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E-Book Cronopolíticas Afrossônicas (2023) - Rafael de Queiroz
E-Book Cronopolíticas Afrossônicas (2023) - Rafael de Queiroz
Pesquisa rafaeldequeiroz@gmail.com
Rafael de Queiroz @rafaelpfqueiroz (instagram)
Edição
Rodrigo Édipo Silva
Revisão
Gilberto Clementino Neto
Audiodescrição e acessibilidade
COM - Acessibilidade Comunicacional
Produção executiva
Ludimilla Carvalho
Queiroz, Rafael de
Cronopolíticas afrossônicas [livro eletrônico] :
ecos do afrofuturismo na música pernambucana /
Rafael de Queiroz. -- Recife, PE : Ed. do Autor,
2023.
PDF
Bibliografia.
ISBN 978-65-00-67705-8
23-152699 CDD-780
Índices para catálogo sistemático:
1. Música brasileira : Recife : Pernambuco :
Estado : História e crítica 781.63098134
A Martin, meu filho,
como símbolo do futuro para nós,
negros e negras.
Agradecimentos
Bibliografia 174
12
prefácio
H.d. Mabuse
É designer no CESAR e professor de Filosofia do Design
no mestrado do programa MPD da CESAR School. Mestre
em Design pelo PPG Design da UFPE, onde cursa o
doutorado. Tem trabalhado desde 1990 com colaboração,
comportamentos emergentes e remix de várias linguagens
nas áreas das artes visuais, design e música.
13
Esse tempo histórico tornou ainda mais evidentes as
contradições que nos formam, uma origem que busca
apagar as histórias milenares de povos que aqui estavam
antes da invasão europeia, quando o Brasil surge como
uma iniciativa econômica, extrativista de exportação,
da qual recebemos o nome de um produto (assim
como a Argentina e a Costa do Marfim), que, quando foi
trocado pela cana-de-açúcar, consolidou uma história
de empreendimento baseado na mão de obra de povos
escravizados e trazidos de África.
1
GOLDMAN, M. “‘Nada é igual’. variações sobre a relação afro-indígena”.
Mana: Estudos de Antropologia Social, 2021. v. 27, n. 2, p. 1-39.
14
De forma alguma pretendo colocar em segundo plano
as contribuições no campo dessa racionalidade, que nos
chegam pelas palavras de autoras e autores como Beatriz
Nascimento, Conceição Evaristo, Ailton Krenak, Antônio
Bispo, Clóvis Moura, Sueli Carneiro, Davi Kopenawa, Lélia
Gonzalez, entre tantas e tantos outros. Mas, na minha
opinião, é na dimensão dos afetos, quando se encontram
nas ruas os maracatus, caboclinhos, afoxés, orquestras de
frevo e demais brincantes, que se constrói o entendimento
mais sofisticado desse encontro.
15
arquitetura, química, filosofia, agricultura e astronomia.
No entanto, esse legado kemético ainda é disputado, pois
há um esforço de apagar a africanidade e negritude dessa
civilização por parte da ciência europeia. Isso é resultado de
um discurso racista, moderno, de superioridade e fundação
de um pensamento “não-primitivo” por Grécia e Roma,
o que justifica a violência, o colonialismo, a escravidão e
a exploração.
16
das expressões culturais negras diante das narrativas
dominantes e na promoção de uma compreensão
pluralista e diversa da identidade brasileira.
17
18
Especulações cósmicas e
o respeito ao desconhecido
“Mas há uma história de pessoas negras olhando para o céu” -
Jarita Holbrook
2
DERY, Mark. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate
and Tricia Rose”. In: Flame Wars: the discourse of cyberculture. Durham: Duke
University Press, 1994.
19
Muitas características do que envolveria a ideia de um
afrofuturismo foram elencadas acima, e mais adiante
iremos explicá-las com mais rigor. No entanto, gostaria
de começar especulando sobre a nossa remota relação
com o espaço, o cosmos e o desconhecido. Do Kemet
ao candomblé brasileiro, há um sentido de segredo e
mistério em práticas espirituais, científicas e artísticas.
Manifestações estas importantes de serem respeitadas,
visto que levou-se anos para a obtenção de determinados
conhecimentos, e só aqueles que imergiram nos mesmos
puderam ter acesso a eles. É importante compreender
que espiritualidade, ciência e arte não eram instâncias
separadas, distantes e díspares, conforme encontramos na
estrutura epistêmica ocidental. Para mim, esse fenômeno
está relacionado também a um respeito ao desconhecido,
uma metáfora que costumamos associar às primeiras
buscas místicas, míticas e filosóficas de onde viemos e
qual seria nosso propósito, até à exploração espacial.
20
do saber: matemática, geometria, medicina, arquitetura,
química, filosofia, agricultura e astronomia ― todas elas
creditadas a essa civilização africana, que até hoje é
estudada.
3
Foi o maior historiador africano do século XX e o primeiro egiptólogo de África.
Além disso, ainda possuía formação em Física, Filosofia, Química, Linguística,
Economia, Sociologia e Antropologia. Dedicou seu trabalho a provar a origem
africana das civilizações e de que toda África, até os dias de hoje, descendia
desta cultura. Enfrentou o racismo científico e apresentou a tese, ainda na década
de 1950, sobre a negritude dos egípcios e a origem africana da humanidade,
fato que foi rechaçado pelos pesquisadores brancos. Tinha o objetivo político de
autodeterminação africana em seus períodos de reconstrução, após a violência
colonial, pois acreditava que, provando o caráter civilizador de África, poderia
impulsionar essa retomada política e cultural.
21
Isso porque seria inadmissível para a retórica
eurocêntrica reconhecer a anterioridade e complexidade
de um organismo social africano, o que colocaria em
xeque o discurso de superioridade e de fundação de
um pensamento “não-primitivo” por Grécia e Roma.
O racismo contido nessas ideias, que são populares até
hoje, também tenta erradicar toda sorte de conhecimentos
produzidos fora dos centros do Norte global4, assim
como justificar a violência, o colonialismo, a escravidão e
a exploração.
4
Norte Global refere-se à América do Norte e Europa. É uma expressão dentro da
geopolítica, que se relaciona a conceitos como pós-colonialismo, epistemologias
do sul e o pensamento decolonial. Pretende localizar e estudar aspectos das
culturas hegemônicas, suas implicações políticas, econômicas, sociais, raciais,
etc., e suas imposições ao Sul Global. Nesta análise não monolítica, percebe-se
tanto as elites descendentes de europeus no Sul, como os brancos no Brasil,
por exemplo, quanto os subalternizados no Norte, como negros e indígenas
nos EUA.
22
que as representações midiáticas geralmente retratavam
os habitantes de Kemet como brancos. Daí, em História
do Brasil, já pulávamos para as “incríveis” realizações dos
portugueses, que fundaram nossa Nação, com a ajuda
subalterna dos “escravos negros”. O mito da europeidade
enquanto superioridade imaginada foi impulsionado pelo
colonialismo e atravessou tempo e espaço, chegando até
aos recônditos de uma escola em Recife, Pernambuco,
nos anos de 1990 d.C., quase confirmando a máxima
hegeliana de que a África não tinha história5. Nada além
da escravidão.
5
Para Hegel, “o homem na África negra vive no estado de barbárie e selvageria
que o impede ainda de fazer parte integral da civilização”. O racismo de Hegel
já foi bastante estudado e há muitas discussões disponíveis para consulta. Para
uma introdução ao tema, ainda relacionado à realidade brasileira, sugiro a leitura
do artigo “Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje”
(2015), do professor Kabengele Munanga.
23
Apesar de esforços contínuos e históricos dos Movimentos
Negros, além de outras conquistas, como a Lei n° 10.639/
036 e a chamada Lei de Cotas, que vem formando cada vez
mais intelectuais negros e causando um deslocamento nos
centros de poder e saber, ainda há muito a se conquistar
e produzir para fazer justiça a essa memória. Obras como
O Legado Roubado, de George James, e Black Athena,
de Martin Bernal, procuraram elucidar questões sobre
esse mito de uma suposta “fundação da humanidade
e de seus conhecimentos” nascida na Grécia Antiga.
Eles mostram que isso é não somente uma falácia,
como os próprios gregos iam ao Kemet para aprender e,
sem sequer completar o tempo de estudo exigido para
tornar-se um sábio, retornavam ao seu país de origem e
fundavam suas escolas de pensamento ou apresentavam
“suas” teorias.
6
Texto da lei: “Altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’,
e dá outras providências.”.
24
Em vista dessa histórica série de violências, fico me
perguntando como seremos livres e amar nossa negritude
― e assim nos constituirmos enquanto seres políticos
de ação ― se não conhecemos nossa história? Por isso,
o lugar de importância e centralidade do Kemet deve
ser lembrado, e ainda há muito a se descortinar sobre
sua história. Assim como uma civilização irmã de Kemet
e que a pré-data, a Núbia, onde hoje estaria localizado
o Sudão. Temos ainda menos conhecimento sobre esse
povo que, até onde se sabe, é o mais antigo e longevo
da humanidade. Essas civilizações, Kemet e Núbia,
compartilhavam uma cultura próxima, com deidades,
faraós e o conhecimento científico, dentre eles, referências
abundantes ao estudo astronômico. Um manuscrito
encontrado na famosa biblioteca de Timbuktu, no Mali,
descrevia o conhecimento sobre os astros na arte e na
arquitetura do Kemet como algo onipresente. Segundo a
pesquisadora Ytasha Womack, “Pirâmides foram alocadas
para se alinhar com o movimento das constelações,
o nascer do sol do solstício e os pontos cardeais na
bússola. A estrela Sirius foi associada à inundação anual
do rio Nilo. Os egípcios tinham uma compreensão muito
sofisticada da astronomia que permeou a vida cotidiana”7.
7
WOMACK, 2014, p. 83-84.
25
Os povos dogon, que habitam o que hoje são os territórios
de Gana e Burkina Faso, também são reconhecidos pelos
avançados conhecimentos astronômicos, adquiridos
muito antes do Ocidente, que só veio a obtê-los a partir
da invenção dos telescópios. Ainda segundo Womack,
“Os dogon sabiam que a estrela Sirius tem duas estrelas
companheiras, a Digitaria (po tolo) e a Sorgo (emme ya
tolo). Eles sabiam que a Digitaria tem um ciclo orbital
de cinquenta anos, assim como estavam também
familiarizados com os anéis de Saturno e a lua de
Júpiter”8. Esse saber foi colocado em descrédito por muitos
anos, pois, aos olhos dos europeus, seria impossível
eles terem esse tipo de informação sem a “tecnologia
apropriada”, da mesma maneira que colocavam em dúvida
as tecnologias keméticas e atribuíam-nas até a encontros
com alienígenas, uma recorrente fala racista.
8
Ibidem, p. 85.
26
ele encontra muitos saberes e formas de pensar distintas,
e nota a grandeza dos mesmos, apesar da constante
desvalorização e apagamento do conhecimento ancestral
africano empreendido pela colonização9. No mesmo livro,
Somé destaca que não há uma palavra para “sobrenatural”
no povo dagara, e ainda que não há uma separação
nítida entre os conceitos de imaginação e realidade,
mas um estímulo ao poder do pensamento para
criar realidades10.
9
ALMEIDA, 2020.
10
SOMÉ apud WOMACK, 2014, p. 79.
11
Ibidem, p. 79
27
Para além das estreitas relações com o cosmo de
sociedades como o Kemet e a etnia dogon, exemplos
mais conhecidos, a astrônoma Jarita Holbrook afirma
que muito ainda deve ser investigado em torno das
outras sociedades no continente africano12. Pesquisando
astronomia cultural, ela publicou um texto onde faz uma
análise da relação de quatro povos ao sul do Saara com
suas cosmologias a partir de peças de arte, sendo estes
as etnias fon, iorubá, bakuba e zulu. Holbrook também
mostra exemplos de outras, como os akan e os igbó.
Através do que chamou de arte celestial, mostra como
o conhecimento do céu, da Lua, do Sol, das estrelas,
estava presente no cotidiano dessas sociedades, como
na organização social das mesmas, em seus mitos de
criação, na agricultura, na navegação e na espiritualidade.
Os fon e os iorubás, etnias que vieram em números
consideráveis ao Brasil e influenciam até hoje a cultura
local, têm deuses do céu criadores do universo: dos
primeiros, Mawu-Lisa e/ou Nana-Buluku; dos segundos,
Olorum/Olodumarê.
12
HOLBROOK, 2015.
28
O pesquisador e músico soteropolitano, Tiganá Santana,
em sua tese13 que traduziu e interpretou a obra de Busenki
Fu-Kiau, um dos intelectuais mais importantes a escrever
sobre a filosofia bantu-kongo, nos mostra que existe um
mapa do universo, assim como a estreita relação do
mundano, do ser-humano, com o cosmos. Está tudo
interligado, o mundo físico e espiritual, assim como o que
está fora do nosso planeta. Kalunga é o oceano, de águas
infinitas que está em contato com o universo ― também é
um portal que separa o mundo dos vivos e mortos, assim
como um princípio de criação de tudo. O Sol é central
para esse entendimento de mundo, também somos Sol:
“O ser humano é um segundo sol nascendo e se pondo
na Terra”14.
13
SANTANA, 2019.
14
Ibidem, 2019.
29
Ficção especulativa e futuros imaginados
15
WOMACK, 2014.
30
of America16, onde o protagonista Blake convence os afro-
americanos a se levantarem contra os EUA e fundar uma
nação negra em Cuba17.
16
Disponível em: < https://archive.org/details/blakeorhutsofame00dela/page/
n3/mode/2up > Acesso em: 14 fev. 2023
17
WOMACK, 2014, p. 122.
31
Prestes a consumarem o fato, uma equipe de resgate
aparece e logo a protagonista se reencontrará com seu
marido rico, ficando Davis no mesmo estrato social de
sempre, pois o cometa tinha destruído apenas a cidade
de Nova Iorque, enquanto o resto do mundo continuava
o mesmo. Du Bois pretendeu mostrar que apenas uma
catástrofe poderia igualar as relações raciais e que ela
representaria a possibilidade de uma nova vida para
pessoas negras. Claro que hoje poderíamos questionar a
escolha de uma mulher branca como par de Jim Davis,
porém, como um defensor da integração racial e tendo um
trabalho intelectual de tentativa de melhorar as condições
sociais dos afro-americanos, ele usa esse recurso
narrativo para tentar desconstruir o racismo estrutural.
E, assim como outros autores e autoras negras de ficção
especulativa, ele apresenta o interesse de “discutir ideias
sobre raça, recriar futuros com sociedades negras, e fazer
comentários mordazes sobre os tempos”18.
18
Ibidem, 2014, p. 142.
32
Estes dois exemplos, de Delany e Du Bois, mostram que
essa característica descrita na citação de Ytasha Womack,
hoje categorizada como afrofuturismo, já está presente
em trabalhos de autores negros, e que, mesmo não
sendo reconhecidos tanto quanto escritores de ficção,
e sim enquanto intelectuais e ativistas políticos, esse
recurso estético, de uma lado, e político, de outro, fazendo
o cruzamento entre recuperação histórica e futuros
imaginados, é algo recorrente no pensamento negro,
de forma transversal.
33
O afrofuturismo e a paisagem visionária
19
DERY, 1994, p. 180.
34
Portanto, se você observar o trabalho de artistas
visuais negros, de grafiteiros a Jean-Michel Basquiat,
sempre haverá essa inserção de figuras negras em
uma paisagem visionária, se não uma ficção científica
ou uma paisagem de fantasia. O salto imaginativo que
associamos à ficção científica, em termos de colocar
o humano em um ambiente alienígena e alienante, é
um gesto que aparece repetidamente no trabalho de
escritores negros e artistas visuais20.
20
Ibidem, 1994, p. 209-210.
35
hoodoo, santeria, mambo e macumba, funcionam de
maneira semelhante aos joysticks, Datagloves [luvas
virtuais], Waldos e Spaceballs usados para controlar
realidades virtuais. Jerome Rothenberg os chamaria
de tecnologias do sagrado21.
21
Ibidem, 1994, p. 2010.
22
ESHUN, 2003, p. 298.
36
lembra o mesmo autor, já tinham sido teorizados por Du
Bois e sua dupla consciência desde o já citado As almas
do povo negro.
23
Ibidem, 2003, p. 298.
37
mas como uma identificação com a potencialidade do
espaço e da distância dentro da zona de alta pressão
da perpétua hostilidade racial”24. Dessa forma, muitas
narrativas que serão identificadas enquanto afrofuturistas
utilizam-se de elementos da ficção científica para espelhar
um descontentamento e um sentimento de não pertença
que se carrega desde a abdução/alienação da escravidão.
24
Ibidem, 2003, p. 299.
38
FC representa um tipo de codificação racionalista,
positivista e científica desse impulso, mas ainda é
proveniente de um desejo humano básico de conhecer
o incognoscível, e para muitos escritores negros, esse
desejo de conhecer o incognoscível se direciona para
o autoconhecimento. Conhecer-se como uma pessoa
negra ― histórica, espiritual e culturalmente ― não é
algo que lhe é dado, institucionalmente; é uma jornada
árdua que deve ser realizada pelo indivíduo25 .
25
DERY, 1994, p. 210.
26
ESHUN, 2003, p. 296.
39
franceses Marcel Griaule e Germaine Dieterlen, que
demonstraram um conhecimento científico africano
compensatório e superior. O desejo da Egiptologia de
recuperar as glórias perdidas de um passado africano
pré-industrial foi animado por um autoritarismo
utópico. Antes de Black Athena, de Martin Bernal
(1988), o Stolen Legacy, de George G.M. James (1989),
enfatizou simultaneamente as conspirações brancas
que encobriam o legado roubado da ciência africana,
revertendo o pensamento hegeliano ao insistir na
civilização africana original27.
27
Ibidem, 2003, p. 296-297.
40
progresso, esses futurismos ajustam a lógica
temporal que condenou os negros à pré-história.
Cronopoliticamente, essas historicidades revisionistas
podem ser entendidas como uma série de futuros
concorrentes poderosos que se infiltram no presente
em diferentes graus28.
28
Ibidem, 2003, p. 297
41
modernos no século XIX e antes. Essas coisas tiveram
de ser abordadas pelo povo negro muito tempo antes:
certos tipos de dissolução, a perda e a necessidade
de construir certos tipos de estabilidade. Certos tipos
de loucura. [...] Essas estratégias de sobrevivência
constituíam a pessoa verdadeiramente moderna.
São uma resposta a fenômenos ocidentais predatórios.
Você pode chamar isto de ideologia e de economia,
mas trata-se de uma patologia. A escravidão dividiu o
mundo ao meio, ela o dividiu em todos os sentidos.
Ela dividiu a Europa. Ela fez deles alguma outra
coisa, ela fez deles senhores de escravos, ela os
enlouqueceu. Não se pode fazer isso durante centenas
de anos sem que isto cobre algum tributo. Eles tiveram
de desumanizar, não só os escravos, mas a si mesmos.
Eles tiveram de reconstruir tudo a fim de fazer este
sistema parecer verdadeiro. Isto tornou tudo possível
na Segunda Guerra Mundial. Tornou necessária a
Primeira Guerra Mundial. Racismo é a palavra que
empregamos para abarcar tudo isto29.
29
MORRISON apud GILROY, 2001, p. 413.
42
ser encaradas como um paradoxo, ou como se a mesma
carregasse a contradição em seu cerne. Essa foi uma
observação feita por Mark Dery, mas que Greg Tate logo
desconstruiu, utilizando a cultura hip-hop como exemplo,
quando indagado se de fato o afrofuturismo seria
contraditório nesse aspecto:
30
TATE in DERY, 1994, p. 210.
43
A música negra da diáspora
31
DERY, 1994.
44
Planet: The Space Madness of Lee “Scratch” Perry, Sun Ra,
and George Clinton, escrito por John Corbett e lançado no
mesmo ano da obra de Dery, em 1994. Segundo Corbett,
os três artistas foram criadores de mitos e universos;
partilhavam a adoção de alter egos e outras identidades;
usavam roupas e fantasias coloridas nada convencionais;
exploraram como mestres em seus gêneros musicais
o uso de tecnologia, de criatividade e experimentação.
“Perry, Ra e Clinton levam a sério a iconografia do espaço
e a transformam em uma plataforma para subversão
lúdica, imaginando uma zona produtiva em grande parte
exterior à ideologia dominante”32.
32
CORBETT, 1994, p. 7-8.
45
A loucura é explicada como um vocabulário comum na
música negra estadunidense, desde os primeiros blues
gravados, e que a princípio relacionavam-se ao estado
alterado da mente, causado por substâncias ou pelo
amor. O uso da loucura como figura de linguagem, para
Corbett, está também relacionado a uma fuga provisória,
em função da pressão sofrida por pessoas negras dentro
de uma sociedade racista. E, por último, a loucura como
própria negação da razão eurocêntrica imposta a pessoas
negras desde a escravidão. A qualidade extraterrestre se
uniria a estes conceitos mais amplos: da criação de mitos
e universos alternativos; da condição alienante imposta na
diáspora; e da possibilidade de outros mundos e vivências
para as pessoas negras, fora do jugo colonialista.
33
Ibidem, 1994, p. 11.
46
A segunda legitimação, a artística, liga-se diretamente aos
textos que acabamos de apresentar. Seguindo as pistas
deixadas por Corbett, surge o documentário The Last
Angel of History (1995)34, feito pelo coletivo londrino Black
Audio Film Collective. Para Eshun, o “filme-ensaio” dirigido
pelo ganês John Akomfrah “continua sendo a exposição
mais elaborada sobre a convergência de ideias que é o
Afrofuturismo”35. As obras de Ra, Clinton e Perry e suas
similaridades são abordadas através do personagem Data
Thief (Ladrão de Dados), um viajante do tempo em busca
de uma tecnologia secreta negra. A partir dessa narrativa,
o filme
[...] criou uma rede de ligações entre música, espaço,
futurologia e diáspora. Os processos sônicos africanos
são aqui reconcebidos como telecomunicações,
como componentes distribuídos de um código para
uma tecnologia secreta negra que é a chave para o
futuro diaspórico. A noção de uma tecnologia secreta
negra permite que o afrofuturismo atinja um ponto de
aceleração especulativa36.
34
Still do filme. Disponível em < https://bit.ly/thelastangelpic > Acesso em:
15 fev. 2023.
35
ESHUN, 2003, p. 295.
36
Ibidem, 2003, p. 295.
47
Antes de apresentar o protagonista, o filme começa citando
a lenda do bluesman Robert Johnson, que teria vendido
sua alma ao diabo numa encruzilhada, no Sul dos EUA, em
troca de poder tocar o violão como ninguém. Essa história,
que ainda é contada à exaustão, deve ser questionada por
ser uma narrativa branca colonial, pois a encruzilhada é um
lugar de extrema importância em filosofias e cosmologias
africanas diversas. Para os iorubás e os fons, esta seria o
local primordial de Exu e Legba, orixá/vodun poderosos,
deidades das trocas, da comunicação, do poder e do axé, e
que foram demonizados pelo cristianismo. Não por acaso,
os Congo-Angola também consideravam este espaço
como algo especial, já que também tinham um Nkisi37
que o habitava: Pambu-Njila, ou o senhor dos caminhos,
que, depois de um tempo, transmutou-se em Pomba-Gira,
no Brasil.
37
Uma entidade espiritual que não é a mesma coisa, mas, para efeito didático,
poderia ser comparado com Orixá ou Vodun.
48
do segredo e garantir seu futuro. Assim, mais uma vez o
cronótopo da encruzilhada aparece numa narrativa negra:
uma imbricação de trocas, comunicações e refertilizações
da afrodiáspora e, por isso, mais significativo que a ideia
de caminho ou estrada.
49
encontro relevante entre as narrativas desses músicos.
Precisaríamos de mais tempo para nos voltarmos aos
detalhes de cada um desses músicos, ou de tantos outros
que também foram igualmente importantes na criação
de uma estética afrofuturista. Porém, por ser quase uma
unanimidade em relação ao pioneirismo nessa estética, se
faz necessário falar um pouco mais de Sun Ra.
38
ESHUN, 2003.
50
Cronopolíticas Afrossônicas
39
LEWIS, 2008, p. 141, grifo do autor.
40
STEINSKOG, 2018.
51
diretamente à ficção científica. Para exemplificar, ele fala
que “poder-se-ia interpretar a Santeria como um tipo de
tecnologia desenvolvida para facilitar a comunicação
com os poderes superiores, e proporcionar o Afrofuturo
dos neo-iorubanos”41. E completa afirmando que a
dimensão espiritual não pode ser separada da relação
de pessoas negras com a tecnologia. Eu acredito ser de
extrema importância dilatar os significados e sentidos do
afrofuturismo, e Lewis avança propondo a tríade negritude,
som e tecnologia, que apresenta bastante potencialidade
para o estudo do tema.
41
LEWIS, 2008, p. 142.
52
O autor define esse conceito trazendo elementos diversos
para compor a experiência auditiva
42
ESHUN, 1998, p. 121.
53
Percebemos, assim, que as visões de Eshun e Lewis
divergem, no que tange à análise musical, entretanto
os dois mantêm a música/som como protagonistas.
Compreendendo a proposição de Lewis, porém tendendo
mais a concordar com Eshun, pretende-se propor uma
adição à tríade do primeiro: negritude, som, tecnologia e
ficção, de modo a expandirmos os termos das análises.
Isso é algo que é proposto por Steinskog em seu
livro Afrofuturism and Black Sound Studies: Culture,
Technology and Things to Come (2018), um importante
texto voltado inteiramente para a música/som. Ele propõe
interligar os estudos do afrofuturismo com um campo
que vem se materializando, que, em tradução livre, seria
Estudos do Som Negro.
54
agrupamento43 de pontos distantes”44. Como Steinskog
observa, existe uma potência no termo “outras histórias”,
que estaria ligada à ideia de uma contra-história em
relação às narrativas coloniais que tentaram se colocar
como oficiais. Há uma ponte com O Atlântico Negro de
Paul Gilroy e sua proposição de culturas afrodiaspóricas
enquanto “contra-cultura da modernidade”45.
43
Aqui ele usa o termo constellated, que significa agrupado, reunido, mas com
o intuito de fazer referência à ideia de constelação, de galáxias.
44
DERY, 1994, p. 182.
45
GILROY, 2001.
46
STEINSKOG, 2018.
55
som-tecnologia, que move o texto de Steinskog. Aqui, nos
interessa, mais do que detalhar seus aspectos de ligação,
a abertura que oferece à reflexão da tríade.
47
NYONG’O, 2014, p. 173.
56
Apesar de abrir uma hipótese instigante, Gilroy não
aborda o que outros pesquisadores, especialmente na
área da musicologia africana e afrodiaspórica, já vinham
trazendo com certa anterioridade, em relação à música
também ser comunicação em diferentes culturas africanas.
Primeiramente, devemos lembrar que, em África, apesar
de muitas culturas apresentarem sistemas de escrita,
a oralidade nunca deixou de ser a principal forma de
difusão do conhecimento. Isto, por si, já seria um motivo
de defesa da principal hipótese do mundo Atlântico
negro48 , que versa sobre uma cultura negra transnacional
profundamente interconectada.
48
“[...] formas culturais estereofônicas, bilíngues ou bifocais originadas pelos
― mas não mais propriedade exclusiva dos ― negros dispersos nas estruturas
de sentimento, produção, comunicação e memória, a que tenho chamado
heuristicamente mundo atlântico negro.” (GILROY, 2001, p. 35).
57
Francis Bebey e Olly Wilson: “Bebey ([1969] 1975, p. 115),
por exemplo, nos diz que na música africana, o ‘principal
motivo dos instrumentos é reconstituir a linguagem
falada’”; complementando, mais à frente: “Wilson (1992a,
p. 330) sustenta que ‘o repertório pré-existente de padrões
de percussão usado por mestres em muitas culturas
africanas é baseado em padrões musicais derivados de
gêneros selecionados de poesia oral’”49.
49
FLOYD JR., 1995, p. 28.
50
SILVA, 2005, p. 336.
58
“Salloma” Salomão Silva ainda vai citar conhecidos
tambores mensageiros como os “Dondom (também
chamados de Tama) famosos e esquivos tambores
falantes, cujos recursos permitem reproduzir as
alturas dos sons da fala”51; e também “os txinguvos
ou chinguvo, tambores-xilofones dos povos tshokwes
de Angola são tanto ‘mensageiros’ quanto tambores
convencionais utilizados na vida ordinária e em
atividades religiosas”52. Como demonstra Silva, apesar
de extremamente divulgado o caráter oral da cultura
africana, ainda há muito a ser explorado em seus diversos
outros aspectos, principalmente na conjunção com línguas
tonais e música.
51
Ibidem.
52
Ibidem.
59
visão na segunda, enquanto que, na primeira, a audição
seria a mais relevante.
60
modo de compreender a realidade eleva o que pode
ser visto sobre o que não é aparente aos olhos; perde
os outros níveis e as nuances da existência53.
53
OYĚWÙMÍ, 2021, p. 57-58.
61
de forma simbólica, ele exemplifica como o som é influente
na cultura negra, sendo articulado até mesmo na literatura:
“A tradição radical da comunicação negra nas frequências
graves é o que permite a Weheliye e Henriques a desafiar
o analfabetismo epistêmico ocidental no campo do som
negro”54.
54
NYONG’O, 2014, p. 174.
62
O grave vai interferir corporalmente em nós, mesmo que
não o queiramos, colocando até mesmo os brancos para
dançar, uma coisa “diabólica”, como descreveram tantos
colonizadores. Tal frequência está participando ativamente
de processos sociais e é uma tecnologia africana que é
utilizada em diferentes instâncias. Poderíamos exemplificar
isto com a maneira como essa é aplicada no contexto
da espiritualidade e medicina, já que a frequência grave
é capaz de induzir ao transe, que é um fator de cura e
comunicação com a ancestralidade.
55
STEINSKOG, 2018, p. 112.
63
No filme Space is The Place (1972), Sun Ra é retratado em
diferentes tempos e espaços: Chicago, na década de 1940,
Oakland na década de 1970 e em um diferente planeta,
no futuro. Citando uma passagem do longa-metragem,
Steinskog traz uma concepção de vibração no pensamento
de Ra, que vai além do conhecimento físico de que som
é vibração56. Na narração, Sun Ra afirma que a música e
a vibração são diferentes nesse planeta, onde ali poderia
ser assentada uma colônia de pessoas negras para ver o
que eles poderiam fazer nesse novo lugar, sem nenhuma
pessoa branca interferindo. A vida neste outro planeta iria
afetar positivamente suas vibrações e, trabalhando nesse
destino alternativo, estabelece oficialmente o fim do tempo.
Trabalhando no outro lado do tempo, poderia transportar
toda uma comunidade através da música.
56
Ibidem, 2018, p. 114.
64
negro, onde um retorno à África, ou fundação de colônias
de pessoas negras fora dos EUA fora articulado. Sun Ra
estava articulando uma metafísica, uma cosmologia, uma
ficção sonora através da música, abrindo possibilidades
para o fantástico por meio do sônico. A música já era
pensada como tecnologia futurista, sendo a diferença
entre as vibrações responsável pelo bem-estar de uma
comunidade negra, estando ligada à ideia de ambiente57.
57
Ibidem, 2018, p. 116.
58
SZWED apud STEINSKOG, 2018, p. 117
65
Uma vez ele me disse: “Jacson, toque todas as coisas
que você não conhece! Você ficará surpreso com o
que não sabe. Existe uma infinidade do que você não
sabe” Outra vez ele disse: “Você sabe quantas notas
existem entre C e D? Se você lidar com esses tons,
poderá tocar a natureza, e a natureza não conhece as
notas. É por isso que as religiões têm sinos, que tocam
todos os tons transitórios. Vocês não são músicos,
vocês são cientistas do tom”.
59
STEINSKOG, 2018, p. 118-119.
66
A partir daí, podemos também trazer outro aspecto
interessante da música e som como propulsores de viagens
no tempo e espaço, que é a noção de eco. Articulando
a MythScience de Ra com o conceito de changing same
de Amiri Baraka, Steinskog vai desenvolver o que chamou
de “viagem sônica no tempo”. Mais adiante traremos essa
discussão, porém, já neste momento se faz oportuno
mencionar o que ele falou sobre o eco:
60
Ibidem, 2018, p. 70.
67
Esse vocabulário sonoro é levado a outros patamares;
quando a serviço do imaginário, abre possibilidades de
se pensar uma cosmopercepção sônica e relacioná-
la aos seus usos dentro de uma estética afrofuturista.
Aqui poderíamos iniciar uma hipótese de que a música
afrofuturista estaria rearticulando esta cosmopercepção
sônica e reafirmando o locus imprescindível da música em
sociedades negras.
61
Esse trecho de Achebe foi encontrado no texto de Vieira Filho (2013).
68
Então, a tradição enquanto forma dialética não pressupõe
o inalterável, o estanque. Algo que corrobora com o
que Tate (1994) falou sobre a relação tradição/inovação
andarem de mãos dadas na cultura negra.
62
A pesquisadora afrocêntrica Marimba Ani descreve o primeiro grande
holocausto da humanidade, a escravidão africana, como Maafa: “Este termo foi
cunhado por Marimba Ani (1994), e corresponde, em Swahili, à ‘grande tragédia’,
à ocorrência terrível, ao infortúnio de morte, que identifica os 500 anos de
sofrimento de pessoas de herança africana através da escravidão, imperialismo,
colonialismo, apartheid, estupro, opressão, invasões e exploração.” (NJERI,
2019, p. 7).
69
O filme Last Angel of History, de Akomfrah, fala exatamente
sobre a busca de um arquivo, uma tecnologia secreta,
sendo o Data Thief um escavador, arqueólogo, ou mesmo
um arquivista. O que ele busca é o blues, e talvez seja
interessante lembrar o que Tricia Rose, em Barulho de
Preto, menciona sobre uma tradição comunicativa secreta,
através da música, em como a mesma serviu para codificar
mensagens não acessíveis ao sistema de poder dominante.
Então o blues, que é música, mas também uma tecnologia
negra secreta, vai gerar uma miríade de outros gêneros,
a base para o jazz, R&B e rap e constituir uma genealogia
dentro da música negra afrodiaspórica.
70
e serve como forma contínua da ligação entre estes, sua
comunicação, sua forma de transmissão de saberes, sua
mídia de armazenamento de histórias e memórias.
71
O autor trabalha com a música de sua época, mais
especificamente com o R&B e o New Thing, que é como
rebatizou o que estavam chamando de free jazz. Apesar de
estabelecer uma hierarquia, estando o jazz numa posição
acima, porém sem desqualificar o R&B, Baraka demonstra
mais similaridades do que diferenças entre os dois estilos.
O free jazz que está em discussão reuniria qualidades do
que se convencionou classificar de avant-garde, palavra
que o autor evita por trazer ligações com a música branca
de concerto. Interessante notar que a expressão vanguarda
trabalha com uma ideia temporal de “à frente do tempo”,
de algo novo, de futuro, e é dessa forma que o futuro se
apresentaria para o autor na música negra afro-americana,
a partir do New Thing.
72
populares africanos e afro-brasileiros, como o singeli da
Tanzânia e o nosso funk. Vale ressaltar que Baraka não faz
essa separação, apesar de criar a hierarquia, pois também
enxerga as qualidades e potencialidades no popular.
73
No que diz respeito à noção de Baraka do “changing
same”, essas camadas podem ser vistas como ao
mesmo tempo referenciando arquivos sônicos e
aludindo, na verdade também referindo-se, a diferentes
futuros. Eles podem ser vistos como trazendo uma série
de futuros com os quais se relacionar no aqui e agora
da situação musical. Pensar nisso como diferentes
camadas poderia ser uma maneira heurística de
discutir a viagem sonora no tempo, não apenas como
camadas de som, compreensíveis em muitas variantes
do avant-garde ao popular, mas como diferentes
camadas de tempo coexistindo na expressão sônica63.
63
STEINSKOG, 2018, p. 44-45.
74
Pensando em música e som como arquivo, a
importância da oralidade e mesmo a cosmopercepção
centrada na audição, chegaríamos à conclusão que
o gramofone não foi a primeira mídia a armazenar o
som, e sim o corpo negro, devido à importância que
se deu ao ato sonoro, como colocou Weheliye (2014).
Porque o som também foi arquivado na transmissão
dentro de uma comunidade, onde até arriscaria dizer
que o som tem papel crucial na formação mesma de
uma comunidade: “[...] mas nesse contexto, e de uma
forma ainda mais importante, é como a comunidade,
enquanto um coletivo, consegue armazenar e
reproduzir seus sons, o que é, ao mesmo tempo,
sua memória e sua história”64.
64
Ibidem, 2018, p. 46.
75
e história foram transmitidas a partir da música e da dança
e destaca o “propósito religioso e/ou ritual” e como o culto
aos espíritos estava sempre na raiz da arte negra.
65
JONES, 1970, p. 182.
76
Ele vai mostrando que, apesar do fenômeno da “perda de
religiosidade” do Ocidente, o ímpeto espiritual permanece
no seio das comunidades negras e exemplifica isto através
da música, pois, mesmo em expressões consideradas
seculares, essa qualidade permanece. Podemos pensar
em menções diretas a organizações religiosas, o Five-
Percent Nation, uma dissidência da Nação do Islã (NOI),
nas músicas de Erikah Badu e Wu Tang Clan, e à própria
NOI em diferentes músicas de rap. Poderíamos também
lembrar das inúmeras menções de toda uma genealogia
da música negra brasileira ao candomblé e à umbanda.
77
E se pensássemos em uma música que produz uma
sensação espiritual, se é que podemos falar de alguma
coisa dessa ordem de forma simples? E talvez a ideia seja:
qual música não o poderia? Para tratarmos de um exemplo
mais pragmático, as músicas de Alice e John Coltrane
ousaram criar atmosferas e sensações de elevação
espiritual. O clássico A Love Supreme de John Coltrane foi
composto nesse intuito e até inspirou a fundação de uma
igreja em que ele é cultuado enquanto santo.
78
através da música negra enquanto comunidades sônicas.
66
STEINSKOG, 2018, p. 53.
79
Esse saber também está contido na cultura bantu, já que,
segundo Fu-Kiau, o movimento no sentido anti-horário
indica o caminho que os vivos seguem para encontrar
seus ancestrais. Ele está na gira da umbanda e na roda
de capoeira angola. O cosmograma bakongo, Dikenga
dia Kongo, é construído no sentido anti-horário e espiralar,
mostrando a concepção não linear de tempo, assim como
a ligação do mundo físico (Nseke) e espiritual (Mpemba):
80
em espiral no sentido anti-horário ― percorrendo os
quatro “Vs” demarcados na circunferência formada a
partir das linhas cruzadas ― promove a interlocução
entre a concepção invisível ou primeiro estágio do ser
(Musoni); a corporificação que torna visível esse ser
(Kala); seu amadurecimento e crescimento (Tukula) e,
por fim, voltando ao mundo invisível, sua desintegração
física ou morte (Luvemba), que é o fim para um novo
começo dado sucessivamente ao longo do tempo,
representando de maneira cosmológica os ciclos
da vida67.
67
FARIA, 2021, p. 60.
81
la “está em viver em movimento com a vida, este eterno vir-
a-ser, é uma roda, sem fim, porque o futuro é ancestral”68.
68
Disponível em: < https://diplomatique.org.br/o-futuro-e-ancestral/ > Acesso
em: 15 fev. 2023.
69
NASCIMENTO, 2008.
82
(id.), que é entendido como “a sabedoria de aprender
com o passado para construir o presente e o futuro” (id.).
A cabeça voltada para trás olha para o passado, enquanto
os pés virados para frente indicam um caminho para
o futuro. Também existem desenhos em que o pássaro
segura um ovo em seu bico, para se referir ao que
virá, o futuro.
70
Ibidem, 2008, p. 31.
83
Dessa maneira, viajar do Kemet para longínquas
galáxias, como vemos no afrofuturismo, seria apenas um
desdobramento de noções africanas de cosmopercepção.
Seria a viagem sônica no tempo, seja entre diferentes
gêneros musicais, civilizações, para outras dimensões
espirituais, ou para o espaço, ou Espafro, como compôs
Naná Vasconcelos, imaginando também Áfricadeus,
trazendo ecos de multi-temporalidades/espacialidades.
84
estúdio, Perry respondeu que eram “os fantasmas
saindo de mim”71.
71
CORBETT, 1994, p. 20.
72
Para o termo, não foi encontrada uma tradução direta para o português; uma
aproximação possível seria “gaguejando”.
85
tornando muito mais popular do que sua fonte
“original”73.
73
WEHELIYE, 2005, p. 102.
86
a música e a manipulação sonora são uma tecnologia per
se, como estamos tentando construir e que fazem parte de
uma episteme, cosmoperpecpção e valores civilizatórios
africanos.
87
Meu interesse na interseção entre o afro-tecnológico
e a música não está centrado principalmente nas
tecnologias das máquinas, mas sim nas propriedades
tecnológicas da música negra e do fazer musical per
se. Ao longo da história, os afro-americanos usaram
a música e os rituais que a acompanham, e não
simplesmente as máquinas através das quais é feita,
como uma tecnologia. Como atividade humana, a
música tem efeito sobre a psique de seus produtores
e ouvintes, mas pode ser entendida como uma
tecnologia nas instâncias em que também tem efeitos
sobre o mundo físico; a realidade corpórea da música
pode incluir a possessão espiritual74.
74
WASHINGTON, 2008, p. 237.
88
conexão com o sagrado e uma ideia de espiritualidade
além dos postulados normativos de uma religião. Assim
como buscamos entender como a negritude e diferentes
acepções do que seria tecnologia poderiam encorpar
o debate. O afrofuturismo nos parece mexer com todas
essas dimensões, materializando-as em sua estética e
política, explorando o fantástico e realizando uma ficção
sônica.
89
O AFROFUTURISMO NO BRASIL
Muito se falou, até o momento, de referências à música
africana e afrodiaspórica, para contextualizar e amplificar
o que vem sendo discutido sobre afrofuturismo, em
especial, sobre suas formas sônicas. Não se pode deixar
de comentar o fato de que a maioria da bibliografia utilizada
é de origem estrangeira, em grande parte composta por
autores estadunidenses. Sem dúvidas, isso se explica pela
condição geopolítica dos EUA, onde, apesar de apenas
uma parcela pequena de sua população ser negra, quando
comparada ao Brasil, e, apesar de condições subalternas
impostas a esse povo, há ainda mais condições de
produção intelectual do que aqui.
90
Há literatura que questiona esse lugar de destaque
da cultura afro-estadunidense, em relação às demais,
alertando, por exemplo, que a mesma recebeu influência
abundante de pensadores, escritores e ativistas vindos
de diferentes lugares do Caribe. O Caribe preto, nos cabe
enfatizar. No entanto, se formos pensar em como a cultura
negra, de forma orgânica, sempre esteve conectada e
ainda faz essas reterritorializações e refertilizações, entre
África, Améfrica, e outros lugares, de forma transnacional,
não precisaríamos manter tais hierarquias, que são,
sobretudo, falsas.
91
do mundo. O tamanho de sua população afrodescendente
e muitos dos elementos que formam a cultura nacional
nos levam a concordar com Manoel Querino, quando
atestou que foram os africanos que realmente formaram
o que é esse País. Evito o termo colonização, pela carga
e responsabilização que o mesmo traz, e por entender
exatamente o que o autor quis colocar.
92
e um impulso para essas pensadoras, assim como para
Abdias do Nascimento, que, no campo da arte, com teatro e
pinturas, e no campo teórico, com seus livros e, em especial,
O Quilombismo, desenvolve um projeto de país a partir das
lutas e vivências negras.
93
a importância e pioneirismo dados por tantos à figura de
Sun Ra. Em seu pensamento há ciência, mito, recuperação
da história africana, Kemet, protagonismo negro,
experimentações, espiritualidade e viagens espaciais,
tudo narrado em sua ficção sônica. No Brasil ainda
precisaríamos de mais obras que poderiam investigar com
mais profundidade esses aspectos. Comecei a falar de
afrofuturismo pelas bandas de cá, na música, na minha
tese Fogo nos Racistas! Epistemologias negras para ler, ver
e ouvir a música afrodiaspórica75, defendida em julho de
2020. Faço isto numa passagem do último capítulo, em
que analiso o videoclipe de Nave (2019), da cantora Xênia
França.
75
Queiroz, Rafael Pinto Ferreira de. Fogo nos racistas!: Epistemologias negras
para ler, ver e ouvir a música afrodiaspórica. 2020. Doutorado (Doutorado em
Comunicação) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2020. Disponível
em:https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/40511?locale=pt_BR
94
temática, escrito pelo músico e pesquisador Pitter Rocha,
com sua dissertação de mestrado O som afrofuturista:
elaboração da ficção sônica Impactitos por Disco Duro.
Neste trabalho, ele já começa a pensar a música afrofuturista
no Brasil e nos oferece insights bem interessantes, sendo
um trabalho consistente. Antes de todos, em 2015, Kênia
Freitas foi a curadora e organizadora da publicação da
exposição AFROFUTURISMO Cinema e Música em uma
Diáspora Intergaláctica, exibida na Caixa Cultural, em que
trouxe textos de Kodwo Eshun e um, diretamente sobre
música, de Ashley Clark. Ela deve ser uma das primeiras
pesquisadoras a pensar o afrofuturismo no País, atuando
predominantemente no audiovisual.
95
Referências ao Kemet, elaborações místicas e religiosas,
assim como naves espaciais, viagens interplanetárias
e miradas ao futuro também aparecem na música
negra brasileira em seus mais celebrados expoentes,
como Gilberto Gil, Jorge Ben e Tim Maia. Talvez um dos
primeiros álbuns com temática afrofuturista no Brasil seja
o Gilberto Gil (1969)76, também conhecido como Cérebro
Eletrônico. O disco tem uma capa com o desenho de
um papiro contendo um texto e desenhos enigmáticos.
Muitas músicas, a maioria do próprio Gil, contêm letras
de ficção científica, futuro e a relação homem/máquina,
potencializadas pelos arranjos futurísticos de Rogério
Duprat: Cérebro Eletrônico que abre o disco, A Voz do Vivo
(Caetano Veloso), seguida de Vitrines, 2001 (Rita Lee e
Tom Zé), Futurível e a experimental Objeto Semi-Identificado
(em parceria com Duprat e Rogério Duarte).
76
Capa do disco Gilberto Gil (1969). Disponível em: < https://bit.ly/ggil1969 >
Acesso em: 15 fev. 2023.
77
Capa do disco Gil e Jorge: Ogum - Xangô (1975). Disponível em: < https://bit.
ly/giljorge > Acesso em: 15 fev. 2023.
96
é venerado na umbanda, de um monumento indiano,
entre outras coisas. O que fica mais latente é o sentido
de experimentação do disco que, como dito por Corbett
(1994), está ligado à exploração do desconhecido.
Na capa, apresentam búzios em um desenho futurista,
parecendo também uma tecnologia do sagrado.
78
Capa do disco A Tábua de Esmeralda (1974). Disponível em: < https://bit.ly/
tabuaesmeraldajorge > Acesso em: 15 fev. 2023.
79
Capa do disco Racional (1974). Disponível em: < https://bit.ly/racionaltimmaia
> Acesso em: 15 fev. 2023.
97
fora criada por Manuel Jacinto Coelho, um homem negro
que também fora músico, e falava abundantemente sobre
vida em outros planetas, viagens espaciais e atingir a fase
racional para poder sair do planeta Terra e viver plenamente
no Mundo Racional. Ou seja, fortes elementos de ficção
científica e misticismo estão presentes, como Eshun (2003)
havia identificado em influenciadores do afrofuturismo.
Aqui, o paralelo é musical, na música negra brasileira,
sem enfatizar o conteúdo político, histórico e social, que
o autor conecta, mas levanto a possibilidade de o binômio
experiência negra/ficção científica ser algo identificável
para além dos EUA.
98
Outro dado que chama a atenção é a total falta de menção
a nomes femininos. O que parece ter sido obliterado
por essa tradição masculinista, que inclusive já foi alvo
de crítica na escrita afro-estadunidense e também nos
reflete, dá mostras de mudança nos anos mais recentes.
Elza Soares, sendo a mulher do fim do mundo, Xênia
França, Ellen Oléria, Majur, Luana Flores e Jéssica Caitano
são algumas das artistas que reivindicam ou poderiam
estar incluídas nesse lugar.
99
Nesta primeira parte do ensaio, que já se encaminha
para o final, decidimos por uma breve contextualização
histórica e filosófica, e, como não poderia deixar de ser,
política, sobre o afrofuturismo ― sobretudo no campo da
música. Na segunda parte, a seguir, reposicionamos a
discussão para Pernambuco, afinal, trata-se de um estado-
chave dentro da historiografia e culturas negras no Brasil.
Falaremos sobre os dois primeiros álbuns de Chico Science
& Nação Zumbi e veremos como os mesmos já traziam
a temática afrofuturista nos idos dos anos 1990. Além do
mergulho no mangue, serão apresentados ensaios curtos
e livres sobre a artista Jéssica Caitano, de Triunfo, e o duo
Barbarize, de Recife, com a intenção de fazer uma ponte
nessa encruzilhada afrodiaspórica, especulando assim a
existência de um afrofuturismo de origem pernambucana.
100
101
102
Afrofuturismo em Pernambuco
103
A partir daí, escolhi trabalhar com Chico Science &
Nação Zumbi, Jéssica Caitano e o duo Barbarize. Artistas
diferentes entre si, mas que podem trazer pontes e
conexões em suas produções, além de ecos afrofuturistas.
Propomos olhá-los como o conceito de afrodiáspora de
Edwards (2017), enquanto “diferença dentro da unidade”,
algo próximo ao changing same de Baraka.
104
Chico Science & Nação Zumbi:
a África em Pernambuco
105
Xangô, estariam continuando África em Pernambuco,
criando uma força sônica, que também era soul, e avisando
aos brancos para temerem um Planeta Negro80.
80
Aqui referenciamos o Maracatu Elefante, criado em 1800 e tido como um dos
mais antigos do estado, assim como o Nkisi Nzazi e o Orixá Xangô, deidades
do trovão, para os Congo-Angola, que chegaram aqui primeiro, e os iorubás,
respectivamente. Depois há referências ao grupo de Afrika Bambaataa, o Soul
Sonic Force e ao disco do Public Enemy, Fear of a Black Planet, influências
declaradas da banda.
106
A cultura hip-hop aparece nesta arquitetura sonora, com
influência de samples e a forma de cantar de Chico, que
em muitos momentos ressoa nos MCs mais clássicos.
O canto de Chico também está ligado ao coco de embolada,
gênero comum no Nordeste, em que dois cantores fazem
um desafio de rimas rápidas e improvisadas, ritmadas pelo
pandeiro; assim como ao raggamuffin, estilo de canto e
rima rápida, desenvolvido dentro da cultura dancehall
da Jamaica. Aos três são reservadas marcas profundas
deixadas por África em sua potencialidade de cultura oral
e improviso, que é um valor muito importante na música
negra como um todo.
108
sample de James Brown, Say it Loud - I’m black and I’m
proud. Posteriormente, vai entrar o som de uma cuíca e a
volta de uma conjunção harmônica entre baixo, percussão
e guitarra, nenhum deles fazendo a escada para o outro se
sobressair.
Isso parece ser uma atmosfera criada pelo som e pela letra
da música, em que o narrador preocupa-se com seu amigo
por seu atraso na roda de samba que está acontecendo.
Ele cobra sua responsabilidade para com o evento, que
é cerebral, mas também para celebrar, o que me lembra
esta frase de Mãe Beth de Oxum: “A gente não separa
festa de militância”81. Não que a letra fale sobre ser um
espaço de militância, mas sugere a importância por meio
da cobrança, e é em roda que aprendemos uns com
os outros: a roda apresenta uma ideia de igualdade, de
comunidade, além de não ter começo, nem fim.
81
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=ur42fxP_qpE&ab_
channel=NoBrasil > Acesso em: 15 fev. 2023.
109
Olinda, ou por cobrar inteireza naquilo de cuja importância
nós, negros, já sabíamos e que tanto foi inferiorizado pela
cultura eurocêntrica, nossas manifestações culturais. E por
fim, parece dar o “tiro certeiro”, em muito do que se cruza
nesse texto, com “Som da cabeça e foguete do pé”, que
nos dá a chance de cruzar a importância do som com a
ideia de uma ficção científica, em que Chico já carregava
no nome, como um foguete em órbita no espaço.
110
abarcando a qualidade de revisionismo histórico tão
presente no afrofuturismo. Sendo a representação
máxima de resistência negra no País, ao acessarmos
esse conhecimento, estaríamos tentando reconstruir um
devir quilombola, suas epistemes, valores civilizatórios e
tecnologias, da agricultura, à arquitetura, à medicina, às
táticas militares.
111
para tecer críticas sociais e tensionar, por meio da arte,
os sistemas de poder instituídos. Essa ficção sônica já
vinha sendo gestada e estava presente no manifesto
Caranguejos com Cérebro, lançado em 1992, de autoria
de Fred 04, da banda Mundo Livre S/A, cofundadora do
Movimento Manguebeat, com a CSNZ.
82
Manifesto Mangue. Disponível em: < https://bit.ly/manguemanifesto04 >
Acesso em: 16 fev. 2023.
112
futuro próximo. No entanto, alguns elementos dessa faixa
interessam à presente discussão, começando a partir
do título: pois, além de já trazer o conceito do segundo
disco, sobre o qual iremos tratar mais adiante, ela sugere
essa ligação dos gêneros pernambucano e jamaicano,
dando a ideia de circulação e ligação da música negra.
E, como vimos, o dub é muito influente no afrofuturismo,
por suas temáticas e experimentações sonoras, trazendo a
perspectiva do afro-tecnológico.
113
(DE África + cibernética + Psicodelismo)
114
a Humanidade é um vírus benigno no software da
Natureza, e pode ser comparada a uma Árvore cujas
raízes são os códigos do DNA humano (que tiveram
origem na África), cujos galhos são as ramificações
digitais-informáticas-eletrônicas (a Cibernética) e cujos
frutos provocam estados alterados de consciência
(o Psicodelismo). No jargão das gangs e na gíria das
ruas, o termo “afrociberdelia” é usado de modo mais
informal: a) Mistura criativa de elementos tribais e high-
tech: “Pode-se dizer que o romance The Embedding,
de Ian Watson, é um precursor da ficção-científica
afrociberdélica”. b) Zona, bagunça em alto-astral,
bundalelê festivo: “A festa estava marcada pra começar
às dez, mas só rolou afrociberdelia lá por volta das
duas da manhã.” Enciclopédia Galáctica, volume LXVII,
edição de 2102.
115
Sobre o último, os frutos, poderíamos pensar desde a
MythScience de Sun Ra, que debulha e descontrói ideias de
uma história e ciências normativas, pensando um passado,
presente e futuro negros, com viagens interplanetárias;
passando pela ideia de transe na espiritualidade
africana, que também está presente no dub jamaicano,
à influência direta de perspectivas sonoras outras, que
experimentaram, buscando novas narrativas sônicas, e
criando mundos alternativos, ou realidades paralelas,
como a guitarra de Hendrix, ou o som do Funkadelic.
“Estados alterados de consciência” é algo comum numa
cosmopercepção africana, assim como nas indígenas, que
envolvem comunicação com outros planos de existência e
denotam uma ligação profunda do ser humano com o todo
que o cerca.
116
essa mistura de ancestralidade com futurismo e ficção
científica.
117
e um grande sábio. Dona Ginga e Veludinho, segundo
Herom Vargas83, seriam pessoas de destaque de maracatus
de Recife; porém, apenas encontrei referência a Veludinho
como percussionista do Maracatu Leão Coroado84, e não
obtive confirmação se a referência seria a ele. Em conversa
com Jorge Dü Peixe, ele não conseguiu precisar essas
referências, mas acredita que seriam “mitos universais”,
então Chico Science poderia também estar referenciando
Exu Veludinho, da umbanda. Ao passo que Ginga é a
famosa rainha de Angola, Nzinga Mbandi, que conseguiu
vencer os portugueses, uma referência recorrente da luta
negra no mundo e figura mítica louvada nos maracatus.
83
VARGAS, 2007, p. 158.
84
Inventário Nacional de Referências Culturais – Dossiê Maracatu Nação, p. 47.
118
samba-reggae, inspirado nos blocos afro baianos que
surgiram a partir da década de 1970, e de onde vem todo o
poder percussivo da CSNZ, que passou a tocar mais ritmos
ligados à tradição afro-pernambucana. Daruê Malungo
é uma mistura de iorubá com kikongo, uma fusão muito
comum no Brasil, principalmente aqui em Pernambuco,
sendo daruê significando luta, em iorubá, e malungo,
companheiro, amigo, do kikongo.
85
Inventário Nacional de Referências Culturais – Dossiê Maracatu Nação, p. 18.
119
Podemos notar que o nome faz menção direta à Kalunga,
que é elemento de criação, o mar, e local importante para
espiritualidade e cosmopercepção Congo-Angola, que é
a origem do maracatu. Porém, hoje em dia, a maioria dos
maracatus da região apresentam ligações com terreiros
de candomblé, que são predominantemente de origem
iorubá, por motivos ainda incertos. Chico liga a calunga
ao vodu, que é outra espiritualidade de matriz africana,
praticadas pelos ewes e fons, etnias importantes e muito
presentes em nossa formação, que também têm ligação
com os iorubás, assim como os maracatus ainda têm
elementos de jurema, de matriz afro-indígena, comum em
alguns estados do Nordeste.
120
CSNZ: funk, maracatu, heavy metal e um híbrido de
rap, raggamuffin e embolada86.
86
VARGAS, 2007, p. 157.
121
africanização da língua portuguesa, que indicava, além
do grande poder de influência da cultura africana, uma
forma de resistência ao colonialismo. E não somente um
falar que se lembra unicamente da geografia, Nordeste e
Pernambuco, enquanto esquece o fator racial de formação
do mesmo.
122
menção constante a líderes da luta negra e não-branca:
lembrando que, desde a primeira música de Da Lama ao
Caos (1994), Monólogo ao pé do ouvido, saúdam-se os
Panteras Negras, Zumbi, Antônio Conselheiro, Lampião,
Emiliano Zapata e Augusto Sandino. A negritude era
acionada de forma sônica e ao lembrar suas lutas e
seus líderes. Um Passeio no Mundo Livre, por exemplo,
foi composta por Chico depois que Gilmar e Gira foram
abordados de forma truculenta pela polícia após saírem de
um ensaio, aqui em Recife87.
87
Disponível em: < http://conteudo.ebc.com.br/portal/projetos/2016/chicosci-
ence/ > Acesso em: 15 fev. 2023.
123
Maracatu Atômico inicia uma sequência mais afrociber-
délica do disco. A letra e música de Jorge Mautner e
Nelson Jacobina já tinha sido gravada por Gilberto Gil,
que também participa na faixa Macô, junto a Marcelo
D2. Apesar de não ser uma música autoral, a mesma se
encaixou na estética do disco de forma muito orgânica,
em que já anunciava pitadas de psicodelia e junção de
ancestralidade com ciência contemporânea, ao qualificá-
lo enquanto atômico e eletrônico.
88
VARGAS, 2007, p. 157.
124
hipnotizante de Dengue, uma entonação de voz que segue
essa indicação e efeitos e scratchs de Mario Caldato Jr.,
DJ dos Beastie Boys, que faz menção a uma atmosfera
de experimentação e psicodelia, assim como sonoridades
que já estão presentes em filmes de sci-fi.
125
melancólico. O som do baião é ondulante e esse efeito foi
potencializado por uma técnica sonora em que os músicos
da percussão circulavam no estúdio por diferentes
microfones, como descreve Herom Vargas:
89
Ibidem.
126
Desde o início, há um componente forte de experimentação
sonora na CSNZ, mesmo que nem todas as músicas
apontem para fora do que se convencionou dividir entre
avant-garde e popular, mas que a banda demonstra a
própria tensão dessas categorias em determinado nível.
Quando perguntado sobre o conceito de Afrociberdelia
e do texto de Bráulio Tavares, Chico Science fez um
comentário muito interessante, envolvendo também a
música em questão: “[...] parece que você está escutando
um baião no Rio de Janeiro, com outros sons. Então, olha,
que ano é isso? Então… É hoje! É amanhã. São essas
coisas que a gente tem que fazer agora no presente”. Isso
denota como eles articulavam o som para construir uma
ficção sônica, mesmo em uma música instrumental, e que
questões espaço-temporais estariam a todo momento
sendo articuladas pela banda.
127
uma ideia de temporalidades distintas sendo vivenciadas
por aqueles tornados Outros, isso também parece ser
sugerido pelo título, pela ideia de que, enquanto o mundo
deles explode, estaremos buscando nossos guias.
Podemos até fazer uma aproximação com a ideia já
discutida de o apocalipse já estar acontecendo desde a
escravidão.
90
Importante mencionar que a palavra “batuque” vem sendo questionada
ultimamente pelo seu uso inaugural e regular como uma expressão racista que
tenta inferiorizar e homogeneizar as expressões culturais negras, porém que foi
ressignificada ao longo do tempo por aqueles que a executavam.
128
cessa e entram percussões que lembram um toque de
candomblé. Apreciar a agricultura celeste é uma referência
a Jorge Ben Jor e ao seu A Tábua de Esmeraldas (1974),
que cita esse conceito na música Eu Vou Torcer. É um
conceito derivado da alquimia e tem estreita relação com
a astrologia e a ideia de ligação do ser humano com todo
o cosmos.
129
JÉSSICA CAiTanO e a rima do futuro
130
outro mote do seu estilo, o Rap Repente, algo que já
havia sido misturado por outros artistas antes dela, mas
que, com Jéssica, atinge outro patamar, alcançando uma
organicidade muito original.
131
no tempo, propondo que o mesmo seja experenciado de
forma circular/espiralar, rejeitando sua interpretação na
forma linear.
132
racismo e homofobia. Ela avisa: “Machista e paga pau eu
derrubo com poesia/ Não tem racista/ Nem homofobia”.
133
a oralidade, a palavra humana. E tanto no flow do rap
como no dancehall e seu raggamuffin e na embolada, a
palavra também é marcação, é tambor. Isso me lembra
a fala de um dos maiores MCs de rap dos EUA, Rakim,
quando este afirmou que desenvolveu seu flow querendo
repetir os solos de sax de John Coltrane. Para mim, é uma
metáfora bonita e potente, pois, quando os africanos em
diáspora perderam o contato com suas línguas maternas,
predominantemente tonais, a música passou por outros
processos de significação; porém, pelos motivos expostos,
esses gêneros de que estamos tratando parecem fazer o
caminho de volta à África. O que é parcialmente explicado
por Bebey:
91
BEBEY apud FLOYD JR., 1995, p. 62.
134
Esse estilo declamatório, que experimenta com tons
e timbres diversos, está presente nas nossas vozes.
Em relação a isso, Francis Bebey afirma que a música
africana emerge
92
Ibidem, p. 32.
135
Esse vislumbre de futuro está presente na recriação de
mundos: a partir de um dado de realidade, um reflexo da
vida, inventa-se uma forma de expressão criativa. A tríade
rap/ragga/repente também compartilha o reflexo da vida e
descreve o que se vê, criando imagens e mundos/futuros
possíveis. Essa tríade estaria presente no estilo de desafio,
em que a destreza e a força de uma rima apresenta o
artista que se destaca. Isso está intrinsecamente ligado
à qualidade do improviso, tão importante para a música
negra, que se relaciona com o chamado e a resposta.
Aqui existe o desafio entre um repentista/embolador e
outro, entre um MC e outro, entre um deejay93 e outro.
O escárnio, a zombaria, a ironia, a resposta são elementos
que estão presentes na música africana e também nesses
estilos afrodiaspóricos.
93
Na tradição do dub e dancehall, é assim que os cantores são chamados.
136
o desafio, estabelecendo uma metalinguagem: ela discute
a própria rima, rimando. Suas palavras têm potência,
que faz reverberar em nossos ouvidos, como o grave, ao
mesmo tempo que ela anuncia esse poder, com sua Surra
de Rima, que “derruba o verso das parada melindrosa”, e
arremata: “revida, senão chora”.
137
percussão, a tessitura grave está investida também
no discurso.
94
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Ky4sQMjbz-w > Acesso
em: 16 fev. 2023.
138
lento do Caboclinho, dança-música de Pernambuco, de
matriz afro-indígena. Ela canta: “Era um passo maneiro/
Não saía do lugar”, indicando o andar mais lento, como
uma meditação. A conexão com o sagrado é proposta aqui
por outra via, também trazendo para jogo a ancestralidade
ameríndia e o transe a partir do sônico.
139
Ela também fala diretamente sobre outras ciências na
música Meu Tamborim, disponível no show gravado no
Estúdio Showlivre. Tamborim ou tamboril é uma árvore de
origem brasileira e, na música, que começa com toques
de tambores que remetem aos pontos de umbanda, ela
vai relatar: “Vó Preta só rezava no povo embaixo do pé
de tamborim, porque ela disse que embaixo do pé de
tamborim tinha uma ciência, dona Maria”. Depois, ela pede
a “bença” à Vovó Preta e à Vovó Pastora e, na música,
pede “Oh mainha me deixe ir pro mato/ Que Vó Preta
mandou me chamar”. Não fica nítido se ela se refere às
rezadeiras ou às próprias entidades, mas há uma ligação
muito forte com a espiritualidade da Jurema, seus pretos
e pretas velhas e os encantados. Em outro exemplo, a
canção Minha Plantinha, de Doralyce, que também tem
a participação de Edgar, Jéssica rima sobre o universo
sagrado das plantas.
140
dub, ouvimos ecos, delays e reverbs, na voz ou nos
samples, assim como repetições hipnóticas, que criam
uma espacialidade sonora e propõem um sentido de
experiência de tempo diferente dentro da música.
141
e formam o orixá são também características
fundamentais dos movimentos de dispersão das
populações negras nas Américas, favorecendo, assim,
a apropriação e uso desse símbolo95.
95
RUFINO, 2014, p. 60.
142
radiola serra alta
96
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=WPYGcpoQFvY >
Acesso em: 16 fev. 2023.
143
Pela importância dessa gênese sonora, irei analisar as duas
primeiras gravações de Jéssica Caitano com o Radiola
Serra Alta, disponíveis no Soundcloud dos mesmos: as
músicas Hoje Vai Gerar e Ragga do Sertão. A primeira,
lançada em 2017, apresenta elementos de música
eletrônica chiptune, ou seja, de produções sonoras em
8 bits, logo no início da música, marcados por um grave
distorcido. Logo depois, entra um beat de uma matriz
dancehall, que deu origem a outros como o reggaeton
e o brega-funk, para ficar em apenas dois exemplos do
influente gênero musical jamaicano. Distorções da voz e
efeitos de eco ajudam a nos conectar com uma atmosfera
sonora que tem o dub como peça chave. Na cadência
de seu canto, ela vai construindo imagens, como numa
colagem, de um passeio de uma juventude em Triunfo,
em que propõe um certo valor cosmopolita, porém com
a convivência temporal do que é considerado como uma
tradição mais antiga.
Para suscitar essas ideias ela vai usar gírias comuns nessa
faixa etária, como “hoje vai gerar”, “rolé”, “bonde”, “dar
close”, e convoca os conhecidos para a bodega, onde vai
rolar “som das antigas”. Aqui ela já sugere essas diferentes
144
temporalidades, avisando que vai ter coco na praça, e que
vai ter headbanger, repentista, embolador e declamador
de poesia. Dessa forma, ela cria uma narrativa de uma
noite numa cidade do interior, que vai apresentar tanto o
apreciador de heavy metal, conectado a uma cena musical
globalizada, quanto os músicos e artistas mais ligados a
uma tradição local. Essa imagem é reforçada pelos sons de
pandeiro e triângulo que ficam em primeiro plano sonoro,
cessando momentaneamente o beat principal.
145
Na segunda música, chamada Ragga do Sertão (2019),
encontramos as referências à cultura musical negra
jamaicana, além do beat que lembra o dancehall, a
marcação do baixo, e o som de uma escaleta, que foi
largamente utilizada no dub por Augustus Pablo. Esses
sons são marcados também por um triângulo, ajudando
a criar as ambiências sonoras tão enfatizadas no dub, de
outra dimensão espiritual e de transe. O triângulo marca
também o encontro da embolada com o raggamuffin, algo
que Chico Science já fazia tão bem, pois o flow de Jéssica
também consegue conectar esses estilos musicais,
distantes no tempo e espaço, porém interligados pelo
continuum de uma tradição dialética da música negra.
146
Sou negra de luta/ E eu não me abalo aqui por nada/ Eu
boto um lá no lajeiro/ Eu faço um flow pela quebrada/
Lá na encruzilhada/ Eu meto verso no pandeiro/ Faço
rima, trocadilho, embolada e rap ligeiro/ Meu flow é
maneiro/ No coco-ragga do sertão/ O Careta e a Veinha
fazendo as conexão.
147
BARBARIZE
97
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=gKWZzBKXu3Q >
Acesso em: 16 fev. 2023.
148
fazer um trocadilho em torno da situação de sobrevivência
na qual se encontra a maioria da população negra no
Brasil, assim como narrar as vivências periféricas e toda
a potência criativa que emana desses lugares. A capa tem
uma ilustração que faz referência direta ao afrofuturismo98 :
no fundo há estrelas, o espaço; Bárbara, com pintura neon
colorida toca o Sol; abaixo, está Yuri, com uma imagem
duplicada, com as mesmas cores, colar africano, e um
grande caranguejo atrás dele, como se suas patas fossem
parte do corpo do cantor; atrás dele vemos palafitas
hi-tech, imagem que as ressignifica. Seguiremos analisando
as músicas e a produção audiovisual atrelada a elas, que
contou com o roteiro e a direção de Victor Limår.
98
Disponível em: < https://bit.ly/capabarbarize > Acesso em: 16 fev. 2023.
149
mais um elemento ligado ao todo, que é algo presente no
pensamento africano. Nesse emaranhado também estão
presentes nossos ancestrais, que são também de extrema
importância para se entender filosofias e espiritualidades
do Continente Negro. Os seus legados e as suas lições
são destacados e representam tanto a imagem cíclica do
tempo como a continuidade de saberes e lutas. Sabemos
como a cor importa desde o advento da colonização e
como fator agregador de comunidades e identidades,
sendo também um componente de combate e resistência,
estando também a negritude aqui cantada pelo Barbarize.
150
cosmograma bakongo. Essa noção do tempo espiralar
também é explicada por Leda Martins:
99
MARTINS, 2002, p. 85.
151
ciência nos corpos, e desenvolvem uma técnica e filosofia
para autodefesa, já que nossos antepassados estavam
sempre em guerra, ou vislumbrando a possibilidade desta
acontecer a qualquer instante. O kuduro também tem
relação direta com a guerra civil angolana, que aconteceu
de 1975 a 2002, onde MPLA e Unita guerrearam pelo
controle do país depois da independência de Portugal.
Segundo a pesquisadora Marissa Moorman,
100
Disponível em: < https://bit.ly/kuduroperiferiaangola > Acesso em: 16 de fev.
2023.
152
A letra de Geração, fala sobre afrontar, derrubar um inimigo
que pode até mesmo estar se passando por amigo. Então
há uma proposição de resistência e revide, de ginga, para
dar a rasteira quando menos se esperava, porque tinha a
certeza de estar te enganando. É uma música, sobretudo,
sobre corpos negros, este lugar de saber e produção de
sentido, contrariando a separação cartesiana de mente e
corpo. Aquilo que Stuart Hall falou, isto é, por estarmos
excluídos do logocentrismo ocidental, fizemos de nossos
corpos, telas de representação. No mesmo comentário,
ele vai enfatizar a centralidade do estilo, música e corpo
para culturas afrodiaspóricas, e vemos que essa tríade é
muito bem explorada em todo o repertório do Barbarize.
153
música. Terceiro, pensem em como essas culturas têm
usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o
único capital cultural que tínhamos. Temos trabalhado
em nós mesmos como telas de representação101.
101
HALL, 2003, p. 342, grifos do autor.
154
do sujeito e do cosmos remetem-nos não apenas
ao universo semântico e simbólico da ação ali
re-apresentada, mas constituem em si mesmas
a própria ação instituída e constituída pela
performance do corpo. Dançar é performar, inscrever.
A performance ritual é, pois, um ato de inscrição. Nas
culturas predominantemente orais e gestuais, como
as africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo
é, por excelência, o local da memória, o corpo em
performance, o corpo que é performance. Como tal
esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas
também institui, interpreta e revisa o ato reencenado.
Daí a importância de ressaltarmos nas tradições
performáticas sua natureza meta-constitutiva, nas
quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo
imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo,
que a registra, transmite e modifica dinamicamente.
O corpo, nessas tradições, não é, portanto, apenas a
extensão de um saber reapresentado, e nem arquivo
de uma cristalização estática. Ele é, sim, local de um
saber em contínuo movimento de recriação formal,
remissão e transformações perenes do corpus cultural.
155
Nas tradições rituais afro-brasileiras, arlequinadas pelos
seus diversos cruzamentos simbólicos constitutivos,
o corpo é um corpo de adereços: movimentos,
voz, coreografias, propriedades de linguagem,
figurinos, desenhos na pele e no cabelo, adornos
e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e
metonimicamente como locus e ambiente do saber
e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas
que daí emergem são tecidos de memória, escrevem
história102.
102
MARTINS, 2002, p. 88.
156
e psicodelia. Veja que, a todo instante, eles estão
articulando o estilo dentro de uma perspectiva de
negritude: seja na escolha das formas sônicas, nas
suas performances, nas suas vestimentas, nos lugares e
cenários. Na letra, eles avisam para tomar cuidado com
quem está do seu lado e com o mau-olhado, ainda citando
um corpo fechado, temas tão comuns nas espiritualidades
afro-brasileiras e com tanto impacto na sociedade, que já
se espraiaram para nossa linguagem cotidiana.
157
Na sequência teremos a música que mais destoa no disco,
Raio de Sol, um samba-rap que busca um tom celebratório
da vida negra na periferia. A narrativa se passa na favela
e fala de um flerte, que envolve, no enredo, futebol e uma
laje com churrasquinho e chuveirão e, dessa maneira,
vai trabalhando com algumas figuras comuns na vida de
jovens periféricos. O que pareceria uma narrativa mais
apaziguadora muda de figura quando o Barbarize pede
a união política da favela, fato que também é sentido
no videoclipe, que mostra corpos dissidentes. O corpo
negro já é algo fora da normatividade, porém a filmagem
estende também para corpos fora do padrão ditados pela
indústria da moda e para a ideia de belo, dentro de uma
perspectiva eurocêntrica. De forma geral, toda iconografia
de que estamos tratando, os figurinos, as maquiagens, os
cenários, assim como todo o cuidado na representação
dos cabelos afro complementam a narrativa desta ficção
sônica. São tranças e penteados dos mais variados estilos,
estimulando uma representação positiva da negritude.
158
Ilumina é uma celebração à Deusa da Lama, interpretada
no videoclipe por Bárbara, que é a razão de desejo e
admiração da personagem de Yuri Lumi, que emula uma
entidade ou um sacerdote, com pinturas corporais e um
cachimbo de preto velho, dançando na frente de um altar
com muitas velas. Aqui os deuses e as deusas dançam,
mexendo o “rabetão”, e assim rejeitam a separação entre
o sagrado e o profano, gerando a aproximação do plano
espiritual com o mundo físico. Há tom de brincadeira,
divertimento e também ironia, já que, em uma das últimas
cenas, algumas das personagens femininas estão usando
o que parece um hábito, destoando dos corpos livres e
com pinturas corporais que dançavam anteriormente.
O clipe fecha com imagem de velas em cima do símbolo do
adinkra sankofa, uma construção muito comum nos gradis
de ferro e que, como vimos, estabelece uma relação entre
passado, presente e futuro de forma integrada e cíclica,
não-linear. O estilo do flow dos cantores e o beat lembram
o reggaeton afro-latino.
159
Afro trap, afrobeats e kuduro são facilmente escutados
em Pretos no Topo, a canção que fecha o álbum visual/
EP da Barbarize. A música fala sobre protagonismo e
autoestima negras e apropriação cultural, enquanto, no
clipe, algumas personagens queimam um boneco que
faz referência a Bolsonaro. Há corpos negros dançando
e altivos, celebrando uma ideia de comunidade. Yuri e
Bárbara ainda encontram com um ser espiritual que parece
mostrá-los e confirmar esse caminho de empoderamento.
Há uma cena um tanto divertida, em que Yuri arranca a
página de um livro e a mastiga, o que, para o presente
texto se mostra um fértil paralelo com a ideia de força da
oralidade africana frente à tradição literária eurocêntrica.
Isso se reforça pelo destaque dado à dança e aos corpos
negros como importantes geradores de conhecimento e
sentido em toda construção estética do duo.
160
Esse sentido de comunidade é sempre falado nas
entrevistas consultadas e é algo que é confirmado ao
assistirmos e ao ouvirmos o trabalho do grupo. Há uma
quantidade grande de pessoas trabalhando na frente e por
trás das câmeras, como mostrados nos extras disponíveis
no YouTube, confirmados pela grande ficha técnica com os
nomes dos envolvidos. Além do Coletivo Pão e Tinta ser
lembrado em suas falas, houve o esforço coletivo que foi
feito para gravação do EP e do álbum visual, já que o último
foi gravado com recursos da Lei Aldir Blanc, que é de baixo
orçamento, e mesmo assim foi realizado um trabalho muito
bem pensado e executado. As letras também citam essa
comunidade, o que nos lembra da música negra como
elemento catalisador desse processo.
161
interseccionalidades de gênero e orientação sexual, como
casais LGBTQIAP+ e mulher trans.
162
A partir de suas músicas e performances audiovisuais,
Barbarize trabalha com a estética e política afrofuturista,
criando uma ficção sônica. Utilizam-se de tradições
dialéticas e ancestralidades para propor futuros melhores
para a população negra. Conectam-se à África e à
afrodiáspora reencenando narrativas de solidariedade
e unidade, o que se dá, primordialmente, por suas
construções de mundos e saberes, através do sônico.
163
164
POSFÁCIO
Deivison Campos
É jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e doutorando
em História. Professor do PPG em Comunicação Social da
PUCRS. Coordena a área de Comunicação e Mídia da Associação
Brasileira de Pesquisadora(a)s Negro(a)s.
Reinvenção da diáspora
na música Pernambucana
165
É a manifestação efetiva daquilo que Gilroy103 denominou
mesmo-mutante, ou seja, a mesma matriz que produz
diferentes produtos e práticas. A referencialidade e
o encontro conferem ao afro a característica de uma
tradição não tradicional. Uma tradição que é permanente
presentificada e atualizada em suas possibilidades,
sem que com isso se deixe de perceber, em se tratando
de música, ouvir, os ecos do Zamani, a tradição
imemorial104. Som.
103
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São
Paulo: Ed. 34.
104
CASTINIANO, José P. Referenciais da Filosofia Africana: em busca da
intersubjetivação. Maputo: Editora Ndjira, 2010.
166
Na travessia, impossibilitados de transportar qualquer
bagagem que não a memória, os africanos escravizados
levaram consigo o ritmo. Este, segundo Mukuna (2005),
é elemento de memória no tempo e, mais do que isso,
o veículo para a produção de força vital, o axé. Não por
acaso, as primeiras formas de sociabilidade registradas
e permitidas entre os escravizados ― mesmo frente à
mistura etnolinguística e à recusa de humanidade ― foram
as rodas de batuque. Tecnologia.
167
O poder sagrado conferido pelo tambor é tão grande que
evoca o que há de mais sagrado na ancestralidade africana
e, ao mesmo tempo, mobiliza para realizações como a
Revolução Haitiana. A história, silenciada por muito tempo,
mostra o papel do tambor na organização dos negros em
sua luta pela liberdade. Esse episódio levou, entre outras
coisas, à proibição da percussão do instrumento nos
Estados Unidos até a primeira década do século passado,
principalmente no Sul, quando os segregacionistas
acreditavam que os negros estivessem sob controle pela
violência. Chegamos assim ao jazz, marco de proposição
do afrofuturismo. Sun Ra.
168
novo que sempre foi. Isso porque, ao contrário das culturas
do chamado Ocidente, esse movimento está voltado a
presentificar a tradição. Sankofa.
105
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2003.
169
Música que faz sentido em toda a diáspora não pela
novidade afrofuturista, mas pelo ritmo e pelo tambor.
O grave. O “um” que desterritorializa e sempre retorna,
o tempo espiralar que inspira. Negritude.
106
“Rafoso” é como o pesquisador Rafael de Queiroz é conhecido e chamado
por algumas pessoas.
170
O coco em Jéssica Caitano é o que gera reconhecimento
em sua música. Da mesma forma, o encontro com a
música eletrônica gera uma sonoridade nova, que se
mantém. Esse cruzo é destrinchado e projetado para a
diáspora nas análises. Em sua música, o local é projetado
para a diáspora. Em Barbarize, o movimento por vezes é o
inverso. O kuduro, música de África, é trazido e traduzido
a partir de sonoridades locais, encontrando com rap,
Afrotrap, R&B, samba, demonstrando que o “um” é o que
une, independentemente do local em que seja produzido
num tempo espiralar. Afrofuturismo.
107
DERY, Mark. “Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate
and Tricia Rose”. In: Flame Wars: the discourse of cyberculture. Durham: Duke
University Press, 1994.
171
no futuro. Não o que se projeta para o devir, mas o que
quer ver hoje aquilo que foi.
Som
Tecnologia
Sun Ra
Sankofa
Negritude
Afrofuturismo
172
173
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Foto: Ludimilla Carvalho