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Recife, 2023

Copyright © 2023, Rafael de Queiroz

Pesquisa rafaeldequeiroz@gmail.com
Rafael de Queiroz @rafaelpfqueiroz (instagram)

Edição
Rodrigo Édipo Silva

Revisão
Gilberto Clementino Neto

Design, projeto gráfico e diagramação


Zilda Figueiredo Borges

Audiodescrição e acessibilidade
COM - Acessibilidade Comunicacional

Produção executiva
Ludimilla Carvalho

Este livro foi realizado com o incentivo


do Funcultura - Governo do Estado de Pernambuco.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Queiroz, Rafael de
Cronopolíticas afrossônicas [livro eletrônico] :
ecos do afrofuturismo na música pernambucana /
Rafael de Queiroz. -- Recife, PE : Ed. do Autor,
2023.
PDF

Bibliografia.
ISBN 978-65-00-67705-8

1. Afro-brasileiros - Brasil - Cultura 2. Música


brasileira 3. Música - Recife (PE) 4. Pernambuco -
História I. Título.

23-152699 CDD-780
Índices para catálogo sistemático:
1. Música brasileira : Recife : Pernambuco :
Estado : História e crítica 781.63098134
A Martin, meu filho,
como símbolo do futuro para nós,
negros e negras.
Agradecimentos

Primeiro a quem vem primeiro: agradeço a possibilidade


de realizar este trabalho para Exu, o orixá das trocas, da
comunicação, dos trânsitos. Sendo o princípio dinâmico
e o senhor das encruzilhadas, permitiu que os caminhos
estivessem abertos para que tudo fosse possível.

Sou grato a todos aqueles que integram o panteão das


espiritualidades afro-indígenas, nos protegem e nos guiam.
Assim como a meus ancestrais, graças a quem consegui
chegar até aqui e seguir na tentativa de honrá-los.

Agradeço a Itania Gomes, uma educadora e intelectual,
tanto generosa quanto acolhedora. A partir de sua
supervisão e diálogos, muitas portas para o pensamento
crítico se abriram, tornando a investigação mais complexa
e instigante. Aqui é apenas uma parte do que comecei
a desenvolver no meu estágio pós-doutoral em que fui
recebido, provocado e estimulado a pensar além.

Minha equipe fantástica, sem a qual não poderia estar


apresentando o resultado final, agradeço demais.
Ludimilla Carvalho me cobrou, sendo compreensiva e
eficaz, ao mesmo tempo. Não sei como isso funciona.
Nos conhecemos ainda nos corredores da graduação de
Radialismo e TV na UFPE, nos desencontramos e voltamos
juntos no doutorado. Sua inteligência, organização e
persistência tornaram-na uma incrível produtora cultural,
além de uma pesquisadora contumaz. Se não fosse por
ela, essas páginas não teriam sido escritas.

Rodrigo Édipo, um irmão. Nos conhecemos há tantos


anos que seria até difícil de contabilizar. Outros amigos
em comum nos colocaram na mesma encruzilhada, e,
arrisco dizer, nunca nos separamos. Rodrigo é daquele
tipo sábio, que sempre vai ter alguma sacada genial para
qualquer coisa que tenha se posto à mesa, da arriação
à física quântica. Seu raciocínio rápido, olhar arguto e
poder de observação lhe dão características ímpares para
ser um baita editor. Mesmo com pouco tempo, conseguiu
me levar a outros lugares que o texto sugeria, mas não se
aprofundava tanto.

Jéssica é o axé em si, uma potência inigualável, junto


com sua capacidade de realização. Seu talento, do
tamanho do universo, foi minimamente retratado no
microcosmo que foi esta escrita. Além de inspiração,
ela foi a produtora local, em Triunfo (PE), deste projeto e
a artista que serviu de ilustração e imaginação fantástica,
topando entrar conosco nessa formulação e preparando
um show especial. Agradeço-lhe profundamente.

Sou grato a H.D. Mabuse, pelas nossas conversas, seu


pensamento transversal e sempre à frente. Ele que
escreveu o prefácio, é o pai de Pedro, Igor e Yuri, e ainda
topou participar de um debate, enriquecendo o projeto
com sua expertise e generosidade.

Ao colega e amigo Deivison Campos, professor da


PUCRS, pesquisador em Comunicação e Raça, que é
uma referência para mim. Ele fez parte da minha banca de
doutorado e sempre se mostrou uma pessoa inteligente,
generosa e criativa. Sempre traz observações perspicazes
e olhares expansivos, contribuindo de forma muito
substancial com meu trabalho, sendo guiado pelo senso
de coletividade negra que o compõe. Tenho que agradecê-
lo, mais uma vez, pelo belíssimo posfácio que dedicou a
estes escritos, que leu e escreveu com tamanha rapidez e
prontidão. Obrigado, irmão!
Também devo agradecer a Jorge Dü Peixe, instrumentista,
cantor e compositor dos bons, que, com suas vivências
e imaginações, nos ajudou com informações preciosas,
me concedendo uma entrevista e participando do
webinário de lançamento.

Devo lembrar de todos e todas que me ajudaram a


construir o podcast Afrossonora, que contribuíram com
seus pensamentos e pesquisas para entendermos cada
vez mais a música negra: obrigado àquele(a)s a quem
entrevistei.

Sou grato à minha família por todo apoio, sempre: à minha


companheira Mariana, ao meu filho Martin e aos meus
pais, Lúcia e Gileno; eles tornaram isso tudo possível e a
caminhada mais tranquila.

Por fim, agradeço ao povo pernambucano que permitiu


que esse trabalho fosse realizado por meio do Funcultura
e do Governo do Estado, mediante o pagamento de seus
impostos.
SUMÁrio

Prefácio, por H.d. Mabuse 13

Especulações cósmicas e o respeito ao desconhecido 19

Ficção especulativa e futuros imaginados 30


O afrofuturismo e a paisagem visionária 34
A música negra da diáspora 44
Cronopolíticas Afrossônicas 51
O afrofuturismo no Brasil 90

Afrofuturismo em Pernambuco 103

Chico Science & Nação Zumbi: a África em Pernambuco 105


(de África + Cibernética + Psicodelismo) 114
Jéssica Caitano e a rima do futuro 130
Radiola Serra Alta 143
Barbarize 148

Posfácio, por Deivison Campos 165

Bibliografia 174
12
prefácio

H.d. Mabuse
É designer no CESAR e professor de Filosofia do Design
no mestrado do programa MPD da CESAR School. Mestre
em Design pelo PPG Design da UFPE, onde cursa o
doutorado. Tem trabalhado desde 1990 com colaboração,
comportamentos emergentes e remix de várias linguagens
nas áreas das artes visuais, design e música.

Este prefácio é escrito em um momento bastante peculiar:


saímos de um governo autoritário, de contornos fascistas,
responsável por mais de 700 mil mortes durante a pandemia
de Covid-19, por uma tentativa de genocídio dos povos
indígenas e que, mesmo com um conjunto de ilegalidades
cometidas com o objetivo de se reeleger, foi derrotado nas
urnas. Escrevo este prefácio quando um novo capítulo
da história começa, com tanta esperança, complexidade
e em uma luta que ainda se coloca contra uma extrema-
direita que surgiu dos bueiros.

13
Esse tempo histórico tornou ainda mais evidentes as
contradições que nos formam, uma origem que busca
apagar as histórias milenares de povos que aqui estavam
antes da invasão europeia, quando o Brasil surge como
uma iniciativa econômica, extrativista de exportação,
da qual recebemos o nome de um produto (assim
como a Argentina e a Costa do Marfim), que, quando foi
trocado pela cana-de-açúcar, consolidou uma história
de empreendimento baseado na mão de obra de povos
escravizados e trazidos de África.

Ao mesmo tempo, somos onde se dá o encontro afro-


indígena que supera a dinâmica de um resultado de sua
mistura, para além do conceito de integração e até de
metáforas como a fusão, apontando um modo singular
de articular diferenças. Que enfatiza a constância da
diferenciação, ao mesmo tempo subtraindo a variável
majoritária dominante e liberando “situações de contato
do ofuscamento teórico-ideológico produzido por essa
variável”1. Essa definição, que se apresenta de forma tão
complexa dentro de uma racionalidade discursiva, esteve,
de forma singularmente explícita e acessível, em toda sua
riqueza, nas ruas do Recife durante o carnaval.

1
GOLDMAN, M. “‘Nada é igual’. variações sobre a relação afro-indígena”.
Mana: Estudos de Antropologia Social, 2021. v. 27, n. 2, p. 1-39.

14
De forma alguma pretendo colocar em segundo plano
as contribuições no campo dessa racionalidade, que nos
chegam pelas palavras de autoras e autores como Beatriz
Nascimento, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Antônio
Bispo, Clóvis Moura, Sueli Carneiro, Davi Kopenawa, Lélia
Gonzalez, entre tantas e tantos outros. Mas, na minha
opinião, é na dimensão dos afetos, quando se encontram
nas ruas os maracatus, caboclinhos, afoxés, orquestras de
frevo e demais brincantes, que se constrói o entendimento
mais sofisticado desse encontro.

Rafael de Queiroz, buscando contribuir para a discussão,


apresenta nas próximas páginas o conceito de
afrofuturismo, que é mais do que uma combinação de
ficção especulativa, tecnologia, racialização de povos,
viagens espaciais, futuros alternativos, crítica social
e recuperação de conhecimentos e desenvolvimento
avançado de antigas civilizações africanas. Aqui o autor
também explora a relação remota da humanidade com
o espaço e o desconhecido, chamando atenção para a
importância de respeitar as práticas espirituais, científicas e
artísticas que levaram anos para serem obtidas. Ele destaca
a civilização Kemet, que é uma referência para África e
toda a humanidade, sendo uma das primeiras grandes
civilizações, capaz de feitos impressionantes em vários
campos do saber, como matemática, geometria, medicina,

15
arquitetura, química, filosofia, agricultura e astronomia.
No entanto, esse legado kemético ainda é disputado, pois
há um esforço de apagar a africanidade e negritude dessa
civilização por parte da ciência europeia. Isso é resultado de
um discurso racista, moderno, de superioridade e fundação
de um pensamento “não-primitivo” por Grécia e Roma,
o que justifica a violência, o colonialismo, a escravidão e
a exploração.

É dada, então, a devida importância aos esforços contínuos


e históricos dos Movimentos Negros e suas conquistas,
como a Lei n° 10.639/03, fruto dessa luta, que busca
desmistificar as representações (mais uma vez racistas)
que apontam para uma África que não tinha história.

É nesse encontro entre os textos e os sons que está


o potencial explosivo deste livro. Ao materializar a
possibilidade de encruzilhadas na música contemporânea
brasileira que destacam as conexões e continuidades
das culturas diaspóricas africanas em diferentes tempos
e espaços, trazendo em especial a música de Chico
Science & Nação Zumbi, Jéssica Caitano e Barbarize,
Rafael de Queiroz aponta o uso de diferentes gêneros
e tradições musicais para criar expressões inclusivas
e potencializadoras da negritude, destacando a
importância desses artistas no desafio à marginalização

16
das expressões culturais negras diante das narrativas
dominantes e na promoção de uma compreensão
pluralista e diversa da identidade brasileira.

Esse exercício chega em boa hora, e não é uma hipérbole


nem uma imprecisão dizer que, ao abordar questões
de raça, resistência e justiça social, contextualizando o
afrofuturismo na produção pernambucana, Rafael esboça
um mapa que pode ser usado na montagem de caminhos
diversos, que têm como objetivo comum transformar a
música em uma ferramenta poderosa para a transformação
política e cultural da cidade.

17
18
Especulações cósmicas e
o respeito ao desconhecido
“Mas há uma história de pessoas negras olhando para o céu” -
Jarita Holbrook

Uma possibilidade mais comum de iniciar um escrito


sobre afrofuturismo poderia ser com a menção à
primeira aparição do termo no ensaio Black to the
Future2, do autor estadunidense Mark Dery, lançado em
1994. Em um sentido amplo, uma ideia que envolve ficção
especulativa, tecnologia, raça, viagens espaciais, futuros
alternativos (utópicos e distópicos), crítica social e até
uma recuperação/recriação de um passado esquecido de
conhecimentos e desenvolvimento avançado de antigas
civilizações africanas. Porém, muito antes da publicação
de Dery, sempre existiram negros olhando para o céu e
tentando explicá-lo. Assim como buscando conexões da
vida terrena com um complexo emaranhado cósmico.

2
DERY, Mark. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate
and Tricia Rose”. In: Flame Wars: the discourse of cyberculture. Durham: Duke
University Press, 1994.

19
Muitas características do que envolveria a ideia de um
afrofuturismo foram elencadas acima, e mais adiante
iremos explicá-las com mais rigor. No entanto, gostaria
de começar especulando sobre a nossa remota relação
com o espaço, o cosmos e o desconhecido. Do Kemet
ao candomblé brasileiro, há um sentido de segredo e
mistério em práticas espirituais, científicas e artísticas.
Manifestações estas importantes de serem respeitadas,
visto que levou-se anos para a obtenção de determinados
conhecimentos, e só aqueles que imergiram nos mesmos
puderam ter acesso a eles. É importante compreender
que espiritualidade, ciência e arte não eram instâncias
separadas, distantes e díspares, conforme encontramos na
estrutura epistêmica ocidental. Para mim, esse fenômeno
está relacionado também a um respeito ao desconhecido,
uma metáfora que costumamos associar às primeiras
buscas místicas, míticas e filosóficas de onde viemos e
qual seria nosso propósito, até à exploração espacial.

O Kemet ― como assim se autodeclarava essa civilização,


uma transliteração de uma sequência de hieróglifos, km.t,
que significa “Terra Preta” ou “Terra dos Pretos”, e não
Egito, do grego Aygiptos, que significa “além do Egeu” ―
sempre foi uma referência para a África e toda humanidade
como uma das primeiras grandes civilizações, capaz de
feitos até hoje impressionantes em inúmeros campos

20
do saber: matemática, geometria, medicina, arquitetura,
química, filosofia, agricultura e astronomia ― todas elas
creditadas a essa civilização africana, que até hoje é
estudada.

Apesar de ter se tornado quase um clichê na estética


afrofuturista, a disputa sobre o legado kemético ainda
importa, pois, apesar de inúmeros esforços de intelectuais
negros, e aqui podemos exemplificá-los na figura do
polímata senegalês Dr. Cheikh Anta Diop3, ainda há
um esforço de apagar a africanidade e negritude desta
civilização por parte da ciência europeia.

3
Foi o maior historiador africano do século XX e o primeiro egiptólogo de África.
Além disso, ainda possuía formação em Física, Filosofia, Química, Linguística,
Economia, Sociologia e Antropologia. Dedicou seu trabalho a provar a origem
africana das civilizações e de que toda África, até os dias de hoje, descendia
desta cultura. Enfrentou o racismo científico e apresentou a tese, ainda na década
de 1950, sobre a negritude dos egípcios e a origem africana da humanidade,
fato que foi rechaçado pelos pesquisadores brancos. Tinha o objetivo político de
autodeterminação africana em seus períodos de reconstrução, após a violência
colonial, pois acreditava que, provando o caráter civilizador de África, poderia
impulsionar essa retomada política e cultural.

21
Isso porque seria inadmissível para a retórica
eurocêntrica reconhecer a anterioridade e complexidade
de um organismo social africano, o que colocaria em
xeque o discurso de superioridade e de fundação de
um pensamento “não-primitivo” por Grécia e Roma.
O racismo contido nessas ideias, que são populares até
hoje, também tenta erradicar toda sorte de conhecimentos
produzidos fora dos centros do Norte global4, assim
como justificar a violência, o colonialismo, a escravidão e
a exploração.

Por exemplo, na época da escola, em História Geral,


estudávamos “Egito Antigo”, mas nada era contextualizado
em torno da geografia africana, soando como um
contexto perdido no tempo e no espaço, algo por acaso
e definitivamente não-negro. Nada, além da menção ao
Egito, era debatido sobre o continente, lembrando também

4
Norte Global refere-se à América do Norte e Europa. É uma expressão dentro da
geopolítica, que se relaciona a conceitos como pós-colonialismo, epistemologias
do sul e o pensamento decolonial. Pretende localizar e estudar aspectos das
culturas hegemônicas, suas implicações políticas, econômicas, sociais, raciais,
etc., e suas imposições ao Sul Global. Nesta análise não monolítica, percebe-se
tanto as elites descendentes de europeus no Sul, como os brancos no Brasil,
por exemplo, quanto os subalternizados no Norte, como negros e indígenas
nos EUA.

22
que as representações midiáticas geralmente retratavam
os habitantes de Kemet como brancos. Daí, em História
do Brasil, já pulávamos para as “incríveis” realizações dos
portugueses, que fundaram nossa Nação, com a ajuda
subalterna dos “escravos negros”. O mito da europeidade
enquanto superioridade imaginada foi impulsionado pelo
colonialismo e atravessou tempo e espaço, chegando até
aos recônditos de uma escola em Recife, Pernambuco,
nos anos de 1990 d.C., quase confirmando a máxima
hegeliana de que a África não tinha história5. Nada além
da escravidão.

5
Para Hegel, “o homem na África negra vive no estado de barbárie e selvageria
que o impede ainda de fazer parte integral da civilização”. O racismo de Hegel
já foi bastante estudado e há muitas discussões disponíveis para consulta. Para
uma introdução ao tema, ainda relacionado à realidade brasileira, sugiro a leitura
do artigo “Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje”
(2015), do professor Kabengele Munanga.

23
Apesar de esforços contínuos e históricos dos Movimentos
Negros, além de outras conquistas, como a Lei n° 10.639/
036 e a chamada Lei de Cotas, que vem formando cada vez
mais intelectuais negros e causando um deslocamento nos
centros de poder e saber, ainda há muito a se conquistar
e produzir para fazer justiça a essa memória. Obras como
O Legado Roubado, de George James, e Black Athena,
de Martin Bernal, procuraram elucidar questões sobre
esse mito de uma suposta “fundação da humanidade
e de seus conhecimentos” nascida na Grécia Antiga.
Eles mostram que isso é não somente uma falácia,
como os próprios gregos iam ao Kemet para aprender e,
sem sequer completar o tempo de estudo exigido para
tornar-se um sábio, retornavam ao seu país de origem e
fundavam suas escolas de pensamento ou apresentavam
“suas” teorias.

6
Texto da lei: “Altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’,
e dá outras providências.”.

24
Em vista dessa histórica série de violências, fico me
perguntando como seremos livres e amar nossa negritude
― e assim nos constituirmos enquanto seres políticos
de ação ― se não conhecemos nossa história? Por isso,
o lugar de importância e centralidade do Kemet deve
ser lembrado, e ainda há muito a se descortinar sobre
sua história. Assim como uma civilização irmã de Kemet
e que a pré-data, a Núbia, onde hoje estaria localizado
o Sudão. Temos ainda menos conhecimento sobre esse
povo que, até onde se sabe, é o mais antigo e longevo
da humanidade. Essas civilizações, Kemet e Núbia,
compartilhavam uma cultura próxima, com deidades,
faraós e o conhecimento científico, dentre eles, referências
abundantes ao estudo astronômico. Um manuscrito
encontrado na famosa biblioteca de Timbuktu, no Mali,
descrevia o conhecimento sobre os astros na arte e na
arquitetura do Kemet como algo onipresente. Segundo a
pesquisadora Ytasha Womack, “Pirâmides foram alocadas
para se alinhar com o movimento das constelações,
o nascer do sol do solstício e os pontos cardeais na
bússola. A estrela Sirius foi associada à inundação anual
do rio Nilo. Os egípcios tinham uma compreensão muito
sofisticada da astronomia que permeou a vida cotidiana”7.

7
WOMACK, 2014, p. 83-84.

25
Os povos dogon, que habitam o que hoje são os territórios
de Gana e Burkina Faso, também são reconhecidos pelos
avançados conhecimentos astronômicos, adquiridos
muito antes do Ocidente, que só veio a obtê-los a partir
da invenção dos telescópios. Ainda segundo Womack,
“Os dogon sabiam que a estrela Sirius tem duas estrelas
companheiras, a Digitaria (po tolo) e a Sorgo (emme ya
tolo). Eles sabiam que a Digitaria tem um ciclo orbital
de cinquenta anos, assim como estavam também
familiarizados com os anéis de Saturno e a lua de
Júpiter”8. Esse saber foi colocado em descrédito por muitos
anos, pois, aos olhos dos europeus, seria impossível
eles terem esse tipo de informação sem a “tecnologia
apropriada”, da mesma maneira que colocavam em dúvida
as tecnologias keméticas e atribuíam-nas até a encontros
com alienígenas, uma recorrente fala racista.

O intelectual e sacerdote dagara Malidoma Somé foi


levado à força por missionários jesuítas ainda criança,
recebendo uma educação cristã e eurocêntrica,
retornando ao seu povo 15 anos depois. Essa jornada
ele conta no seu livro Of Water and Spirit (1995), no qual
descreve como foi difícil se readaptar ao seu povo depois
de anos de doutrinação ocidental. Porém, em sua volta,

8
Ibidem, p. 85.

26
ele encontra muitos saberes e formas de pensar distintas,
e nota a grandeza dos mesmos, apesar da constante
desvalorização e apagamento do conhecimento ancestral
africano empreendido pela colonização9. No mesmo livro,
Somé destaca que não há uma palavra para “sobrenatural”
no povo dagara, e ainda que não há uma separação
nítida entre os conceitos de imaginação e realidade,
mas um estímulo ao poder do pensamento para
criar realidades10.

Nesse sentido, ele resolve fazer uma experiência: exibir


o filme Star Trek para os xamãs anciãos de sua aldeia.
Na descrição, Somé relata que os mesmos ficaram
confortáveis assistindo aquela narrativa, pois eles acredi-
tavam em seres mágicos (como Spock), teletransporte
e viagens à velocidade da luz, apenas achando um
pouco esquisitas as roupas e a espaçonave, já que
seria mais simples fazer tudo isso apenas com a mente.
O autor ainda nota a ironia de haver quem chame as
culturas africanas de primitivas e arcaicas, pois o futuro
imaginado pelo Ocidente é exatamente o presente vivido
pelos seus anciãos11.

9
ALMEIDA, 2020.
10
SOMÉ apud WOMACK, 2014, p. 79.
11
Ibidem, p. 79

27
Para além das estreitas relações com o cosmo de
sociedades como o Kemet e a etnia dogon, exemplos
mais conhecidos, a astrônoma Jarita Holbrook afirma
que muito ainda deve ser investigado em torno das
outras sociedades no continente africano12. Pesquisando
astronomia cultural, ela publicou um texto onde faz uma
análise da relação de quatro povos ao sul do Saara com
suas cosmologias a partir de peças de arte, sendo estes
as etnias fon, iorubá, bakuba e zulu. Holbrook também
mostra exemplos de outras, como os akan e os igbó.
Através do que chamou de arte celestial, mostra como
o conhecimento do céu, da Lua, do Sol, das estrelas,
estava presente no cotidiano dessas sociedades, como
na organização social das mesmas, em seus mitos de
criação, na agricultura, na navegação e na espiritualidade.
Os fon e os iorubás, etnias que vieram em números
consideráveis ao Brasil e influenciam até hoje a cultura
local, têm deuses do céu criadores do universo: dos
primeiros, Mawu-Lisa e/ou Nana-Buluku; dos segundos,
Olorum/Olodumarê.

12
HOLBROOK, 2015.

28
O pesquisador e músico soteropolitano, Tiganá Santana,
em sua tese13 que traduziu e interpretou a obra de Busenki
Fu-Kiau, um dos intelectuais mais importantes a escrever
sobre a filosofia bantu-kongo, nos mostra que existe um
mapa do universo, assim como a estreita relação do
mundano, do ser-humano, com o cosmos. Está tudo
interligado, o mundo físico e espiritual, assim como o que
está fora do nosso planeta. Kalunga é o oceano, de águas
infinitas que está em contato com o universo ― também é
um portal que separa o mundo dos vivos e mortos, assim
como um princípio de criação de tudo. O Sol é central
para esse entendimento de mundo, também somos Sol:
“O ser humano é um segundo sol nascendo e se pondo
na Terra”14.

Os bakongo, protagonistas no trabalho de Fu-Kiau,


também nos mostram que, desde os tempos mais remotos,
há uma história de pessoas negras olhando para o céu,
como já mencionado no início deste ensaio, em frase
proferida por Jarita Holbrook.

13
SANTANA, 2019.
14
Ibidem, 2019.

29
Ficção especulativa e futuros imaginados

A relação de povos negros com o cosmos remete a


períodos antigos da humanidade, algo ancestral em
nossas formas de pensamento, tendo havido um robusto
empreendimento de apagamento ou deslegitimação dessa
relação por parte do colonialismo. Nesse sentido, Ytasha
Womack, no intuito de fazer uma recuperação histórica
de bases ancestres para o afrofuturismo, nos mostra
que escritores negros na diáspora estadunidense já
trabalhavam com ficção especulativa e futuros imaginados
para tecerem críticas à sociedade contemporânea15.

Um dos autores citados pela pesquisadora é Martin Delany,


um conhecido ativista e abolicionista que foi escritor e é
considerado um dos precursores do nacionalismo negro.
Delany nasceu na Virgínia Ocidental, em 1812, filho de
um pai escravizado e de uma mãe livre, e foi um dos
primeiros afro-americanos a cursar medicina em Harvard,
tendo também atuado ao lado de Frederick Douglass
no jornal abolicionista North Star. Ainda no século XIX,
em 1859, lança a ficção especulativa Blake: or, the Huts

15
WOMACK, 2014.

30
of America16, onde o protagonista Blake convence os afro-
americanos a se levantarem contra os EUA e fundar uma
nação negra em Cuba17.

Começando a atuar no século XIX e tendo sua primeira


publicação, As Almas do Povo Negro (1903), influente até
hoje, W.E.B. Du Bois foi um importante intelectual e ativista.
No livro Darkwater (1920), está contida uma ficção científica
chamada The Comet. Nela, o protagonista Jim Davis tem
uma função subalternizada trabalhando no subsolo, um
lugar onde nenhum branco jamais entraria, segundo o
autor. Um cometa cai e destrói tudo na superfície, restando
Davis como único sobrevivente, até então. Depois, ele
vai dirigir seu próprio carro e comer em restaurantes
que eram destinados somente aos brancos, sentindo
liberdade e percebendo o lado positivo da catástrofe.
Durante a jornada, ele encontra outra sobrevivente, uma
mulher branca, que depois de apresentar resistência a
Davis, devido ao racismo, começa a se apaixonar pelo
protagonista e pela ideia de com ele repovoar a Terra.

16
Disponível em: < https://archive.org/details/blakeorhutsofame00dela/page/
n3/mode/2up > Acesso em: 14 fev. 2023
17
WOMACK, 2014, p. 122.

31
Prestes a consumarem o fato, uma equipe de resgate
aparece e logo a protagonista se reencontrará com seu
marido rico, ficando Davis no mesmo estrato social de
sempre, pois o cometa tinha destruído apenas a cidade
de Nova Iorque, enquanto o resto do mundo continuava
o mesmo. Du Bois pretendeu mostrar que apenas uma
catástrofe poderia igualar as relações raciais e que ela
representaria a possibilidade de uma nova vida para
pessoas negras. Claro que hoje poderíamos questionar a
escolha de uma mulher branca como par de Jim Davis,
porém, como um defensor da integração racial e tendo um
trabalho intelectual de tentativa de melhorar as condições
sociais dos afro-americanos, ele usa esse recurso
narrativo para tentar desconstruir o racismo estrutural.
E, assim como outros autores e autoras negras de ficção
especulativa, ele apresenta o interesse de “discutir ideias
sobre raça, recriar futuros com sociedades negras, e fazer
comentários mordazes sobre os tempos”18.

18
Ibidem, 2014, p. 142.

32
Estes dois exemplos, de Delany e Du Bois, mostram que
essa característica descrita na citação de Ytasha Womack,
hoje categorizada como afrofuturismo, já está presente
em trabalhos de autores negros, e que, mesmo não
sendo reconhecidos tanto quanto escritores de ficção,
e sim enquanto intelectuais e ativistas políticos, esse
recurso estético, de uma lado, e político, de outro, fazendo
o cruzamento entre recuperação histórica e futuros
imaginados, é algo recorrente no pensamento negro,
de forma transversal.

33
O afrofuturismo e a paisagem visionária

Como já citado, o termo afrofuturismo foi criado em 1994


pelo crítico cultural Mark Dery, no famoso texto Black to the
Future, em que entrevista autores negros sobre a relação
da ficção científica com a negritude: o escritor Samuel
R. Delany, o crítico cultural Greg Tate e a pesquisadora e
professora Tricia Rose. Para o autor, o termo versaria sobre:

Ficção especulativa que trata de temas afro-americanos


e aborda as preocupações afro-americanas no
contexto da tecnocultura do século XX ― e, de maneira
mais geral, a significação afro-americana que apropria
imagens de tecnologia e um futuro proteticamente
melhorado ― poderia, por falta de um termo melhor,
ser chamado de “Afrofuturismo”19.

A definição já foi devidamente ampliada por atravessar e


se expandir ao século XXI e estar presente em expressões
artísticas da diáspora e do continente africano, não apenas
nos EUA. Greg Tate afirma que muitas expressões artísticas
visuais negras remetem a uma “paisagem visionária”:

19
DERY, 1994, p. 180.

34
Portanto, se você observar o trabalho de artistas
visuais negros, de grafiteiros a Jean-Michel Basquiat,
sempre haverá essa inserção de figuras negras em
uma paisagem visionária, se não uma ficção científica
ou uma paisagem de fantasia. O salto imaginativo que
associamos à ficção científica, em termos de colocar
o humano em um ambiente alienígena e alienante, é
um gesto que aparece repetidamente no trabalho de
escritores negros e artistas visuais20.

Tate vai ampliar esse salto imaginativo através de um


comentário sobre a obra de Ishmael Reed, outro escritor
afrofuturista, indicando que esse impulso já estaria
presente na espiritualidade afrodiaspórica, como no
vodu, na macumba e santeria. Assim, Dery vai fazer uma
conexão sugestiva de tecnologia com ancestralidade,
colocando artefatos dos ritos de matriz africana como
meios de manipular uma realidade virtual:

Vale ressaltar, no contexto do que escolhi chamar de


“Afrofuturismo”, que os talismãs e o pó mágico do
Delta do blues, juntamente com os amuletos da sorte,
fetiches, efígies e outros dispositivos empregados
em sistemas de crenças sincréticas, como vodu,

20
Ibidem, 1994, p. 209-210.

35
hoodoo, santeria, mambo e macumba, funcionam de
maneira semelhante aos joysticks, Datagloves [luvas
virtuais], Waldos e Spaceballs usados para controlar
realidades virtuais. Jerome Rothenberg os chamaria
de tecnologias do sagrado21.

Certas imagéticas e filosofias engendradas pelo


afrofuturismo estariam então já presentes no imaginário
criado por negros e negras desde sempre, como viagens
espaciais e encontros alienígenas. A própria experiência
traumatizante da escravidão já teria sido a de uma abdução
alienígena, em que africanos foram levados a uma terra
estranha, de condição alienante, onde todos os traços
de cultura, costumes, histórias, nomes, línguas e relações
familiares foram forçosa e intencionalmente erradicados.

Portanto, as obras afrofuturistas, ao trazerem uma narrativa


de ficção científica, de viagens espaciais, estão refletindo
o estranhamento e a sensação de deslocamento comuns
às subjetividades afrodiaspóricas, gerando uma alienação,
que leva o britânico-ganense Kodwo Eshun a afirmar que
“Existência negra e ficção científica são uma e a mesma
coisa”22. Alienação, deslocamento e estranhamento, nos

21
Ibidem, 1994, p. 2010.
22
ESHUN, 2003, p. 298.

36
lembra o mesmo autor, já tinham sido teorizados por Du
Bois e sua dupla consciência desde o já citado As almas
do povo negro.

A arte afrodiaspórica, sendo feita a partir de um sujeito em


luta com estruturas de poder e que usa suas desvantagens
psicossociais como uma vantagem narrativa, pode
encorajar processos de desalienação23. Já colocamos que
a metáfora da extraterritorialidade é usada como parte de
um sentimento de deslocamento e abdução: os europeus
foram os ETs que abduziram os africanos, que tiveram
suas terras invadidas por navios, as naves ― navio ou nau
têm estreita relação semântica com nave. Aqui sofreram
várias experiências “científicas” em seus corpos: o estupro
que gerou miscigenação, as amputações, linchamentos,
chicotadas que eram aplicados e testados como limites
máximos de nossos corpos. E elas continuaram com a
medição de nossos crânios, a esterilização forçada de
mulheres negras ― práticas a serviço da eugenia ―, as
armas, os drones e helicópteros que atiram para nos matar.

Esse pesadelo sci-fi é muito real, e metáforas com o


espaço e a distância podem servir como reflexos dessa
realidade: “Deve ser entendido não tanto como escapismo,

23
Ibidem, 2003, p. 298.

37
mas como uma identificação com a potencialidade do
espaço e da distância dentro da zona de alta pressão
da perpétua hostilidade racial”24. Dessa forma, muitas
narrativas que serão identificadas enquanto afrofuturistas
utilizam-se de elementos da ficção científica para espelhar
um descontentamento e um sentimento de não pertença
que se carrega desde a abdução/alienação da escravidão.

Elementos que são vistos comumente e referenciados na


estética afrofuturista seriam as iconografias, as ciências, os
mitos e a espiritualidade do Kemet. Isso vai se dar por uma
questão política, que tenta reconstruir um passado histórico
que nos foi negado e que sofreu inúmeras tentativas de
negação e apagamento; confrontando a máxima hegeliana
― e por que não, de toda uma história do pensamento
ocidental? ― de uma África sem história e incivilizada.
E também, como vai sugerir Greg Tate, afirmando que o
impulso do salto imaginativo presente em afrofuturismos
vai ser encontrado desde o Kemet:

Vejo a ficção científica (fc) como uma linha de


investigação filosófica e especulação tecnológica
que começa com os egípcios e suas meditações
incrivelmente detalhadas sobre a vida após a morte.

24
Ibidem, 2003, p. 299.

38
FC representa um tipo de codificação racionalista,
positivista e científica desse impulso, mas ainda é
proveniente de um desejo humano básico de conhecer
o incognoscível, e para muitos escritores negros, esse
desejo de conhecer o incognoscível se direciona para
o autoconhecimento. Conhecer-se como uma pessoa
negra ― histórica, espiritual e culturalmente ― não é
algo que lhe é dado, institucionalmente; é uma jornada
árdua que deve ser realizada pelo indivíduo25 .

Para Eshun, o afrofuturismo também é um resultado e


até mesmo parte direta de movimentos sociais e de
libertação26. O autor vai citar como exemplos “movimentos
político-espirituais”, como a Escatologia Cristã Negra e o
Black Power, até “tradições político-esotéricas”, em que ele
inclui a Nação do Islã, a Egiptologia, a cosmologia Dogon
e as teses do Stolen Legacy (Legado Roubado):

A escatologia da Nação do Islã combinou um relato


racializado de origem humana com uma teoria
catastrófica do tempo. Ogotomelli, o místico Dogon,
forneceu um conhecimento astronômico da Estrela
do Cão “Sirius B”, elaborada pelos etnógrafos

25
DERY, 1994, p. 210.
26
ESHUN, 2003, p. 296.

39
franceses Marcel Griaule e Germaine Dieterlen, que
demonstraram um conhecimento científico africano
compensatório e superior. O desejo da Egiptologia de
recuperar as glórias perdidas de um passado africano
pré-industrial foi animado por um autoritarismo
utópico. Antes de Black Athena, de Martin Bernal
(1988), o Stolen Legacy, de George G.M. James (1989),
enfatizou simultaneamente as conspirações brancas
que encobriam o legado roubado da ciência africana,
revertendo o pensamento hegeliano ao insistir na
civilização africana original27.

Kodwo Eshun vai continuar sua análise sobre ligações entre


movimentos raciais, religião e teorias sobre a recuperação
histórica de um passado africano científico tecnológico,
ao mesmo tempo que antecipa que o afrofuturismo e
seus antecedentes não são “inocentemente celebrativos”.
Essas “futurologias vernaculares”, diz, são outras formas
de interpretar o mundo e que vão desafiar as visões
dominantes estabelecidas e assim produzir um distúrbio
temporal na narrativa dos vencedores.

Ao criar complicações temporais e episódios


anacrônicos que perturbam o tempo linear do

27
Ibidem, 2003, p. 296-297.

40
progresso, esses futurismos ajustam a lógica
temporal que condenou os negros à pré-história.
Cronopoliticamente, essas historicidades revisionistas
podem ser entendidas como uma série de futuros
concorrentes poderosos que se infiltram no presente
em diferentes graus28.

O autor ainda sustenta a tese de que essa qualidade


revisionista está presente também em outras esferas
da cultura negra, como na música e em intelectuais
contemporâneos, e o faz ao lembrar que, na entrevista
concedida a Paul Gilroy, a escritora Toni Morrison vai
destruir a concepção padrão de modernidade,
normalmente ligada à filosofia e ao conhecimento e
desarticulada de noções como brutalidade e violência.
Ela afirma que muitos problemas que viriam a ser
enfrentados pelos seres considerados “modernos”
já eram experienciados por pessoas negras desde
a escravidão.

[...] a vida moderna começa com a escravidão…


Do ponto de vista das mulheres, em termos de
enfrentar os problemas que o mundo enfrenta agora,
as mulheres negras tiveram de lidar com problemas pós-

28
Ibidem, 2003, p. 297

41
modernos no século XIX e antes. Essas coisas tiveram
de ser abordadas pelo povo negro muito tempo antes:
certos tipos de dissolução, a perda e a necessidade
de construir certos tipos de estabilidade. Certos tipos
de loucura. [...] Essas estratégias de sobrevivência
constituíam a pessoa verdadeiramente moderna.
São uma resposta a fenômenos ocidentais predatórios.
Você pode chamar isto de ideologia e de economia,
mas trata-se de uma patologia. A escravidão dividiu o
mundo ao meio, ela o dividiu em todos os sentidos.
Ela dividiu a Europa. Ela fez deles alguma outra
coisa, ela fez deles senhores de escravos, ela os
enlouqueceu. Não se pode fazer isso durante centenas
de anos sem que isto cobre algum tributo. Eles tiveram
de desumanizar, não só os escravos, mas a si mesmos.
Eles tiveram de reconstruir tudo a fim de fazer este
sistema parecer verdadeiro. Isto tornou tudo possível
na Segunda Guerra Mundial. Tornou necessária a
Primeira Guerra Mundial. Racismo é a palavra que
empregamos para abarcar tudo isto29.

O uso de imagens do passado, a qualidade revisionista


da história africana ou a conexão ancestral, que são
referenciais importantes na arte afrofuturista, poderiam

29
MORRISON apud GILROY, 2001, p. 413.

42
ser encaradas como um paradoxo, ou como se a mesma
carregasse a contradição em seu cerne. Essa foi uma
observação feita por Mark Dery, mas que Greg Tate logo
desconstruiu, utilizando a cultura hip-hop como exemplo,
quando indagado se de fato o afrofuturismo seria
contraditório nesse aspecto:

Não, porque você pode olhar para trás e pensar


para frente ao mesmo tempo. A abordagem de tudo
no hip-hop é sempre com um senso de brincadeira,
de modo que até o culto aos antepassados está
sujeito à irreverência. Ironicamente, uma das coisas
que permitiu à cultura negra sobreviver é sua
capacidade de operar de maneira iconoclasta em
relação ao passado; as armadilhas da tradição nunca
podem atrapalhar a inovação e a improvisação. Você
também deve se lembrar que a reverência negra pelo
passado é uma reverência por um paraíso perdido.
Não é um passado que alguém conhece por
experiência própria, mas um passado colhido de
discussões, de livros de estudiosos como o Dr. Ben
Yochanan, que dedicaram suas vidas à pesquisa
das glórias científicas das civilizações negras30.

30
TATE in DERY, 1994, p. 210.

43
A música negra da diáspora

Aqui parece um bom momento para começarmos a falar


de música, pegando a deixa de Tate sobre aspectos
filosóficos do rap. No texto de Mark Dery31, o autor também
cita exemplos de artistas, bandas e discos que estariam
convergindo com uma estética afrofuturista, entre os
quais: Herbie Hancock, Jimi Hendrix, Bernie Worrell e a
trinca canônica composta pelo jazz de Sun Ra, o funk de
George Clinton e seus grupos Parliament e Funkadelic,
assim como o dub-reggae de Lee “Scratch” Perry. Também
é válido ressaltar que o próprio título do ensaio, Black to
the Future, foi tirado de uma música homônima do rapper
Def Jef, lançada em 1990.

Esses três últimos artistas ― Sun Ra, George Clinton e


Lee Perry ― passaram a figurar como uma trindade quase
inquestionável dentro da literatura sobre a temática, fato
que, sem dúvida, é sustentado pelos conteúdos sonoro,
lírico e visual construídos ao longo de suas carreiras,
como também pela legitimação acadêmica e artística de
suas obras. A primeira seria o ensaio Brothers from Another

31
DERY, 1994.

44
Planet: The Space Madness of Lee “Scratch” Perry, Sun Ra,
and George Clinton, escrito por John Corbett e lançado no
mesmo ano da obra de Dery, em 1994. Segundo Corbett,
os três artistas foram criadores de mitos e universos;
partilhavam a adoção de alter egos e outras identidades;
usavam roupas e fantasias coloridas nada convencionais;
exploraram como mestres em seus gêneros musicais
o uso de tecnologia, de criatividade e experimentação.
“Perry, Ra e Clinton levam a sério a iconografia do espaço
e a transformam em uma plataforma para subversão
lúdica, imaginando uma zona produtiva em grande parte
exterior à ideologia dominante”32.

Corbett faz uma metáfora interessante: ele relaciona a


própria característica de inovação da música negra com
espaço sideral, loucura e a qualidade extraterrestre;
enquanto a Terra seria a tradição, algo da ordem do
normal, do imutável e, portanto, conservador. Ou seja,
a simbologia da exploração espacial e do encontro com
o desconhecido, desenvolvida no trabalho desses músicos,
seriam exemplos contundentes da inovação dentro
da música negra da diáspora.

32
CORBETT, 1994, p. 7-8.

45
A loucura é explicada como um vocabulário comum na
música negra estadunidense, desde os primeiros blues
gravados, e que a princípio relacionavam-se ao estado
alterado da mente, causado por substâncias ou pelo
amor. O uso da loucura como figura de linguagem, para
Corbett, está também relacionado a uma fuga provisória,
em função da pressão sofrida por pessoas negras dentro
de uma sociedade racista. E, por último, a loucura como
própria negação da razão eurocêntrica imposta a pessoas
negras desde a escravidão. A qualidade extraterrestre se
uniria a estes conceitos mais amplos: da criação de mitos
e universos alternativos; da condição alienante imposta na
diáspora; e da possibilidade de outros mundos e vivências
para as pessoas negras, fora do jugo colonialista.

Corbett ainda vai reunir outras características compartilha-


das entre Ra, Clinton e Perry, e que, apesar de
independentes entre si ― tocavam diferentes gêneros,
tinham diferentes públicos e relacionavam-se cada um
de um jeito com a indústria cultural ―, desenvolveram
experiências semelhantes nas iconografias espaciais e
experimentações sônicas33.

33
Ibidem, 1994, p. 11.

46
A segunda legitimação, a artística, liga-se diretamente aos
textos que acabamos de apresentar. Seguindo as pistas
deixadas por Corbett, surge o documentário The Last
Angel of History (1995)34, feito pelo coletivo londrino Black
Audio Film Collective. Para Eshun, o “filme-ensaio” dirigido
pelo ganês John Akomfrah “continua sendo a exposição
mais elaborada sobre a convergência de ideias que é o
Afrofuturismo”35. As obras de Ra, Clinton e Perry e suas
similaridades são abordadas através do personagem Data
Thief (Ladrão de Dados), um viajante do tempo em busca
de uma tecnologia secreta negra. A partir dessa narrativa,
o filme
[...] criou uma rede de ligações entre música, espaço,
futurologia e diáspora. Os processos sônicos africanos
são aqui reconcebidos como telecomunicações,
como componentes distribuídos de um código para
uma tecnologia secreta negra que é a chave para o
futuro diaspórico. A noção de uma tecnologia secreta
negra permite que o afrofuturismo atinja um ponto de
aceleração especulativa36.

34
Still do filme. Disponível em < https://bit.ly/thelastangelpic > Acesso em:
15 fev. 2023.
35
ESHUN, 2003, p. 295.
36
Ibidem, 2003, p. 295.

47
Antes de apresentar o protagonista, o filme começa citando
a lenda do bluesman Robert Johnson, que teria vendido
sua alma ao diabo numa encruzilhada, no Sul dos EUA, em
troca de poder tocar o violão como ninguém. Essa história,
que ainda é contada à exaustão, deve ser questionada por
ser uma narrativa branca colonial, pois a encruzilhada é um
lugar de extrema importância em filosofias e cosmologias
africanas diversas. Para os iorubás e os fons, esta seria o
local primordial de Exu e Legba, orixá/vodun poderosos,
deidades das trocas, da comunicação, do poder e do axé, e
que foram demonizados pelo cristianismo. Não por acaso,
os Congo-Angola também consideravam este espaço
como algo especial, já que também tinham um Nkisi37
que o habitava: Pambu-Njila, ou o senhor dos caminhos,
que, depois de um tempo, transmutou-se em Pomba-Gira,
no Brasil.

Em Last Angel o blues é denominado como uma tecnologia


negra secreta e que, a partir dele, teriam surgido o jazz,
o soul, o hip-hop e o R&B. Dessa forma, se Data Thief,
que está a 200 anos no futuro, conseguir achar essas
encruzilhadas e fizer uma escavação arqueológica, ele
poderá achar esses “tecno-fósseis” e quebrar o código

37
Uma entidade espiritual que não é a mesma coisa, mas, para efeito didático,
poderia ser comparado com Orixá ou Vodun.

48
do segredo e garantir seu futuro. Assim, mais uma vez o
cronótopo da encruzilhada aparece numa narrativa negra:
uma imbricação de trocas, comunicações e refertilizações
da afrodiáspora e, por isso, mais significativo que a ideia
de caminho ou estrada.

O filme é um híbrido de narrativa ficcional com


documentário. Além da missão do protagonista, ele conta
com entrevistas com os já citados John Corbett e George
Clinton, e ainda com Samuel R. Delany, Octavia E. Butler,
Nichelle Nichols, Juan Atkins, DJ Spooky, Goldie, Ishmael
Reed, Greg Tate, Kodwo Eshun, entre outros. E, logo
no início da película, o narrador cita os outros referenciais:
“No Novo Mundo, o Data Thief encontra dois quartos,
marcados como ‘Lee Perry Black Arc’ e ‘Sun Ra Arkestra”’.
Black Arc era o nome do estúdio e posteriormente do
selo por meio do qual Perry conduzia suas produções e
experimentações sonoras; enquanto que Arkestra era
o nome do conjunto que acompanhava Sun Ra. E, na
sequência, vai fazer referência ao Mothership Connection,
um álbum do Parliament.

A Nave Mãe, a Arca Negra, e a Arkestra ― essa também


derivada da palavra arca (ark) ―, meios de transporte
derivados de antigos mitos e profecias, assim como de
ficção científica, constituem-se como outro ponto de

49
encontro relevante entre as narrativas desses músicos.
Precisaríamos de mais tempo para nos voltarmos aos
detalhes de cada um desses músicos, ou de tantos outros
que também foram igualmente importantes na criação
de uma estética afrofuturista. Porém, por ser quase uma
unanimidade em relação ao pioneirismo nessa estética, se
faz necessário falar um pouco mais de Sun Ra.

Isso porque, apesar de hoje em dia existirem muitas


referências de afrofuturismo nos livros de ficção, qua-
drinhos, na moda e nas artes plásticas, quem primeiro
estruturou o que realmente se denomina como arte
afrofuturista, segundo Kodwo Eshun, foi o jazzista Sun Ra.
Ele comenta que Ra ajudou a estabelecer essas bases
ainda na década de 1950, equilibrando visões de uma
África pré-industrial e de uma África científica, onde o
jazzista criou sua própria cosmologia38. O compositor
e bandleader da Arkestra dizia que era de Saturno, usava
roupas com referências egípcias e espaciais e tocava um
jazz que cruzava o standard com o avant-garde, uma
música experimental que unia referências desde o
ragtime, swing e o bebop até o free jazz e o fusion. Também
foi um dos primeiros a usar sintetizadores no jazz, fato
que corrobora o conteúdo inovador de sua arte.

38
ESHUN, 2003.

50
Cronopolíticas Afrossônicas

Apesar do pioneirismo e importância de Sun Ra para a


própria definição do que seria afrofuturismo, a música,
ou o aspecto sônico deste evento cultural, em alguns
momentos, parecia estar sendo colocado em segundo
plano. Isso levou o músico e pesquisador George E.
Lewis, em seu texto After Afrofuturism (2008), a tentar
redimensionar a importância central do som no debate
com uma pergunta chave: “O que o som ― não a roupa,
a iconografia visual, os enigmas espirituosos ou os títulos
sugestivos das músicas ― o que o som pode nos dizer
sobre o Afrofuturo?”39. Como descreveu o pesquisador
Erik Steinskog, a pergunta de Lewis poderia levar a uma
dicotomia, o som de um lado e, de outro, todo o resto;
porém, ele mesmo acredita que a preocupação principal
seria não perder o foco da centralidade sonora40.

George E. Lewis, por outro lado, também traz um


sugestivo tópico para abrir uma discussão mais ampla,
quando começa a questionar que a relação de uma parte
de afrodiaspóricos com a tecnologia não está ligada

39
LEWIS, 2008, p. 141, grifo do autor.
40
STEINSKOG, 2018.

51
diretamente à ficção científica. Para exemplificar, ele fala
que “poder-se-ia interpretar a Santeria como um tipo de
tecnologia desenvolvida para facilitar a comunicação
com os poderes superiores, e proporcionar o Afrofuturo
dos neo-iorubanos”41. E completa afirmando que a
dimensão espiritual não pode ser separada da relação
de pessoas negras com a tecnologia. Eu acredito ser de
extrema importância dilatar os significados e sentidos do
afrofuturismo, e Lewis avança propondo a tríade negritude,
som e tecnologia, que apresenta bastante potencialidade
para o estudo do tema.

Um dos autores que já vinha discutindo ideias neste campo,


também nos anos 1990, apesar de não ter feito inicialmente
o uso do termo, foi o já citado Kodwo Eshun. Seu livro More
Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction (1998),
já introduzia seu importante conceito de ficção sônica
desde o título. Aqui é enfatizado que o som também tem
o potencial de especular/ficcionalizar, retomando essa
importância no seu texto de 2003, Further Considerations
on Afrofuturism, ao colocar que é “difícil conceber o
Afrofuturismo sem um lugar para o processo sônico em
seus modos vernaculares, especulativos e sincopados”.

41
LEWIS, 2008, p. 142.

52
O autor define esse conceito trazendo elementos diversos
para compor a experiência auditiva

Ficção Sônica é a embalagem que funciona pela


transferência de sensações de fora para dentro.
A capa da frente, a capa de trás, o encarte, o interior
do encarte, a própria capa do disco, a gravadora,
a capa do cd, a ficha técnica, o próprio cd; tudo isso
são superfícies para conceitos, plataformas-textura
para FonoFicções (PhonoFictions). O conceito retro-
alimenta a sensação, atuando como um motor de
subjetividade, uma máquina de subjetividade que
povoa o mundo com alucinações sonoras42.

Na época, vivíamos ainda a preponderância absoluta


do CD como principal meio para a experiência auditiva,
nos termos de música gravada, consumo e mercado.
Mas, levando mais adiante o que está nas entrelinhas,
Eshun coloca a possibilidade de uma experiência ampliada
a partir de elementos que não só estritamente sonoros ―
o título das canções ou dos álbuns, a comunicação visual
dos artistas por diferentes meios, as letras e outros aspectos
do todo ―, mas que ajudariam a contar uma história.

42
ESHUN, 1998, p. 121.

53
Percebemos, assim, que as visões de Eshun e Lewis
divergem, no que tange à análise musical, entretanto
os dois mantêm a música/som como protagonistas.
Compreendendo a proposição de Lewis, porém tendendo
mais a concordar com Eshun, pretende-se propor uma
adição à tríade do primeiro: negritude, som, tecnologia e
ficção, de modo a expandirmos os termos das análises.
Isso é algo que é proposto por Steinskog em seu
livro Afrofuturism and Black Sound Studies: Culture,
Technology and Things to Come (2018), um importante
texto voltado inteiramente para a música/som. Ele propõe
interligar os estudos do afrofuturismo com um campo
que vem se materializando, que, em tradução livre, seria
Estudos do Som Negro.

Antes de pormenorizar do que se trata esse campo de


estudo, explicaremos o subtítulo da obra, que é uma
citação de Mark Dery, o qual, no ensaio já comentado, vai
expandir a definição de afrofuturismo: “Mas as vozes afro-
americanas têm outras histórias para contar sobre cultura,
tecnologia e o que está por vir. Se existe um afrofuturismo,
ele deve ser buscado em lugares improváveis, num

54
agrupamento43 de pontos distantes”44. Como Steinskog
observa, existe uma potência no termo “outras histórias”,
que estaria ligada à ideia de uma contra-história em
relação às narrativas coloniais que tentaram se colocar
como oficiais. Há uma ponte com O Atlântico Negro de
Paul Gilroy e sua proposição de culturas afrodiaspóricas
enquanto “contra-cultura da modernidade”45.

Black Sound Studies foi um termo cunhado por Tavia


Nyong’o no texto Afro-philo-sonic Fictions: Black Sound
Studies after the Millenium (2014), em que faz a resenha
dos livros de Alexander Weheliye, Phonographies: Grooves
in Sonic Afro-Modernity (2005); e de Julian Henriques,
Sonic Bodies: Reggae Sound Systems, Performance
Techniques, and Ways of Knowing (2011). Erik Steinskog
enxerga muitas aproximações destas obras com o
que vinha sendo discutido sobre afrofuturismo e seu
potencial de poder expandir a questão sonora dentro
desses estudos46. Weheliye e Henriques trabalham de
formas diferentes, porém dentro da tríade negritude-

43
Aqui ele usa o termo constellated, que significa agrupado, reunido, mas com
o intuito de fazer referência à ideia de constelação, de galáxias.
44
DERY, 1994, p. 182.
45
GILROY, 2001.
46
STEINSKOG, 2018.

55
som-tecnologia, que move o texto de Steinskog. Aqui, nos
interessa, mais do que detalhar seus aspectos de ligação,
a abertura que oferece à reflexão da tríade.

Tavia Nyong’o começa seu texto afirmando que “A música


há muito tem sido entendida como central para a
experiência vivida de pessoas negras”47. Alguns teóricos
negros, de diferentes campos, já vêm trabalhando com
essa afirmação há bastante tempo. Um caso exemplar é
o de Paul Gilroy (2001), que teoriza sobre isso colocando
a falta de acesso de escravizados ao lugar central da
literatura no mundo ocidental, sendo excluídos dos
meios de alfabetização, como principal impulsionador da
importância do som e da música como meio de expressão
e comunicação. Para Steinskog (2018), a discussão gira em
torno de como a música ou o som podem ser considerados
também meios de comunicação para além dos meios
tradicionais, podendo expandir esse entendimento e não
apenas ficar no dualismo do “ou/ou”.

47
NYONG’O, 2014, p. 173.

56
Apesar de abrir uma hipótese instigante, Gilroy não
aborda o que outros pesquisadores, especialmente na
área da musicologia africana e afrodiaspórica, já vinham
trazendo com certa anterioridade, em relação à música
também ser comunicação em diferentes culturas africanas.
Primeiramente, devemos lembrar que, em África, apesar
de muitas culturas apresentarem sistemas de escrita,
a oralidade nunca deixou de ser a principal forma de
difusão do conhecimento. Isto, por si, já seria um motivo
de defesa da principal hipótese do mundo Atlântico
negro48 , que versa sobre uma cultura negra transnacional
profundamente interconectada.

A música, entre suas outras prerrogativas, sendo utilizada


nas mais diversas atividades, trabalho, ritos, espiritualidade,
entretenimento, entre outras, também era meio de
comunicação. Ou mais, a música africana é oralidade,
como ilustra a discussão apresentada por Samuel A.
Floyd Jr. sobre a música negra, trazendo autores como

48
“[...] formas culturais estereofônicas, bilíngues ou bifocais originadas pelos
― mas não mais propriedade exclusiva dos ― negros dispersos nas estruturas
de sentimento, produção, comunicação e memória, a que tenho chamado
heuristicamente mundo atlântico negro.” (GILROY, 2001, p. 35).

57
Francis Bebey e Olly Wilson: “Bebey ([1969] 1975, p. 115),
por exemplo, nos diz que na música africana, o ‘principal
motivo dos instrumentos é reconstituir a linguagem
falada’”; complementando, mais à frente: “Wilson (1992a,
p. 330) sustenta que ‘o repertório pré-existente de padrões
de percussão usado por mestres em muitas culturas
africanas é baseado em padrões musicais derivados de
gêneros selecionados de poesia oral’”49.

Essas colocações demonstram, por um lado, a potência da


oralidade para as culturas africanas e, por outro, que essa
conexão não é casual, porque muitas línguas africanas
eram tonais e, assim, os instrumentos de percussão
também teriam a função de comunicação, de passar
mensagens, um media ancestral africano:

Um maior conhecimento das relações entre a fala


e a música no contexto das sociedades africanas
certamente ajudariam a iluminar o papel social das
musicalidades, certamente recairiam sobre a relação
entre os sons dos tambores que imitam a fala, como
também dos demais instrumentos musicais e suas
possíveis vinculações com a linguagem oral50.

49
FLOYD JR., 1995, p. 28.
50
SILVA, 2005, p. 336.

58
“Salloma” Salomão Silva ainda vai citar conhecidos
tambores mensageiros como os “Dondom (também
chamados de Tama) famosos e esquivos tambores
falantes, cujos recursos permitem reproduzir as
alturas dos sons da fala”51; e também “os txinguvos
ou chinguvo, tambores-xilofones dos povos tshokwes
de Angola são tanto ‘mensageiros’ quanto tambores
convencionais utilizados na vida ordinária e em
atividades religiosas”52. Como demonstra Silva, apesar
de extremamente divulgado o caráter oral da cultura
africana, ainda há muito a ser explorado em seus diversos
outros aspectos, principalmente na conjunção com línguas
tonais e música.

No entanto, isso é apenas uma das muitas camadas de


significação que poderíamos explorar dentro do binômio
música/negritude. Uma que me parece muito sugestiva,
nos dando um significado profundo dessa relação, seria a
discussão sobre cosmopercepção sugerida por Oyèrónke.
Oyěwùmí (2021). Falando sobre os iorubás, mas também
estendendo a outros povos africanos, a autora, ao fazer
uma distinção entre África e Ocidente, na maneira em que
estes percebem o mundo, coloca que há uma primazia da

51
Ibidem.
52
Ibidem.

59
visão na segunda, enquanto que, na primeira, a audição
seria a mais relevante.

Uma estrutura comparativa de pesquisa revela que


uma diferença importante deriva de qual dos sentidos
é privilegiado na apreensão da realidade ― a visão,
no Ocidente, e uma multiplicidade de sentidos
ancorados na audição, na Iorubalândia. A tonalidade
da língua iorubá predispõe a pessoa a uma apreensão
da realidade que não pode marginalizar o auditivo.
Consequentemente, em relação às sociedades
ocidentais, há uma necessidade mais forte de uma
contextualização mais ampla para dar sentido ao
mundo. Por exemplo, a divinação Ifá, que também
é um sistema de conhecimento na Iorubalândia,
tem componentes tanto visuais quanto orais. Mais
fundamentalmente, a distinção entre os povos iorubás
e o Ocidente, simbolizada pelo foco em diferentes
sentidos na apreensão da realidade, envolve mais do
que a percepção ― para os povos iorubás e, na verdade,
para muitas outras sociedades africanas, trata-se de
“uma presença particular no mundo ― um mundo
concebido como um todo, no qual todas as coisas
estão ligadas”. Refere-se aos muitos mundos que os
seres humanos habitam; não privilegia o mundo físico
sobre o metafísico. Um foco na visão como o principal

60
modo de compreender a realidade eleva o que pode
ser visto sobre o que não é aparente aos olhos; perde
os outros níveis e as nuances da existência53.

O que Oyěwùmí nos ensina é algo que estava presente


nas hipóteses de autores dos Estudos Culturais, como
Stuart Hall e Paul Gilroy, e destas obras mais recentes,
que também se relacionam aos primeiros, chamados por
Nyong’o de Estudos do Som Negro, que é a prevalência
de uma cultura oral, advinda de uma cosmopercepção
mais ligada ao sentido auditivo. África e suas diásporas
articulam-se culturalmente de forma sônica, diferentemente
do ocularcentrismo ocidental. Isso move nossas epistemes,
mas não apenas, para serem encontradas também nas
sonoridades, ao mesmo tempo que atesta uma ignorância
histórica dos europeus em relação a este fato.

Segundo Nyong’o (2014), o que une as obras de Weheliye


e Henriques é essa descentralização da forma de saber a
partir da visualidade/letras e o foco no aspecto sonoro das
culturas afrodiaspóricas. Mais especificamente, ele cita a
frequência grave como catalisadora deste elo comum, pois
os dois autores partem da importância que Ralph Ellison
deu ao grave no seu romance O Homem Invisível. Na obra,

53
OYĚWÙMÍ, 2021, p. 57-58.

61
de forma simbólica, ele exemplifica como o som é influente
na cultura negra, sendo articulado até mesmo na literatura:
“A tradição radical da comunicação negra nas frequências
graves é o que permite a Weheliye e Henriques a desafiar
o analfabetismo epistêmico ocidental no campo do som
negro”54.

Rafael Galante, em seu curso sobre a influência de


culturas centro-africanas no Brasil, explica como a
frequência é importante para a música africana, tendo
pormenorizado o grave e sua centralidade como um dos
motivos organizadores destas sonoridades. Dependendo
do nível em que é tocada, esta frequência pode nem ser
escutada pelo ouvido humano, mas será sentida pelo
nosso corpo, ou seja, ela teria o poder de colocar o nosso
corpo em movimento. Ao ressoar em nossos corpos, o
grave apresenta essa qualidade extrassensorial, fazendo
com que o sintamos, quase uma materialização do som,
deslocando-o “apenas” da dimensão auditiva, para a tátil.
Isso também implicaria em uma ressignificação do lugar da
música ocidental como da ordem do ouvido “pensante”,
da contemplação. Esta qualidade também corrobora a
fala de Oyěwùmí sobre a expansão dos sentidos também
atingir metafisicamente o que não pode ser visto.

54
NYONG’O, 2014, p. 174.

62
O grave vai interferir corporalmente em nós, mesmo que
não o queiramos, colocando até mesmo os brancos para
dançar, uma coisa “diabólica”, como descreveram tantos
colonizadores. Tal frequência está participando ativamente
de processos sociais e é uma tecnologia africana que é
utilizada em diferentes instâncias. Poderíamos exemplificar
isto com a maneira como essa é aplicada no contexto
da espiritualidade e medicina, já que a frequência grave
é capaz de induzir ao transe, que é um fator de cura e
comunicação com a ancestralidade.

Essa materialidade sonora abre espaço para um


entendimento de mundo por meio do som e da música,
assim como para a percepção de uma episteme acústica.
Discutir o grave também abre prerrogativas para pensarmos
em termos de vibração. O personagem de Ellison, em
O Homem Invisível, quer sentir a vibração da música de
Louis Armstrong no seu corpo e imergir no som55. Entrando
no mundo de Sun Ra, Erik Steinskog vai discutir sobre
vibrações e, mais adiante, chegará à conclusão de que o
jazzista é imprescindível para um sistema de pensamento
afrofuturista.

55
STEINSKOG, 2018, p. 112.

63
No filme Space is The Place (1972), Sun Ra é retratado em
diferentes tempos e espaços: Chicago, na década de 1940,
Oakland na década de 1970 e em um diferente planeta,
no futuro. Citando uma passagem do longa-metragem,
Steinskog traz uma concepção de vibração no pensamento
de Ra, que vai além do conhecimento físico de que som
é vibração56. Na narração, Sun Ra afirma que a música e
a vibração são diferentes nesse planeta, onde ali poderia
ser assentada uma colônia de pessoas negras para ver o
que eles poderiam fazer nesse novo lugar, sem nenhuma
pessoa branca interferindo. A vida neste outro planeta iria
afetar positivamente suas vibrações e, trabalhando nesse
destino alternativo, estabelece oficialmente o fim do tempo.
Trabalhando no outro lado do tempo, poderia transportar
toda uma comunidade através da música.

A música seria um meio de transporte, uma arca (Arkestra),


em que a vibração é um componente importante, no
sentido simbólico, para além de uma experiência no nível
individual, de transporte para outros estados mentais,
mas no sentido coletivo. É quase impossível não associar
essa passagem de Ra ao pensamento de Martin Delany
e Marcus Garvey e seu desdobramento no nacionalismo

56
Ibidem, 2018, p. 114.

64
negro, onde um retorno à África, ou fundação de colônias
de pessoas negras fora dos EUA fora articulado. Sun Ra
estava articulando uma metafísica, uma cosmologia, uma
ficção sonora através da música, abrindo possibilidades
para o fantástico por meio do sônico. A música já era
pensada como tecnologia futurista, sendo a diferença
entre as vibrações responsável pelo bem-estar de uma
comunidade negra, estando ligada à ideia de ambiente57.

Para Steinskog, essa abertura para um imaginário


sonoro, vibracional, está ligado ao que Ra desenvolveu
como MythScience ou Astro Black Mythology. Este,
como mencionado por Eshun (1998), é um campo de
conhecimento criado pelo músico, em que mito e ciência
não são separados, desafiando, como uma contracultura,
o academicismo eurocentrado. História do Kemet,
astronomia, astrologia, cosmologias, mitos e relações
raciais, com componentes especulativos, estariam reunidos
nesse sistema de pensamento. Daí também surge a noção
de cientistas do tom (tone scientists) que ajuda a entender
essas articulações. Quando em depoimento a Szwed58,
o músico da Arkestra, James Jacson, descreve o que
seria isso:

57
Ibidem, 2018, p. 116.
58
SZWED apud STEINSKOG, 2018, p. 117

65
Uma vez ele me disse: “Jacson, toque todas as coisas
que você não conhece! Você ficará surpreso com o
que não sabe. Existe uma infinidade do que você não
sabe” Outra vez ele disse: “Você sabe quantas notas
existem entre C e D? Se você lidar com esses tons,
poderá tocar a natureza, e a natureza não conhece as
notas. É por isso que as religiões têm sinos, que tocam
todos os tons transitórios. Vocês não são músicos,
vocês são cientistas do tom”.

Aqui Sun Ra abre possibilidades quase infinitas para o


som, para a experimentação, desafiando sistemas
baseados em notação musical, como o europeu.
Ao mesmo tempo, ele abre espaço para um real
entendimento cosmológico, unindo o executor e sua
música com a natureza, ou, mais abrangentemente,
com o cosmos. Essas duas palavras, natureza e
cosmos, nos levam a noções de ambiente e atmosfera,
ao passo que infere em vibração e propagação
sonora, “como o espaço onde os sons são ouvidos,
o espaço onde os sons viajam”59.

59
STEINSKOG, 2018, p. 118-119.

66
A partir daí, podemos também trazer outro aspecto
interessante da música e som como propulsores de viagens
no tempo e espaço, que é a noção de eco. Articulando
a MythScience de Ra com o conceito de changing same
de Amiri Baraka, Steinskog vai desenvolver o que chamou
de “viagem sônica no tempo”. Mais adiante traremos essa
discussão, porém, já neste momento se faz oportuno
mencionar o que ele falou sobre o eco:

A noção de eco não é semelhante à noção de viagem


sônica no tempo, mas há algumas comparações.
O eco é um efeito sonoro posterior, o som voltando uma
segunda vez. É, portanto, encontrado no tempo (como
som em um ponto posterior no tempo em relação à
primeira vez que soou), mas esse tempo depende do
espaço (o espaço através do qual o som viaja). Aqui,
então, viagens no tempo e viagens espaciais se cruzam
no domínio sônico. Onde o eco é um fenômeno sônico
no tempo e no espaço, uma dimensão indiscutivelmente
mais mental da viagem sônica no tempo é encontrada
em memórias e profecias60.

60
Ibidem, 2018, p. 70.

67
Esse vocabulário sonoro é levado a outros patamares;
quando a serviço do imaginário, abre possibilidades de
se pensar uma cosmopercepção sônica e relacioná-
la aos seus usos dentro de uma estética afrofuturista.
Aqui poderíamos iniciar uma hipótese de que a música
afrofuturista estaria rearticulando esta cosmopercepção
sônica e reafirmando o locus imprescindível da música em
sociedades negras.

Outra forma de abordar a prevalência da música/som


para culturas negras, além da inexorável presença dos
mesmos na experiência vivida, seria enxergá-la enquanto
seu poder de arquivo. Como estamos falando de culturas
primordialmente oralizadas, podemos dizer que a música
foi/é uma tecnologia mnemônica de transmissão de
histórias, saberes e memórias, desde os tempos mais
remotos. Isso indica uma tradição africana que, de tão
arraigada, apresenta uma continuidade, em que tradição
e passado são instâncias valorizadas, assim como a
mudança. Pois, segundo Chinua Achebe, “[...] devemos
falar da tradição não como uma necessidade absoluta
e inalterável, mas como metade de uma dialética em
evolução ― sendo a outra parte o imperativo da mudança”61.

61
Esse trecho de Achebe foi encontrado no texto de Vieira Filho (2013).

68
Então, a tradição enquanto forma dialética não pressupõe
o inalterável, o estanque. Algo que corrobora com o
que Tate (1994) falou sobre a relação tradição/inovação
andarem de mãos dadas na cultura negra.

Esse fato estabelece uma visão diferente de futurismos,


ao compararmos o que carrega o prefixo afro com a
proposta advinda da Europa, pois o movimento artístico
do último, mais conhecido na escola italiana, pretendia
uma ruptura radical com o passado, a história e a tradição.
O futurismo italiano desejava um apocalipse para construir
um novo mundo, enquanto que, para muitos referenciais
do afrofuturismo, o mesmo já estava posto desde o
advento da colonização e da escravidão, ou seja, a Maafa62,
como nos ensinou Marimba Ani. E como já mostramos,
a recuperação da história africana, seu teor político e
revisionista, tal qual a relação com a ancestralidade,
apresentam-se como dimensões importantes no
afrofuturismo.

62
A pesquisadora afrocêntrica Marimba Ani descreve o primeiro grande
holocausto da humanidade, a escravidão africana, como Maafa: “Este termo foi
cunhado por Marimba Ani (1994), e corresponde, em Swahili, à ‘grande tragédia’,
à ocorrência terrível, ao infortúnio de morte, que identifica os 500 anos de
sofrimento de pessoas de herança africana através da escravidão, imperialismo,
colonialismo, apartheid, estupro, opressão, invasões e exploração.” (NJERI,
2019, p. 7).

69
O filme Last Angel of History, de Akomfrah, fala exatamente
sobre a busca de um arquivo, uma tecnologia secreta,
sendo o Data Thief um escavador, arqueólogo, ou mesmo
um arquivista. O que ele busca é o blues, e talvez seja
interessante lembrar o que Tricia Rose, em Barulho de
Preto, menciona sobre uma tradição comunicativa secreta,
através da música, em como a mesma serviu para codificar
mensagens não acessíveis ao sistema de poder dominante.
Então o blues, que é música, mas também uma tecnologia
negra secreta, vai gerar uma miríade de outros gêneros,
a base para o jazz, R&B e rap e constituir uma genealogia
dentro da música negra afrodiaspórica.

Essa construção na narrativa do filme nos leva diretamente


ao conceito de changing same de Amiri Baraka, no ensaio
The Changing Same (R&B and the New Black Music),
presente no seu livro Black Music (1966), ainda como
LeRoy Jones. Uma tradução literal seria arriscada, mas
seria uma ideia de “o mesmo/a mesmice em mudança”, e,
ao falar do contexto da música afro-americana, o blues
seria o gênero que deu origem a todos os outros. Nesse
processo há uma entidade chamada “impulso blues” (blues
impulse) que permitiu essa transmissão e transformação
no tempo-espaço da música negra, e que na verdade é
reconhecidamente como um “impulso africano”, já que
sua origem remonta ao passado no continente africano

70
e serve como forma contínua da ligação entre estes, sua
comunicação, sua forma de transmissão de saberes, sua
mídia de armazenamento de histórias e memórias.

O changing same também pode suscitar a ideia de


paradoxo, assim como no afrofuturismo que mantém
referências/reverências ao passado, ao mesmo tempo que
pensa o futuro, assim como explicado por Tate (1994), de
que “[...] você pode olhar para trás e pensar para frente
ao mesmo tempo”. O changing same apresentaria uma
ideia de núcleo, porém um núcleo dinâmico, que está em
constante mudança e levanta questões sobre a relação
entre diferença e repetição; continuidade e mudança.
Traz em seu bojo tanto o presente como o passado e o
futuro, numa relação cíclica.

Baraka exemplifica com uma qualidade mais do que


citada em estudos da música negra, que seria o chamado
e resposta, estando esta característica presente em todos
os gêneros da música negra estadunidense, sendo algo
que veio do passado africano. Isso reforça a qualidade
de arquivo da música negra. Não por acaso, o chamado
e resposta pode ser identificado em inúmeros gêneros
musicais da afrodiáspora, como no samba, no coco,
na sambada de maracatu, na ciranda, entre outros,
confirmando esse aspecto formador africano.

71
O autor trabalha com a música de sua época, mais
especificamente com o R&B e o New Thing, que é como
rebatizou o que estavam chamando de free jazz. Apesar de
estabelecer uma hierarquia, estando o jazz numa posição
acima, porém sem desqualificar o R&B, Baraka demonstra
mais similaridades do que diferenças entre os dois estilos.
O free jazz que está em discussão reuniria qualidades do
que se convencionou classificar de avant-garde, palavra
que o autor evita por trazer ligações com a música branca
de concerto. Interessante notar que a expressão vanguarda
trabalha com uma ideia temporal de “à frente do tempo”,
de algo novo, de futuro, e é dessa forma que o futuro se
apresentaria para o autor na música negra afro-americana,
a partir do New Thing.

Já o R&B, que estaria no campo do mainstream, ou do


popular, representaria o que estava sendo dado no
presente, de acesso imediato. Porém, essa separação
não faz tanto sentido, podendo até criar uma armadilha
na velha discussão entre alta e baixa cultura, que se
revelou, antes de qualquer coisa, uma ideia extremamente
racista e, depois, classista, para dizer o mínimo. Há um
trabalho primoroso em curso do jornalista e pesquisador
GG Albuquerque, para ficar em apenas um exemplo, que
mostra o uso de tecnologia, níveis de experimentação e
pensamento sonoro avançado em diferentes gêneros

72
populares africanos e afro-brasileiros, como o singeli da
Tanzânia e o nosso funk. Vale ressaltar que Baraka não faz
essa separação, apesar de criar a hierarquia, pois também
enxerga as qualidades e potencialidades no popular.

Aqui cabe levantar uma indagação sobre se a qualidade


da novidade, do que é novo, seria algo que realmente
importasse dentro da cultura sonora negra. Porque o que
me parece, como algo que é verdadeiramente intrínseco
nesse continuum cultural, é a convivência/consciência
do tempo espiralar, ou seja, a simultaneidade entre
passado, presente e futuro. Num exercício de imaginação,
para trazer um exemplo contemporâneo a Baraka e
importante ao tema deste texto, poderíamos pensar
no longevo trabalho de Sun Ra. Sua música abarcava
tanto tendências de um jazz mais popular quanto do
mais experimental; inclusive, chegando a gravar um
disco com temas de Walt Disney. Ao mesmo tempo,
falava sobre uma África ancestral e viagens ao espaço.
O que poderíamos pensar talvez seria em camadas dentro
da música. Camadas sonoras poderiam suscitar tempos
diferentes, até mesmo dentro de uma mesma canção, e
que muitas músicas dentro do escopo popular também
teriam essas possibilidades, como sugeriu Steinskog,
introduzindo seu conceito de viagem sônica no tempo.

73
No que diz respeito à noção de Baraka do “changing
same”, essas camadas podem ser vistas como ao
mesmo tempo referenciando arquivos sônicos e
aludindo, na verdade também referindo-se, a diferentes
futuros. Eles podem ser vistos como trazendo uma série
de futuros com os quais se relacionar no aqui e agora
da situação musical. Pensar nisso como diferentes
camadas poderia ser uma maneira heurística de
discutir a viagem sonora no tempo, não apenas como
camadas de som, compreensíveis em muitas variantes
do avant-garde ao popular, mas como diferentes
camadas de tempo coexistindo na expressão sônica63.

Um outro exemplo comum poderia ser o rap e tantos outros


gêneros que passaram a se utilizar de samples no mundo
Atlântico Negro. Fazendo o uso de arquivos sonoros já
lançados e criando algo novo a partir daí, estaríamos diante
da coexistência temporal de modo bastante simbólico.
Ao mesmo tempo que poderíamos focar no beat, na lírica,
ou numa referência de um sample, constituindo camadas
distintas num mesmo arquivo.

63
STEINSKOG, 2018, p. 44-45.

74
Pensando em música e som como arquivo, a
importância da oralidade e mesmo a cosmopercepção
centrada na audição, chegaríamos à conclusão que
o gramofone não foi a primeira mídia a armazenar o
som, e sim o corpo negro, devido à importância que
se deu ao ato sonoro, como colocou Weheliye (2014).
Porque o som também foi arquivado na transmissão
dentro de uma comunidade, onde até arriscaria dizer
que o som tem papel crucial na formação mesma de
uma comunidade: “[...] mas nesse contexto, e de uma
forma ainda mais importante, é como a comunidade,
enquanto um coletivo, consegue armazenar e
reproduzir seus sons, o que é, ao mesmo tempo,
sua memória e sua história”64.

O que, dentre várias outras coisas, o changing same de


Amiri Baraka ajuda a corroborar, é o foco na oralidade
como forma de transmissão e forma de registro de toda
uma cultura, que foi tida como primitiva e atrasada,
sem história, por não estar calcada em formas escritas.
Explica o poder da música e do som dentro da cultura
negra, e atesta a falha do colonialismo e da supremacia
branca em seu projeto de aniquilação e inferiorização de
culturas de matriz africana. Baraka fala de como memória

64
Ibidem, 2018, p. 46.

75
e história foram transmitidas a partir da música e da dança
e destaca o “propósito religioso e/ou ritual” e como o culto
aos espíritos estava sempre na raiz da arte negra.

De fato, voltando, em qualquer linha de parentesco


histórico ou emocional, os ascendentes da música
negra nos conduzirão inevitavelmente à religião, isto
é, ao culto do espírito. Este fenômeno está sempre na
raiz de qualquer arte negra: a adoração do espírito, ou
pelo menos sua invocação. Pois até a própria música
era apenas isso, um reflexo do espírito, ou da própria
não-coisa65.

Há uma discussão complexa da questão religiosa e


principalmente do contexto do cristianismo no seio da
cultura afro-americana, mas que Baraka insiste na sua
grande diferença em relação à religião praticada por
pessoas brancas. O que ele traz, na verdade, é o contexto
de espiritualidade atrelado à cultura negra, e não tanto de
religião no modo ocidental. Ele comenta que a igreja foi
o único local em que escravizados poderiam estar fora
da censura branca e por isso seu papel central na
criação de comunidades.

65
JONES, 1970, p. 182.

76
Ele vai mostrando que, apesar do fenômeno da “perda de
religiosidade” do Ocidente, o ímpeto espiritual permanece
no seio das comunidades negras e exemplifica isto através
da música, pois, mesmo em expressões consideradas
seculares, essa qualidade permanece. Podemos pensar
em menções diretas a organizações religiosas, o Five-
Percent Nation, uma dissidência da Nação do Islã (NOI),
nas músicas de Erikah Badu e Wu Tang Clan, e à própria
NOI em diferentes músicas de rap. Poderíamos também
lembrar das inúmeras menções de toda uma genealogia
da música negra brasileira ao candomblé e à umbanda.

Um dos primeiros gêneros musicais afro-americanos,


em parceria com o blues, seriam os spirituals, que eram
praticados por corais das igrejas, transmutando-se no
que hoje conhecemos como gospel, god spell, palavra
de Deus. A referência à espiritualidade está presente
nominalmente, assim como em soul, alma. O autor afirma
que basta mudar algumas palavras da letra de uma canção
gospel ou soul, e a mesma poderia estar inserida em
qualquer um dos gêneros. Isso é uma dimensão sônica
da espiritualidade. Não se daria o mesmo com alguns
sambas e pontos de terreiro? Você poderia tocar dentro de
convenções sônicas de um estilo espiritualizado e produzir
algo secular.

77
E se pensássemos em uma música que produz uma
sensação espiritual, se é que podemos falar de alguma
coisa dessa ordem de forma simples? E talvez a ideia seja:
qual música não o poderia? Para tratarmos de um exemplo
mais pragmático, as músicas de Alice e John Coltrane
ousaram criar atmosferas e sensações de elevação
espiritual. O clássico A Love Supreme de John Coltrane foi
composto nesse intuito e até inspirou a fundação de uma
igreja em que ele é cultuado enquanto santo.

A espiritualidade é algo transversal no pensamento


africano e afrodiaspórico, como estamos aqui discutindo
desde o início. Um dado intrínseco às cosmopercepções,
filosofias, epistemologias e ao cotidiano de diferentes etnias
africanas e que ainda se preserva em algumas parcelas de
populações afrodescendentes na diáspora, não estando,
portanto, separado de outras dimensões sociais, sendo
a própria divisão entre sagrado e profano uma coisa sem
sentido para essas culturas.

A música e o som não seriam exceções, mesmo que nem


sempre estivessem sendo percebidos em um contexto
específico de ritos espirituais. E, entendidos como meio de
comunicação, de diferentes formas, em diferentes meios,
teríamos que futuramente aprofundar o lugar ao qual
também está direcionado para pensarmos comunidades

78
através da música negra enquanto comunidades sônicas.

As dimensões comunitárias ou rituais da experiência


musical ou sonora não se limitam a ouvir canções;
é [...] uma performance comum onde todo o ato
comunicativo ― o executante, o ouvinte, mas também o
contexto e a comunidade ― participa de uma atividade
de construção de significado66.

Steinskog também faz outra oportuna observação ao trazer


o que Baraka afirma sobre a música nos levar diretamente
à ideia de culto à ancestralidade, pois estaríamos diante
de um “colapso espaço-temporal” quando entendemos
que aqueles que já se foram estão participando do ato
comunicativo comunal no tempo presente. Estamos
vivendo também com o passado e por que não com
o futuro? Isso é bem natural para quem no Brasil tem a
mínima familiaridade com espiritualidades de matriz
africana, sendo, inclusive, razão por que, no xirê do
Candomblé, para abrir o contato com o mundo espiritual,
da conexão com os ancestrais, giramos no sentido anti-
horário. Não é por acaso, e a beleza e inteligência contida
nisso não está em nenhuma epistemologia branca.

66
STEINSKOG, 2018, p. 53.

79
Esse saber também está contido na cultura bantu, já que,
segundo Fu-Kiau, o movimento no sentido anti-horário
indica o caminho que os vivos seguem para encontrar
seus ancestrais. Ele está na gira da umbanda e na roda
de capoeira angola. O cosmograma bakongo, Dikenga
dia Kongo, é construído no sentido anti-horário e espiralar,
mostrando a concepção não linear de tempo, assim como
a ligação do mundo físico (Nseke) e espiritual (Mpemba):

Sobre a ideia do nascimento a partir do encontro de


dois mundos, é interessante conhecer o cosmograma
Kongo (Dikenga dia Kongo), representado por Bunseki
Fu-Kiau como a junção de duas linhas retas em cruz,
formando uma circunferência a partir da ligação entre
elas. Cabe ressaltar que a disposição em cruz das linhas
surge muito antes de qualquer contato africano com a
Europa ou o cristianismo, distanciando a proposta do
cosmograma da ideia de crucificação. A diagramação
do Dikenga dia Kongo propõe a divisão entre dois
mundos espelhados ― o visível (físico) e o invisível
(espiritual) ― sendo que a linha horizontal composta
por água, Kalunga, ao mesmo tempo em que divide
esse universo recíproco em duas faces, estabelece a
ligação espelhar entre elas. O cosmograma Kongo é um
mapa interpretativo da realidade existencial de todos
os seres (SANTOS, 2019), no qual a movimentação

80
em espiral no sentido anti-horário ― percorrendo os
quatro “Vs” demarcados na circunferência formada a
partir das linhas cruzadas ― promove a interlocução
entre a concepção invisível ou primeiro estágio do ser
(Musoni); a corporificação que torna visível esse ser
(Kala); seu amadurecimento e crescimento (Tukula) e,
por fim, voltando ao mundo invisível, sua desintegração
física ou morte (Luvemba), que é o fim para um novo
começo dado sucessivamente ao longo do tempo,
representando de maneira cosmológica os ciclos
da vida67.

Nessa representação, a fase Luvemba dará logo vez


à fase Musoni, demonstrando o sentido cíclico e de
aproximação entre morte e vida, entre ancestralidade
e início da vida. Para Katiúscia Ribeiro, a ancestralidade
é um “princípio que organiza um sistema filosófico e
arregimenta todos os valores e imperativos na dinâmica
civilizatória africana”, que se estende para toda a diáspora,
e praticá-la foi uma das maneiras de sobreviver à violência
colonial. A ancestralidade está diretamente ligada aos
valores de comunidade e solidariedade e se constitui num
“procedimento filosófico onto-triádica do Ser galgado
ontem e no hoje que é o amanhã”. Por isso, compreendê-

67
FARIA, 2021, p. 60.

81
la “está em viver em movimento com a vida, este eterno vir-
a-ser, é uma roda, sem fim, porque o futuro é ancestral”68.

Então estamos falando de um sentido civilizatório africano


que entende a confluência de camadas temporais, vistas
como distintas no Ocidente. O futuro ser ancestral, e
ser vivido no presente, demonstra que o afrofuturismo
está em sintonia com tal forma de interpretar a vida, não
sendo um paradoxo imaginar futuros imbricados com uma
recuperação histórica. Isso nos leva também a pensar
no ideograma akan do sankofa, que vem sendo recuperado
e discutido há um tempo por pesquisadore(a)s e militantes
negro(a)s.

Sankofa é um dos adinkras, que é um sistema de escrita


por ideogramas, da etnia akan do povo ashanti, que, na
época do seu império, ocupava o que hoje se conhece
como Gana e também parte do Togo e Costa do
Marfim69. O sankofa é representado pelo desenho de
um pássaro que tem a cabeça voltada para trás e que
significaria “Nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que
ficou para trás. Sempre podemos retificar nossos erros”

68
Disponível em: < https://diplomatique.org.br/o-futuro-e-ancestral/ > Acesso
em: 15 fev. 2023.
69
NASCIMENTO, 2008.

82
(id.), que é entendido como “a sabedoria de aprender
com o passado para construir o presente e o futuro” (id.).
A cabeça voltada para trás olha para o passado, enquanto
os pés virados para frente indicam um caminho para
o futuro. Também existem desenhos em que o pássaro
segura um ovo em seu bico, para se referir ao que
virá, o futuro.

Os adinkras “têm um significado complexo, representado


por ditames ou fábulas que expressam conceitos
filosóficos”70. Para Glover (1969 apud ibid., p. 32) os
adinkras “preservam e transmitem aspectos da história,
filosofia, valores e normas socioculturais do povo de
Gana”. Nesse mesmo sentido, Temple (2010) defende que
a profundidade e complexidade filosófica e de valores dos
adinkras devem ser sempre lembradas, pois práticas do
sankofa em populações afrodiaspóricas contemporâneas
poderiam beneficiá-las em suas formas de agência.
Essa questão ressoa no que Eshun (2003) comenta sobre
a inclinação política sobre o afrofuturismo, ou seja, de
reconstituir um passado histórico que fora fragmentado a
partir da Maafa.

70
Ibidem, 2008, p. 31.

83
Dessa maneira, viajar do Kemet para longínquas
galáxias, como vemos no afrofuturismo, seria apenas um
desdobramento de noções africanas de cosmopercepção.
Seria a viagem sônica no tempo, seja entre diferentes
gêneros musicais, civilizações, para outras dimensões
espirituais, ou para o espaço, ou Espafro, como compôs
Naná Vasconcelos, imaginando também Áfricadeus,
trazendo ecos de multi-temporalidades/espacialidades.

Sonoridades, espacialidades, temporalidades, espiritua-


lidades vêm sendo abordadas e entrelaçadas de
diferentes formas e espero que não de maneira linear.
Um exemplo que pode ligar as noções de viagem sônica
no tempo, efeitos sonoros e espiritualidade, além do
que já foi mencionado, é o exemplo do dub jamaicano.
Já mencionamos um dos inventores dessa tecnologia afro-
caribenha, Lee “Scratch” Perry, e algo trazido no texto de
Corbett é bem ilustrativo:

O trabalho de Lee “Scratch” Perry no dub reggae é


particularmente interessante em sua interrogação da
linha entre o mundo tecnológico e o mundo espiritual.
Quando questionado sobre a origem do uso de efeitos
sonoros pelo dub e várias técnicas excêntricas de

84
estúdio, Perry respondeu que eram “os fantasmas
saindo de mim”71.

Seguindo essa afirmação, Weheliye traz outros dados que


conectam os efeitos do dub com o mundo espiritual e a
relação tempo-espaço:

O eco, juntamente com o reverb e o delay, até hoje


continua sendo uma das principais características
do dub, inserindo espacialidade na trilha musical, ao
mesmo tempo em que mexe com suas dimensões
temporais; na verdade, o efeito espacial do eco é obtido
através de stuttering72 e dispersão do tempo da música.
Além disso, o próprio termo “dub” não apenas indica
uma duplicação ou cópia, mas carrega conotações
homônimas de duppy (a palavra jamaicana para
espírito e/ou fantasma), de modo que a versão dub
de uma música fornece não apenas sua sombra,
mas também sua outra espectral do que inicialmente
apareceu no verso de um disco, mas acabou se

71
CORBETT, 1994, p. 20.
72
Para o termo, não foi encontrada uma tradução direta para o português; uma
aproximação possível seria “gaguejando”.

85
tornando muito mais popular do que sua fonte
“original”73.

O dub é extremamente influente em uma miríade de


outros gêneros musicais, até hoje. Estabeleceu várias
técnicas de estúdio, mixagem, efeitos sonoros, como
o eco, reverb, delay e o uso de uma frequência grave
muito potente. O formato da festa dub ecoa até hoje em
diferentes espaços do mundo, com a potencialização do
uso de soundsystems, e o falar/cantar/improvisar sobre
uma base sonora gravada. Rap, funk brasileiro, brega-
funk, tecno-brega e suas aparelhagens, assim como uma
gama de estilos de música eletrônica também teriam
ligação direta com essa tecnologia sonora afro-caribenha.

Ao falarmos de tecnologias sônicas negras, abriríamos


espaço para discutirmos uma infinidade de exemplos,
como a invenção do surdo de Mestre Marçal e sua
mudança de curso no samba; passando pelo trio sanfona,
zabumba e triângulo de Luiz Gonzaga; até os efeitos que
o uso diferente da eletrificação na música de Jimi Hendrix,
de Herbie Hancock e de Miles Davis ajudaram a construir
mundos e imaginários a partir do som. Na verdade,

73
WEHELIYE, 2005, p. 102.

86
a música e a manipulação sonora são uma tecnologia per
se, como estamos tentando construir e que fazem parte de
uma episteme, cosmoperpecpção e valores civilizatórios
africanos.

Isso está presente no conceito de Afro-Technological,


de Salim Washington (2008), em que música e tecnologia
estão sendo discutidas, dentro da cultura negra, através
de sua representação em livros de ficção científica de
Henry Dumas e Samuel Delany. Para o autor, as invenções
de instrumentos de sopro quando os percussivos foram
proibidos nos EUA; ou a invenção da guitarra amplificada
de Charlie Christian; as steel drums do Caribe, criadas a
partir de latas descartadas; ou a gênese da bateria como
a conhecemos hoje por músicos de jazz de Nova Orleans;
são exemplos de desenvolvimento tecnológico na música
popular, realizados por pessoas negras. Também se
configuram como tais, as criações de técnicas vocais e
estilos de tocar os mais variados instrumentos, assim
como pelo uso criativo que DJs de rap deram ao toca-
discos para fazer música.

87
Meu interesse na interseção entre o afro-tecnológico
e a música não está centrado principalmente nas
tecnologias das máquinas, mas sim nas propriedades
tecnológicas da música negra e do fazer musical per
se. Ao longo da história, os afro-americanos usaram
a música e os rituais que a acompanham, e não
simplesmente as máquinas através das quais é feita,
como uma tecnologia. Como atividade humana, a
música tem efeito sobre a psique de seus produtores
e ouvintes, mas pode ser entendida como uma
tecnologia nas instâncias em que também tem efeitos
sobre o mundo físico; a realidade corpórea da música
pode incluir a possessão espiritual74.

Ele também chama o afro-tecnológico de impulso e lida


com questões de música como meio de transporte, seu
poder de mudar o ambiente, além de uma “tecnologia
capaz de criar e curar, assim como vingar e destruir”;
usadas de fato ou simbolicamente pelos artistas.
Essa ideia me leva diretamente ao postulado de Fela Kuti
ao dizer que a música é uma arma do futuro.
Aqui tentamos dar uma dimensão mais expansiva do que
significaria o som e a música para culturas negras, assim
como sua difícil separação de ressignificações temporais,

74
WASHINGTON, 2008, p. 237.

88
conexão com o sagrado e uma ideia de espiritualidade
além dos postulados normativos de uma religião. Assim
como buscamos entender como a negritude e diferentes
acepções do que seria tecnologia poderiam encorpar
o debate. O afrofuturismo nos parece mexer com todas
essas dimensões, materializando-as em sua estética e
política, explorando o fantástico e realizando uma ficção
sônica.

O afrofuturismo pode abarcar diferentes gêneros musicais,


assim como se encontra entre artistas que fazem a música
negra nos âmbitos enquadrados da música popular ou
experimental. Para o presente trabalho, tanto o uso de
experimentações sônicas menos convencionais quanto o
uso de letras, títulos e imagens sugestivas poderiam estar
indicando futuros possíveis.

89
O AFROFUTURISMO NO BRASIL
Muito se falou, até o momento, de referências à música
africana e afrodiaspórica, para contextualizar e amplificar
o que vem sendo discutido sobre afrofuturismo, em
especial, sobre suas formas sônicas. Não se pode deixar
de comentar o fato de que a maioria da bibliografia utilizada
é de origem estrangeira, em grande parte composta por
autores estadunidenses. Sem dúvidas, isso se explica pela
condição geopolítica dos EUA, onde, apesar de apenas
uma parcela pequena de sua população ser negra, quando
comparada ao Brasil, e, apesar de condições subalternas
impostas a esse povo, há ainda mais condições de
produção intelectual do que aqui.

Obviamente, essas condições foram gestadas por eles


mesmos, os negros, não sem muita luta, vale dizer, os quais
criaram, pelo menos a partir dos anos 1960, disciplinas e
cursos voltados à história e à cultura negras, além de um
trabalho robusto intelectual por outras frentes que não só
a acadêmica, como nos movimentos sociais e na arte.
Pela falta de tempo e recurso no momento, não entrarei
nos meandros da história que procura estabelecer as
diferentes condições de populações negras na Améfrica,
como falou Lélia Gonzalez, traçando um curso histórico
desde os diferentes tipos de colonização.

90
Há literatura que questiona esse lugar de destaque
da cultura afro-estadunidense, em relação às demais,
alertando, por exemplo, que a mesma recebeu influência
abundante de pensadores, escritores e ativistas vindos
de diferentes lugares do Caribe. O Caribe preto, nos cabe
enfatizar. No entanto, se formos pensar em como a cultura
negra, de forma orgânica, sempre esteve conectada e
ainda faz essas reterritorializações e refertilizações, entre
África, Améfrica, e outros lugares, de forma transnacional,
não precisaríamos manter tais hierarquias, que são,
sobretudo, falsas.

Permitindo-se ouvir os ecos que soam de África para


cá e de cá para lá, as coisas começam a fazer mais
sentido. Houve a tentativa de traçarmos paralelos de uma
cosmopercepção africana e seus valores civilizatórios
para termos uma dimensão mínima do que e do porquê
a música se faz tão central para nós, negros, assim como
pode explicar e aprofundar muito dos conceitos que vêm
formando a produção afrofuturista.

O Brasil, interconectado a essa rede, não poderia estar


alijado deste processo. O País que mais recebeu
escravizados e o último a abolir esse sistema necropolítico,
apesar de toda violência contida neste processo, formou
uma das culturas negras mais pujantes e influentes

91
do mundo. O tamanho de sua população afrodescendente
e muitos dos elementos que formam a cultura nacional
nos levam a concordar com Manoel Querino, quando
atestou que foram os africanos que realmente formaram
o que é esse País. Evito o termo colonização, pela carga
e responsabilização que o mesmo traz, e por entender
exatamente o que o autor quis colocar.

Esse postulado liga-se diretamente à categoria político-


cultural da amefricanidade, escrita por Gonzalez (1988b).
Lançado antes mesmo do Atlântico Negro (1993), de Paul
Gilroy, o texto de Lélia é essencial para discutirmos cultura
amefricana no Brasil. Uma elaboração muito sagaz e
pioneira que estabelece um sentido muito mais africano
que europeu, para pensarmos o País. As culturas de raiz
linguística bantu, iorubá e ewe-fon poderiam nos dar muito
mais subterfúgios e possibilidades de escuta para nos
entendermos no mundo.

Trabalhando com dados históricos, assim como


elaborando uma imaginação negra radical, a historiadora
Beatriz Nascimento também nos deu inúmeras pistas
de formação e ligação africana, Congo-Angola, mais
especificamente, para explicar em profundidade a cultura
negra no que se chama de Brasil. Angola Janga, Zumbi,
corpo, favela, samba e soul. Quilombo foi palavra forte

92
e um impulso para essas pensadoras, assim como para
Abdias do Nascimento, que, no campo da arte, com teatro e
pinturas, e no campo teórico, com seus livros e, em especial,
O Quilombismo, desenvolve um projeto de país a partir das
lutas e vivências negras.

África e suas diásporas são formadores dos nossos meios


de viver, sobreviver, imaginar e, também, criar futuros.
E tanto a música quanto o som atravessam e ligam
esses sentidos. Poderíamos conjecturar que há átomos
afrofuturistas na própria gênese da cultura africana,
pensando na relação com o cosmos e as distintas
temporalidades em conjunção, como tentamos mostrar na
primeira parte deste texto. Na verdade, ele mostra como
é algo que faz muito sentido ter sido elaborado dentro
de uma cultura negra. Nesse caso, desde o primeiro
quilombo, como projeto de futuro e suas tecnologias,
ou desde o primeiro tambor aqui fabricado, estaríamos
tentando formular uma outra forma de concepção de
tempo e espaço. Quem já foi a um terreiro sabe que lá
o tempo se comporta de forma diferente, tal qual como
território-espaço.

Mas estamos falando de um movimento, um conceito,


uma elaboração negra estético-política que começa a ser
moldada enquanto tal nos anos de 1950. Aqui reafirmamos

93
a importância e pioneirismo dados por tantos à figura de
Sun Ra. Em seu pensamento há ciência, mito, recuperação
da história africana, Kemet, protagonismo negro,
experimentações, espiritualidade e viagens espaciais,
tudo narrado em sua ficção sônica. No Brasil ainda
precisaríamos de mais obras que poderiam investigar com
mais profundidade esses aspectos. Comecei a falar de
afrofuturismo pelas bandas de cá, na música, na minha
tese Fogo nos Racistas! Epistemologias negras para ler, ver
e ouvir a música afrodiaspórica75, defendida em julho de
2020. Faço isto numa passagem do último capítulo, em
que analiso o videoclipe de Nave (2019), da cantora Xênia
França.

Lá, começo a elaborar um momento chave que teria a


possibilidade de ser uma guinada, ao menos prototípica,
do que seria o início do afrofuturismo na nossa música
popular, à qual voltaremos. No ano de 2021, talvez
tenhamos o primeiro trabalho de pesquisa dedicado à

75
Queiroz, Rafael Pinto Ferreira de. Fogo nos racistas!: Epistemologias negras
para ler, ver e ouvir a música afrodiaspórica. 2020. Doutorado (Doutorado em
Comunicação) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2020. Disponível
em:https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/40511?locale=pt_BR

94
temática, escrito pelo músico e pesquisador Pitter Rocha,
com sua dissertação de mestrado O som afrofuturista:
elaboração da ficção sônica Impactitos por Disco Duro.
Neste trabalho, ele já começa a pensar a música afrofuturista
no Brasil e nos oferece insights bem interessantes, sendo
um trabalho consistente. Antes de todos, em 2015, Kênia
Freitas foi a curadora e organizadora da publicação da
exposição AFROFUTURISMO Cinema e Música em uma
Diáspora Intergaláctica, exibida na Caixa Cultural, em que
trouxe textos de Kodwo Eshun e um, diretamente sobre
música, de Ashley Clark. Ela deve ser uma das primeiras
pesquisadoras a pensar o afrofuturismo no País, atuando
predominantemente no audiovisual.

Uma especulação breve de um momento afrofuturista


na música brasileira poderia ser pensada entre os anos
de 1969 a 1975, com uma escolha, um tanto arbitrária,
poderíamos dizer, de alguns discos e artistas. Mas há
elementos que uniriam esses discos, em seus conteúdos
musicais e extramusicais ― com temáticas muito próximas
do que viria a ser chamado de afrofuturismo, além de terem
sido gravados em um espaço de tempo muito próximos,
assim como pelo fato de que foram realizados por artistas
que estavam repensando sonoridades enegrecidas
em uma retroalimentação da música afrodiaspórica
transnacional.

95
Referências ao Kemet, elaborações místicas e religiosas,
assim como naves espaciais, viagens interplanetárias
e miradas ao futuro também aparecem na música
negra brasileira em seus mais celebrados expoentes,
como Gilberto Gil, Jorge Ben e Tim Maia. Talvez um dos
primeiros álbuns com temática afrofuturista no Brasil seja
o Gilberto Gil (1969)76, também conhecido como Cérebro
Eletrônico. O disco tem uma capa com o desenho de
um papiro contendo um texto e desenhos enigmáticos.
Muitas músicas, a maioria do próprio Gil, contêm letras
de ficção científica, futuro e a relação homem/máquina,
potencializadas pelos arranjos futurísticos de Rogério
Duprat: Cérebro Eletrônico que abre o disco, A Voz do Vivo
(Caetano Veloso), seguida de Vitrines, 2001 (Rita Lee e
Tom Zé), Futurível e a experimental Objeto Semi-Identificado
(em parceria com Duprat e Rogério Duarte).

Outro que também seguiu essas temáticas é Jorge Ben.


Junto com Gil, criou o álbum de música experimental
Gil e Jorge: Ogum - Xangô (1975)77. No disco, os cantores
vão falar de candomblé, de santo católico que também

76
Capa do disco Gilberto Gil (1969). Disponível em: < https://bit.ly/ggil1969 >
Acesso em: 15 fev. 2023.
77
Capa do disco Gil e Jorge: Ogum - Xangô (1975). Disponível em: < https://bit.
ly/giljorge > Acesso em: 15 fev. 2023.

96
é venerado na umbanda, de um monumento indiano,
entre outras coisas. O que fica mais latente é o sentido
de experimentação do disco que, como dito por Corbett
(1994), está ligado à exploração do desconhecido.
Na capa, apresentam búzios em um desenho futurista,
parecendo também uma tecnologia do sagrado.

Porém, um ano antes, Ben também já antecipava essa


questão místico-espacial com seu álbum A Tábua de
Esmeralda (1974)78, falando de uma narrativa meio espacial,
mística e tecnológica, com a alquimia como tema, que fora
desenvolvida pelo faraó kemético Hermes Trismegisto,
como explica no encarte. Ele ainda faz música para outros
alquimistas, como Flamel e Paracelso, e pergunta se os
deuses na verdade não seriam astronautas de outras
galáxias.

Nessa linha especulativa sobre o afrofuturismo musical


brasileiro, não poderia deixar de citar outro disco, também
de 1974, o Racional79, de Tim Maia. Ele havia entrado na
seita Universo em Desencanto, ou Cultura Racional, que

78
Capa do disco A Tábua de Esmeralda (1974). Disponível em: < https://bit.ly/
tabuaesmeraldajorge > Acesso em: 15 fev. 2023.
79
Capa do disco Racional (1974). Disponível em: < https://bit.ly/racionaltimmaia
> Acesso em: 15 fev. 2023.

97
fora criada por Manuel Jacinto Coelho, um homem negro
que também fora músico, e falava abundantemente sobre
vida em outros planetas, viagens espaciais e atingir a fase
racional para poder sair do planeta Terra e viver plenamente
no Mundo Racional. Ou seja, fortes elementos de ficção
científica e misticismo estão presentes, como Eshun (2003)
havia identificado em influenciadores do afrofuturismo.
Aqui, o paralelo é musical, na música negra brasileira,
sem enfatizar o conteúdo político, histórico e social, que
o autor conecta, mas levanto a possibilidade de o binômio
experiência negra/ficção científica ser algo identificável
para além dos EUA.

Poderíamos pensar em outros artistas que reforçariam


uma estética afrofuturista de forma bastante consistente,
depois desse período, ou até concomitantemente, como
Naná Vasconcelos, Itamar Assumpção ou a banda Black
Future, de Tantão, que hoje toca com Os Fita. Nos anos
de 1990, ninguém ficou incólume a Chico Science &
Nação Zumbi e ao seu som afrociberdélico, que, antes da
expressão ser criada, já articulava suas temáticas.

98
Outro dado que chama a atenção é a total falta de menção
a nomes femininos. O que parece ter sido obliterado
por essa tradição masculinista, que inclusive já foi alvo
de crítica na escrita afro-estadunidense e também nos
reflete, dá mostras de mudança nos anos mais recentes.
Elza Soares, sendo a mulher do fim do mundo, Xênia
França, Ellen Oléria, Majur, Luana Flores e Jéssica Caitano
são algumas das artistas que reivindicam ou poderiam
estar incluídas nesse lugar.

São muitos nomes que poderiam contar uma grande


história, com tantos outros ainda por serem relacionados.
O texto atual não buscou explicar todo o possível entorno
do fenômeno e sua formação, mas pretendeu abrir
caminhos e instigar a possibilidade de expansão e
continuidade. Sendo um recorte da pesquisa, de apenas
um ano, e que precisaria de mais tempo e recursos para
poder abarcar com mais profundidade o assunto.

99
Nesta primeira parte do ensaio, que já se encaminha
para o final, decidimos por uma breve contextualização
histórica e filosófica, e, como não poderia deixar de ser,
política, sobre o afrofuturismo ― sobretudo no campo da
música. Na segunda parte, a seguir, reposicionamos a
discussão para Pernambuco, afinal, trata-se de um estado-
chave dentro da historiografia e culturas negras no Brasil.
Falaremos sobre os dois primeiros álbuns de Chico Science
& Nação Zumbi e veremos como os mesmos já traziam
a temática afrofuturista nos idos dos anos 1990. Além do
mergulho no mangue, serão apresentados ensaios curtos
e livres sobre a artista Jéssica Caitano, de Triunfo, e o duo
Barbarize, de Recife, com a intenção de fazer uma ponte
nessa encruzilhada afrodiaspórica, especulando assim a
existência de um afrofuturismo de origem pernambucana.

100
101
102
Afrofuturismo em Pernambuco

Com uma população composta por mais de 60% de


negros, e tendo sido sua capital, Recife, o terceiro maior
porto receptor de africanos, o estado representa um
território imprescindível para tratarmos de temáticas
dentro da cultura expressiva negra. Um lugar que mantém
até hoje manifestações ancestrais, suas tecnologias,
espiritualidades, culinária e música. Esta última uma das
mais lembradas: coco, baião, maracatu, afoxé, samba,
frevo, são apenas alguns exemplos de gêneros musicais
desenvolvidos dentro de nossa cultura afrossônica.

Como uma ficção especulativa, ou melhor, sônica,


conjecturo o afrofuturismo em Pernambuco, em diferentes
personagens, tempos e espaços. Musicalmente, quem
seriam aquelas que responderiam ao composto negritude-
som-tecnologia-ficção que tentamos elaborar desde o
início? Acharíamos a tentativa de recuperação de um
passado, a conexão com a espiritualidade, os diferentes
níveis de experimentação sonora? Elas estariam
compondo ficções sônicas com protagonismo negro e
visadas ao futuro?

103
A partir daí, escolhi trabalhar com Chico Science &
Nação Zumbi, Jéssica Caitano e o duo Barbarize. Artistas
diferentes entre si, mas que podem trazer pontes e
conexões em suas produções, além de ecos afrofuturistas.
Propomos olhá-los como o conceito de afrodiáspora de
Edwards (2017), enquanto “diferença dentro da unidade”,
algo próximo ao changing same de Baraka.

Seguindo a sugestão de Eshun (1995) sobre ficção sônica,


para a análise foram consideradas as músicas em suas
expressões sonoras, assim como suas extensões de
significado, encontradas também nas letras das canções
e em material visual. Este último vai ser abordado de
diferentes formas, compreendendo capas, encartes e
material audiovisual, que também podem trazer elementos
como, por exemplo, uma indumentária específica. Textos
adicionais de entrevistas, matérias e livros também foram
utilizados para encorpar os referenciais de pesquisa.

104
Chico Science & Nação Zumbi:
a África em Pernambuco

No ano em que foi criado o termo afrofuturismo, em 1994,


Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) lançavam seu
primeiro disco. Da Lama ao Caos já reuniria elementos
que poderiam colocá-los dentro dessa estética, se
não, ao menos seria um indicativo de que algo fora da
curva estaria acontecendo. Não que reunir elementos
de diferentes gêneros musicais da afrodiáspora fosse
uma coisa totalmente inédita, mas, como os mesmos
realizaram, não parece que havia algo sequer parecido.

De forma sônica, estaríamos ouvindo o maracatu ancestral,


de baque solto ou virado, passando pelo coco e ciranda,
até chegar no rock, funk e no rap. Estando diante de uma
afro-temporalidade bastante sui generis em relação ao
Ocidente, com ecos do Maracatu Elefante ressoando,
até Afrika Bambaataa e Public Enemy. O estrondo dos
tambores do primeiro, como trovões de Nzazi e depois

105
Xangô, estariam continuando África em Pernambuco,
criando uma força sônica, que também era soul, e avisando
aos brancos para temerem um Planeta Negro80.

O changing same de Amiri Baraka parece fazer ainda


mais sentido, potencializado pela música negra enquanto
arquivo simultâneo, em que escutaríamos sons ancestrais
produzindo um futuro sônico, recuperando e contando uma
história negra narrada através da música. Ou seja, a CSNZ
estava ousando produzir, de forma muito substancial, a
viagem sônica no tempo. Além da percussão desenvolvida
a partir de diferentes toques de um arcabouço vernacular
africano, em alguns momentos, o efeito wah-wah, e a
palhetada na guitarra, evocam um Hendrix e um funk
como James Brown e The Meters desenvolveram,
respectivamente. Esses são os sons mais interessantes
de guitarra no disco, que ainda não soam datados,
como aqueles com uma referência maior ao heavy metal.

80
Aqui referenciamos o Maracatu Elefante, criado em 1800 e tido como um dos
mais antigos do estado, assim como o Nkisi Nzazi e o Orixá Xangô, deidades
do trovão, para os Congo-Angola, que chegaram aqui primeiro, e os iorubás,
respectivamente. Depois há referências ao grupo de Afrika Bambaataa, o Soul
Sonic Force e ao disco do Public Enemy, Fear of a Black Planet, influências
declaradas da banda.

106
A cultura hip-hop aparece nesta arquitetura sonora, com
influência de samples e a forma de cantar de Chico, que
em muitos momentos ressoa nos MCs mais clássicos.
O canto de Chico também está ligado ao coco de embolada,
gênero comum no Nordeste, em que dois cantores fazem
um desafio de rimas rápidas e improvisadas, ritmadas pelo
pandeiro; assim como ao raggamuffin, estilo de canto e
rima rápida, desenvolvido dentro da cultura dancehall
da Jamaica. Aos três são reservadas marcas profundas
deixadas por África em sua potencialidade de cultura oral
e improviso, que é um valor muito importante na música
negra como um todo.

Voltando ao hip-hop, o próprio nome “Chico Science &


Nação Zumbi” foi inspirado em Afrika Bambaataa & The
Zulu Nation, que, ainda nos 1980, em Nova Iorque, criava
sons eletrônicos, sampleando Kraftwerk e entrando no
imaginário afrofuturista. No universo CSNZ há samples de
coco e ciranda, e uma música, em especial, chama atenção
quando pensamos nessa técnica herdada do dub e do rap.

Em Samba Makossa há uma infinidade de referências da


música negra. No título há a ligação bantu transnacional
entre o samba e o makossa, gênero musical desenvolvido
em Camarões, na década de 1950. Aqui eu falo bantu por
ter sido o que hoje é o Camarões, um dos lugares que tinha
língua do arco bantu, como os Congo-Angola, que foram a
maior parte dos africanos em diáspora no Brasil, aos quais
a origem do samba é associada. De forma muito sugestiva,
essa ligação dá uma ideia de uma afrossonoridade
transnacional, um pouco do que discutimos sobre o
Atlântico Negro, pois o makossa foi bastante influenciado
pelo highlife de Gana, assim como pelo mambo cubano
e o beguine da Martinica, que já haviam influenciado o
estilo ganês. Então estamos falando de uma epistemologia
sonora africana que forma os ritmos e gêneros e, na
verdade, toda música popular das Américas.

Continuando essa jornada, o makossa foi ressignificado por


Manu Dibango, em 1972, quando este lança Soul Makossa,
inspirado no soul e no funk, mas acaba por impulsionar o
que viria a ser a disco music mais tarde, com o sucesso
que fez em pistas dos EUA. Então essa retroalimentação
sonora da diáspora nos mostra seu fluxo contínuo e
circular. A música em questão da CSNZ tem sample de
Dibango e também de Brown Rice de Don Cherry, parceiro
de Naná Vasconcelos por anos, no projeto Codona,
além de um respeitado musicista do jazz experimental e
figura influente na estética afrofuturista. Logo no início,
tem a referência a Cherry e, mais para o fim da música,
escutamos um sample da música de Dibango com seus
metais que fazem o chamado e são respondidos por um

108
sample de James Brown, Say it Loud - I’m black and I’m
proud. Posteriormente, vai entrar o som de uma cuíca e a
volta de uma conjunção harmônica entre baixo, percussão
e guitarra, nenhum deles fazendo a escada para o outro se
sobressair.

Isso parece ser uma atmosfera criada pelo som e pela letra
da música, em que o narrador preocupa-se com seu amigo
por seu atraso na roda de samba que está acontecendo.
Ele cobra sua responsabilidade para com o evento, que
é cerebral, mas também para celebrar, o que me lembra
esta frase de Mãe Beth de Oxum: “A gente não separa
festa de militância”81. Não que a letra fale sobre ser um
espaço de militância, mas sugere a importância por meio
da cobrança, e é em roda que aprendemos uns com
os outros: a roda apresenta uma ideia de igualdade, de
comunidade, além de não ter começo, nem fim.

A ideia de comunidade também é reforçada pelo cuidado


que Chico mostra em relação ao seu interlocutor: a
responsabilidade de manter-se inteiro. Aqui poderia ser pelo
contexto de violência das grandes cidades, como Recife e

81
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=ur42fxP_qpE&ab_
channel=NoBrasil > Acesso em: 15 fev. 2023.

109
Olinda, ou por cobrar inteireza naquilo de cuja importância
nós, negros, já sabíamos e que tanto foi inferiorizado pela
cultura eurocêntrica, nossas manifestações culturais. E por
fim, parece dar o “tiro certeiro”, em muito do que se cruza
nesse texto, com “Som da cabeça e foguete do pé”, que
nos dá a chance de cruzar a importância do som com a
ideia de uma ficção científica, em que Chico já carregava
no nome, como um foguete em órbita no espaço.

Falando em nomenclaturas, Zumbi seria uma das nossas


máximas referências de lutas sociais, em especial contra o
colonialismo e o racismo, assim como se expande como
referência visual, ideológica e cultural, como nos ensinou
Beatriz Nascimento (2019). Ao reivindicar o seu nome, a
CSNZ está trabalhando com a ideia de ancestralidade,
invocando essa figura tão central para a identidade negra
no País, ao mesmo tempo que estabelece o sentido
espacial, de território, por Zumbi também ter atuado em
Pernambuco.

Zumbi, ao mesmo tempo, também se torna mito,


simbolizando, pela cultura e ideologia, um impulso que
vai desembocar nas narrativas fantásticas, nas ficções
sônicas de artistas negros. Ao falarmos dele, também
estaríamos recuperando uma história que tentou ser
apagada, ou, no mínimo, deturpada, pela hegemonia,

110
abarcando a qualidade de revisionismo histórico tão
presente no afrofuturismo. Sendo a representação
máxima de resistência negra no País, ao acessarmos
esse conhecimento, estaríamos tentando reconstruir um
devir quilombola, suas epistemes, valores civilizatórios e
tecnologias, da agricultura, à arquitetura, à medicina, às
táticas militares.

Dessa forma, as letras do álbum já indicam essa ideia


de embate. Veja, estamos na Região Metropolitana de
Recife da década de 1990, num presente distópico, em
que a escravidão e o capital, dificilmente separáveis,
tornaram a cidade sem esperanças, devido à fome,
miséria e desigualdade. Em sintonia com muito do que é
produzido no afrofuturismo, o apocalipse já aconteceu, a
partir do sistema escravista. Então, enquanto negros, já
estaríamos vivenciando esse plano distópico. Daí surge a
representação do mangue, como lugar de miséria, como
também de fertilidade, simbolizando a desigualdade, ao
mesmo tempo que indicando o lugar de riqueza criativa
e de onde poderiam partir as soluções para o que está
sendo vivenciado.

Daí surge a figura do homem-caranguejo, que foi baseado


no romance autobiográfico de Josué de Castro. Aqui há
personagens e lugares imaginados, que são utilizados

111
para tecer críticas sociais e tensionar, por meio da arte,
os sistemas de poder instituídos. Essa ficção sônica já
vinha sendo gestada e estava presente no manifesto
Caranguejos com Cérebro, lançado em 1992, de autoria
de Fred 04, da banda Mundo Livre S/A, cofundadora do
Movimento Manguebeat, com a CSNZ.

Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado


em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e
produção de idéias [sic] pop. O objetivo era engendrar
um *circuito energético*, capaz de conectar as boas
vibrações dos mangues com a rede mundial de
circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma
antena parabólica enfiada na lama82.

A ideia de uma rede interconectada, circuito energético e


“de uma antena parabólica enfiada na lama”, nos levam
tanto à ficção sônica quanto à ideia muito presente de
tecnologia, trabalhada de maneira simbólica nas músicas
da cena. Afinal, são os computadores que fazem arte.
Como numa narrativa interligada, a faixa bônus Coco
Dub (Afrociberdelia) já daria pistas do que viria num

82
Manifesto Mangue. Disponível em: < https://bit.ly/manguemanifesto04 >
Acesso em: 16 fev. 2023.

112
futuro próximo. No entanto, alguns elementos dessa faixa
interessam à presente discussão, começando a partir
do título: pois, além de já trazer o conceito do segundo
disco, sobre o qual iremos tratar mais adiante, ela sugere
essa ligação dos gêneros pernambucano e jamaicano,
dando a ideia de circulação e ligação da música negra.
E, como vimos, o dub é muito influente no afrofuturismo,
por suas temáticas e experimentações sonoras, trazendo a
perspectiva do afro-tecnológico.

Ao passo que tanto letra quanto música indicam esse


sentido de experimentação/exploração do desconhecido,
pois é uma faixa mais inclinada a esse propósito. Cascos,
cérebros e homens, tanto sintonizam e emitem como
andam, sentem e amam. Aqui nos lembra a relação com
a tecnologia que o afrofuturismo representa, mas que
mantém a parte humana como primordial na relação
homem/máquina. Encerrando com “O leito não-linear
segue/ Pra dentro do universo/ Música quântica?” Aqui,
o cosmos, a não-linearidade tempo-espacial, a ciência
de microuniversos ligada à música e ao universo em
expansão, estão sendo acionados. Curioso enxergar que
o rio vai desembocar no oceano, a kalunga, que, para o
povo bakongo, também está em contato com o universo,
sendo parte deste.

113
(DE África + cibernética + Psicodelismo)

Dois anos depois, é lançado o álbum Afrociberdelia, cujo


título chama atenção até hoje, principalmente depois
que começamos a discutir sobre o afrofuturismo, pois
eles já estariam manipulando estruturas de sentido desta
estética, sem mencioná-la diretamente, mas aqui há uma
aproximação semântica. No ensaio de Mark Dery (1994),
ele estava interessado em discutir cibercultura, que é
algo aproximado no universo sci-fi, além do prefixo “afro”.
O termo foi criado por Paulo Santos, um amigo do grupo,
e foi desenvolvido por Bráulio Tavares, em texto que está
presente no encarte do álbum.

AFROCIBERDELIA (de África + Cibernética +


Psicodelismo) -- s.f. – A arte de cartografar a Memória
Prima genética (o que no século XX era chamado
“o inconsciente coletivo”) através de estímulos
eletroquímicos, automatismos verbais e intensa
movimentação corporal ao som de música binária.
Praticada informalmente por tribos de jovens urbanos
durante a segunda metade do século XX, somente a
partir de 2030 foi oficialmente aceita como disciplina
científica, juntamente com a Telepatia, a Patafísica
e a Psicanálise. Para a teoria afrociberdélica,

114
a Humanidade é um vírus benigno no software da
Natureza, e pode ser comparada a uma Árvore cujas
raízes são os códigos do DNA humano (que tiveram
origem na África), cujos galhos são as ramificações
digitais-informáticas-eletrônicas (a Cibernética) e cujos
frutos provocam estados alterados de consciência
(o Psicodelismo). No jargão das gangs e na gíria das
ruas, o termo “afrociberdelia” é usado de modo mais
informal: a) Mistura criativa de elementos tribais e high-
tech: “Pode-se dizer que o romance The Embedding,
de Ian Watson, é um precursor da ficção-científica
afrociberdélica”. b) Zona, bagunça em alto-astral,
bundalelê festivo: “A festa estava marcada pra começar
às dez, mas só rolou afrociberdelia lá por volta das
duas da manhã.” Enciclopédia Galáctica, volume LXVII,
edição de 2102.

O nome e o conceito já deixam muito evidente que CSNZ


estaria fazendo afrofuturismo, de forma muito explícita,
mesmo que não tenham usado o termo. Uma elaboração
que reúne ancestralidade africana, tecnologia, ciência,
som e ideias de futuro. O elemento humano está presente,
o DNA africano, encarnado de “ramificações digitais-
informáticas-eletrônicas”, ligados em redes comunitárias,
desde uma raiz afro, que geram frutos de estados alterados
da consciência.

115
Sobre o último, os frutos, poderíamos pensar desde a
MythScience de Sun Ra, que debulha e descontrói ideias de
uma história e ciências normativas, pensando um passado,
presente e futuro negros, com viagens interplanetárias;
passando pela ideia de transe na espiritualidade
africana, que também está presente no dub jamaicano,
à influência direta de perspectivas sonoras outras, que
experimentaram, buscando novas narrativas sônicas, e
criando mundos alternativos, ou realidades paralelas,
como a guitarra de Hendrix, ou o som do Funkadelic.
“Estados alterados de consciência” é algo comum numa
cosmopercepção africana, assim como nas indígenas, que
envolvem comunicação com outros planos de existência e
denotam uma ligação profunda do ser humano com o todo
que o cerca.

O disco se inicia com a música Mateus Enter, que já


anuncia que a Nação vai chegar com seu universo e
aterrizar em nosso pensamento, “Pernambuco embaixo
dos pés/E minha mente na imensidão”, já dando um
sentido de expansão cósmica e mental. O título é em
referência ao personagem Mateus, que está presente
tanto no maracatu rural (baque virado) quanto no cavalo
marinho. Enter dá o sentido de entrada, de introdução,
de começo, fazendo tanto uma menção às loas de
abertura dos maracatus quanto à computação, fazendo

116
essa mistura de ancestralidade com futurismo e ficção
científica.

Na sequência, em O Cidadão do Mundo, a CSNZ explora


o próprio conceito de nação, algo que faz referência às
nações de maracatu, mas que, na verdade, já era um
conceito importante para os Congo-Angola, como uma
forma de organização social e valor civilizatório que se liga
diretamente à ideia de território. Segundo Chico, a letra é
sobre um menino que está sendo explorado por trabalho
infantil no interior e foge para a capital. Essa imagem que
ele cria e sua narrativa vinculam o mesmo à época da
escravidão, por citar o canavial e a perseguição e tentativa
de violência por parte de um “capitão”, como o capitão
do mato, que arremessa uma foice, porque o mesmo
tinha parado para matar sua fome. Ou seja, Chico mostra
que na contemporaneidade ainda há resquícios do terror
escravista. Ele consegue fugir e promete vingança, e para
isso vai juntar sua nação, citando nomes: Dona Ginga,
Zumbi, Veludinho e Mestre Salustiano.

De Zumbi e do último podemos ter certeza a quem Chico


se refere: Manoel Salustiano foi um mestre da cultura
popular, rabequeiro, fundador do maracatu Piaba de Ouro

117
e um grande sábio. Dona Ginga e Veludinho, segundo
Herom Vargas83, seriam pessoas de destaque de maracatus
de Recife; porém, apenas encontrei referência a Veludinho
como percussionista do Maracatu Leão Coroado84, e não
obtive confirmação se a referência seria a ele. Em conversa
com Jorge Dü Peixe, ele não conseguiu precisar essas
referências, mas acredita que seriam “mitos universais”,
então Chico Science poderia também estar referenciando
Exu Veludinho, da umbanda. Ao passo que Ginga é a
famosa rainha de Angola, Nzinga Mbandi, que conseguiu
vencer os portugueses, uma referência recorrente da luta
negra no mundo e figura mítica louvada nos maracatus.

A letra ainda vai citar o Daruê Malungo, que é um espaço


de cultura e apoio social a jovens da comunidade Chão
de Estrelas, localizada na Região Metropolitana de Recife.
Local muito importante da cultura negra recifense, foi
fundado pelo capoeirista Mestre Meia-Noite, e é onde
nasceu o Lamento Negro, grupo de Gilmar Bola 8, Gira,
Toca Ogan e Canhoto, que também fundaram a CSNZ.
A Lamento Negro era um grupo percussivo que tocava

83
VARGAS, 2007, p. 158.
84
Inventário Nacional de Referências Culturais – Dossiê Maracatu Nação, p. 47.

118
samba-reggae, inspirado nos blocos afro baianos que
surgiram a partir da década de 1970, e de onde vem todo o
poder percussivo da CSNZ, que passou a tocar mais ritmos
ligados à tradição afro-pernambucana. Daruê Malungo
é uma mistura de iorubá com kikongo, uma fusão muito
comum no Brasil, principalmente aqui em Pernambuco,
sendo daruê significando luta, em iorubá, e malungo,
companheiro, amigo, do kikongo.

Depois vem o verso “Eu vi, eu vi/ A minha boneca vodu/


Subir e descer no espaço/ Na hora da coroação”. Isso
é uma referência à calunga, que aqui tornou-se boneca
vodu. Essa referência que Chico Science fez, cruzando
diferentes tradições africanas, parece bem interessante.

As calungas são as bonecas, também ricamente


vestidas, que representam antigos ancestrais (eguns)
ou orixás, e são conduzidas pelas damas do paço,
mulheres que cumprem obrigações religiosas para
poderem pegá-las. Calungas e damas do paço
simbolizam o axé do grupo85.

85
Inventário Nacional de Referências Culturais – Dossiê Maracatu Nação, p. 18.

119
Podemos notar que o nome faz menção direta à Kalunga,
que é elemento de criação, o mar, e local importante para
espiritualidade e cosmopercepção Congo-Angola, que é
a origem do maracatu. Porém, hoje em dia, a maioria dos
maracatus da região apresentam ligações com terreiros
de candomblé, que são predominantemente de origem
iorubá, por motivos ainda incertos. Chico liga a calunga
ao vodu, que é outra espiritualidade de matriz africana,
praticadas pelos ewes e fons, etnias importantes e muito
presentes em nossa formação, que também têm ligação
com os iorubás, assim como os maracatus ainda têm
elementos de jurema, de matriz afro-indígena, comum em
alguns estados do Nordeste.

Nessa música ainda vai se desenvolver um denso


amálgama de diversas inspirações sônicas da CSNZ, como
observou Philip Galinsky, lembrado por Herom Vargas:

Como bem anotou Philip Galinsky (1999, pp. 237 e


ss.), diferentemente de outras canções tratadas acima,
nesta ficam nítidas quatro partes em que aparecem mais
ou menos misturados aspectos rítmicos, melódicos,
harmônicos, instrumentais e de canto típicos de quatro
tradições musicais envolvidas nas composições do

120
CSNZ: funk, maracatu, heavy metal e um híbrido de
rap, raggamuffin e embolada86.

O autor vai continuar sua análise minuciosa da música em


termos musicológicos, mas o que interessa no momento
é perceber a ligação da música na afrodiáspora em seus
termos transnacionais, mostrando a Améfrica, de Lélia
Gonzalez, ou o Atlântico Negro, de Paul Gilroy. Aqui convém
lembrar mais uma vez do changing same de Amiri Baraka
(1970), em que o impulso blues, ou o impulso africano,
está sendo descortinado na fusão engendrada pela CSNZ,
permitindo uma viagem sônica no tempo, assim como
também espacial, pois aqui temos Áfricas, Jamaica, EUA
e Brasil. Segundo o encarte do álbum, a música ainda tem
samples de Cuidado com o Bulldog, de Jorge Ben Jor,
Louvação, de Gilberto Gil e Torquato Neto, e Batmacumba,
de Gil e Caetano, na versão de Os Mutantes.

Outro aspecto, o linguístico, leva-nos ao falar do povo, que


está presente em várias canções do grupo, mas que aqui
é mais enfatizado. Chico Science utiliza-se do que Lélia
Gonzalez chamou de pretuguês, que foi o processo de

86
VARGAS, 2007, p. 157.

121
africanização da língua portuguesa, que indicava, além
do grande poder de influência da cultura africana, uma
forma de resistência ao colonialismo. E não somente um
falar que se lembra unicamente da geografia, Nordeste e
Pernambuco, enquanto esquece o fator racial de formação
do mesmo.

Etnia parece reivindicar um apaziguamento de tensões


raciais, como quis o pensamento brasileiro a partir da
obra de Gilberto Freyre. Mas o engraçado é que, ao situar
a etnia, e a cultura que a forma, citando uma provável
mestiçagem, Chico Science só menciona tradições de
matriz africana: “Capoeira que rasga o chão/ Samba que
sai da favela acabada/ É hip hop na minha embolada”.
E continua, após passá-las pela tecnologia afrociberdélica:
“Maracatu psicodélico/ Capoeira da Pesada/ Bumba meu
rádio/ Berimbau elétrico”. Ele também ainda faz uma
distinção de classe, saudando o povo e sua arte, e não
aqueles que tomam proveito deles, ficando evidente o que
ele estava colocando no sentido de subalternos e da classe
hegemônica, que é ocupada por uma maioria branca.

A questão racial em seus embates mais radicais e mais


diretos não é algo muito presente nas letras da CSNZ,
apesar de nelas termos críticas sociais contundentes e
sabermos para qual cor elas são direcionadas. Ainda há

122
menção constante a líderes da luta negra e não-branca:
lembrando que, desde a primeira música de Da Lama ao
Caos (1994), Monólogo ao pé do ouvido, saúdam-se os
Panteras Negras, Zumbi, Antônio Conselheiro, Lampião,
Emiliano Zapata e Augusto Sandino. A negritude era
acionada de forma sônica e ao lembrar suas lutas e
seus líderes. Um Passeio no Mundo Livre, por exemplo,
foi composta por Chico depois que Gilmar e Gira foram
abordados de forma truculenta pela polícia após saírem de
um ensaio, aqui em Recife87.

Quilombo Groove é uma música instrumental que faz


menção direta à maior forma de organização e resistência
negra na nossa história, tendo a percussão uma
característica dos toques de candomblé, algo sempre
presente no som da banda. Groove era uma palavra muito
usada por Chico, vinda do léxico da música negra afro-
americana, que indica, entre outras coisas, a sensação
do swing, ou balanço. Tem a ver com o ritmo diferenciado
da música negra e, segundo algumas falas presentes em
Vargas (2007), era quase uma obsessão de Chico encontrar
a “batida perfeita”, que tivesse o groove, o mangroove.

87
Disponível em: < http://conteudo.ebc.com.br/portal/projetos/2016/chicosci-
ence/ > Acesso em: 15 fev. 2023.

123
Maracatu Atômico inicia uma sequência mais afrociber-
délica do disco. A letra e música de Jorge Mautner e
Nelson Jacobina já tinha sido gravada por Gilberto Gil,
que também participa na faixa Macô, junto a Marcelo
D2. Apesar de não ser uma música autoral, a mesma se
encaixou na estética do disco de forma muito orgânica,
em que já anunciava pitadas de psicodelia e junção de
ancestralidade com ciência contemporânea, ao qualificá-
lo enquanto atômico e eletrônico.

Na sequência temos O Encontro de Isaac Asimov com


Santos Dumont no Céu, com letra de Chico e música de
H.D. Mabuse e Jorge Dü Peixe, música da banda Bom
Tom Rádio, na qual os três faziam experimentações
sonoras, antes da Nação Zumbi88. A canção faz referência
direta ao famoso autor de ficção científica russo Asimov,
e ao idealizador e construtor do primeiro avião da
humanidade, Dumont. Aqui parece nítida a simbologia do
que a imaginação pode criar e desembocar em realidade
através de sonhos e ciência, assim como o desejo
humano de voar, presente em tantos mitos, fantasias e
ficções científicas. Sonoramente há uma linha de baixo

88
VARGAS, 2007, p. 157.

124
hipnotizante de Dengue, uma entonação de voz que segue
essa indicação e efeitos e scratchs de Mario Caldato Jr.,
DJ dos Beastie Boys, que faz menção a uma atmosfera
de experimentação e psicodelia, assim como sonoridades
que já estão presentes em filmes de sci-fi.

Corpo de Lama traz a imagética de todo o conceito de


mangue e homem-caranguejo com o qual a banda trabalha
desde o início, ainda fixando de forma mais latente a
ideia de ficção científica com a sugestão de um corpo de
lama. A música ainda sugere uma ligação entre pessoas
diferentes, também em lugares distantes, assim como entre
elementos da natureza e ação humana, chuva, sol, rua.
Enquanto Sobremesa cita um foguete no céu, borboletas
se equilibrando no espaço, uma cadeira flutuando em
espiral, com um trompete ao final ajudando a construir a
atmosfera onírica. Um Satélite na Cabeça remixa a ideia da
parabólica enfiada na lama, ajudando a construir a ficção
sônica do disco.

Baião Ambiental é instrumental e parece dialogar com o


ambiente sonoro de Coco Dub, com um baião envenenado
na percussão e um baixo distorcido, fazendo a marcação,
porém pontuado em outra cadência por um piano mais

125
melancólico. O som do baião é ondulante e esse efeito foi
potencializado por uma técnica sonora em que os músicos
da percussão circulavam no estúdio por diferentes
microfones, como descreve Herom Vargas:

Segundo Lúcio Maia, um efeito curioso criado nessa


música foi produzido fisicamente no estúdio no
momento da gravação. Se ela é escutada em um fone-
de-ouvido, percebe-se que alguns instrumentos de
percussão ficam “circulando” de um canal ao outro do
estéreo. Mas não é uma circulação perfeita, ou seja,
não se “fecha” paulatinamente um canal quando o som
está “entrando” no outro. A gravação foi feita com os
músicos Lúcio Maia (triângulo), Toca Ogan (pandeiro)
e Gilmar Bola Oito (gonguê) andando pelo estúdio,
aproximando-se e distanciando-se de um ou de outro
microfone de gravação. Essa movimentação física dos
instrumentistas provoca um resultado sonoro mais
natural e imprevisível ― o “ambiental” do nome da
música ―, diferente do efeito produzido pelos controles
mais precisos existentes na mesa de gravação.89

89
Ibidem.

126
Desde o início, há um componente forte de experimentação
sonora na CSNZ, mesmo que nem todas as músicas
apontem para fora do que se convencionou dividir entre
avant-garde e popular, mas que a banda demonstra a
própria tensão dessas categorias em determinado nível.
Quando perguntado sobre o conceito de Afrociberdelia
e do texto de Bráulio Tavares, Chico Science fez um
comentário muito interessante, envolvendo também a
música em questão: “[...] parece que você está escutando
um baião no Rio de Janeiro, com outros sons. Então, olha,
que ano é isso? Então… É hoje! É amanhã. São essas
coisas que a gente tem que fazer agora no presente”. Isso
denota como eles articulavam o som para construir uma
ficção sônica, mesmo em uma música instrumental, e que
questões espaço-temporais estariam a todo momento
sendo articuladas pela banda.

A música é seguida por Sangue de Bairro, composta para


o filme Baile Perfumado (1996), que cita os integrantes do
bando de Lampião, um baião ainda mais grave e potente,
com o peso das alfaias e dos riffs de guitarra distorcidos.
Depois vem Enquanto o Mundo Explode, que parece uma
continuação musical da anterior, mas traz aspectos mais
contundentes para discutir o afrofuturismo. A canção dá

127
uma ideia de temporalidades distintas sendo vivenciadas
por aqueles tornados Outros, isso também parece ser
sugerido pelo título, pela ideia de que, enquanto o mundo
deles explode, estaremos buscando nossos guias.
Podemos até fazer uma aproximação com a ideia já
discutida de o apocalipse já estar acontecendo desde a
escravidão.

A letra traz os seguintes versos: “A engenharia cai sobre


as pedras/ Um curupira já tem o seu tênis importado/
Não conseguimos acompanhar o motor da história/ Mas
somos batizados pelo batuque/ E apreciamos a agricultura
celeste”. Ele fala de um capital que vai homogeneizando
culturas de sociedades distintas, afinal, até o Curupira já
tem seu tênis importado. Também mostra como nem todos
terão acesso aos bens de consumo e ao que é trazido
enquanto novidade por essa lógica, não conseguindo
acompanhá-los. Daí vem a sugestão de uma outra lógica,
outros valores civilizatórios, pois são abençoados pelo
batuque90. No momento que esses versos entram, a
introdução mais voltada para um rock, um heavy metal,

90
Importante mencionar que a palavra “batuque” vem sendo questionada
ultimamente pelo seu uso inaugural e regular como uma expressão racista que
tenta inferiorizar e homogeneizar as expressões culturais negras, porém que foi
ressignificada ao longo do tempo por aqueles que a executavam.

128
cessa e entram percussões que lembram um toque de
candomblé. Apreciar a agricultura celeste é uma referência
a Jorge Ben Jor e ao seu A Tábua de Esmeraldas (1974),
que cita esse conceito na música Eu Vou Torcer. É um
conceito derivado da alquimia e tem estreita relação com
a astrologia e a ideia de ligação do ser humano com todo
o cosmos.

Nem todas as músicas dos álbuns foram comentadas aqui,


porém acreditamos que temos um material consistente
que comprova a aproximação inequívoca da CSNZ com
o pensamento afrofuturista. Os dois primeiros discos
fazem acenos e intersecções com diversas temáticas,
tanto no seu aspecto lírico quanto no sonoro, entrando
de forma orgânica no compêndio raça-som-tecnologia-
ficção. Ancestralidades e futuros, alguns elementos de
espiritualidade, reivindicação histórica de protagonismos
negros, viagem sônica no tempo e no espaço e ficção
científica.

129
JÉSSICA CAiTanO e a rima do futuro

“Suxtenta, Donas Maria!” O eletrococo muderno de


Jéssica Caitano como eco afrofuturista no Sertão do Pajeú.

Jéssica Caitano é cantora, compositora, educadora e


percussionista. Atua como coquista, repentista, rapper,
brincante da cultura popular e produtora. Já integrou
o Maracatu Serra Grande do Pajeú e o Cambindas de
Triunfo, além de desenvolver trabalhos dentro do coco
e da poesia, linguagem pela qual a região do Sertão do
Pajeú, no interior de Pernambuco, é bastante conhecida.
Nascida na cidade de Triunfo, começa a ter contato com
a música desde criança, com os LPs que ouvia do pai e,
depois, integrando o Maracatu. Compra um pandeiro com
seu primeiro cachê e, a partir daí, já começa a compor
seus cocos.

Começa, em 2017, a fazer parte do duo Radiola Serra


Alta, grupo de música eletrônica da cidade, que misturava
o cancioneiro popular nordestino com programações e
beats eletrônicos. É com essa experiência que começa
a desenvolver o eletrococo muderno, quando, a partir
das bases eletrônicas, começa a rimar e acelerar seu
flow, adicionando influências do rap. Daí também surge

130
outro mote do seu estilo, o Rap Repente, algo que já
havia sido misturado por outros artistas antes dela, mas
que, com Jéssica, atinge outro patamar, alcançando uma
organicidade muito original.

A artista também tem parcerias com os DJs paraibanos


Chico Correa e Guirraiz, que produziram faixas solidificando
a estética de amálgama da música nordestina de raiz com
a eletrônica e o rap. Daí, podemos notar as interconexões
e reterritorializações da música negra transnacional,
constituindo o impulso africano que segue vivo e em
transformação, como desenvolveu Amiri Baraka em seu
conceito de changing same.

Como colocado, o changing same estaria articulando


outros conceitos importantes para o afrofuturismo, como o
caráter de arquivo, o poder da oralidade, a viagem sônica
no tempo e o tempo espiralar. O arquivo estaria presente
tanto em samples de sons anteriores às suas gravações,
como de pífano, sanfona, pandeiro, como em sua voz no
presente. A forma de cantar e compor de Jéssica atravessa
o tempo, pois reivindica a tradição dialética de cocos de
embolada, aboios, baiões, repentes, ao mesmo tempo
que projeta futuros criando algo novo a partir de flows
de rap e raggamuffin, com bases de experimentações
eletrônicas. Assim, ela consegue fazer a viagem sônica

131
no tempo, propondo que o mesmo seja experenciado de
forma circular/espiralar, rejeitando sua interpretação na
forma linear.

A oralidade, como forma de criação de mundos, de


transmissão de saberes e de comunicação, fica em
evidência em sua música. Caitano consegue construir
imagéticas do sertão, reconstruindo cada canto, cada
vivência, cada cheiro e modo de fazer. Além do sotaque
e da pronúncia das palavras, estão descritos a casa
de taipa, o fogão a lenha, a terra batida, o engenho, a
rede; o café, o mungunzá, a pinga, o umbuzeiro; o sítio,
a favela, as ladeiras, o “mei” do mato. Com uma poesia
sinestésica, costurada como uma colcha de retalhos, ela
vai descrevendo um lugar e sua cultura.

Ao mesmo tempo, ela está reivindicando uma cidadania


matuta e cosmopolita. Sua “pisada muderna” põe para
dançar sons tradicionais, que já vinham sendo feitos
no passado, junto com o que está sendo tocado e
falado no agora. A partir daí, propõe criar futuros: sua
“rima do futuro”, como acionada na música Surra de
Rima, desenrolada sobre bases eletrônicas, através
de sintetizador, programação e sampler de Chico
Correa, junto com o “batuque de tambor e a batida de
pandeiro”, almejam uma nova realidade sem machismo,

132
racismo e homofobia. Ela avisa: “Machista e paga pau eu
derrubo com poesia/ Não tem racista/ Nem homofobia”.

Na mesma música, ela anuncia que está falando do


Sertão do Pajeú para o mundo, também acionando a
transnacionalidade da cultura negra para além dos beats,
conectando rap e raggamuffin, na forma de entoar suas
rimas e citando o ragga nominalmente, como também o
faz em outras músicas, propondo assim a comunicação
Triunfo-Kingston. Aqui é importante lembrarmos que
essa característica de referenciar o ragga e misturá-lo ao
rap e à embolada tem uma gênese no canto de Chico
Science, o que coloca Jéssica nesta continuidade trazida
pelo artista. Nestes diferentes, porém próximos, gêneros
musicais e seus estilos de canto, separados no tempo
e no espaço, há uma nova maneira de congregá-los a
partir de Jéssica. Estamos falando do núcleo dinâmico da
música negra e seu fator transnacional, apresentando uma
unidade que se dá pelo impulso africano comum a todos.

Esses gêneros e estilos levam a qualidade da oralidade


ao seu nível máximo, em que a voz e as palavras estão
intimamente ligadas com o ritmo da música, dando
a sua cadência principal. Lembremos da citação do
camaronês Francis Bebey, ao falar que o principal
motivo dos instrumentos na música africana é reproduzir

133
a oralidade, a palavra humana. E tanto no flow do rap
como no dancehall e seu raggamuffin e na embolada, a
palavra também é marcação, é tambor. Isso me lembra
a fala de um dos maiores MCs de rap dos EUA, Rakim,
quando este afirmou que desenvolveu seu flow querendo
repetir os solos de sax de John Coltrane. Para mim, é uma
metáfora bonita e potente, pois, quando os africanos em
diáspora perderam o contato com suas línguas maternas,
predominantemente tonais, a música passou por outros
processos de significação; porém, pelos motivos expostos,
esses gêneros de que estamos tratando parecem fazer o
caminho de volta à África. O que é parcialmente explicado
por Bebey:

O negro americano conseguiu por tentativa e erro


transformar a linguagem do homem branco em uma
linguagem cantada cujas entonações lembram suas
línguas ancestrais. O deslocamento do acento tônico, a
elipse de certas sílabas e o acréscimo de onomatopeias
percussivas, sem falar nas dificuldades encontradas
para pronunciar corretamente algumas palavras, nos
deram… estilo declamatório91.

91
BEBEY apud FLOYD JR., 1995, p. 62.

134
Esse estilo declamatório, que experimenta com tons
e timbres diversos, está presente nas nossas vozes.
Em relação a isso, Francis Bebey afirma que a música
africana emerge

[d]as entonações e onomatopeias rítmicas da fala…


As vozes africanas são usadas para ecoar a fala e os
pensamentos das pessoas o mais fielmente possível,
sem embelezamento. Sua técnica é uma busca pela
verdade. Um cantor africano gaguejará se estiver
cantando sobre um gago ou tentará literalmente dar
um nó na língua quando tiver algo difícil de dizer.
Ele coloca a mão em concha sobre os ouvidos para
descobrir sonoridades inusitadas e as reproduz com
uma destreza que surpreende e encanta seus ouvintes.
A cantora africana alterna voz de cabeça e voz de peito
como um jogo de esconde-esconde em um labirinto
de ritmo. Cada nota que ela canta é um reflexo da
própria vida e sua técnica é amplamente adequada ao
seu papel de retratar a vida. Sua voz recria um mundo
de riso e dor, zombaria e louvor; e abre as portas do
tempo para revelar um vislumbre do futuro92.

92
Ibidem, p. 32.

135
Esse vislumbre de futuro está presente na recriação de
mundos: a partir de um dado de realidade, um reflexo da
vida, inventa-se uma forma de expressão criativa. A tríade
rap/ragga/repente também compartilha o reflexo da vida e
descreve o que se vê, criando imagens e mundos/futuros
possíveis. Essa tríade estaria presente no estilo de desafio,
em que a destreza e a força de uma rima apresenta o
artista que se destaca. Isso está intrinsecamente ligado
à qualidade do improviso, tão importante para a música
negra, que se relaciona com o chamado e a resposta.
Aqui existe o desafio entre um repentista/embolador e
outro, entre um MC e outro, entre um deejay93 e outro.
O escárnio, a zombaria, a ironia, a resposta são elementos
que estão presentes na música africana e também nesses
estilos afrodiaspóricos.

Também estão presentes os conteúdos de crítica social e


embate, a partir das vivências subalternizadas de pessoas
negras. As letras de Jéssica contêm tanto a característica
da recriação das imagens do cotidiano quanto forte críticas
sociais e o caráter do desafio. Ela rima sobre imagéticas
sertanejas e contra o racismo, machismo, homofobia e
xenofobia, sendo o preconceito contra os nordestinos uma
pauta constante. Nisso ela usa ironia, mas principalmente

93
Na tradição do dub e dancehall, é assim que os cantores são chamados.

136
o desafio, estabelecendo uma metalinguagem: ela discute
a própria rima, rimando. Suas palavras têm potência,
que faz reverberar em nossos ouvidos, como o grave, ao
mesmo tempo que ela anuncia esse poder, com sua Surra
de Rima, que “derruba o verso das parada melindrosa”, e
arremata: “revida, senão chora”.

Há outro verso em Surra de Rima que chama a atenção e


a conecta a outra qualidade importante na música negra:

E quando toca o eletrococo/ Meu corpo não se


controla/ O compasso segue a batida/ Eu me perco,
entro na roda/ E toda hora forma/ A energia sobe
do chão/ É pisada, na ladeira, poeira, consagração/
E não é miado, não/ É muderno, segue o embalo/ Corre
dentro do meu sangue/ Esse grave todo espaiado.

A frequência grave é também protagonista da ficção


sônica criada por Jéssica. Ela embala sua narrativa,
atravessa o seu corpo e provoca a perda de controle.
Guiando seu corpo e passos, seus pés em contato com a
terra, fazem com que ela entre na roda e a energia suba.
Aqui há a proposição de um ritual, de uma conexão
ancestral que é vivida através da roda e do transe:
consagrar, transubstanciação pelo rito; investir-se de
caráter sagrado. Além dos beats e nos samples de

137
percussão, a tessitura grave está investida também
no discurso.

Jéssica cita a conexão ancestral em entrevistas e em todo


o universo fantástico de suas músicas. Nominalmente,
ela propõe a todos que a busquem, o que fez
principalmente no momento da gravação do show no
Estúdio Showlivre94 , em 2019, que ela descreve como um
momento difícil, referindo-se à política nacional gerida pela
extrema-direita. Isso acontece na música Canarin, quando
ela recomenda que a energia ancestral seja utilizada como
forma de resistência. A música tem uma cadência mais
lenta e destoa do “piso ligeiro”, mostrando a versatilidade
vocal de Jéssica, cantando mais próxima das toadas,
aboios, loas e modas de viola.

Essa voz, junto com as programações e samples de


Chico Correa, cria uma ambientação sonora com sons
de chocalho, pífano e zabumba. Ainda ouvimos cantos
indígenas que provavelmente indicam etnias do Nordeste
do Brasil, pois Jéssica vai citar o Toré, dança-música-
ritual espiritual praticada em diferentes estados da região.
Também há menção ao “perré”, que é o andamento mais

94
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Ky4sQMjbz-w > Acesso
em: 16 fev. 2023.

138
lento do Caboclinho, dança-música de Pernambuco, de
matriz afro-indígena. Ela canta: “Era um passo maneiro/
Não saía do lugar”, indicando o andar mais lento, como
uma meditação. A conexão com o sagrado é proposta aqui
por outra via, também trazendo para jogo a ancestralidade
ameríndia e o transe a partir do sônico.

Elementos de uma espiritualidade afroindígena, que


hackeou o catolicismo colonial, são citados ao longo de
sua obra. Como, por exemplo, o pé de Jurema e a ave
maria (feat em Caju, de Afroito), e as benzedeiras com
suas rezas e ervas, descrevendo uma infinidade de plantas
da medicina natural ancestral em Reza, fazendo feat na
música de Luana Flores. A paraibana Luana é parceira
de Jéssica e desenvolve o projeto Nordeste Futurista,
se valendo da estética afrofuturista para criar sua ficção
sônica. Nessa música temos beats de Furmiga Dub, DJ
também paraibano, com sons de pandeiro e rabeca, assim
como escutamos rezas de benzedeiras. No clipe, há a
mata, ervas, velas, performances de rituais, as vestimentas
tradicionais e futuristas de Luana, um altar dividido entre
preto velho, bonecos e santos católicos, o boné de Jéssica
escrito Exu. A encruzilhada é um lugar importante para a
espiritualidade africana, e também é um lugar cantado
pela artista.

139
Ela também fala diretamente sobre outras ciências na
música Meu Tamborim, disponível no show gravado no
Estúdio Showlivre. Tamborim ou tamboril é uma árvore de
origem brasileira e, na música, que começa com toques
de tambores que remetem aos pontos de umbanda, ela
vai relatar: “Vó Preta só rezava no povo embaixo do pé
de tamborim, porque ela disse que embaixo do pé de
tamborim tinha uma ciência, dona Maria”. Depois, ela pede
a “bença” à Vovó Preta e à Vovó Pastora e, na música,
pede “Oh mainha me deixe ir pro mato/ Que Vó Preta
mandou me chamar”. Não fica nítido se ela se refere às
rezadeiras ou às próprias entidades, mas há uma ligação
muito forte com a espiritualidade da Jurema, seus pretos
e pretas velhas e os encantados. Em outro exemplo, a
canção Minha Plantinha, de Doralyce, que também tem
a participação de Edgar, Jéssica rima sobre o universo
sagrado das plantas.

Assombração e fogo fátuo são outros elementos que


compõem a ficção sônica de Caitano, que admite
outras dimensões espectrais, como “o outro espectral”
que Weheliye (2005) descreveu sobre o dub e o duppy
(fantasma). Steinskog (2018) também associou a relação
do som com o outro, referindo-se à tradição literária
hegemônica, constituindo então uma “tradição radical
negra” como contra-história. Nesse cruzo com a estética

140
dub, ouvimos ecos, delays e reverbs, na voz ou nos
samples, assim como repetições hipnóticas, que criam
uma espacialidade sonora e propõem um sentido de
experiência de tempo diferente dentro da música.

Essa estética relacional e cruzada está presente no som


e no verso, nas experiências diferentes do tempo, na
cidade e no “mei do mato”, na “mudernidade” e no “som
das antiga”; na menina de salto ou de chinela rasteira,
no “baile de batuque”, no “flow de repente”, constituindo
uma experiência sonora afrodiaspórica em sua maior
potência, que, de acordo com Paul Gilroy (2001), a cultura
expressiva negra deveria ser tratada como o cronótopo
da encruzilhada. Já vimos que Exu e a encruzilhada são
referências para Jéssica, e, como colocou Luiz Rufino, o
orixá poderia ser representado como a epistemologia da
afrodiáspora pelo poder que sua figura suscita:

A figura de Exu emerge nesse texto como forma de


pensarmos as relações entre tempo-espaço e as
significações produzidas no trânsito das populações
negras vítimas da escravidão. Exu incorpora-se na afro-
diáspora e se transforma em metáfora desse movimento
por se caracterizar como o dinamizador dos fluxos, da
comunicação, dos atravessamentos, da recriação e da
ambivalência. Todos esses elementos que pertencem

141
e formam o orixá são também características
fundamentais dos movimentos de dispersão das
populações negras nas Américas, favorecendo, assim,
a apropriação e uso desse símbolo95.

Então, o cruzo está no cerne da estética de Jéssica. Ainda


podemos ouvir o tecnobrega em O Mote e o funk carioca
em Terra Vermelha, canções em parceria com Chico Correa;
o brega-funk-dancehall em sua parceria com Luísa e
Os Alquimistas, em Descoladinha e Jaguatirica Print e o
tecno-brega-experimental de Vekanandra, com o mesmo
grupo. Além do forró-pop em Te Dar, de Jáder; o baião-
reggae em Na Roça Tá Chovendo, com os baianos do
Roça Sound; o experimentalismo em Secante Caju, feat
com Jadsa e João Meirelles; e na Jam #01, gravada com
outros artistas por ocasião do festival Corpas Sonoras,
em 2021.

95
RUFINO, 2014, p. 60.

142
radiola serra alta

Foi com Radiola Serra Alta que Jéssica começou a gravar


suas primeiras composições e onde foi desenvolvendo
seu eletrococo muderno, seu rap-repente. O duo já tinha
um álbum gravado, Computador de Ciço (2014), e depois
Jéssica começou a fazer participações pontuais em seus
shows, cantando algumas músicas. Depois, passou a
fazer o show completo, dando uma nova dinâmica às
apresentações do grupo. Essa ilustração está presente
num show gravado96, em 2020, durante a fase mais crítica
da pandemia de Covid-19, no Theatro Cinema Guarany, de
Triunfo, com recursos da Lei Aldir Blanc. Jéssica conduz o
carro no espaço acompanhada pelo Careta e pela Veinha,
personagens do carnaval de Triunfo de que os DJs do
Radiola se vestem. No banco de trás, um E.T. Há também
um planeta com anéis, rondado por um satélite. Nessa
imagem, as conexões com temáticas da ficção científica
ficam evidentes, em que a negritude de Jéssica e sua ficção
sônica afrodiaspórica a conecta com o afrofuturismo.

96
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=WPYGcpoQFvY >
Acesso em: 16 fev. 2023.

143
Pela importância dessa gênese sonora, irei analisar as duas
primeiras gravações de Jéssica Caitano com o Radiola
Serra Alta, disponíveis no Soundcloud dos mesmos: as
músicas Hoje Vai Gerar e Ragga do Sertão. A primeira,
lançada em 2017, apresenta elementos de música
eletrônica chiptune, ou seja, de produções sonoras em
8 bits, logo no início da música, marcados por um grave
distorcido. Logo depois, entra um beat de uma matriz
dancehall, que deu origem a outros como o reggaeton
e o brega-funk, para ficar em apenas dois exemplos do
influente gênero musical jamaicano. Distorções da voz e
efeitos de eco ajudam a nos conectar com uma atmosfera
sonora que tem o dub como peça chave. Na cadência
de seu canto, ela vai construindo imagens, como numa
colagem, de um passeio de uma juventude em Triunfo,
em que propõe um certo valor cosmopolita, porém com
a convivência temporal do que é considerado como uma
tradição mais antiga.

Para suscitar essas ideias ela vai usar gírias comuns nessa
faixa etária, como “hoje vai gerar”, “rolé”, “bonde”, “dar
close”, e convoca os conhecidos para a bodega, onde vai
rolar “som das antigas”. Aqui ela já sugere essas diferentes

144
temporalidades, avisando que vai ter coco na praça, e que
vai ter headbanger, repentista, embolador e declamador
de poesia. Dessa forma, ela cria uma narrativa de uma
noite numa cidade do interior, que vai apresentar tanto o
apreciador de heavy metal, conectado a uma cena musical
globalizada, quanto os músicos e artistas mais ligados a
uma tradição local. Essa imagem é reforçada pelos sons de
pandeiro e triângulo que ficam em primeiro plano sonoro,
cessando momentaneamente o beat principal.

Ela também já constrói uma ideia de classe falando da


“quebrada” e da “vibe maloqueiro”, ressignificando e
valorizando esses lugares e vivências. Essa imagem trazida
por Jéssica, apesar de ser uma descrição do olhar fincado
no presente, é também a possibilidade de abertura para
indicar futuros possíveis. Ela traz uma perspectiva plural,
diversa e inclusiva de uma vivência que, nas narrativas
mais hegemônicas, é marginalizada, “coisa de maloqueiro,
maconheiro, vagabundo e desocupado”. É uma lente
afirmativa a que se propõe, conectada com o passado,
o presente dela em Triunfo e um futuro possível para que
as comunidades negras sejam mais respeitadas em seus
modos de existência.

145
Na segunda música, chamada Ragga do Sertão (2019),
encontramos as referências à cultura musical negra
jamaicana, além do beat que lembra o dancehall, a
marcação do baixo, e o som de uma escaleta, que foi
largamente utilizada no dub por Augustus Pablo. Esses
sons são marcados também por um triângulo, ajudando
a criar as ambiências sonoras tão enfatizadas no dub, de
outra dimensão espiritual e de transe. O triângulo marca
também o encontro da embolada com o raggamuffin, algo
que Chico Science já fazia tão bem, pois o flow de Jéssica
também consegue conectar esses estilos musicais,
distantes no tempo e espaço, porém interligados pelo
continuum de uma tradição dialética da música negra.

Um verso chama a atenção nesse sentido, conectando sua


identidade negra, a luta, a quebrada, o importante local da
encruzilhada e o amálgama de gêneros da afrodiáspora
que servem de base para sua construção sonora ― rap,
coco e ragga que vão se misturar com as referências às
personagens do carnaval de Triunfo:

146
Sou negra de luta/ E eu não me abalo aqui por nada/ Eu
boto um lá no lajeiro/ Eu faço um flow pela quebrada/
Lá na encruzilhada/ Eu meto verso no pandeiro/ Faço
rima, trocadilho, embolada e rap ligeiro/ Meu flow é
maneiro/ No coco-ragga do sertão/ O Careta e a Veinha
fazendo as conexão.

Aqui, a característica de letras mais politizadas de Jéssica


aparece com mais evidência. Ela se posiciona, de forma
interseccional, com seus diferentes pertencimentos de
identidade: mulher, negra, LGBTQIAP+, nordestina,
sertaneja, favelada. Suas rimas e flow trazem muita
potência e constroem embates sonoros, e, além dos
seus marcadores sociais, também são citadas diversas
personalidades femininas, de diferentes áreas de atuação,
que se destacaram politicamente na luta pelos direitos das
mulheres e igualdade de gênero.

Reivindicando diferentes marcadores identitários, assim


como diferentes pertenças no mundo afrossônico, Jéssica
tem interesse na expansão de sentidos e rima contra
o racismo, LGBTfobia, a xenofobia, o classismo e o
machismo, reivindicando até mesmo pertenças geográficas
diferentes, indo até para fora do planeta Terra: “Sou dos
mei do mato/ Sou da cidade/ Sou da Lua/ Sou a voz da
parceiragem/ De rolé no mei da rua”.

147
BARBARIZE

O duo Barbarize foi formado em 2018 pelos cantores


Bárbara Espíndola e Yuri Lumin, a partir da vivência deles no
Coletivo Pão e Tinta, que desenvolve trabalhos de arte em
torno do break, grafitti e rap, baseado na comunidade do
Bode, no bairro do Pina, onde eles passaram a residir. Com
influências do Afro Trap, estilo criado pelo rapper francês,
de origem guineense-senegalesa, MHD; do Afro Rep, de
Rincon Sapiência e do funk brasileiro, desenvolveram um
estilo que conversa ainda com outros gêneros da relação
África-afrodiáspora, a exemplo do kuduro angolano.

Assumindo de forma declarada a alcunha de afrofuturistas,


o Barbarize desenvolve um projeto de sonoridades negras
que vai além dos gêneros já citados, incluindo também
o R&B e o samba, que são reprocessados pelos beats
desenvolvidos por DJ Césio.

O protagonismo negro é um tema que está presente em


todas as faixas de seu EP e álbum visual, SobreVivências
Periféricas97, lançado em 2021. O título tem a intenção de

97
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=gKWZzBKXu3Q >
Acesso em: 16 fev. 2023.

148
fazer um trocadilho em torno da situação de sobrevivência
na qual se encontra a maioria da população negra no
Brasil, assim como narrar as vivências periféricas e toda
a potência criativa que emana desses lugares. A capa tem
uma ilustração que faz referência direta ao afrofuturismo98 :
no fundo há estrelas, o espaço; Bárbara, com pintura neon
colorida toca o Sol; abaixo, está Yuri, com uma imagem
duplicada, com as mesmas cores, colar africano, e um
grande caranguejo atrás dele, como se suas patas fossem
parte do corpo do cantor; atrás dele vemos palafitas
hi-tech, imagem que as ressignifica. Seguiremos analisando
as músicas e a produção audiovisual atrelada a elas, que
contou com o roteiro e a direção de Victor Limår.

Em Celestial há a reverência aos ancestrais e às suas lutas,


que se desenrolam até a contemporaneidade, no que se
refere ao combate às violências e à subalternização de
corpos negros: “Nós existimos aqui/ Criaturas celestiais/
Luto por meus ancestrais/ Minha cor”. Eles se colocam
como criaturas celestes, em referência tanto à questão
do espaço, comum na narrativa de ficções científicas
ou especulativas, assim como à questão de estarmos
em conexão com o cosmos, sermos partes deste como

98
Disponível em: < https://bit.ly/capabarbarize > Acesso em: 16 fev. 2023.

149
mais um elemento ligado ao todo, que é algo presente no
pensamento africano. Nesse emaranhado também estão
presentes nossos ancestrais, que são também de extrema
importância para se entender filosofias e espiritualidades
do Continente Negro. Os seus legados e as suas lições
são destacados e representam tanto a imagem cíclica do
tempo como a continuidade de saberes e lutas. Sabemos
como a cor importa desde o advento da colonização e
como fator agregador de comunidades e identidades,
sendo também um componente de combate e resistência,
estando também a negritude aqui cantada pelo Barbarize.

No clipe, filmado em um estuário, lugar tão importante


desde o Movimento Mangue, e também como a geografia
d’o Bode, com suas palafitas precarizadas, os artistas
e atores usam vestimentas que cruzam referências de
ritos de matriz africana, nas roupas, de cores claras, e
nas danças. Além disso, usam acessórios que dialogam
com uma estética afrofuturista. Com um beat e vocais
menos acelerados, a música serve como uma introdução
e já cita um fator importante na estética afrofuturista, que
é a conjunção de temporalidades, projetando futuros,
olhando para o passado; assim como a recuperação do
mesmo. Essa forma de enxergar a vida está presente
numa interpretação filosófica, mítica e metafísica africana,
como já vimos em outros exemplos, como o sankofa ou

150
cosmograma bakongo. Essa noção do tempo espiralar
também é explicada por Leda Martins:

O aforisma kicongo “Ma’kwenda! Ma’kwysa!, o que se


passa agora, retornará depois” traduz com sabor a ideia
de que “o que flui no movimento cíclico, permanecerá
no movimento”. Essa mesma ideia grafa-se em uma
das mais importantes inscrições africanas, transcriada
de vários modos nas religiões afro-brasileiras, os
cosmogramas, signos do cosmos e da continuidade
da existência. Nessa sincronia, o passado pode
ser definido como um lugar de um saber e de uma
experiência acumulativos, que habitam o presente e o
futuro, sendo também por eles habitado99.

Na sequência temos Geração que vai cantar a “geração


que só quer dançar”. A música começa com um beat e
sample de berimbau, já anunciando que tipo de dança
está sendo articulada: a capoeira é dança-luta, indicando
a verve combativa que eles apresentam em suas letras,
sons e corpos. A sonoridade dos beats lembra o kuduro
angolano, e aqui seria interessante fazer esse paralelo com
a capoeira: a capoeira, que tem origem na região do Congo-
Angola, é desenvolvida por pessoas que acreditam que há

99
MARTINS, 2002, p. 85.

151
ciência nos corpos, e desenvolvem uma técnica e filosofia
para autodefesa, já que nossos antepassados estavam
sempre em guerra, ou vislumbrando a possibilidade desta
acontecer a qualquer instante. O kuduro também tem
relação direta com a guerra civil angolana, que aconteceu
de 1975 a 2002, onde MPLA e Unita guerrearam pelo
controle do país depois da independência de Portugal.
Segundo a pesquisadora Marissa Moorman,

Os últimos anos de guerra civil levou ao deslocamento


massivo de áreas rurais para urbanas, em especial
para Luanda. Essas pessoas só tinham aquilo que
podiam carregar ― e o próprio corpo. No kuduro,
dançarinos sem pernas ou braços ― por causa das
inúmeras minas terrestres e outras tragédias da guerra
― transformavam sua incapacidade em vantagens na
hora da performance. [...] Em vez de fugir da realidade
ou apagar a história e a memória da guerra, o kuduro
relembra esse mundo através da dança. O ritmo articula
o trauma da guerra e a destruição da nação100.

100
Disponível em: < https://bit.ly/kuduroperiferiaangola > Acesso em: 16 de fev.
2023.

152
A letra de Geração, fala sobre afrontar, derrubar um inimigo
que pode até mesmo estar se passando por amigo. Então
há uma proposição de resistência e revide, de ginga, para
dar a rasteira quando menos se esperava, porque tinha a
certeza de estar te enganando. É uma música, sobretudo,
sobre corpos negros, este lugar de saber e produção de
sentido, contrariando a separação cartesiana de mente e
corpo. Aquilo que Stuart Hall falou, isto é, por estarmos
excluídos do logocentrismo ocidental, fizemos de nossos
corpos, telas de representação. No mesmo comentário,
ele vai enfatizar a centralidade do estilo, música e corpo
para culturas afrodiaspóricas, e vemos que essa tríade é
muito bem explorada em todo o repertório do Barbarize.

Primeiro, peço que observem como, dentro do


repertório negro, o estilo ― que os críticos culturais
da corrente dominante muitas vezes acreditam ser
uma simples casca, uma embalagem, o revestimento
de açúcar na pílula ― se tornou em si a matéria do
acontecimento. Segundo, percebam como, deslocado
de um mundo logocêntrico ― onde o domínio direto
das modalidades culturais significou o domínio da
escrita e, daí, a crítica da escrita (crítica logocêntrica) e a
desconstrução da escrita ―, o povo da diáspora negra
tem, em oposição a tudo isso, encontrado a forma
profunda, a estrutura profunda de sua vida cultural na

153
música. Terceiro, pensem em como essas culturas têm
usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o
único capital cultural que tínhamos. Temos trabalhado
em nós mesmos como telas de representação101.

Hall, que foi professor de Gilroy, de forma similar, parte de


uma articulação de uma condição da escravidão para traçar
explicações sobre o porquê do corpo e da música serem
tão centrais na cultura afrodiaspórica. No entanto, quando
vimos a importância da oralidade para as culturas africanas
como em continuidade na afrodiáspora, percebemos que
estamos articulando uma cultura, um modo de pensar e
valores civilizatórios advindos de nossa ancestralidade
africana que aqui também se encontraram com as culturas
indígenas, que davam a mesma importância ao corpo,
numa tradição também oralizada. Quem explica isso de
maneira muito contundente é Leda Maria Martins, a cujo
pensamento retorno:

Nas danças rituais brasileiras, sejam de ascendência


banto ou nagô-iroubá, as coreografias côncavas e
convexas que criam um espaço de circunscrição

101
HALL, 2003, p. 342, grifos do autor.

154
do sujeito e do cosmos remetem-nos não apenas
ao universo semântico e simbólico da ação ali
re-apresentada, mas constituem em si mesmas
a própria ação instituída e constituída pela
performance do corpo. Dançar é performar, inscrever.
A performance ritual é, pois, um ato de inscrição. Nas
culturas predominantemente orais e gestuais, como
as africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo
é, por excelência, o local da memória, o corpo em
performance, o corpo que é performance. Como tal
esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas
também institui, interpreta e revisa o ato reencenado.
Daí a importância de ressaltarmos nas tradições
performáticas sua natureza meta-constitutiva, nas
quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo
imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo,
que a registra, transmite e modifica dinamicamente.
O corpo, nessas tradições, não é, portanto, apenas a
extensão de um saber reapresentado, e nem arquivo
de uma cristalização estática. Ele é, sim, local de um
saber em contínuo movimento de recriação formal,
remissão e transformações perenes do corpus cultural.

155
Nas tradições rituais afro-brasileiras, arlequinadas pelos
seus diversos cruzamentos simbólicos constitutivos,
o corpo é um corpo de adereços: movimentos,
voz, coreografias, propriedades de linguagem,
figurinos, desenhos na pele e no cabelo, adornos
e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e
metonimicamente como locus e ambiente do saber
e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas
que daí emergem são tecidos de memória, escrevem
história102.

Nesse texto, Performance do tempo espiralar, Martins


está articulando essas ideias a partir da sua pesquisa em
torno dos Congados mineiros e da ideia de ritual. Porém,
essa centralidade de voz/corpo/música/som/dança é
transmitida para as mais diversas performances dos
corpos negros, em diferentes contextos.

Com o beat mais grave, “pesadão”, e coreografias,


pessoas negras dançam pelos becos e vielas do Pina, com
seus muros grafitados. Roupas muito coloridas e óculos
de sol futuristas vestem o elenco do vídeo, reforçados pela
pintura corporal neon em Bárbara, aproximando a estética
do clipe a uma imagem de futurismo, ficção científica

102
MARTINS, 2002, p. 88.

156
e psicodelia. Veja que, a todo instante, eles estão
articulando o estilo dentro de uma perspectiva de
negritude: seja na escolha das formas sônicas, nas
suas performances, nas suas vestimentas, nos lugares e
cenários. Na letra, eles avisam para tomar cuidado com
quem está do seu lado e com o mau-olhado, ainda citando
um corpo fechado, temas tão comuns nas espiritualidades
afro-brasileiras e com tanto impacto na sociedade, que já
se espraiaram para nossa linguagem cotidiana.

Foco pede “foco” e “força” para negros e negras,


procurando provocar a ebulição de nossa autoestima e
gerar consciência de poder entre os nossos, embalados
pela dança e regados por um balde de cerveja.
Os beats lembram mais a experimentação do funk, no
estilo HeavyBaile que ambienta o aquilombamento jovem
e urbano que é construído imageticamente no clipe.
A música também fala sobre o adoecimento psíquico que
uma sociedade estruturalmente racista pode provocar em
corpos racializados. E aqui podemos lembrar a discussão
que foi feita em relação à frequência grave utilizada como
fator de cura em ritualizações africanas: a música e a dança
também estariam presentes para a reconexão ancestral e
no intuito de potencializar o efeito curativo.

157
Na sequência teremos a música que mais destoa no disco,
Raio de Sol, um samba-rap que busca um tom celebratório
da vida negra na periferia. A narrativa se passa na favela
e fala de um flerte, que envolve, no enredo, futebol e uma
laje com churrasquinho e chuveirão e, dessa maneira,
vai trabalhando com algumas figuras comuns na vida de
jovens periféricos. O que pareceria uma narrativa mais
apaziguadora muda de figura quando o Barbarize pede
a união política da favela, fato que também é sentido
no videoclipe, que mostra corpos dissidentes. O corpo
negro já é algo fora da normatividade, porém a filmagem
estende também para corpos fora do padrão ditados pela
indústria da moda e para a ideia de belo, dentro de uma
perspectiva eurocêntrica. De forma geral, toda iconografia
de que estamos tratando, os figurinos, as maquiagens, os
cenários, assim como todo o cuidado na representação
dos cabelos afro complementam a narrativa desta ficção
sônica. São tranças e penteados dos mais variados estilos,
estimulando uma representação positiva da negritude.

158
Ilumina é uma celebração à Deusa da Lama, interpretada
no videoclipe por Bárbara, que é a razão de desejo e
admiração da personagem de Yuri Lumi, que emula uma
entidade ou um sacerdote, com pinturas corporais e um
cachimbo de preto velho, dançando na frente de um altar
com muitas velas. Aqui os deuses e as deusas dançam,
mexendo o “rabetão”, e assim rejeitam a separação entre
o sagrado e o profano, gerando a aproximação do plano
espiritual com o mundo físico. Há tom de brincadeira,
divertimento e também ironia, já que, em uma das últimas
cenas, algumas das personagens femininas estão usando
o que parece um hábito, destoando dos corpos livres e
com pinturas corporais que dançavam anteriormente.
O clipe fecha com imagem de velas em cima do símbolo do
adinkra sankofa, uma construção muito comum nos gradis
de ferro e que, como vimos, estabelece uma relação entre
passado, presente e futuro de forma integrada e cíclica,
não-linear. O estilo do flow dos cantores e o beat lembram
o reggaeton afro-latino.

159
Afro trap, afrobeats e kuduro são facilmente escutados
em Pretos no Topo, a canção que fecha o álbum visual/
EP da Barbarize. A música fala sobre protagonismo e
autoestima negras e apropriação cultural, enquanto, no
clipe, algumas personagens queimam um boneco que
faz referência a Bolsonaro. Há corpos negros dançando
e altivos, celebrando uma ideia de comunidade. Yuri e
Bárbara ainda encontram com um ser espiritual que parece
mostrá-los e confirmar esse caminho de empoderamento.
Há uma cena um tanto divertida, em que Yuri arranca a
página de um livro e a mastiga, o que, para o presente
texto se mostra um fértil paralelo com a ideia de força da
oralidade africana frente à tradição literária eurocêntrica.
Isso se reforça pelo destaque dado à dança e aos corpos
negros como importantes geradores de conhecimento e
sentido em toda construção estética do duo.

160
Esse sentido de comunidade é sempre falado nas
entrevistas consultadas e é algo que é confirmado ao
assistirmos e ao ouvirmos o trabalho do grupo. Há uma
quantidade grande de pessoas trabalhando na frente e por
trás das câmeras, como mostrados nos extras disponíveis
no YouTube, confirmados pela grande ficha técnica com os
nomes dos envolvidos. Além do Coletivo Pão e Tinta ser
lembrado em suas falas, houve o esforço coletivo que foi
feito para gravação do EP e do álbum visual, já que o último
foi gravado com recursos da Lei Aldir Blanc, que é de baixo
orçamento, e mesmo assim foi realizado um trabalho muito
bem pensado e executado. As letras também citam essa
comunidade, o que nos lembra da música negra como
elemento catalisador desse processo.

Depois do EP, ainda foram lançados três singles: Kikalor


(2021), Spray de Pimenta (2021) e Hit da Evolução (2022).
O primeiro é estilo hit de verão, com batidão e sample de
guitarra, com citação direta a Fernanda Abreu e Chico
Science. Mas seria um hit estilo Barbarize, com o grave
e o beat frenético, retratando e celebrando uma estética
periférica melanizada. A cerveja, o vendedor ambulante
de bronzeadores, “torrar” no sol, descolorir o cabelo e
o clima esquentando também nos encontros de corpos,
muitos destes como corpas dissidentes. Novamente,
aqui há corpos fora do padrão e performances de outras

161
interseccionalidades de gênero e orientação sexual, como
casais LGBTQIAP+ e mulher trans.

Já o segundo, é uma música de enfrentamento, relatando


a brutalidade policial e convocando o povo à reação. Seu
beat foi feito pelo próprio Yuri e apresenta uma criação
mais experimental, utilizando mais efeitos e texturas
sonoras, propondo um diálogo com o techno. O último é
uma música em parceria com a cantora Mun Há, que se
identifica como uma “trava não-binárie”. O beat também
segue o caráter mais exploratório e se aproxima de um
afro-house, encorpado pelo afrotrap, com muitos efeitos
sonoros e uma forte centralidade no grave, com batida
hipnótica.

No videoclipe, com direção de George Lucas e roteiro


dos cantores, há um salto de qualidade técnica e ainda
mais elementos do afrofuturismo: corpos celestes, o Sol,
a Terra, efeitos de computação gráfica e pintura corporal,
ambientam sua dança no espaço e compõem os elementos
de seu universo fantástico.

162
A partir de suas músicas e performances audiovisuais,
Barbarize trabalha com a estética e política afrofuturista,
criando uma ficção sônica. Utilizam-se de tradições
dialéticas e ancestralidades para propor futuros melhores
para a população negra. Conectam-se à África e à
afrodiáspora reencenando narrativas de solidariedade
e unidade, o que se dá, primordialmente, por suas
construções de mundos e saberes, através do sônico.

163
164
POSFÁCIO

Deivison Campos
É jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e doutorando
em História. Professor do PPG em Comunicação Social da
PUCRS. Coordena a área de Comunicação e Mídia da Associação
Brasileira de Pesquisadora(a)s Negro(a)s.

Reinvenção da diáspora
na música Pernambucana

Qual o melhor lugar para se pensar a diáspora africana e


suas reinvenções que não o que se tornou no local? Qual
o principal canal de diálogo e que constitui esse espaço
geopolítico e geo-comunicacional que não a música?
A proposta de pensar o afrofuturismo, uma das formas de
ser e produzir o afro na diáspora, com base nos encontros
sonoros entre a tradição e o eletrônico, com características
ou autodeclaração afrofuturista, a partir de Pernambuco,
aponta para o que há de mais afro na diáspora.

165
É a manifestação efetiva daquilo que Gilroy103 denominou
mesmo-mutante, ou seja, a mesma matriz que produz
diferentes produtos e práticas. A referencialidade e
o encontro conferem ao afro a característica de uma
tradição não tradicional. Uma tradição que é permanente
presentificada e atualizada em suas possibilidades,
sem que com isso se deixe de perceber, em se tratando
de música, ouvir, os ecos do Zamani, a tradição
imemorial104. Som.

A tradição oral conta que a música foi um presente


de Olorum para novamente unir homens e Orixás. Uma
ponte entre o Orum e o Aiyê, depois que foram separados.
Através do tambor e do metal, entidades sagradas, os
homens puderam novamente evocar seus ancestrais para
dançar e festejar de maneira conjunta. A música, portanto,
é sagrada e está presente em todas as manifestações
e sociabilidades negras para produzir o comum.

103
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São
Paulo: Ed. 34.
104
CASTINIANO, José P. Referenciais da Filosofia Africana: em busca da
intersubjetivação. Maputo: Editora Ndjira, 2010.

166
Na travessia, impossibilitados de transportar qualquer
bagagem que não a memória, os africanos escravizados
levaram consigo o ritmo. Este, segundo Mukuna (2005),
é elemento de memória no tempo e, mais do que isso,
o veículo para a produção de força vital, o axé. Não por
acaso, as primeiras formas de sociabilidade registradas
e permitidas entre os escravizados ― mesmo frente à
mistura etnolinguística e à recusa de humanidade ― foram
as rodas de batuque. Tecnologia.

A roda de batuque, conforme tenho trabalhado, é a primeira


tecnologia espaço-tempo desenvolvida na diáspora pelos
africanos desterritorializados. Foi a forma que encontraram
para criar um retorno simbólico ao continente de origem,
produzindo pequenas Áfricas nos espaços delimitados
por seus corpos, cujo centro aciona o Sasa, tempo da
memória, e o Zamani, tempo imemorial. Experiência que
todos que se entregaram a uma roda afro já vivenciaram.
Essa característica de subversão do tempo-espaço,
produzindo aqui-agoras complexos, vai marcar a proposta
afrofuturista e suas realizações nos mais diferentes campos
de produção simbólica e material.

167
O poder sagrado conferido pelo tambor é tão grande que
evoca o que há de mais sagrado na ancestralidade africana
e, ao mesmo tempo, mobiliza para realizações como a
Revolução Haitiana. A história, silenciada por muito tempo,
mostra o papel do tambor na organização dos negros em
sua luta pela liberdade. Esse episódio levou, entre outras
coisas, à proibição da percussão do instrumento nos
Estados Unidos até a primeira década do século passado,
principalmente no Sul, quando os segregacionistas
acreditavam que os negros estivessem sob controle pela
violência. Chegamos assim ao jazz, marco de proposição
do afrofuturismo. Sun Ra.

A emergência do artista, o primeiro visível, se impõe


contra a tentativa de branqueamento do jazz em Chicago.
Sua inovação e produção acionou a característica mutante
da tradição, a fim de que se mantivesse a mesma, ou seja,
música sagrada e negra. Sem esse contexto local, não é
possível compreender a dimensão da proposta estética
de Sun Ra. Portanto, a dimensão de ficção científica,
inicialmente central para a definição do estilo, não dá conta
das subversões do espaço-tempo da diáspora. As culturas
viajantes, como denomina Gilroy, são permanentemente
misturadas, reelaboradas, ressignificadas, produzindo o

168
novo que sempre foi. Isso porque, ao contrário das culturas
do chamado Ocidente, esse movimento está voltado a
presentificar a tradição. Sankofa.

A centralidade da música, como proposto no livro, portanto,


é mais do que uma característica do afrofuturismo.
É a característica do afro, e esse movimento possibilitado
por ela fez com que as culturas negras tomassem as
culturas populares do mundo105 (HALL, 2003). Pensar o
afrofuturismo a partir dessa chave projeta a análise para
além de um movimento estético. A música pariu o afro
nas rodas. A música constrói territorialidades nas quais
se produzem o melhor comum. A música é o sagrado.
A música é o que torna o afro o que sempre foi.

Olhado a partir da música, o afrofuturismo é um lugar de


encontro. É uma presentificação da tradição, um mesmo-
mutante. É o lugar da ancestralidade e da memória. É o
lugar de ver a diáspora a partir do local e o que ela se tornou.
A música afrofuturista, referida a partir de Chico Science
& Nação Zumbi, Jéssica Caitano e Barbarize, é a música
negra de sempre. Os ritmos tradicionais pernambucanos
são a base para algo que surge sendo, o mesmo-mutante.

105
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2003.

169
Música que faz sentido em toda a diáspora não pela
novidade afrofuturista, mas pelo ritmo e pelo tambor.
O grave. O “um” que desterritorializa e sempre retorna,
o tempo espiralar que inspira. Negritude.

A dimensão diaspórica futurista de Chico Science &


Nação Zumbi surge no próprio nome do cantor/grupo.
A sonoridade, que impactou a diáspora, já foi objeto de
reflexão de diferentes autores. O olhar afrodiaspórico
igualmente já foi apontado. No entanto, a análise realizada
por Rafoso106 suporta essa percepção de forma mais detida
e argumentada. Refere como aparece na sonoridade, mas
igualmente nos versos, nome das músicas e visualidades
propostas pelos músicos. A estética do grupo e mesmo
do movimento ainda tem tudo a ser dito. Como dito, é
um modelo de como o tempo espiralar se territorializa:
sonoridade atemporal, que dialoga com a tradição e a
presentifica, projetando um devir negro.

106
“Rafoso” é como o pesquisador Rafael de Queiroz é conhecido e chamado
por algumas pessoas.

170
O coco em Jéssica Caitano é o que gera reconhecimento
em sua música. Da mesma forma, o encontro com a
música eletrônica gera uma sonoridade nova, que se
mantém. Esse cruzo é destrinchado e projetado para a
diáspora nas análises. Em sua música, o local é projetado
para a diáspora. Em Barbarize, o movimento por vezes é o
inverso. O kuduro, música de África, é trazido e traduzido
a partir de sonoridades locais, encontrando com rap,
Afrotrap, R&B, samba, demonstrando que o “um” é o que
une, independentemente do local em que seja produzido
num tempo espiralar. Afrofuturismo.

O sentido inicial de afrofuturismo, proposto pelo jornalista


branco Mark Dery107, tendo como elemento base a ficção
científica, tem sido tensionado e enegrecido. Com isso,
esse elemento ainda surge como tema, mas ganha
predominância a negritude, como possibilidade de ser,
ligada à tradição, à tecnologia, não necessariamente
maquínica, e principalmente ao som ― chaves deste
livro. Olhando para o passado, os músicos projetam hoje
sonoridades da diáspora para o local e de Pernambuco
para diáspora, a fim de que sejam ouvidas e presentificadas

107
DERY, Mark. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate
and Tricia Rose”. In: Flame Wars: the discourse of cyberculture. Durham: Duke
University Press, 1994.

171
no futuro. Não o que se projeta para o devir, mas o que
quer ver hoje aquilo que foi.

Assim como Sun Ra, jogo âncoras no passado para


propor uma reelaboração; os músicos aqui analisados
também o fizeram numa tradição mais recente, a partir
do maracatu, coco e samba, entre outros gêneros, num
tempo complexo. Esse é o tempo da música, o tempo do
afrofuturismo e o tempo deste livro. Nele, Rafoso reflete
a partir do local e da diáspora no presente para deixar
marcas para o futuro, olhando para a tradição. Embarque
na nave.

Som
Tecnologia
Sun Ra
Sankofa
Negritude
Afrofuturismo

172
173
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177
Foto: Ludimilla Carvalho

Rafael de Queiroz é um homem


negro, radialista e pai de Martin.
Apaixonado por música desde
a infância, sempre a rondou,
de alguma forma, fosse como
vendedor de discos no comércio ao
seu Doutorado em Comunicação,
pesquisando a música negra com
a tese Fogo nos Racistas! Episte-
mologias negras para ler, ver e
ouvir a música afrodiaspórica.
Já trabalhou na produção de
festivais de música, como DJ na
noite recifense, como crítico cultural
e produziu o podcast Afrossonora.
Continua pesquisando e escreven-
do sobre a cultura negra.
“África e suas diásporas são formadores dos nossos
meios de viver, sobreviver, imaginar e, também, criar
futuros. E tanto a música quanto o som atravessam e
ligam esses sentidos (...) A arte afrodiaspórica, sendo
feita a partir de um sujeito em luta com estruturas
de poder e que usa suas desvantagens psicossociais
como uma vantagem narrativa, pode encorajar
processos de desalienação.”

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