You are on page 1of 248
Fa mulheres antes do vatriarcado te «A mulher era escrava antes qua-o escravo o fosse», diziam us. . sosialistas do século XIX: E em 1969 era a Vez da feminist americana Ti-Grace Atkinsin dizer: «Geralmente admite-se\'que’ @ opressao das mulheres esté na orlgem do sistema de clessus, Mas que havia antes? ‘Neste ensaio, Frangolse d/Eaubonhe esforga-se por fazer o seu ajuste de contes com ests preconceito moderno: desde que se ‘verificou 0 fim da idade das cayernas = da sia promiscuidade sexual, o patriarcado «sempre» existiu, conjuntamente com a célula familiar, Porque Bachofen cometeu graves erros ao de- fender a existénoia do «matriarcadop, os antropélogos de hoje recusain-se a acreditar numa sociedade de proeminéncia femi- nina, apesar de tantas civilizagoes antigas nos aparecerem) como los de transicao entre essa mesmi jiedade-eo-patriarcada proprismente dito, Isto sem contar'-eiim as deéseobertas mais recentes: em 1972) no Brasil, a das grutas de Amazonas, o em 1975, ao norte do Nepal, a da arte @ costumes de Um matrfar- cado que existe desde 1500 A. C,, Mitila. Mas nao) 6 tudo. Ao debnicar-ss sobre leridas, a fact -arquelégicos como .sfol os tegélitos, e| certos ag} preendentes das culturas egipcia, doticd, aretense Francoise d'Eallbonne apola-se num conjinto de perspectivar o semi-patriarcado como perfode de manifestagio, de um duplo factor que decidiy tod humana; a gestio da agricultura retirada as mull homens e a descaberte do processo) da paternidades cobertas que instituiram o patriarcado universal a conduzem. hoje 4 dupla, catéstrofe ccolégica da supersxploracho e da superpopulagao, catastrofe que ameaga fazer desaparecer a nossa essScie se o mundo nao tomar Uma) via eco-ferninista, © Copyright Payot Titulo original: Les fernmes avent le patriarcat Tradugéo de: Manuel Campos e Alexandra de Freitas Capa Estudio Vega Direitos de tradugéo para a lingua portuguesa reservados por Editorial Vega Rua Jorge Ferreira de Vasconcelos, 8—Linling Composigéio e impressio Tipografia Garcia & Carvalho, Lda, Rua Santo Anténio da Gloria, 90 — Lishou 3000 exemplares em Agosto do 1977 Printed em Portugal patriarcado Frangoise d’'Eauboone ¥ BOL. 4402 EAA We Chi A sociedade actual [...] assenta numa gigantesca frande que timidamente comega 2 ser denunciada. Esta fraude esconde-se por detras de todos os pro- blemas politicos, religiosos, sociais, econdmicos e culturais que lhe servem de alibi: trata-se estri- tamente da relagfio entre o homem e a mulher.» JBAN MARKALE (Lia Femme Cette, introducso) «Que dizer as raparigas? [...] Que odes podemos dedicar-hes? Que acces ensinarthes? Quais seréio as nossas deusas e as nossas herofnas?> PHYLLIS CHESLER (Les fommes et ta jolte) 4A diviaGo por sexos 6 uma divisio fundamental gue lesou ag sociedades & um ponto Insuspeltado, Apenas se fez a soviologia. dos homens, e nfo a soctologia das mulheres ou doa dois sexos.» MARCEL MAUSS INTRODUGAO O erro de Bachofen foi ter confundido as sociedades matrili- neares com o matriarcado, erro que pesa ainda consideravelmente na concepedo histérica da evolugéo humana. Permuaneceu-se amarrado a uma oposigéo simples e dualista: ou patriarcado, ou matriarcado, O homem teria sido sempre chefe tt familia, senhor da ow das mulheres, com todas as estruturas scoundérias que esie eiao familiar ¢ social implica, ou teria enistido antes esta forma de comunidade humana ou cultura centrada na mulher @ na sua fecundidade. Neste caso, a mulher teria entio reinado incontestavelmente, divinizada com o nome de Grande Mic, possuidora da terra o dos homens, até ao aparccimento do palriarcado, Porque vaziio estas duas formas extremas de relucdo entre os scxos haveriam de esgoiar toda a imaginagéo humana? Como 6 possivel que & luz dos trabalhos de Margaret Mead, para nao cilar outros, niio se tenka procurada deseobrir no nosso passado formas intormedidrias que a observagdo dos indigenas do Pactfico demonstram poder ewistir? EB na antiguidade—a época mais conhecida @ mais estudada— néo existem provas abundantes de que ws cuituras humanas, mesmo quando pussaream para uma direegao masculina, s¢ podem difieilmente chamar «integralmente patriarcaiss € sdo antes transigdes entre o putriarcado propiia- monte dito —o dos tempos modernos — ¢ outra coisa? Por nossa parte, temos hoje como certo que este patriarcado Yue 6 0 esquema universal da sociedade planetéria — com algumas euconcdes de permeio, as subculturas analisadus por M. Mead i H. Schelsky, por enemplo— se fundamenta em duas descobertas da antiguidade: a sucessdo da agricultura masculina a : joining, sucesso de certo modo recente, ¢ mais tarde ainda 0 conhecimento perturbador (que alguns povos como os Trobrian- dests nito adquiriram ainda) do processo da fecundagio ¢ da parte que o pai nele desempenha—o que quer dizer que € de data relativamente tardia. Certamente que esta descobcria ndo se dew por toda a parte ao mesmo tempo, tal como mais de cinco séculos, pelo menos, sopuram o aparecimento da charrua-falo em Sumer e no Oci- dente, Como o notou jd 8. de Beauvoir em O Segundo Sexo, trata-se de xverdades novas» que o Apolo de Delfos langa vitoriosamente contra as Buménides quando toma w dafesa dé Orestes: este apenas tinka morto wna estranha ao assassinar sua mic. A mulher niio « sendo o terreno que recebe a semente ¢ a alimenta. As leis de Mano fomam yuase palavra por palavre este discurso fulocrdtica, A lei mulviarcal apaga a da Mde, com a ajuda das mesmas metdforas agri- volas: por toda a@ parte no Ocidente, a partir da época helénica, no Médio-Oriente com o eédigo mosaico, a mesma. ergumentagio wn relomada até & escritura do Corto, 0 mais nove dos livros sdtqpados;: de Apolo a Maomé sera reafirmado que « Grande Mae, M 0 antigo principio de Vida que, como simboto duplo do Seio 6 do Timulo, originava uma adoragdo e um. terror sagrados, ndo 6 mais do que o simples himus que s¢ lavra, o sulco que se semeia, 0 campo que s¢ possui e calea com o pé. Esta degradagao da antiga soberana 86 comega com a desco- berta da paternidade. Antes desta certeza bioldgica, aié a posse das téonicas agricolas, depois da terra, ndo ocasionou a queda total do poder e da sacralizagdo do sexo feminine, Mesmo que nado tenha reimado sendéo rara e localmente de maneira absoluia como julgou Bachofen, a mulher ndéo foi precipitada de repente na escruvatura patriarcal nesta mesma época de agricultura mas- culina, nem em todo o lado ao mesmo tempo. Bebel, no seguimento de Bachofen, frisou bem o grave prejuizo causado as mulheres por esta penhora masculina sobre os bens da terra; mas nio a dis- tinguiu da etapa seguinte. Julgow determinante esta apropriagdo econémica a que chama «a grande derrota> das mulherss, Também, em nossos dias, o Dr. W. Lederer a denominu de «a grande vira- gem». A queda definitiva tem lugar muito mais tarde. Neste periodo que parece separar as duas descobertas funda- mentais do patriarcado, permitimo-nos inserir sob 6 nome de «semi- -patriarcais» as owilizagdes nilétict, cretense, jOnioa, até céltica, em que as mulheres exercem altas fungdes, gosam de grandes liberdades, possuem «uma situagdo muito elevada» °). No eitaato, ewiste jd a célula familiar que ussenta sobre o hemem, o pai, mesmo que os seus poderes conjugais, paternais e econdmicos sejam repartidos e respeitados muito desigualmente. B interessante lembrar aqui como é recente o total conheci- mento cientifico da procriagéo na ciéncia ocidental, Depois da antiga crenea na total responsabilidade do macho, o problema. serd revisto, sujeito a polémicas, e permuneceré por longo tempo numa () A formula 6 de Simone de Beauvoir que, uo eutanto, afiera, como toda a posteridade universitéria de Levi-Strauss, que a socledade humana «sempre pertenceu ao homem», “is “ grande incorteza, Até 1906, data em que o ensino adoptava a tese “da fecundagtio do dvulo por um sé espermatozdide ¢ de colabo- ragdo de cada um dos dois senos na reprodugdéo, em que a Faculdade de Paris proclamou esta verdade ex cathedra, os médicos divi- | diam-se ainda em dois campos: os que julgavam, como Claude Bernard, que 86 a mulher possuta o principio de vida, tal como os nossos antepassados das sociedades pré-patriarcais (teoria ovista); cos yue imaginavam, & semethanga de certos poves indianos acluais cilados por W. Lederer (), que o homem projectava por ejaculagdo tem mintisculo hominculo perfcitamente formado, que o ventre feminino recolhia, alimentava e desenvolvia, como acontece com o grao langado & terra. A condigéo wniversalmente subordinada do sexo feminino estava muito arréigada numa. tradic¢éo secular apoiada ao mesmo icmpo nas religides ¢ nos sistemas de moral, e simultaneamente no aescnvolvimente das téenicus de produgdo provindas da idade de bronze, depois da indistria, pura que estas doulas e tardias discussdes pudessem tornar a pér em questio o lugar da mulher na sociedade, ainda que chamada «civilizada». A opressdo do sexo feminino era muitissimo necesséria a este sistema. No entanto, j pode pensar-se que, se a oiéncia oficial reconheceu em 1906 a par- licipagdo dos dois sexos na procriagdo, tal aguisi¢do corresponde a wna epoca em que, com grandes personalidades femininas de primeiro plano, a agitagéo nascente das sufragistas, e também « &npeto revoluciondrio, desponta no horizonte cultural uma possi- bitidade: a da igualdade dos sexos. Nenhuma, ciéncia pode chamar- pura»; as suas fases esto ligadas ao que se passa no mundo_ « G prova de forga que se joga perpetuamente entre as categorias \ mulugénicas, etnias, classes ou sexos. Ne se rejeitar o dualismo primdrio desta oposigdo radical -pulriareado-matriarcado», e sobretudo se se admitir que néo hé pugiio pura que o mundo tenha sido «sempre» pairiarcal, nem para «que a tmportancia do «. «Os camponeses europeus comegaram entdo « controlar og cereais espontdneos...2? Be léssemos, ncstas mesmas frases, escolhidas uo aeuso entre milhares de outras, «agricultoras» @ «camponesass ndo & verdade que a orientagio da histdria humana tomaria wna dimensdo completamente diferente? O que parece simples pormenor é por vezes o essencial. Valery dizia: «<0 que temos de mais profundo é a nossa pele.» A gramdticn « «linmistioa séo a pele do pensamento, a epiderme da consciéncia, Ox inulores que utilizam o masculino, tratando-se de umu desco- tirin fomining, conformam-se, logo que se passa 4 relacio da histo- Mela, com a regra gramatical do sujetto colectivo no masculino: allt QU mulheres cum repazinho concordam no masculino plural, wile doe - dizia Alphonse Allais. Mas « interiorizagia desta regra conven- cional aproxima-se da fraude. No estado actual da nossa cultura, é impossivel ler: «as agri- cultoras subiram. até a bacia de Elba» ou «as camponesas europeias comecaram a controlar os ccreais espontdncos» ou seja que frase for deste género tirada de Will Durant, Gordon V. Childe, Graham Clark ou de outro, sem que o leltor se interrogue, perplexo: «Mas onde estavam os homens?» Quando se lerd sem hesitar, nestas mesnus obras de especialistas, gue esta descoberta e esta técnica pertenceram as mulheres, e niio se perguntaréd com perpleaidade, ao ler o texto no masculino: «Mas onde estavam us mulheres»? A dimensiio capital desta orientagdo decisiva da evolugio humana devida ds mulheres, se fosse traduzida muito simplesmente por esta formulacdo, irritaria jd fortemente o espirito tradicional. Com. efeito, a espécie humana apareceria entio, segundo a palavra. Dbiblica, como «a raga da mulher».* Mas que aconteceria se investigadores tentessem, hoje. desen- volver as consequéncias de um. facto cultural que ninguém con- testa, procurar as formas do que néo foi em nada wma simples prdtice pronta e serenamente utilizada pelos homens, 0 tintco patro- nato da Histéria a despojar sem violéncia uma categoria humana do fruto do seu trabatho? Se algum audacioso se debrucasse sobre as etapas desta lita de classes pré-emistentes ds classes? Se, & luz deste facto adquirido —e logo esquecido—, alguém. se pusesse a desvendar outras trevas: 0 «mito» do amazonato, por exemplo, .0 enigma nunca esclarecido de wn Egipto profundamente femi- nista, em que no entanto o soberano supremo deve ser um vardo, a autocastragio em estado de deméncia dos sacerdotes frigios de ’ Cibele, w perseguicaéo das Bacantes no império romano, tao seme- Thante ao sexocidio das feiticeiras na Idede Média crista, a verdade sobre tradigées ¢ lendas estranhas como o massacre des Lémnias pelas suas mulheres ¢ a segregagio scaual da «ilha das mulheres» ou do «pais das mulheres»? Correr-se-ia o risco de descobrir que estes factos isolados ow slendérios» nfo sto curiosidades bizantinas mas revelodoras de 13 uma luta de proporgées outrora gigantescas, que informa as origens da sociedude humana de mancira universal e subentende o seu desenvolvimento, ainda que constantemente negada, escondida, rupolida no inconsciente histérica e individual, e cujo apareci- mento actual no primeiro plane do problema moderno pée em relevo a questa mais crucial: o perigo ecolégico mundial, con- scquéncia da apropriacéo pelo patriarcado das duos fontes de vida, fertilidude e feewndidade. Os investigadores de hoje, por causa das inyenuidades do séolo passado, devem considerar . Mas esses «deuses» mudaram de sexo; vé-lo-emos ao pormenorizar esta passagem de uma etapa para outra. () Subliniado da Autor, (*) Alexandre Moret, Histoire Ancienne, Tomo I, 1963. (*) Histotre Gén6rale des Ciwilisations, Tomo I, 1963, 19 Reeordemog rapidamente a historia das origens. A chamada revolugio mesolitica vai de 8000 a 5000 ou 4000 anos A.C. A revo- lugdo neolitica comeca em seguida. Julga-se que ¢ por volta do ano 5000 A.C. que o homem se torna sedentario no Oriente, e dez séculos mais tarde na Europa. Pouco tempo depois desta ultima época aparece a primeira charrua ro Médio Oriente, e 0 veiculo de rodas macigas em Sumer. A idade dos metais sucederA 4s grandes civilizagées agrarias da Mesopotamia (o Indo) e das margens do Hoang Ho, na China: civilizagdes de agricultura intensiva favorecida pela irrigagio. Os métodos metaliirgicos evoluem muito rapidamente: fundigio dos minerais sulforosos, separacéo da prata e do chumbo, Parece impor- tante sublinhar que os Celtas foram os Ultimos adeptos e técnicos do Ferro (e os Germanos sé queriam ferreiros celtas) e que 08 Btrusces, que seréo os primeiros dos metalurgistas de 750 a 450, sio iguais a eles, e nfo tém outros rivais senfio os Tlirios. Ser4 que esta téenica particular, que diz respeito a um metal mais leve e mais mancjavel que o bronze, entra numa relagiio entre og sexos que parece maig igualitaria que noutros sitios (e continua a sé-lo por mais tempo) nestas tvés culturas? Durante o paleolitico, o homem é nédmada e cagador, mas apanha, j4 o gado, Tenta conseguir, sem dfivida, uma reserva de carne, mas parece que nfo pensava ainda em domestic4-lo. B a época florescente das estatuetas femininas, homenageng & fecun- didade, que nao é ainda nem dominada nem conhecida; o cacador , errante nfio tem vagar para observar o gado, «O homem do paleolitico esté intimamente ligado a natureza e afasta-se cada vez mais do neolitico.» (*) A envada (agricultura feminina) aparece com a cestaria, os recipientes de madeira, de pedra, de couro, com a piroga, o trend (*) F. Klemm, Histoire des Techniques, Payot. 4 20 a primeiras tentativas de ceramica, A agricultura com relha de arado (a masculina) comega em Sumer, cerea de 5000 anos A.C., 1 no Oeidente nos tempos pré-homéricos, quinze a vinte séculos A.C. «Mas 0 emprego destes meios téenicos conserva sem- pre ag suas origens e o seu sentido ritual. A charrua que ‘ se introduz na terra é ao mesmo tempo o instrumento 4 @ 0 simbolo da eriagdo ¢ da feewndidade.» (*) A sta ultima frase é de primordial importancia. Nao parece «ue © préprio F, Klemm se tenha apercebido do aleance das suas implicagdes. Observemos a arte pré-histérica, As mais antigas pinturas murais datam de 25 a 30000 anos A. C, Nao estamos ainda na arevolugéo mesoliticas, contemporanea do aumento da tempera- (ura e da modificagao da fauna e da flora. Mas consideremos o outro aspecto da, arte contemporanea: a cultura das estatuetas femininas. A Dama de Sireuil, mulher esculpida em forma de falo, data de ha 25000 anos A.C. Ora, este perfodo caracteriza-se por um certo progresso do paleolitico; cabanas circulares e pavimen- tadas, trabalhos em osso em pleno desenvolvimento, primeiros adornos. A arte figurativa e o mobiliario que aparecem prolongar- -Se-Ao por vezes até & Idade do Ferro (gravuras rupestres nos Alpes e na Europa do Norte). & possivel que esta arte tenha sido dividida segundo o sexo. Pode supor-se, por hipétese, que o homem cagador pintava nos muros das cavernas e que as mulhe- res consagravam 4, modelagem e escultura das figuras da fecun- didade, e que estas duas técnicas tinham sido ligadas a uma dupla magia: pintura. masculina do fascinio de caga, escultura feminina de vaptagiio das forcas fecundantes. Muitos historiadores — Edgar Morin em Franca, Smith em Inglaterra, por exemplo — pensam que as mulheres estéio na origem dos ritos do enterro, sem di- } vida com o fim de ressuscitar. (A Terra-Mée & um ventre e o (*) Ibid. Sublinhado da Autora, 21 morto, & semelhanca do grao, pode dar uma nova planta, esta humana.) (*) Por fim, como o nota o Dr, W, Lederer (ob. cit.), o elemento feminino é marcante na grande fabricagio dos objectos cdncaves: recipientes, tinas, bacias, lougas de barro, no neolitico, E 6 nesta mesma 6poca que aparece uma mudanca muito significativa na representagdo da figura feminina, Depois da Dama Branca de Damaraland (Africa do Sul), que decora um abrigo de Tsirab Ravine — Diana elegante com um einto rico, braceletes, jéias na cabeca, arco e flecha na mio, em atitude de corrida — descobrimos (mais de vinte mil anos depois da Dama de Sireuil) a Figura Acorrentada de Predionica, na Jugoslavia. Como a Dama de Sireuil, tem um longo e delgado tronco sem seios, € com pernag pequenas, mas esté acorrentada, As mios nas arcas, a atitude de desafio realgam o aspecto estranho da sua cabeca triangular e dos seus olhos enormes de gafanhoto, Dir- -se-ia uma prisioneira que desafia o seu vencedor, Na mesma époea, o aspecto que o menir de Filitosa (Corsega) oferece é semelhante ao de um outro menir de Aveyron: é o falo- -rosto, Estamos no fim do neolitico; a charrua primitiva sucede & enxada. Parece que assistimos aqui a uma perfeita inversio da equagéo «mulher-falo» da Dama de Sireuil. O poder feminino é simbolizado, na arte paleolitica, por um androginato estético —o mais antigo sonho, sem diivida, da humanidade— que se afasta do lado feminino, O membro viril, relevo por exceléncia, serve de material para a representagdo do Feminino como diyin- dade. No fim do neolitico, a antiga divindade esté acorrentada — depois de que espécie de combates? Qual foi a sua forma, a sua duracéo? Ainda que se tratasse, na mesma época, da passagem definitiva da agricultura de um sexo para outro, néo pode ser efeito de uma simples coincidéncia. (*) Num tempo em que a vida humana era téo curta, a cren¢a num Jongo pericdo desta, espécie de 23 (ru ima cultura mareada pelo respeito do elemento feminino, Como foi isso possivel? Devemos voltar ao enigma que era para o homem, nesta época afastada, o processo da fecundidade. A incer- teza talvez, como sugerimos, de uma possivel «ressurreigio»s de- vida aos ritos da colocagio na terra, em paralelo com o poder uobre 2 fertilidade (agricultura de enxada), completou segundo lodas as probabilidades esta deferéncia do homem de antanho para com a sua misteriosa e poderosa, companheira. Deferéncia que no podia sobreviver, evidentemente, a0 dominio da agricul- tura e@ ao seu desenvolvimento (gracas 4 charrua falica), & des- coberta dos metais e¢ & da paternidade, mais importante ainda. De resto, esta primeira, cultura «feminista» precede a époea das grandes cacgadas. Em pleno patriarcado, sobreviver& sem dtvida alguma coisa de uma crenga na transmissio magica, até mistica, de certos ele- mentos da mée para o filho. E quanto mais a mulher for rebaixada ¢ reprimida nos costumes, tanto mais esta heranca invisivel perten- ecrd a um prinefpio elevado: para o judaismo —a, religiio mais maseulinista do mundo — é Judeu o filho de uma Judia, nfo de um Judeu; na Africa Central e no Senegal, a acreditar em Anta Diop, ¢ feiticeiro completo, demm, o filho de uma feiticeira; o filho de demi, se a mie nao o 6, nao é senio nohor (semifeiticeiro) (*). Como se vé, trata-se de outra desvalorizacio da assimilacio in- génua de Bachofen que identifica «matriarcado» e «linhagem ma- trilinear». As mulheres, segundo parece, interromperam o nomadismo em maig de uma cultura, incitando os homens & vida sedentaria, Muitas juuwrativas mostram-nas «a gueimar os barcos, a dar o seu nome a () Presence africana, Um argumento suplementar a favor do costume feminino ite enterrar o3 mortos ¢ que, segundo Piganiol, os Indo-Kuropeus néiadivt (Germanos, Eslavos, Latinos) introduziram o hébito de incinerar on mortos not povon sedentérios que os enterravam. Ora, a Africa Negra que rie comdileri a eantlzo matriarcade agrérioy nunca conheceu este costume. ah cidades, a desempenhar um papel decisivo na partilha das terras em Roma e em Ellis.» Destaca-se a lenda de Dido que funda Car- tago e tenta ai fixar Eneias; 6 uma recordagio antiga do que se passou nos tempos pré-homéricos, muito antes da prépria Cartago. A transposigao da «fundagéo de uma cidade» para uma tentativa de fixacio dos homens pelas mulheres assemelha-se a um costume que existiu, no século XVI, de representar os heréis antigos em traje da época! Mais simbélica ainda, talvez, é a histéria de Pené- pole, centro de gravidade do destino errante de Ulisses. Podemos encarar 4 vontade a hipdtese de um Amazonato que correspondeu, do neolitico ao império hitita (época a que o ecolo- gista Picrre Samuel pensa resumir este fendmeno, ainda que Pierre Gordon o date de muito mais longe) ("), a uma segregacao possivel dos sexos e das técnicas: a agricultura para as mulheres, a caga eo pastoreio para os homens, Se o falocratismo se afirma tao rapi- damente na bacia mediterranica, talvez seja por causa, da reacgio contra as antigas guerreiras, cavaleiras que levavam a melhor muito facilmente aos soldados helénicos, , Nada mais prejudicial para a investigagio histérica do que pro- jectar no passado mais recuado estruturas mentais ou sociais da época em que se vive, com o pretexto de que sfio as de contempo- raneos subdesenvolvidos em que se mantiveram as formas de vida dos antepassados. A antropologia moderna demonstrou o perigo de identificar o «selvagem» com o «primitivo> e os trabalhos de Malinowski, Lévi-Strauss, Moscovici, ete., designaram por mais de uma vez a «decadéncia» de subculturas que nao tém nenhuma rela- co com um comego, ¢ muito menos com uma sobrevivéncia, No entanto, esta mania persiste em muitos autores, mais his- toriadores do que antropélogos, para sermos verdadeiros, Na se- riissima colecgio «D’un monde a IJ’autres (Plon), ainda em 1963, 29 miuido da pena de um Professor da Universidade de Cambridge, bibllotecirio-chefe em Queen's College a propésito do alto paleo- litico pode ler-se o seguinte: «As mulheres, numa sociedade assim dedicada & caga, deviam ocupar-se de outra maneira. Viviam na caverna, cultivando algumas ervas comestiveis, alguns legumes, rebuscando alguns frutos, nozes ou raizes.., A sua acti- vidade n&o estava organizada nem regulada como a dos homens no decurso da sua expedicao,.. Esta diferenga irritava os homens, ovtem como hoje, contra a falta, de pontualidade das mulheres... Podemos afirmar que no tempo das cavernas o homem era o combatente, a mulher a protectora da prole e a esposas (2°). Aqui esta o perigo de substituir a observacio antropolégica pelo romance histérico, Nada, absolutamente nada, prova o bom fundamento duma tal hipdtese, a nao ser a necessidade — tio lar- gamente partilhada — de projectar em todo o passado, como alguns o favem no futuro, a repetigio obrigatéria de uma situagio exis- iente ¢ tranquilizante, por exemplo a perenidade, o natural do pa- , Wiareado como facto original (7°). Pelo contr4rio, nio faltam argumentos para invalidar esta tese reconfortante. Antes de tudo, as ossadas pré-histéricas mais completas, assim como as silhuetas murais huranas assinaladas a esta luz, nao nos mostram nenhuma diferenca marcante de estatura ou de forga Sisien entre os dois sexos, e mais de um investigador reconhece (") La fetrme dais Vantiquité, Charles Sellman (Sublinhado da au~ tora), () Deve-se distinguir igualmente entre as nogdes cpatriarcados, que Hnpllex: wn valor dado & célula femiliar, e traduza o nascimento de um poder masculino, devido a0 outta ds vida némada, que o poder feminino pord em cheque no neolitico. a institucionalizada, até ao seu desenvolvimento completo na idade neolitica. Esta predominancia da preocupagio de perpetuar a espécic sobre a preocupacio imediata de fazer boa caca e evitar a fome, marca uma evolucdo de consciéncia: a preocupagiio de se reproduzir torna-se uma espécie de ideal, comparavel ao de qualquer solida- riedade comunitaria, patriotismo ou fé6. Se o magdaleniano parece apontado para a sobrevivéncia imediata e obsessio da caga, na idade precedente, a Graveta pareceu marcar uma viragem: a espécie humana que toma conseiéneia de si mesma e procura perdurar para além do individuo. Mas os campos de gelo desaparecem pouco a pouco, deixando a nua Europa do norte e as terras que o mar do mesmo nome hoje recobre, Os cagadores hamburgueses cagam a rena e abrigam-se de inverno nos bosques ao sul da Alemanha; conhecem o arco, igno- rado pelos magdalenianos, Mil anos mais tarde comega a fase Boreal. Forma-se 4 volta da Europa uma cintura arborizada, confferas frondosas ligam os montes Urais as cordilheiras dos Peninos e co- brem a América do Norte. No fim desta era, misturam-se os carva- thos, os ulmeiros e as tilias; as terras ainda nao cobertas pelo mar do Norte alinham o seu territério pantanoso; é a grande abundancia dos rios, dos lagos, dos pintanos, dos miltiplos cursos de Agua devi- dos 4 depressao baltica; também a criagiio e a caga sio comple- tadas por uma quantidade nova de peixes, Conhecemos este perfodo pelos aluvides de detritos e de lixos caseiros que deixou atrds de si ao longo dos pantanos e dos monturos: 6 a época dita «magle- mosiana». Os utensilios aperfeigoam-se: sabe-se que os povos desta cul- tura utilizaram trends de que foram encontrados os patins, mul- tiplas redes e instrumentos de pesca, nassas, arcos aperfeigoades (com esticadores), instrumentos de marcenaria diversos e engenho- sos, pirogas e pangaios; pela primeira vez, apareceu a cola. Supée-se que estes homens eram némadas, acampando no verao em tendas. 35 As mais recentes descobertas arqueolégicag trouxeram uma revelacdo perturbadora: a exumacao, na Anatolia, de um primeiro conjunto de aldeias de cultura feminina, datando de 7060 a 6500 anos antes da nossa era; confirmagio de um texto jé velho de Mal- raux, em Noyers de V Altenburg: «Quanto mais remexemos no nosso passado, menos encontramos o selvagem de moca; para além destas trevas, j4 havia reis, cidades», Dizemos mais: rainhas. Esta espécie de cidade, talvez a primeira de todas, revela uma arte figurativa, frescos, uma agricultura, uma administrag&o ja forte, e fixamos sobretudo uma magnifica representagio esculpida da Deusa-Mae entre dois ledes (°°). Tais eram os antigos habitantes do territério que o Indo-Europeu fundador do Império hitita devia invadir, cinco mil anos mais tarde. 4000 anos antes da nossa era, quando o continente esta defi- nitivamente separado pelas Aguas da futura Inglaterra, quando ag chuvas caem com mais forga e as faias se misturam com os carvalhos da Europa Ocidental, a cultura maglemosiana perde a sua unidade e divide-se numa quantidade de pequenas civilizagdes locais; populagées agricolas vindas da bacia danubiana instalam-se + até ao Elba. Ha j4 um milhar de anos que a primeira charrua tinha aparecido na, Mesopotania, mas a agricultura neolitica continua a ser feminina no periodo pré-dinastico do Egipto, e confia nas cheias anuais do Nilo para uma irrigagéo natural das terras, e por toda a parte se encontra. o mesmo ecomportamento no que respeita a caga e A pesca, e no que toca aos ritos funerdrios» (V. G. Childe, ob cit., sublinhado da autora). Estas perde-se realmente na noite dos tempos, e sobre isso quase nada ; Sabemos; 6 talvez a mais antiga das hierofanias, Mircea Eliade niio hesita em se referir ao valor maldito do «matriarcatlo» e em 41 pronunciar 0 seu mome para explicar esta estrutura impressio- mante (*), Eneontramo-lo na Nova-Irlanda (onde é de assinalar (que a gasstvidade feminina é caracteristica da divindade suprema), ou entre os Todas, os Cavios do Assio, etc., em que «uma grande Deusa feminina se substitui ao Ser supremo celeste primitivo». «Iavé & o Deus do Sinai, isto é, o deus Sin dos Semitas, Deus- ~Iua cajo sexo é ambiguo na origem>, diz J. Markale (ob, cit.). Acreseenta que os personagens femininos dos primeiros livros biblicos tém um caracter e um comporiamento surpreendentes para uma cultura «paternalista», o que poderemos ver ao evocar a his- toria de Lilith, rejeitada hoje na tradigfio apéerifa. & o préprio Deus-Lua que langa duas vezes o flagelo das serpentes: a primeira sobre ¢ Egipto, a segunda sobre os Hebreus no deserto. O signifi- cado uefasto deste animal aparece pela primeira vez na cultura judeo-crista; o outro, o da fertilidade e da sabedoria, manter-se-a nas sobrevivéncias ginocraticas dos semipatriarcados e até de certos datriarcados em que permanecem vestigios do antigo Direito das Maes; nos Celtas, as serpentes da Serpente Fantastica guar- dam o tesouro, ¢ em muitas regides das Indias o seu nome é pre- cedido da palavra

You might also like