e
fonogramas (ex. rádio e TV) tão
somente pelo modo de transmissão,
tratando-se, rigorosamente, da
utilização do mesmo bem imaterial, o
que implica na incidência de idêntica
disciplina jurídica. ( ... ).

(... ) a transmissão digital interativa,


ou o 'direito de colocar à disposição
do público', ao fim e ao cabo, é um ato
de execução pública, diretamente
relacionado ao acesso às obras
intelectuais disponibilizadas ao
público via internet, que, como visto, é
considerado local de frequência
coletiva, ainda que ocorra no âmbito
privado do usuário e que ausente a
simultaneidade na recepção pelos
destinatários.

Logo, o ordenamento jurídico


pátrio consagrou o reconhecimento
de um amplo direito de comunicação
ao público, no qual a simples
disponibilização da obra já qualifica o
seu uso como uma execução pública,
abrangendo, portanto, a transmissão
digital interativa (art. 29, VII, da Lei nº
9.610/1998) ou qualquer outra forma
de transmissão imaterial.

Em outras palavras, as
transmissões via streaming, tanto na
modalidade webcasting como na
modalidade simulcasting, são tidas
como execução pública de conteúdo.
Em síntese, a autorização de
cobrança de direitos autorais pelo
ECAD nas transmissões via streaming
não se dá em decorrência do ato
praticado pelo indivíduo que acessa o
site, mas, sim, pelo ato do provedor
que o mantém, disponibilizando a
todos, ou seja, ao público em geral, o
acesso ao conteúdo.

Portanto, considerando-se que,


independentemente da existência dos
critérios da interatividade, da
simultaneidade na recepção do
conteúdo e da pluralidade de pessoas,
e que a internet é um local de
frequência coletiva, a transmissão via
streaming é ato de execução pública,
sendo legítima a arrecadação e
distribuição dos direitos autorais pelo
ECAD. (...) .

Como tivemos a oportunidade de


perceber nos julgados mencionados,
os Tribunais têm atuado,
massivamente, com base em um
poder normativo que nosso
ordenamento jurídico, atualmente,
lhes confere.

Essa atuação criativa pode ser


vislumbrada na simples interpretação
da lei, assim como por meio da
aplicação de princípios, cláusulas
gerais, conceitos indeterminados etc.

Ainda a título de ilustração - e


para terminar - o poder normativo de
que aqui tratamos pode ser visto,
também, em situação que, no
passado recente, foi muito discutida:
a guarda compartilhada.
Nesse caso, o STJ consolidou
entendimentos que, depois, vieram a
ser encampados pela legislação
pátria.

Antes da edição da Lei


13.058/2014, que trata a guarda
compartilhada como a regra para os
filhos de pais divorciados, essa
posição já era assente no STJ.

Em verdade, o STJ julgou casos


. . . -
que vieram a ser a 1nspiraçao para as
subsequentes alterações legislativas.
Uma das interpretações do STJ que,
posteriormente, foram incorporadas
na legislação foi aquela no sentido de
que o convívio da criança com ambos
. ,
os pais e a regra.

Isso, a nosso ver, demonstra que o


poder normativo que se deve conferir
ao juiz, definitivamente, não viola o
princípio da tripartição dos Poderes.
Ao contrário, propicia uma
cooperação entre os mesmos
(Poderes), sempre em prol da
sociedade, dos jurisdicionados.

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