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MATHEUS GATO 3S, =! = PERSPECTIVA As ISBN 978-85-273-1222-6 | SM | | ) | 52 7u31 olrasse7isi2 O Massacre dos Libertos: Sobre Raca e Republica no Brasil (1888-1889) | Uma multidao de negros, cerca de duas a trés mil pessoas, se dirige 4 sede do jornal republicano O Globo em Sao Luis do Maranhao para protestar contra a proclamacao da Republica que, dizia-se 4 boca pequena, revogaria a Abolicao. La, a tropa postada para garantir a lei e a ordem abre fogo contra os manifestantes, matando - nimeros oficiais - quatro pessoas e ferindo varias. O Massacre de 17 de novembro de 1889 articulou de modo singular os dois grandes eventos histéricos do periodo - a abolicao da escravatura e a proclamacao da Republica -, revelando como a questao racial permeou as disputas durante a mudanga de regime. Nesse contexto, do fim da ordem senhorial, as ‘classificagées de cor e outras categorizagées de grupo, tipicas do escravismo, foram ampliadas para incorporar as novas ideias raciais, e racistas, vigentes, redesenhando as fronteiras entre os grupos sociais. Matheus Gato aborda como o evento foi silenciado e contado ao longo dos anos. O Massacre dos Libertos desnuda as estratégias narrativas e acées politicas que visaram “apagar” as marcas da escravidao de nossa historia em nome de um ideario de “fraternidade racial” que nao abriu mao de hierarquizacées codificadas pela cor. Um documento dos descaminhos da Republica, ontem como hoje. j oh ponto de vista da gente comum a Republica de 1889 nao vai mais além da disseminacao do trabalho livre, que a Abolicao instituira: aaspiragao a liberdade vé-se mesmo ameagada por varias outras formas de trabalho seryil, semisservil, e pelos inumeros constrangimentos legais, econdémicos, politicos, sociais e cultu- rais ao exercicio livre da forca de trabalho, principalmente no campo. A come¢ar pela auséncia de um mercado nacional de trabalho. Nesse sentido, EU Coot) er coer ew ee | de homens recém-libertos o perigo da iat e 2. Ome ECeEMem (elon tue mer ty camadas sociais que chegam.ao poder, Oligse Nao reescravizacao, ao menos abandong e-exclusa@ social. ANTONIO SERGIO ALFREDO GUIMARAES Professor titular e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras (AO TUTays INSTITUTO DE UNICAMP ESTUDOS DA BIBLIOTECA LINGUAGEM oO Pp Sie EASON? Esta publicagao ultima MATHEUS GATO Doutor em Sociologia pela Universidade de Sao Paulo. Foi Fellow da Faculty —— of Arts and Sciences e no Hutchins Center for African and African-American |___——_—Researches Studies da Universidade Harvard. Atualmente é professor no departamento de Seciologia da Universidade Estadual de Campinas 0 Massacre dos Libertos 60 seu primeira livro. IMAGEM DA CAPA: Fanciseo de Goya Este livro foi impresso na cidade de Sao Bernardo do Campo, nas oficinas da Paym Grafica e Editora, em fevereiro de 2020, O Trés de Maio, dleo sobre tela, 14 para a Ediitora Perspect Museu do Prado. Colegio Estudos Dirigida por J. Guinsburg (in memoriam) Coordenagao de texto Luiz Henrique Soares e Elen Durando Preparagao Manuela Penna Azi Revisdo Marcio Honorio de Godoy Capa Sergio Kon Editoragao A Maquina de Ideias Produgao Ricardo W. Neves e Sergio Kon Matheus Gato O MASSACRE DOS LIBERTOS SOBRE RACA E REPUBLICA NO BRASIL (1888-1889) Ss 2 PERSPECTIVA UNICAMP INSTITUTO DE E UDOS DA LINGUAGEM cap-Brasil, Catalogacao na Publicagio Sindicato Nacional dos Editores de Livros, ni 234m Gato, Matheus O massacre dos libert (1888-1889) / Matheus Gato. 2020. 192 p. 5 22 cm. (Estudos ; 371) sobre raca e repiblica no Brasil 1. ed, - Sao Paulo : Perspectiva, Inclui bibliografia ISBN 978-85-273-1222-6 1, Brasil - Historia - Aboli¢do da escravidao, 1888. 2. Brasil - Histéria - Proclamagao da Repablica, 1889. 1. Titulo. 1. Série. 20-62460 cD: 981.05 ‘cpu: 94(81).07 Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecaria - cRB-7/664.4 20/01/2020 22/01/2020 1 edigdo Direitos reservados em lingua portuguesa 4 EDITORA PERSPECTIVA LTDA. Av. Brigadeiro Lufs Anténio, 3025 1401-000 Sio Paulo sp Brasil ‘Telefax: (011) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2020 Sumario Apresentacao — Anténio Sérgio Alfredo Guimaraes. Tinted GAO vein su'a cides elombes Ged fe Pelee Her aainh die wttte ai tes xv Processos de Racializacao e Sociologia dos Eventos Historicos,; 22e4 canna: sos Bal digte 84a inrnitieraie sie XVII FODECS | Uiasilite tare wtitaste oa Pecteg te fd pee taisie met = XXI 1. Uma Malta de Homens de Cor........-..-. 00s eee eee 1 A Construgao do Silencio «i054. 862s, cana a ieee sare ta 3 O Olhar dos Contemporaneos............... 060s ee 9 Os Negros e a Politica no Pés-Aboli¢ao 20 2. Raga e Cidadania no Pés-Abolicéo Maranhense (QB8B-1889) fii ooeearierion cas ay Uber ete nn ee elie waa 35 A Crise do Escravismo no Maranhao............-.- 39 Os “Preconceitos de Ragas” ea Abolicdo ...........- 49 “Nada os Satisfaz”: O “Liberto” Como Problema Social ..............+- 61 §._A Biberade dos Brancos, ./ 22.3125. 0. - yce 5-8 oe 73 “Eles Jé Se Presumem de Igual Para Igual”: A Questao das Indeniza¢ées e o Movimento Republican, «0.45 tec ine ect lee a odie cicle mete siviomsin cis 75 Os Negros e a Politica das Ruas........-..0-0000005 89 4. O Massacre 103 Su Pratermidade Ractal.cu. peck paca scx chet pee sed 131 WNOtas ic hie Ces alco sc ebay pais ab ccs keg Orta wi enics. 139 Referéneias Biblidpraficas: 6/0280 os as 149 Créditos das Imagens, Quadros e Tabelas............... 157 Agradecimentos. . Dai a pouco ouviu-se 0 estrondo dos primeiros tiros. [...]. Os negros se imobilizaram, comprimidos na rua dos Barbeiros, como se fossem retroceder. Uma parte deles chegou a refluir para o Largo do Carmo, num esboco de correria panica. Siléncio. E depois um grito que se repetiu: ~ E pélvora seca! Logo a multidao volveu a boca da rua, mais impetuosa, mais aguerrida, como incitada pelo fiasco da represdlia. Por cima das cabegas s6 se viam os cacetes e as barras de ferro. Na claridade dos lampioes reluziam as laminas das ‘facas, das navalhas e dos punhais. E de vez em quando, por cima do marulho da multidao enfurecida, 0 coro de vozes se repetia: ~ Viva a princesa Isabel! De novo estrondaram os tiros, e desta vez as cargas se repetiam, cerradas, umas atrds das outras. Agora ndo eram tiros a esmo para intimidar 0 povo, eram cargas de balas sobre os negros, matando uns, ferindo outros, e obrigando a multiddo retroceder, ladeira acima no sentido do Largo do Carmo, ladeira abaixo no sentido da Praia Grande. Era o salve-se quem puder no atropelo da debandada. E de mistura com a fuga dos pretos, que iam largando pelo caminho as suas armas, comegaram a soprar os ventos gerais, sibilando, zinindo, assobiando, como a vaiar e a perseguir os fugitivos, que se dispersavam pelas ruas. Damiao deu por si ao pé da ladeira da rua da Palma, junto a um negro ensanguentado. Com um len¢o procurava conter-lhe a hemorragia: - Vai passar, vai passar ~ tornava a dizer-lhe, tentando animd-lo, mas sentia que a vida do outro se esvaia no sangue que ndo parava. Adiante, na mesma calgada, havia dois mortos. Dois outros pouco além, na calcada fronteira. Outros mais, no meio da rua. E feridos por toda parte, gemendo, gritando, pedindo que os socorressem, alguns a se arrastarem nas pedras do calcamento, com as forgas que lhes restavam. JOSUE MONTELLO, Os Tambores de Séo Luis. Apresentagao O ensaio que vocés lerao analisa um evento, um periodo historico e um sentimento. Um sentimento que aos poucos, ao longo de muitos anos, transformou-se em pensamento compartilhado pela populacao negra brasileira. Ano apés ano, a luta contra 0 cativeiro, das resisténcias individuais aos quilombos, fora tecendo o que viria a ser 0 abolicionismo, transformado nos anos 1880 no pri- meiro grande movimento social brasileiro, como bem entendeu Angela Alonso. O abolicionismo embalou entre o povo, os liber- tos e os escravizados, os nossos sonhos de liberdade e de justi¢a. Contra esses sonhos se opuseram os donos do poder. Mas a abo- licao do trabalho escravo foi feita pela Monarquia, alimentando no povo a esperanga de que o fim do cativeiro se consolidaria, no que pese a resisténcia dos poderosos. A Republica de 1889, todavia, embaralhou todas as cartas postas 4 mesa pelo abolicionismo, e acabou por promover a rearticulacao do bloco no poder. E que depois de maio de 1888 a causa republi- cana ganhou, aos poucos, aadesao dos escravistas, que continuaram buscando reparacao pelas vidas que escravizavam. Ficou com 0 povo o sentimento de aboli¢ao inacabada, de liberdade a meias. Nossos melhores socidlogos e historiadores ja se debruca- ram sobre esse sentimento para compreendé-lo. Conceitos como XII revolugao inacabada, persisténcia do passado, revolugio conser- vadora, donos do poder, foram mobilizados para entendé-lo. Na linguagem da politica ativista, desde 1889 0 povo negro deu-se como tarefa reorganizar a luta por uma segunda abolicao. Matheus Gato tenta, neste livro, uma estratégia nova para pensar tal sentimento. Focaliza num acontecimento-chave do periodo critico da transi¢do entre maio de 1888 e novembro de 1889: a fuzilaria assassina desferida sobre uma multidao popu- lar que procurava defender os direitos recém-conquistados, mas nao ainda plenamente usufruidos, pela Abolicdo, em Sao Luis do Maranhao, a 17 de novembro de 1889. Quem ordenou a carga sobre os manifestantes pretendeu nao compreender o porqué do protesto: que liberdade e direitos estariam ameacados, se nem existiam? So a ignorancia popular poderia, naquele rincdo do Brasil, acalentar ainda os sonhos abolicionistas. Ah, a boa cons- ciéncia dos poderosos! Penetrar nessa camada tao sdlida de ideologias, de desconhe- cimento do outro, de estabelecimento da desigualdade enquanto norma, a que o outro nao pode ascender sem o seu proprio viés, foi essa a tarefa de Matheus. Para tanto, buscou as ferramentas das ciéncias sociais e o método da histéria social. Concentrar-se num evento que consolida 0 periodo, reconstitui-lo pacientemente a partir de evidéncias e fragmentos, compreender os pontos de vista que guiaram as percep¢des de contempordneos aqueles aconteci- mentos da historia oficial, tenciona-las em interpretacées varias para, ao fim, descobrir um mundo de sentidos diversos da aco. O leitor tera a oportunidade de acompanhar, na reconstru- ao do evento de 17 de novembro de 1889, a formacao de um Brasil contemporaneo que nao se limitou ao Maranhao. Naquele interregno critico entre a Abolicao e o golpe republicano, com 0 povo nas ruas em defesa da Monarquia, dando continuidade a mobiliza¢ao abolicionista, estava em jogo o direito a proprie- dade fundiaria, assim como a defesa da antiga ordem em que 0 escravo era ele mesmo uma propriedade. Uns lutavam por acesso a terra como unico modo de garantir a liberdade assegurada pela emancipagao, ja os ex-senhores lutavam para serem ressarcidos da liberdade dos primeiros. A ordem racial que comegara a ser explicitada no abolicio- nismo passa, entao, a ser reconstruida a partir de marcadores APRESENTAGAO, XIIL corporais, raciais e étnicos, como a cor € os costumes, para man- ter a antiga ordem social de privilégios de classes e de categorias . A jd consolidada classe remediada de cor, os negros e mulatos nascidos livres, os libertos ainda durante 0 escravismo, assim como os emancipados no 13 de Maio, sao todos agora reclassificados por esses marcadores raciais, que vao adquirir novo significado. A cor (ampliada para incorporar tra¢os fisicos ¢ culturais associados aos africanos) passara a ser 0 signo maior de posigao social. A razao da desconfianga dos negros com a Republica é assim exposta por Matheus de maneira brilhante, emprenhando de logica e clareza um comportamento reativo que os brancos contemporaneos nao conseguiram entender. Da mesma forma, autor reconstréi o modo como os republicanos terao de apla- car as esperangas dos que se viram reduzidos a liberdade sem meios de sobrevivéncia senao por novas formas de sujei¢ao. Um dos pontos altos do livro é a sua narrativa sobre a destrui¢ao dos pelourinhos e a invencao simbélica de uma fraternidade racial que sustentasse a desigualdade social marcada pela cor na Pri- meira Republica. Nessa empreitada histérica, chama atengao o modo como Matheus dialoga com suas fontes e com a vasta bibliografia per- tinente, como é capaz de enquadrar socialmente 0 historiador que antes dele narrou os acontecimentos, a literatura ficcional ou memorialista dos que presenciaram Os eventos, assim como os jornais da época e suas outras fontes. Ele consegue, desse modo, dar um novo lugar interpretativo para a sociologia consagrada de Gilberto Freyre, quando este sugere que a violéncia e 0 terror foram ensaiados como instrumentos de controle da popula- ao negra; de Florestan Fernandes, quando este erige o regime republicano como pressuposto para a cidadania dos negros; da chamada escola paulista, da qual inverte a afirmacao da raga como persisténcia do passado, postulando tratar-se apenas do nascedouro da modernidade brasileira. Do ponto de vista interpretativo, o ensaio é construido em didlogo com a historiografia atual sobre o pés-aboli¢ao, a socio- logia histérica do periodo e a reflexao socioldgica corrente sobre raga, cor e classificagGes raciais. Balanceando de modo rigo- roso as ciéncias sociais e a reconstrucao histérica, com cuidado, sociai XIV prudeéncia, evidéncias empiricas e interpretacao de textos e docu- mentos, Matheus nos ensina um pouco mais do modo como se formou 0 Brasil contemporaneo. Por fim, me permitam uma nota pessoal. Para quem, como eu, teve a responsabilidade de orientar a trajetéria do autor pelos anos de formagao pés-graduada, estabelecendo com ele um didlogo que pudesse aplacar - sempre provisoriamente ~ a sua curio- sidade intelectual e tedrica, este ensaio é 0 coroamento de um oficio simples e, ao mesmo tempo, muito complexo - 0 de ensinar © que se sabe e aprender com quem se ensina: 0 oficio de profes- sor, que transforma em colega e amigo o ex-aluno. Antonio Sérgio Alfredo Guimarées* Professor titular da Universidade de Sio Paulo (usp), Tinker Visiting Profes- sor na University of Chicago (Sociology e Center of Latin American Studies), € membro vitalicio do Clare Hall, University of Cambridge, Reino Unido, onde foi titular da cétedra Simén Bolivar no ano letivo 2016-2017. Introdugao Nao é exagero dizer que certos acontecimentos se apagaram tanto da meméria coletiva de um povo que apenas a literatura os reco- nhece na armacao do tempo histdrico. Sao eventos esmagados pelos calendérios oficiais, eventos cujas fontes sao imprecisas, aparen- temente mais sugestivos 4 imaginagao dos ficcionistas do que ao apuro dos historiadores e cientistas sociais em busca da verdade. Este livro dedica-se a um acontecimento dessa natureza: o chamado “Massacre de 17 de Novembro’, ocorrido em Sao Luis do Maranhao, capital da provincia homé6nima, durante o processo de instauracao da Republica brasileira, em 1889. Trata-se do conflito no qual uma tropa do exército avancou contra um grande protesto de negros que desejavam atacar os republicanos do jornal O Globo. A mani- festagdo reagia 4 exigéncia do periddico para que a provincia se alinhasse ao golpe militar que pés fim ao longo Império brasileiro. Rumores de que a mudanga de regime visava restaurar a escravidao no pais haviam tomado a cidade - um boato explosivo na capital maranhense, onde os negros eram aproximadamente o dobro da populacao branca. Ao cair da tarde daquele dia, uma multidao composta por pessoas descritas como “libertos’, “cidadaos do treze de maio”, “ex-escravos” e “povo” foi alvejada pelos militares a tiros de fuzil, o que deixou alguns mortos e varios feridos. XVI Nos relatos de cronistas, memorialistas e dos poucos his- toriadores e analistas que se interessaram pelo evento, notei a existéncia de silenciamentos e uma verdadeira luta simbolica para definir se houve ou nao um “massacre” de negros no dia que se constituiu como um marco da instaura¢ao da Republica no Nordeste brasileiro. Algumas das andlises mais influentes sobre 0 episédio, como veremos no primeiro capitulo, afirmam ou sugerem que a qualificagao do confronto como um “massacre” foi uma invengao popular, sem comprovagao nos documentos escritos, e que, portanto, nado mereceria respaldo cientifico. Em contraposi¢o, o relato de um escritor como Josué Montello, entre outros autores, cria ficcionalmente a atmosfera de um verdadeiro massacre — como mostra 0 trecho que serve de epigrafe a este livro. Assim, fica patente a existéncia de uma disputa envolvendo memorialistas, cronistas, literatos e historiadores para definir 0 significado histérico do evento. Além disso, é digno de nota que a questao racial esteja no centro dessa controvérsia. Oavango da pesquisa confirmou que 0 conflito entre os repu- blicanos e parte da populacao negra de Sao Luis, por seu desfecho violento, permite conectar problemas fundamentais da literatura sociol6gica e hist6rica sobre o racismo no Brasil. A importancia das classificag6es raciais nas fontes sobre o confronto na capital maranhense e o fato de este ter ocorrido pouco mais de um ano apés a assinatura da Lei Aurea convidam a refazer preocupagdes candentes dessas dreas. Refiro-me, por exemplo, a questdes como 0s significados das categorias de cor numa sociedade em mudanga de regime de trabalho, que enfrentava uma crise do sistema poli- tico; os sentidos culturais do medo da escravidao, apontado como motiva¢ao central para o protesto; a relacdo dos libertos e de outros negros com a Monarquia de dom Pedro 11 e da princesa Isabel; 0 problema da relevancia do conflito - e de sua violéncia fisica e simbélica ~ para a formagao de grupos sociais percebidos enquanto ragas; as especificidades do fim da escravidao no Nordeste brasi- leiro; e as concepgoes negras de liberdade e cidadania quando da instalagao da Primeira Republica (1889-1930). Por essas razoes, esse evento esquecido tornava-se cada vez mais denso e relevante diante dos meus olhos para a sociologia historica do racismo. O contexto histérico do Maranhao no fim do século x1x também prové elementos para ampliar essa discussao. A historia INTRODUCAO XVII do estado, que integra as chamadas “Areas decadentes da grande lavoura escravista do algodao, do arroz e do agucar’, permite confrontar, como veremos no segundo capitulo, um modelo inter- pretativo que elegeu os centros socialmente mais competitivos e dinamicos da economia brasileira, especialmente Sao Paulo © o Rio de Janeiro, que viveram 0 boom do café, da imigracao curopeia, do desenvolvimento da urbaniza¢ao e da industriali- za¢ao, como lugares privilegiados para interpretar a estruturacao do racismo no Brasil moderno’. E justamente porque, no caso maranhense, o desenvolvimento do capitalismo nao adquiriu imediatamente feigdes metropolitanas e industriais, que a pre- sente andlise pode se voltar a centralidade da politica e da cultura para o exercicio da dominagao racial. Este livro sustenta 0 argumento de que 0 Massacre de 17 de Novembro é um acontecimento-chave para entender 0 estabe- lecimento de um contexto de clivagem racial de direitos que se consolida no pés-aboli¢ao?. Trata-se de um marco na formacao de uma cidadania negra no Brasil; nao por constituir um fato historicamente extraordinario, como foi considerado por varios dos seus cronistas, mas porque da a ver aquelas praticas, sen- timentos, atitudes e valores que fizeram da raga uma fronteira econémica, politica e imaginaria entre os grupos sociais na for- magao do Brasil moderno. € PROCESSOS DE RACIALIZAGAO E SOCIOLOGIA DOS EVENTOS HISTORICOS Este livro se insere entre as investigag6es socioldgicas e hist6ricas que visam compreender os processos de racializacao. Tal conceito foi originalmente cunhado pelo psiquiatra e filésofo Franz Fanon, que pretendia demonstrar que nao era natural, especialmente nas sociedades ocidentais modernas, que um individuo pensasse a simesmo como negro ou branco, em lugar de reivindicar a uni- versalidade pressuposta na condi¢aéo humana’. Se as ragas nao sao algo dado, Fanon considera necessario elucidar os percur- sos psiquicos e histéricos que teriam implicado na formacgao de subjetividades raciais. Alguns socidlogos aproveitaram essa ideia para analisar 0 desenvolvimento da forma¢ao de grupos XVIII racializados em determinados contextos histéricos. Os usos do conceito variam na tradi¢ao sociolégica*. Conforme a importante definicao de Robert Miles, podemos entender a racializacao como “um sinénimo para o conceito de ‘categorizacao racial, definida como um processo de delineamento de fronteiras de grupo e alocagao de pessoas dentro dessas fronteiras por uma referéncia primaria a caracteristicas (supostamente) inerentes e/ou caracte- risticas biolégicas (usualmente fenotipicas)”s. Nesse sentido, uma sociedade pode passar por diferentes processos de racializagéo em sua histéria, e 0 conceito nao depende necessariamente das ideias modernas de raga, forjadas pelo colonialismo europeu.* Neste livro, 0 conceito de racializacao é utilizado de duas for- mas especificas. A primeira é empregada para definir a imposicao de categorias a um grupo - no caso, os libertos e outros negros. A segunda trata a racializagao como a edificagao da raga, tornada um dos principios dominantes de hierarquizacao de pessoas na sociedade brasileira moderna, organizada pelo trabalho livre e pelas instituig6es republicanag, Trata-se de uma utilizacao restrita do termo, voltada ao entendimento de um racismo moderno - ou seja, cada vez menos marcado pela heranga colonial e pelas antigas cren¢as misticas e religiosas sobre as cores -, que enfoca 0s processos sociais, politicos e econémicos que permitiram a generalizacao de percepcées e discursos sobre raga. Refere-se, portanto, aos processos que inferiorizam e atribuem esséncias a grupos sociais, remetendo frequentemente a transmissao de tragos fisionémicos e qualidades intelectuais e morais negati- vas, imaginados como naturais e/ou hereditarios*y Embora 0 enfoque se concentre no periodo imediatamente apés a abolicao — contexto ao qual pertencem os fatos analisados -, a vantagem de interpretar o fenémeno da racializacao processualmente é observar que a formagao de esquemas raciais de percepcao esta relacionada as condi¢6es sociais e as experiéncias de emancipagao dos negros que sao anteriores ao fim da escravidao. O racismo brasileiro moderno nao data do dia 13 de Maio de 1888, mas das reagoes nobiliarquicas da elite brasileira as pressOes igualitarias, internacionais e nacionais, forjadas ao longo da crise mundial do escravismo no século xix, * Para iluminar essa problematica, o Massacre de 17 de Novem- bro deve ser considerado um evento, nos termos do antropdlogo INTRODUGAO xIx Marshall Sahlins: uma atualizagéo unica de um ou mais esque- mas culturais, bem como das circunstancias contingentes nas quais eles sao submetidos a riscos e transformagées, por meio das praticas sociais. “O evento é a relagao entre um acontecimento © a estrutura (ou estruturas): 0 fechamento do fenémeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficacia histérica especifica?’” * Frente ao caso especifico abordado nas paginas que sucedem ‘esta introdugao, pergunto-me quais esquemas culturais foram colocados em risco no conflito que envolveu libertos e outros negros, delegados de policia, republicanos e administradores, em meio aos desacertos provocados pela instauracao da Republica. Minha hipotese é que o modo comoas classificag6es de cor foram mobilizadas por esses agentes e nas narrativas sobre o embate permite observar a intensificagao dos processos de racializagao das classificagGes sociais j4 em curso, ou seja, um reordenamento dos esquemas de percepcao e agao pratica a respeito das rela- ¢0es entre brancos e negros, consolidado no pés-abolicao, que ratificou o lugar da raga como uma categoria fundamental. Em outras palavras, o interesse sociolégico do conflito de Sao Luis é que permite ver a generalizagao de um esquema cultural no qual 0s grupos sociais sio pensados como ragas. Mas um evento como 0 Massacre de 17 de Novembro sé nos permite observar processos de racializagao caso sejamos capazes de apresentar “a realizagao pratica das categorias culturaisem um contexto histérico especifico, assim como se expressa nas a¢des motivadas dos agentes hist6ricos, 0 que inclui a microssociolo- gia de sua interagdo”’. Assim, uma boa dose de nossa atengao é dedicada 4 mobilizacao de classificagdes de cor e de outras cate- gorizagoes de grupo (como “libertos’, “moleques” e “negrinhas”) que se tornaram portadoras de ideias raciais, no sentido oitocen- tista do termo. Os historiadores apresentaram fartas evidéncias de que a nomenclatura das cores, nos periodos colonial e impe- rial, nao possuia o significado racial que as define nos dias de hoje. Tais classificagées eram utilizadas corriqueiramente para designar posig6es sociais, como senhores e escravos, nas quais a origem social e étnica é geralmente embutida, mas nao qualifi- cam as disting6es sociais entre os grupos sem que haja referéncia aos direitos de que seus integrantes sio portadores no mundo XX politico e suas fungGes no campo econémico. O meu argumento é que acontecimentos como o de Sao Luis do Maranhao revelam alguns dos contextos em que os termos tradicionalmente usados em referéncia a cor e outras categoriza¢es de grupo, tipicas do escravismo, foram ressignificados e alargados para uma lingua- gem apta a incorporar as ideias modernas de raga, convertendo-a numa fronteira “natural” de status e direitos a separar os grupos sociais. Nesse ponto, embora 0 conceito de evento desenvolvido por Marshall Sahlins esteja presente nas andlises que se seguem, sua nogao antropoldgica de estrutura, definida como um sistema de categorias, é insuficiente. Assim, devo incorporar, ainda que sele- tivamente, as contribuicées de William H. Sewell Jr., para quem uma sociologia dos eventos historicos precisa ser fundada em uma nogao de estrutura que seja capaz de articular, simultaneamente, a vigéncia de esquemas culturais, a distribuigao de recursos e as formas de exercicio do poder. Conforme 0 autor, a despeito das controvérsias em torno da ideia de estrutura, ela segue sendo uma metdfora epistémica inevitavel nas ciéncias sociais, sem a qual nao poderiamos analisar e caracterizar as transformacoes implicadas pelos eventos e suas consequéncias. Insisto que as relagGes sociais s4o profundamente governadas por estru- turas sociais e culturais encobertas e que uma compreensao apropriada do papel dos eventos na histéria deve estar baseada num conceito de estrutura [...] Vejo estruturas como sendo compostas simultaneamente de esquemas culturais, distribuigdes de recursos e modos de poder. Esque- mas culturais provém a atores significados, motivacdes ¢ receitas para a agao social. Recursos lhes provém (diferencialmente) os meios e riscos da aco. Modos de poder regulam a aco — ao especificar que esquemas so legitimos, ao determinar que pessoas e grupos tém acesso a quais recursos ao adjudicar conflitos que emergem no curso da ago. Podemos falar em estruturas quando conjuntos de esquemas culturais, distribuicdes de recursos e modos de poder se combinam de forma engrenada e mutual- mente sustentavel, para reproduzir feixes consistentes de pratica social.'° Essa concep¢ao de estrutura permite ao autor definir um evento histérico como uma sequéncia ramificada de acontecimen- tos que sao reconhecidos como notaveis pelas proprias pessoas que os vivenciam, e que resultam em transformacées duraveis nos sistemas de classificacao cultural, na distribuigao de recursos INTRODUGAO XX sociais e econdémicos e nas formas de exercicio do poder. Assim, nos termos Sewell Jr., 0 Massacre de 17 de Novembro é um acon- tecimento-chave, pois articula, de modo tinico, através da questo racial, dois grandes eventos histéricos: a Abolicao e a Republica. Um dos elementos mais ricos da abordagem de Sewell Jr. para “interpretagao dos eventos histéricos é sua nogao de que a con- tingéncia é uma caracteristica global e constitutiva das relagées sociais. Nesse sentido, a representacao da temporalidade a ser construida pela andlise sociolégica deve atentar para a sequén- cia dos acontecimentos, o carater heterogéneo e contingente dos processos sociais duradouros e regulares e a capacidade de reconfiguragao das estruturas pela acao social. Tal perspectiva requer mudangas nas formas de explicacao e exposicao cultivadas entre os cientistas sociais: “Tudo isso implica em que os registros adequados dos processos sociais, do ponto de vista das eventua- lidades, serao mais parecidos com histérias ou narrativas bem feitas do que com leis da fisica. Uma sociologia histérica plena de eventos viria a se parecer cada vez mais com a historia." Tal concepgao informa toda a estratégia de exposicao e argumenta- ¢4o deste ensaio. FONTES Um numero consideravel de fontes de varios tipos ~ artigos de jornais, anuncios de trabalho, dados de natureza censitaria, rela- los memorialisticos e romances - foi mobilizado para sustentar o argumento de que o Massacre de 17 de Novembro é um evento relevante para interpretar a forma¢ao da cidadania negra no Bra- sil. Quase todas as fontes utilizadas obedecem rigorosamente a um recorte temporal que focaliza o interregno entre a assina- tura da Lei Aurea (0 13 de Maio de 1888) e 0 fim do primeiro governo republicano no Maranhio, no dia 18 de dezembro de 1889. Mesmo que uma fonte utilizada nao tenha sido produzida no periodo selecionado, como é caso dos relatos memorialisti- cos, elas se referem, na grande maioria dos casos, a esse periodo. ‘Tal recorte temporal permite abordar a configuracdo social do pos-aboligao maranhense e suas implicag6es para os processos de racializagao na sociedade brasileira, tanto do ponto de vista INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGE XXII da consolidagao de critérios raciais de distingao e formacao de grupos sociais, quanto da mobilizacao de classificagGes raciais no campo da politica. Assim, para enfrentar a questao dos significados da cor e de outras categoriza¢des de grupo numa sociedade em mudanga, recorri a alguns dos principais jornais em circulacao na capital maranhense no periodo escolhido: Pacotilha; O Diario do Mara- nhao; O Pais; O Novo Brazil e O Globo. A importancia do jornal como fonte é apresentar questdes da sociedade sob um angulo ideolégico, interessado e restrito, enquanto um problema politico. Os jornais referidos estavam sob o controle direto de fragdes da oligarquia politica, entao alocadas no Partido Liberal, no Par- tido Conservador, ou ligadas ao movimento republicano (que, no Maranhao, nao constituiu partido préprio). Foram consultadas as edi¢ées referentes ao periodo escolhido, © que resultou numa selecao de, aproximadamente, trezentas matérias’, Procurei reunir aquelas focadas na representa¢ao dos libertos e de outros negros pela elite politica dirigente, fazen- deiros, delegados, agentes da policia, poligrafos da imprensa, comerciantes, escritores, assim como matérias que descreviam tipos especificos de interacao social; por exemplo, as interven- ¢0es politicas dos libertos contra as conferéncias republicanas no ano de 1889. Os textos versavam sobre diversos temas, como a questao da crise das grandes planta¢ées agricolas no Maranhao, o problema da vadiagem, a imigra¢ao, a indenizagao, as pautas do movimento republicano e os antncios de trabalho, entre outros assuntos. Através desse exercicio foi possivel perceber a circula- ¢4o de formas de representacao racial acerca dos negros, o que embasou uma interpretagao histérica sobre o desmantelamento da estrutura escravista no Maranhao, Embora o lugar de cada jornal no campo do poder da pro- vincia seja sempre sugerido ou pontuado ao leitor, nao julguei necessario realizar uma anilise especifica sobre esse tema. Mal- grado esses periddicos se situarem em posicées diferentes com relagdo a diversos t6picos candentes em sua época, eles eram relativamente unissonos quando o assunto era a gente negra, enfatizando tépicos como aquilo que, a seus olhos, seria um despreparo para a liberdade, uma falta de educacao, a auséncia de uma ética do trabalho e a manutengao de habitos e costumes INTRODUGAO XXIII sociais e familiares que estariam aquém do marco civilizatério de matiz europeu. Ou seja, entre os letrados do periodo, encon- trava-se generalizado um esquema de percepgao racial bastante homogéneo e uniforme a respeito dos libertos e de outros negros. A diferenga entre eles, na maioria das vezes, vinha das circunstan- clas, contextos e do meio simbdlico em que essas representacdes cram colocadas em ago, isto é, seu emprego variava formal- mente, conforme se desse no texto de uma tese baseada nas teorias raciais; em anuncios de trabalho; em artigos sobre a conjuntura da crise; em discursos republicanos; ou em artigos que legitima- vam 0 uso extremo na violéncia, como aqueles que se referiam ao conflito do dia 17 de novembro. Nesse sentido, busquei ser sen- sivel as nuances do significado cultural dessas classificacées em cada caso, embora a explicacéo sempre enfatize que, guardadas as especificidades, 4 medida que os exemplos sao tomados em conjunto, eles sao capazes de revelar, a partir de angulos distin- los, processos de racializacao. Os relatos memorialisticos e ficcionais que abordam dire- lamente 0 evento analisado oferecem outro tipo de dificuldade. Conforme destaco ao longo de todo 0 livro, essas fontes estavam implicadas na luta simbolica que se travou em torno do reconhe- cimento, ou nao, da existéncia de um massacre de negros e de gente do povo, em pleno processo de instauracgao da Republica, no Maranhao. Um caso relevante sao as Memérias de um His- l6rico, escritas por Dunshee de Abranches, nas quais pesam as desilus6es do autor frente aos rumos tomados pela Republica de Floriano Peixoto, bem como seu desejo pessoal de integrar a lista dos republicanos hist6ricos do Maranhao. Em minha opiniao, (al posigao faz com que ele ataque, com veeméncia, algumas das personagens centrais do Massacre de 17 de Novembro, como 0 republicano Paula Duarte, a quem, a despeito de tudo, coube a gloria de ser um dos poucos republicanos histéricos do Estado. O fato de a narrativa de Abranches considerar 0 evento como um verdadeiro massacre nao pode ser dissociado desses aspec- tos, motivo pelo qual sempre optei pela combinacao de fontes na reconstrucao de dados factuais, de modo a controlar 0 peso dos interesses particulares impressos nas narrativas. Outro texto importante é a crénica “Pela Redentora’, de Viriato Correa, que integra a antologia O Brasil dos Meus Avés. XxIV Muito distante dos acontecimentos, o autor descreve os fatos como se fossem uma espécie de anedota histérica. Ao levar essa crénica em consideracao, nao utilizei a descricdo que o autor — faz do evento em si, pois ela se baseia inteiramente num relat6- rio escrito pelo alferes Bello, militar responsdvel pela ordem de fuzilamento aos manifestantes. Assim, a visao expressa por Cor- rea do fuzilamento como uma espécie de desfecho inevitavel incontrolavel dos acontecimentos est4 fortemente ligada a posi¢io assumida por sua fonte acerca do confronto. Nao obstante o viés assumido pelo texto, o autor fez observa¢ées notaveis quanto a | representacao da princesa Isabel entre os negros e o problema do. “medo do cativeiro” no pés-aboli¢ao. Tais observagées comple- mentam alguns dos achados de minha pesquisa sobre 0 esforco das elites para sustentar a cultura da escravidao como forma de controlar a populacao livre, de cor. Sao de grande relevancia os manuscritos de José Lourengo da Silva Milanez, capitao do 5° Batalhao Militar, sobre os acon- tecimentos que se passaram em Sao Luis entre os dias 15 e 18 de novembro de 1889, reunidos como os Apontamentos Escritos Pelo Capitao do Exército José Lourenco da Silva Milanez. Nesses textos, o autor revela os bastidores do enorme conflito de autoridades entre 0 presidente da provincia, 0 exército e os lideres do movi- mento republicano na organizacao do regime que suplantou a Monarquia no Maranhao. Embora Milanez - um militar republi- cano — nao ofere¢a propriamente uma descri¢ao do massacre, ele diz que deparou com manifestantes “pretos” e “libertos’, como os. designa, ao longo do dia 17. Mas o principal objetivo do relato é demonstrar que as vacila¢ées do exército em proclamar a Rept- blica na provincia assim que tomou ciéncia do golpe militar no Rio de Janeiro tumultuaram a mudanga de regime no Maranhao. | Nesse sentido, os manuscritos sao um ataque mal disfar¢ado aos republicanos de ultima hora que foram alcados ao poder com a instituicao da Republica. Uma das fontes mais ricas sobre 0 conflito de 17 de novem- bro é0 capitulo que Astolfo Marques dedica ao tema no romance A Nova Aurora. Embora o texto seja de natureza ficcional, a narrativa corrobora todos os dados que constam das fontes jornalisticas que descreveram 0 episédio. Conforme destacou Josué Montello, a narrativa provavelmente se baseia “no relato INTRODUGAO XXv oral dos negros que participaram da rebeliao contra o jornal fepublicano de Paula Duarte”. Marques nasceu numa familia de negros livres e tinha cerca de doze anos quando da instau- tagio da Republica. O escritor, portanto, era membro do grupo diretamente afetado e ameagado pelo rumo dos acontecimentos. 1e qualquer maneira, interpreto seu texto em combina¢ao com outras fontes, de modo que ele raramente figura na qualidade de fonte unica para os dados factuais citados. Inicialmente, apresento ao leitor as formas com que 0 Mas- sacre de 17 de Novembro foi interpretado pelos historiadores, em contraponto aos relatos de autores contemporaneos ao epi- sédio, Enquanto os primeiros consideraram o evento irrelevante, aqueles que viveram na época dos acontecimentos se impressiona- ram muito com 0 conflito, Nesse sentido, o exame das narrativas historiograficas, contemporaneas ou posteriores aos fatos, faz parte da andlise sobre a construgao da memoria social do evento. Dedico atengao especial ao modo como os negros sao descri- tos nesses relatos, com o fito de capturar os esquemas culturais em jogo. Outro ponto importante é a confrontagao dos dados levantados com as interpretagoes de historiadores e socidlogos que analisaram a relacao entre os negros e a politica brasileira no pés-abolicao, bem como os significados da nogao de raga na crise do Império brasileiro. Um problema central no livro diz respeito a especificidade do fim da escravidao no antigo norte agrario do Brasil e aos contor- nos particulares que esse contexto imprimiu aos processos sociais de racializagéo. O segundo capitulo dedica-se a essa matéria, enfatizando os modos como a nomenclatura das cores e outras categorias foram sendo insufladas com ideias raciais oitocentistas, numa conjuntura marcada pela crise do sistema agroexportador do algodao, do arroz e da cana, no Maranhio. Uma das fontes do racismo moderno no Brasil sao as progressivas desigualdades regionais brasileiras: o Sul e o Sudeste, bafejados com a imigra- do europeia em larga escala, foram progressivamente pensados como um Brasil branco, e o Nordeste cada vez mais imaginando como negro, devido a enorme presenca demografica, social e cultural desse grupo na regiao. Assim, os discursos em torno da “decadéncia” do Maranhao estao impregnados de ideias raciais sobre a natureza e a moralidade do povo da regiao’4. Nesse capi- XXVI tulo, esfor¢o-me por demonstrar o processo de transformagao. que conferiu um sentido racializado a estrutura social de heranga escravista da sociedade maranhense. Observo a reacao senhorial | frente a populacao livre, de cor, antes da abolicao, e a cristaliza- ¢ao de um imaginario racial sobre o negro que se consolida no fim da escravidao. A questao dos significados do cativeiro e da _ liberdade para os negros é abordada para decifrar o problema do medo do retorno 4 escravidao no pés-aboligao, apontado por historiadores e cronistas como motiva¢ao para 0 protesto de 17 de novembro. Um dos elementos mais curiosos da conjuntura que separa a assinatura da Lei Aurea, no 13 de Maio de 1888, e a Proclamacao da Republica, no 15 de Novembro do ano seguinte, é a mobilizagao de classificagées raciais no espago da politica. A reagao politica organizada contra o fim da escravidao reuniu-se em torno da bandeira da indenizagao aos senhores de escravos, que usou de uma linguagem ressentida e abertamente racista contra os liber- tos para convencer sobre a pertinéncia da causa. O movimento republicano no Maranhio foi sensivel a muitos desses apelos e um discurso que associava 0 novo regime a uma liberdade dos brancos ratificou a presenga das cores no seio das disputas politi- cas sobre a crise do Império. Logo apés a assinatura da Lei Aurea, o surgimento da Guarda Negra - um movimento de libertos e outros negros, de feitio monarquista -, bem como a rea¢ao nacio- nal suscitada por essa organizacao, tornou a questao racial um ponto critico dos ultimos momentos do reinado de dom Pedro 11. Os conflitos entre republicanos e negros em Sao Luis, em meados de 1889, foram antecedentes de peso ao conflito de novembro. O terceiro capitulo dedica-se a essas questdes, destacando que, sob varios aspectos, a manifestacao contra 0 jornal O Globo foi mais uma tentativa de empastelar republicanos, como ocorreu em outras partes do Brasil naquele ano. Mas, na ocasiao, acon- teceu na conjuntura tensa de um golpe de Estado. O ultimo capitulo dedica-se exclusivamente 4 andlise do con- flito de 17 de novembro, discutindo mais a fundo a luta simbélica para definir se ele foi efetivamente um massacre de gente do povo. Um ponto central a esse respeito é a questao dos rumores, no Maranhao, como forma de comunicaco e atribuicao de sig- nificados a instauragao da Republica. Nesse capitulo, delegados, INTRODUGAO XXVII fepublicanos, monarquistas e negros arriscam seus esquemas culturais de interpretacao para dar sentido a mudanga de regime politico, conforme ela vai sendo percebida na periferia do Bra- sil, Argumento que as atitudes, sentimentos, valores e ideologias «ue colocam a raga em jogo sao entao evidenciados como parte central da significancia histérica do evento. Num pais onde as desigualdades regionais condicionaram a ‘nembria coletiva da historia valida, digna de ser narrada, aquele lia esquecido talvez nao signifique nada. O Norte e o Nordeste \¢m sido relevantes para descrever 0 passado brasileiro, sobre- tudo o periodo colonial, e para meditar acerca do “atraso” do pats; uma ideia que, para muitos, se confunde ao tom escuro da pele de grande parte de sua gente. Entretanto, este livro foi escrito com a conviccao de que muito do que significa a socie- dade brasileira moderna, com seus golpes de Estado, clivagem dos direitos politicos, civis e sociais, repressao violenta a mani- {estagao civica popular, militarizacdo do tratamento dos pobres e dos negros, faz do Massacre de 17 de Novembro um marco sim- bdlico para aquilo que nos tornamos enquanto povo e na¢ao no mundo contemporaneo. 1, Uma Malta de Homens de Cor No dia 17 de novembro de 1889, a cidade de Sao Luis acordou agi- tada. Ninguém sabia o que pensar das ultimas noticias, vindas do Rio de Janeiro, que informavam o fim do longo reinado da Monar- quia brasileira. As autoridades conheceram esses fatos quando telegramas comegaram a chegar, na noite do dia 15 daquele mé: Na manha seguinte, apenas 0 jornal republicano O Globo havia noticiado o fato, por meio da publicagao de um telegrama recebido pelo editor do periddico: “Dr. Paula Duarte. A Republica proc] mada. Ministério preso. Grande entusiasmo. O exército e povo confraternizados. Responda telegrama na rua nova do Ouvidor. Sa Valle” A noticia era tao pequena quanto bombastica. Todos teriam que se haver com mais uma mudanga radical no pais. N fazia muito tempo que a capital do Maranhao fora tomada por festas e cortejos de negros, populares, estudantes e politicos, em homenagem a abolic¢ao definitiva da escravatura - 9 13 de Maio de 1888, que tinha alterado toda a estrutura econémica e social ssa vez, porém, as bandas de mi e as passeat espontaneas iriam demorar um pouco mais para ir as ruas. O golpe militar liderado pelo marechal Deodoro, no centro politico do Império, pegou de surpresa aquele longinquo estado do norte agrario®. Em Sao Luis, dizia-se que os republicanos nao passavam de meia-duzias. Ao tomar ciéncia dos acontecimen- tos, o presidente da provincia, senhor Tito Augusto Pereira di Mattos, nao fez qualquer declaragéo publica sobre o assunto, Retirou-se do Palicio do Governo para sua residéncia e pediu ao comandante das forcas armadas que garantisse a ordem. Mas, em meio aos boatos, nem os militares ousaram assumir de fato. 0 poder#. A hesitacéo das for¢as armadas deveu-se, sobretudo, a um telegrama enviado da Bahia pelo marechal Hermes da Fon- seca insistindo para que 0 exército no Maranhao mantivesse a_ lealdade 4 Monarquia’. Os vereadores, por sua vez, reuniram-se na Camara a espera de maiores esclarecimentos e também nao realizaram qualquer pronunciamento*®. No dia 17, falsas noticias sobre a morte do marechal Deodoro procrastinaram ainda mais qualquer tomada de decisao por parte das autoridades. Assim, nenhum dos poderes constituidos atestou a veracidade das infor- magées sobre a mudanga de regime politico, e o governo do estado. ficou simplesmente vazio. Foi nessa conjuntura de desorganizacao institucional que teve lugar o chamado Massacre de 17 de Novembro. Uma multidao de pessoas, descritas como “libertos”, “homens de cor’, “cidadaos do 13 de Maio” e “ex-escravos” saiu as ruas numa grande passeata, em protesto contra as noticias da proclamacao da Republica. Na visdo dos manifestantes, 0 novo regime vinha para restau- rar a escravidao no pais. Eles percorreram as ruas do centro da cidade, dirigindo-se a sede do jornal O Globo, que havia marcado uma conferéncia republicana para o fim do dia. Uma tropa de linha formada por doze soldados fortemente armados foi desta- cada a pedido pessoal do capitao republicano José Lourengo da Silva Milanez (c. 1887-2), do 5° Batalhao Militar’, para proteger a sede do periddico, mas isso nao intimidou os manifestantes, que ameacavam depredar o edificio e atacar seus dirigentes. O pelo- tao realizou uma descarga de fuzil contra a multidao, deixando, segundo ntimeros oficiais, quatro mortos e varios feridos. O protesto e seu desfecho violento adiaram por mais um dia a instituic¢éo da Republica no Maranhao. A ceriménia ocorreu a portas fechadas, em 18 de novembro de 1889, trés dias depois de Deodoro assumir a presidéncia do pais’. O confronto parece ter intimidado até mesmo os simpatizantes do novo regime na capi- tal maranhense, pois as manifestag6es de apoio sé comecaram UMA MALTA DE HOMENS DE COR 3 ( ocorrer a partir do dia 22 daquele més®. A junta proviséria de yoverno, instituida no calor da hora'®, optou por se impor pela fepressio: baixou uma portaria que obrigava a remover todos os iimbolos da Monarquia existentes na cidade. A policia também procedeu investigag6es, prisées e torturas contra os suspeitos ile conspirar contra a nova ordem. Situagao que serviu de esti- iulo para uma série de conflitos entre a policia e os “homens de cor’, genericamente taxados de monarquistas, sobretudo apés 0 protesto. Os desmandos e o emprego da violéncia assumiram pro- porgdes tao desastrosas, que o poder central destituiu 0 governo provisério do Maranhao em apenas 29 dias. Od A CONSTRUGAO DO SILENCIO |Malgrado a dimensiao do conflito de 17 de novembro, 0 clima de lepressdo que o sucedeu e seus efeitos no processo de legitimacao (lo novo regime na regio, o evento nao tem despertado a atencao dos estudiosos. Em parte, esse siléncio se deve ao sucesso dos republicanos maranhenses em subtrair 0 conflito da meméria his- (Orica e politica Drasileif) No dis 23. dezembro.de1889, pouco mais de um més aps 0 ocorrido, o poeta republicano Sousan- dradé acotiséthava aos cidadaos maranhétises darent’6 épisodio por esquecido: “Se algumas horas perturbadas démorou-se o dia do Maranhao, nao importa - ai estamos todos rejuvenescentes ) luz divinal feita ao conjunto de todas as virtudes, a alegria da ordem, a alegria do progresso, a alegria do trabalho, a alegria da honra, a alegria do direito e 4 bengao das leis." Oconselho parece ter sido prontamente atendido. Nao existe, nos dias de hoje, meméria publica sobre o conflitg. Em suas Mem6rias de um Histérico, Dunshee de Abranches refere-se ao evento como um suceder de “fatos que parecem terem ficado esquecidos, mas que eu nao me furtarei de recordar aqui como curiosidade hist6rica”’. Se é verdade que 0 escritor tinha, no livro, um evidente intuito de criticar os descaminhos da Republica, tal observacao sugere que, desde o final do século x1x, 0 massacre ja era dado como esquecido, O mesmo impeto de revelagao de uma curiosidade histérica olvidada faz com que Viriato Cor- rea se debruce sobre 0 17 de Novembro, em sua crénica “Pela UNICAMP INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM am 4 Redentora’, publicada em 1927. Mesmo nesse texto, que é favorave aos discursos sobre o cardter pacifico da passagem da Monarqui a Republica, o memorialista afirma que “sangue anénimo, s importancia politica, sem vulto histérico, derramou-se algu naqueles primeiros dias de queda do Império”. Outro auto que narrou tais acontecimentos foi o escritor negro Raul Astolfo Marques, que dedica ao confronto um capitulo inteiro de s novela histérica, A Nova Aurora. Contudo, tal narrativa teve pouca visibilidade: esse autor sé é conhecido por especialistas em literatura maranhense, e seu livro, rejeitado pela critica da época, tornou-se uma raridade. Digno de nota é um relato de Joao Franzen de Lima. O texto foi publicado fora do Maranhao, no livro Figuras da Republic Velha, em 1941. Num capitulo breve, intitulado “A Proclamagao Republica no Maranhao’, 0 autor narra os incidentes de Sao Luis, destacando sua singularidade em relac4o ao conjunto do pais: O ambiente estadual nao estava preparado para a transi¢ao, ficando populagéo numa atitude de estarrecimento, diante do evento. Por iss mesmo nao houve reacdo, respeitando-se, portanto, o fato consumado, Os adeptos do trono, os nobres da terra, encerraram-se em suas residén- cias, deixando a cidade a mercé da nova ordem de coisas. Havia, em Sao Luis, um jornal, O Globo, que era érgao das ideias democraticas. Em torno dele girava uma pequena corte de idealistas, “iderada” por Paula Duarte. Como fosse O Globo o centro das operacées_ no terreno da divulgac¢ao, ficou sendo alvo da animosidade de muitos, notadamente dos negros, que, saindo 4 rua, em massa, em atitude amea- cadora, numa manifestacao de gratidao ao trono que os havia tirado do cativeiro, dirigiram-se 4 reda¢ao. Era avisada, desse movimento, a guarda do palacio, indo ao encontro dos amotinados, em defesa do jornal, um contingente de pracas comandado pelo alferes Bello (que era, por sinal, um dos homens mais feios do Maranhao!). Sem a necessdria calma para o momento, 0 alferes, 4 aproximacao dos negros nao teve ditvida em dar ordem de fogo, caindo mortos, fuzilados, mais de vinte ex-escravos, fugindo os demais componentes do avultado grupo. Foi o Maranhao a tinica terra brasileira onde se derramou sangue pela Monarquia. Entretanto, havia, na sua sociedade, titulares, nobres: do Império, gente rica, poderosa, a quem o governo imperial enchera de deferéncias, que ficara no recesso de seus lares, ouvindo, apés, emocio- nada, a fuzilaria varando os peitos daqueles a quem a gratidao langava 4 luta e 4 morte. Para a gléria de uma sé raga em Maranhio, og negros se langaram as balas, em sinal de protesto, numa comovida homenagem a UMA MALTA DE HOMENS DECOR 5 princesa que os redimira e que dentro de horas teria que deixar a patria jor um eterno exilio.4 O cronista nao revela como veio a conhecer a historia do conflito em Sao Luis. Sua versao é a nica que contabiliza mais de vinte mortos as portas do jornal O Globo. Para 0 autor, os negros silram as ruas em gratidao a princesa Isabel e sua motivagao seria ile fato. a defesa da Monarquia como regime politico. Dai o desta- «jue da narrativa a covardia das elites maranhenses que, honradas pelos titulos de nobreza do Império e prestigiadas com cargos publicos, ndo esbogaram qualquer reacao a queda da dinastia real, deixando a “gloria” da luta a “raga” negra. Assim, pode-se dizer que sua interpretacao vem embutida naquilo que Edward. lalmer Thompson chamou de os “imensos ares superiores da condescendéncia da posteridade”s. Note-se queyna passagem acima, negros e escravos sao sind- nimos, mesmo em se tratando de uma cidade onde a populagao livre e de cor era muito grande. Diferentemente de outras inter- pretagdes sobre o episédio, Joao Lima nao tem duvida de que o alferes Antonio Raimundo Bello promoveu um verdadeiro mas- sacre, tanto pelo numero de mortos que aventa, quanto pelo teor covarde da agao. Publicados no século xx, os livros de histéria do Maranhao deram ainda menos atengao ao 17 de Novembro do que as cré- nicas e, em geral, esvaziaram o protesto de qualquer significado politico. Na obra Histéria do Maranhdo: Manual Para os Alunos da Escola Normal, 0 advogado e pedagogo Barbosa de Goddis firma que, “feita a abstracao de um grupo de libertos pela lei de 13 de Maio [...], imbufdos pela ideia grosseira de que a Republica viera para reduzi-los novamente ao cativeiro [...], nenhuma outra manifestagdo em contrario a nova instituigdo surgiu em toda a provincia”, Para o autor, contemporaneo aos fatos, a manifes- tacdo foi isolada e movida por uma ideia grosseira: 0 medo da escravidao. Ohistoriador Mario Meireles, em sua Histéria do Maranhdao - obra aclamada que constitui uma cita¢ao obrigatéria nos estudos historiograficos sobre o estado e prestigiada com duas reedigdes ampliadas -, também descreve 0 episodio como sendo uma rea- ao unica e isolada ao novo regime: 6 A tinica anormalidade ocorrida foi uma manifestagdo de escravos, recente mente libertos, contra Paula Duarte, 0 unico republicano no novo govern € isso porque se dizia que o novo regime vinha para tornar sem efeito a Lei Aurea. Indo os manifestantes contra a reda¢io de O Globo, o seu jor- nal, a policia interferiu imediatamente, dispersando-os, isto na véspera da adesao. Mas a circunstancia de, na boca do povo, ter ocorrido tal inci- dente, alids sem maior gravidade, como se houvera sido um massacre - os. fuzilamentos do dia 17, dizia-se - concorreu para um ambiente de friezay. indiferenga e desconfianga, contra a Repiblica.” E digno de nota que o autor escreva manifestacao de escravos, no sentido de manifestacao de negros. Nao ha qualquer mengao. ao uso da violéncia militar no incidente. Pelo contrario, na des~ crigao de Meireles, os fatos aconteceram sem maior gravidad e a interferéncia da policia apenas dispersou os manifestantes. De acordo com 0 historiador, a ideia de massacre e 0 boato dos fuzilamentos eram exageros da mente popular, uma fofoca que sO serviu para criar um ambiente de hostilidade contra a Repu- | blica. No excerto acima, Paula Duarte, tribuno republicano e um dos proprietarios do jornal O Globo, é tido como 0 pivé do conflito supostamente provocado pelos boatos de que a lei que proclamara a abolicao, cerca de apenas um ano meio antes do | confronto, seria revogada pelo novo regime. Uma descri¢éo pormenorizada do evento encontra-se em Subsidios Para a Historia do Maranhdo, do desembargador Mil- son Coutinho. Para ele, as pessoas teriam agido sob a influéncia dos monarquistas da cidade, responsdveis por espalhar 0 boato | de que a Republica iria reescravizar os negros: Nao discrepam os nossos historiadores a respeito da origem dos distur- bios provocados principalmente por ex-escravos, no Maranhio, com 0 advento da proclamagao do regime republicano. Circulava em toda a cidade o boato segundo o qual o regime recém- -implantado iria revogar a Lei Aurea sancionada pela princesa Isabel e 0s pretos teriam que voltar 4 condigao de cativos. E quase certo que tais absurdos partiam dos sebastianistas, isto é, dos saudosos do monarquismo agonizante, e, mentira ou nao, calaram profundamente no espirito dos negros, que jamais poderiam aceitar a volta ao tronco, ao chicote do feitor, ao trabalho forgado. Nos livros de histéria e nas pesquisas que empreendemos nao nos foi possivel apurar 0 “cabeca” do movimento, o chefe da insurreigéo contra 0 jornalista Paula Duarte. Que se saiba, nem mesmo a policia, naquela UMA MALTA DE HOMENS DE COR 7 ‘slindou a sedigao, talvez porque convenientemente elucidado boroassem seus resultados nos costados d’algum ex-barao do # Lato, e I perio, j4 devidamente integrado ao novo regime."* Segundo 0 autor, o protesto coletivo nao passou de “distiir- {ylos", Os ex-escravos estavam movidos por ideias absurdas de que © regime republicano iria revogar a Lei Aurea, isto é, mentiras dilundidas pelos sebastianistas de Sao Luis. Milson Coutinho suipoe que houvesse algum ex-barao do Império por tras de tudo © associa essa possibilidade ao fato de nenhum culpado ter sido encontrado, Na verdade, como veremos com mais detalhes no capitulo quatro, um culpado foi encontrado e preso por crime de contrarrevolucao: trata-se do politico conservador Joao Henri- «ue Vieira da Silva, integrante da situa¢do governista destronada pelo golpe, acusado pelo capitao José Lourengo da Silva Milanez, iinda que sem provas substantivas, de ser 0 principal articulador (lo protesto de libertos e outros negros"?. Esse ponto é importante porque protestos de tamanho vulto ilo costumam ser espontaneos; contam, geralmente, com algum tipo de suporte institucional. Além do referido membro do Par- Conservador, as fontes mencionam, como veremos no quarto capitulo, um apoio de membros conhecidos do Clube Abolicio- jista Maranhense, de feitio liberal. Mesmo as hesitag6es iniciais do exército no Maranhao podem ser consideradas como um estimulo indireto 4 manifestagéo. Os republicanos nao deixa- ‘am de notar que a passeata passou em frente ao quartel sem ser arrada. Ao contrario, ali foram proferidos alguns discursos*°. Untretanto, a existéncia de politicos e organiza¢gées interessadas ha preservacao do status quo, que agiram no sentido de fomentar \uma reagao ao golpe de Estado, nao responde a questo que julgo mais importante: por que aqueles boatos sobre volta ao cativeiro pareciam fazer tanto sentido para as pessoas que foram as ruas? No excerto de Coutinho, a descricao do perfil social dos mani- {estantes desqualifica essa interrogacao, como se nao fosse relevante interpretar as motivagées politicas dos de baixo. Lé-se ali também que uma “grossa multidao formada na sua maior parte por pardos ¢ ex-escravos se acercou da reda¢ao do jornal de Paula Duarte, em atitude hostil, haja visto a gritaria, algazarra e berreiros proprios a esse tipo de manifestagao”. A mengao aos pardos visa afirmar a tido 8 presenca de homens livres no evento, posto que ex-escravos e pret so tratados como sinénimos, pelo autor. Na visio do desembar~ gador, também nao houve exatamente um massacre As portas di jornal O Globo, mas sim um tiroteio ao cair da noite: Os relégios assinalavam pouco mais das 19 horas, quando a multida enfurecida e com muitos dos seus componentes armados voltou a carga’ para tirar prova de fogo. j Iniciou-se a fuzilaria, de que resultou a morte imediata de 3 mani- festantes, ferimentos em 11 outros, lesdes em varios soldados, cabo e sar- gento do destacamento, vindo a morrer, pouco tempo depois, na Sant Casa, um dos sediciosos ferido por balago da tropa.** Nesse sentido, nao teria ocorrido qualquer desproporcio- nalidade no uso da forca por parte do pelotao encarregado d defender a sede do jornal. Ao contrario, eles estariam reagind contra uma multidao enfurecida e armada. Tal versao dos fato: acata as informagées do relatério do alferes Bello, que deu a ordem de fuzilamento. O nimero de mortos indicado nesse tre- cho também segue as estimativas oficiais. Uma critica a essa abordagem consta de uma dissertacao sobre o movimento republicano no Maranhao. Nela, o historia~ dor Luiz Alberto Ferreira confere atencao ao carater violento do confronto, a fim de compreender como os republicanos percebiam: 0 povo. Ademais, o autor se op6e a ideia de que os manifestantes estariam agindo sob a influéncia de terceiros e valoriza a inter- vencao politica das camadas populares: Nao importa aqui se a manifestagao foi promovida por incentivo de A ou de B. O que importa é que houve manifestacao popular, embora antir- republicana. Nao que os manifestantes fossem monarquistas convic- tos, apenas nao podiam conceber que aquela que lhes havia concedido a liberdade nao os pudesse governar ~ isso demonstra que o discurso: dos republicanos hist6ricos era (ou virou) apenas retorica para parte da sociedade, visto que nao possufa credibilidade entre os libertos do 13 de Maio. Se estes nao tinham consciéncia de que a liberdade nao lhes fora concedida, mas conquistada, é uma outra historia. E dificil comprovar o argumento geral de que 0 17 de Novem- bro e os demais embates entre as forgas armadas e as pessoas comuns estejam relacionados ao modo especifico com que a UMA MALTA DE HOMENS DE COR 9 \deologia republicana concebia o povo brasileiro. Faltam dados ‘upazes de justificar a associagao entre a ocorréncia do fuzila- Mento e uma suposta formagao republicana dos oficiais. As fontes existentes sobre o conflito descrevem que a tropa agia de modo a jreservar a ordem, impedir a invasdo do jornal O Globo e conter 0 desregramento dos libertos, mas nao com 0 fito de proteger 0 hiovo regime. Ao menos, nao naquela noite, quando o governo elava vazio ea Republica ainda nao fora proclamada na provincia. O autor sugere que os manifestantes agiam por nao com- preenderem que a liberdade nao era uma dadiva da familia real, Mas sim uma conquista politica que eles nao deviam a ninguém. Mas é possivel argumentar o contrario, que 0 povo estava nas twas por entender que seus parcos direitos haviam sido con- «uistados pelos seus esforgos pessoais e coletivos em busca das cartas de alforria, pela coragem de fugir em busca de mocambos e esconderijos na cidade, através da mobilizacao nacional dos ubolicionistas e sob a égide da Monarquia, imaginando que a mudanga de regime de governo poderia implicar em retrocessos io tocante a consolidagao politica e social da recente abolicao. © OLHAR DOS CONTEMPORANEOS limbora o evento de novembro tenha sido silenciado por alguns nao tenha chamado a atengio de muitos especialistas, cronistas e memorialistas, ele foi motivo de preocupagao de governado- tes, politicos, jornalistas e intelectuais contemporaneos aos wcontecimentosO mais importante documento nesse sentido ¢ Apontamentos Escritos Pelo Capitao do Exército Jozé Lourenco da Silva Milanez. E estranho que todas as andlises sobre a pro- clamagao da Republica no Maranhao, mencionadas no capitulo anterior, o tenham ignorado, O autor foi uma testemunha ocular dos acontecimentos e registrou suas impressées sobre os fatos em dezembro de 1889, ainda no calor da hora. O relato é uma dentincia de que 0 exército permaneceu fiel 4 Monarquia até 0 dia 18 de novembro daquele ano, data oficial da proclamacao da Republica do Maranhao. Com efeito, o autor anota com ironia: “do dia 18 néo houveram republicanos mais exaltados do que aqueles mesmos que fizeram-me passar por tantos vexames pela 10 pusilanimidade de que deram tantas provas”*4. Segundo o capt tao, as vacilacées do exército em aderir imediatamente ao gol} de estado resultaram no conflito entre os “libertos do 13 de Mai e os republicanos sitiados no jornal O Globo. Os apontamentos de Milanez contém a descri¢ao mais por menorizada da aco politica dos monarquistas de Sao de Lui contra a instaura¢do da Republica. O autor sugere que how uma armagio envolvendo o alto escalao do exército, o president da provincia e membros do corpo de politica, para estimular sublevacao popular e manter o status quo na provincia: q Eu adivinhei mais uma baixeza que se cometia e mais tarde soube que a for {tropa do exército] fora propositalmente receber ordens do Presidente. Cot tou-nos que assistiam impassiveis as imposic6es dos libertos o subdelega e 0 delegado de policia, EL. Leda e Manoel V. Nina, sendo certo dizer q ambos introduziam-se no grupo dizendo em voz baixa: fagam o que q serem, insubordinando as forcas dispersavam-se 0s libertos, tirando-se [# ela também por ordem do Presidente que irrefletidamente dera essa order para lhe asseverarem que a ordem estava restabelecida (quando ¢ certo, mai tarde se verificou isto, que sabiam os libertos um plano sinistro).* O autor informa que José Luiz Tavares, tenente-coronel do Batalhao de Infantaria e, logo depois do golpe, membro do governs provisorio republicano, temia aderir ao novo regime sem saber at certo 0 que se passava na capital do Império. Assim, o chefe d exército no estado permaneceu colaborando com os monarquis- tas durante todo o dia 17 de novembro e reuniu uma comissao d militares para “fazer constar ao Presidente da Provincia que o 5: BM de Infantaria procedendo com toda a prudéncia recebia e cum- pria ordens do Governo aqui instituido”**, Para Milanez teri: sobrado, nesse momento, algumas ameagas: “o Tavares me diz qu eu ja estava bastante comprometido, mas que me salvaria, eu que nao saisse mais do quartel, fizesse como os outros””7. Segundo o relato, outra personagem importante da parca, reacao monarquica que se viu entre os de cima foi Joao Henri- ques Vieira Silva, membro do partido conservador, deputado. geral pelo Maranhao em 1885 e vice-presidente da provincia em 1888. O politico teria ido pessoalmente intimidar os chefes do exército a néo proclamarem a Republica e, segundo o capitao, desde o dia 16 comegarama circular boatos acerca da reacao dos negros, “falava-se muito muito em levantamento de libertos, que UMA MALTA DE HOMENS DE COR u ecabegados por Joao Henriques pretendiam protestar contra o jnovimento republicano, que o dia seguinte [17 de novembro] sendo Domingo seria bom ensejo para ele se reunirem’. O autor ‘gere quais seriam a motivagées do politico conservador: {\lecido 0 Senador Luis Antonio, seu tio e sogro desapareceu para ele a iblidade de fazer alguma coisa em politica; restava-lhe portanto [...] |) ocasidio que se Ihe oferecia jogando uma cartada: sublevar os libertos, jrorque falseado o movimento republicano ele se apresentaria ao [Visconde Je] Ouro Preto fazendo valer os seus servigos a Monarquia e forgosamente {} dariam um bom lugar na mesa orgamentaria, no caso contrario nada perderia: que lhe importava que alguns libertos imbecis que, acreditan- oo, se atirassem arrojados sacrificando as vidas para satisfagao de seus vilculos politicos 1215 Nesse sentido, Joao Henriques, que discursou para libertos e outros negros em 17 de novembro, seria o grande manipulador das jassas e arquiteto do protesto que tomou as ruas de Sao Luis con- (ra. imposic4o do novo regime. Note-se que 0 capitéo nem aventa \ possibilidade de os manifestantes possuirem razGes préprias ou desconfiangas frente a uma mudanga de regime politico motivadas por suas préprias experiéncias para sitiarem o jornal republicano, pois, em suas palavras, tratava-se apenas de “libertos imbecis”. Menos de um ano apéds 0 Massacre de 17 de Novembro outro iclato chamaria atengao para a importancia daqueles acontecimentos. lrata-se do relat6rio do apresentado pelo governador José Thomaz «a Poreitincula ao seu sucessor, no dia 7 de julho de 1890. A impopu- laridade do regime republicano na regido era considerada perigosa aos olhos do chefe de estado e toda a introdugéo do documento ¢ dedicada ao episédio, descrito como um dos mais importantes contecimentos politicos do estado, desde a proclamagao da Rept- blica brasileira. Para detalhar o ocorrido, o governador fez suas as palavras do Didrio do Maranhdo de 18 de novembro de 1889: \CONTECIMENTOS DE ONTEM Grande massa de homens cercou a casa da tipografia do Globo, em que se achava o seu redator, dr. Francisco de Paula Belfort Duarte, a quem queria impedir de fazer uma conferéncia, para a qual havia convidado o povo, marcando a Camara Municipal para ponto de reuniao. Depois de muitas pessoas gradas aconselharem a que se dissolvesse © ajuntamento e haver passado a hora marcada para a conferéncia, saiu 0 \rupo a percorrer ruas dando vivas 4 Monarquia, indo em frente a casa, 12 onde se achava 0 governador Tito Mattos, cumprimenta-lo, tendo ele por sua vez chegado & janela e pedido ao povo toda a ordem, garantia para a tranquilidade publica e que se dissolvesse 0 ajuntamento. Serenaram entao os espiritos, mas a tarde outros grupos continua- ram a percorrer as ruas, e em frente ainda a reda¢ao do Globo se postou grande massa de povo. Foi destacada para o lugar uma forga de infantaria para evitar desordens e disturbios, mas a noite continuaram os gritos, tendo havido tiros e grave conflito de que resultaram ferimentos e mortes, estas em numero de trés, Foram tomadas as medidas por parte da forca publica para evitar novos conflitos e ser dispersado o ajuntamento, guardada a casa da reda- ¢a0 do Globo.® De acordo coma versio relatada pelo jornal, o tumulto come- | cou quando uma grande massa de homens impediu, pela forga, - a realizacao de uma conferéncia do dr. Francisco de Paula Belfort Duarte em frente 4 Camara Municipal de Sao Luis. Ao que parece, os descontentes que impediram a conferéncia republicana e, em seguida, organizaram um protesto pelas ruas da cidade temiam que | 0 discurso dos republicanos deflagrasse imediatamente a adesio da provincia ao novo regime. E importante lembrar que, até aquele momento, nenhuma autoridade publica confirmara a veracidade das noticias sobre o fim do Império brasileiro. Os revoltosos segui- ram pelas ruas de Sao Luis dando vivas 4 Monarquia, em diregao 4 casa onde estava 0 governador Tito Mattos — provavelmente com fito de angariar seu apoio. O dirigente, sem confirmar ou contestar _ os boatos sobre a proclamacao da Republica, dirigiu-se ao povo pedindo prudéncia, tranquilidade e manutengao da ordem publica. Mas nao houve nada que contivesse o impeto dos manifestantes, ou seu temor da escravidao. A fim de ratificar a veracidade da matéria publicada em O Diério do Maranhao, 0 relatério de Porciuncula se vale de dados do Hospital da Santa Casa da Misericérdia, reproduzidos a seguir conforme o documento original. As tabelas oficiais (imagens 1 € 2) confirmam os numeros do jornal, que noticiou a ocorréncia de trés mortes e informou que varias pessoas foram gravemente feridas no conflito. Mas essas tabelas também acrescentam as bai- xas mais uma vitima fatal, que veio a falecer em decorréncia do tétano provocado por uma bala de metal. Entretanto, é possivel que tenha havido mais mortes, posto que os ntimeros se referem — apenas as pessoas que foram atendidas no Hospital da Santa Casa. UMA MALTA DE HOMENS DE COR 1B historiador Luiz Alberto Ferreira, com base nesses registros hos- pitalares, afirma que 0 17 de novembro foi verdadeiramente um massacre, chamando a aten¢ao para o fato de que nove dos qua- torze feridos ou mortos foram alvejados nas partes superiores do corpo (brago e antebraco) — 0 que qualificaria a inten¢ao dos mili- (ares de matar, nao apenas amedrontar ou dispersar a multidao°°. Pemrenio va Banta Oasa va Pzeniconvia MAQPA demoastrativo dos corpos sopullados no camiterio da Santa Casa da Misericordia, nos dias 18 e 19 de ‘Novembro de 1889. KOMES | 5 | 2 MouesTas ——cusengoes [es ducal : arto | socio i Parka INaTURALIDADES| ESTADOS Jota de ito | ose eimesto por bala fergie. ss . . New ' | Martin ‘ | | Bs Cemiterio da Santa Casa da Misericordia, 28 de Junbo de 1890. | Joaguim Marques Nodrigues Neto.—Mordorno Padre Manel Goncalces da. Crui.—Capellio interno. ¥1G. 1. Pessoas Mortas no Massacre de 17 de Novembro José Thomaz da Porciuncula, Relatério Com Que 0 Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula Passou a Administragao do Estado em 7 de Julho de 1890, p. 6. ospital da Santa Gasa da Mizericordia MAPPA demonstrative dos individuos baleados ¢ entrados paraeste haspital, no dia 17 de Novembro de 1889, com declorapto os fermentes, operapes, curades ¢ OUGNOSTICES =| PEBAGIES | ws ges ASRS ies imetotse pitts (FR I aia te Sno a Mei, 2 do le 1 Inge Mag ges Sr Nendo. in Ste Pri vIG. 2. Pessoas Feridas no Massacre de 17 de Novembro José Thomaz da Porciuncula, Relatério Com Que o Exmo Im. Dr. Thomaz da Porciuncula Passou d Administragdo do Estado em 7 de Julho de 1890, p. 7 UNICAMP. INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM O registro do hospital descreve os homens que morreram ni conflito como solteiros, naturais do Maranhao, de cor preta ov parda. Uma vez que o evento ocorreu cerca de um ano e meit apés a assinatura da Lei Aurea, que aboliu formalmente o trabalh escravo no pais, essas tabelas nao informam se esses homens e: livres ou escravos antes do 13 de Maio de 1888. Entretanto, sabemo: que o mais jovem dos falecidos, Sergio, possuia 22 anos na data d confronto. Assim, todas as vitimas nasceram antes da Lei do Ventre Livre (1871), e a maior parte delas assistiu a crise politica e econd- mica do sistema escravista no Brasil na fase adulta de suas vidas. Destaco esses aspectos pois questées em torno da cor do: manifestantes e de seu estatuto, ou seja, se eram homens livres, libertos ou escravos no momento de assinatura da Lei Aurea, sa invocadas em diferentes fontes sobre 0 episédio. O governadoi nunca menciona esses aspectos, referindo-se ao evento como “ movimento popular de 17 de novembro” e preferindo tratar o: manifestantes por meio dos termos “massa” e/ou “povo’, assim: como, alias, eles sao tratados pelo relato jornalistico que coleto para descrever a contenda. Ja 0 informe da Secretaria de Polici: do Maranhao que o estadista anexou a seu relatorio atribui causa, cor e origem social ao protesto, no item “Tranquilidade Publica”: Nao foi tao lisonjeiro, como seria para desejar-se, 0 estado da tranquili- dade publica durante 0 periodo decorrido de novembro de 1889 a junho- deste ano. O estabelecimento da Republica Federal, em 15 de novembro_ do ano passado, transformando inteiramente o sistema de governo no} Brasil, deu margem a boatos inconvenientes, adrede levantados pela espe- culagao que tratou, desde logo, de explorar a ignorancia do povo para fins inconfessaveis, dando isto causa a um conflito que teve lugar nesta capital, em a noite de 17 daquele més, em frente a tipografia do Globo, entre a forca ali postada para defendé-la e uma malta de homens de cor que pretenderam atacé-la, resultando do mesmo conflito, que felizmente | terminou logo, mortes e diversos ferimentos. Na cidade de Caxias e na Povoacao de Pedreiras, também houve um | principio de desordem, devido ao desregramento dos libertos ali aglo- merados, 0 qual abortou, nao tendo havido, entretanto, nenhuma ocor-_ réncia desagradavel a lamentar-se. Mais tarde, no distrito de Cajapié, na cidade de Alcantara e na Vila de Guimaraes, pelos motivos expostos nas comunica¢ées que oportunamente vos foram feitas por esta Reparticao, a ordem publica foi alterada, tendo sido imediatamente restabelecida, gracas as acertadas e eficazes providéncias tomadas por vés; - reinando atualmente inteira paz e tranquilidade em todo o Estado.* UMA MALTA DE HOMENS DE COR 15 Assim, 0 conflito de 17 de novembro teria se originado de ‘hoatos inconvenientes” em torno da Proclamagio da Republica, (ue teriam sido ardilosamente utilizados com o “fito de explo- fur a ignorancia do povo para fins inconfessaveis”3+. Embora ido sejam revelados nem o teor dos boatos, nem as raz6es para considera-los inconvenientes, depreende-se que, para os gesto- tes da policia, os manifestantes que foram as ruas empastelar a conferéncia republicana estavam sendo manipulados por indivi- iluos de indole duvidosa. Ao contrario da descrigao do protesto publicada em O Didrio do Maranhdo, que sugere uma motivagao politica prépria aos revoltosos — a defesa do regime monarquico, expressa em gritos e vivas pelas ruas da cidade, e a manifestagao (le apoio ao governador em exercicio -, na versao policial, a con- (enda seria o resultado da ignorancia do povo, posta a servigo de especuladores sem nenhum carater. Outra caracteristica peculiar do informe é que os manifes- (antes nao sdo caracterizados apenas como povo, massa e outras imetonimias utilizadas para designar os pobres. Para a Secreta- ria de Policia, o ataque possui uma conotacao racial, tendo sido orquestrado por uma malta de homens de cor. E essa a categoria que torna a descrigao do protesto inteligivel no excerto acima, embora o relato nao permita entender completamente sua moti- vagao, adjetivada de inconveniente ou inconfessavel. Todavia, 0 préprio texto oferece pistas para perceber o sentido da classi- licagéo social manuseada para narrar o confronto. E importante observar que, para os gestores da policia mara- nhense, 0 conflito 4s portas do jornal O Globo se insere num contexto mais amplo de insubordinagao popular, vivenciado em varias comarcas e vilas de diferentes partes do Estado. Dessa leita, os acontecimentos em Sao Luis pertencem ao conjunto de desordens publicas que teriam ocorrido em fungao dos desre- gramentos de libertos, também observados em Caxias, Pedreiras, Alcantara, Guimaraes e Cajapid. Portanto, nos termos do érgao de seguranga, nao é sem razao a aludida falta de motivagao pro- pria aos revoltosos pois, na verdade, 0 conflito nao expressava um questionamento politico da nova ordem instituida, mas uma indisciplina considerada prépria aos libertos. Ha uma dtvida que permanece: qual a relagao observada pela policia entre a malta de homens de cor na capital da provincia e

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