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ESCOLA DA TERRA CEARÁ:

CONHECIMENTOS FORMATIVOS
PARA A PRÁXIS DOCENTE DO/NO
CAMPO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC

FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO,


DIVERSIDADE E INCLUSÃO – SECADI
Clarice Zientarski
Karla Raphaella Costa Pereira
Perla Almeida Rodrigues
Freire (Organizadoras)

ESCOLA DA TERRA CEARÁ:


CONHECIMENTOS FORMATIVOS PARA
A PRÁXIS DOCENTE DO/NO CAMPO

Assis, SP - 2016
Triunfal Gráfica & Editora
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................7
Heulália Charalo Rafante
Creditos
PREFÁCIO.............................................................................................13
Tiago Nicola Lavoura

PRIMEIRA PARTE: MÓDULOS DIDÁTICOS UTILIZADOS NA


FORMAÇÃO CONTINUADA...............................................................17

TRABALHO, EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO HUMANA:


BASES ONTO-HISTÓRICAS................................................................19
Adauto Lopes da Silva Filho
Fátima Maria Nobre Lopes

POLÍTICA EDUCACIONAL NO BRASIL EM TEMPOS DE


CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL: PROPOSTAS GLOBAIS
PARA AÇÕES LOCAIS.................................................................................37
Valdemarin Coelho Gomes

O CAMPO BRASILEIRO: BREVE HISTÓRICO E PERSPECTIVAS..57


Stelamaris Torres Melo

FUNDAMENTOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS PARA A


EDUCAÇÃO DO CAMPO I: A ESCOLA DO CAMPO........................99
Paulo Roberto de Sousa Silva
Ficha catalográfica
A ORGANIZAÇÃO CURRICULAR E PEDAGÓGICA DAS
ESCOLAS MULTISSERIADAS DO CAMPO............................................127
Sabrina de Bragança
Clarice Zientarski

SEGUNDA PARTE: TEXTOS DOS PROFESSORES


FORMADORES......................................................................................151

A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA MARXIANA: ELEMENTOS


PARA UMA PROPOSTA EMANCIPATÓRIA DE EDUCAÇÃO
DO CAMPO............................................................................................153
Maria Elisian de Carvalho
Karla Raphaella Costa Pereira
EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO DO CAMPO E REFLEXÕES
APRESENTAÇÃO
PEDAGÓGICAS NA AÇÃO ESCOLA DA TERRA DO CEARÁ
.........................................................................................................................
Fazer a apresentação do Livro Escola da Terra no Ceará: conhecimentos
173
formativos para a práxis docente do/no campo significa apresentar as ações de-
Rosalho da Costa Silva
senvolvidas por um coletivo de professores, tutores, coordenadores, cursistas e
UMA ANÁLISE DIALÉTICA DA FORMAÇÃO DE formadores da Ação Escola da Terra, em parceria com as Secretarias Municipais
PROFESSORES NA EDUCAÇÃO DO CAMPO...................................195 e Estadual de Educação, que teve início em Junho de 2015, atendendo a 19
Maria Núbia de Araújo municípios e 750 professores das escolas multisseriadas do campo e de comu-
Frederico Jorge Ferreira Costa nidades quilombolas. O desafio era oferecer um curso de especialização de 180
horas, visando a formação dos professores nas especificidades da educação do
AS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DE ANTÔNIO GRAMSCI
campo e sua inserção na educação em geral. Tínhamos como fundamentação
E DERMEVAL SAVIANI NA CONSTRUÇÃO DE UMA
teórica o Materialismo Histórico Dialético e a Pedagogia Histórico Crítica, que
PROPOSTA REVOLUCIONÁRIA PARA A ESCOLA DO CAMPO:
acompanhou o processo de formação de todos (as) os (as) envolvidos na Ação.
ELEMENTOS CONCEITUAIS À LUZ DA ONTOLOGIA
Um trabalho como esse vai muito além da formação de professores, pois
MARXIANA
representa, entre outras conquistas, a aproximação entre a universidade e a so-
................................................................................................................
ciedade; a valorização dos profissionais que atuam na educação básica brasileira;
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contribui para a socialização dos conhecimentos acumulados pelo desenvolvi-
Diana Silva Monteiro
Sávio Abreu de Freitas mento histórico da humanidade, em especial, para a população do campo que,
Sylvio Barros historicamente, vem sofrendo com a expropriação da sua terra, o apagamento
da sua cultura e a negação do acesso a esses conhecimentos. Em várias
AÇÃO ESCOLA DA TERRA E MOVIMENTOS SOCIAIS:
comuni- dades, a escola, muitas vezes com poucas classes multisseriadas, onde
EDUCAÇÃO DO CAMPO PARA O FORTALECIMENTO
o profes- sor ocupa todas as funções da escola, é o único equipamento cultural
DA
existente. Ainda assim, há sempre o risco do fechamento dessas escolas.
PERSPECTIVA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA.....................................243
Portanto, ações como a Escola da Terra são ações de resistência, de luta pela
Francisco Carlos Falcão Junior
garantia do direito à educação e outros direitos sociais, conquistados com
Antônio Ozielton de Brito Sousa
muita luta ao longo da
QUILOMBO: CONCEITOS E DEFINIÇÕS COM VISTA A história do Brasil.
EDUCAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLA E DO Direito à educação significa uma formação humana completa, que leve à
CAMPO..................................................................................................263 superação da alienação imposta pela sociedade capitalista, que resulta em
Marlene Pereira dos Santos expro- priação e exploração, levando à ruptura dessa lógica, buscando a
emancipação dos sujeitos. Nesse processo, o acesso ao conhecimento torna-se
instrumento necessário para a compreensão da realidade, sua ressignificação,
que gera mais conhecimento e, nessa articulação entre teoria e prática, os
sujeitos se inserem numa práxis transformadora.
Contemplando o regime de alternância, no Tempo Universidade, os for-
madores e tutores se reuniam como os professores cursistas, em encontros rea-
lizados nos finais de semana, para o estudo e discussão das experiências viven-
ciadas nas escolas do campo e quilombolas à luz dos princípios do como possibilidade de emancipação humana em relação ao processo de aliena-
materialismo histórico dialético e da Pedagogia Histórico Crítica, com o ção constituído no desenvolvimento do capitalismo.
objetivo de ressigni- ficar a prática pedagógica, por sua vez, repensada no No capítulo II, sob o título Política Educacional no Brasil em tempos de
Tempo Comunidade, com atividades realizadas em serviço. crise estrutural do capital: propostas globais para ações locais, Valdemarin
No último encontro do Tempo Universidade, todos (as) os (as) Coelho Gomes disserta criticamente sobre os aspectos político-ideológicos
envol- vidos (as) se reuniram no I Seminário da Escola da Terra no Ceará: relacionados à Educação. A partir da problematização dos conceitos “política
partilhando conhecimentos e experiências da Educação do/no campo do Ceará, educacional”, “Estado”, “crise estrutural do Capital”, o autor analisa os
realizado em Fortaleza, no período de 31/03 a 02/04/2016. O evento reuniu, elementos contem- porâneos da política educacional brasileira, evidenciando
aproximada- mente, 800 pessoas, incluindo todos (as) os (as) cursistas, que as influências dos or- ganismos multilaterais, que têm o intuito de favorecer
vieram dos 19 municípios participantes. o desenvolvimento do capital no enfrentamento da crise mais aguda que ele
Nessa oportunidade, com a presença de pesquisadores especialistas de atravessa. Dessa forma, possibilita ao leitor uma visão também crítica das
diferentes partes do Brasil, foram discutidos os principais temas norteadores da políticas educacionais no país, condição fundamental para a ação dos
formação: Fundamentos Filosóficos da Pedagogia Histórico Crítica: sujeitos históricos que buscam a emancipação do capital.
possibilidades e limites da Educação numa sociedade de classes, Pedagogia De autoria de Stelamaris Torres Melo, o capítulo III, O campo brasileiro:
Histórico Crítica e Psicologia Histórico Cultural, Materialismo Histórico breve histórico e perspectivas, na primeira parte do texto, delimita os conceitos
Dialético e as modalidades de ensino na educação do campo, Didática: problema de “território”, “campo” e “população do campo”, para desconstruir a imagem
teórico metodológico. Além disso, os (as) cursistas, junto com os demais negativa que, historicamente, se criou daqueles que habitam a zona rural bra-
envolvidos no projeto, apresenta- ram os trabalhos produzidos em cada sileira, e evidenciar sua importância social e produtiva, além de demonstrar a
município, proporcionando um rico mo- mento de troca de experiências e situação precária que ainda se encontra a educação do/no campo no Brasil. Na
aprofundamento das reflexões desenvolvidas nos encontros anteriores. Mais do segunda parte desse capítulo, a autora apresenta, historicamente, a relação da
que expectadores, cada cursista atuou como sujeito histórico na produção do luta pela terra e a consequente luta pela educação do/no campo no Brasil,
conhecimento e na transformação da realidade vivenciada. desde o período colonial até a atualidade, evidenciando a constituição de
Esse livro materializa essa experiência vivenciada por diferentes parti- um novo paradigma para essa modalidade de ensino, resultado da luta pela
cipantes da Ação Escola da Terra, constituindo-se em registro histórico dessa terra e pela reforma agrária no país.
ação no estado do Ceará. Está organizado em dois eixos temáticos: o primeiro Fundamentos Político-Pedagógicos para a educação do campo: a escola do
apresenta os fundamentos teóricos da formação, cujos textos foram utilizados campo, elaborado por Paulo Roberto de Souza Silva, compõe o Capítulo
para conduzir os encontros no Tempo Universidade; o segundo traz os textos IV e apresenta reflexões sobre a escola, considerada como uma construção
produzidos pelos formadores a partir da experiência vivenciada em todo o per- sócio-
curso de atuação. -histórica e analisada desde as sociedades primitivas até a constituição da
Na primeira parte, no Capítulo I, intitulado Trabalho, Educação e escola moderna, que se consolida a partir da sua vinculação à produção
eman- cipação humana: bases onto-históricas, os (as) autores (as) Adauto Lopes capitalista que, pela primeira vez, estabelece uma escola para a educação da
da Sil- va Filho e Fátima Maria Nobre Lopes, fundamentados (as), classe trabalhadora, consolidando a escola dualista, duramente criticada pelas
principalmente, no pensamento de Marx, Adorno e Saviani, trazem a teorias crítico-repro- dutivista e críticas da educação. Visando a superação
categoria trabalho como fundante do homem enquanto ser social e dessa escola, que reproduz as relações contraditórias da sociedade capitalista, o
problematizam a sua materialização alienada na sociedade capitalista, trazendo texto se baseia nos princí- pios educativos de Marx e Gramsci para analisar a
à reflexão a perspectiva da educação escola do campo, inserida na sociedade capitalista, e problematiza as
possibilidades de construção de uma
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educação para a emancipação, que rompa com a lógica do capital, inclusive Terra como um caminho para repensar a escola e a educação, tomando, como
nas escolas do campo, fundamenta na psicologia histórico cultural. ponto de partida, a formação dos professores.
Fechando a primeira parte do livro, Sabrina de Bragança e Clarice Zien- O capítulo III, de autoria de Maria Núbia de Araújo e Frederico
tarski trazem o texto A organização curricular e pedagógica das escolas multisseria- Jorge Ferreira Costa, intitulado Uma análise dialética da formação de
das do campo, no capítulo V, no qual apresentam um histórico sobre a luta dos professores na Educação do Campo, trata da experiência vivenciada pelo
povos do campo pela garantia dos seus direitos, o desenvolvimento da educa- professor formador no Programa Escola da Terra à luz dos referenciais de Karl
ção do campo enquanto política pública e, também, uma revisão de conceitos Marx, György Lukács, Dermeval Saviani e Ivo Tonet, desenvolvendo os
sobre conhecimento como fato pedagógico e sobre algumas teorias pedagógi- conceitos de dialética, educa- ção, conhecimento, práxis e formação de
cas e suas tendências. Após essa contextualização geral, as autoras discutem a professores para apresentar ao leitor uma análise dessa experiência junto à
prática pedagógica diversificada presente nas escolas do campo e convidam os formação continuada de professores da escola do campo no estado do Ceará.
leitores para uma reflexão sobre as experiências pedagógicas vivenciadas pelos Ação Escola da Terra e movimentos sociais: educação do campo para o for-
professores que estão nas escolas do campo e no campo, principalmente, nas talecimento da perspectiva da emancipação humana, dos autores Francisco
escolas multisseriadas. Por fim, para fundamentar essas reflexões, o texto trata Car- los Falcão Junior e Antônio Ozielton de Brito Sousa, que compõe o
da Pedagógica Histórico-Crítica, indicando a necessidade do estudo da teoria capítulo IV, apresenta, na Introdução, um panorama amplo sobre diferentes
no contexto da práxis, trazendo estudos e análises, visando à construção temáticas relacionadas à formação humana crítica e transformadora e os
coletiva da organização curricular e pedagógica das escolas do campo, assim principais refe- renciais pedagógicos para a sua efetivação. No
como do planejamento para as classes multissseriadas. desenvolvimento do texto, os autores destacam a importância da educação para
Até aqui, o (a) leitor (a) pode acompanhar os textos que orientaram a a constituição dos sujeitos do campo, com ênfase no processo educativo que se
formação dos professores cursistas, iniciando com as fundamentações teóricas desenvolve no âmbito da luta social e na importância dos Movimentos Sociais
– pedagógicas, políticas, históricas, filosóficas e sociológicas – fechando com na organização dos sujeitos do campo e na constituição da educação do
uma orientação mais próxima da experiência da sala de aula, sem se distanciar campo.
da teoria, buscando sempre a complexidade da práxis. A seguir, passaremos à Diana Silva Monteiro, Savio Abreu de Freitas e Sylvio Barros são os au-
apresentação dos textos elaborados pelos professores formadores, a partir do tores do capítulo V, Campo: elementos conceituais à luz da ontologia marxiana, e
percurso que realizaram na Ação Escola da Terra. apresentam reflexões sobre a educação do campo, direcionada às comunidades
No capítulo I, intitulado A educação na perspectiva marxiana: do campo e quilombolas, destacando os referenciais de Antonio Gramsci, a
elementos para uma proposta emancipatória de educação do campo, Maria partir da leitura de Dermeval Saviani, especialmente, no que se refere à tese do
Elisian de Carva- lho e Karla Raphaella Costa Pereira analisam a categoria trabalho como princípio educativo.
trabalho na ontologia do ser social de György Lukács, abordando sua Finalizando o livro, no capítulo VI, sob o título Quilombo conceitos e
construção histórica e sua inter- face com a educação, especificamente, com definições com vista à educação das comunidades quilombola e do campo,
a educação do campo. Marlene Pereira dos Santos analisa o conceito de quilombo em diferentes
No capítulo II, Educação, Educação do Campo e reflexões pedagógicas na momentos da história brasileira e as variações da percepção sobre o significado
ação Escola da Terra do Ceará, Rosalho da Costa Silva apresenta um panorama das comuni- dades de quilombos para os movimentos negros. Apresenta,
da educação no Brasil, evidenciando a hegemonia empresarial nessa área, também, os meios pelos quais estas organizações impulsionam a sociedade
assim como na realidade educacional do campo, incluindo a luta dos nesta discussão. Além do conceito de “quilombo”, aborda os conceitos de
movimentos sociais pelo direito à uma educação que supere a vertente “território”, “identidade”, “patrimônio cultural”, considerados elementos
hegemônica e con- temple as especificidades do campo, apontando a fundamentais para o entendi- mento e a valorização da história da população
experiência da Ação Escola da negra quilombola e da inserção digna desses na educação brasileira.

1 1
A publicação desse livro representa a continuidade da luta pela defesa
PREFÁCIO
dos direitos à educação de todos (as) os (as) brasileiros (as), especialmente, da-
queles que estão inseridos na escola do campo, num momento em que a mobi-
Foi com muita honradez e satisfação que recebi o convite para prefaciar
lização de todos os envolvidos na Ação Escola da Terra no Brasil garantiu a
o presente livro, que trata da experiência formativa da Escola da Terra do Cea-
sua continuidade junto ao Ministério da Educação. Portanto, a
rá, desenvolvida pela Universidade federal do Ceará – UFC em parceria com o
materialização da ação nessa obra significa fortalecer esse movimento, na
ministério da Educação – MEC e a Secretaria de Educação do Estado do
medida em que permite que nossos objetivos e princípios teóricos sejam
Ceará. Incluo-me dentre aqueles que defendem uma concepção de trabalho
disseminados no país e, assim, oportuniza a sensibilização de outros sujeitos
educativo nas escolas do campo cuja formação destes indivíduos seja sinônimo
históricos para o envolvimento nessa luta que é de todos (as) os (as)
de humanização, uma formação que permita a todos os sujeitos do campo a
brasileiros. Educação de qualidade é direito de todos (as). Da legislação para a
apropriação das produções humanas historicamente acumuladas, tendo acesso
garantia real desse direito, faz-se necessária muita resistência e luta,
ao acervo e ao patrimônio cultural já constituído pela humanidade.
principalmente, dos educadores.
Entendo que esta defesa não se contrapõe aquilo que vem sendo de-
fendido pelas próprias populações campesinas e pelos movimentos sociais do
campo em termos de luta por uma educação do campo pública e
Heulália Charalo Rafante
socialmente referenciada. A dívida social e o déficit da educação acumulados
historicamente em nosso país para com os povos do campo, bem como, o
movimento nacional desencadeado por um novo projeto de educação do
campo, vinculado a outro projeto de campo brasileiro, apontam a necessidade
desta concepção de traba- lho educativo no campo.
Desde a realização do I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores
da Reforma Agrária – I ENERA, ocorrido no ano de 1997, em Brasília,
bem como na I e na II Conferência Nacional por uma Educação Básica do
Campo, respectivamente realizadas em 1998 e 2004, ambas em Luziânia –
GO, já era apontado pelos sujeitos do campo a necessidade da universalização
do acesso à educação básica no campo, o respeito à especificidade da educação
do campo e à diversidade cultural de seus sujeitos, a ampliação do acesso da
população do campo à educação superior, a formação específica de professores
para atuação nas escolas do campo, dentre outras questões importantes.
Este conjunto de reivindicações expressa a busca pela formação humana
plena de sentidos dos povos do campo, o que requer, também, um conjunto
de pressupostos teóricos e metodológicos os quais estejam fundamentando o
trabalho educativo nas escolas do campo possibilitando esta formação.
Em meio ao atual cenário de desenvolvimento das teorias pedagógicas
as quais se propõem a fundamentar as práticas educativas da educação do cam-
po brasileiro, entendo ser a pedagogia histórico-crítica aquela que se apresenta

1
como a mais rica em determinações no que tange à busca dos povos do campo e a atuação política seriam tão formativos quanto à própria educação
por uma educação humanizadora. escolar.
Com efeito, a pedagogia histórico-crítica é uma teoria pedagógica a qual
vem buscando aglutinar a luta pela superação dos problemas específicos da
edu- cação – neles inseridos os problemas fundamentais da educação do
campo – com a luta mais geral pela superação da sociedade de classes. Isto
porque esta teoria pedagógica entende ser a educação escolar um campo
estratégico de luta importantíssimo, defendendo a socialização dos
conhecimentos elaborados e mais desenvolvidos no campo das ciências, das
artes e da filosofia, conhecimen- tos estes que, conforme delineado pela teoria
marxista, se incorporam aos meios de produção na sociedade burguesa
moderna.
Desta feita, a pedagogia histórico-crítica assume o posicionamento da
luta pela efetivação da especificidade da escola, em defesa, portanto, dos inte-
resses da classe trabalhadora. Tomando como referência e elemento central a
questão do saber objetivo, parte em defesa da socialização do conhecimento e
do trabalho organizado e sistematizado dos professores como forma de produ-
zir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, o domínio dos
co- nhecimentos plenamente desenvolvidos pela humanidade ao longo da
história. Como se sabe, o saber escolar é para esta teoria pedagógica a
organização sequencial e gradativa do saber objetivo e universal disponível e
acumulado so- cialmente, o qual foi – e é – construído historicamente
conforme determinada etapa da humanidade. Para efeito de cumprimento de
sua função social, cabe ao processo de escolarização a transmissão e a
assimilação deste conhecimento
objetivo convertido em saber escolar.
Reconhecidamente, os debates acerca da Educação do Campo apontam
a necessidade de as práticas escolares, as metodologias e os conteúdos de
ensino dialogarem com o conjunto de valores, de saberes e de práticas
culturais das populações campesinas. Sugerem, também, que o trabalho
pedagógico escolar e seus currículos não devam tratar como marginais os
saberes populares cam- poneses.
Formuladores de pressupostos teóricos da Educação do Campo em nos-
so país vêm postulando a necessidade de se reconhecer outras práticas – para
além das práticas formativas escolares - como processos integralizadores da
for- mação dos povos do campo. Assim, os processos de trabalho, de luta
social, de valores campesinos, festividades e a mística, a organização coletiva

1 1
Assertivamente, a pedagogia histórico-crítica não discorda desta economia política de Marx. Quanto aos momentos intermediários do
afirma- ção. Os defensores desta pedagogia concordam que os valores método, cabe problemati- zar as questões contraditórias suscitadas pela
campesinos, pró- prios da vida no campo, bem como, suas práticas, formas de prática social (problematização),
organização coleti- va e de luta pela terra produzem conhecimentos, saberes e
processos formativos. Entretanto, o que é preciso reconhecer é o papel
central da educação es-
colar na formação dos indivíduos, sendo um equívoco secundarizar e, no
limite, abrir mão da educação escolar, sobretudo quando se pensa na
especificidade do trabalho educativo na escola e sua importância para o
acesso ao conhecimento elaborado e sua contribuição à luta mais geral pela
modificação da sociedade.
Esta teoria pedagógica não compartilha da ideia de que a escola não
po- deria contribuir para a luta revolucionária da classe trabalhadora, visto
que ela seria uma instituição meramente reprodutora das relações sociais
capitalistas.
A concepção de que a educação escolar estaria provida de todos os
males e vícios da classe dominante e, mais do que isto, ser considera por si só
e inte- gralmente uma instituição burguesa responsável por inculcar
conhecimentos também burgueses e valores, hábitos e comportamentos
elitistas e conforma- dores me parecem expressões sustentadas nas teorias
crítico-reprodutivistas da educação escolar.
Reciprocamente, advogar a educação não-escolar ou não-formal
enquan- to um tempo e espaço desprovido das contradições e interferências da
sociedade capitalista, como se fora da escola os indivíduos estivessem livres
das relações sociais alienantes e alienadoras, me parece também uma lógica
de pensamento muito pouco dialética.
Longe de buscar descontextualizar as atividades formativas em meio à
educação escolar nas escolas do campo, a pedagogia histórico-crítica coloca a
prática social como questão central do processo educativo. A prática social é
o ponto de partida e o ponto de chegada, não obstante, tendo em vista a
perspec- tiva da transformação social. A relação entre educação e
transformação social perpassa decididamente toda a formulação teórica desta
teoria pedagógica: o papel mediador da educação no processo de
transformação social.
Daí suscita o método pedagógico da pedagogia histórico-crítica o qual
explicita o movimento do conhecimento como a passagem do empírico ao
con- creto, pela mediação da abstração, ou seja, a passagem da síncrese à
síntese, pela mediação da análise, tomando como referência o método da
1 1
dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e
solução (instrumentalização) e viabilizar sua incorporação como elementos
integrantes da própria vida dos alunos (catarse).
Esses são alguns elementos constitutivos da pedagogia histórico-crítica
por meio dos quais advogada-se uma formação humana centrada na educação
escolar com vistas à transmissão dos conteúdos clássicos integrantes da cultura
universal humana e que, sem sombra de dúvidas, interessam aos povos campe-
sinos, que também aspiram pela apropriação de tudo aquilo que é
produzido histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.

Tiago Nicola Lavoura

PRIMEIRA PARTE: MÓDULOS DIDÁTICOS


UTILIZADOS NA FORMAÇÃO CONTINUADA

1
TRABALHO, EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO
HUMANA: BASES ONTO-HISTÓRICAS

Adauto Lopes da Silva Filho


Fátima Maria Nobre Lopes

Introdução

Sabemos que o homem é o sujeito da sua história e da sua sociabilidade,


cuja gênese se dá no ato do trabalho, ou seja, na produção e reprodução da
sua vida social. Nesse sentido o trabalho é a categoria fundante do homem
enquanto ser social independente da forma como ele se apresenta nos diversos
momentos históricos, inclusive independente da forma como ele se manifesta
no modo de produção capitalista. Estamos aqui no âmbito da estrutura social.
Porém dessa estrutura geram-se complexos sociais tão amplos que parecem se
autonomizar da sua base que é o trabalho. Esses complexos sociais são catego-
rias superestruturais como o direito, a política, a religião, a educação, etc.
Apesar dessa aparente autonomia1 os complexos sociais têm na sua base
a forma como o homem estabelece as suas relações de produção. Desse modo,
como o trabalho na sociedade capitalista torna-se alienado, pelo fato do
tra- balhador tornar-se uma mercadoria, também ocorre uma alienação nos
com- plexos sociais2 que derivam daqui, dentre eles, a educação e, em
específico, a educação escolar. Isso nos remete a pensar o processo educativo,
incluindo a práxis docente no contexto da formação de professores, quer seja
inicial, quer seja a formação continuada.
Diante de tais questões pode-se indagar: de que modo pode-se dizer que
o trabalho funda a sociabilidade e a história humana? Por que no
capitalismo ele se manifesta de modo alienado? Qual a sua relação com a
educação? É possí- vel pensar uma educação como emancipação humana no
capitalismo?

1 Dizemos aparente porque a autonomia desses complexos sociais em relação à sua base, que
é o trabalho, nunca é total. Eles ganham certa autonomia, porém tem sempre como
determinação a forma como o homem produz, reproduz e distribui seus bens.
2 A alienação nos complexos sociais é caracterizada por Marx como sendo o fetichismo da
mercadoria (crença no poder inanimado da mercadoria) e a consequente reificação das relações
humanas (as relações ocorrem como sendo entre coisas, e não entre seres humanos e sociais).
De uma forma bem sucinta são esses os pontos que iremos discorrer tempo em que se hominiza; diferentemente dos animais que apenas se
nes- te módulo iniciando pelos delineamentos do trabalho como categoria adaptam a ela.
fundante do homem enquanto ser social, seguindo pelo seu aspecto alienado na
socieda- de capitalista e, por fim, iremos dissertar sobre a educação como
emancipação. Tomaremos centralmente as ideias de Marx, auxiliadas por
Adorno, Saviani e outros.

O trabalho como categoria fundante do homem enquanto


ser social: interação dialética homem e natureza

Em sua obra Manuscritos Econômico-Filosóficos Marx se refere à interação


homem e natureza ao dizer que “o trabalhador nada pode criar sem a natureza,
sem o mundo externo sensível. Este é o material onde se realiza o trabalho,
onde ele é ativo, a partir do qual e por meio do qual ele produz coisas” (Marx,
1989,
p. 16). Nesse sentido, o homem transforma a natureza através do trabalho e
nesse ato ele próprio se modifica e se instaura como ser social. É esta a relação
dialética homem e natureza mediada pelo trabalho. É dessa relação que o
ho- mem cria a sua história, o seu processo educativo e se manifesta como um
ser livre e criativo.
Não podemos excluir do movimento histórico o comportamento teórico
e prático do homem perante a natureza. O homem é um ser de relações
(com a natureza e com os outros homens) e o seu processo de
autoconstrução se dá a partir dessas relações. No que diz respeito à sua
relação com a natureza, po- demos dizer que o homem é parte da natureza,
pois se encontra nela inserido, imerso; mas, ao mesmo tempo, é o único ser
capaz de se contrapor a ela, de objetivá-la e de se fazer senhor teórico e
prático da mesma. É nesse processo que ele faz a sua história cuja atividade
determinante é o trabalho.
A história nada mais é que a própria produção do homem mediante
o trabalho. Tal categoria é a própria constituição do homem, pois os
indivíduos, segundo Marx, são aquilo que eles produzem e como
produzem. O trabalho, em realidade, determina a própria essência do homem.
Isto significa dizer que o homem enquanto ser social origina-se a partir do
momento em que ele se des- taca da natureza e se contrapõe a ela como
exigência da sua própria existência. Então o homem é aquele ser que para
viver em sociedade deve agir sobre a natu- reza, transformando-a, ao mesmo

2 2
Portanto, o homem é um ser da natureza, porém manifesta-se como ati- Nesse sentido, Marx afirma que a produção é sua vida ativa como espécie,
vo e livre. Ele a humaniza através de um trabalho consciente “através dela, a natureza surge como
(teleologicamente orientado). É por isso que o homem se torna um ser que 3 Espiritual aqui não tem um sentido transcendental e sim imanente. Segundo Marx, o
pertence a uma espé- cie, um ser universal, como diz Marx (1989, p.163). homem se faz espiritual através da sua atividade prática que é o trabalho.

O homem é um ser genérico, não só no sentido de que faz


objeto seu, prática e teoricamente, a espécie (tanto a sua
própria como a das outras coisas), mas também [...] no
sentido de que ele se comporta perante si próprio como a
espécie presente, viva, como um ser universal e, portanto,
livre.

É certo que a vida genérica tanto do homem como do animal consiste


no fato de que ambos vivem da natureza. Não há dúvida de que ambos
produzem. Porém o específico do homem é sua atividade consciente; ao passo
que a ativi- dade animal é apenas uma repetição instintiva. É por isso que,
segundo Marx, o animal não se distingue da natureza, produz
unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente. Por
conseguinte,

o animal identifica-se com sua atividade vital. Não se


distingue dela [...] Mas o homem faz da sua atividade vital o
objeto da sua vontade e da consciência [...] A atividade vital
consciente distingue
o homem da atividade vital dos animais. Só por esta razão é que
ele é um ser genérico, ou melhor, consciente [...] por isso é que
a sua atividade surge como atividade livre (Marx, idem, p.
165).

Percebe-se claramente nesta passagem que, na concepção de Marx, o


ho- mem torna-se um ser livre e universal, um ser que pertence a uma
espécie (ser social) por meio da sua atividade prática, de modo consciente,
que é o trabalho. É assim que a natureza trabalhada pelo homem é a sua
própria realidade.
Daí porque a “natureza é o corpo inorgânico do homem [...] O homem vive
da natureza, quer dizer: a natureza é o seu corpo com o qual tem de
manter-se em permanente intercâmbio para não morrer” (Marx, 1989,
p.164). Portanto, o homem vive da natureza, mas esta não é apenas um meio de
existência física e sim também espiritual3, uma vez que a personalidade do
homem se determina pelo modo como ele produz e reproduz sua vida social.
2 2
a sua obra e a sua realidade [...], ao não reproduzir-se apenas intelectualmente, idênticas” (Marx, 1989,
como na consciência, mas ativamente, ele duplica-se de modo real e intui o seu
próprio reflexo num mundo por ele criado” (Marx, 1989, p. 165).
Podemos perceber que, segundo Marx, o homem pertence simultanea-
mente à natureza e à sociedade; daí porque para ele não há uma separação
entre corpo e espírito (alma). A esse respeito Lukács afirma que Marx
compreendeu com muita clareza essa dimensão natural e social do homem.
Porém, diz Lukács, “não se trata de uma constituição dualista do ser do
homem. O homem não é ja- mais diretamente, por um lado, ente social e
humano, e, por outro lado, parte da natureza; a sua humanização, a sua
socialização não implica uma cisão ontológica do seu ser [...] em espírito (alma)
e corpo” (Lukács, 1990, p. 10).
O homem é um ser que se autoconstrói, interagindo e modificando a
natureza, através do trabalho, ao mesmo tempo em que se automodifica. Mais
tarde, na sua obra Miséria da Filosofia, Marx dirá que “toda história não é
mais que uma transformação contínua da natureza humana” (Marx, 1982,
p. 138). Então a natureza que se desenvolve através da história humana, na
formação da sociedade, é, para Marx, a própria natureza concreta do homem.
Nessa relação o homem define o seu ser, tornando-se ser social, e a natureza
torna-se natureza humanizada.
É nesse sentido que Marx refuta uma contraposição entre homem e na-
tureza. É certo que, segundo Marx, “nem a natureza objetiva, nem a
natureza subjetiva se apresenta imediatamente ao ser humano numa forma
adequada” (Marx, 1989, p. 251), ou seja, o tornar-se social do homem, cuja
base é a pró- pria natureza, requer o afastamento do homem da barreira
natural (enquanto natureza pura) e isso ocorre tanto em nível objetivo como
subjetivo. Manfredo Oliveira, tomando este ponto de Marx, afirma que a
natureza objetiva e a natu- reza subjetiva só se tornam adequadas ao homem
“pela mediação da sua práxis: a práxis do próprio homem é a fonte de sua
humanização” (Oliveira, 1993, p. 250-251). A práxis é, portanto, o resultado
da relação homem e natureza, cons- tituindo o processo de objetivação do
homem e o processo de subjetivação da natureza (a natureza humanizada).
Essa relação homem e natureza constitui o ponto de partida sócio-
on- tológico da teoria marxiana da história. É por isso que, para Marx, “a
própria história constitui uma parte real da história natural, o desenvolvimento
da natu- reza a caminho do homem [...] A realidade social da natureza e a
ciência natural humana, ou a ciência natural do homem, são expressões

2 2
p. 202). É no contexto social que o subjetivo e o objetivo, o espiritualismo ponto
e o materialismo deixam de ser antinomias. Através da indústria, e, portanto
do trabalho, a ciência da natureza torna-se a base da ciência humana, a
base da vida real do homem; “muito embora o seu efeito imediato tenha
consistido em acentuar a desumanização do homem” (Marx, 1989, p. 201).
Ao transformar a natureza, através do trabalho, o homem realiza o pro-
cesso de objetivação que o torna um ente-espécie, um ser histórico-social,
cons- ciente, ativo e livre. Percebe-se aqui a objetivação como constituinte
do ser humano; fazendo, pois, parte da sua própria essência; ela é a
fundamentação da unidade homem e natureza e, portanto, necessária.
Porém a objetivação pode se tornar uma alienação (um estranhamento) na
medida em que esse mundo objetivo aparece como não pertencente ao seu
ente, despido do seu poder, e isso ocorre através do trabalho que se
manifesta historicamente como alienado. Diz Marx (1989. P.165): “O
trabalho alienado inverte a relação, uma vez que o homem enquanto ser
consciente transforma a sua atividade vital, o seu ser, em simples meio da
sua existência”. Trata-se, aqui, das contradições objetivas da vida histórico-social
dos homens. Porém essa dimensão negativa da sua sociabi- lidade é resultante
das suas próprias ações e teleologias, e não manifestação de uma ideia
suprema ou de um ser transcendente. Nesse sentido, o homem se re- vela
como o sujeito da sua própria história e somente ele, através das suas ações, é
que pode superar essa negatividade socialmente construída por ele próprio.
Tal superação proporciona-lhe uma interação com a natureza de uma
forma mais efetiva e mais humana.

O aspecto alienado do trabalho no capitalismo:


negação historicamente construída

Vimos que Marx concebe a história do homem como sendo o resultado


da produção e reprodução da vida humana mediante o trabalho. Portanto,
a dimensão social do homem e as suas relações com o mundo, bem como
entre si, são determinadas pelo modo como ele exerce a sua atividade
produtiva.
É a partir da sua obra, anteriormente citada, os Manuscritos Econômico-
-Filosóficos, que Marx analisa o sistema de relações na sociedade mercantil-capi-
talista, onde ele detecta as contradições desse sistema, resultando numa socia-
bilidade alienada, uma vez que a atividade produtiva, que nele impera, aliena
o homem do seu próprio ser. Marx exerce sua investigação tomando como
2 2
de partida a própria base social na qual ocorrem as relações entre os A economia política oculta esse fato justamente por não examinar a
homens para, assim, efetuar sua crítica à forma histórica dessas relações. É relação efetiva entre trabalhador e produção; ela não revela que a relação do
assim que a dimensão negativa da atividade produtiva, analisada por ele, não é homem com a natureza (que é a base material da sua atividade produtiva)
concebida de modo abstrato, mas sim na sua dimensão ontológica, torna-se alienada, uma vez que o trabalho, ao invés de realizar o homem, é
concreta, quer dizer, na sua perspectiva histórica. posto como instrumento através do qual uns homens exploram outros homens
Marx está tratando aqui da objetividade na vida social dos homens que tornando-os mercadoria, como continua a afirmação de Marx: “O trabalho não
compreende a sua própria realidade. Trata-se da análise de uma realidade par- produz apenas mercado- rias; produz-se também a si mesmo e ao trabalhador
ticular que é o modo de produção e reprodução no sistema capitalista, sistema como uma mercadoria, e justa- mente na mesma proporção com que produz
esse que parece se autonomizar perante os homens, que passam a ser regidos bens” (Idem, p. 159).
pelas leis de tal sistema, como se fossem independentes da sua vontade. Porém É importante frisar que Marx, nesse contexto, está tratando da alienação
esse modo de vida é determinado pelos próprios indivíduos 4. do trabalho e do trabalhador numa perspectiva histórica, apontando as con-
O trabalho é uma atividade de autoconstrução do homem, porém reali- tradições da ordem objetiva do capitalismo, ainda que tal análise não tenha
za-se sempre de uma forma específica, de acordo com o seu momento a profundidade do que ele evidenciará em obras de maturidade como O
histórico. Portanto, no modo de produção capitalista, no momento em que Capital, onde revelará que a mercadoria do trabalhador é a sua força de
o produto e as próprias condições do trabalho são afastados do seu produtor, a trabalho da qual o capitalismo extrai a mais-valia 5. Porém o fato de Marx
atividade produtiva do homem manifesta-se como fonte de alienação e, por aprofundar alguns conceitos em obras posteriores, não significa que ele tenha
conseguin- te, como negação no processo de sua autoconstrução. Porém mudado o seu pen- samento. Ao contrário, nas suas obras de juventude ele já
trata-se de uma negação socialmente construída dado que o capitalismo é o delineia a necessidade de se pensar o real – e, por conseguinte, a própria
resultado de como se exerce a produção e reprodução do ser social e, portanto, é produção humana como um ato histórico - como um pressuposto ontológico.
posto historicamente pelos próprios homens. Ao colocar o desenvolvimento da sociedade mediante a transformação da
Segundo Marx, para se compreender o sistema de alienação no natureza pela atividade do homem, onde as condições naturais passam a ser
capitalis- mo – o que envolve propriedade privada, divisão do trabalho, troca e sociais, Marx destaca aí o caráter his- tórico das categorias humano-sociais
desvalori- zação do homem – é preciso partir da própria realidade social. No que não podem ser procedidas sem um processo educativo.
capitalismo, diz ele: A riqueza da análise de Marx consiste justamente no fato de
perceber a vida produtiva dos homens numa perspectiva ontológica,
o trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quan-
compreendendo o ser social imbricado à sua historicidade. É por isso que, ao
to maior número de bens produz. Com a valorização do
mun- do das coisas aumenta em proporção direta a detectar a dimen- são negativa do trabalho no capitalismo, Marx não se opõe
desvalorização do mundo dos homens (Marx, 1989, p. 158-9). ao trabalho em si (enquanto criador de valor de uso) 6, e sim ao trabalho na
sua especificidade histórica do capitalismo (enquanto valor de troca) uma
vez que este bloqueia a realização do trabalhador como ser humano,
4 Marx e Engels na Ideologia Alemã (1984, p 27-28) esclarece esse ponto dizendo que o
tornando-o uma mercadoria ou simplesmente uma parte do processo
modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida refere-se a uma determinada forma capitalista e, portanto, dos lucros. Nesse aspecto o trabalho ganha uma
de sua atividade, gerando um sistema social que retroage sobre os próprios indivíduos, dimensão desumana no sentido de que o objeto produzido pelo trabalhador
determinando o seu ser. Portanto trata-se, como diz Marx, de um “determinado modo de se lhe opõe como um ser estranho, uma
vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são
coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como
produzem. O que os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção”. 5 De um modo geral a mais-valia é extraída do tempo de trabalho não pago ao trabalhador a
partir do qual o capitalista extrai o seu lucro.
6 A distinção do trabalho enquanto criador de valor de uso e enquanto criador de valor de troca
2 2
é tratada por Marx na sua obra O Capital.

2 2
vez que tal objeto não lhe pertence e sim a outrem que não o produziu. encontra alienado da sua vida genérica significa que um homem está alienado
Tra- ta-se aqui de uma particularidade, de uma forma determinada do dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida
trabalho, enfim, do seu aspecto negativo no capitalismo onde a relação do huma- na” (Idem, p. 116). Pode-se inferir aqui que o capitalista também é
homem com a natureza, ou seja, o processo de objetivação do trabalho, alienado da sua genericidade. Marx confirma essa colocação ao dizer que tudo
torna-se estranho ao homem. Vimos que Marx diz que o objeto do trabalho o que aparece no trabalhador “como atividade de alienação se manifesta no
é a objetivação da vida genérica do homem, porém no capitalismo a não trabalhador como condição de alienação [...] o não trabalhador faz contra o
objetividade revela-se de tal maneira como perda do objeto que o trabalhador tudo o que este realiza contra si mesmo, mas o primeiro não faz
trabalhador fica privado dos objetos mais necessários, não só à vida, mas contra si o que leva a cabo contra o trabalhador” (Idem, p. 171-2). Dessa
também ao trabalho. “A apropriação do objeto manifesta-se a tal ponto como forma, o mundo objetivo criado pelo próprio homem manifesta-se como não
alienação que quanto mais objetos o trabalhador produzir tanto menos ele pertencente ao seu ser, uma vez que a atividade produtora no capitalismo
pode possuir e mais se submete ao do- mínio do seu produto, do capital” permanece sob essa dimensão nega- tiva, resultando a alienação sob quatro
(Marx, 1989, p. 159). aspectos: a alienação do trabalhador em re- lação ao produto do seu trabalho; a
Segundo Marx, a natureza é o corpo inorgânico do homem, ela alienação do homem de si mesmo; a alienação do ser genérico do homem
possi- bilita a construção prática de um mundo objetivo, tornando o (reduzido ao nível dos animais); a alienação em relação à outros homens. Esta
homem um ser social, consciente e livre. Porém no capitalismo a natureza última forma de alienação está enraizada nas anteriores, ou seja, na alienação do
passa a ser apenas um meio de subsistência, reduzindo o homem a animal homem com relação ao produto do seu trabalho, à sua ativi- dade vital e à sua
porque as suas funções tornam-se apenas físicas, assim como as dos animais: vida espécie.
comer, beber, procriar, dormir. Diz Marx: Marx diz que tudo isso é escamoteado pela economia política e, assim, a
liberdade defendida pela ideologia liberal burguesa “cai por terra”. Nesse
Assim como o trabalho alienado degrada em meio a atividade
senti- do, as leis da economia política sob uma aparente liberdade, amparada
autônoma, a atividade livre, de igual modo transforma a vida
genérica do homem em meio de existência física [...] Por conse- pela ide- ologia liberal, dão oportunidade a todos; no entanto, o modo como
guinte, o trabalho alienado transforma a vida genérica do homem, essas leis se exercem na prática favorece apenas ao capitalista, e não ao
e também a natureza enquanto sua propriedade genérica trabalhador. É assim que o trabalhador só é visto enquanto trabalha, pois, a
espiri- tual, em ser estranho, em meio da sua existência economia política não conhece o ladrão, o criminoso, o desempregado, etc.; e
individual. Aliena o homem do próprio corpo, bem como a sim conhece somente a “raça dos trabalhadores”, com um salário cujo
natureza externa, a sua vida intelectual, a sua vida humana
significado é mantê-lo vivo para trabalhar, mantê-lo como instrumento do
(Idem, p. 166).
capital.
Essa negatividade, como já afirmamos, é historicamente construída, ou
Sob esse aspecto o trabalhador se reduz a um ser meramente biológico.
seja, o homem produz a sociedade historicamente, a partir do trabalho e do
Desta forma, o trabalhador não se realiza em seu trabalho e sim se nega a si
processo educativo que o envolve, e isso revela o caráter social e universal da
mes- mo. O trabalho torna-se para ele um sofrimento, um esforço físico.
sua práxis.
Portanto, o trabalhador “só se sente livremente ativo nas suas funções animais
[...] enquan- to nas suas funções humanas se vê reduzido a animal. O elemento A história é o resultado dessa atividade, dessa inter-relação homem, na-
animal tor- na-se humano e o humano torna-se animal” (Idem, p. 162). Isso tureza e sociedade. Então a história nada mais é que o processo das
implica que o homem se encontra alienado em relação ao seu gênero e, relações humanas ligadas ao mundo da produção. Portanto, não se pode
portanto, encontra-se alienado de si mesmo. conceber a sociabilidade sob a ótica de um naturalismo puro ou de um
idealismo abstra- to. Marx compreende a sociabilidade na forma como ela se
Uma consequência direta disto é que o homem é alienado por outros ho-
apresenta concre- tamente na sua dimensão histórica. É nesse sentido que o
mens como afirma Marx: “De um modo geral, a afirmação de que o homem se
2 2
homem se revela como o sujeito da sua própria história e somente ele,
através das suas ações, é

2 2
que pode superar essa negatividade socialmente construída por ele próprio. Tal por uma ideologia da Escola
superação perpassa os complexos sociais, dentre eles a educação, que tem a
sua gênese no trabalho, quer dizer, no modo como o homem produz os seus
bens (é nesse sentido que Saviani defende o trabalho como princípio
educativo), porém ganha certa autonomia no sentido de que, mesmo no modo
de produção capi- talista, o homem pode e deve lutar para superar a alienação
que aí impera. Para tanto, faz-se mister uma educação para a emancipação
humana. Esta é uma das mediações para a superação do trabalho alienado
(estranhado), pois, como concebe Marx, se é o homem quem faz a sua história,
também é ele quem deve mudá-la, e o início da mudança começa no processo
dialético da atual situação.

Educação para a emancipação: uma das mediações


para a superação do trabalho alienado

Você já sabe que a educação é uma prática social, uma atividade


humana e histórica que se define no conjunto das relações sociais.
Enquanto tal, ela tanto determina essas relações como é por elas determinada.
Porém se é vista somente como determinante e se a sociedade é tomada como
um todo harmô- nico, cai-se numa visão conservadora, positivista ou
funcionalista. Nesse caso, a educação terá a função de manter o sistema e
não se faz nada para transfor- má-la, pois, acredita-se que tudo está muito
bem. Segundo Saviani (1997) essa concepção é própria das chamadas
pedagogias não críticas. Por outro lado, se a educação é concebida somente
como determinada, mesmo que se tenha a cons- ciência de que a sociedade
capitalista é desigual e injusta, tem-se a concepção de que a educação só serve
para reproduzir as desigualdades sociais, caindo-se num pessimismo e num
ceticismo. Também nesse caso, não se faz nada, uma vez que se acredita que
não há jeito para a educação. Essa posição, também segundo Saviani,
gerou as chamadas teorias crítico-reprodutivistas.
Um dos exemplos que podemos citar dessas teorias é a visão de Althus-
ser, filósofo francês, que na sua obra Ideologia e aparelhos Ideológicos de Estado
(1980) afirma que a escola é o aparelho ideológico “número um” do
Estado, manifestando-se como o principal instrumento de reprodução das
desigual- dades sociais e da exploração capitalista. Antes, na Idade Média, o
aparelho ideológico do Estado que mais favorecia a reprodução dessas
desigualdades e exploração era a Igreja; agora “os mecanismos que
reproduzem este resultado vital para o regime capitalista são dissimulados
2 2
universalmente reinante” (Althusser, 1980, p. 67). Dessa forma, a Igreja 56). Para ele, é preciso que haja uma educação diferenciada: para aqueles que pensam e
comandam e para aqueles que são comandados.
“foi substituída pela Escola no seu papel de Aparelho de Estado dominante”
(idem, p. 68). Nesse aspecto, a Escola contribui para uma educação alienada e
alienante, pois embora o sistema educativo da sociedade capitalista afirme a
sua democra- cia ela reproduz, por meio da escola, a divisão do trabalho e,
em decorrência, as desigualdades e injustiças, favorecendo a competição e a
intensificação do individualismo burguês.
É importante frisar que apesar dessa visão de Althusser ser crítica, por
levar em conta as contradições e desigualdades da sociedade capitalista, tal visão
gera um passivismo, um niilismo, e proporciona um sentimento de que
nada se pode fazer na educação para transformar a atual sociedade uma vez
que ela (a educação) é percebida somente como reprodução das
desigualdades, e não também como campo de luta e de transformação. Então
a crítica aqui se torna parcial e contrária a um pensamento dialético.
O enfoque crítico e dialético da educação leva em conta as duas
deter- minações: percebe que a educação, enquanto aparelho ideológico do
Estado, é instrumento de reprodução das desigualdades sociais, mas
reconhece que ela também é lugar de luta para a superação dessa sociedade
desigual. Nesse aspec- to, a educação passa a ser concebida como uma prática
constituída e constituin- te das relações sociais. Em suma, a visão crítica da
educação proporciona um salto qualitativo na análise e na prática
pedagógica.
A teoria de Marx muito contribuiu para a compreensão da educação
numa visão dialética e crítica. Diferentemente de Durkheim 7, Marx não separa
o indivíduo da sociedade, pelo contrário, considera que os dois estão em rela-
ção recíproca cuja base é o modo de produção. Quer dizer, da forma como
o homem trabalha, produz, reproduz e distribui seus bens (relações de
produção), decorrerão as suas relações e os complexos sociais. É nesse
âmbito que se dá
7 Durkheim, sociólogo francês, influenciado pelo cientificismo do século XIX e pelas ideias
positivistas de Augusto Comte, apresentou a sociologia como uma ciência positiva,
comparando as leis da sociedade com as leis das ciências naturais. Para ele, assim como a lei da
gravidade, por exemplo, também não se pode questionar as leis da sociedade. Portanto, os
fatos e as leis sociais têm uma lógica inscrita no próprio real e são independentes da vontade
dos indivíduos. De acordo com essa concepção, a sociedade prevalece sobre os homens, ou
seja, os fatos sociais são coercitivos e exteriores aos indivíduos que devem seguir as regras
necessárias à organização da vida social cuja aprendizagem se dá através da educação. Temos
aqui, uma visão funcionalista, não crítica e reacionária da educação, pois, para Durkheim, a
educação “tem o papel de integrar e adaptar os indivíduos à sociedade” (Nobre Lopes, 2004, p.

2 2
a práxis social dos homens numa dimensão teórica e prática, apresentando-se Sob essa ótica intensifica-se tanto a alienação dos estudantes, como a do
como um processo dialético. Diz Marx: “A vida social é essencialmente práxis. professor. Os estudantes tornam-se “capital humano”, pois, são futuros traba-
Todos os mistérios que induzem a teoria para o misticismo encontram sua so- lhadores e a escola deve prepará-los para o emprego conveniente ao
lução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis” (Marx, Teses capitalismo. Com os professores ocorre a intensificação da jornada de trabalho,
sobre Feuerbach, 1984, p.128). além dos bai- xos salários e dificuldades para a pesquisa e formação
Para Marx a educação é um dos momentos da práxis social. Nesse senti- profissional. Diante dessa situação você pode perguntar: é possível uma
do ela tanto pode servir para perpetuar a exploração capitalista e disseminar a educação como emancipação?
sua ideologia dominante, como pode também ser uma arma de crítica e de luta Já dissemos que a educação é campo de conflito e de reprodução das de-
para a emancipação humana, ou seja, ela pode ser uma educação para a aliena- sigualdades. Mas ela também é lugar de compromisso e de luta e, enquanto tal,
ção ou uma educação para a emancipação. ela pode contribuir para a formação e mudança da consciência e das ações dos
A educação para a emancipação requer a sua visão crítica e dialética en- homens no seu meio social. A teoria de Marx nos fornece elementos para essa
volvendo a imbricação da teoria e da prática; uma educação que precisa realização. Embora ele não tenha escrito sistematicamente sobre a educação,
romper com a alienação do trabalho e que proporcione uma formação podemos encontrar disseminadas em suas várias obras as ideias sobre educação
omnilateral do homem. Como isso é possível? Qual o fundamento da como sendo um momento da práxis social, inserida no contexto “da crítica das
educação como emanci- pação? São vários os teóricos modernos e relações sociais e das linhas mestras de sua modificação” (Gadotti, 1996,
contemporâneos que comungam com essa possibilidade. Porém destacaremos p.120). É no processo dessa critica e necessidade de uma conscientização do
aqui três pensadores: o próprio Marx; Adorno, um dos grandes povo sobre as condições da sua existência, e de superação da alienação que aí
representantes da Escola de Frankfurt; e Saviani um grande pensador da impera, que a ação educativa torna-se premente e pode contribuir para a
educação brasileira. transformação social. Marx reconhece que “de um lado, é preciso que as
Kowarzik (1983, p. 84), diz que somente na medida em que a educação circunstâncias sociais mu- dem para que se estabeleça um sistema adequado
se compreende dialeticamente a “partir do interesse libertário do conhecimen- de educação, de outro lado, é necessário um sistema educacional adequado
to de uma teoria crítica da sociedade, voltada à emancipação e libertação para produzir-se a mudança das circunstâncias sociais” (Marx, apud Candido
dos homens, torna-se possível a ela criticar, por sua vez, a realidade Gomes, 1994, p. 47).
educacional”. Nesse sentido ela pode se tornar um veículo de grande peso A educação adequada para Marx requer uma formação que combine tra-
para uma práxis transformadora. balho produtivo, educação mental, física, estética e treinamento politécnico, as-
É preciso, portanto, levar em conta os conflitos sociais que envolvem a sociando trabalho manual e intelectual. Na sua obra Manifesto do Partido
educação e a sua relação com a economia da sociedade capitalista. Na Comu- nista ele defende a necessidade de uma educação pública e gratuita
sociedade contemporânea os grupos dominantes procuram sempre fazer para todos, que proporcione o desenvolvimento das capacidades espirituais e
prevalecer suas ideias, valores e princípios utilizando-se, sobretudo, da corporais dos indivíduos, levando-os a uma formação omnilateral. É dessa forma
educação formal para fazer valer os seus interesses. É assim que as práticas que os críticos “arrancam a educação à influência dos dominantes” (Marx e
pedagógicas ficam sujeitas aos interesses do capital. Temos, atualmente, os Engels, 1987, p.92). Adorno, representante da teoria crítica da Escola de
efeitos desses interesses sobre a educação: os cursos de formação de Frankfurt, comun-
professores, a estruturação das escolas, os seus métodos e conteúdos de ensino gando com a ideia da necessidade do pensamento crítico para uma educação
são passados com um viés ideológico dominante a fim de direcionar a emancipatória e com a formação omnilateral do educando, defende que a
educação para o mercado e para os interesses do capital privado. Pode-se filo- sofia – através do pensamento reflexivo – contribui para descortinar a
perceber que há uma contradição entre as práticas e o discurso realidade aparente e para a geração de um novo mundo social. Trata-se da
“ideologicamente democrático”. descoberta da incongruência entre a essência e a aparência do real. Referindo-

3 3
se à posição dos professores nesse sentido, o nosso autor comenta que se estes
não procuram com- preender os fatos atrás dos quais os homens se refugiam,
percebendo as categorias

3 3
sociais de forma isolada e hipostasiada “é precisamente o elemento crítico que fal- Saviani também comunga com essa posição. Na sua obra Escola e
ta a esse pensamento aparentemente independente [...]” (Adorno, 1995, p. 58). Demo- cracia (1997a) ele considera que seja possível uma educação crítica e
Adorno destaca a importância do pensamento reflexivo, através da filo- emancipató- ria. Porém para que haja tal possibilidade a tarefa principal da
sofia, cuja mediação central se dá pela educação. Para ele, se não sabemos educação consiste em superar tanto o poder ilusório (das teorias não críticas),
ainda quais as características de uma sociedade perfeita podemos, por outro como a impotência (das teorias critico reprodutivistas) colocando nas mãos dos
lado, identificar a barbárie da sociedade atual para podermos transformá-la. educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder
Nesse sentido a educação transcende o seu campo de instrução e deve real, ainda que limitado. Daí faz-se necessário “captar a natureza específica da
proporcionar a formação de indivíduos capazes de compreender a sua situação educação e compreender suas complexas mediações” (Saviani, 1997, p. 42).
sócio-histórica. Em consequência forma-se uma consciência crítica capaz de Do ponto de vista prático é preciso melhorar a qualidade da formação dos
contribuir para a superação dessa barbárie resultante do sistema capitalista. professores e, consequentemente, do ensino e que seja articulado com o
Apesar de predominar uma razão instrumental, tecnológica, em nos- interesse dos trabalhadores e não do capital, o que remete à necessidade de uma
sa sociedade atual, Adorno acredita na possibilidade de uma educação para a pedagogia revolucionária, que depois Saviani a denominará de Pedagogia
emancipação por meio do pensamento crítico-reflexivo. Para ele “a desbarba- Histórico-Crítica.
rização da humanidade é o pressuposto imediato da sua sobrevivência. A ela Saviani esclarece que a Pedagogia Histórico-Crítica tem o sinônimo de
deve servir a escola, por limitados que sejam seu âmbito e suas possibilidades” Pedagogia Dialética e que a sua intenção
(Adorno, idem, p.176). Por isso a escola tem que ser formativa, uma vez que
ela “tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão é o empenho em compreender a questão educacional a partir do
crítica” (Adorno, idem, p. 121). É essa a missão maior da educação, do ponto desenvolvimento histórico objetivo [...] Portanto, a concepção
de vista dialético e crítico. pressuposta nesta visão da Pedagogia Histórico-Crítica é o mate-
rialismo histórico, ou seja, a compreensão da história a partir do
Para Adorno a figura do professor nessa missão é central. É preciso que
desenvolvimento material, da determinação das condições mate-
saiba analisar o seu papel e tenha um amplo conhecimento da situação social e riais da existência humana. (Saviani, 1997b, p. 102).
educacional, libertando-se de tabus, dogmas e acomodações. Aqui urge a
neces- sidade de uma boa formação inicial e continuada do professor, pois, se A passagem da visão crítico-mecanicista para uma visão crítico-
assim o for, a boa formação irá auxiliar tanto para a compreensão da realidade, dialética, portanto, histórico-crítica da educação é o que queremos traduzir, diz
onde se insere o professor, como para a formação da sua consciência crítica. Saviani, “com a expressão Pedagogia Histórico-Crítica” (Idem, p. 108).
Só assim é possível superar a razão instrumental, gerada pelas ciências Seus pressu- postos são os da concepção dialética da história,
positivas a serviço da tecnocracia burguesa. compreendendo a realidade histórica do contexto escolar, buscando as suas
Em suma, a função primordial da educação é lutar contra a barbárie raízes e fundamentos. A escola é um elemento necessário ao
capitalista. Portanto, ela não deve limitar-se a um processo de adaptação desenvolvimento cultural, que concorre para o desenvolvimento humano em
social, ajustando as pessoas ao modelo social vigente, e sim deve ser crítica e geral. “A escola é, pois, compreendida a partir do desenvolvimento histórico
instru- mento de luta para a emancipação humana. da sociedade; assim compreendida, torna-se possível a sua articulação com a
É importante frisar que tanto para Marx como para Adorno não se pode superação da sociedade vigente” (Saviani, idem, p.119- 120), levando em
atribuir somente à educação o poder de resolver os problemas dos conta a função da educação não somente como instrumen- to de
conflitos, alienação e da barbárie capitalista, mas ela pode servir de mediação reprodução, mas também como mediação para a transformação social e
na ruptura desses processos, tornando-se uma educação emancipadora, cuja campo de luta pela emancipação humana.
tendência é amparada por uma visão dialética e crítica da realidade. É desse modo que a Pedagogia Histórico-Crítica “envolve a compre-
ensão da realidade humana como sendo construída pelos próprios homens,

3 3
a partir do processo de trabalho, quer dizer, da produção das condições
ma-

3 3
teriais ao longo do tempo” (Idem, p.120). A Pedagogia Histórico-Crítica não . Il Capitale – 5 vols. Traduzione di Delio Cantimori e Altri. 8º. Edizione,
nega o princípio da ação recíproca: a educação é determinada pela sociedade, Roma: Riuniti, 1980.
mas também reage sobre o determinante. Portanto, “a educação também OLIVEIRA, Manfredo Araújo. Ética e Sociabilidade. 1a ed.. São Paulo: Loyola, 1993.
in- terfere na sociedade, podendo contribuir para a sua transformação”
NOBRE LOPES, Fátima Maria Lopes. Filosofia, Educação e Emancipação, IN:
(Idem,
Funda- mentos Filosóficos e Sociológicos da Educação. 1a ed. Fortaleza: Ed.
p. 108). E não resta a dúvida de que esse processo de transformação remete UECE, 2004 p. 50 a 65.
aos aspectos políticos e ideológicos compreendendo a elaboração e execução
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 31a ed. São Paulo: Autores Associados,
de políticas educacionais por meio das quais se devem relevar a formação de 1997a.
professores e alunos. É sobre a política educacional brasileira que você irá
. Pedagogia Histórico-Crítica. 6a ed., São Paulo: Autores Associados, 1997b.
estudar no próximo módulo.
SILVA FILHO, Adauto Lopes. Interação homem-natureza através da atividade produti-
Referências va, IN: Princípios: discussões filosóficas. 1a ed., Sobral: Edições UVA, 2005, p. 127
a 135.
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação (entrevistas e ensaios). Tradução de . O aspecto alienado da atividade produtiva, IN: Trabalho e Educação face à
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3 3
POLÍTICA EDUCACIONAL NO BRASIL EM
TEMPOS DE CRISE ESTRUTURAL DO
CAPITAL: PROPOSTAS GLOBAIS PARA AÇÕES
LOCAIS

Valdemarin Coelho Gomes

No primeiro texto apresentado neste curso, desenvolvemos, com base na


ontologia marxiano-lukasciana, um conjunto de ideias sobre os fundamentos
da existência social. Esta esfera – social - tem sua base fixada pelo trabalho
que, desta forma, é tomado como o complexo fundante, sobre os quais se
elevaram os outros complexos sociais, entre eles a educação. Não significa
dizer, entretan- to, que o ser social é redutível ao trabalho. Como vimos, os
complexos sociais mantém com o trabalho tanto uma dependência
ontológica quanto uma auto- nomia relativa. Disso decorre que eles passam a
desenvolver-se a partir de uma dinâmica própria.
Sem descuidarmos dos fundamentos ontológicos da educação, avança-
mos também sobre seus aspectos político-ideológicos, isto é, sobre como este
complexo responde às condições históricas de cada época. A educação pode,
assim, formar no sentido amplo, emancipatório, humanizador, mas também
pode servir a interesses precisos que, em muitos momentos, podem utilizá-la
para perpetuar processos de exploração e desumanização.
No texto sobre o qual nos debruçaremos agora, procuraremos
analisar elementos mais contemporâneos sobre os quais se erguem as políticas
educacio- nais brasileiras, tomadas aqui não só na sua especificidade, mas
relacionadas a aspectos mais amplos, de âmbito mundial. Tais políticas
respondem diretamen- te às mudanças históricas que vivemos atualmente,
condensadas naquilo que comumente conhecemos como globalização ou
mundialização da economia. Estas mudanças, na nossa concepção, são apenas
arranjos do sistema do capital no enfrentamento da crise mais aguda que ele
atravessa, definido por Mészáros (2000), como de natureza estrutural.

Breves palavras sobre a LDB

A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei


9394/96) define, logo em seu artigo primeiro, que:
A educação abrange os processos formativos que se trabalhadora. Seu postulado fundamental é de que o mercado é a lei social soberana. Friederich
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no Hayek, teórico principal do neoliberalismo expõe suas teses básicas no início da década de 40. A
trabalho, nas insti- tuições de ensino e pesquisa, nos ele se juntam, entre outros, M. Friedman, e K. Popper” (BIANCHETTI, p. 11).
movimentos sociais e organiza- ções da sociedade civil e nas
manifestações culturais.

Após explanar este conceito amplo de educação, a Lei esclarece que sua
aplicação será dirigida à escola (§ 1º) e que a atividade desta, por sua vez,
“deve- rá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” (Art. 1º, §
2º).
De maneira geral, é possível afirmarmos que todo o conteúdo subse-
quente da Lei comparece, em maior ou menor proximidade, vinculado ao obje-
tivo de regulamentar a substância deste segundo parágrafo. Os termos “mundo
do trabalho” e “prática social” ali postos, poderiam, equivocadamente, ser
com- preendidos numa perspectiva crítica, não fosse, entre outros tantos
fatores, o próprio desenrolar do texto da Lei e o contexto no qual se deu sua
elaboração e promulgação, a rigor, inseridas num movimento de adaptação do
aparelho edu- cacional brasileiro à reestruturação produtiva, política e ideo-
pedagógica que se espraiou desde os anos de 1980, podendo aí ser alocadas
desde a imposição da corrente econômica, que, para alguns denominou-se
erroneamente de neolibe- ralismo8 (SAVIANI, 1997; SHIROMA, MORAES e
EVANGELISTA, 2004),
até a busca desenfreada por tornar inquestionável e benéfica a emergência de
uma suposta nova ordem mundial alavancada pelo processo de globalização
em toda sua miríade ideológica e economicista.
Dito de outra forma, os termos apresentados no parágrafo segundo
do Artigo 1º da LDB 9394/96 atende, de forma bastante satisfatória, ao
desdobra- mento da lógica burguesa, que torna confusa a distinção entre as
necessidades expansionistas do capital e as verdadeiras necessidades humanas.
Trabalho e prática social, suspensos dos descaminhos impostos à humanidade
pela repro- dução, acumulação e lucro próprios do capitalismo comparecem,
assim, como objetivos promissores à escola preparatória às contingências do
capital, finca- das, por ora, na teoria neoliberal. Esta sintonia com os preceitos
e perspectivas neoliberais da atual LDB já foi devidamente descortinada por
Saviani, chegan-

8 “O Neoliberalismo, como arcabouço teórico e ideológico não é algo novo. Nasce como
combate implacável, no início da década de [19]40, às teses keynesianas e ao ideário do Estado
de Bem-estar, sobretudo aos direitos sociais e aos ganhos de produtividade da classe
3 3
do o autor, ao questionar a “opção por uma LDB minimalista” e sua em minúsculas) são múltiplas, diversas e alternativas. A
compa- tibilidade com o “Estado mínimo”, a lançar uma intrigante Política Educacional é,
pergunta, à qual, prontamente, ofereceu sua resposta:

Seria possível considerar este tipo de orientação e, portanto,


essa concepção de LDB, como uma concepção neoliberal?
Levando-se em conta o significado correntemente atribuído
ao conceito de neoliberal, a saber: valorização dos mecanismos
de mercado, apelo à iniciativa privada e às organizações não
governamentais em de- trimento do lugar e do papel do
Estado e das iniciativas do setor público, com a consequente
redução das ações e dos investimentos públicos, a resposta será
positiva (SAVIANI, 2007, p. 200).

Torna-se impraticável, nos limites de nossos esforços atuais, darmos


conta de todas as mediações que se desdobram desta situação. Tendo
como suporte as premissas anteriormente apresentadas, gerenciaremos nossos
esfor- ços no sentido de elencar alguns fatores relacionados à produção das
políticas educacionais brasileiras e, por conseguinte, ao fazer escolar,
vinculando-as às determinações internacionais advindas de organismos e
eventos globais que procuram legitimar a lógica reprodutiva do capital como
o horizonte último a ser perseguido pela humanidade cambaleante rumo ao
novo milênio.

Política Educacional: um pouco de conceito, um pouco de preceito

A compreensão sobre a educação e sua conexão com o processo de


pro- dução e reprodução social gestado a partir do trabalho foi o foco de
nosso primeiro momento neste curso. Agora nos debruçaremos sobre
aspectos que, no campo da educação, fundamentam a produção de outros
fenômenos que, ao fim e ao cabo, classificamos como Política Educacional
(geral) ou políticas educacionais (específico).
Alguns autores assumem a existência de uma diferenciação entre
Política Educacional (escrita com iniciais maiúsculas) e políticas educacionais
(plural e iniciais minúsculas):

A Política Educacional (assim em maiúscula) é uma, é a


Ciência Política em sua aplicação ao caso concreto da
educação, porém as políticas educacionais (agora no plural e

3 3
portanto, a reflexão teórica sobre as políticas educacionais (...) Em seguida, definem o pilar ideológico sobre o qual as políticas
se há de considerar a Política Educacional como uma aplicação
públicas (entre elas, as de educação) se assentam:
da Ciência Política ao setor educacional e, por sua parte, as
políticas educacionais como políticas públicas que se dirigem
É estratégica a importância das políticas públicas de caráter social
a resolver questões educacionais. (PEDRO & PUIG, 1998
– saúde, educação, cultura, previdência, seguridade, informação,
apud VIEI- RA, 2008, p. 22 – grifos da autora).
habitação, defesa do consumidor – para o Estado capitalista. Por
um lado, revelam as características próprias da intervenção de
Assim como comparece na citação anterior, a educação e a um Estado submetido aos interesses gerais do capital na organi-
resolutividade de suas questões é afirmada por Azevedo (2004) como zação e na administração da res pública e contribuem para asse-
componentes de uma ação mais ampla desenvolvida a partir do Estado: as gurar e ampliar os mecanismos de cooptação e controle
políticas públicas. Para a autora, a educação se insere no conjunto de ações social. Por outro, como o Estado não se define por estar à
concebidas no evolver social para dar conta de seu funcionamento disposição de uma ou outra classe para seu uso alternativo,
não pode se deso- brigar dos comprometimentos com as
contraditório, o qual precisa ser entendi- do em sua essencialidade, para que se
distintas forças sociais em confronto. As políticas públicas,
produza uma tomada de posição e, conse- quentemente, a definição de um particularmente as de caráter social, são mediatizadas pelas lutas,
fazer educacional com um fim definido. Assim posto, ao nos debruçarmos pressões e conflitos entre elas. (idem, p. 8)
sobre as “políticas educativas” mostra-se necessário “uma postura objetiva nas
práticas investigativas, aliada a um comprometimen- to político”, cujo fim é a Saviani, compreendendo este fundamento que se manifesta nas políticas
“emancipação e felicidade humanas” (AZEVEDO, 2004, p. VIII). Nos públicas, analisa assim, a especificidade das políticas educacionais promovidas
termos de Azevedo: a partir da concepção de Estado supostamente descentralizador, comprometido
em fazer avançar os mecanismos propagados pelo pensamento neoliberal:
[...] A política educacional definida como policy – programa de
ação – é um fenômeno que se produz no contexto das Com efeito, em todas as iniciativas de política educacional,
relações de poder expressas na politics – politica no sentido da apesar de seu caráter localizado e da aparência de autonomia e
dominação desarticu- lação entre elas, encontramos um ponto em comum
– e, portanto, no contexto das relações sociais que plasmam que atravessa todas elas: o empenho em reduzir custos, encargos
as assimetrias, a exclusão e as desigualdades que se configuram e investimentos públicos buscando senão transferi-los, ao menos
na sociedade e no nosso objeto (idem). dividi-los (parce- ria é a palavra da moda) com a iniciativa
privada e as organizações não-governamentais (SAVIANI,
A compreensão da educação como política pública também está presen- 2007, p. 200-01).
te em Shiroma, Moraes e Evangelista (2004, p. 7). Ao analisarem o conceito de
política, as autoras advogam que: Nos diferentes autores e suas distintas concepções apresentadas aqui,
identificamos um elemento convergente: as políticas educacionais compõem
Na modernidade, o termo [política] reporta-se, fundamental- as políticas públicas e têm no Estado seu proponente. Compreender, portanto,
mente, à atividade ou ao conjunto de atividades que, de uma como se estabelecem, o que objetivam e a quem se destinam as políticas edu-
forma ou de outra, são imputadas ao Estado moderno capitalista
cacionais, exige um entendimento do papel que o Estado assume na sociedade.
ou dele emanam. O conceito de política encadeou-se, assim, ao
do poder do Estado – ou sociedade política – em atuar, Em larga medida, no concernente às análises educacionais, esta compre-
proibir, ordenar, planejar, intervir, com efeitos vinculadores a ensão tem se voltado para o exame do Estado a partir de sua vinculação com a
um grupo social definido e ao exercício do domínio exclusivo teoria neoliberal da economia, o que, de um lado turva o entendimento preciso
sobre um ter- ritório e da defesa de suas fronteiras. das questões que envolvem as políticas educacionais, e, de outro, na medida

4
em

4
que as proposições atracam no porto já desenhado pelo capital (questionar se instalam no conjunto das relações que as classes estabelecem entre si. A
os procedimentos do Estado sem questionar sua superação), impedem, até pro- moção de suas políticas públicas, se na aparência se mostra necessário à
mesmo nos limites da atividade educativa, formas de resistência mais classe dominada, é de importância vital à classe dominante, seja pelo caráter
consistentes no que diz respeito ao caráter formativo da educação e da media- tizante destas políticas, seja pelo controle social que delas irradia. No
escola no horizonte de uma ruptura radical com a sociedade de classes. caso da educação, as políticas tanto atendem às urgências atuais da classe
Tomado em outros termos, o Estado neoliberal não passa de uma expressão do trabalhadora (mistificadas e impostas pela própria lógica do capital em seu
capitalismo que, a seu turno, é apenas manifestação recente do sistema desdobramento histórico), quanto satisfaz as exigências da formação de um
metabólico do capital (MÉSZÁROS, 2005). Não basta, portanto, combater o tipo de trabalha- dor adaptável técnica, política e ideologicamente às
fenômeno do Estado neoliberal. É necessário, ao analisarmos as políticas necessidades emergentes do mercado.
educacionais (ou a Política Educacional), avançarmos no sentido de percebê- Se a reprodução do capital e do capitalismo tem se assentado num cons-
las como um dos inúmeros mecanismos pos- tos em ação por um tante processo que oscila entre desdobramento de crises e picos de
determinado setor da sociedade que comanda a atividade do Estado, crescimento, na atual quadra histórica o que predomina é um acentuado avanço
objetivando perpetuar sua própria existência enquanto classe domi- nante. Não do primeiro aspecto, o que tem exigido do capital e do próprio Estado, decisões
queremos afirmar com isto nem que a escola é apenas um espaço de e ações cada vez mais aceleradas com o intuito de resolver o corrente contorno
reprodução das relações vigentes, nem que a tomada do Estado deve tornar-se sobre o qual a crise se manifesta, definida por Mészáros (2005) como algo
o último refúgio da classe dominada. Em sintonia com a concepção marxiana, que atinge de forma nunca antes experimentada, a estrutura do próprio
perspectivamos o Estado como “balcão de negócios da burguesia” e, portanto, sistema de controle metabólico do capital.
se a exigência é a ruptura com a sociedade burguesa não podemos prescindir
da supressão do próprio Estado. Crise estrutural do capital e educação:
Acertadamente, Shiroma, Moraes e Evangelista, ao explicitarem as per- desdobramento e implicações
cepções sobre o Estado desde Hegel (Estado como ente do qual emana a
or- ganização da sociedade) e daí até Marx (Estado como ente organizado a O capital é um sistema que tem como imperativo estrutural ampliar
partir das contradições que emanam da sociedade), resumem a questão do suas fronteiras, engendrando configurações históricas de organização da pro-
Estado em termos bem compreensíveis: dução capazes de atender esta prerrogativa. Na percepção de Mészáros (2007),
esta lógica interna de reprodução expansionista do sistema acaba gerando seus
Em O Capital, Marx afirma o Estado como “violência próprios limites, que, por sua vez, delimitam o horizonte de possibilidades no
concen- trada e organizada da sociedade”, evidenciando a interior do qual o capital realiza manobras no sentido de deslocar suas contra-
relação entre sociedade civil (conjunto das relações econômicas)
dições. Esta margem de manobras permite a reprodução ampliada do capital a
e Estado (so- ciedade política). Longe de ser um princípio
superior, racional e ordenador, como queria Hegel, o Estado um preço elevadíssimo para o conjunto da humanidade, acentuando a
institui-se, nesse enten- dimento, como expressão das formas destru- tividade das relações sociais9.
contraditórias das relações de produção que se instalam na
sociedade civil, delas é parte es- sencial, nelas tem fincada sua O capital, como um sistema de controle do metabolismo so-
origem e são elas, em última ins- tância, que historicamente cial pôde emergir e triunfar sobre seus antecedentes históricos
delimitam e determinam suas ações (2004, p. 8). abandonando todas as considerações às necessidades humanas
como ligadas às limitações dos ‘‘valores de uso’’ não qualificáveis,
A atividade do Estado, desta feita, longe de figurar como uma essência 9 Disponível em: http://www.sergiolessa.com/artigos_97_01/Para_Alem_K_1998.pdf. Acesso
neutra, afirma seu caráter classista, revelador dos interesses contraditórios que em: ago. 2014.

4 4
sobrepondo a estes últimos – como o pré-requisito absoluto Antunes (2003, p.29-30) aponta, segundo os estudos de Mészáros,
de uma legitimação para tornarem-se objetivos de população
ou- tros aspectos importantes que caracterizam a crise, definindo como seus
acei- táveis – o imperativo fetichizado do ‘‘valor de troca’’
qualificáveis e sempre expansível. É desta maneira que surgiu traços mais evidentes:
a forma histo- ricamente específica do sistema capitalista, sua
versão capitalista burguesa. Ela teve de adotar o irresistível 1. queda da taxa de lucro, dada dentre outros elementos causais,
modo econômico de ex- tração de sobretrabalho, como mais- pelo aumento do preço da força de trabalho, conquistado du-
valia estritamente qualificá- vel – em contraste com a pré- rante o período pós-45 e pela intensificação das lutas sociais dos
capitalista e a pós-capitalista de tipo soviético, formas anos 60, que objetivam o controle social da população. A conjuga-
basicamente políticas de controlar a extração de sobretrabalho ção desses elementos levou à redução dos níveis de
-, de longe, o modo mais dinâmico de realizar a seu tempo, o produtividade do capital, acentuando a tendência decrescente da
imperativo da expansão do sistema vitorioso (MÉS- ZÁROS, taxa de lucro;
2007, p. 58). 2. o esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de
produção (que em verdade era a expressão mais fenomênica da
crise estrutural do capital), dado pela incapacidade de responder
Este imperativo expansionista não garante um processo de existência
à retração em resposta ao desemprego estrutural que então se
tranquila ao capital. Em vários momentos históricos foram registradas crises iniciava;
cíclicas que abalaram o sistema capitalista, sem, no entanto, revelar suas limi- 3. hipertrofia da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia
tações e impossibilidades. Isto, entretanto, já não é mais possível. O capital frente aos capitais produtivos, o que também já era expressão da
atravessa uma crise estrutural, que deve ser compreendida como ‘‘a séria própria crise estrutural do capital e seu sistema de produção, co-
mani- festação do encontro do sistema com seus próprios limites intrínsecos’’ locando-se o capital financeiro como um campo prioritário para
especulação, na nova fase do processo de internacionalização;
(MÉS- ZÁROS, 2000, p.14).
4. a maior concentração de capitais, graças às fusões entre as
Segundo o autor (Idem, p.7), em- presas monopolistas e oligopolistas;
5. a crise do welfare state ou do ‘‘estado do bem-estar social’’
Vivemos na era de uma crise histórica sem precedentes. Sua se- e dos seus mecanismos de funcionamento, acarretando a crise
veridade pode ser medida pelo fato de que não estamos frente fiscal do estado capitalista e a necessidade de retração dos gastos
a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como públicos e suas transferências para o capital privado;
as vividas no passado, mas a uma crise estrutural, profunda, do 6. incremento acentuado das privatizações, tendência generali-
pró- prio sistema do capital. Como tal, esta crise afeta – pela zada às desregulamentações e a flexibilização do processo pro-
primeira vez em toda a história – o conjunto da humanidade, dutivo, dos mercados e da força de trabalho, entre tantos
exigindo, para esta sobreviver, algumas mudanças fundamentais outros elementos contingentes que exprimiam este novo quadro
na manei- ra pela qual o metabolismo social é controlado. crítico.

Mészáros (2002, p. 796), indica quatro aspectos constituintes desta crise O sistema de controle social desenhado a partir do capital, portanto, co-
histórica do capital, que sustentam sua dimensão estrutural ao invés de cíclica. meça a demonstrar sinais de esgotamento, o que não determinará seu fim, mas
São eles: 1) em termos de produção, o caráter da crise é universal, não está res- indica que entramos numa nova forma de configuração desse controle, muito
trito a algumas esferas ou ramos; 2) a crise não atinge somente alguns países, mais cruel e desumana e que poderá levar, em última instância, à
ela tem um alcance global; 3) ao contrário das crises cíclicas que, destruição planetária.
temporalmente, são limitadas, a atual é extensa e ‘‘permanente’’; 4) ao Na análise de Antunes (2003, p.31) impôs o fato de que:
contrário das erupções e colapsos do passado, esta crise desdobra-se de
maneira ‘‘rastejante’’. Como resposta à sua própria crise, iniciou-se um processo de
reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político
4 4
de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento 10 http://ivotonet.xpg.uol.com.br/arquivos/educacao_contra_o_capital.pdf. Acesso em:
do neo-liberalismo, com a privatização do Estado, a desregula- novembro de 2014.
mentação dos direitos do trabalho e da desmontagem do setor
produtivo estatal, da qual a era Thatcher-Reagan foi expressão
mais forte; a isso se seguiu também um intenso processo de
re- estruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar
o capital do instrumental necessário para tentar repor os
patamares de expansão anteriores.

Objetivando reestabelecer antigos padrões de lucratividade garantidores


da sua ânsia expansionista, o capital impôs mudanças significativas na sua
ope- racionalidade A crise estrutural do capital, desta feita, ultrapassou as
fronteiras da economia, atingindo todos os setores da vida social, entre eles, a
educação.

Não é de se admirar que a educação, assim como todas as outras


dimensões sociais, esteja em crise. Não só nos países
periféricos, mas, embora de modos diferentes, também nos
países centrais. Afinal, o mundo todo está em crise. Há algumas
décadas ele vem sendo sacudido por intensas, amplas e
profundas transformações que, tendo seu epicentro na
economia, se espraiam por todas as dimensões sociais
(TONET, 2014, p. 27)10.

Diante de sua crise contemporânea o capital objetiva explorar tudo e


todos tanto no que se refere à produção quanto ao consumo. Como o
proces- so de produção e consumo se assenta sobre o trabalho assalariado e os
postos de emprego são cada vez mais exigentes e exclusivos, a educação, entre
outros fatores, entra na equação para promover a igualdade de condições para
que os indivíduos se tornem sujeitos explorados e consumidores ativos.
O acentuado reformismo educacional que presenciamos desde as
últimas décadas do século passado e que se perpetua no alvorecer do milênio
corrente revela a forma como a crise do capital alcança a educação. Para
Tonet, os re- batimentos da crise que se instala na estrutura fundamental do
capital e, por conseguinte, no mundo do trabalho, se manifestam no setor
educativo em dis- tintos aspectos:

[...] sinteticamente, em primeiro lugar, revelando a


inadequação da forma anterior da educação frente às exigências
do novo padrão

4 4
de produção e das novas relações sociais; constatando que as
teo- rias, os métodos, as formas, os conteúdos, as técnicas, as
políticas educacionais anteriores já não permitem preparar os
indivíduos para a nova realidade. Em segundo lugar, levando à
busca, em to- dos os aspectos, de alternativas para esta
situação. Em terceiro lu- gar, imprimindo a esta atividade, de
modo cada vez mais forte, um caráter mercantil. Isto acontece
porque, como conseqüência direta de sua crise, o capital
precisa apoderar-se, de modo cada vez mais intenso, de novas
áreas para investir. A educação é uma delas. Daí a intensificação
do processo de privatização e de transformação des- ta atividade
em uma simples mercadoria. Não é preciso referir as
conseqüências danosas que este processo traz para o conjunto
da atividade educativa (TONET, idem).

Compreendendo que estes não deixam de ser importantes componentes


do que chamamos de diretrizes pedagógicas do capital em crise, acreditamos,
entretanto, que não sejam estes rebatimentos nenhuma novidade anunciada ao
campo educacional pelo processo crítico que o capital atravessa. Ao
vasculhar- mos a história das políticas educacionais brasileiras, podemos
constatar que a mercantilização da educação, sua inadequação à ordem social
em curso e a bus- ca por soluções imediatas tem sido a tônica imposta pelo
capital e pelo Estado, mesmo que em outros tempos isto tenha ocorrido de
forma menos agressiva. Por certo, os itens elencados por Tonet se acentuam
na quadra crítica atual, as- sumindo a mesma dinâmica desumanizadora,
superficializante e aligeirada que as soluções propostas à resolutividade da
crise encerram.
Afirmamos, entretanto, que os rebatimentos mais proeminentes da crise
estrutural do capital no campo da educação e, mais especificamente nas
políticas para o setor, ocorram em outras duas frentes: 1) a pulverização e a
focalização de ações educativas voltadas a atender as demandas mais
imediatas do mercado, a exemplo da crescente profissionalização no ensino
médio e vinculação entre a escola e a empresa; 2) o comparecimento de
‘‘novos’’ interlocutores internacio- nais que, a serviço do capital, definem
em eventos e documentos de natureza global, as linhas gerais da educação que
os países deverão seguir, assegurando as necessárias adaptações ao que já fora
determinado. É, pois, sobre estes últimos que nos deteremos agora.

4 4
Os (des)caminhos apontados à educação pelo capital: social. Gilmaisa M. Costa, Rosa Prédes, Reivan Souza (Orgs). Maceió, EDUFAL, 2010.
compreendendo fundamentos à política educacional brasileira

Nossa proposição aqui não é resguardar qualquer concordância com


o que entendemos ser as diretrizes planetárias da educação definidas pelos
orga- nismos multilaterais que, a seu turno, tomam eventos e publicações de
abran- gência global para debaterem e proporem princípios comuns à
educação. O que objetivamos é explanar certos vínculos que, a nosso ver, ao
longo das últimas décadas se estabeleceram entre alguns destes organismos,
eventos e publica- ções11, que, ao fim e ao cabo, orientam a formulação de
propostas à educação, em sua atividade ampla (formação indivíduo-gênero) e
suas ações específicas.
Entendemos que a cornucópia ideológica dirigida em especial aos países
sitiados na periferia do capitalismo central encontra nas políticas educacionais
um locus difusor das imposições dos organismos multilaterais que buscam
abo- lir qualquer tensão capaz de revelar que as necessidades estruturais do
capital são essencialmente distintas das necessidades do conjunto da
humanidade12.
Nesse sentido, no panorama político-educacional desses países, presen-
ciamos uma enxurrada de conteúdos repetidos à exaustão, na tentativa de soli-
dificar o consenso ideológico arquitetado pelos agentes da ordem. São
exemplos desse ideário que se espraia sobre a educação: formação de uma
cultura da paz, combate à vulnerabilidade social, universalização do ensino,
redução da po- breza, desenvolvimento humano sustentável, cidadania
planetária, entre tantos outros recheios imprescindíveis ao confinamento das
lutas sociais à esfera da formalidade.
Hoje, a retomada de projetos que, em tempos remotos, engrossaram ou-
tras fileiras ideológicas, deixa claro que estamos diante da reedição de velhas fór-
mulas, travestidas de conteúdos escorados nas enfadonhas pilastras do discurso

11 Ver, entre outros: UNESCO. A Declaração de New Delhi sobre Educação para Todos.
New Delhi- Índia: Unesco, 1993. Disponível em: <http://www.unesco.org.br/publica/Doc_
Internacionais/declaraNdelhi>.
. O Marco de Ação de Dakar Educação Para Todos: atendendo nossos
Compromissos Coletivos. Dakar, Senegal: Cúpula Mundial de Educação, 2000. Disponível
em:<http:// www. unesco.org.br/publicação/doc-inernacionais/marcoDakar>
12 Algumas ideias expostas em parágrafos próximos já foram por nós desenvolvidas em:
JIMENEZ, Susana e GOMES, V. C. O conhecimento cativo da incerteza: Delors, Morin e as
imposturas intelectuais no contexto do capital em crise. In: Crise contemporânea e serviço

4 4
da inovação que, diga-se de passagem, deixam praticamente incólume o alfabetização, cálculo e habilidades essenciais para a vida. Disponível em:
http://www.campanhaeducacao.org.br/metas_EPT.htm. Acesso em: 17 jan. 2010.
edifício da reprodução da desigualdade social que supostamente buscam
combater.
No caso do complexo educativo, talvez o mais obscuro e ao mesmo
tempo mais eficaz destes conteúdos reeditados seja encontrado no Projeto de
Educação para Todos,13 o qual condensa, de forma cabal, as diretrizes que
vêm reformando o pensamento e a política educacional em consonância com
as exi- gências do processo de reprodução do capital, no contexto da presente
crise. No sentido de fazer frente à crise, torna-se imprescindível ao capital,
dentre outras medidas, buscar arrego numa educação que, ainda mais
ferozmente, opere a negação do conhecimento que revela as determinações
do real em suas múlti- plas dimensões; contribua para a manipulação das
consciências; aprofunde as estratégias de exploração e expropriação do
trabalhador; e amplie os espaços de privatização e mercantilização da
atividade social em geral e do ensino, em particular.
Neste sentido, acreditamos que não tardou para que os organismos
mun- diais de defesa do capital se empenhassem na reafirmação da cantilena
sobre o advento de uma nova era, a era do conhecimento ou era da
informação, a qual exigiria de cada indivíduo o desenvolvimento de um
conjunto basilar de com-
13 Segundo a Unesco, “The Education for All movement is a global commitment to
provide quality basic education for all children, youth and adults. The movement was
launched at the World Conference on Education for All in 1990 by UNESCO, UNDP,
UNFPA, UNICEF and the World Bank. Participants endorsed an ‘expanded vision of learning’
and pledged to universalize primary education and massively reduce illiteracy by the end of the
decade”. Disponível em: http:// www.unesco.org/en/efa-international-coordination/the-efa-
movement/. Acesso em: 14 jan. 2010. O projeto apresenta seis metas a serem atingidas até
2015: 1. Expandir e aprimorar a educação e os cuidados com a primeira infância, especialmente
para as crianças mais vulneráveis e desfavorecidas;
2. Garantir que em 2015 todas as crianças, especialmente meninas, crianças em situações
difíceis e crianças pertencentes a minorias étnicas, tenham acesso a uma educação primária de
boa qualidade, gratuita e obrigatória, além da possibilidade de completá-la; 3. Assegurar que
as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam satisfeitas mediante o
acesso eqüitativo à aprendizagem apropriada e a programas de capacitação para a vida; 4.
Atingir, em 2015, 50% de melhoria nos níveis de alfabetização de adultos, especialmente para
as mulheres, e igualdade de acesso à educação fundamental e permanente para todos os
adultos; 5. Eliminar, até 2005, as disparidades existentes entre os gêneros na educação
primária e secundária e, até 2015, atingir a igualdade de gêneros na educação, concentrando
esforços para garantir que as meninas tenham pleno acesso, em igualdade de condições, à
educação fundamental de boa qualidade e que consigam completá-la; 6. Melhorar todos os
aspectos da qualidade da educação e assegurar a excelência de todos, de modo que resultados
de aprendizagem reconhecidos e mensuráveis sejam alcançados por todos, especialmente em

4 4
petências e habilidades capazes de garantir seu ingresso no incerto mundo Coordenada pelo francês Jacques Delors, a Comissão produziu o Relatório
novo que se descortinava. entre 1993 e 1996 e
Tomando por mote estabelecer a protoforma da educação do futuro,
várias nações do mundo foram convocadas a participar de um esforço coletivo,
traçando metas e estratégias imprescindíveis à adequação educacional, o que
ficou conhecido como Conferência Mundial de Educação para Todos,
realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990, sob os auspícios da Organização
das Na- ções Unidas - ONU, através de alguns de seus principais organismos -
UNES- CO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial. A referida Conferência
representou um novo marco para as políticas educacionais, agora mais
explicitamente tra- tadas em nível global e mais diretamente centradas na
educação básica e sua vinculação com o setor produtivo.
É de fácil reconhecimento a parceria entre Unesco e Banco Mundial
quan- do o assunto é reforma da educação e do ensino, sendo oportuno
lembrar, anco- rados nas pesquisas de Leher (1999), que a Unesco em meados
dos anos 80 do século passado, ao perder o posto de gerência dos negócios
educacionais, assumiu o princípio pedagógico do “novo senhor da educação”
(idem.) - Banco Mundial
-, sumarizado na proposta de educação para o mercado e suas necessidades. No
bojo desta frutífera parceria, a atividade educacional tem sido constantemente
convidada a sucessivas revisões, sendo, uma vez mais, chamada a dar conta
dos problemas do mundo, prescrevendo-se, para esta, contudo, a efetivação de
pro- fundas reformas que promovam o ajuste providencial, o que foi
consignado, fun- damentalmente na fórmula do projeto de Educação para
Todos.
Tal projeto, ao fim e ao cabo, estabeleceu e ainda estabelece os conteúdos
para o qual as políticas educacionais deveriam se voltar. Estes, a seu turno, tor-
nados cego às relações de classe como elemento fundamental de compreensão
e transformação da realidade, são transportados para o metafísico plano do
ser que aprende a ser, a conhecer, a fazer e a conviver, como categoricamente
delimitou o Relatório Delors (1998), referência inconteste para uma infinida-
de de modismos teóricos que adentram as políticas educacionais, em especial,
no campo da formação docente. O referido Relatório, diga-se de passagem,
comparece com um documento formulado por uma comissão designada
pela Conferência de Jomtien, para apontar o diagnóstico da situação
educacional global e, partindo daí, efetivar propostas para a reformulação
dos caminhos a serem perseguidos pela escola no milênio que se aproximava.

5 5
este, a seu turno, lançou as bases para a profusão de ações no campo
educativo, cujo fundamento passou a ser o combate ao agravante quadro
social revelado pelo século XX.
Os direcionamentos daí advindos encontraram larga aceitação no atual
momento histórico de velamento da realidade exponenciado pela dita socieda-
de do conhecimento, metodológica e epistemologicamente eclética, que
rejeita qualquer forma de crítica contundente sobre a totalidade, o que, vale
dizer mais uma vez, deixa intacta a empreitada ideológica que o capital
vem pondo em marcha para acomodar à sua lógica todo o tecido social,
mergulhado atualmen- te num quadro de avassaladora barbárie.
Ademais, na esteira do ideário da Educação para Todos, as políticas
edu- cacionais são conduzidas e reduzidas à já experimentada fórmula da
preparação de mão de obra qualificada, para a qual as atuais referências são as
competências e habilidades exigidas pelo mercado, perseguindo-se, assim,
uma suposta for- mação multidimensional do homem, como podemos
constatar na proposta dos Pilares da Educação informados no capítulo 4 do
Relatório Delors (Aprender a ser, conviver, fazer e conhecer) 14. É interessante
observarmos que os elementos postos para esta gênese multidimensional se
assemelham aos elementos listados pela reestruturação produtiva do capital
nas últimas décadas. Policognição e polivalência tornaram-se a tônica da
formação exigida ao novo indivíduo. Neste sentido, ganharam destaque o
desenvolvimento de competências e habilidades no campo da inter-relação,
participação, solidariedade, resolução de conflitos por meio do diálogo,
capacidade de critica e contextualização, criatividade etc. Tudo isso em nome
de uma suposta “redescoberta” do homem e pela valência do
“desenvolvimento humano sustentável”, contra-pontos essenciais à dinâmi- ca
excludente que transborda da sociedade à escola.
Constatamos que não é registrado aí, o fato de que a
multidimensionali- dade que se objetiva alcançar está sendo perseguida no
exato momento históri- co em que se põe a superexploração da mais-valia,
isto é, num período em que todas as forças do trabalhador, físicas e psíquicas,
estão sendo utilizadas ao má- ximo pelo capital. Se, como comprovou Marx
(2002), o que garante a acumula- ção (lucro) é o excedente entre o que se
paga ao trabalhador e sua produtividade

14 Sobre a crítica a esta proposta, indicamos o artigo de MAIA, Osterne; Susana


Jimenez. A chave do saber: um exame critico do novo paradigma educacional concebido
pela ONU. IN: Educação pública, formação profissional e crise do capitalismo contemporâneo.
Fortaleza: EdUECE, 2013.
5 5
(mais-valia), resta então ao capital encontrar formas cada vez mais eficientes Políticas Públicas e Sociedade – MAPPS, da Universidade Estadual do Ceará.
de expandir a capacidade produtiva da força de trabalho “livremente”
contratada. Um dos mecanismos mais eficazes, neste sentido, é tornar este
trabalhador mais habilitado a exercer diferentes funções, com maior destreza e,
certamente, mais conformado à situação de exploração.
Realizar tal empreendimento requer, além da assimetria entre capital e
Estados, a intervenção de múltiplos agentes comprometidos a assumir tal tare-
fa. Neste sentido,

O papel das instituições internacionais é então decisivo, não


apenas produz e veicula as ideias hegemônicas, cuidando para
que estas sejam vistas como universais, neutras e fruto de
aná- lises realistas e tecnicistas, como também legitimam
determina- das instituições e grupos que nelas se apoiam para
derrotar seus oponentes nacionais. Ao mesmo tempo em que
fortalecem os interesses dominantes produzem políticas em
beneficio dos seto- res mais prejudicados pelas políticas de
modernização e de ajuste econômico (PANSARDI, 2011, p.
131).

Uma das mais proeminentes instituições a se vincular ao


empreendimen- to ideo-pedagógico do capital na atualidade é o Banco
Mundial que, como já afirmamos, ao lado da Unesco, comparece como a
agência de maior expressão quando o assunto é educação, desenvolvimento,
combate à pobreza e outras tantas frentes sobre as quais as políticas
educacionais ganham vida no interior do Estado. Entre os organismos
parceiros desta empreitada, podemos elencar ainda o Banco Interamericano de
Desenvolvimento15, a Organização Mundial do Comércio, a Comissão
Econômica para a América Latina – CEPAL, os quais, ao longo das últimas
décadas engrossaram as prateleiras das publicações sobre a educação e seu
papel frente a proposta capitalista de desenvolvimento e crescimento
econômico.

15 Para o entendimento sobre a interferência deste organismo no setor educacional, indicamos


a Dissertação de Mestrado de Francisco Adjacy Farias (Pobreza e educação: as intervenções do
BID nas políticas públicas brasileiras), defendida em 2014, no Mestrado Acadêmico em

5 5
A seu turno, o Banco Mundial constitui um grupo composto por http://www.gpeari.min-financas.pt/relacoes-internacionais/relacoes-multilaterais/instituicoes-
financeiras-internacionais/banco-mundial/o-que-e-o-grupo-do-banco-mundial. Acesso: outubro
dife- rentes agências16. Criado no pós-segunda guerra, teve como premissa
de 2014.
inicial a reconstrução de países da Europa devastados pelo referido conflito.
Seus obje- tivos e o alcance de sua atuação, entretanto, se modificaram ao
longo dos anos, assumindo diferentes frentes. No caso da educação, em seus
anos iniciais o BM não demonstrou interesse preciso sobre este complexo,
passando a voltar sua atenção para o mesmo, na medida em que as variadas
exigências desenvolvi- mentistas do capital se mostraram mais urgentes.

A centralidade adquirida pela educação no discurso do


Banco Mundial nos anos 1990 é recente. Na década de 1960,
um vice-
-presidente do Banco, Robert Gardner afirmou: “nós não
pode- mos emprestar para educação e saúde. Nós somos um
banco!”. Esta situação começou a mudar na gestão de Woods
(1963-1968) e, mais acentuadamente, na presidência de
McNamara, quando a ênfase no problema da pobreza fez a
educação sobressair entre as prioridades do Banco. Na década
de 1970, esta instituição consi- derava o financiamento às
escolas primárias e secundárias de for- mação geral um contra-
senso, defendendo o ensino técnico e pro- fissional,
modalidades tidas como mais adequadas às necessidades
(presumidas) dos países em desenvolvimento. Na virada
neoliberal da década de 1980, a orientação educacional do
Banco sofreu uma inflexão em direção ao ensino elementar. A
orientação anterior foi então duramente atacada como
voluntarista e dispendiosa. Na dé- cada de 1990, a inflexão
neoliberal não apenas permanece válida como é radicalizada
(LEHER, 2014, pp. 25-26).

A validade e a radicalidade referidas por Leher se expressam em pu-


blicações e eventos centrados na relação educação-desenvolvimento-combate
à
16 O Banco Mundial (BM) é um grupo de instituições financeiras cujo principal
objetivo consiste em fomentar o crescimento econômico e a cooperação à escala global
contribuindo assim para a promoção do processo de desenvolvimento econômico dos países em
desenvolvimento membros dessas instituições.
O Grupo Banco Mundial, sediado em Washington, é constituído pelo Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), pela Associação Internacional de
Desenvolvimento (AID), pela Sociedade Financeira Internacional (SFI), pela Agência
Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA) e pelo Centro Internacional para Arbitragem
de Disputas sobre Investimentos (ICSID).

5 5
pobreza, tema recorrente em documentos divulgados pela agência17. Tomando para a reestruturação da prática docente que, como bem atesta Tonet18,
a educação como fator primaz para a resolução das problemáticas sociais cita- reco- nhecendo o preciso contorno da ação pedagógica, encontra-se diante
das, o BM vem se revelando como o principal agente do capital na de uma encruzilhada: contribuir para a reprodução ou para a ruptura da
promoção de suas diretrizes pedagógicas internacionais a serem assumidas exploração do homem pelo homem.
pelos diferentes países do globo. Sua acentuada interferência tem sido objeto
de estudo de dife- rentes pesquisadores, a exemplo de Mendes Segundo, Referências
Marília Fonseca e Rober- to Leher. Este último, compreendendo a lógica que
perpassa o funcionamento deste organismo e seu interesse pela educação na ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a
quadra contemporânea, co- loca-nos diante de uma intrigante indagação: centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2003.
estaríamos diante de “Um Novo Senhor da educação?”. A resposta que o autor AZEVEDO, Janete M. Lins de. A educação como política pública. 3a ed. Campinas,
nos oferece pode ser entendida a partir de sua definição do que seria o Banco SP: Autores Associados, 2004 (Coleção polêmicas do nosso tempo; vol. 56).
Mundial hoje no campo educativo: o ministério mundial da educação para os BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96).
países periféricos do capitalismo. Descortina-se, a partir daí, os DELORS, Jacques (Coord.). Educação: um tesouro a descobrir. Brasília:
(des)caminhos apontados às políticas educacio- nais brasileiras. UNESCO/ MEC, 1998.
LEHER, Roberto. Um Novo Senhor da educação? A política educacional do
Fechando uma janela, abrindo outras
Banco Mundial para a periferia do capitalismo. Revista Outubro, 2014
(http://www. revistaoutubro.com.br/edicoes/03/out3_03.pdf). Acesso: outubro de
Nosso objetivo, a partir dos elementos expostos, foi adentrar alguns fun- 2014.
damentos que definem os (des)caminhos impostos à educação e à escola no
MAIA, Osterne; Susana Jimenez. A chave do saber: um exame critico do novo
atual momento de crise que o sistema do capital atravessa. Por certo, mais fácil paradigma educacional concebido pela ONU. IN: Educação pública, formação
seria discutir um ou dois programas educacionais oferecidos aos professores e profissional e crise do capitalismo contemporâneo. Fortaleza: EdUECE, 2013.
à es- cola e que, em larga medida, tornam-se ações de difícil compreensão no
MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. In: Revista Outubro. No. 4. 2000.
que se refere à sua conexão com os desdobramentos do sistema de controle do
. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
capital. Não era esta nossa intenção; assim como também não era, discutir
as diferentes realidades educativas dos sujeitos envolvidos neste curso, sem .O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
que deles emanassem reflexões que falam com maior precisão sobre aquilo PANSARDI, M.V. A formação de professores e o Banco Mundial. EccoS –
que nas Revista Científica, São Paulo, n. 25, p. 127-142, jan./jun. 2011.
suas escolas ocorre. SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. 10a
O que pretendemos, neste módulo, foi lançar elementos que, a nosso ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. (Coleção educação contemporânea).
ver, passam ao largo das discussões que permeiam o fazer pedagógico. Consi- SHIROMA, Eneida Oto; MOARES, M. C. M.; EVANGELISTA, O. Política
deramos que o receituário sobre como ser e agir na escola já se encontre educacional. 3a ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
bem volumoso, carecendo, entretanto, em sua grande maioria, de alguns
VIEIRA, Sofia Lerche. Educação básica: política e gestão da escola. Fortaleza, Liber
conteúdos que relacionem o que ocorre no campo educativo (e, claro, na Livro, 2008. (Coleção formar).
escola), com a totalidade social envolvida nos meandros reprodutivos do
capital em crise. A partir daí, esperamos que outras reflexões sejam
acrescidas e isto contribua

17 Ver, entre outros, o Relatório anual do Banco Mundial (2013): Um mundo sem pobreza: erradicar a pobreza extrema e promover a prosperidade compartilhada.

5 5
18 http://ivotonet.xpg.uol.com.br/arquivos/educacao_contra_o_capital.pdf. Acesso em: novembro
de 2014.

5 5
O CAMPO BRASILEIRO: BREVE
HISTÓRICO E PERSPECTIVAS

Stelamaris Torres Melo

Introdução

Este trabalho pretende tratar das questões históricas e sociais que envol-
vem o campo brasileiro e as reverberações destas ações na proposta de
educação que tem sido direcionada aos povos do campo. Neste módulo,
portanto, lança-
-se o desafio de apresentar subsídios teóricos capazes de contribuir com o
debate já instalado, que envolve o trabalho e a educação do/no campo, as
relações que se estabelecem neste processo e o quão intensamente estas não
apenas provocam ou reforçam a luta de classes, mas são determinantes para a
sua existência.
No meio rural brasileiro, a questão agrária é a expressão máxima da luta
de classes, onde interesses antagônicos frequentemente se chocam e se enfren-
tam. A classe hegemônica, quando não consegue de maneira sutil e ideológica
manter suas vontades e domínio, utiliza-se de outros mecanismos de controle e
coerção, dentre eles o aparelho de Estado.
As questões que envolvem a terra e o sistema agrário19, entretanto,
não são novas, nem têm apenas o Brasil como espaço de disputa e de
tensões. A concentração fundiária tem sido um processo histórico de longa
data, tanto no Brasil, como nos demais países denominados ‘‘em
desenvolvimento’’, sendo que a grande maioria deles, discute as políticas de
democratização de acesso à terra. A luta pela terra não pode ser
desconsiderada quando se discutem po-
líticas de democratização do acesso, tanto em relação à própria terra,
quanto em relação à educação, tendo em vista que este processo se dá a passos
lentos, às vezes, até irrisórios ou quase insignificantes, comparados aos
números de despossuídos.

19 Também entendemos e utilizamos o termo sistema agrário como um arcabouço institucional


amplo, onde acontecem as atividades agrícolas, abrangendo assim as questões do crédito,
comercialização, processamento de produtos agrícolas, assistência técnica, políticas públicas e
outras questões pertinentes as populações rurais. Esta delimitação conceitual foi realizada pela
Organização das Nações Unidas pela Agricultura e Alimentação- FAO.
Ao Estado como instituição política e social compete desenvolver uma O IBGE, ao calcular a população brasileira, dentre outros critérios, con-
política de reforma agrária, mas isso não tem realmente se efetivado. Nesse sidera como população urbana todos os que residem em sedes de municípios e
sen- tido, os estudos realizados pelo NEAD (Núcleo de Estudos e Pesquisa de distritos. Desta forma, reforça a dicotomia criada entre o urbano e o
Agrário e Desenvolvimento Rural) trazem algumas considerações importantes rural, estabelece distâncias e exclusões e desconhece o campo brasileiro
sobre a evolução dos sistemas de domínio de terras e das estruturas agrárias, enquanto es- paço socialmente integrado ao conjunto da sociedade do ponto de
principal- mente, no que se refere às estruturas agrárias da América Latina e vista histó- rico, social, cultural e ecológico.
dos chamados países em desenvolvimento. À época do descobrimento e colonização, o Brasil foi descrito em docu-
A estrutura fundiária brasileira, no decorrer de seus mais de quinhentos mentos como território de dois extremos, como se pode constatar no
anos, apresenta algumas modificações com relação ao domínio de seus territó- discurso contido na carta de Pedro Vaz de Caminha à Corte Portuguesa. As
rios, algumas dinâmicas de correntes migratórias e de ocupação de diferentes descrições de sertão e de litoral são antagônicas, segundo a qual, o sertão é
espaços em diferentes tempos. Essa prática tem indicado interesses, ora de sinônimo de lugar estranho e distante. É possível imaginá-lo associado ao
ocu- pação e garantia de manutenção de territórios por parte de quem deserto, ou seja, um território pouco povoado, inóspito, por isto passível de
conduzia o poder instituído, ora por extensão de políticas internacionais de ser conquistado; visão apresentada pelos bandeirantes em seus relatórios. O
capitalização, ampliação de mercados consumidores e de produtores de litoral é visto como a parte civilizada, portanto, predisposta ao desenvolvimento
matérias primas de baixo custo e, em contrapartida, a atuação dos povos e ao progresso. Sob o ponto de vista político e social, os discursos apresentavam
que ocupavam, provi- nham e identificavam-se com a vida nas áreas rurais. uma intenção de homogenei- zação do território, justificada por projetos que
No que diz respeito à educação ministrada nesse espaço, estudos como objetivaram a incorporação do sertão à grande cidade, por esta ser
os realizados por Miguel Arroyo (2000), Fernandes (2000), Leite (1999), considerada “sociedade civilizada”.
dentre outros estudiosos e pesquisadores da temática, indicam que o campo Os textos escritos em linguagem conceitual20 por viajantes e
foi visto e apresentado como lugar de atraso. Assim, com o propósito de exploradores à época, revelam o desprestígio das características culturais e
superar esta realidade, as políticas sociais e educacionais precisam tornar-se geográficas dos povos do campo, põem em risco a sua alteridade e criam
prioritárias para esses povos, rompendo com práticas que contribuíram com elementos que, em princípio, geraram o preconceito ainda hoje existente, a
a exclusão. exemplo de expressões como: “povo atrasado”; “matuto”; “caipira”; “povo da
Trata-se, portanto, de fundamentação teórica inicial para consubstanciar roça”, dentre outras, para se referir a esses povos. Nesta perspectiva, recorriam-se
as discussões que se pretende levantar, partindo da premissa de que os homens às definições contidas no dicionário Novo Aurélio Século XXI 21 para a palavra
são seres do trabalho, como asseguram Marx e Engels (1987), visto que se fa- sertanejo: (1.) Do sertão; (2.) Que habita o Sertão; (3.) Rústico, agreste, rude;
zem sujeitos, com sua produção, com o que produzem e com o modo como (4.) Caipira. O conceito de caipira, segundo o mesmo dicionário, é: (1.)
produzem. Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de
convívio e modos rústicos e canhes- tros; (2.) Pertencente ou relativo a, ou
Características sociais, políticas, econômicas próprio de caipira; jeca, matuto, roceiro, sertanejo; (3.) Diz-se do indivíduo
e culturais das populações do campo
sem traquejo social; cafona, casca-grossa”. As definições do dicionário para o
termo sertanejo e caipira não consideram a
A população brasileira, conforme as informações do Censo
Demográfico de 2010, atingiu um total de 190.755.799 habitantes. A
população urbana representou, à época, 84,4% do total, enquanto apenas 20 A linguagem conceitual, segundo Marilena Chauí (2000), procura evitar a analogia e a
metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso
29.830.007 dos ha- bitantes residiam em áreas rurais do território nacional,
não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa. Pelo contrário, nela a
representando, assim, 15,6% da população. conotação é essencial, mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética.
21 Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Aurélio Buarque de Holanda
5 5
Ferreira. 3. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

5 5
relação de trabalho com a terra ou mesmo o cotidiano dos povos do campo, Relatos de viajantes da época colonial diziam que além dos índios, iden-
ressaltam apenas aspectos estereotipados. tificados como bárbaros e incivilizados, também parecia selvagem a população
Com estas publicações, desconsiderou-se, principalmente que os povos pobre do sertão, descendentes de índios e negros. Até mesmo os que
do campo são seres do trabalho. Neste sentido, ao negar aos homens do campo perten- ciam à classe economicamente privilegiada, ou seja, a elite que ali
sua história e importância como sujeitos históricos e sociais, não reconheceu habitava também era incluída no preconceito de “desprovida de espírito
que sua constituição humana e sua origem é resultante do que os próprios empreendedor” por habitar o campo. Essa imagem negativa era usada para
homens produzem e como produzem a partir de sua atividade sobre a natureza justificar o atraso do interior em relação ao desenvolvimento que
(SAVIANI, 2007, p.152). apresentavam outras províncias incluídas no rol das cidades civilizadas.
O campo, pensado a partir do conceito de territorialidade e de trabalho, O artigo “Velha Praga”, escrito por Monteiro Lobato e publicado no
amplia seus horizontes, tornando-o espaço emancipatório, voltado à constru- jor- nal O Estado de São Paulo, em 1914, tornou pública a forma como
ção da vida humana e da luta coletiva pelos direitos legalmente garantidos ao eram per- cebidos os povos do campo por grande parte dos brasileiros de
sujeito campesino. cultura letrada e urbana da época. No parágrafo que se segue, o autor resume o
Assim, a partir da perspectiva territorial proposta por Veiga (2005), ter- que se considera um dos grandes temas de discussão na história agrária do
ritório não é um termo usado simplesmente para localização, mas uma impor- Brasil, quando põe o camponês brasileiro em contraposição ao camponês
tante concepção analítica para o entendimento do espaço político, no qual italiano recém-chegado ao Brasil, com a imigração do século XIX:
as relações sociais se manifestam por meio da educação, da cultura, da
produção, do trabalho, da infraestrutura, como dimensões territoriais Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem
concomitantes, in- terativas e intercomplementares. baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive a
Arroyo e Fernandes (2000) defendem que campo é “lugar de vida, onde beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que
o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o
as pessoas podem morar, trabalhar, estudar com dignidade de quem tem o seu
arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em
lugar e a sua identidade cultural”. Neste contexto, o campo deixa de ser só silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro
lugar da “produção agropecuária e agroindustrial, do latifúndio, de grilagem de [...] (LOBATO, 1994, p. 235).
ter- ras, portanto, o campo é lugar de vida e, sobretudo, de educação”
(ARROYO; FERNANDES, 2000, p. 92). Jeca Tatu é um personagem criado por Monteiro Lobato que teve a sua
Para colonizar o Brasil, Portugal utilizou o modelo escravocrata e o país imagem difundida e aplaudida. Em sua descrição, porém, ele caracterizava o
vivenciou o modelo agroexportador dependente, caracterizado pela exploração caboclo como: parasita, preguiçoso e avesso ao progresso. Escritores, como
dos trabalhadores rurais, tratados pelos proprietários de terra de forma violenta Eu- clides da Cunha e Olavo Bilac, também registraram a concepção
e selvagem e negando-lhes quaisquer direitos sociais, políticos e trabalhistas. presente na sociedade de sua época e que ainda trazem, nos dias atuais, os
O mesmo tratamento foi adotado, posteriormente, pelos próprios brasileiros resquícios do preconceito.
para a colonização no interior do País. Esse modelo de colonização deu origem Os povos do campo, entretanto, têm cultura própria e sua sabedoria que
aos preconceitos em relação aos povos que vivem e trabalham no campo e, é, tradicionalmente, hereditária e empírica, embora os avanços tecnológicos e
conse- quentemente, uma enorme dívida social (HENRIQUES, 2007). O a expansão da oferta de escolas tenham, teoricamente, alterado esse panorama.
acesso à terra só foi garantido para quem já tinha a terra, os latifundiários. Os Ainda hoje, se percebe, em pequenas comunidades rurais, que o tempo tem
brasileiros pobres, especialmente os negros, não tinham como comprar significado, o calendário também é próprio e ambos são definidos
terra, devendo submeter-se ao trabalho assalariado. conforme o tempo da plantação e da colheita, da pesca e das marés, assim
como outras atividades. São as tarefas que determinam o ritmo e o volume
de trabalho a

6 6
ser executado e, nessas épocas específicas, o sertanejo trabalha, geralmente, do Na perspectiva do que estamos discutindo, convém lembrar que o
nascer do dia ao entardecer. ho- mem do campo também é caracterizado, inclusive nos livros didáticos
A imagem negativa do caboclo se propagou e, a partir de meados distri- buídos por meio do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), pela
do século XIX, a imprensa e os próprios relatórios de governo publicaram forma simples de se vestir, pelos costumes e crenças, pela participação
diversas críticas, agravando aos camponeses brasileiros tradicionais, acusan- comunitária em festas e folguedos tradicionalmente cultuados e pela variedade
do-os de atrasados, ignorantes e empecilho para o progresso. Considere-se, do português falado em cada região, “onde a norma linguística empregada
entretanto, tema em destaque para discussão escolar, em relação à questão no quotidiano é uma variedade de português ‘não-padrão’”. (BAGNO,
agrária e à desqualificação que se faz do modo de vida e dos saberes tradi- 2003)
cionais do camponês, considerados em vários escritos como da mais pura Atualmente, torna-se mais raro encontrar o caipira autêntico, pois o estí-
ignorância. Do ponto de vista das ciências humanas e sociais, há de se re- mulo ao consumo e a facilidade para aquisição de bens e serviços, embora,
conhecer e valorizar o que se entende como conhecimentos ou saberes tra- mui- tas vezes para pagar em longas prestações, contribuíram para que as
dicionais das populações do campo, a exemplo dos indígenas, assim como tendências de moda e os avanços da comunicação chegassem, também, até o
outros povos não indígenas, incluindo nesse contexto o caboclo, conforme campo. Um exemplo disto é a ampliação do acesso à internet e à telefonia
preconizam as diretrizes da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB móvel, disponível no campo, permitindo a velocidade de alcance das
(DIEGUES, 2000). informações e a comunica- ção por meio das redes sociais. Por outro lado, a
A questão do campo, em se tratando da história das lutas dos sujeitos, instrução e a educação, hoje ofertada em maior quantidade de escolas e com
ou foi apresentada de forma a alimentar a exclusão e a desigualdade social, ou acesso mais fácil, possui o re- curso das salas de multimídia adquiridas por
lhes foi negada. Alguns autores, aos poucos, foram rompendo com as meio de programas federais. Esses recursos tecnológicos vão combatendo, aos
inverdades ou equívocos expressos nos textos didáticos e demais livros poucos, a ideia do velho caipirismo e já é comum, entre crianças e jovens, uma
oficiais, a exemplo de COTRIM (1990), quando reagiu ao que foi publicado linguagem que diverge da linguagem usual dos pais, em sua maioria
por um conceituado compêndio para estudantes do ensino médio, acerca das analfabetos ou com baixa escolaridade, confor- me nos mostram os dados
explicações sobre a história de Canudos, ali tratada de forma equivocada pela divulgados pelo IBGE e INEP/MEC.
história tradicional e chamou a atenção para as obras que “escondem o Os sujeitos do campo identificam-se como uma parte do povo brasilei-
principal motivo da revolta dos sertanejos”: ro, cuja vida e trabalho se desenvolvem no território rural. A sua
identidade é fortalecida pela autenticidade, pois pertencem ao grupo social
[...] a vontade de escapar da fome e da violência. Uma
oriundo da agri- cultura familiar de base camponesa a qual incorpora,
vontade concreta de lutar contra as injustiças do sertão. A
religiosidade foi uma forma possível encontrada pelos sertanejos também:
para traduzir sua revolta social (COTRIM, 1999, p. 254).
[...] os espaços das florestas e das águas, mas os ultrapassa ao
envolver para si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos ex-
Os camponeses reagiram em vários momentos e alguns movimentos de
trativistas e outros, fundamentando-se nas práticas sociais cons-
resistência dos camponeses podem ser constatados em Canudos (1893-1897), titutivas dessas populações: seus conhecimentos, habilidades,
na guerra contra os caboclos do Contestado (1912-1916) e na luta atual dos sentimentos, valores, modos de ser e de produzir, de se
Movimentos Sociais de trabalhadores Sem Terra pela Reforma Agrária, entre os relacionar com a terra e formas de compartilhar a vida.
quais o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), hoje com (MEC/SECAD, Documento Base do Programa Saberes da
mais de 30 anos de luta. Terra).

A população do campo - considerando-se as crianças, jovens, adultos e

6 6
anciãos - constitui um grupo social específico, cujas principais atividades pro-
dutivas, durante muito tempo, foram voltadas para a agricultura familiar
de subsistência.

6 6
Participantes, desde muito cedo, dos movimentos sociais que defendem ocupações simultaneamente, realizando atribuições típicas de agricultor, no
o desenvolvimento sustentável, eles rejeitam modelos de exploração predatória cultivo e produ-
e de agricultura convencional inerente ao agronegócio, modelo este, proposto
pelo regime capitalista, no qual, predomina a monocultura, com lucro reverti-
do em benefício de uma minoria.
Fazem parte, também, da conjuntura político-social do campo, os assen-
tamentos, acampamentos, as comunidades tradicionais, comunidades Quilom-
bolas e as aldeias Indígenas. Esses sujeitos do campo conservam muito fortes
os seus costumes, crenças e o espírito de luta por um campo para os
camponeses, onde prevaleçam a agroecologia e o cultivo sustentável da terra.
Esse modelo de agricultura se opõe a produzir uma única cultura e estabelece
destinação exclu- siva para a própria subsistência. O excedente é destinado
para abastecimento do mercado, para a permuta entre as demais famílias ou
para repartir solidaria- mente, favorecendo a outrem que por algum motivo não
produziu o suficiente. Seu potencial de produção de alimentos está na
diversidade, no uso múltiplo de recursos naturais (FERNANDES;
MOLINA. 2004).
A essas atividades econômicas desenvolvidas nos territórios, com raízes
na agricultura familiar, se junta à agropecuária de subsistência, destacando-se
a bovinocultura e a caprino-ovinocultura em pequena escala. Outra
atividade em expansão é o artesanato confeccionado com sementes e resíduos
diversos aproveitados dos recursos naturais de origem vegetal, animal e
mineral, dife- renciados conforme a região e as características locais.
Visualiza-se, também, a expansão da apicultura, cuja produção de mel
desponta como atividade prós- pera, mas que ainda carece de fortalecimento
e incentivos e de qualificação profissional para os que desenvolvem essa
atividade.
Outro fator que caracteriza a cadeia produtiva, a depender do local e
das atividades praticadas, é a produção de derivados do leite, que surge como
demanda significativa na região do sertão. Aliado à questão socioeconômica
resultante das atividades autônomas, vale ressaltar a demanda de exploração do
turismo rural como atividade que tem avançado significativamente na econo-
mia ligada aos povos do campo, principalmente, nas regiões onde ocorreram
episódios históricos e onde a natureza apresenta curiosidades e atrativos a
serem explorados.
O pluriativismo é uma das características culturais do homem do
campo, agricultor familiar. Geralmente, esse camponês desempenha diversas

6 6
ção vegetal e animal e outras atividades que suas necessidades requerem,
mesmo sem a formação específica para tal. Ele é, ao mesmo tempo,
agrônomo, agri- mensor, operador e mecânico de máquinas, meteorologista
empírico, pescador, construtor, eletricista, administra sua terra e comercializa
sua produção. Diz-se, também, que é um industriador, porque utiliza de suas
habilidades para realizar produções diversas, especialmente para os trabalhos
manuais e os ligados à arte. É considerado artesão nato, por sua perícia e
capacidade de criar e transformar. É, também, ecologista, extrativista, líder
comunitário e de organização. Por ser um observador e formulador de suas
próprias deduções, o agricultor familiar é reconhecido como pesquisador ou
experimentador por excelência. Não é raro en- contrar, também, entre os
camponeses, um músico, um poeta, mesmo sem nunca ter frequentado uma
escola ou academia, a exemplo do conhecido repentista e o tocador de viola.
A reciprocidade peculiar ao homem do campo tem sido gradativamente
ameaçada pela competitividade e pelo individualismo, inerentes ao modelo de
produção que, nas últimas décadas, tem sua prática incentivada. Observa-
se que o modo capitalista de produção, no qual a circulação do dinheiro é
maior que a de produção e serviços, influencia negativamente as relações
históricas de trabalho associado e cooperativo, desenvolvido pela família
consanguínea e pela família comunitária, embora ainda se observem práticas
voltadas para o mutirão e partilha da produção.
Historicamente, o agricultor familiar produz, nesse espaço,
praticamente tudo que necessita para garantir a sua subsistência e a dos seus
filhos. A diver- sidade cultural e produtiva da agricultura familiar tem
valor fundamental no processo de desenvolvimento do país, considerando-
se que a produção para consumo contribui, sobremaneira, para a garantia
da segurança alimentar e sobrevivência de inúmeras famílias que moram no
campo. Além de produzir para o próprio consumo, a produção do agricultor
familiar ainda possibilita ampliação do acesso aos alimentos, assim como a
reciprocidade entre produção e consumo, nas relações entre o campo e a
cidade.
Há, portanto, importância histórica, social e econômica nessa
modalida- de de organização social e produtiva, praticada no campo
brasileiro. Do ponto de vista da complexidade dessa atividade, os agricultores
familiares possuem particularidades que os diferenciam dos trabalhadores
urbanos ou de outros produtores rurais, que atuam nas grandes
propriedades onde a mão de obra externa é maior que a mão de obra da
família.
6 6
A situação de escolaridade da população do campo, embora apresen- significa in-
te positivação gradativa dos índices, ainda é bastante preocupante. Conforme
dados do censo de 2012, realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Aní- sio Teixeira (INEP/MEC), a escola do campo no Brasil matriculou
6.012.731 estudantes, considerando-se o total das unidades escolares da
federação. Este indicador representa 12,3% do total de matrículas na educação
básica em todo território nacional.
O Ministério da Educação, em diagnóstico pautado em dados do Censo
Escolar/INEP/2010 Escolas Públicas e Privadas, sobre a educação do campo,
apresentou no documento do Programa Nacional de Educação do Campo/
PRONACAMPO/2012, que: das 54.405 escolas existentes em área rural brasi-
leira, 71,37% possuem turmas multisseriadas e representam 22,8% das matrí-
culas totais no campo.
O financiamento do Governo Federal aos programas e projetos específi-
cos para a educação do campo é recente e as ações em desenvolvimento
buscam avançar no sentido da ampliação da oferta do ensino médio com
qualificação profissional, voltada para as necessidades do campo, assim como
da educação integral para os primeiros anos do ensino fundamental. Nesta
perspectiva, em- bora se considere a universalização do acesso ao ensino
fundamental uma re- alidade em todo o Brasil, em geral, nas áreas rurais,
são ofertados apenas do primeiro ao quinto anos e, para prosseguir, os
estudantes precisam se deslocar à sede de municípios próximos de onde
residem. Esse é o motivo que, aliado a tantos outros, eleva os índices daqueles
estudantes que desistem da escola sem completar seus estudos. Assim,
confirma-se com Leite (2002) que, historica- mente, a educação sempre foi
negada ao povo brasileiro e, especificamente, ao homem do campo. Dessa
maneira, a educação do/no campo reflete o descaso do Estado em promover
uma política de educação realmente eficaz e adequada ao povo que vive no
meio rural.

Recorte histórico de lutas pela terra e algumas


conquistas para a educação do campo no
Brasil

A periodização no estudo histórico contribui para compreensão do


ob- jeto estudado e, de acordo com Saviani (2007, p.12), trata-se de uma
“questão teórica que se põe para o historiador ao enfrentar a tarefa de organizar
os dados visando explicar o fenômeno que se propôs investigar”. Periodizar
6 6
serir cortes no tempo histórico a partir de categorias que permitam certa gene-
ralização dentro do recorte temporal construído teoricamente. Na história
da educação, entre outras possibilidades, toma-se como parâmetro os recortes
po- líticos, analisando a educação no período colonial, no Império e na
República. Nesse texto, adotaremos esse recorte, tratando, primeiramente, do
período co- lonial (1500-1822) e imperial (1822-1889) e, num segundo
momento, do pe- ríodo republicano (a partir de 1889). Serão abordados os
principais elementos que ajudam na compreensão da posse da terra no Brasil e
o cenário educacional brasileiro em cada contexto, visando possibilitar a
problematização da exclusão da maioria da população do país no que se
refere a esses direitos.

O período colonial e imperial

A invasão do Brasil pelos portugueses, em 1500, deixou um saldo


de exploração, tanto das riquezas quanto dos índios, povos nativos habitantes
das terras brasileiras, cuja força de trabalho era trocada por “bugigangas”.
Inicial- mente, a exploração da força de trabalho dos índios e depois dos
africanos e dos imigrantes pobres que chegavam da Europa e do Oriente e,
posteriormente, o processo de expulsão dos índios de suas terras, o
massacre e o extermínio. Segundo Carvalho (2008, p.18), “o efeito imediato
da conquista foi a domina- ção e o extermínio, pela guerra, pela escravização
pela doença, de milhões de indígenas”.
No percurso histórico do Brasil, conforme já apresentado
anteriormente, percebe-se o processo de exclusão social, econômico, político e
cultural, cuja dis-

6 6
cussão, ainda, no momento atual oferece acentuada resistência por parte da so- Constituição. (Marcelo Pellegrini — publicado 06/01/2015 09h17 in Carta Capital).
ciedade neoliberal22, isto porque existem os que se beneficiam com essa exclusão.
Sem dúvida, um dos traços mais marcantes do sistema produtivo bra-
sileiro é a extrema desigualdade na divisão das terras adequadas à agricultura.
A maior parte do território ocupado para este fim encontra-se concentrado
num pequeno grupo de proprietários, que, muitas vezes, não os utilizam para a
produção, mantendo enormes faixas de terras ociosas ou improdutivas 23, con-
trastando com grande quantidade de pequenos proprietários, ou trabalhadores
rurais sem-terra que, restritos a áreas ínfimas, não conseguem, muitas vezes,
produzir nem o suficiente para a própria alimentação, somando-se a esta situ-
ação o fato de que os maiores investimentos e os melhores solos encontram-se
hoje voltados para a produção, visando à exportação ou a produção de matérias
primas industriais. Essa realidade ressalta a gravidade do problema, não só
pelas cotidianas notícias de conflitos pela posse da terra no meio rural, em
movimen- tos que tomam as ruas em passeatas, exigindo igualdade e justiça
social.

22 De acordo com Anderson (1995), o neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra


Mundial. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-
estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944.
Trata-se da defesa do “Estado mínimo”, com o ataque contra qualquer limitação dos
mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça à liberdade, não
somente econômica, mas também política. A hegemonia neoliberal levou mais de duas décadas
para se consolidar. Ao final da década de 1970, surgiu a oportunidade na Inglaterra, com a
eleição do governo Thatcher, primeiro país capitalista empenhado em colocar em prática o
programa neoliberal. Em 1980, foi a vez dos Estados Unidos, com Reagan na presidência.
Progressivamente esses ideais foram se espalhando pelo globo terrestre. Pierre Bourdieu, em
artigo publicado pelo jornal francês Le Monde Diplomatique, o programa neoliberal “tende
globalmente a favorecer a ruptura entre a economia e as realidades sociais”. Seria “um programa
de destruição metódica do coletivo”, isto é, de “todas as estruturas coletivas capazes de interpor
obstáculo à lógica do mercado puro”, tais como as nações, cuja margem de manobra não para de
diminuir; os grupos de trabalho (mediante, por exemplo, a individualização de salários e
carreiras em função de competências individuais, com a consequente atomização dos
trabalhadores); os coletivos de defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações,
cooperativas; a própria família, que, através da constituição de mercados por classes de idade,
perde uma parte do seu controle sobre o consumo. Le Monde Diplomatique (1997)
23 De acordo com o INCRA., 40% das grandes propriedades brasileiras são improdutivas. As
grandes propriedades rurais improdutivas, consideradas por definição como latifúndio, não
apenas existem no Brasil, [...]. (2003-2010), os latifúndios ganharam 100 milhões de hectares.
Com isso, em 2010, as terras improdutivas representavam 40% das grandes propriedades rurais
brasileiras, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Ao todo, 228 milhões de hectares estão abandonados ou produzem abaixo da capacidade, o que
os torna sem função social e, portanto, aptos para a reforma agrária de acordo com a

6 6
Evidentemente, reduzir a discussão a um jogo entre bandidos e trabalhadores. Não seria possível para pequenos proprietários individualmente
moci- nhos significa simplificar um problema grave que se estende desde o porque dependeriam de
período colonial e que não é uma exclusividade brasileira, situação que torna
evidente a luta de classes como uma característica do campo. Ao longo da
história do Brasil, a concentração da propriedade das terras a um reduzido
grupo, contras- tando com a situação de penúria da grande maioria da
população, foi marcada por conflitos que têm características distintas em
cada período.
Assim, discutir a questão da terra implica em principiar com a chegada
dos portugueses ao Brasil. A apropriação do território e a colonização dava-
lhes a chance de realização das esperanças e seus desejos de enriquecimento,
nessas novas terras, pela exploração dos mais variados tipos de produtos,
iniciando com o pau-brasil.
As capitanias hereditárias, instituídas em 1530 pelo Rei de Portugal, D.
João III, se constituíram a primeira divisão das terras no Brasil e foram entre-
gues a doze donatários. Pelo sistema de sesmarias, o pedaço de terra
devolvido ou abandonado, durante o Brasil Colônia, era doado aos
donatários que pas- savam a ter a confiança do Rei, porém não estavam
isentos do pagamento dos impostos e podiam permitir o cultivo pelos
colonos, para que os tornassem novamente produtivos e, assim,
promovessem o progresso da agricultura. Ini- cia-se, então, uma história de
concentração de terra e submissão de trabalhado- res, resultando em
escravização e proletarização no campo brasileiro, com um agravante de
discriminação, pois só podiam receber terras os que não fossem índios,
negros, hereges, mouros ou judeus.
Prado Junior (1976) se refere aos investimentos para melhor conhecer a
terra, dos quais se concluiu propícia à produção da cana-de-açúcar e a Europa
seria o grande mercado comprador do produto.

[...] sobravam terras e as ambições daqueles pioneiros


recrutados a tanto custo, não se contentariam evidentemente
com proprie- dades pequenas; não era a posição de modestos
camponeses que aspiravam o novo mundo, mas de grandes
senhores latifundiários.

A cultura da cana somente seria economicamente viável e rentável se


ex- plorada em grandes plantações e, para trabalhar o terreno no meio
tropical, vir- gem e hostil ao homem, seria necessário reunir muitos

6 6
recursos para a plantação, a colheita, e o transporte do produto até os engenhos 75).
onde se preparava o açúcar. Portugal não enviou mão de obra e, para suprir
a falta, os índios foram escravizados e “caçados” de forma violenta; passaram
a viver em vilas, obrigados a se dedicarem ao trabalho disciplinado
rigorosamen- te, sofriam castigos, eram coagidos e aculturados pelos costumes
e tradições da cultura europeia. Nesse período, o desenvolvimento da pecuária
foi favorecido pelas necessidades de tração animal para o engenho, atividade
fortalecida, mais tarde, com a descoberta do ouro e de diamantes, fato que
deixou a exportação do açúcar para segundo plano.
Algumas Ordens Religiosas atuaram no período da colonização e a he-
gemonia foi da Companhia de Jesus (padres jesuítas)24. Durante dois séculos,
os povos indígenas sofreram intervenção em sua cultura, modo de viver do seu
povo, seus costumes e valores, sempre expropriados de suas terras, dizimados
pelas doenças e pelas guerras. Só em meados do século XVIII foi abolida a
escravidão dos índios, porém, ainda se manteve por muito tempo a prática
da escravização em alguns lugares, a exemplo de São Paulo, à época dos
bandei- rantes. Segundo BERGER (1976), a chegada dos jesuítas em 1549
pode ser considerada o início da educação escolar e durante mais de dois
séculos eles foram os únicos educadores no Brasil.
A Revolução Industrial, na Europa, impulsionou o Brasil a investir
na cultura do algodão. Neste mesmo período, o tabaco e a cachaça passaram a
ser cotados como produtos para exportação. A cultura do café chegou ao
Rio de Janeiro em 1760 e foi um ciclo produtivo que marcou a estrutura
econômica e social do país, expandindo-se rápida e largamente, consolidando
importantes aspectos da organização fundiária do Brasil. A produção
combinou a extensão da propriedade da terra e sua ocupação, força de
trabalho dos escravos e dos imigrantes europeus, a organização em colonato,
assim como fez surgir a orga- nização dos trabalhadores no ciclo do café.
O Brasil possuía a maior reserva de seringueiras nativas do mundo
e, em 1823, iniciou a exportação, mantendo-se no auge por 20 anos e, em
1919, encerrou seu ciclo de exportação. Fazem parte, também, deste cenário
de pro- dução o cacau (1825-1935) e a própria cana de açúcar que, em função
da orga-

24 Conforme Gadotti (1995), os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, foram expulsos em


1759, retornando em 1847. Sua ordem tem como objetivo a educação da juventude católica,
a Ratio Studiorum é o plano de estudos, de método e a base filosófica dos jesuítas,
representando o primeiro sistema organizado de educação católica. (GADOTTI, 1995, 72-

7 7
nização da produção agrícola brasileira, entrou, mais tarde, no mesmo trabalho, o homem do campo se aliou ao movimento social camponês,
processo de crise e decadência’ (PRADO JUNIOR. São Paulo, 1976). conforme o seu seg- mento (posseiro, arrendatários, boias-frias, sem terra...),
O advento da Lei Áurea, que aboliu a escravatura em 1888 (embora por questões inerentes ao acesso à terra e às dimensões ligadas ao trabalho.
não tenha provocado transformações para efetivamente melhorar as condições Foram muitos os embates
dos negros), o início da vinda de imigrantes europeus, a suspensão da lei das
Capi- tanias e a lei que deu obrigação legal de ocupação dos territórios,
provocaram a ampliação dos domínios de terra e criaram enormes latifúndios,
cuja presença e atividade de outros colonos só eram admitidas na forma de
dependência. Esta situação corroborou ainda mais com a exclusão e a
marginalização da maioria da população, o que já era uma realidade
construída pela colonização e pela organização da economia brasileira, em
seus diferentes ciclos.
Assim, para entender o problema da concentração das propriedades ru-
rais, chama-se novamente a atenção para o seu percurso histórico e como
ele vem se desenvolvendo ao longo do tempo, de que forma os diferentes
grupos sociais o perceberam e, que tipos de discursos fizeram a respeito. Isso
nos permi- te avaliar com maior coerência as vozes e as práticas que se
levantam hoje para defender ou criticar a existência das grandes
propriedades rurais.
A pequena propriedade é produto da luta de classes travada sempre
em desigualdade de condições entre camponeses sem terra e a classe
latifundiária.
Conforme Guimarães (2008), essa luta que aparece no Brasil

[...] em forma inversa, com a grande propriedade implantada


primeiro e a pequena propriedade surgida depois, o
instrumen- to decisivo da vitória dos sem terra sobre o
privilegiado sistema latifundiário foi a posse, a ocupação extra
legal do território con- quistado na dura e continuada batalha
contra os seus seculares monopolizadores.
[...] A ocupação extra legal (...) foi o instrumento que abriu
ca- minho à pequena propriedade em nosso país; foi ela o
preceden- te histórico que tornou possível a existência em bases
estáveis [...] das unidades agrícolas menores, cultivadas pelos
camponeses com a ajuda de suas famílias. (GUIMARÃES,
2008, p. 151).

A história mostra que, do ponto de vista dos camponeses, a partir


das lutas e resistências para não se submeter à exploração de sua força de

7 7
com que a organização dos trabalhadores se defrontou neste processo de cons- de monitorial ou lancasteriano (NEVES, 2003), se baseava no aproveitamento dos alunos mais
adiantados como auxiliares do professor no ensino de classes numerosas.”
trução das lutas por mudanças nas condições sócio- econômicas e políticas.
No que se refere ao campo educacional, mesmo reconhecida a
origem agrária do Brasil, a educação rural não foi citada nas constituições
de 1824 e 1891, deixando claro o descaso dos dirigentes com a necessidade
de oferta da educação formal aos povos do campo, assim como ‘‘os resquícios
de ma- trizes culturais vinculadas a uma economia agrária apoiada no
latifúndio e no trabalho escravo’’. (Parecer MEC/CNE nº02. 2001) A
primeira Constituição somente tratou da educação escolar nos aspectos de
garantia da gratuidade da instrução primária e à criação de Colégios e
Universidades.
Em 1826, os parlamentares promoveram debates sobre a educação po-
pular e, em 15 de outubro de 1827, a Assembleia Legislativa aprovou a
primeira lei sobre a instrução pública nacional do Império do Brasil,
definindo que em todas as cidades, vilas e lugares populosos haveria as
escolas de primeiras letras e que os presidentes de província definiriam os
ordenados dos professores; as escolas deviam ser de ensino mútuo 25; os
professores que não tivessem formação para ensinar deveriam providenciar e
custear a necessária preparação em curto prazo; determinava ainda, os
conteúdos das disciplinas. De acordo com Saviani (2007), se essa lei tivesse
conseguido efetivar a criação das escolas elementares, teria dado origem à um
sistema de ensino no Brasil, porém, isso não aconteceu. Em 1834, o Ato
Adicional desobrigou o governo central de cuidar das escolas primárias e
secundárias e transferiu essa responsabilidade para as províncias, o que,
segundo o mesmo autor, significou a legalização da omissão do poder
central com a educação no país. As províncias criaram leis incoerentes sobre a
instrução pública, que não se efetivavam sob a alegação de falta de recursos.
Portanto, na primeira metade do século XIX, “a instrução pública caminhou a
passos lentos” (SAVIANI, 2007, p. 131),
Em 1854, foi baixado o Decreto 1331-A, em 17 de fevereiro, que apro-
vava o “Regulamento para a reforma do ensino primário e secundário no mu-
nicípio da Corte”, a Reforma Couto Ferraz. Circunscrita às escolas da
Corte, contemplava elementos relacionados às províncias e era referência
para elas.
25 De acordo com Saviani (2005, p. 8), o método de ensino mútuo “se tornou oficial no Brasil
com a aprovação da lei das escolas de primeiras letras, de 15 de outubro de 1827, ensaiando-se
a sua generalização para todo o país. Proposto e difundido pelos ingleses Andrew Bell, pastor da
Igreja Anglicana e Joseph Lancaster, da seita dos Quakers, o método mútuo, também chamado

7 7
Apesar de colocar a obrigatoriedade do ensino primário, isso não se efetivou
(SAVIANI, 2007). É importante destacar nessa reforma o, o artigo 69,
que proibia a matrícula e a frequência às aulas dos “meninos que padecerem
molés- tias contagiosas, dos que não tiverem sido vacinados e dos escravos”
(BRASIL, 1854). Portanto, a legislação brasileira explicitava a exclusão da
população ne- gra e, somente em 1879, essa proibição foi retirada pela
Reforma Leôncio de Carvalho (Decreto 7.247, 19 de abril de 1879).
A Constituição de 1891 manteve a dualidade dos sistemas de ensino,
fi- cando o ensino secundário e superior para a União, mantendo a
responsabilidade da educação primária para os estados. O pioneiro nas
reformas de ensino foi o Estado de São Paulo, com a Reforma Caetano de
Campos, direcionada à Escola Primária e à Escola Normal. Por meio do
Decreto N° 144B, de 30 de dezembro de 1892, foi determinada a reforma
geral da instrução pública, estabelecendo a organização dos grupos escolares,
cujo modelo se disseminou pelo país, consti- tuindo uma escola “mais eficiente
para o objetivo da seleção e formação das elites. A questão da educação popular
não se colocava” (SAVIANI, 2007, p. 174).

O período republicano

A manifestação de atenção sobre a educação rural nas leis brasileiras só


teve início, embora de maneira tímida, no século XX, quando ocorreram
inten- sivos debates a respeito da importância da educação, com o objetivo
de conter o movimento migratório e elevar a produtividade no campo.
Na década de 1920, emerge o Ruralismo Pedagógico, definido por Pal-
meira (1990, p.32) como um “movimento que objetivou despertar o amor
ao campo junto às populações rurais, e conter a migração rural-urbana”. Para
Silva (2006, p. 68), trata-se de um:

Discurso pedagógico que atribui a falta de desenvolvimento do


campo à não fixação do homem à terra e à situação das
escolas rurais, como uma situação predominantemente cultural,
portan- to, a escola teria o papel de realizar uma mudança no
campo tirando-o do atraso e da ignorância, impedindo assim a
migração de sua população para a cidade.

É importante destacar que o objetivo não era de transformar a


diferen- ça do homem do campo em oportunidades, o que seria saudável e
educativo,
7 7
mas tratava-se de “[...] uma escola integrada às condições locais, regionalista, Escolas do Campo.].
cujo objetivo maior era promover a fixação do homem no campo [...]” (MAIA,
1982). Nesse contexto, foi realizado o 1º Congresso de Agricultura do Nor-
deste Brasileiro (1923), onde foi discutida a importância dos Patronatos 26, que
deveriam priorizar, em suas pautas, as questões agrícolas e discuti-las minucio-
samente, numa perspectiva salvacionista 27 para beneficiar o controle pretendido
pelas elites, em relação aos trabalhadores. Os patronatos seriam as instituições
voltadas ao atendimento aos menores pobres das regiões rurais e aos da
área urbana, desde que mostrassem interesse e habilidade para a agricultura.
Essa prerrogativa de fixação do homem no campo se modifica na
década de 1930, diante das transformações econômicas do país:

Neste período explodia a ideologia do colonialismo que


defendia as virtudes do campo e da vida campesina, mascarando
o esva- ziamento populacional das áreas rurais. Contava também
com o apoio de segmentos das elites urbanas que, para evitar a
explosão das cidades, defendiam a fixação do homem no campo.
Esta ten- dência desapareceria na década de 30, por conta das
exigências econômicas do modelo agroexportador, das
tendências escola- novistas e progressistas em educação e das
tendências sociais e políticas urbanizantes. (LEITE, 1999).

Tratava-se da transição do modelo agrário-exportador para o modelo


urbano-industrial, que, na educação, vai contribuir para consolidar o movi-
mento renovador, que preconizava não ser suficiente expandir a educação, mas
substituir o modelo tradicional pela pedagogia nova, centrada no aluno,
que seria a ‘‘nova bússola’’ da educação, sendo necessário conhecê-lo para
definir o melhor caminho pedagógico, que deveria substituir a ‘‘hierarquia
econômica’’
26 A discussão do Patronato estava associada à garantia, em cada região agrícola, de uma
poderosa contribuição ao desenvolvimento agrícola e, ao mesmo tempo, à transformação de
crianças indigentes em cidadãos prestimosos.
27 “A perspectiva salvacionista dos patronatos prestava-se muito bem ao controle que as elites
pretendiam exercer sobre os trabalhadores, diante de duas ameaças: quebra da harmonia e da
ordem nas cidades e baixa produtividade do campo. De fato, a tarefa educativa destas
instituições unia interesses nem sempre aliados, particularmente os setores agrário e industrial,
na tarefa educativa de salvar e regenerar os trabalhadores, eliminando, à luz do modelo de
cidadão sintonizado com a manutenção da ordem vigente, os vícios que poluíam suas almas.
Esse entendimento, como se vê, associava educação e trabalho, e encarava este como
purificação e disciplina, superando a idéia original que o considerava uma atividade
degradante.” [PARECER Nº 36/2001. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas

7 7
pela ‘‘hierarquia das capacidades’’ (MANIFESTO, 2006), direcionando cada
indivíduo para a vida social de acordo com seus interesses e aptidões,
aferidos, principalmente, pelos testes psicológicos. O que permitia controlar o
acesso à educação. A Reforma Francisco Campos de 1931 contemplou o
ensino supe- rior e o secundário, para o qual a reforma trouxe organicidade,
estabelecendo o currículo seriado e a freqüência obrigatória. O curso foi
dividido em duas partes, sendo o fundamental, com duração de cinco anos,
que exigia a aprova- ção, no exame de admissão, daqueles que pretendiam
freqüentá-lo; e o comple- mentar, de dois anos. Até a Lei 5692/71, a
passagem do ensino primário para o secundário exigia esse exame de admissão,
o que representava a seleção dos mais ‘‘capazes’’, o que excluía grande parte da
população da continuidade de estudos, entre aqueles poucos que conseguiam
acessar o ensino primário.
De acordo com Rafante (2011), a Constituição de 1934 definia
que a União deveria fixar o Plano Nacional de Educação, cuja elaboração
deve- ria garantir o ensino primário gratuito, com frequência obrigatória,
porém, a educação era um direito natural dos pais, cabendo ao Estado
colaborar na sua execução, o que eximia a responsabilidade da União, cuja
interferência só se daria em relação àqueles sem condições financeiras, para
os quais era destinada uma educação para a preparação para o trabalho. Nos
termos da lei: ‘‘a educação física, o ensino cívico e o de trabalhos manuais
serão obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias’’
(BRASIL, 1937).
Na década de 1940, foram promulgadas as Leis Orgânicas do
Ensino, que contemplou os níveis e modalidades de ensino em legislação
distintas, frag- mentando a unidade educacional e reforçando a dualidade do
ensino no Brasil. De acordo com Schwartzman:

O sistema educacional deveria corresponder à divisão


econô- mico-social do trabalho. A educação deveria servir ao
desen- volvimento de habilidades e mentalidades de acordo
com os diversos papéis atribuídos às diversas classes e categorias
sociais. Teríamos, assim, a educação superior, secundária,
primária, profissional e a educação feminina; uma educação
para a elite da elite, uma outra para a elite urbana, outra para os
jovens que comporiam o ‘‘exército de trabalhadores
necessários à utilização da riqueza potencial da nação’’ e
outra ainda para as mulheres (SCHWARTZMAN et al.,
1984, p. 189).

7 7
De acordo com Rafante (2011), havia uma distinção entre o ensino nham como finalidade, formar técnicos para a indústria (a utilização de mão de
se- cundário e os demais ramos do ensino médio: ensino industrial, obra barata para o processo de industrialização que se intensificava e
agrícola ou comercial, que preparava para o trabalho. O primeiro era o ampliação do consumo). Foi a partir desta década que muitas escolas
único que possi- bilitava o acesso à universidade. Os alunos que não situadas nas áreas rurais foram desativadas e seus prédios abandonados. A
conseguiam aprovação no exame admissional para o secundário, tinham escola no Brasil, histo- ricamente, produziu um quadro de exclusão das
como único caminho o ensino profissional. Nesse contexto, foram criados o camadas baixas da sociedade. De acordo com Castro (2003), além da escola da
Serviço Nacional de Aprendiza- gem Industrial (SENAI)e o Serviço Nacional segunda metade do século XX ser excludente.
de Aprendizagem Comercial (SE- NAC). Na conferência de abertura do
SENAI, o então ministro da Educação, Gustavo Capanema, destacou que a [...] não se tornou uma instituição democrática. Ela não é
estratificação educacional deveria se basear em critérios meritocráticos e a aces- sível a todas as classes sociais [...]. Exige, portanto, que
educação profissional deveria ser destinada aos mais pobres. eles (os alunos) percebam o sentido de suas atividades e
respondam a suas demandas [...] demonstra que é uma
Constata-se, portanto, que o modelo de educação praticado no Brasil
instituição burguesa, pois opera um modelo elitista ajustado
pelos diferentes governos entre o início do Império (1822) até meados do sé- apenas à realidade[...] de- monstra que é uma instituição
culo XX, era uma educação para a elite econômica e intelectual, em prejuízo burguesa, pois opera um modelo elitista ajustado apenas à
direto e indiscriminado dos pobres, negros e índios, sujeitos que constituíam realidade das classes privilegiadas (Cas- tro. 2003,p.29).
a força de trabalho e a quem era dirigida apenas a exploração, o massacre
e, quando havia interesse da elite dominante, treinamento para o trabalho, Não obstante a manutenção da educação burguesa na segunda metade
inclusive o trabalho agrícola, já que o ensino agrícola se constituiu numa do século XX, há modificação no cenário da educação do campo nesse
modalidade educacional. contexto. A partir dos anos 1960, a Igreja se voltou para a organização e
Na década de 1950, segundo Medeiros (1989) e Damasceno (1990), mobilização, assu- mindo importância fundamental, também na organização da
havia por parte da Igreja28, uma preocupação com a situação dos trabalhadores formação, criando o Movimento de Educação de Base (MEB), que atuou por
rurais e sua relação com estruturas sociais injustas. Em setembro de 1954, mais de duas décadas, tendo sua proposta e prática educativa modificadas,
na II Assembleia Geral da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do principalmente, em função das mudanças políticas ocorridas no país, com o
Brasil), realizada em São Paulo, foi debatida a problemática da terra e, em Golpe Civil Militar, em 1964, e instalação da ditadura, que se mantém até
um novo documento, a igreja saiu em defesa da reforma agrária. Uma 1985. Nessa mesma década, a CON- TAG (Confederação Nacional dos
proposta que de- fendia, por exemplo, que a responsabilidade pela reforma Trabalhadores na Agricultura), a CPT (Co- missão Pastoral da Terra) e o MST
agrária seria tanto dos setores latifundiários quanto do Estado. (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) se constituíram em
Ao adentrarmos a década de 1960, a educação entrou em processo importantes espaços de organização dos camponeses.
de universalização para atender as novas necessidades da economia. As Em outubro de 1961, a CNBB, em reunião extraordinária para debater a
escolas, então públicas, atendendo também aos pobres, à classe trabalhadora, reforma agrária, conclama o apoio da Ação Católica Rural, a Juventude
agora ti- Agrária Católica (JAC) e da Liga Agrária Católica (LAC) em defesa da
sindicalização rural, da modernização e desenvolvimento do campo e do uso
28 Em setembro de 1950, a Igreja Católica torna público o seu primeiro documento discutindo
a questão da terra no Brasil. Foi um documento elaborado por Dom Inocêncio Engelke - Bispo
dos rádios trans- missores na divulgação das ações da JAC, como forma de se
de Campanha – MG e apresentada na Primeira Semana Ruralista. Dizia o documento que contrapor às Ligas Camponesas e ao comunismo (BALDUÍNO, 2006). A
a Igreja já havia perdido os operários e não poderia perder os camponeses. Este documento iniciativa ampliada para outros estados fez surgir vários organismos,
descreve a situação de pobreza a que os camponeses estavam submetidos e incita a Igreja para
destacando-se o MEB (Movimento de Educação de Base), destacando-se,
que ela lidere um grande movimento para melhorar a vida destes trabalhadores, pois, do
contrário, estas pessoas, poderiam ser “vítimas de revolucionários” (BALDUÍNO, 2006). também, os Centros Populares de Cultu- ra (CPCs) e os Movimentos de

7 7
Cultura Popular, ligados à Igreja.

7 7
Em 1961, ocorreu o advento da Lei de Diretrizes e Bases da vários idiomas. Algumas de suas principais obras: Educação como Prática da Liberdade,
Pedagogia do Oprimido, Cartas à Guiné Bissau, Vivendo e Aprendendo e a Importância do Ato
Educação, Lei nº 4.024/61, que determinava em seu Titulo III, Art. 32,
de Ler.
que:

Os proprietários rurais que não puderem manter escolas primá-


rias para as crianças residentes em suas glebas deverão facilitar-
-lhes a frequência às escolas mais próximas, ou propiciar a insta-
lação e funcionamento de escolas públicas em suas propriedades
(BRASIL, 1961).

A preocupação, à época, não era com a universalização da educação


e nem favorecer os camponeses com o direito à educação. O país estava em
de- senvolvimento industrial e as diretrizes dadas às escolas primárias das
proprie- dades rurais tinham a intenção de que ocorresse o aproveitamento,
posterior, nas indústrias instaladas nas cidades. O campo, enquanto espaço de
luta, nesse contexto, passa a uma nova amplitude, identificada como
dimensão educati- va. A ação dos Movimentos Sociais estava focada na
perspectiva de ampliar, permanentemente, o projeto social para superação das
condições de vida e de trabalho, num constante desafio para a manutenção
dos coletivos centrados e atuantes na luta por direitos.
Paulo Freire29, o percussor da Pedagogia Libertadora, em 1962, realizou
suas primeiras experiências educacionais em Angicos-RN, alfabetizando 300
trabalha- dores em 45 dias. Participou ativamente do Movimento de Cultura
Popular de Recife, teve as atividades interrompidas com o golpe militar de 1964
e ficou exilado no Chile por 14 anos. Freire afirmava que o homem tinha
vocação para “sujeito da história e não para objeto”, porém o povo brasileiro era
vítima do autoritarismo e do paternalismo correspondente à sociedade herdeira
de uma tradição colonial e escravista. Neste sentido, a pedagogia deveria forjar
uma nova mentalidade, traba- lhar para a conscientização do homem brasileiro
frente aos problemas nacionais e engajá-lo na luta política. (GHIRALDELLI
JÚNIOR, 1991, p. 122).
No entanto, o Golpe Civil Militar representou um momento de
grande repressão política e a questão da terra era assunto de segurança
nacional, pois um dos principais argumentos era a contenção do avanço do
comunismo. Nes- te sentido, a simples menção em defesa da reforma agrária
pelos movimentos de

29 Paulo Reglus Neves Freire, educador popular brasileiro, nasceu no dia 19 de setembro
de 1921, no Recife, Pernambuco. Publicou várias obras que foram traduzidas e comentadas em
7 7
trabalhadores já era considerada, pelos militares, uma proposta comunista, resultem em mudanças de comportamento dos indivíduos que compõe a população rural.
(EMATER-MG apud PORTILHO, 1998, p. 11-12)
que colocava em risco o direito de propriedade. Neste período, as
organizações de trabalhadores do campo passaram por forte repressão, com as
intervenções em sindicatos, Federações, Confederações e nas Ligas
Camponesas. As resistências que insistiram em continuar foram
violentamente caladas e as manifestações públicas e abertas foram se
reduzindo drasticamente ou mesmo desaparecen- do, juntamente com as
entidades criadas pelos camponeses. Segundo Medeiros (1990), os sindicatos
que sobreviveram se tornaram assistencialistas; trabalha- vam dentro das
possibilidades existentes; o acesso aos conhecimentos esclare- cedores de
entendimento sobre as questões político-agrárias foi censurado e proibido e os
dirigentes sindicais, pelo cerceamento “de direito” que o Estado lhe
outorgara, tornaram-se acomodados.
O Estado propôs o Estatuto da Terra, por meio da Lei nº 4.504, de
30 de novembro de 1964, que teve como objetivo promover e executar as
políticas agrícolas e a reforma agrária, ao modo do Estado militar recém
instalado, impe- dindo mudanças sociais e políticas, no Brasil. Apesar de
acenar para a reforma agrária, esta não foi realizada e os gestores do país
optaram por investir em pro- gramas de desenvolvimento na Amazônia,
frentes agrícolas no Centro-Oeste e na modernização da agricultura,
gerando, com estas políticas, uma forte mi- gração para as áreas
contempladas pelos programas e para os centros urbanos.
Durante a vigência da ditadura e com o atrelamento político ideológico
do regime ao capital transnacional e à hegemonia americana sobre o continen-
te, a escola do meio rural foi se modificando. Neste período, foram
extintos e proibidos os principais movimentos sociais e presos ou exilados os
seus líderes, a exemplo de Paulo Freire. As iniciativas de educação popular
foram desarticu- ladas. A alfabetização passou às mãos do Movimento
Brasileiro de Alfabetização
– MOBRAL e a Extensão Rural 30 ganha força, como instrumento de moderni-
zação das relações de produção no campo.

30 [...] assistência técnica conceitua-se como um tipo de assessoramento que se presta a


população rural na solução de problemas relacionados às atividades da produção agropecuária
e/ ou à gestão da empresa rural como um todo, quando esses problemas já foram identificados
pela população, que, entretanto, não conhece as melhores alternativas de solução.
[...] Extensão rural, por outro lado, é um processo de educação informal. Como tal, é um tipo de
ajuda que busca provocar mudanças no indivíduo que a recebe. As mudanças que a extensão
rural se propõe provocar, são, principalmente, mudanças em habilidades cognitivas, que

7 7
Ainda na ditadura, a organização da educação brasileira sofreu grandes MST31, em razão das necessidades enfrentadas nos acampamentos e assenta-
modificações com as Leis nº 5.540/68 e nº 5.692/71. Estas leis surgem mentos, a partir de 1985 até o final dos anos 1990. Observa-se que o
mais como forma de adequar a nova ideologia vigente, do que de fato criar cresci- mento dos movimentos do campo traz formas organizativas e
mecanis- mos significativos que favorecessem a educação. A escola rural, que dimensões de um Projeto Popular de desenvolvimento, que potencializa a
florescera no início da década, precisava ser apagada. A Lei 5692/71, a possibilidade de uma nova sociedade e se preocupa, também, com a formação
partir dos seus objetivos gerais e de caráter conservador dado à ênfase liberal, dos trabalhadores do campo e com novos desafios para os Movimentos Sociais
não trouxe, de fato, novidades transformadoras. A Lei, pelo contrário, Populares do Campo
acentuou as divergên- cias sociopolíticas existentes na escolaridade do povo - MSPdoC. Neste sentido, um dos movimentos é o movimento das mulheres 32,
brasileiro e consagrou o elitismo que sempre esteve presente no processo apoiado pelas organizações em defesa dos direitos dos trabalhadores do campo.
escolar nacional. De acordo com Leite (1999, p. 46), [...] a Lei 5.692, Vale salientar, porém, que a presença de mulheres nas lutas sociais do
distanciada da realidade sociocultural do campesinato brasileiro, não campo não é fato recente no Brasil. Segundo GRZYBOWSKI (1991),
incorporou as exigências do processo escolar rural em suas orientações
fundamentais. [...] novo, sim, é um movimento organizado em favor das
Durante todo o governo militar e até o início da nova República suas reivindicações, na condição de mulheres trabalhadoras
(1985), o que se constatou, na zona rural, foram políticas de ensino, rurais” ou “mulheres agricultoras”., [...] lutas estas centradas no
reconheci- mento social e legal de sua situação como mulheres e
enquan- to a educação, somente foi tratada na Constituição Federal de
trabalha- doras, direito à sindicalização, à terra, à previdência
1988, embora não como educação do/no campo, mas como ensino com social, etc. (GRZYBOWSKI, 1991, p.47).
oferta obrigatória a todos.
A Nova República é um período da História do Brasil que tem início No movimento camponês, partindo dos próprios camponeses,
com o final da Ditadura Civil Militar (1985) e a entrada de um civil na podem ser visualizadas questões bem concretas e objetivas em relação à sua
presi- dência, regime que se estende até os dias de hoje. Um novo período prática, muitas vezes, em contraponto com os grandes ideais das lutas e
democráti- co que se inicia em oposição ao antigo governo, que representava a revoluções. Isso gera certa dicotomia entre o que o camponês pensa
censura, fal- ta de democracia e repressão aos movimentos sociais. Neste realmente e o que outras pessoas acreditam que ele pensa ou quer; e ele não
período, o conflito pela terra se agrava com assassinatos de trabalhadores e pensa sempre e somente na Reforma Agrária. O processo de luta do camponês
lideranças. De um lado, os agricultores sem terra organizados em não é só pela terra, mas pela
movimentos, e do outro, também organizados, os latifundiários.
Em 1985, acontece o I Congresso Nacional do Movimento Sem Terra e 31 O MST, específico da organização dos camponeses, nasceu no Encontro Nacional realizado
em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel – PR que contou com a participação de
neste mesmo ano é criado o Plano Nacional da Reforma Agrária – PNRA. A representantes de 13 estados. De certa forma, o MST sintetiza o movimento de luta por terra
re- ação dos latifundiários foi a fundação da União Democrática Ruralista – e trabalho no campo.
UDR, que se expande rapidamente pelo país, fortalecendo e organizando a 32 Anualmente as mulheres agricultoras realizam a Marcha das Margaridas para reivindicar
seus direitos. O nome e a data da marcha é uma homenagem à Margarida Maria Alves,
violência no campo e incutindo entre os pequenos e médios proprietários o
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba,
discurso ide- ológico de que eles, também, enquanto grandes proprietários assassinada em 12 de agosto de 1983, a mando de latifundiários da região. Ela atuou por
rurais e filiados à UDR, estariam aprovando a desapropriação de áreas mais de dez anos à frente do sindicato, lutou pelo fim da violência no campo, por direitos
produtivas. Várias formas de organização surgiram dentro dos próprios trabalhistas como: respeito aos horários de trabalho, carteira assinada, 13º salário, férias
remuneradas. O Caderno de Pauta de Reivindicações da Marcha das Margaridas, entregue ao
movimentos, principalmente do Governo Federal e ao Congresso Nacional, resulta de discussões coletivas promovidas pela
Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais (Contag), em parceria com a Marcha Mundial
das Mulheres, Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Movimento Articulado de
Mulheres da Amazônia (Mama), Movimento Interestadual de Mulheres Quebradeiras de Coco
8 8
Babaçu, União Brasileira de Mulheres, entre tantas outras parceiras” (Agência Brasil-
12/08/2015)

8 8
geração de condições de vida digna no campo. Nesse contexto, estão os população
proces- sos formais de educação que se dão por meio da escola e pelos quais
afloram no- vas perspectivas de luta, pela igualdade de oportunidade de
exercer plenamente seus direitos de cidadania, prova inconteste de que os
movimentos se ampliam e apontam para outras questões, além da terra,
salário e produção.

O ensino formal em espaços educativos e escolas no campo

A educação, conforme visto anteriormente, ofertada aos povos do cam-


po, praticamente não existia, nem fazia parte dos interesses do poder
público. Quando citada pela legislação brasileira, apenas aparecia como
proposta assis- tencialista ou compensatória, como educação instrumental
na qual o pensa- mento está a serviço de uma realidade, enfim, uma educação
de ordenamento social, conforme pensamento do sociólogo francês Tourraine:

[...] a escola devia transmitir conhecimentos, formar o espírito,


im- por disciplinas e fazer desaparecer as diferenças entre os
indivíduos em nome da uniformidade da norma, ou seja, pela
submissão de todos às formas de pensamento e de vida que
asseguram o sucesso da produção e compensam os melhores
(TOURAINE, 2006, p. 59).

O descaso com a educação dos povos do campo trouxe consequências


e deixou marcas constatadas, ainda hoje, na precariedade da oferta, no fun-
cionamento das escolas do campo, no que se refere à inadequação curricular,
dos espaços e da estrutura física; indisponibilidade de pessoal qualificado es-
pecificamente para o trabalho pedagógico; baixa remuneração dos professores;
dificuldades de deslocamento, tanto dos alunos quanto dos docentes; escassas
ou inexistentes oportunidades de formação profissional docente, tanto a inicial
quanto a continuada e tantas outras carências. As questões que fragilizam a
educação no meio rural são atribuídas ao pouco interesse dos [...] “dirigentes e
as matrizes culturais centradas no trabalho escravo, na concentração fundiária,
no controle do poder político pela oligarquia e nos modelos de cultura letrada
europeia urbanocêntrica” [...] (ROCHA, NOVAIS et. al. Texto Base – Educa-
ção do Campo: um olhar panorâmico).
A escola rural, a exemplo das outras escolas brasileiras, seguiu o mode-
lo excludente de desenvolvimento implementado no campo, com oferta
para atender à elite dominante, deixando à margem a maior parte da
8 8
rural, que era formada pelos negros, indígenas, trabalhador rural de ambos os UNEFAB e a Associação Regional das Casas Familiares Rurais - ARCAFAR, Movimento dos
Pequenos Agricultores - MPA, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Movimento das
sexos, considerando-se que, para desenvolver o trabalho na agricultura, não
Mulheres Camponesas – MMC.
precisava ser letrado.
A Constituição de 1988 não citou diretamente a educação do/no
campo, porém, o artigo 206 define claramente a ‘‘[...] igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola’’ e determina, no artigo
205, que a ‘‘educação, é direito de todos e dever do Estado e da família’’.
Apesar do que dita a Carta Magna, percebe-se, na prática, o descumprimento
da Lei, a exemplo do que se refere à igualdade de acesso; os currículos
praticados não atendem às especifi- cidades dos povos do campo e ainda
não foi superada a dificuldade do ajuste da organização escolar às
condições de vida e trabalho no campo. De fato, o que se constata em
leituras sobre o tema, é que a promulgação da Constituição de 1988 abriu
caminhos para a busca de direitos sociais que, historicamente, tinham sido
negados aos povos do campo. Neste sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/96, trouxe em seu texto al- guns
avanços e proporcionou conquistas voltadas às políticas educacionais para o
campo, mesmo que as entrelinhas da LDB escondam interesses políticos de
subordinação da educação a valores do capitalismo.
A função social da escola, enquanto formadora dos brasileiros para
o mercado de trabalho, se fortalece em detrimento da formação geral dos
indi- víduos. Essa foi, também, uma característica da educação voltada para
as áreas rurais, ou seja, uma vez colocada a serviço da produção agrícola,
adquire um papel utilitarista e de poucas possibilidades de transformação
social. Nessa li- nha, já no final da ditadura civil militar, no governo do
General João Batista de Figueiredo, a educação foi organizada a partir de um
Plano Setorial de Educa- ção, Cultura e Desporto. No entanto, mais uma vez,
a educação voltada para as populações rurais foi relegada ao descaso
político.
Os Movimentos Sociais Populares do Campo 33 tiveram um papel muito
importante, na correlação de forças, pois, desenvolveu inicialmente, um pro-
cesso formativo sindical voltado para a organização, reivindicação,
conquista e efetivação dos direitos de condições de vida digna no campo. A
evolução do conhecimento gerado desse processo fez eclodir as necessidades de
acesso à edu-
33 Alguns dos movimentos sociais organizados do campo que participaram do processo de
luta pela Educação do Campo: o MST, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura – CONTAG, a União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas no Brasil –

8 8
cação escolar formal. A CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores A ideia expressa pela LDB (Lei nº 9.394/96) sobre a oferta da educação
na Agricultura), a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e o MST (Movimento dos básica para meio rural não corresponde à compreensão dos movimentos sociais
Trabalhadores Rurais Sem Terra) se constituem em espaços de enorme impor- e dos parceiros que discutiram a educação do e no campo, principalmente
tância política para a organização e formação dos povos do campo. No âmbito em relação à preparação de mão de obra visando ao mercado de trabalho,
dos Movimentos Sociais e Organizações Populares, ao longo de suas histórias, a enquanto os movimentos sociais e academia entendem a educação do campo
educação do campo sempre esteve imbuída na perspectiva da luta por direitos. como mu- dança de sociedade e formação de sujeitos emancipados. É omissa,
Citando Arroyo (2005, p. 5), “[...] O direito à educação não acontece por si talvez de for- ma proposital, também, quanto à continuidade dos estudos dos
só. É um dos direitos mais entrelaçados com a totalidade da produção da exis- que concluem o ensino médio em escolas do campo, enquanto as pesquisas
tência. O direito à educação é inseparável da totalidade dos direitos humanos”. educacionais di- vulgadas indicam que um percentual significativo interrompe
A “mobilização e organização dos camponeses em Movimentos Sociais os estudos e são prejudicados pela ausência de políticas públicas de incentivo
que fortaleçam e identifiquem sua presença coletiva na sociedade”, foi citada ao ensino superior. A citada Lei, entretanto, proporcionou a abertura de
por CALDART (2002. p. 26), destacando a importância dos avanços conquis- precedentes legais, jurídi- cos e políticos para a implantação de uma educação
tados pelos movimentos sociais do campo a partir das discussões que respeitasse a identidade do homem e da mulher do campo.
empreendidas que apontaram as demandas por uma educação com objetivos No período de 1989-1994, se identifica, a partir das experiências de edu-
políticos e con- tributiva para a superação das desigualdades educacionais. cação não formal, a criação dos primeiros cursos formais direcionados para
A Igreja Católica, apoiada no Concílio Vaticano II e na Teologia da Li- camponeses na perspectiva dos Movimentos Sociais e Organizações Populares
bertação, assumiu posição de resistência e, com o apoio da Conferência Nacio- do Campo. Posteriormente, no período de 1995-1998, aconteceram várias ex-
nal dos Bispos do Brasil (CNBB) adotou a criação de várias organizações, den- periências e iniciativas de formação e educação no campo, dentre elas, a
tre elas a Comissão Pastoral da Terra (CPT) (MEDEIROS, 1989). Dos educa- ção formal pioneiramente desenvolvida pelo MST. Houve disputas por
orga- nismos ligados à Igreja, destacam-se, também, os Centros Populares de políti- cas públicas para a Educação do Campo, que passou a ser assim
Cultura (CPCs), as Escolas Radiofônicas, os Círculos Operários, as Frentes denominada a partir da Conferência Nacional por uma Educação Básica do
Agrárias e os Movimentos de Cultura Popular que contou com a Campo, realizada no período de 27 a 31 de julho de 1998, na cidade de
participação de Paulo Freire, educador com “prática pedagógica largamente Luziânia, em Goiás. Foram organizadores dessa primeira conferência: a
difundida na formação dos camponeses e outros segmentos de trabalhadores” Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Movimento dos
(SILVA, 2006). Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Universidade Nacional de
A LDB nº 9.394/96 aponta direcionamento específico à escola do Cam- Brasília, a UNICEF e a UNESCO.
po ao definir, em seu texto, que: A Educação do campo é prática constante do Movimento Sem Terra
que, mesmo sem infraestrutura, realiza seu trabalho educativo político-social
Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os
em acampamentos e assentamentos. Iniciou seu trabalho improvisando salas
sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
adequação, às peculiaridades da vida rural e de cada região, es- de aula em barracos cobertos de lonas, com bancos de madeira e, muitas vezes,
pecialmente: com os alunos sentados no chão, sob as sombras das árvores. O movimento
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais pela educação do/no campo se fortalece com a participação de
ne- cessidades e interesses dos alunos da zona rural; universidades e de setores burocráticos do Estado, reunidos em fóruns de
II - organização escolar própria, incluindo adequação do calen- discussão, a exemplo do Fórum Nacional de Educação do Campo.
dário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições
O advento do Programa Nacional de Educação do Campo -
climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural
(LDB, 1996). PRONA- CAMPO, criado em 2012, por meio do Decreto Presidencial n°
7.352/2010, abre uma nova etapa na educação dos povos do campo. Esse

8 8
programa foi cria-

8 8
do com o objetivo de ampliar e qualificar a oferta de educação básica e MEC/SECADI., com representação do MST, Contag, Fetraf, Resab, Consed, Undime, UFMG,
UNB e secretarias do MEC, com a colaboração do FONEC e MDA.
superior oferecida às populações do campo, esta compreendida como:
agricultores fami- liares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos,
assentados e acampados da reforma agrária, populações atingidas por
barragens, trabalhadores assala- riados, quilombolas, povos da floresta e outros
que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no
meio rural.
O conjunto dos textos sobre o PRONACAMPO afirma que o mesmo
oferece apoio técnico e financeiro aos estados, municípios e ao Distrito Federal
para a implementação da política de educação do campo, no sentido de agregar
qualidade à educação oferecida em escolas do campo e atender às reivindica-
ções históricas. A sua construção se deu de modo participativo 34, e contou com
representantes de movimentos sociais do campo e instituições que de forma di-
reta ou indiretamente, influenciam para a objetividade e significação do ensino
em escolas do campo. Há, entretanto que se considerar que o Fórum Nacional
de Educação do Campo - FONEC, reunido no período de 15 a 17 de agosto de
2012, em Brasília, para realizar um balanço crítico da Educação do Campo no
Brasil, decidiu tornar público um Manifesto que foi reafirmado e apoiado pelos
participantes do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e
Po- vos do Campo, das Águas e das Florestas, realizado em Brasília nos dias
20 a 22 de agosto de 2012, o qual denuncia à sociedade a insatisfação do
colegiado em relação ao que prevê o texto do Programa e apresenta as
seguintes propostas, aqui reproduzidas textualmente:

[...] Em vista destas denúncias, apresentamos nossas


proposições:
1) Redirecionamento imediato pelo Ministério da Educação, do
processo de elaboração e implementação do PRONACAMPO e
suas ações, reconhecendo e legitimando os sujeitos da Educação
do Campo, na sua diversidade, em âmbito federal, estadual e
municipal.
2) Definição de políticas que visem à criação de um sistema pú-
blico de Educação do Campo que assegure o acesso universal a
uma educação de qualidade, em todos os níveis, voltada para
o

34 A construção do PRONCAMPO se deu a partir das demandas das populações do


campo apresentadas pelos movimentos sociais e sindicais, os sistemas de ensino e das
instituições de educação superior e foi discutido em Grupo de Trabalho -GT definido em
reunião da Comissão Nacional de Educação do Campo-CONEC e coordenado pelo

8 8
desenvolvimento dos territórios camponeses, na diversidade de
sujeitos que os constituem.
3) Resgate do protagonismo dos movimentos/organizações so-
ciais e sindicais do campo na proposição e implementação
das políticas públicas e dos programas federais, estaduais e
munici- pais de educação.
4) Elaboração de políticas públicas que tenham como base
um projeto popular para a agricultura brasileira, as experiências
dos movimentos e organizações sociais e sindicais e os
princípios da Educação do Campo.
5) Revogação do dispositivo do Acórdão do TCU ao
PRONE- RA, que proíbe que os projetos dos cursos formais
mencionem as organizações legítimas do campo como
CONTAG, MST e outras, na condição de instituições
demandantes e participantes dos projetos.
6) Ampliação das metas de construção de escolas no campo,
uma vez que as apresentadas são tímidas diante das 37 mil
escolas fechadas nos últimos anos.
7) Elaboração de um Plano de construção, reforma e ampliação
de escolas, bem como a adaptação das estruturas físicas a fim
de atender as crianças e jovens do campo, as pessoas com
deficiên- cias, além de bibliotecas, quadras esportivas,
laboratórios, inter- net, entre outras. Garantia de transporte
escolar intra-campo e de qualidade, para o deslocamento dos
estudantes com segurança.
8) Solução imediata e massiva para o analfabetismo no campo,
articulado a um processo de escolarização básica.
9) Elaboração de uma política de Educação Infantil do Campo.
10) Fortalecimento e criação de Núcleos de Estudos e Observa-
tórios de Educação do Campo nas universidades e institutos,
a fim de realizar programas de extensão, pesquisas, cursos
formais, formação continuada de educadores/as, apoiando e
construin- do, com os sujeitos do campo, a educação da classe
trabalhadora camponesa.

Com o Programa em ação nos sistemas de ensino brasileiro caberá à


so- ciedade civil organizada o controle social e o acompanhamento dos seus
desdo- bramentos, para que as reivindicações não atendidas permaneçam na
pauta da incansável luta dos movimentos sociais, pelo direito a uma educação
do campo de qualidade social e que atenda aos anseios dos povos do
campo.

8 8
Educação do/no campo: um novo paradigma determinada visão de mundo e projetam as ações para a transformação da realidade. Eles fazem o
acesso entre a teoria e a realidade por meio da elaboração de teses científicas.

A ideia de Educação do Campo emergiu em julho de 1997, durante


a realização do Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da
Reforma Agrária – ENERA, realizado no campus da Universidade de Brasília
– UnB.
O conceito de Educação do Campo foi construído a partir das pesquisas
sobre diferentes realidades do campo, amplamente discutida na I Conferência
Nacional Por Uma Educação Básica do Campo (1988) e na II Conferência Nacio-
nal Por Uma Educação do Campo (2004). A construção do paradigma35 se deu
a partir das experiências vividas pelos movimentos camponeses, com especial
contribuição do PRONERA – Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária e em interação com as outras dimensões da vida do
campo.
O conceito de campo é compreendido a partir do conceito de
território como lugar definido pelo humano e deve observar o seu peculiar
simbolis- mo, a diversidade cultural e étnico-racial, a pluralidade de
saberes criados e recriados e a organização lógica dos conhecimentos a partir
da própria cultura. Essa complexidade gera mobilização social e estratégias de
desenvolvimento que fortalecem em seu povo: os vínculos sociais, culturais
e de pertença ao seu espaço de vivência e convivência e vislumbra o
desenvolvimento humano e territorial sustentáveis, pelos quais lutam os
movimentos sociais do campo. Concebe-se, nesse contexto, que a educação do
campo, como toda ação educa- tiva, está fundamentada nas práticas sociais que
incluem os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, etc.
transcendendo-os ao absorver os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos,
pantaneiros e extrativistas, difundindo e desenvolvendo, nas populações, o
hábito da partilha dos conhecimentos, as habilidades, os sentimentos e
valores, o modo próprio de ser, de produzir, de se relacionar com a terra e
com as múltiplas formas de compartilhar a vida: “A educação deve abranger os
processos formativos que se desenvolvem na vida fa- miliar, na convivência
humana, no trabalho nas instituições de ensino e pesqui- sa, nos movimentos
sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais (LDB
9394/1996. Art. 1º)”.
A visão do campo como um espaço com suas particularidades e possi-
bilidades para a relação dos seres humanos com a produção das condições de

35 Os paradigmas têm como referência os conhecimentos construídos a partir de uma


8 8
existência social, proporciona que a Educação do Campo assuma a função de
provocar reflexões no sentido de contribuir na desconstrução da imagem
que se construiu sobre a relação hierárquica que há entre o campo e cidade
e na tradicional forma de ver o povo do campo como o jeca e o campo como
lugar do atraso. A Educação do Campo não se associa à reflexão sobre um
novo mo- delo de desenvolvimento e a determinação de um papel para o
campo nele. Ao contrário, deve fortalecer a identidade e autonomia das
populações do campo e possibilitar que todos compreendam que não deve
haver uma hierarquia, mas a intercomplementaridade entre o campo e a
cidade, pois, a cidade não existe sem que haja o campo e vice versa.
A Educação do campo, em seu novo paradigma, procura romper
com a alienação do território, construindo conhecimentos a partir de uma
relação dinâmica local – global – local. O conhecimento produzido tem
origem na realidade e nos saberes do campo, perpassa seu território ao
encontro de novos e diferentes saberes e retorna para se constituir em
transformação e avanços para o campo. Nessa perspectiva, portanto, para
tal, compete à Educação do Campo rever os conceitos do desenvolvimento
territorial brasileiro incluindo o desenvolvimento social, cultural, saúde,
infraestrutura de transportes, lazer, cuidados com o meio ambiente, elementos
sem os quais se estaria contribuindo para a permanência do tratamento
desigual e, assim, para a negação dos direitos universais de cidadania.
O novo entendimento sobre a “educação do campo”, portanto, não
mais permite o equívoco de atribuir-lhe o sinônimo apenas de ensino. Ela tem
sen- tido amplo e complexo e está fundamentada na prática educativa
desenvolvida no âmbito dos movimentos sociais do campo, nas discussões
com os diversos segmentos da sociedade e em seu próprio percurso
histórico.

[...] através do trabalho cultivamos nossa raiz (...) e, também


ali- mentamos nossa[...] identidade da classe trabalhadora (...).
Ve- mos o trabalho como um valor e por isso precisamos ter
gosto pelo trabalho (...) o trabalho precisa ser diminuído e se
possível, aumentando os ganhos. A formação ideológica deve
estar vincu- lada ao trabalho e este deve trazer melhorias para a
vida social. É impossível construir uma sociedade nova sem
trabalho. Ele deve produzir alimentos, embelezar a moradia,
cuidar do meio am- biente, aperfeiçoar os conhecimentos e
superar limitações (TER- RA, 2002, p. 32-33).

8 8
A espacialização36 da Educação do Campo contou com a [...] como a escola vai trabalhar a memória, explorar a memória
contribuição de movimentos e organizações diversas do campo e com as coletiva, recuperar o que há de mais identitário na memória
parcerias estabele- cidas com instituições públicas, tais como: universidades co- letiva? Como a escola vai trabalhar a identidade do homem e
federais, estaduais e comunitárias de todas as regiões. A criação de cursos de da mulher do campo? Ela vai reproduzir os estereótipos da
cidade sobre a mulher e o homem rural? Aquela visão de
alfabetização de jovens e adultos, cursos em todos os níveis, inclusive de
jeca, aquela visão que o livro didático e as escolas urbanas
pós-graduação, possibilitou a elaboração de trabalhos escritos em diversas
reproduzem quan- do celebram as festas juninas? É esta a
áreas do conhecimento, trans- formados em material de estudo que visão? Ou a escola vai recuperar uma visão positiva, digna,
subsidiaram novas pesquisas e, com elas, as mudanças dos conceitos sobre a realista, dar outra imagem do campo. (ARROYO, 2011, p.
Educação do Campo e sua abrangência. A criação de cursos novos e a 16).
aplicação da teoria na práxis, nas escolas, resultaram em novas experiências,
posteriormente transformadas em reflexões, estudos, pesquisas e num novo As questões levantadas por Arroyo nos orientam a observar a necessidade
conceito de Educação. de uma educação do campo crítica e propositiva, a partir das distorções que
A sustentação do novo paradigma que pensa uma educação do são históricas e precisam ser superadas, para que a educação do/no campo seja
campo, no campo e voltada aos interesses dos povos do campo, para além da compreendida e respeitada pelo Estado enquanto direito universal.
escolari- zação dos seus sujeitos, está para as diversas atividades Nascido da luta pela terra e pela reforma agrária, o paradigma da Educa-
desenvolvidas, as quais contribuem para a valorização das práticas e a ção do Campo contribui com a criação e recriação do campesinato, em forma-
diversificação de materiais didáti- cos significativos. Com isto o estímulo à ção no Brasil, por isso não poderia ficar restrito aos assentamentos rurais, mas
participação dos sujeitos do campo em seminários locais, regionais e nacionais se expandir e, por isso, a necessidade da sua espacialização para as regiões e para
assim como em cursos de atualização e aprofundamento de estudos as comunidades da agricultura camponesa.
pedagógicos, na perspectiva das discussões sobre o desenvolvimento do campo A ideia do novo paradigma busca romper com a alienação do território
e suas necessidades educacionais. Conforme cita, MOLINA (2003): e construir os conhecimentos na relação dinâmica: local – global – local, am-
pliando o campo da Educação do Campo. Se vivemos em uma sociedade desi-
A espacialização da Educação do Campo acontece, também, gual em que o processo de expropriação do campesinato é intenso, a destruição
pela ampliação das parcerias e pelo fato dos movimentos do território camponês significa o fim de sua existência na condição social de
estarem co- locando este paradigma na agenda dos estados e dos
camponês e a sua transformação em outro sujeito. (MOLINA, 2003).
municípios através de seminários, encontros e publicações de
Educação do Campo. (MOLINA, 2003, p. 120).
A Pedagogia Libertadora de Paulo Freire classifica a educação tradicio-
nal como “bancária”, pautada na ideologia de opressão que considerava o alu-
Em relação às escolas do campo e seus currículos escolares, o discurso no vazio de qualquer saber e destinado a se tornar depósito dos ensinamentos
proferido por Miguel Arroyo em Luziânia/GO, por ocasião da I do professor. Freire insistiu em afirmar que todo ato educativo é um ato
Conferência Nacional por uma Educação do Campo, em julho de 1998, nos po- lítico, portanto reflexivo e de postura crítica, e que o educador
remete a uma reflexão aos questionamentos. “humanista revolucionário”, tem a função de colocar sua ação político-
pedagógica para a transformação da sociedade e da criação de um homem
36 Mudanças importantes no campo brasileiro foram promovidas a partir das lutas pela terra e novo. Essa educação, ao contrário da bancária, deve problematizar as situações
pela reforma agrária, transformando a paisagem, construindo um jeito próprio de fazer e de
pensar o campo. “Podemos denominar este jeito próprio de fazer de espacialização e vividas pelos edu- candos, promovendo a passagem da consciência ingênua
territorialização da luta pela terra. Esses são processos de criação e recriação do campesinato que para a consciência
produzem diferentes espaços políticos e transformam territórios. Latifúndios viram
assentamentos e assim, as famílias sem-terra fazem a sua própria geografia” (MOLINA e
FERNANDES, O campo da Educação do Campo)

9 9
crítica37. Observe-se que a consciência ingênua faz conclusão superficial e Tem-se como possibilidades inerentes à educação, por exemplo, a supe-
simplista ao encarar os desafios, apresenta fragilidade em suas argumentações ração das precárias condições de vida e a conquista da emancipação dos sujeitos.
e não aceita as concepções científicas, Por outro lado, a consciência crítica Neste sentido, Paulo Freire defende que:
analisa e aprofunda a análise do problema, separa os fatos dos preconceitos,
faz revisão e testa as descobertas; entende e aceita a realidade como mutável, Não há prática educativa, como de resto nenhuma prática,
enfim, é inquieta, investigadora e indagadora. que escape a limites. Limites ideológicos, epistemológicos,
As tendências pedagógicas se baseiam em movimentos sociais, filosóficos políticos, econômicos, culturais. Creio que a melhor afirmação
para definir o alcance da prática educativa em face dos limites a
e antropológicos, conforme o momento histórico no qual se inserem. Elas exer-
que se subme- te é a seguinte: não podendo tudo, a prática
cem influência na prática pedagógica e atendem às expectativas da sociedade. educativa pode alguma coisa. Esta afirmação recusa, de um
Neste contexto está a Pedagogia Histórico Crítica que se constitui um marco lado, o otimismo ingênuo de quem tem na educação a chave
do movimento educacional, no Brasil, porque propõe uma prática das transformações sociais, a solução para todos os problemas;
comprometida com o processo de ensino e aprendizagem, objetivando de outro, o pessimismo igual- mente acrítico e mecanicista de
desenvolver as capaci- dades, a promoção humana dos estudantes, sua inserção acordo com o qual a educação, enquanto supraestrutura, só
pode algo depois das transformações infraestruturais (FREIRE,
social e consciência emancipatória.
2001, p. 47).
É inegável que a educação possibilita avanços e transformações sociais,
porém essas precisam ser discutidas e compreendidas pelos sujeitos envolvidos
Observa-se que o campo brasileiro carece de política específica e, con-
no processo, a partir de sua organização, de modo que produza uma concepção
sequentemente, de maiores investimentos especialmente na formação docente,
de relações sociais que integre a cultura própria dos grupos sociais, e que
para que a oferta da educação escolar seja compatível com as suas realidades.
os sujeitos sociais se reconheçam como sujeitos históricos e construtores de
Há uma dívida social histórica do Estado para com as populações do
sua própria aprendizagem, tendo a cultura como a principal contribuição para
campo, que ainda hoje precisam lutar e gritar alto para ter a merecida
sua formação. Esse reconhecimento supera o limite de espaço geográfico e
atenção e respeito a esse direito, inalienável e garantido por lei.
com- preende o conjunto das necessidades culturais, os direitos sociais e a
Neste sentido, embora se identifique que a localização dos problemas da
formação integral desses sujeitos.
educação não esteja apenas no meio rural, é nesse “lócus” que se verifica com
37 Recomenda-se a leitura de FREIRE, Paulo. “A Educação como Prática da Liberdade”. mais evidência, a grave situação de exclusão, principalmente, de crianças e jo-
Ed.Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1967, em cuja obra o autor expõe, com detalhes, o método vens, conforme dados do IBGE (2010).
de alfabetização de adultos, contextualizando historicamente a proposta e expondo seus
pressupostos filosóficos e políticos e retrata o pensamento do autor de que uma [...] “educação
das massas se faz, assim algo de absolutamente fundamental entre nós. Educação que, Referências
desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação. A
opção, por isso, teria de ser também, entre uma “educação” para a “domesticação”, para a ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir &
alienação, e uma educação para a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para GENTILLI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado
o homem-sujeito” [...] A obra põe na realidade do Brasil da ditadura o que o próprio autor Democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995
coloca em esclarecimento que compõe a obra [...] [...] “Este ensaio tentará um pouco da
história, dos fundamentos e dos resultados deste empenho no Brasil. Empenho que custou a ARROYO, Miguel. G. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis. RJ;
seu Autor, obviamente, o afastamento de suas atividades universitárias, prisão, exílio. Empenho Editora Vozes.2012
de que não se arrepende e que lhe valeu também compreensão e apoio de estudantes, de . Oficio de Mestre. Vozes: Petrópolis, 2000. Que Educação Básica para os
intelectuais, de homens simples do povo, engajados todos eles no esforço de humanização e
povos do campo? In: 12 a 16 de setembro de 2005,Goiás – Luziânia. Seminário
libertação do homem e da sociedade brasileira. A estes, entre os quais muitos estão pagando na
Nacional “Educação Básica nas Áreas de Reforma Agrária do MST”.
prisão e no exílio, pela coragem da rebeldia e pela valentia de amar, oferece o Autor este ensaio.
Santiago, Primavera de 65” (FREIRE, 1967. p.36 a 37).

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9 9
FUNDAMENTOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS PARA A
EDUCAÇÃO DO CAMPO I: A ESCOLA DO CAMPO

Paulo Roberto de Sousa Silva

Afinal de contas, o que é uma escola do campo? Ou melhor, o que é


uma escola? Quais suas origens? Qual sua finalidade na sociedade
contemporânea? Que especificidade possui no contexto da Educação do
Campo? Quais os limi- tes e possibilidades das práticas pedagógicas ali
desenvolvidas?
Estas são algumas das questões propostas no presente texto, que, sem a
pretensão de esgotá-las, objetiva subsidiar um diálogo crítico em torno da
esco- la do campo, suas concepções e práticas pedagógicas.
Encontramos a escola pronta e nela vivenciamos uma parte significativa
de nossas vidas, ao longo da trajetória escolar de estudantes. Depois, como
educadores, a ela retornamos noutro papel, sem que mudanças significativas
em relação à escola dos tempos de outrora tenham ocorrido. E em geral,
desenvol- vemos nossa prática docente como se tudo já estivesse posto.
Como subsídio de um processo de formação de educadores do
campo, em sua maioria de escolas multisseriadas, esse texto convida à
reflexão sobre a escola como uma construção sócio histórica, considerando a
especificidade das escolas do campo e todo o debate de concepções e
práticas de Educação do Campo, que vem sendo desenvolvido, no âmbito
da educação brasileira, nas duas últimas décadas, sob o protagonismo dos
movimentos sociais do campo.
Que movimento histórico ocorre no campo que nos permite repensar
a escola? Que escola do campo? A canção de Gilvan Santos apresenta um
projeto de escola do campo formadora de “construtores do futuro”. A que
projeto de futuro nos aliamos? Qual o movimento histórico de sua construção?
E como a escola poderá formar os sujeitos dessa construção?
Como recurso didático de um percurso formativo organizado em
regi- me de alternância, a reflexão teórica precisa permanentemente dialogar
com as práticas vivenciadas, exercício que deve ser feito ao longo da leitura.
Contudo, incluímos algumas atividades com o objetivo de contribuir com a
dinâmica do estudo em alternância, durante o tempo comunidade.
A escola como espaço de formação omnilateral, aprender a navegar um barco, navegava. As crianças se
articulada com a emancipação humana educavam tomando parte nas funções da coletividade. E, porque
tomavam parte nas funções sociais, elas se mantinham, não
A escola como uma construção sócio-histórica obstante as diferenças naturais, no mesmo nível que os
adultos.
A escola como prática social, tal qual a conhecemos, nem sempre
existiu; nem sempre foi como a conhecemos; nem é única em toda sociedade O desenvolvimento das forças produtivas implicou na complexificação
contem- porânea. A escola é uma invenção humana, uma construção sócio e especialização do trabalho, com maior importância das formas de trabalho
histórica. Portanto, precisamos compreendê-la em seu movimento histórico, social, decorrendo de maior necessidade de organização e de controle. A
bem como o que a move. separação entre direção e execução do trabalho; entre trabalho manual e
Concordando com Dalmagro (2010, p. 68), intelectual; a elevação da produtividade e os intercâmbios para trocas de
excedentes são embriões de uma sociedade dividida em classes, que se consolida
Antes de buscarmos situar as origens da escola no tempo e suas
com o surgimento da propriedade privada. E, numa sociedade dividida, “este
distintas formações em cada período histórico, é importante re-
conceito de educação, como uma fun- ção espontânea da sociedade, mediante a
gistrar, ainda que a denominação escola apareça ou seja
atribuída a diferentes sociedades e épocas, que as formas qual as novas gerações se assemelham às mais velhas” já não é mais adequado
assumidas por tal espaço assim como seus objetivos, são (PONCE, 2003).
absolutamente diferentes em cada formação social. É sabido Segundo Manacorda (2010, p. 127),
que cada período histórico constitui uma forma específica de
educação da qual necessita e da qual também é produto. [...] [...] na sociedade dividida em classes, isto é, na sociedade em
Assim, ainda que a produção de um espaço educativo específico, que o trabalho está dividido e em que essa divisão se apresenta,
isto é, que ocorre separadamente das demais esferas da vida, essencialmente, como divisão entre trabalho manual e trabalho
mas não sem relação com estas, remonte há quase cinco mil mental, ou como divisão entre campo e cidade, o ensino e o
anos, as formas, objetivos e conteúdos escolares serão trabalho aparecem também divididos, como dois termos até an-
configurações pró- prias de seu tempo histórico e não um tagônicos. A escola – mas é óbvio que o emprego desta palavra é
desenvolvimento linear, inevitável, que desembocaria nos anacrônico quando aplicado a épocas mais antigas e sobrepõe
atuais sistemas escolares. no- vos sentidos para instituições marcadamente diferentes das
que modernamente recebem esse nome – enquanto estrutura
Ao retrocedermos no tempo, em qualquer sociedade, para um momento especí- fica de formação de um determinado tipo de “homem
em que predominam relações comunitárias primitivas, encontramos uma dividido”, nasce historicamente no interior das classes
possuidoras, como estrutura destinada exclusivamente à sua
so- ciedade sem escolas. E não se trata de um movimento linear, evolutivo.
formação; não existe para as demais classes [...].
Ainda hoje, podemos encontrar povos para os quais a instituição escolar
inexiste ou encontra-se em estágio bastante incipiente. Não precisamos ir longe
Os jovens das classes subalternas continuam a educar-se na vida e no
para en- contrarmos exemplos ilustrativos dessa afirmação: basta lembrar que
tra- balho com os adultos, porém, os filhos das classes dominantes, demandam
os pais ou avós da maioria dos adultos brasileiros contemporâneos viveram e
de uma formação para as artes imediatas do domínio, quer sejam as artes
se educaram no meio rural, numa sociedade sem escolas.
militares, políticas ou científicas.
Segundo Ponce (2003, p. 19, Grifos do autor),
A escola, como lugar específico para educação dos jovens das classes
[...] nas comunidades primitivas, o ensino era para a vida e por
do- minantes, nasce no interior das famílias com educadores especialistas dos
meio da vida; para aprender a manejar os arcos a criança filhos dos poderosos, nas cortes dos primeiros estados históricos da
caçava; para Mesopotâmia e
1 1
do vale do Nilo e se difunde pelas ilhas do Mediterrâneo e, dali, para a Grécia e correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara
Roma (MANACORDA, 2010).

Por meio dos relatos históricos trazidos por Manacorda podemos


concluir que na antiguidade inicia-se a constituição de um espa-
ço-tempo próprio para aprender, sistemático e destinado às clas-
ses dominantes e que tem relação com a aprendizagem da
cultura erudita, em especial da escrita e por meio desta. É ainda
na Idade Antiga que a escola se voltará, além do ensino da
cultura sapien- tal, ao ensino técnico e aos conhecimentos
específicos necessários à profissão do escriba, que na época já
continha especializações e ensinava cálculos, literatura e
conhecimentos relativos à geografia e à política (DALMAGRO,
2010, p. 70).

De origem grega (scholé), a palavra “escola”, etimologicamente, significa


“ócio”, ou “lugar do ócio” (CHAUÍ, 1999). Em bom português, lugar de quem
não precisa trabalhar; lugar de “quem não tem o que fazer”, lugar de educação
das classes dominantes.
Quer seja como formadora dos escribas no antigo Egito ou do
cidadão guerreiro no mundo clássico Greco-Romano, em suas origens, nasce
uma escola elitizada, completamente apartada da produção e da vida.
A despeito das mudanças sociais do mundo antigo, fundado
predomi- nantemente no trabalho escravo, para a servil sociedade feudal,
no campo da educação e da escola, não teremos mudanças significativas.
Nesse período, te- mos uma classe dominante dividida entre clérigos e
militares, que irá refletir igualmente na diferenciação curricular entre as
escolas dos clericais e militares, porém, mantendo essencialmente sua
exclusividade e finalidade de educação das classes dominantes.
É somente com a Revolução Industrial e a emergência do
Capitalismo que teremos mudanças significativas na instituição escolar. A
ciência torna-se fator produtivo. Isso, aliado a um conjunto de modificações da
sociedade mo- derna burguesa, tais como o Estado de direito positivo e a
sociabilidade urba- no-industrial, impõe a necessidade de que a escola
assuma também um papel na educação da classe trabalhadora. Na sociedade
moderna, a educação escolar assume a forma, por excelência, de educação e o
status de direito social.

[...] O direito de todos à educação decorria do tipo de sociedade

1 1
no poder: a burguesia. Tratava-se, pois, de construir uma socie- exis- tência, a escola foi uma instituição restrita à educação dos grupos
dade democrática, de consolidar a democracia burguesa. dominantes,
Para superar a situação de opressão, própria do “Antigo
Regime”, e ascender a um tipo de sociedade fundada no
contrato social ce- lebrado “livremente” entre os indivíduos,
era necessário vencer a barreira da ignorância. Só assim seria
possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em
indivíduos livres porque esclare- cidos, ilustrados. Como
realizar essa tarefa? Através do ensino. A escola é erigida,
pois, no grande instrumento para converter os súditos em
cidadãos [...] (SAVIANI, 2009, p. 05).

Desse modo, a escola universaliza-se, porém, de forma dualista: de um


lado, temos a “escola do doutor” (livresca e desinteressada) e, de outro, a “es-
cola do trabalhador” (operacional e profissionalizante). Se até um
determinado momento, qualquer que fosse o regime de gestão escolar –
público ou privado
– a escola era lugar exclusivo de educação da elite; na sociedade moderna,
vão constituindo dois sistemas distintos de educação com lugares e
finalidades dife- renciados (MANACORDA, 2010).
Assim, observamos que, ao longo de sua história, a instituição escolar
estabelece uma estreita relação com a sociedade em que está inserida. E
até aqui, mesmo com a inclusão da classe trabalhadora, sempre se manteve
sob a hegemonia e voltada aos interesses das classes dominantes.
Portanto, se a escola é uma construção sócio-histórica vinculada às
deter- minantes históricas da sociedade em que está inserida e aos interesses das
classes dominantes, qual a sua atualidade na sociedade capitalista
contemporânea e quais as possibilidades de transformação da escola, a partir
dos interesses da classe trabalhadora e dos demais que ocupam posições
subalternas nas relações desiguais em nossa sociedade?

Atualidade da escola na sociedade capitalista

Para compreender a atualidade da escola, é importante recuperar a prin-


cipal finalidade que a acompanha ao longo de sua história: a educação dos
filhos daqueles que não viviam do próprio trabalho. E, enquanto lugar de
educação da elite, a escola constitui-se desvinculada do mundo do
trabalho.
Vale destacar que, se desde suas origens e na maior parte de sua

1 1
esse lugar não expressa somente a desigualdade de classes, mas também outras Como Teorias crítico-reprodutivistas, Saviani (2009) classifica a Teoria
matrizes de opressão, tais como, o machismo e o racismo. Olhando para o da Violência Simbólica; a Teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado e a
contexto da escola no Brasil, por exemplo, iremos encontrar historicamente Teoria da Escola Dualista. Entre elas, compartilham a noção de que a
o predomínio dos sujeitos ricos, das classes dominantes, do sexo masculino, sociedade é es- sencialmente marcada pela divisão entre grupos ou classes
brancos, de origem europeia. antagônicas. A mar- ginalidade é um fenômeno inerente à própria estrutura da
É com a ascensão da burguesia como classe dominante e a sociedade. A educa- ção é inteiramente dependente da estrutura social geradora
instituição da sociedade capitalista, que a escola assume nova forma e de marginalidade, cumprindo aí a função de reforçar a dominação e legitimar a
finalidade vinculada com a produção e destinada à educação da classe marginalização.
trabalhadora. Em linhas ge- rais, essa é a forma escolar que conhecemos. Para a Teoria da Violência Simbólica, toda sociedade estrutura-se como
Nesse contexto, precisamos refletir criticamente sobre essa novidade um sistema de relações de força material entre grupos ou classes. À violência
pos- ta. Como compreender a escola na sociedade capitalista, sobretudo, suas material (dominação econômica), exercida pelos grupos ou classes dominan-
finali- dades e como efetiva a educação da classe trabalhadora? tes, corresponde a violência simbólica (dominação cultural). Marginalizados
Saviani (2009) chama a atenção para as diferentes teorias que procuram são os grupos ou classes dominadas. Marginalizados socialmente, porque não
explicar a relação entre escola e sociedade, no contexto da sociedade possuem força material, e, culturalmente, porque não possuem força simbólica.
capitalista, e as classifica em dois grandes grupos: Teorias não-críticas e A função da educação é reproduzir as desigualdades sociais. Pela reprodução
Teorias crítico-re- produtivistas. cultural, ela contribui especificamente para a reprodução social.
Segundo o autor, para as Teorias não-críticas, a sociedade é essencial- Segundo a Teoria dos Aparelhos Ideológicos, o Estado possui
mente harmoniosa, tendendo à integração de todos e a marginalidade é um Aparelhos Repressivos e Aparelhos Ideológicos que servem à reprodução das
fenômeno acidental, que afeta individualmente seus membros. Os excluídos condições de produção e de reprodução das forças produtivas e das relações de
são um desvio, uma distorção que não só pode como deve ser corrigida. A edu- produção existentes. Marginalizado é a classe trabalhadora. A escola constitui
cação emerge aí como um instrumento de correção dessas distorções, um ins- o instru- mento mais acabado de reprodução das relações de produção de tipo
trumento de equalização social. Esse otimismo pedagógico sustenta uma ideia capitalista. Para isso, ela toma a si todas as crianças de todas as classes sociais e
de educação escolar como meio de ascensão social, bastante difundida em nos- lhes inculca durante anos a fio de audiência obrigatória “saberes práticos”
sa sociedade. Classificam-se nesse grupo a Pedagogia Tradicional, a Pedagogia envolvidos na ideologia dominante.
Nova e a Pedagogia Tecnicista. Para a Teoria da Escola Dualista, apesar da aparência unitária e unifica-
Para a Pedagogia Tradicional, todos são essencialmente iguais; as desi- dora, a escola é dividida em duas (e não mais do que duas) grandes redes,
gualdades são fruto da ignorância; a escola é centrada no professor e no as quais correspondem à divisão da sociedade capitalista em duas classes
con- teúdo a ser aprendido. Com a Pedagogia Nova, todos são tomados como funda- mentais: a burguesia e o proletariado. Uma rede de escolarização
exis- tencialmente diferentes; marginalizado é o rejeitado; a escola é secundária-su- perior para educação da burguesia e outra rede primária-
centrada no sentimento e no aluno; e o que importa é aprender a aprender. E, profissional educadora do proletariado. Segundo essa teoria, a escola cumpre
na Pedagogia Tecnicista, o marginalizado é o incompetente e improdutivo. duas funções básicas: contribui para a formação da força de trabalho e para a
Tal pedagogia busca a objetivação do trabalho pedagógico e a escola é inculcação da ideologia burguesa (e sujeição da ideologia proletária).
centrada na organização racional. Importa saber fazer, aprender a fazer. As Teorias Crítico-Reprodutivistas marcaram o pensamento crítico de
Essas ideias marcaram o pensamento pedagógico e as práticas teóricos e de movimentos sociais populares, fundamentando, inclusive, a
educativas presentes em nossas escolas, com maior hegemonia de uma ou defesa da negação da escola como lugar de educação da classe
outra em deter- minados momentos, sem, porém, excluir-se mutuamente. trabalhadora, numa perspectiva da emancipação humana. Apesar de
apresentarem uma importante

1 1
leitura crítica da escola capitalista, tais teorias pouco contribuíram na direção da meritocracia (FREITAS, 2011).
de sua superação, não conseguindo concretizar-se em alternativas pedagógicas.
Nesse sentido, Saviani (2009) irá defender uma Pedagogia Histórico-
-Crítica que, do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente a luta
contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas
populares. Para o autor, lutar contra a marginalidade, através da escola, signi-
fica engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor
qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria
crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta, de modo
a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes.
Portanto, reconhece a importância do conhecimento escolar para classe
trabalhadora e para transformação social e defende como fundamental, numa
perspectiva histórico-crítica, a universalização da garantia do direito ao acesso
e à qualidade da educação.
Segundo Freitas (2011, p. 119),

[...] a escola capitalista – apesar de contraditória – está a serviço


da classe dominante. Foi formatada para atender aos seus objeti-
vos ao longo dos séculos. Suas funções sociais estão baseadas na
exclusão da classe trabalhadora e na sua subordinação – quando
não em uma combinação de ambas. Esta exclusão da escola,
hoje, já não é, nas áreas urbanas, uma exclusão física. Foi
substituída pela “exclusão por dentro” – uma forma de se
manter a classe trabalhadora na escola sem aprender. A
burguesia aprendeu que é mais vantajoso manter os
trabalhadores na escola e subordiná-los, excluindo-os
culturalmente, do que deixá-los fora dela. Mesmo quando não
se aprendem português e matemática, se aprendem as relações
de subordinação existentes no interior da escola.

No sistema capitalista, a escola universaliza-se como lugar de educação


da juventude trabalhadora, de acordo com os interesses das classes
dominantes. Sua forma escolar não é neutra e desempenha as funções de
exclusão dos traba- lhadores e de submissão, função máxima ideológica
implementada na relação professor-aluno. A escola não foi feita para ensinar
tudo a todos. Se o acesso está universalizado, a permanência é estratificada,
sendo a maioria excluída ao longo do caminho. Seu principal recurso é a
implantação de um ritmo único de aprendizagem, comandado
hierarquicamente (professor, currículo, sistema de educação...) e a ideologia

1 1
A função de submissão está dentro da lógica de funcionamento da sala
de aula e da escola. Na sala de aula, a submissão é embutida na relação
profes- sor-aluno, onde a principal lição é aprender a respeitar a autoridade.
Na escola, a submissão é embutida na estrutura física, que isola as crianças da
realidade, da vida e suas contradições.
A escola capitalista foi concebida centrada no conhecimento cognitivo,
no desenvolvimento de habilidades intelectuais. Essa matriz formativa atende
aos interesses do capital, porque o mesmo não pretende formar o ser humano,
apenas instruí-lo, desenvolver competências para a qualificação no
desempenho das atividades produtivas (formação de capital humano).
Mészáros (2005) irá destacar o papel da escola capitalista na
construção do consenso em torno da lógica incorrigível do capital.

A questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que


cada indivíduo adote como suas próprias as metas de
reprodução ob- jetivamente possíveis do sistema. Em outras
palavras, no senti- do verdadeiramente amplo do termo
educação, trata-se de uma questão de “internalização” pelos
indivíduos da legitimidade da posição que lhes foi atribuída
na hierarquia social, juntamente com suas expectativas
“adequadas” e as formas de conduta “cer- tas”, mais ou menos
explicitamente estipuladas nesse terreno. (MÉSZÁROS,
2005, p. 44)

Diante disso, se a escola constitui-se intimamente relacionada com


a estrutura social na qual está inserida e se a escola educadora da classe
trabalha- dora, pela qual o presente texto está interessado, é fruto e orgânica à
sociedade moderna capitalista, sob a hegemonia da classe dominante, cujos
interesses são de reprodução do capital e de sua sociabilidade, como então
concebê-la numa perspectiva de formação omnilateral e de emancipação
humana?

A escola como espaço de formação


omnilateral e emancipação humana

A escola, tal qual a realidade como um todo, é movimento, que se


tece nas contradições, que impulsionam as transformações sociais nas quais
está in- serida. Se a escola expressa o projeto hegemônico das classes dominantes,
possui em seu interior movimentos que contradizem esse projeto.

1 1
Desse modo, ao longo de sua história, vão se constituindo concepções e A escola unitária ou de formação humanista [...] ou de
experiências de educação escolar a partir da crítica e da resistência à cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na
perspectiva hegemônica, subordinada à divisão social do trabalho sob o modo atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de
de produção capitalista, que apontam na direção de uma formação humana em maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma
certa autono- mia na orientação e na iniciativa. [...] A escola
sua integrali- dade (omnilateral), articulada com a emancipação humana e com
unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que
a transforma- ção social. Tais concepções e experiências vinculam-se a processos
hoje estão a cargo das famílias, no que toca à manutenção dos
históricos de lutas por transformação social, a partir do polo da classe escolares, isto é, que seja completamente transformado o
trabalhadora. Embora não sendo hegemônicas, compõem a realidade e orçamento da educação na- cional, ampliando-o de um modo
desempenham um importante papel na sua transformação. imprevisto e tornando-o mais complexo: a inteira função de
Nesse sentido, podemos destacar as contribuições do pensamento mar- educação e formação das novas ge- rações torna-se, ao invés de
privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas as
xista sobre a educação. A Pedagogia Socialista, desenvolvida a partir das ex-
gerações, sem divisões de grupos ou castas. (GRAMSCI, 1989,
periências da revolução soviética; as experiências de educação popular e a Pe-
p. 121)
dagogia do Oprimido; as experiências de educação do MST e a Pedagogia do
Movimento; além de um conjunto de experiências de modificação da Uma escola pública, desinteressada, de cultura geral. “Uma escola de li-
forma escolar desenvolvidas no Brasil, dentre as quais citamos: a Escola berdade e de livre iniciativa, não uma escola de escravidão e de orientação
Cidadã, no Rio Grande do Sul e em São Paulo; a Escola Plural, em Minas mecâni- ca”. (GRAMSCI, 2004, p. 75)
Gerais; a Escola Candanga, no Distrito Federal; a Escola Cabana, no Pará e as Por fim, destacamos a ideia de educação politécnica. Considerando o
experiências das Escolas Família Agrícolas. caráter multidimensional do ser humano e o vínculo de sua formação com
Para Marx, a finalidade da educação é a construção do homem integral- sua produção social, é fundamental a apropriação dos fundamentos das
mente desenvolvido, isto é, do homem omnilateral, o que somente é possível ciên- cias contemporâneas, dos princípios gerais das técnicas e das
com a superação da atual ordem burguesa, e através de um programa de ensino tecnologias, das particularidades dos métodos tecnológicos, dos princípios da
que considere a educação intelectual, física e tecnológica. De acordo com Ma- organização da cooperação social, dos fundamentos sociais e éticos do trabalho
nacorda, para Marx, a “a união trabalho produtivo remunerado, ensino intelectual, na sociedade, através da vinculação da educação com a produção social.
exercício físico e treinamento politécnico elevará a classe operária acima das classes Na verdade, esse conceito é integrante de uma concepção pedagógica
superiores e médias.” (MANACORDA, 2010, p. 48) que se refere a uma visão do homem como um ser que se constrói em
A união entre trabalho e educação é, para Marx, o fundamento da múlti- plas dimensões: na dimensão espiritual, na material, na artística, na
educa- ção omnilateral, na medida em que tal relação busque articular teoria e estética, na científica, na tecnológica. A polictenia é do próprio homem – o ser
prática, possibilitando aos trabalhadores a apropriação das bases científicas e politécnico é o ser que se constrói em múltiplas dimensões, como uma
tecnológi- cas dos processos produtivos. totalidade histórica concreta; na unidade da diversidade física, psíquica,
Nesse mesmo sentido, a proposta de “escola unitária”, de Gramsci, espiritual e cultural que esse ser humano vive. A politecnia se engaja no
com- preende a educação como um processo intencional de formação, que se processo social do desenvol- vimento omnilateral, multifacetado do ser
estende a toda a população, no mesmo padrão de atendimento e de humano; é um princípio filosófico pedagógico que se coloca como condição
qualidade, mas, sobretudo, que articula uma formação ampla, que para essa formação plena, no sentido da autonomia, da criatividade, da
proporcione os elementos necessários à compreensão e intervenção na capacidade de julgamento crítico; é funda- mental para a superação das
sociedade, assim como uma forma- ção para o trabalho: dicotomias que citei ao abordar a questão da escola unitária e se coloca na
perspectiva de tornar o ser humano mais amplo (MA- CHADO, 1989).

1 1
Esse conjunto de ideias e experiências, dentre outras, e a despeito de O capitalismo se desenvolve estabelecendo uma relação subordinada do
suas diferenças, aportam contribuições significativas para construção da escola rural em relação ao urbano
como espaço de formação omnilateral e emancipação humana.
Contudo, a origem das desigualdades e opressão não está na educação, As indústrias ganham importância econômica e as cidades o sta-
nem é esta o fator determinante para a emancipação humana. Há que se buscar tus de modernidade, ao mesmo tempo em que o campo vai sen-
as origens das desigualdades e, consequentemente, o foco determinante das lu- do negado e inserido nesse projeto como realidade a ser
superada. O futuro da sociedade estaria nas cidades, lugar do
tas por transformação social nas estruturas que determinam as condições obje-
progresso, do desenvolvimento, da vida. Ao campo restaria o
tivas de sobrevivência. Porém, a educação poderá contribuir com a atraso, o flagelo da seca, as velhas fazendas improdutivas, a
manutenção dessa ordem de coisas ou formar “lutadores” e “construtores do “política dos coro- néis”, a “morte severina”... E onde não há
futuro”. vida, não há políticas públicas (SILVA, 2013, p. 28)

A formação integral e os novos valores devem perpassar o tra- Nesse contexto, ao longo do Século XX, o processo de
balho escolar, mas não é possível atingir tal pretensão neste
modernização no Brasil vai consolidando uma rede pública de educação no
espaço se a vida fora da escola continua pautada na divisão
meio urbano, que progressivamente vai se estendendo à classe trabalhadora
do trabalho em classes sociais. Entendemos a escola como
um campo de batalhas e, como tal, lugar onde projetos de e consolidando a ideia de educação como direito social. Enquanto isso, o meio
mundo distintos se confrontam. [...] Se a escola é campo de rural vai sendo esquecido.
batalha, não podemos nos esquecer que também é espaço de
hegemonia burguesa. Assim, se é desejável projetar uma escola Como políticas públicas sociais, a educação oferecida às popu-
“radicalmente diversa”, é necessário considerar as limitações lações do meio rural (educação rural) é tão somente um simula-
de implementá-la em plena vigência do capital [...]. (DAL- cro da educação das classes trabalhadoras urbanas; tendo como
MAGRO, 2010, p. 186). referência o contexto urbano, acentuando a negação do
campo como possibilidade de vida e situando-o como realidade
Desse modo, pensar uma escola na perspectiva da formação omnilateral a ser su- perada. Na verdade, a despeito dos direitos sociais que
vão sendo conquistados ao longo do século XX, pela sociedade
e da emancipação humana, na atualidade da sociedade capitalista, exige
brasileira, teremos um processo permanente de penalização das
um esforço permanente de luta por transformação da forma escolar populações camponesas, que simplesmente pelo fato de
hegemônica, na direção da formação de “lutadores” e “construtores do futuro”, permanecerem no campo têm seus direitos negados (SILVA,
em articulação com as lutas gerais por transformação social. 2005. p. 34).

As escolas do campo e as salas multisseriadas: espaço O que, historicamente, ficou conhecido como Educação Rural nunca
de práticas pedagógicas emancipatórias passou de uma política compensatória, pontual e precária, promovida em for-
ma de campanhas de alfabetização ou, no máximo, de capacitação de mão
A Escola do Campo e a negação do direito de obra para a agricultura moderna da “Revolução Verde”. Além das
Uma Escola do Campo é antes de tudo uma escola no contexto da socie- campanhas, a escola que consegue chegar à zona rural é precária, somente das
dade moderna capitalista. Uma escola pública gerida pelo Estado burguês, edu- séries iniciais, e pensada a partir desse horizonte do campo como atraso e da
cadora dos trabalhadores camponeses. Assim sendo, incluída em todo o debate cidade como fu- turo. “Uma escola apartada do trabalho, da cultura, da vida
precedente. Contudo, embora incluída na universalidade do projeto local. Com a qual a população camponesa segue precisando sair do campo para
histórico hegemônico, possui particularidades que precisam ser ir à escola, que lhe “prepara” para sair do campo”. (SILVA, 2013, p. 29)
compreendidas.
1 1
Os resultados desse processo expressam-se nos diversos indicadores disciplinas.
edu- cacionais que apontando que, em 2013, ainda temos 28,7% dos jovens e
adul- tos do campo analfabetos; quando observamos o meio rural
nordestino, esse número aumenta ainda mais, chegando a 37,7% da
população (MEC/INEP. Censo Escolar, 2014).
Sobre a escolarização, observamos que, enquanto no meio urbano bra-
sileiro, a população de 15 anos ou mais apresenta uma média de 7,3 anos
de estudo, no meio rural, esse índice cai para 4,0 anos. Quanto ao
atendimento escolar, 97,5% das crianças brasileiras, de 07 a 14 anos, que
moram nas cida- des, e 95,5% das que moram no campo estão na escola. Já na
faixa etária de 15 a 17 anos, esses índices são de 84,2% para a população
urbana e 71,8% para a população rural; na Educação Infantil, apenas,
aproximadamente 25% das crianças do meio rural, com idade entre 03 e 06
anos, encontram-se matri- culadas (MEC/INEP. Censo Escolar, 2012).
Esses dados sinalizam para uma universalização do acesso à educação, na
faixa etária de 07 a 14 anos, mesmo no meio rural, situando uma maior
problemática no atendimento à população de 03 a 06 anos e com 15 anos
ou mais.
Essa problemática se expressa também na caracterização dessas escolas
e nas condições de oferta do ensino. Segundo o último censo escolar, em 2013,
tínhamos 70.816 escolas no campo, sendo 70% dessas multisseriadas; 15%
sem energia elétrica; 10,4% sem acesso à água; 14,7% sem esgoto; e
90,1% sem acesso à Internet. Além disso, 20% destas escolas, ainda,
funcionam em palho- ças, taipas, barracões de fazendas (MEC/INEP. Censo
Escolar, 2014).
Objetivamente, a Escola do Campo ainda é, em sua maioria, uma escola
das séries inicias do ensino fundamental, com até 50 estudantes, mantida pelas
redes municipais de ensino, multisseriada, com precárias condições de funcio-
namento e ameaçada de fechamento.

Escola do campo, uma escola multisseriada

Considerando o interesse desse texto em relação às salas multisseriadas,


nos deteremos um pouco sobre essa característica das escolas do campo.
A especialização da ciência moderna e a influência de uma psicologia
do desenvolvimento centrada nas ideias de desenvolvimento individual, linear,
natural e padronizado irão concorrer para a consolidação de uma escola
seriada, baseada principalmente na diferença etária e organizada em

1 1
Contudo, essa forma de organização escolar irá encontrar limites diante Vygotsky e
da baixa densidade populacional, característica da zona rural, diante de uma
es- cola estruturada com uma ou no máximo duas turmas com pequenos
grupos de estudantes de diferentes idades. Ignorando as especificidades dessa
realidade, a solução construída mantém a forma seriada hegemônica,
agrupando estudantes de diferentes séries numa única sala, com um único
educador, sem nenhuma adequação pedagógica.
Tal situação, aliada à baixa qualificação dos professores e às precárias
condições dessas escolas, irá contribuir para o agravamento da baixa
qualidade da educação oferecida às populações camponesas, reproduzindo a
negação do direito.

Destinada a oferecer conhecimentos elementares de leitura,


escri- ta e operações matemáticas simples, mesmo a escola
rural mul- tisseriada não tem cumprido esta função, o que
explica as altas taxas de analfabetismo e os baixos índices de
escolarização nas áreas rurais. (RIBEIRO, 2012, p. 293)

Apesar disso, não podemos “jogar fora a água suja com o menino
dentro”.

A escola multisseriada é uma realidade na educação no e do


cam- po que não pode ser ignorada. As posições sobre a
multisseriação são polêmicas e de crítica, por terem a seriação
como referência de lógica escolar mais adequada à
aprendizagem. Assim, há mui- to preconceito e desqualificação
das escolas multisseriadas, porém elas são uma forma possível e
necessária de organização escolar no campo e podem ser
referência de qualidade de ensino se organiza- das por ciclos e
por princípios multidisciplinares. (D’AGOSTINI;
TAFFAREL; SANTOS JÚNIOR, 2012, p. 313)

Partindo da realidade da educação no meio rural, com a


significativa presença das escolas multisseriadas, e com interesses em
elevar os indicado- res educacionais do Brasil, em 1996, o Banco Mundial
propõe e financia a realização do Programa Escola Ativa, inspirado na
experiência do Programa Escuela Nueva, desenvolvido na Colômbia desde os
anos 1970, com escolas multisseriadas.
O programa fundamenta-se na Escola Nova, de Dewey e no
construti- vismo Piagetiano, mesclando com alguns elementos das teorias de

1 1
Paulo Freire, e consiste num processo de formação, multiplicação e monitora- Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os
mento, partindo do MEC, passando pelas Instituições de Ensino Superior sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
até chegar aos professores, por intermédio dos multiplicadores e no adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, espe-
financiamento de kits escola, livros didáticos, formação, bolsas e supervisão cialmente:
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais
(D’AGOSTINI; TAFFAREL; SANTOS JÚNIOR, 2012).
ne- cessidades e interesses dos alunos da zona rural;
Iniciando na Região Nordeste em 1996, até 2010 o Programa expande- II - organização escolar própria, incluindo adequação do calen-
-se atingindo abrangência nacional e chegando a ser a ação mais expressiva da dário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
política nacional de Educação do Campo. Ao longo de sua trajetória, passa por III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.
várias avaliações e reformulações, buscando adequar-se às referências da
Educa- ção do Campo, que se consolidam na década de 2000, e dar resposta às Contudo, é com o Parecer CNE/CEB nº 36/2001 e a Resolução
diversas críticas e aos parcos resultados apresentados, chegando a ser extinto e CNE/ CEB nº 01/2002, que instituem Diretrizes Operacionais para a
reeditado, em 2012, com mudanças significativas, no formato da Escola da Educação Bá- sica nas Escolas do Campo, que juridicamente temos o
Terra. reconhecimento da especificidade do campo e a legitimidade de um projeto
Feito esse destaque em relação às escolas multisseriadas, retornemos à de educação próprio.
discussão mais geral da escola do campo. O Artigo 2º da Resolução CNE/CEB nº 01/ 2002 define a identidade
da Escola do Campo
A Escola do Campo nos termos da Lei
Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida
Se, concretamente, a escola do campo se objetiva na precariedade da ex- pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, anco-
pansão da escola burguesa, o movimento histórico de expansão do capitalismo rando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na
na agricultura brasileira, nas últimas três décadas, e o respectivo movimento de memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e
resistência popular camponês irão tencionar a luta pela terra e, a partir tecno- logia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em
desta, a luta pelo direito à educação das populações camponesas, nos seus defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas
questões à qualidade social da vida coletiva no país.
diversos contextos.
E na medida em que avançam as conquistas por políticas de educação
No artigo 4º da Resolução CNE/CEB nº 01/2002, o mundo do traba-
es- colar, avançam também as críticas ao projeto de escola hegemônico e a
lho e o desenvolvimento social, economicamente justo e ecologicamente sus-
constru- ção de referências empíricas e teóricas, que vão fundamentando a luta
tentável, são apresentados como centro do projeto institucional das escolas do
específica por políticas de Educação do Campo, contrapondo-se não somente à
campo, constituído como espaço público de investigação e articulação de expe-
histórica negação do direito, mas à perspectiva de educação burguesa.
riências e estudos. O mesmo dispositivo legal, em seu artigo 5º, estabelece que
A despeito dos limites dessas mudanças, dentro da ordem estabelecida,
as propostas pedagógicas das escolas do campo, contemplarão a diversidade do
importantes avanços foram conquistados, consolidando um marco jurídico
campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de
e um conjunto de ações, sobretudo, no âmbito da política nacional de
gênero, geração e etnia.
educação, que afirmam as especificidades da vida no campo e a necessidade de
Em 2008, a Resolução CNE/CEB nº 02/2008 institui Diretrizes com-
um trata- mento diferenciado, quer seja em virtude dessas especificidades ou
plementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas
no sentido de superação da histórica desigualdade em relação às populações
de atendimento da Educação Básica do Campo, tratando principalmente da
urbanas.
nucleação de escolas e do deslocamento de estudantes. No Artigo primeiro,
A Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394), de 1996 já reconhecia a
reafirma a definição de Educação do Campo como a Educação Básica em suas
neces- sidade de adequação da educação básica no meio rural:
1 1
etapas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e § 1º Para os efeitos deste Decreto, entende-se por:
Educação Profissional Técnica de nível médio integrada com o Ensino Médio, I - populações do campo: os agricultores familiares, os extrati-
reconhe- cendo a diversidade de seus sujeitos em suas mais variadas formas de vistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e
produção da vida: agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados ru-
rais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os
ribeirinhos, assentados e acampados da Reforma Agrária, quilombolas,
caboclos e outros que produzam suas condições materiais de
caiçaras, indígenas e outros.
existência a partir do trabalho no meio rural; e
No seu décimo artigo faz referência às escolas multisseriadas: II - escola do campo: aquela situada em área rural, conforme de-
finida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
Art. 10 O planejamento da Educação do Campo, oferecida tica - IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda
em escolas da comunidade, multisseriadas ou não, e quando a predominantemente a populações do campo.
nucle- ação rural for considerada, para os anos do Ensino § 2º Serão consideradas do campo as turmas anexas vinculadas a
Fundamental ou para o Ensino Médio ou Educação escolas com sede em área urbana, que funcionem nas condições
Profissional Técnica de nível médio integrada com o Ensino especificadas no inciso II do § 1o.
Médio, considerará sempre as distâncias de deslocamento, as § 3º As escolas do campo e as turmas anexas deverão elaborar
condições de estradas e vias, o estado de conservação dos seu projeto político pedagógico, na forma estabelecida pelo
veículos utilizados e sua idade de uso, a melhor localização e as Conse- lho Nacional de Educação.
melhores possibilidades de trabalho pe- dagógico com padrão § 4º A educação do campo concretizar-se-á mediante a oferta
de qualidade. de formação inicial e continuada de profissionais da educação, a
§ 1º É indispensável que o planejamento de que trata o caput garantia de condições de infraestrutura e transporte escolar, bem
seja feito em comum com as comunidades e em regime de como de materiais e livros didáticos, equipamentos, laboratórios,
colabora- ção, Estado/Município ou Município/Município biblioteca e áreas de lazer e desporto adequados ao projeto
consorciados. po- lítico-pedagógico e em conformidade com a realidade local
§ 2º As escolas multisseriadas, para atingirem o padrão de quali- e a diversidade das populações do campo.
dade definido em nível nacional, necessitam de professores com
formação pedagógica, inicial e continuada, instalações físicas e
No Artigo 2º, reafirma os princípios da Educação do Campo, já dispos-
equipamentos adequados, materiais didáticos apropriados e su-
tos nos instrumentos jurídicos anteriormente citados.
pervisão pedagógica permanente.

I - respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais,


Em 2010, o Decreto nº 7.352, de 04 de novembro, irá dispor sobre a
cul- turais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero,
política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Refor- geracional e de raça e etnia;
ma Agrária - PRONERA. II - incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos es-
Inicia delimitando a abrangência da política, da educação básica à supe- pecíficos para as escolas do campo, estimulando o desenvolvi-
rior, e reafirmando a corresponsabilidade das três esferas em regime de colabo- mento das unidades escolares como espaços públicos de investi-
gação e articulação de experiências e estudos direcionados para
ração, definindo as populações e escolas do campo, nos termos da lei.
o desenvolvimento social, economicamente justo e
ambientalmen- te sustentável, em articulação com o mundo do
Art. 1º A política de educação do campo destina-se à ampliação
trabalho;
e qualificação da oferta de educação básica e superior às popula-
III - desenvolvimento de políticas de formação de profissionais
ções do campo, e será desenvolvida pela União em regime de
da educação para o atendimento da especificidade das escolas do
co- laboração com os Estados, o Distrito Federal e os
campo, considerando-se as condições concretas da produção e
Municípios, de acordo com as diretrizes e metas estabelecidas
reprodução social da vida no campo;
no Plano Nacional de Educação e o disposto neste Decreto.

1 1
IV - valorização da identidade da escola do campo por meio ou, mesmo na zona urbana, atendam predominantemente as populações rurais
de projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e
(Decreto nº 7.352/2010).
metodolo- gias adequadas às reais necessidades dos alunos do
campo, bem como flexibilidade na organização escolar, Uma vez classificada como Escola do Campo, a referida escola deverá
incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo adequar seu currículo a essa realidade e poderá beneficiar-se de um conjunto
agrícola e às condições climáticas; e de políticas específicas, dentre as quais o custo-aluno diferenciado e as ações
V - controle social da qualidade da educação escolar, mediante do Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo).
a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais Apesar dos limites, o marco legal da educação do campo até aqui
do campo.
institu- ído; os avanços ocorridos na política pública educacional brasileira e a
conjun- tura de mobilização dos movimentos sociais camponeses compõem
No Estado do Ceará, a Resolução nº 426/2008, do Conselho
um cenário relativamente favorável para mudanças na forma escolar, criando
Estadual de Educação, regulamenta a Educação Básica na escola do campo e,
possibilidades de disputa do projeto de escola e de avanços na perspectiva
seguindo a base jurídica nacional, em seu artigo 4º, orienta que “o
de uma educação emancipatória.
planejamento das secretarias de educação deve articular as experiências de
estudos existentes no município e orientar a organização do currículo das Possibilidades de práticas pedagógicas
escolas para o mundo do trabalho e para o desenvolvimento social emancipatórias nas escolas do campo
economicamente justo e ecologica- mente sustentável”. E em seu artigo 8º, ao
tratar do currículo, recomenda “con- siderar as especificidades locais e A Escola do Campo para além do direito
regionais em todas suas dimensões, com foco, na dinâmica que se estabelece
nesse ambiente, a partir da convivência com os meios de produção e com a Inegavelmente, a primeira década do Século XXI testemunhou avan-
cultura”. ços importantes na política educacional brasileira no que se refere aos direitos
Por fim, a partir da Resolução nº 04/ 2010, que define Diretrizes Curri- à educação das populações camponesas, compreendida aqui numa concepção
culares Nacionais Gerais para a Educação Básica, temos a classificação da alargada, conforme o Decreto nº 7.352/2010. A Educação do Campo é, em
Edu- cação do Campo no elenco de modalidades da Educação Básica. primeira instância, a garantia do direito à educação, historicamente negado
Conforme consta em seu artigo 35, a essas populações.
Contudo, embora o acesso à educação escolar seja necessário, não é su-
Na modalidade de Educação Básica do Campo, a educação para ficiente. A história que construiu a escola foi tecida a partir de um projeto
a população rural está prevista com adequações necessárias às de sociedade que ignorou a vida no campo. O desenvolvimento do
peculiaridades da vida no campo e de cada região, definindo-se capitalismo produziu uma dicotomia entre rural e urbano e uma
orientações para três aspectos essenciais à organização da ação subordinação do primei- ro ao segundo, que se expressa, por um lado, na
pedagógica:
dispensabilidade da escola como instituição educadora da classe
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais
ne- cessidades e interesses dos estudantes da zona rural; trabalhadora camponesa; e por outro, na reprodução de um projeto de
II - organização escolar própria, incluindo adequação do calen- escola que, na sua forma e no seu conteúdo, desconsidera as especificidades
dário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições do campo; alimenta uma visão preconceituosa do meio rural como lugar do
climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona atraso e de suas culturas como inferiores; e educa, sobretudo, para o êxodo
rural. rural.
Nesse sentido, é ilustrativa a fala de um sábio pescador da Prainha
Resumindo, a legislação educacional brasileira reconhece como Escolas do Canto Verde, comunidade tradicional do litoral cearense, ao dizer que
do Campo todas as que se situam na zona rural, conforme definição do IBGE, “quem dá pra escola não dá pra pesca e quem dá pra pesca não dá pra escola”.
1 1
Ao que

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poderíamos estabelecer um paralelo: quem dá pra roça, não dá para a escola e O que está em disputa é o projeto de formação dos homens e
quem dá para escola não dá para roça, afirmando a desarticulação da escola mulheres do campo e da sociedade camponesa, de modo geral, que
com a realidade camponesa. encontra na escola um lugar privilegiado de educação desses sujeitos.
Tanto o marco legal, quanto as experiências e elaborações conceituais em Portanto, a construção da Escola do Campo a que nos referimos não
torno da Educação do Campo, reconhecem a necessidade de crítica do projeto se trata, apenas, de um prédio específico, com um currículo diferenciado, mas
de escola hegemônico e defendem a necessidade de contextualização da educa- da intencionalidade educativa de todas as escolas que se encontram no
ção à realidade camponesa. Uma educação construída a partir de seus sujeitos campo, educando sua população.
e suas especificidades. Um projeto de educação dos homens e mulheres, traba- Tal intencionalidade precisa ser fundada num conjunto de princípios
lhadores e trabalhadoras do campo, orientado por uma concepção afirmativa da his- toricamente concebidos pelos trabalhadores camponeses, na luta pela
vida camponesa (CALDART, 2012). construção do novo campo, e expressar-se no que dá materialidade à escola: no
No entanto, a concepção de uma escola na perspectiva de uma edu- currículo, no financiamento, na gestão, na formação dos educadores e assim
cação omnilateral emancipatória exige mais ainda que a contextualização da por diante.
educação. A emancipação implica na formação de seres humanos livres, que, Nesse sentido, apontamos aqui alguns elementos fundamentais que po-
na atualidade da sociedade burguesa, não é possível sem sua superação, no dem contribuir na concretização dessa perspectiva de escola do campo.
centro da qual se situa a luta de classes. a) Uma escola pública camponesa
O antagonismo da educação do campo não é com a educação da cidade, Público é o que está a serviço do povo, de seus interesses e sob o seu
mas, com o projeto de educação burguesa para a classe trabalhadora. Essa comando.
elabora- ção vem sendo concretizada no acirramento da luta de classes no Na sociedade capitalista, o Estado rende-se aos interesses e ao comando
campo, na atual conjuntura, que confronta o projeto de agricultura capitalista das classes dominantes; ou seja, o Estado não é público, mas particularista
com a necessidade de afirmação de um projeto de agricultura da classe e privatista. Portanto, para a escola ser pública, não basta que seja estatal,
trabalhadora camponesa. precisa ser autogovernada; e a classe trabalhadora camponesa,
Desse modo, a Educação do Campo precisa contrapor-se à educação ca- autoeducada.
pitalista no campo. E nessa perspectiva, não basta garantir o direito à A escola do campo precisa estar a serviço do povo camponês, conce-
educação; nem, tampouco, contextualizar o conhecimento escolar à realidade bida e gerida por estes. Isso somente é possível com uma ampla
camponesa; mas, afirmar uma concepção de educação da classe trabalhadora participação da comunidade em sua gestão, inclusive pedagógica, num
camponesa, que se contrapõe à hegemonia da educação capitalista, ambiente educativo democrático e com direção coletiva, assegurando a
contribuindo com a formação humana para a transformação social. participação dos sujeitos em todas as decisões que envolvem a escola.
Essa escola do campo vinculada a um projeto de campo e de sociedade Uma gestão democrática que inclui a auto-organização dos educandos
é construída na medida em que construímos um novo campo; e, (as) para sua participação efetiva nos processos de gestão escolar e mantém
dialeticamente, é instrumento estratégico na construção dessa nova vínculo orgânico da escola com as comunidades do campo e suas
realidade. organizações.
Como projeto, constitui-se em intencionalidade a ser materializada pelo b) Uma escola formadora do homem e da mulher do campo
povo camponês em sua luta. E para tanto, não existem modelos, nem receitas; A escola do campo precisa romper com a lógica da escola capitalista forma-
tem que ser criativamente inventada. E mais que isso, precisa ser dora de capital humano e constituir-se experiência educativa de formação humana.
disputada, uma vez que seu vínculo com um projeto de campo, antagônico Nesse sentido, é necessária uma seleção de conteúdos formativos social-
ao projeto hegemônico capitalista do agronegócio, coloca a escola num campo mente úteis e eticamente preocupados com a formação humana integral e a
de disputa ideológica. construção de um ambiente educativo que vincule a escola com os processos

1 1
econômicos, políticos e culturais.

1 1
Uma escola centrada na vida, cujos conteúdos, vivências e relações precisa constituir-se em lugar permanente de auto-reflexão e formação dos seus
sejam formadores de valores humanistas e solidários; do cultivo da memória
coletiva do povo brasileiro; que promova novas relações das pessoas entre
si e com a natureza; e o interesse e a afirmação da vida no campo em todas as
suas dimen- sões, na perspectiva da formação unitária (que rompa com a
divisão entre quem pensa e gerencia e quem trabalha) e omnilateral (que
compreenda as diversas dimensões do ser humano).
c) Uma escola promotora do desenvolvimento do território camponês
A escola do campo faz parte do projeto de campo da agricultura campo-
nesa e da reforma agrária popular. Uma escola vinculada aos interesses da po-
pulação do campo, sua cultura, seu trabalho, suas lutas e sua vida. Uma escola
promotora do desenvolvimento do campo como lugar de viver e ser feliz, não
como lugar de atraso; nem como lugar de negócio.
Uma escola onde o conhecimento científico sistematizado dialoga com
os saberes, a cultura, o trabalho e as lutas camponesas, partindo de sua concre-
tude e ampliando as possibilidades de compreender e transformar a realidade;
que ajuda a desenvolver tecnologias que gerem trabalho para todos, e preserve
os recursos naturais e todas as formas de vida sobre a terra.
Uma escola que relaciona teoria e prática, a partir dos desafios
concretos e significativos da vida das comunidades camponesas e de seus
sujeitos, numa íntima relação entre escola e comunidade. Que toma a
realidade e seu movi- mento como base da produção do conhecimento; e a
pesquisa, como método. Ultrapassando os limites das salas de aulas, dos
muros e cercas dos pré-
dios escolares, estenda-se pelos diversos espaços da comunidade, de tal modo
que esta se constitua numa comunidade educadora e aquela num centro de
animação da cultura, das lutas e da vida no campo.
Uma escola que respeite e promova a cultura camponesa, reconhecendo
e afirmando os seus valores no diálogo com a diversidade, promovendo
uma nova relação entre campo e cidade.
Uma escola onde o trabalho camponês ocupa lugar de destaque,
rompen- do a dicotomia entre educação e trabalho e integrando-as num único
processo, o campo experimental da agricultura camponesa e da reforma agrária
popular, desde a matriz da agroecologia. Uma educação para o trabalho e pelo
trabalho.
d) Uma escola em construção e luta permanente
Como uma escola que está sendo inventada e que nunca está pronta,

1 1
sujeitos. Para isso é necessário fortalecer os coletivos criados a formação perma-
nente dos(as) educadores(as), reconhecendo e valorizando a importância
destes nesta construção.
A avaliação, o planejamento e a sistematização constituem um
processo permanente, participativo, e que envolve todos os momentos do
trabalho edu- cativo e todos os seus sujeitos.
Como lugar de disputa ideológica, sua construção é marcada pelo
conflito e pela luta permanente, exigindo uma postura militante de seus(as)
educado- res(as) e o vínculo com as demais dimensões da luta camponesa,
com os movi- mentos sociais do campo e suas causas e as demais lutas por
transformação social.

Concepção histórico-cultural de desenvolvimento e aprendizagem:


subsídios para o ensino e a aprendizagem em salas multisseriadas

Diversas são as concepções de desenvolvimento e aprendizagem que


ex- plicam e orientam as práticas de ensino. Cada concepção, no entanto,
tem diferentes implicações na perspectiva de formação do ser.
Quais as concepções que orientam nossa prática docente? Em que
medi- da temos clareza e domínio sobre as mesmas?
Importa não somente ter clareza das concepções que explícita ou impli-
citamente orientam nossas práticas, mas, sobretudo, ter domínio sobre as mes-
mas, a fim de que possamos tirar o melhor proveito delas como
instrumentos norteadores do nosso fazer.
Partindo da realidade das escolas do campo, com salas multisseriadas,
e a intencionalidade de contribuir com uma formação omnilateral, articulada
com a emancipação humana, consideramos que a concepção histórico-cultural
de desenvolvimento e aprendizagem, elaborada por Vigotski em colaboração
com Luria, Leontiev, dentre outros psicólogos soviéticos, aporta elementos
que nos permitem situar a educação na perspectiva da formação humana;
reconhecendo a relevância da escola na socialização do conhecimento de base
científica; e a importância da colaboração e da participação ativa dos sujeitos
na construção do pensamento.
Uma das principais contribuições dessa teoria foi, a partir da referência
marxista, situar a psicologia numa perspectiva sócio-histórica, reconhecendo a
práxis social como determinante no desenvolvimento do ser humano e
supe- rando a dicotomia entre sociedade e indivíduo.

1 1
Ao articular funções sociais e individuais na compreensão da dimensão Outra formulação importante da teoria histórico-cultural refere-se à
psicológica, Vigotski relaciona aprendizagem e desenvolvimento; construção relação entre conceitos espontâneos e conceitos científicos. Os conceitos es-
do conhecimento e mediação social. pontâneos são os desenvolvidos assistematicamente no cotidiano; enquanto os
Desse modo, “mediação” passa a ser uma das formulações fundamentais conceitos científicos são construídos em processos formais, modificando as ca-
de sua teoria. pacidades e o pensamento. Ambos os processos de formação de conceitos
Segundo Oliveira (2005, p. 26), “mediação, em termos genéricos, é o pro- estão interligados, de forma que os conceitos espontâneos desenvolvidos
cesso de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa, funcionam como base para formação dos conceitos científicos.
então, de ser ‘direta’ e passa a ser ‘mediada’ por esse elemento”. Desse modo, a articulação do conhecimento escolar (científico) com os
As relações entre o ser humano e o mundo não são diretas, mas conhecimentos prévios do cotidiano, problematizando-os, possibilita a cons-
mediadas por instrumentos físicos ou simbólicos. Enquanto os instrumentos trução de conhecimentos mais complexos que os anteriores, que por sua
físicos am- pliam as capacidades sensórias motoras, os signos funcionam como vez enriquecem o arcabouço psicológico promovendo o desenvolvimento.
ferramentas que auxiliam os processos mentais.
Em sociedade nos humanizamos. Ou seja, é no grupo social onde Referências
nos inserimos que nos apropriamos dos instrumentos e signos que nos
permitem de- senvolver as funções psicológicas que nos diferenciam enquanto BRASIL. Decreto nº 7.352/2010. Dispõe sobre a política de educação do campo e
gênero humano. Tais funções se desenvolvem primeiro nas relações sociais o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Brasília:
Presidência da República, 2010.
(interpessoal), mas em seguida são apropriadas internamente pelo indivíduo
(intrapessoal). Desse modo, o aprendizado vai impulsionando o . Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/
desenvolvimento (VIGOTSKI, 2003). CEB n° 01/2001. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do
Campo. Brasília: MEC/CNE, 2003.
Podemos compreender melhor essa relação entre aprendizado e desen-
volvimento a partir do conceito de “zona de desenvolvimento proximal”. .Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução
CNE/ CEB nº 04/2010. Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a
Segundo Vigotski (2003, p. 112, grifo do autor)
Educação Básica. Brasília: MEC/CNE, 2010.
[...] Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se CARDART, Roseli. Educação do Campo. In: CALDART, R. et alii (org.) Dicionário
costuma determinar através da solução independente de problemas, da Educação do Campo. Rio de Janeiro / São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da Joaquim Venâncio/ Expressão Popular, 2012.
solu- ção de problemas sob a orientação de um adulto ou em
CEARÁ. Conselho Estadual de Educação. Resolução nº 426/2008. Regulamenta a
colaboração com companheiros mais capazes.
Educação Básica na Escola do Campo, no âmbito do Estado do Ceará.
Fortaleza/CE: CEE, 2008.
Vigotski utiliza uma noção de desenvolvimento como um movimen-
CHAUÍ, Marilena. Introdução. In: LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São
to permanente, envolvendo não somente o que já está consolidado (desen- Paulo: Hucitec/Unesp, 1999.
volvimento real), mas incluindo o que existe com possibilidades de projeção
D’AGOSTINI, Adriana; TAFFAREL, Celi Zulke; SANTOS JÚNIOR, Claudio
(desenvolvimento potencial). Desse modo, a aprendizagem amplia o nível de
de Lira. Escola Ativa. In: CALDART, R. et alii (org.) Dicionário da Educação
desenvolvimento, que, por sua vez, possibilita aprendizagens mais complexas. do Campo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Tal formulação evidencia a importância do ensino e do professor no processo Venâncio / Expressão Popular, 2012.
de desenvolvimento dos sujeitos, intervindo no desenvolvimento potencial do
DALMAGRO, Sandra L. A escola no contexto das lutas do MST. Tese de
aluno, contribuindo para aprendizagem e seu desenvolvimento real. doutoramento. Florianópolis: UFSC, 2010.

1 1
FREITAS, Luiz Carlos de. Formação de quadros técnicos ou formação geral? Riscos
de um falso dilema para o MST. In: VENDRAMINI, C. R.; MACHADO, I. F. Escola
A ORGANIZAÇÃO CURRICULAR E PEDAGÓGICA
e movimento social: experiências em curso no campo brasileiro. São Paulo: Expressão DAS ESCOLAS MULTISSERIADAS DO CAMPO
Popular, 2011.
Sabrina de Bragança
GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Clarice Zientarski
2004.
. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989.
MACHADO, Lucília. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez, 1989. Introdução
MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Tradução de
Newton Ramos de Oliveira. 2a edição. Campinas, SP: Alínea, 2010. O presente texto foi elaborado com o intuito de subsidiar a análise e
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo discussão com e dos docentes em formação continuada vinculados à Escola
Editorial, 2005. da Terra no Estado do Ceará, no que diz respeito aos percursos formativos e à
proposta pedagógica.
OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo
sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2005. A Escola da Terra é uma ação do Programa Nacional de Educação
do Campo-PRONACAMPO, instituído pelo Governo Federal em 20 de
PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. Tradução de José Severo de
março de 2012 por meio da Portaria do Ministério da Educação n° 579 de
Camargo Pereira. 20a Edição. São Paulo: Cortez, 2003.
02 de julho de 2013 em apoio às escolas do campo e de comunidades
RIBEIRO, Marlene. Educação Rural. In: CALDART, R. et alii (org.) Dicionário
quilombolas, que possuem turmas compostas por estudantes de idades
da Educação do Campo. Rio de Janeiro / São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio/ Expressão Popular, 2012. diversas nos anos iniciais do ensino fundamental, em diferentes níveis de
aprendizagem (mul- tisseriadas).
SAVIANI, Demerval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da
Os conteúdos aqui abordados estão organizados em 05 (cinco) subtítu-
vara, onze teses sobre a educação política. 41a edição revista. Campinas, SP: Autores
Associados, 2009. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, nº 5). los. Inicialmente, o texto traz um breve histórico sobre a luta dos povos do
cam- po pela garantia dos seus direitos; em seguida, trata do advento da
SILVA, Paulo Roberto de Sousa. Outros Campos: Os Movimentos Sociais da
Educação do Campo e sua evolução enquanto política pública; depois,
Zona Costeira do Ceará como Sujeitos da Educação do Campo. Fortaleza,
Monografia de Especialização – UnB, 2005. encaminha uma revisão de conceitos sobre conhecimento como fato
pedagógico e sobre algumas teorias e suas tendências; finalmente, abre um
. Trabalho e educação do campo nas escolas de ensino médio dos
assentamentos de reforma agrária vinculados ao Movimento dos Trabalhadores
debate sobre a prática pedagógica diversificada presente nas escolas e convida
Rurais Sem Terra no Estado do Ceará. Monografia de Especialização. Rio de à análise sobre a realidade pedagó- gica vivida pelos professores que atuam na
Janeiro/RJ, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz educação do campo e no campo, em especial nas escolas multisseriadas do
(FIOCRUZ), 2013. campo.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 6a ed. São Paulo: Martins O texto trata também sobre a Pedagogia Histórico- Critica e provoca
Fontes, 2003. o estudo da teoria no contexto da práxis, traz estudos e análises para a
construção de uma proposta coletiva de organização curricular e pedagógica
para as escolas do campo, bem como procura analisar a realidade pedagógica e
orientar a cons- trução coletiva de um planejamento para classes
multisseriadas.

1
Dito isto, que tal iniciarmos nosso estudo?

1
Uma história contada em breves palavras (SILVA,

A Educação do Campo constitui-se de uma política pública que tem


adquirido protagonismo político e de concretização na federação, nos estados
e nos municípios, nos últimos anos. Esta política pública vem sendo pensada e
realizada mediante a ação dos governos e da sociedade civil organizada, e tem
apresentado caráter de reparação da dívida histórica do Estado Brasileiro para
com seus povos e sujeitos do campo, na medida em que estes tiveram, durante
muito tempo, o direito à educação universal e de qualidade negado. Conta-
va esta prática com modelos pedagógicos que marginalizaram as comunidades
camponesas, e, em contrapartida, exaltavam o urbano, seus modos de
viver, pensar, agir como único viável no desenvolvimento social.
Além de ignorar a diversidade sociocultural do povo brasileiro e as dife-
rentes práticas sociais destes povos, estes modelos pedagógicos estavam a serviço
de um modo de produção sustentado pelo latifúndio, agroexportação da
pro- dução, exploração do ambiente e do trabalho no campo.
A maioria das abordagens teóricas apontava a educação como uma
ferra- menta para a legitimação da ordem social e a escola possuiria o papel
central de ajuste do indivíduo ao modo de produção capitalista. Isso fica
explícito quando olhamos para o histórico da educação pensada e provida
no campo brasileiro e constatamos que o modelo de educação praticado no
Brasil pelos diferentes governos, desde o Império (1822-1889) até meados
do século XX, era uma educação para a elite econômica e intelectual, em
prejuízo direto de pobres, negros, índios, especificamente, dos sujeitos
moradores da Zona Rural.
Durante muito tempo, a educação, especificamente, a escola brasileira,
esteve a serviço da elite e da aristocracia. Silva (2004) contribui com esta dis-
cussão, quando assegura que a escola brasileira, “desde o seu início até o
século XX, serviu e serve para atender as elites, sendo inacessível para grande
parte da população rural” (SILVA, 2004, p.1). O censo realizado em 1920, por
exemplo, mostrou que apenas 16,6% da população residia nas cidades e
70% desta se ocupava de atividades agrícolas. As tentativas de reforma
educacional, entre elas a Constituição de 1934, não apresentaram grandes
transformações na vida e no trabalho destas populações.
A escola foi institucionalizada, mas este processo não considerou o con-
texto vivido por grande parte da população nem as relações sociais, produtivas
e culturais e a “necessidade de formação sócio profissional desse povo”

1 1
2004, p.1). Estas reformas também aconteceram devido à entrada do país geradora de dependên- cia científica e tecnológica da parte dos
em uma onda de industrialização, com isso, houve uma maior necessidade de trabalhadores do campo. A educação rural, desse modo,
funcionou como uma educação
edu- car a população. A questão central é que a educação para o povo teria
como alvo as populações das cidades, já que um dos intuitos era a instrução
para o trabalho nas fábricas, relegando para segundo plano a educação nas
áreas rurais. A indústria e a agricultura brasileiras apresentam diferentes
desempe-
nhos a partir de 1950, sendo considerados, de certa forma, antagônicos. A agri-
cultura e, consequentemente, o rural como algo atrasado, arcaico; e a indústria
como um setor moderno e avançado. Dessa dicotomia, surge a necessidade
de qualificação da mão de obra para melhor servir ao trabalho na indústria
e, consequentemente, a urgência de educar a população. O fato influenciou
o alavancar de uma mudança de pensamento dos dirigentes brasileiros e das
elites Na década de 1960, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB
n. 4024/61), a tarefa de realização da educação das áreas rurais ficou a
cargo dos municípios. Surgem no país alguns movimentos pela alfabetização
nas áreas rurais, como aquele liderado por Paulo Freire em Angicos. Estas
iniciativas, po- rém, são fortemente reprimidas pelo golpe militar e a
consequente ditadura ci- vil militar, instaurada no Brasil em 1964. Isso pode
ser constado na medida em que, por exemplo, na Lei nº. 5.692/71, não
ocorreu menção à educação de 2º grau para as escolas rurais nem foram
apresentados avanços para estas escolas.
Observou-se que, a educação rural não constituiu prioridade de
inves- timentos, ficando relegada à marginalização, nas políticas sociais. O
que se verifica é que, com a introdução das empresas agrícolas, surge a
necessidade de preparar os trabalhadores para desempenharem novas
funções no proces- so produtivo agrícola, além de oferecerem para esta
população a “educação” para novos consumos, principalmente dos produtos
produzidos pelas empresas produtoras de adubos e venenos. Ribeiro (2010)
apresenta uma análise mais profunda quando ressalta que:

[...] é fácil deduzir que as políticas sociais destinadas às


popu- lações camponesas, em particular a educação, tiveram
maior incremento e volume de recursos quando havia, por
parte dos sujeitos do capital, interesses ligados à expropriação
da terra e a consequente proletarização dos agricultores,
combinada com a implantação de uma produção agrícola

1 1
formadora tanto de uma força de trabalho disciplinada quanto agrícola e às condições climáticas;
de consumidores dos produtos agropecuários, agindo, nesse sen- III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. (BRASIL/MEC, 1996)
tido, para eliminar os saberes acumulados pela experiência sobre
o trabalho com a terra (RIBEIRO, 2010, p.171-172).

O que vimos até o momento deixa evidente a ausência de interesse


do Estado brasileiro em desenvolver a educação da população que vivia na área
rural. Tal situação tende a se modificar a partir da promulgação da
Constituição de 1988, quando a educação passou a ser considerada como
um direito de todos. Ela estipula a gratuidade e obrigatoriedade do Ensino
Fundamental, bem como a extensão para o Ensino Médio; estabelece planos de
carreira para o magistério público; determina a gestão democrática do ensino
público, a autonomia das universidades e o plano nacional de educação. Com
estas prerrogativas, os povos do campo, os movimentos sociais populares e os
professores esperavam que as condições para a população do campo poderiam
ser modificadas para melhor.
Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº.
9.394/96), há o reconhecimento da diversidade do campo, com artigos que
estabelecem orientações para atender a essa realidade, tratando das questões
pedagógicas, da organização escolar e da adaptação do currículo às suas
peculiaridades38. Contu- do, mesmo com esses avanços na legislação
educacional, a realidade das escolas para a população rural continuou precária.
Assim, embora que com as alterações legais, os avanços não tenham sido o que
a população do campo esperava e mere-

38 Destaque para os artigos 23, 26 e 28:


Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos,
alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na
competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse
do processo de aprendizagem assim o recomendar.
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter
base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e
locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (Redação dada pela Lei nº
12.796, de 2013).
Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão
as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região,
especialmente:
I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos
alunos da zona rural;
II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo

1 1
cia, possibilitou-se que as escolas do campo construíssem sua proposta pedagógica [...] na realidade, não existe filosofia em geral: existem diversas
coletivamente e que se reconhecessem como sujeitos de direitos. filosofias ou concepções do mundo e sempre se faz uma escolha
Nesse contexto, a construção das Diretrizes Curriculares da
Educação do Campo constituiu um passo importante na afirmação da
educação como um direito universal, pois apresenta como um dos seus
objetivos o propósito de contribuir com o corpo docente, no sentido de
(re)organizar a sua prática educativa, tornando-a cada vez mais próxima da
realidade dos sujeitos do cam- po, criando assim um sentimento de pertença
das crianças e adolescentes, que terão, na escola, um trabalho educativo
significativo.
Assim, diante do exposto, justamente com o objetivo de contrapor-se
ao discurso dominante, pensamos em uma organização curricular construída
co- letivamente, partindo da realidade do campo e considerando as
especificidades de cada uma das escolas e comunidades em que estas se
inserem.

Revisando conceitos

O objetivo, portanto, é propor uma breve revisão dos nossos


conceitos sobre o conhecimento como fato pedagógico, assim como suscitar
discussões sobre algumas teorias e suas tendências, colocadas à disposição
dos educadores por estudiosos do assunto. A partir da fundamentação que
esse trabalho sugere, refletiremos sobre “o como e os porquês” de adotar
sempre a mesma conduta pedagógica, ou de variar em qualquer tempo nossa
ação educativa escolar e até condenar a conduta de colegas, quando a
mesma diverge da nossa.
Qual o pensamento sobre os valores que se pretende difundir, os
méto- dos a serem adotados e o que pensa sobre produção, trabalho, cultura,
educação e arte, por exemplo? Qual o conceito, expresso no documento
orientador da es- cola, sobre o próprio homem e sua vida cotidiana? E ainda:
como a escola pensa o mundo e qual a postura que apresenta diante da
realidade da comunidade onde está inserida, para além das aparências e para
além dos muros da escola?
Pondo os pés no chão, vamos pensar um pouquinho? Que tal seguir
o pensamento de Gramsci (1987 p.13) quando afirma: “não há filosofia, ou
seja, concepção de mundo sem nossa consciência de historicidade ...”? Neste
sentido concordamos com ele que

1 1
entre elas [...]. A escolha e a crítica de uma concepção do mundo processo, seus aspectos sociais e psicológicos.
são, também, fatos políticos (p. 14-15).

Neste prisma, com Gramsci compreende-se o homem como ser histórico


e politico e ainda que o materialismo histórico não pode ser desvinculado
do projeto filosófico da práxis39.
Assim, no que se relaciona à práxis, vamos voltar a pensar juntos? A
pri- meira reflexão sobre a práxis nos leva a perceber, no que diz respeito à
educação e à escola, que ambas estão sujeitas a fatores condicionantes de
ordem sociopo- lítica que implicam em diferentes concepções de homem e de
sociedade. A ação pedagógica fundamentada precisa favorecer o conhecimento
sem, entretanto, impor uma verdade única e absoluta, mas oportunizando que
este seja assimila- do de forma crítica e com função transformadora na vida
prática e comunitária do estudante, elementos que a definem como
sociopolítica. Isso nos remete aos diferentes pressupostos teóricos presentes
nas tendências pedagógicas40, classi- ficadas por Libâneo (1990) em dois
grupos e que versam sobre as funções da escola e da aprendizagem que,
explícita ou implicitamente, se fazem presentes em nosso trabalho no
cotidiano escolar.
Neste prisma, não podemos ignorar os conhecimentos sobre as
principais tendências pedagógicas, e seus pressupostos de aprendizagem,
imprescindíveis para a definição na (re)organização curricular da escola e,
consequentemente, para as possibilidades de transformação no processo de
ensino e aprendizagem, do qual fazemos parte.

39 Para Gramsci (1987), a filosofia da práxis busca a superação do senso comum e propõe
elevar a condição cultural da massa e dos indivíduos, por meio de uma atitude crítica de
superação da antiga maneira de pensar, tendo como elemento importante o pensamento
concreto existente ou o universo cultural existente. Explicando a partir do pensamento
marxista a respeito da práxis, descrevemo-la como uma atividade que tem a sua origem na
interação entre o homem e a natureza, de forma que só faz sentido quando o homem a altera
através da sua conduta. Assim sendo, a práxis é o fundamento da teoria e esta teoria deve estar
incluída na práxis. Marx (2009) defende que é na práxis que o homem deve demonstrar a
verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento.
40 Libâneo (1990) explica as tendências pedagógicas classificando-as em dois grupos:
“liberais” e “progressistas”. No primeiro grupo das tendências: “tradicional”, “renovada
progressivista”, “renovada não-diretiva” e a “tecnicista”. No segundo grupo: tendência
“libertadora”, “libertária” e a “crítico-social dos conteúdos”. É importante frisar que cada
tendência apresenta: a função social da escola; os conteúdos do ensino condicionados à realidade
intra e extraescolar; o método de ensino e os pressupostos do ensino e das aprendizagens e a
postura do professor em relação ao aluno, sempre considerando os sujeitos envolvidos no

1 1
Estamos sugerindo nessa conversa pensar sobre o ecletismo de tendên-
cias observado nas escolas, atualmente justificado talvez pela insuficiência de
conhecimentos que fazem com que a prática docente se torne dissociada
da teoria sobre os fundamentos da educação. Sabe aquela ideia de “algo
velho com roupa nova”, sempre presente na prática estruturada no
tradicionalismo pedagógico de muitos professores? É isso! E olha que, em
geral, vem mescla- da por “boas intenções” de “inovar para acertar”. Toda
reforma ou inovação sem base firme, porém, dificulta os resultados
esperados, pondo em risco o propósito educativo que deveria ser bem
alicerçado, construído coletivamen- te e subsidiado por uma teoria
pedagógica que contribua com o processo de transformação social.

Os percursos formativos para a escola do campo: ou


para onde pretendemos caminhar coletivamente

A partir das questões anteriormente lançadas, pretendemos avançar


e discutir um tema que embasará nossas práticas pedagógicas, em nosso
dia a dia em salas de aprendizagens, no campo e com estudantes de várias
etapas escolares.
Compreender e analisar a nossa prática pedagógica implica entender os
seus pressupostos teóricos, fator imprescindível para que a executemos, cons-
cientemente, na prática. É preciso discernir entre a teoria que fundamenta
a nossa concepção de aprendizagem e o método proposto por ela. É
necessário ainda que o discurso esteja alinhado e coerente com a prática;
que se tenha disposição para desconstruir uma prática docente tradicional;
construir práti- cas associadas às expectativas da sociedade, portanto,
contextual, significativa e transformadora; assim, definir conscientemente a
própria trajetória políti- co-pedagógica.
A proposta que defendemos é a da Pedagogia Histórico- Critica
(SA- VIANI), explicada pelo pensamento filosófico a partir do materialismo
his- tórico-dialético, preconizado por Marx, apoiada nos fundamentos da
prática articulada à teoria. Assim, como Saviani propõe, a partir da
Pedagogia Histó- rico- Critica, a “práxis” comprometida com o processo de
ensino e de aprendi- zagem, visando ao desenvolvimento das capacidades, a
promoção humana dos sujeitos educativos e sua inserção social consciente,
defende uma organização curricular dinâmica. Nesse sentido, a construção do
conhecimento se dá como

1 1
fato histórico, sob o pressuposto de continuidades, rupturas, reelaborações, discurso, documento. O currículo é documento de identidade
reincorporações, permanências e avanços. (SILVA, 2009, p. 150).
Neste prisma, afirma-se que é na práxis que o homem torna-se capaz de
superar a opressão. Portanto, a práxis é uma condição para a ação
revolucio- nária. Com este intuito, partimos de alguns questionamentos
que permeiem a construção de uma organização curricular para as escolas
do campo, mas, inicialmente perguntamos: que tipo de sociedade precisa ser
construído pela educação do campo? Quais saberes, conhecimentos e
concepções os sujeitos precisam possuir ou dominar para pensar as políticas
de desenvolvimento no campo, preservando os elementos históricos e
culturais que alimentam a vida dos camponeses? Qual o tipo de sujeito que
está sendo formado para viver no campo que se coloca como perspectiva para
a transformação? Quais conteúdos precisam ser priorizados no currículo das
escolas do campo? Qual o diálogo que precisamos ter com as comunidades
do campo, no sentido de pensar o currículo em sintonia com suas
necessidades políticas e formativas? Como romper com projetos e
concepções curriculares que, segundo Veiga (1995, p. 79), apresentam os
conhecimentos transmitidos com “concepções abstratas, autônomas,
independentes da realidade socioeconômica e política, tidos como universal”?
Indagamos ainda: por que o ensino das diferentes disciplinas se resume em
oferecer o programa, em concordar com uma base curricular elaborada
muitas vezes em dissonância com a realidade das escolas? Porque não
contribuir com o processo educativo e capacitar o estudante de forma a
ampliar os conhecimentos e relacioná-los ao contexto sociocultural do
campo?
Nesta perspectiva, compreendemos que, para romper com as práticas,
é necessário que os processos educativos estejam em sintonia com os projetos
de desenvolvimento das comunidades, para que os conhecimentos e saberes
produzidos na sala de aula possibilitem aos estudantes agirem de forma ativa e
transformadora no espaço em que vivem e na sociedade em geral.
Assim, compreende-se com Silva (2009) que o currículo tem
significados muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais os
confinaram, pois:

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação


de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O
currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no
currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto,

1 1
Veiga (1995, p. 82) defende a necessidade de que o currículo se torne:

[...] instrumento de confronto de saberes: o saber


sistematiza- do, indispensável à compreensão crítica da
realidade, e o saber de classe, que o aluno representa e que é
resultado das formas de sobrevivência que as camadas
populares criam. Valoriza o saber de classe e coloca como
ponto de partida para o trabalho educativo.

A partir desta concepção de currículo, compreende-se o campo como


um modo de vida social, que considera a identidade dos seus sujeitos, sua
historici- dade, seus conhecimentos, suas lutas, suas práticas, seu trabalho e
suas relações com a natureza, sejam eles: posseiros, assentados ou
reassentados, assalariados rurais temporários, meeiros, acampados, pequenos
proprietários, povos da flo- resta, vileiros rurais, comunidades negras,
quilombolas, ribeirinhos, pescadores ou de outro segmento de trabalhadores.
Trata-se de povos que, no decorrer da história, foram expulsos do campo,
marginalizados, desapropriados, enfim, ex- cluídos pelo modo de produção
capitalista.
No intuito de compreender a importância de se romper com este
mo- delo, é que nos valemos da proposta metodológica histórico-crítica,
defendi- da por SAVIANI (2003). Esta proposta apresenta cinco momentos, a
saber: a prática social, a problematização, a instrumentalização, a catarse e o
retorno à prática social. Nessa proposta, a prática social é sempre o ponto de
partida e o ponto de chegada. O trabalho educativo passa a ser compreendido,
conforme anuncia Saviani (2003), como o ato de produzir direta e
intencionalmen- te em cada sujeito a humanidade produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens. Para sabermos um pouco mais,
vamos ao próximo subtítulo deste texto.

A Pedagogia Histórico- Critica: a teoria no contexto da práxis

O entendimento sobre a Pedagogia Histórico‐Crítica precisa


considerar o processo histórico da educação e as teorias pedagógicas
anteriores a ela. As- sim, este referencial teórico‐metodológico se pauta em
marcos relevantes das teorias existentes, enfatiza o processo de acumulação
de conhecimentos pela

1 1
humanidade, visa à transformação social e se apresenta revolucionário em sua condições sociais vigentes’’.
essência41.
Compreender a Pedagogia Histórico- Critica implica, portanto, em
en- tender seus pressupostos teóricos como fator imprescindível para que a
execu- temos conscientemente. A nossa prática docente definida
conscientemente, em uma nova trajetória político-pedagógica, necessita ter
como referência confor- me Saviani (2005): a fundamentação teórica que
precede a nossa concepção de ensino e de aprendizagem; a definição do
método proposto por essa concepção; a coerência e o alinhamento do nosso
discurso com a nossa prática; a disposição para construir práticas
contextualizadas, significativas, transformadoras e ter compatibilidade com as
reais expectativas da sociedade.
Saviani, em sua obra Escola e Democracia (2005, p.69), esclarece sobre
o processo metodológico da pedagogia histórico–critica, afirmando que:

Tais métodos situar-se-ão para além dos métodos tradicionais e


novos, superando por incorporação as contribuições de uns e de
outros. Serão métodos que estimularão a atividade e a iniciativa
dos alunos, sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor,
favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas
sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada
histo- ricamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os
ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas
sem perder de vista sistematização lógica dos conhecimentos,
sua ordenação e graduação para efeitos do processo de
transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos.

A explicação, etimologicamente elaborada, para a denominação que Sa-


viani deu à Pedagogia Histórico- Critica é a de que, numa perspectiva
histórica, a educação contribui para a transformação da sociedade e é crítica
porque, de forma consciente, age sobre as expectativas que a sociedade tem da
escola que lhe serve. Para Saviani, as práticas pautadas em pedagogias
tradicionais ou na escolanovista não possuíam em suas formulações essas
características historici- zadoras ou transformadoras. Neste sentido, pode-se
afirmar que com Saviani se

41 Saviani (2003, p. 66) afirma sobre a pedagogia histórico crítica: ‘‘A pedagogia revolucionária
situa‐se além das pedagogias da essência e da existência. Supera ‐as, incorporando suas críticas
recíprocas numa proposta radicalmente nova. O cerne dessa novidade radical consiste na
superação da crença na autonomia ou na dependência absolutas da educação, em face das

1 1
iniciou um movimento social e cultural, no sentido de desenvolver uma
análise crítica da pedagogia dominante, que não apresentava uma perspectiva
historici- zadora e, sim, de caráter reprodutor. Por serem reprodutoras do
pensamento da classe dominante, as pedagogias: tradicional, escolanovista,
tecnicista e neotec- nista carecem da consciência de condicionantes histórico
sociais da educação. (SAVIANI, 2008).

A pedagogia histórico‐crítica surgiu no início dos anos 80


como uma resposta à necessidade amplamente sentida entre os
educa- dores brasileiros de superação dos limites tanto das
pedagogias não‐críticas, representadas pelas concepções
tradicional, escola- novista e tecnicista, como das visões
crítico-reprodutivistas, ex- pressas na teoria da escola como
aparelho ideológico do Estado, na teoria da reprodução e na
teoria da escola dualista (SAVIANI, 2008, p. 19).

A Pedagogia Histórico- Critica apoia-se nos fundamentos da prática ar-


ticulada à teoria; na produção da vida a partir da organização do homem
em sociedade e no percurso histórico que o homem constrói em sua vida
(práxis, materialidade e concreticidade). O movimento dialético implica em
prática-te- oria-prática ou ação-reflexão-ação. Ela parte da primeira visão que
se tem de um objeto (senso comum), abstrai-se dessa visão real, por meio da
teoria, e reelabo- ra-se, conscientemente, uma nova visão sobre o objeto
(consciência filosófica). Essa reelaboração voltará transformada, para
execução em uma nova prática.
Assim, tomando como base as nossas discussões anteriores no intuito
de melhor perceber a Pedagogia Histórico- Critica, vamos analisá-la do ponto
de vista da Psicologia e da Didática.
A Psicologia, por meio da Teoria Histórico Cultural, de Vigotski,
defen- de que o homem é um ser histórico e que, nessa perspectiva, o
conhecimento é construído na interação do sujeito com o objeto, por ações
socialmente me- diadas. Afirma o teórico que o conhecimento na criança
ocorre partindo do abstrato para o concreto e que os conceitos são mediados
por outros conceitos. Para Vigotski, existem dois níveis de desenvolvimento:
o real, quando a crian- ça é capaz de solucionar os problemas sem ajuda de
outra pessoa, e o poten- cial, quando ela depende do auxílio de terceiros na
busca de soluções. Scalcon (2002, p.59) defende que Vigotski criou a zona de
desenvolvimento proximal para explicar como a aprendizagem gera
desenvolvimento e exemplifica ao afir-
1 1
mar que “existe uma relação entre determinado nível de desenvolvimento e zagem, ações que se desenvolvem na interação entre docente e discente. De-
a capacidade potencial de aprendizagem”. fende a existência do homem como ser social que faz gerar o
A teoria da zona de desenvolvimento proximal define a relação entre conhecimento como resultado do seu trabalho, fundamentalmente baseado
o nível de desenvolvimento real constatado e a capacidade potencial para nova na interação com o mundo material num processo histórico de
aprendizagem. [...] “é exatamente a distância entre o nível de desenvolvimento transformação do mundo e da sociedade. Nesse processo, as organizações
real e o nível de desenvolvimento potencial” (BECKER, 1996, p.21). No nível sociais e as expressões da cultura, arte, religião, economia, política etc.,
de conhecimento real, o sujeito se sente seguro, portanto, autônomo para bus- interferem de forma importante na cons- trução do conhecimento. Gasparin
car novas possibilidades de aprendizagens. (2005) sublinha a defesa de Saviani sobre uma dinâmica que se dá na
Trocando em miúdos: suponhamos que, no primeiro degrau de uma es- construção do conhecimento como fato histórico e o pressuposto de
cada, pelo real conhecimento que tem de como chegar ao seu topo, o sujeito continuidades, rupturas, reelaborações, reincorporações, per- manências e
es- teja no nível real de desenvolvimento de aprendizagem (autonomia). Ele avanços. (GASPARIN, 2005).
usará esse conhecimento e a colaboração de quem possa interagir com ele para Nesta perspectiva, segundo Saviani (1997, p.16):
escalar e atingir o nível de conhecimento potencial. Quando está no último
degrau, já não pode mais dizer que o seu conhecimento é o mesmo de [...] Trata-se aqui da produção de ideias, conceitos, valores,
quando começou a subir. Sua possibilidade de novas aprendizagens se símbo- los, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se
concretizou porque, entre o primeiro e o último degrau, ele foi acumulando da pro- dução do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do
saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana.
experiências, até mesmo, formulando estratégias para descer. Agora, o
Obviamente, a educação se situa nessa categoria do trabalho
conhecimento dessa criança sobre subir escadas é real. não-material.

A Didática tem como objetivo reorganizar o processo educativo, valo-


rizando os conhecimentos historicamente acumulados. A sistematização dos
saberes é o ponto de partida.
Desta forma, Saviani, como dito anteriormente, estabelece cinco mo-
mentos da didática na Pedagogia Histórico- Critica, responsáveis pelo equilí-
O percurso ou a distância entre o conhecimento real e o que há de
brio entre a teoria e a prática, de forma a envolver os educandos
po- tencial a ser conhecido, é o que se chama “zona de desenvolvimento
(estudantes) numa aprendizagem de conhecimentos científicos e políticos, tão
proximal”. Ou seja: no processo de apropriação do conhecimento, “o subir
significativos, que os torne agentes participativos de uma sociedade
a escada” é o percurso que possibilita a passagem do desenvolvimento real
democrática e de educa- ção conscientemente política.
para o desenvol- vimento potencial. Atingindo o nível potencial, o
conhecimento do aprendiz é transformado em novo conhecimento real e A pedagogia revolucionária situa‐se além das pedagogias da es-
este o impulsiona a avançar na busca das possibilidades para atingir um novo sência e da existência. Supera‐as, incorporando suas críticas re-
nível potencial. Isso é sucessivo, gradual, portanto, processual. É como se cíprocas numa proposta radicalmente nova. O cerne dessa novi-
fosse uma espiral, cujo ponto de par- tida é o seu centro e, no processo, vai dade radical consiste na superação da crença na autonomia ou na
dependência absolutas da educação em face das condições
crescendo em volta desse.
sociais vigentes (SAVIANI, 2003, p. 66).
A análise, do ponto de vista da didática, revela que a Pedagogia
Histó- rico- Critica apoia-se na teoria dialética do conhecimento para
O primeiro momento dessa didática se refere ao nível de desenvolvi-
fundamentar a concepção de serem, a metodologia e o planejamento do
mento real ou atual do educando, advindo da sua prática social inicial. Partindo
ensino e aprendi-
1 1
dos conhecimentos prévios, ou seja, do que o educador e o educando já
sabem

1 1
sobre os conteúdos em níveis próprios e diferenciados; o professor anuncia nal. Esse é o momento em que o educando assume uma nova prática daqueles
o conteúdo a ser estudado e os objetivos pretendidos. Em seguida, o
professor dialoga com os educandos, no sentido de identificar o que eles já
sabem sobre o assunto, o que já experimentaram sobre ele e os provoca ao
aprofundamento, desafiando-os e os estimulando à curiosidade.
O segundo momento é a Problematização. O educador, em
interação com o educando, levanta os principais problemas relacionados ao
assunto ad- vindos das práticas sociais de ambos. É nessa etapa que o educador
sensibiliza o educando sobre a importância de aprender o assunto para
utilização na vida prática (significado social do conteúdo) e busca, junto com
ele, os motivos para que aprendam juntos. Nesse momento, o educador
levanta questões proble- matizadoras, levando em conta os aspectos da vida
cotidiana nas dimensões: científica, conceitual, socioeconômica e cultural,
política, religiosa, dos valores éticos e estéticos, conforme seus objetivos. Não
pode esquecer-se, porém, de considerar essas múltiplas visões.
No terceiro momento, se dá a instrumentalização, quando o educador,
por meio de estratégias adequadas, apresenta aos estudantes o conteúdo cien-
tífico formal e abstrato, de forma a possibilitar que o educando realize uma
comparação mental desse conteúdo com as vivências cotidianas e, assim se
apropriem do novo conhecimento. Tendo em vista os dizeres de Saviani (2007,
p. 71) a instrumentalização é o momento em que os estudantes se
apropriam dos [...] “instrumentos teóricos e práticos necessários ao
equacionamento dos problemas detectados na prática social” [...] Trata-se da
apropriação pelas ca- madas populares das ferramentas culturais necessárias à
luta social que travam diuturnamente para se libertar das condições de
exploração em que vivem.
No quarto momento, ocorre a catarse, quando o estudante realiza a for-
mulação de uma nova síntese mental, ou de um resumo de tudo que
aprendeu e dá novo conceito ao conteúdo. Ele externa e sintetiza essa nova
aprendizagem por meio de uma conversa formal ou informal, de uma avaliação
oral ou escri- ta, na qual traduz até onde aprendeu sobre o conteúdo, dentro
das dimensões trabalhadas. Saviani (2007, p. 72) explica dizendo que
catarse é “o momento da expressão elaborada da nova forma de entendimento
da prática social a que se ascendeu [...]”. Trata-se da efetiva “incorporação dos
instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de
transformação social [...]”.
Finalmente, o último, e quinto momento, consiste na prática social fi-

1 1
conteúdos científicos novos aprendidos que se manifesta por meio de ação fora que realmente atenda
da sala de aula. O aluno externa em novas atitudes e comprometimentos diante
de situações do cotidiano, sempre com ações mais conscientes e em efetivo exer-
cício social. Segundo Gasparin (2007, p. 133), “[...] os conteúdos tornam-
se verdadeiramente significativos porque passam a fazer parte integrante e
cons- ciente do sistema científico, cultural e social de conhecimentos [...]”,
para, as- sim, realizarmos a elaboração teórica da nova síntese e a expressão
prática dela. A Pedagogia Histórico- Critica, portanto, propõe uma práxis
compro- metida com o processo de ensino e de aprendizagem, visando ao
desenvolvi- mento das capacidades, a promoção humana dos sujeitos
educativos e a inser- ção social consciente destes. Adota um método de
trabalho cujo processo se inicia com a ação dos sujeitos, ou seja, sua prática
em seu meio social; uma vez que envolve o docente e o discente, oportuniza
maior aproximação entre eles, favorece o processo de ensino e aprendizagem,
despertando-lhes o senso obser-
vador, analítico e crítico.
A Pedagogia Histórico-Critica problematiza e desperta o interesse pela
discussão acerca dos problemas postos pela prática social e pelo conteúdo. As
várias ideias expostas favorecem a troca de experiências por fazerem parte
das vivências, dos conteúdos espontâneos são contextuais e, portanto,
significa- tivos, possibilitando que, melhor e mais facilmente, sejam
compreendidos e transformados em conteúdos científicos. A
instrumentalização consiste em que possibilitar aos estudantes reunir
elementos para que aprendam cientificamente o que já sabiam na prática do
seu dia a dia. A catarse representa o momento em que o aprendiz, por
meio da mediação do trabalho do educador, absorva de forma efetiva os
instrumentos culturais, transformados em ferramentas de reflexão ou
“elementos ativos de transformação social” (SAVIANI, 2009, p.64). Por fim,
ocorre a prática social final que os estudantes põem em prática os novos
conhecimentos adquiridos.
A adoção desta teoria e prática pedagógicas implica que os educadores
que têm práxis tradicionais assumam a seguinte postura: repensem e descons-
truam essas práticas, aprofundem seus conhecimentos teóricos, construam no-
vas estratégias de planejamento e aplicação de conteúdos, incluam a avaliação
como processo e, por isso constante, tanto para o educando quanto para
seu próprio trabalho educativo. Desenvolvam seu fazer pedagógico integrado
com o educando, com atividades escolares que ensejem um ensino
significativo, crí- tico e transformador. Tudo isso em função de uma escola
1 1
às aspirações da comunidade intra e extra escolar e seja reconhecida pela ou mal ensina- dos e/ou aprendidos implica tanto o esforço da
impor- tância e pela função que exerce na sociedade e na vida do reprodução da ide- ologia dominante quanto o seu
desmascaramento (grifo do autor).
educando.

Construindo coletivamente uma proposta de organização


curricular e pedagógica para as escolas do campo

Ao pensarmos na organização curricular e pedagógica para as escolas


do campo a partir da prática social e da Pedagogia Histórico- Critica, somos
leva- dos a discutir os princípios e as práticas presentes no currículo, e na
formação por área do conhecimento. A partir destas discussões, podemos
definir coleti- vamente uma proposta curricular alicerçada na apropriação de
conhecimentos teóricos e práticos necessários para a transformação social
numa perspectiva de emancipação humana.
O currículo integrado, conforme Santomé (1998), tem sido utilizado
como tentativa de contemplar uma compreensão global do conhecimento e de
promover maiores parcelas de interdisciplinaridade na sua construção. A inte-
gração ressaltaria a unidade que precisa existir entre as diferentes disciplinas e as
formas de conhecimento nas instituições escolares.
O currículo Integrado para a formação escolar básica parte, de certa ma-
neira, do estudo de pensadores libertários de tradição marxista, como Gramsci
ao defender a Escola Unitária e Dermeval Saviani, na defesa da formação po-
litécnica, no sentido de superar a dicotomia entre os processos
educacionais do cotidiano e o processo educacional escolar. A educação aqui
compreendida como a que propicia aos sujeitos nela envolvidos e que dela
se beneficiam o acesso à cultura e aos conhecimentos construídos pela
humanidade, contri- buindo com a construção e produção da vida, por
meio do trabalho.
Quando se trata de currículo, conforme explica Silva (2009), a
discussão é “o que ensinar na busca de contribuir naquilo que as pessoas
deverão ser”. Assim, o currículo possui grande importância na
determinação do êxito ou fracasso dos modelos sociais, tanto para sustentar o
modelo de sociedade capi- talista quanto no sentido de romper com as
estruturas vigentes.
Freire (2010, p. 98) afirma que:

[...] a educação é uma forma de intervenção no mundo.


Intervenção que além dos conhecimentos dos conteúdos bem

1 1
Dessa forma, em se tratando de currículo, pensa-se em uma
abordagem da realidade como totalidade e que não separa o conhecimento
acumulado pela humanidade (em forma de conhecimento científico) do
conhecimento adquiri- do pelos estudantes no cotidiano das suas relações
sociais, culturais e materiais. Nesta perspectiva, o currículo tem por objetivo
“disponibilizar aos jovens que vivem do trabalho a nova síntese entre o geral
e o particular, entre o lógico e o histórico, entre a teoria e a prática, entre o
conhecimento, o trabalho e a cultu- ra” (KUENZER, 2002, p. 43-44).
As teorias críticas sobre currículo desenvolvem seus postulados a
partir de conceitos que levam ao questionamento sobre os interesses em
disputa quan- do da escolha de determinados processos e conteúdos escolares
em detrimento de outros.
Marx e Engels (2007, p.40) afirmam que:

Os homens são os produtores de suas representações, de suas


ideias etc... mas, os homens reais e ativos, tal como se acham
condiciona- dos por um determinado desenvolvimento de suas
forças produti- vas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até
chegar às suas for- mações mais amplas. A consciência jamais
pôde ser outra do que o ser consciente, e o ser dos homens é o
seu processo de vida real.

Assim, a partir de Marx e Engels, busca-se a compreensão da história


a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições
materiais da existência humana. A dialética, construção lógica do método
materialista histórico, apresenta-se como instrumento de interpretação da
realidade, visão de mundo e práxis. A teoria dialética do conhecimento
permite a interpretação da realidade contraditória, visando a sua superação
e possibilita a formação integral do ser humano.
Nesta perspectiva, conforme afirmamos anteriormente, se apresenta
também a Pedagogia Histórico- Critica que coloca a prática social como
pon- to de partida e chegada do processo de ensino, tem o potencial para
instru- mentalizar os sujeitos para ação e transformação da realidade. Outro
aspecto importante reside na conexão entre teoria e prática que permite ao
estudante, através do domínio do conhecimento sistematizado, interferir em
sua realidade, transformando-a.
Nesse sentido, o currículo apresenta-se como uma das formas de supe-
ração da fragmentação e hierarquização dos conteúdos, os quais possuem
uma
1 1
relação aberta entre si. Bernstein (1988) assegura que a integração dos conte- Os conteúdos e as temáticas que compõem o currículo precisam ser de-
údos se relaciona à ideia de os diferentes conteúdos serem partes de um todo e senvolvidos de forma a permitir que o trabalho nas escolas e classes multisse-
cada função dessa parte é explicar este todo não havendo nenhuma redução da riadas avance, supere as limitações e confronte as concepções urbanocêntricas,
autonomia do conteúdo. Na proposta do currículo, quando acontece a que disseminam o entendimento de que o campo é lugar de atraso, ignorância
intera- ção “[...] há uma troca e um equilíbrio na relação pedagógica” e pobreza.
(BERNSTEIN, 1988, p. 96). Estas concepções de currículo precisam apoiar-se O que se tem constatado conforme sublinha Rocha é que:
nas matrizes ancoradas na compreensão de que a base da formação humana
está na produção material de sua existência (MARX, 2008). A ausência de proposta pedagógica sistematizada para o trabalho
Assim como é importante uma integração do currículo, é necessário que com as classes multisseriadas faz com que professores e profes-
os conteúdos e temáticas sejam desenvolvidas dialeticamente, pois é extrema- soras busquem alternativas para seus trabalhos. Eles e elas criam
metodologias, produzem materiais didáticos, investem na sua
mente importante que se evidencie o currículo como instrumento político, ele-
formação acadêmica com o objetivo de melhorar a qualidade
mento de organização da escola, por meio de um trabalho escolar vinculado à do ensino e da aprendizagem dos estudantes (ROCHA, 2010, p.
terra, com o objetivo de criar alternativas de superação diante de um 56).
modelo dominado pelas relações capitalistas de produção.
Assim, o currículo para a Educação do Campo envolve Nesta perspectiva, salientamos que as escolas multisseriadas precisam
principalmente, o entendimento do meio, pois é: ocupar espaços nas agendas e ações dos órgãos públicos e serem compreendi-
das no contexto socioeconômico, político, cultural, ambiental e educacional do
[...] dele (do meio) que emergem as questões sobre o currí-
campo na sociedade brasileira. Assim, ao enfrentar a problemática que envolve
culo na escola pública que não podem ser desconsideradas
essas escolas, é imprescindível que as peculiaridades e características que as
pelos que tem a responsabilidade de decidir sobre os planos de
estudo que deve conter um currículo. Os planos de estudo nos en- volvem sejam consideradas e trazidas à pauta como um dos desafios mais
dizem sobre os objetivos a serem alcançados e o conhecimento sérios que atingem a realidade da educação do e no campo, no Brasil.
que será tratado em uma dada organização do trabalho peda-
gógico no interior da sala de aula, na escola e para além dela, A Organização do Trabalho pedagógico em
visto termos do espaço pedagógico e os tempos pedagógicos Escolas multisseriadas do Campo
na escola e para além dela. É esta, portanto, a lógica e teoria
do conhecimento, que requer o desenvolvimento de funções A organização do trabalho pedagógico para a Educação do Campo e
psíquicas superiores, que vai nos permitir estabelecer nexos e
em escolas multisseriadas impõe a necessidade de pensar a construção de um
relações entre o geral, o particular e o singular. (TAFFAREL e
ESCOBAR, 2010, p.188). planejamento elaborado a partir do ponto de vista dos trabalhadores, ou
seja, da classe trabalhadora em seu conjunto, que considera suas trajetórias de
Na mesma direção, Souza (2006) argumenta que a Educação do vida e sua realidade, o que inclui os professores. Isto quer dizer que se trata de
Cam- po é um espaço propício para reflexões sobre currículo e integralização, pensar e redefinir a educação (política e pedagógica) desde os interesses sociais,
uma vez que o próprio campo caracteriza-se por uma diversidade cultural, políticos, culturais destes grupos sociais, sujeitos concretos que se movimentam
social e econômica. Dar continuidade à Educação do Campo requer a análise dentro de determinadas condições sociais, políticas, culturais, ambientais e
das espe- cificidades de cada lugar. [...] “A prática pedagógica está sendo econômicas de existência em um tempo histórico.
compreendida como dimensão da prática social, imbuída das características A escola do campo multisseriada, segundo Caldart (2004), precisa
políticas e contra- ditórias da sociedade capitalista” (SOUZA, 2006, p.2). in- cluir em sua proposta pedagógica uma análise cuidadosa e aprofundada
sobre como acontecem, no cotidiano da escola e no espaço que a escola se
insere, os
1 1
processos de trabalho, socialização, sua relação com os processos de conservação miliares Rurais (CFR) que trabalham com metodologia específica para agricul-
e de criação de culturas e a formação dos sujeitos sociais do campo. Faz-se ne- tores familiares43.
cessário, também, pensar sobre quais outros processos de formação compõem Uma proposta com dimensão pedagógica voltada para a formação
hoje as novas gerações de trabalhadores do campo. hu- mana de Educação do Campo organizada em classes multisseriadas necessita
Os princípios básicos da Educação do Campo apontam para a ser construída na realidade local e a sua construção envolver os diferentes
necessida- de de formulação de um planejamento coletivo, envolvendo sujeitos que constituem a comunidade na qual a escola está inserida,
professores, comu- nidade, instituições e grupos organizados, de maneira que contemplando os conhecimentos sistematizados, acumulados historicamente
se possa constituir um trabalho com caráter emancipatório, no qual a pela humanidade e os saberes e as práticas do cotidiano de vida dos
contextualização possa ser explorada por meio de eixos temáticos, construídos diferentes territórios.
de forma que contemplem as áreas de conhecimento42. A dimensão pedagógica voltada para a formação humana precisa ter
A proposta pedagógica da escola do campo multisseriada precisa envol- caráter emancipatório e proporcionar educação voltada à formação crítica
ver também um trabalho teórico/prático, que favoreça a formação integral e ao aprofundamento de conhecimentos e de vivências. Esta formação
e possibilite o fortalecimento das identidades e das formas de trabalho e pres- supõe a importância da pesquisa sobre as diversas formas de organização
sociabi- lidade do campo, com ênfase em práticas educativas críticas. do trabalho pedagógico em turmas com idades e aprendizagens diferenciadas.
Ao pensar e construir uma proposta educativa para as escolas multisse- Sob este prisma, conforme asseguram Barros, Hage, Corrêa e Moraes
riadas do campo, pressupõe-se a importância de uma organização pedagógica e (2010, p.26):
política dos tempos e espaços educativos, como forma de desafiar a escola a se
colocar e recolocar em suas práticas, na perspectiva de desenvolver um A escola do campo multisseriada precisa ser situada em um mo-
currículo que, considerando os conteúdos, desenvolva um trabalho educativo mento de reformulação do projeto político-pedagógico e do cur-
de forma- ção de homens e mulheres do campo. rículo, como forma de superar a visão meramente
instrumental de ensinar e aprender, focada no quadro e no livro
Para dar conta da diversidade existente no campo brasileiro é necessá-
didático, frag- mentada pelas séries e limitada pelas questões
rio pensar diferentes alternativas de organização do trabalho pedagógico. Neste infraestruturais. As escolas multisseriadas devem abrir-se às
sentido, é possível constatar que os povos do campo e os movimentos sociais experiências sociais cons- truídas na relação entre os desafios
têm encontrado e implementado diversas formas de organizar o trabalho peda- mais abrangentes do contexto escolar com os saberes
gógico no cotidiano das escolas do campo, dentre as quais se podem destacar: curriculares e dos livros didáticos, como também os saberes
Escolas Itinerantes, Redes de Centros Familiares de Formação por Alternância elaborados no trabalho pedagógico em sala de aula e na relação
com outros sujeitos e comunidade, movimentos sociais; relação
(CEFFAS) - formadas pelas Escolas Famílias Agrícolas (EFAS) - e as Casas
na qual todos os saberes conjuntamente apontam certos
Fa-
elementos que compõem uma nova forma de olhar o cur- rículo
e a formação profissional do educador da escola do campo.

Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998.

42 As modalidades de integração de conteúdos, além da interdisciplinaridade,


transdisciplinaridade e da transversalidade, podem ser encontradas de forma didaticamente
compreensível em Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação

1 1
43 “Iniciativas populares de organização da educação para o campo são as Escolas Famílias
Agrícolas (EFA’s) e as Casas Familiares Rurais (CFR’s) que, juntas, constituem-se nos Centros
Familiares de Formação por Alternância (CEFFA’s). Essas instituições, inspiradas em modelos
franceses e criadas no Brasil a partir de 1969, no Estado do Espírito Santo, associam
aprendizado técnico com o conhecimento crítico do cotidiano comunitário. A proposta
pedagógica, denominada Pedagogia da Alternância, é operacionalizada a partir da divisão
sistemática do tempo e das atividades didáticas entre a escola e o ambiente familiar’’. (Projeto
Base do Programa Nacional de Educação de Jovens Agricultores(as) Familiares Integrada à
Qualificação Profissional. Ministério da Educação (SECADI, Brasília, 2008).

1 1
À medida que essa relação é permeada pelo currículo, pela maneira de BRASIL, Secretaria de Educação fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais
concretizá-lo e a educação coloca-se a serviço da formação, da transformação – Terceiro e quarto ciclos de ensino fundamental: Introdução e Língua Portuguesa.
e desenvolvimento humano, maiores são as possibilidades de que a educação Brasília: MEC/SEF, 1998.
tenha características emancipatórias. CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. – 3a ed. – São
A Educação do Campo assim como a Quilombola multisseriada, se Paulo: Expressão Popular, 2004.
inse- rem, portanto, nestas conquistas e constituem um importante passo em FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Trad. Bruno Charles Magne. Porto
direção à transformação do espaço rural, marcado pela tendência à Alegre: Artes Médicas, 1994.
anulação de suas especificidades relacionadas às diversas formas de trabalho, FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 41. reimp. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
vida e cultura.
GADOTTI, Moacir. Pensamento Pedagógico Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
Por esta razão, quando se fala de Educação do Campo em escolas mul-
tisseriadas, supõe-se a ampliação dos territórios educativos. Para que haja de GASPARIN, J.L. Aprender, Desaprender, Reaprender, 2005. Texto digitalizado.
fato um propósito educativo que compreenda o homem como sujeito integral, GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Paz e
é necessário ainda que o estudante vivencie, durante os diversos tempos do seu Terra, 1987. p.13 a 15.
dia, o diálogo intersetorial com sua comunidade. É importante articular o cur- JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Âmago,
rículo com os espaços em que a vida política, cultural e social ocorre, a 1975.
exemplo das atividades comunitárias, as ações organizativas dos Movimentos LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da Escola Pública. São Paulo: Loyola,
Sociais e os processos políticos, elementos que precisam ser considerados um 1990. Adeus Professor, Adeus Professora? Novas tendências educacionais e
desafio para a nossa imaginação institucional. Acima de tudo, é preciso que se profissão docente – 7a ed. – São Paulo: Cortez, 2003. – (Coleção Questões da nossa
pense em outra forma de organização que não seja o ensino seriado, que se faz época; v.67).
presente nas es- colas e classes multisseriadas. Este, portanto, é o desafio que MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução e notas de Marcelo
estamos propondo, no sentido de construirmos coletivamente uma proposta Backes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
de trabalho para as classes multisseriadas localizadas no campo cearense. MARX, Karl. . Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução Jesus Ranieri.
São Paulo: Boitempo, 2009.
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ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, Expressão Popular, 2010.
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ROCHA, Maria Izabel Antunes e HAGE, Salomão Mufarrej (Org.). Escola de direito: SANTOMÉ, J. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto
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. A pedagogia no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2008.

1 1
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SAVIANI, Dermeval (orgs.). Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
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Alencastro; CARDOSO, Maria Helena Fernandes. (Org.) Escola Fundamental:
currículo e ensino. Campinas. SP: Papirus, 1995.
VIGOTSKI, L.S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo; Martins
Fontes, 2003.
SEGUNDA PARTE: TEXTOS DOS
PROFESSORES FORMADORES

1
A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA MARXIANA:
ELEMENTOS PARA UMA PROPOSTA
EMANCIPATÓRIA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

Maria Elisian de Carvalho


Karla Raphaella Costa Pereira

A educação como proposta emancipatória de educação do campo busca


fazer uma breve análise sobre a categoria trabalho na ontologia do ser social de
György Lukács, considerando sua construção histórica e seus rebatimentos na
educação especificamente na educação do campo. Analisa a proposta educativa
da sociedade burguesa, determinada pelo desenvolvimento do modo de produ-
ção da sociedade capitalista e, tomando por base esta concepção de sociedade,
a categoria educação é analisada a partir do vínculo que mantém com as
relações de produção da sociedade do capital. A categoria trabalho na sua
dimensão on- tológica desde suas origens até os dias atuais é o elemento que
conduz as ideias expostas no texto, dando suporte para análise das contradições
das relações so- ciais que caracterizam a sociedade capitalista.
O afastamento das barreiras naturais marca o início da história humana
e a reprodução do ser social pela mediação do trabalho. Pelo trabalho, o
ho- mem constrói a si mesmo como um ser de relações que, no ato de
transformar a natureza, transforma-se a si mesmo, dando início a história da
sociabilidade humana e a formação do ser social. No desenvolvimento da
sociabilidade hu- mana, o trabalho deu origem a outros complexos que
surgiram como necessi- dade do ser social; embora estes complexos estejam
vinculados ao trabalho, no seu desenvolvimento, houve um afastamento do
princípio que lhes deu origem e a educação, que se originou do trabalho,
historicamente, organizou-se em duas dimensões – sentido amplo e sentido
estrito. Embora entre ambas tenha permanecido o vínculo que as aproxima,
elas não se separam porque uma forma de educação está presente na outra.
O texto faz uma abordagem sobre a educação em sentido estrito,
espe- cificamente a escola, que, desde a sua gênese, está associada às relações
de pro- dução da classe dominante, fazendo historicamente as adaptações
necessárias para servir aos interesses desta classe. A educação para o trabalho
é o princípio que permeia todo o desenvolvimento do texto. Considerando
que a educação
do campo tem como destino a formação do trabalhador camponês, a categoria trola seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta
trabalho tem como parâmetro a ontologia do ser social que gera um complexo com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em
de complexos no processo de efetivação do trabalho pelo ser social e estes movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade,
com- plexos abrangem as diversas dimensões da sociabilidade humana, dentre braços e pernas, cabeça e mão a fim de apropriar-se da matéria
natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar por meio
elas, a ação educativa com seus desdobramentos.
desse movimento, so- bre a Natureza externa a ele e ao modificá-
Aborda ainda uma tentativa de ampliação da discussão acerca da educa- la, ele modifica ao mesmo tempo sua própria natureza (MARX,
ção do campo no intuito de situá-la como importante movimento da luta de 1988, p.142).
classes. Desta forma, não se pode perder de vista que disputar o espaço da
escola é uma tarefa dos movimentos sociais em prol de uma educação de A transformação da natureza pelo trabalho humaniza as relações de so-
qualidade para a classe trabalhadora, na qual se tenha acesso ao que de mais ciabilidade e a criação do mundo humano. É também o início da cultura, pois
desenvolvido se produziu em termos de conhecimento. Mesmo que seja o ser social é abertura para os demais seres, haja vista que não produz para
uma árdua tarefa essa que se coloca aos trabalhadores da educação, eximir-se si mesmo, mas para a sociedade. Portanto, a cultura adquirida não lhe
dela não parece ser opção para aqueles que almejam uma sociedade pertence, é um patrimônio da sociedade e os saberes quando são socializados
verdadeiramente emancipada. A reflexão teórica se apoia em autores que avançam progressivamente até o desenvolvimento de técnicas, que irão
não se debruçaram na educa- contribuir com a construção do processo civilizatório.
ção do campo, mas que trazem para a produção humana científica uma leitura O trabalho como princípio educativo considera a existência do modo de
da realidade rica em categorias que esclarecem bastante sobre o papel da produção como condição de reprodução da vida. Portanto, o trabalho tem uma
ativida- de educativa no mundo dos homens e, particularmente, nas importância fundamental no desenvolvimento da atividade produtiva social-
proposições sobre educação do campo. O debate acerca a escola do campo mente necessária. Esta atividade é o valor de uso que possui prioridade ontoló-
ainda é um terreno aberto para colaborações e, por isso, acredita-se que a gica sobre o valor de troca. O valor de uso é determinado pela utilidade
contribuição dada pelo viés da luta de classes, não apenas como horizonte a ser que a coisa tem e se realiza “somente no uso ou no consumo” (MARX, 1988).
conquistado, mas como fundamento pedagógico, pode proporcionar um novo É pelo valor de uso que se determina o conteúdo material da riqueza e na
olhar a esse respeito. sociedade do capital, este valor é portador material do valor de troca. No valor
de uso, o trabalho é diretamente o produto da relação do homem com a
O trabalho como princípio educativo natureza e sua finalidade é produzir somente o necessário para as
necessidades humanas.
A educação do campo busca aproximar o vínculo entre a educação e
Conforme Lukács (2013), o valor de troca, inicialmente, é feito entre
a realidade do trabalhador do campo resgatando, historicamente, os fundamen-
co- munidades por meio da troca de excedentes da produção, para suprimento
tos da construção do ser social que contemplam as condições objetivas da exis-
das necessidades da comunidade. Essa relação de troca se desenvolve até
tência humana, ressaltando a importância do homem que constrói a si mesmo
adquirir uma característica puramente social e aos poucos deixa de ser uma
pelo trabalho.
necessidade natural e se transforma na forma dominante de reprodução
A categoria trabalho tem uma importância fundamental para o ser
social. À medida que se expande o valor de troca, fica mais evidente o
hu- mano, pois, através dele, o indivíduo transforma o meio em que vive
critério para calcular o va- lor da mercadoria; e este critério é o tempo de
buscando proporcionar a satisfação das suas necessidades, bem como, as
trabalho socialmente necessário que é medido pelo tempo de trabalho
necessidades de outros indivíduos por meio da transformação da natureza.
empregado na produção do objeto.
[...] o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um pro-
Nos primeiríssimos estágios iniciais do trabalho, em geral o
cesso em que o homem, por sua própria ação, media, regula e con-
mais importante era o surgimento do produto, enquanto o
1 1
tempo de produção desempenhava um papel apenas
secundário. [...] Só

1 1
num determinado grau do processo de produção e No reino da liberdade, a acumulação não tem por finalidade o enrique-
intercâmbio surgirá como categoria social própria o tempo de
cimento com a exploração do outro, pelo contrário, a convivência humana
trabalho social- mente necessário (LUKÁCS, 2013, p. 167).
objetiva proporcionar condições de viver com mais dignidade, pois a finalidade
Para Lukács (2013), o fundamento do tempo de trabalho é o ser natural do processo de produção é proporcionar o ócio, no sentido de que as condições
produzido no tempo, uma objetividade natural, ou seja, quando o resultado de vida do trabalhador possibilitam momentos de lazer, de convivência e
do trabalho for concluído, sua finalidade é somente o valor de uso. Portanto o de fazer outras atividades que são possíveis quando se tem a liberdade de
tempo de trabalho é uma determinação do indivíduo que objetiva no escolhas. Entretanto a ausência de trabalho nos momentos de tempo livre, não
tempo, o trabalho realizado para ele mesmo. Todavia o tempo de trabalho prejudica o trabalhador porque o excedente de produção continua existindo
socialmente necessário é uma consequência da troca de mercadorias, mas não como uma necessidade para suprir as carências do tempo livre de trabalho.
existe apenas na relação de troca, está presente também no valor de uso, No modo de produção capitalista, o tempo de trabalho necessário
porque a troca é uma relação entre duas formas heterogêneas de valor que, para a sobrevivência do trabalhador é consumido pela produção de mais-valia
quando se encontram, fazem uma conversão recíproca. que nega o tempo livre ao trabalhador. A intenção do capitalista é fazer com
que o trabalhador tenha o menor tempo livre possível para o descanso e viva
[...] quando um capitalista se vale de trabalho assalariado na em fun- ção do trabalho tornando-se escravo dele; deste modo, o trabalhador
produção, ele compra (como faz qualquer comprador) o valor não dispõe de tempo livre para viver com liberdade. Assim sendo, a concepção
de uso, nesse caso, o da força de trabalho, de sua capacidade de de trabalho como extensão do ser humano é substituída por uma concepção
produzir mais que o necessário para sua reprodução, exatamen- de trabalho que embrutece a vida do trabalhador.
te a propriedade que determina o seu valor de troca. É a execu-
Na sociedade do capital, o trabalhador é considerado livre porque dispõe
ção do trabalho – no quadro do tempo de trabalho
socialmente necessário – que torna possível que os produtos da sua força de trabalho, pode vendê-la e fazer dela uma mercadoria. A
criados por meio dele (igualmente valores de uso), por sua essência do capitalismo consiste em ser uma relação social originária da
vez, adquiram um valor de troca, no qual está contido o produto compra e venda da força de trabalho por meio de um contrato. Esta relação
específico do valor de uso da força de trabalho como mais-valor fortalece o poder de dominação do capitalista sobre o trabalhador e
(LUKÁCS, 2013, p. 167). caracteriza o capitalismo como um sistema que se estrutura sobre uma
relação de exploração, que cria obstáculos à humanização das relações
Em qualquer forma de civilização e sob todos os possíveis modos de sociais, pois a lógica do capital é a sua própria reprodução; para isto, necessita
produção, a natureza é o meio pelo qual o indivíduo realiza a objetivação manter sob seu controle a exploração do trabalhador.
das necessidades do ser social. Nesta relação, o ser humano trava uma luta À medida que o capitalismo avança, fica mais evidente a separação
contra a natureza no sentido de que precisa extrair dela as condições materiais entre os donos dos meios de produção e os donos da força de trabalho. Esta
de sub- sistência, embora ela continue sendo para ele o “reino da necessidade”, separação repercute na educação escolar com a existência de uma concepção
com a qual mantém uma relação de dependência, pois precisa dela para dualista de educação para o trabalho. Na perspectiva burguesa, a educação para
tirar o seu sustento e o trabalho, que transforma a natureza para atender às o trabalho prepara o indivíduo para o mercado e fortalece a lógica do capital. A
necessidades do ser social, é a mediação para o reino da liberdade. Todavia concepção de educação a partir do lugar social do trabalhador prepara o
é importante ressaltar que a mediação do trabalho para o reino da liberdade educando para fazer do trabalho um instrumento de transformação da
só é possível quando o trabalho deixa de ser uma realidade externa ao natureza, em vista da construção do ser social e a efetivação de suas
trabalhador e pos- sibilita o desenvolvimento das capacidades humanas como objetivações.
fim em si mesmo (MANACORDA, 1991). No momento em que o trabalhador aceita subordinar o seu trabalho
ao desenvolvimento do capital por meio de um contrato, torna-se escravo do

1 1
tra-

1 1
balho e nega a liberdade do ser social. O trabalho como categoria fundante do sentido lato, a educação está associada à trans- missão das experiências
ser social é uma atividade livre e não pode compactuar com uma forma de so- adquiridas às gerações subsequentes e dá continuidade
ciabilidade que mantém com o trabalhador uma relação de subordinação. Esta
concepção de trabalho abre horizontes para o devir de uma nova
organização social, na qual o trabalhador seja realmente livre.
Pelo trabalho, o homem rompe a barreira natural da vida biológica e
começa a construir a sua história inaugurando uma nova forma de relacionar-se
com a natureza, transformando-a para a satisfação das necessidades humanas e
socializando com outros seres humanos as experiências adquiridas. É
importan- te considerar que juntamente com o trabalho vieram outros
complexos que nele encontram sua origem e possibilitaram a concretização de
novas objetivações.
De acordo com Lessa (2011), o que move a sociedade do capital é a
relação de troca e tudo é reduzido à condição de mercadoria, inclusive a
mão de obra do trabalhador que tem a capacidade de produzir mais do que
o valor determinado pelo contrato de compra e venda da força de trabalho.
Para que o trabalhador não perceba que o seu trabalho proporciona a riqueza
do patrão, no ato de produzir, o trabalhador é afastado do objeto produzido
por ele.
A sociedade burguesa com relação ao trabalhador apresenta uma visão
dualista. Enquanto transforma a sua força de trabalho em mercadoria e acentua
a oposição entre capital e trabalho, provoca também a luta dos
trabalhadores por melhores condições de existência e esta luta pode vir a ser o
prenúncio da construção de uma nova forma de sociabilidade. Deste modo, a
categoria tra- balho se apresenta ao trabalhador como possibilidade de
superação da negação de si mesmo e efetivação de uma nova objetividade,
que, pela mediação do pôr teleológico, pode ser a existência de uma sociedade
de homens livres e emanci- pados (SOUSA JÙNIOR, 2010).
Para se efetivar no tempo, os complexos oriundos do trabalho
preci- saram da existência de uma sociabilidade constituída; entre estes
complexos, encontra-se a educação. O complexo da educação realiza funções
que não estão diretamente ligadas com a transformação da natureza, mas
realiza uma tarefa do trabalho porque está intimamente vinculado a ele, pois
pela educação acontece a mediação entre o indivíduo e o gênero humano.
Conforme Saviani (1994), existem duas formas de compreender a
educação: uma é mais abrangente e outra mais específica. A primeira é
chamada de educação em sentido estrito e a segunda, em sentido lato. Em

1 1
ao processo de transformação da natureza pelo gênero humano. A educação localiza a origem da escola. A educação dos
em sentido estrito é um aspecto da educação em sentido lato e surge com a
divisão da sociedade em classes, mas, para Tonet (2005), mantém uma
relação de de- pendência ontológica e autonomia relativa em relação ao
trabalho.
A unidade entre trabalho e educação é determinada pela construção do
ser social e, enquanto o trabalho faz a mediação do homem com a
natureza, a educação faz a mediação do homem com a sociedade. Deste
modo, a educação do ser social não se restringe a receber as instruções das
etapas de desenvolvi- mento da existência humana, pois sua finalidade é
preparar o indivíduo para recriar e renovar o contexto social com novas
habilidades. Cada indivíduo está inserido numa realidade histórica e não faz
sentido educar a individualidade sem fazer referência à dimensão da
totalidade que caracteriza o ser social. Ana- lisando a educação nesta
perspectiva, as escolhas profissionais são orientadas conforme as necessidades
da sociedade e a escolha que determina as decisões são objetivadas conforme as
determinações do ser social (TONET, 2005).

As escolhas determinam a caminhada da escola

A escola não tem uma processualidade histórica concomitante à forma-


ção do ser social, pois sua gênese histórica é posterior ao início do período
que marca o começo do processo de reprodução do ser social. Manacorda
(1991) classifica a escola como uma superestrutura fincada sobre a produção
e a pro- priedade. Esta estrutura precisa de algo para se manter e continuar
existindo e a escola é este suporte necessário, embora sua gênese não se
caracterize como uma atividade essencial, pois a escola surge como o lugar do
ócio, ou seja, lugar de encontro dos que tinham tempo livre disponível e quem
gozava deste privilégio era a aristocracia, portanto, a escola nasce como um
serviço aos aristocratas mantendo-se distante dos problemas sociais.

[...] se nas sociedades primitivas, [...] a educação consistia


numa ação espontânea, não diferenciada das outras formas de
ação de- senvolvidas pelo homem, coincidindo inteiramente
com o pro- cesso de trabalho que era comum a todos os
membros da comu- nidade, com a divisão dos homens em
classes a educação também resulta dividida; diferencia-se, em
consequência, a educação des- tinada à classe dominante
daquela a que tem acesso a classe do- minada. E é aí que se
1 1
membros da classe que dispõe de ócio, de lazer, de tempo como categoria fundante do ser social, a escola pode ser um instrumento de
livre passa a organizar-se na forma escolar, contrapondo-se à
transformação social quando o conhecimento transmitido pelo educador trans-
educação da maioria, que continua a coincidir com o processo
de trabalho (SAVIANI, 2007, p. 155). forma o educando num indivíduo que faz história. Deste modo, a relação ensi-
no-aprendizagem se verifica pela apropriação de um saber que foi incorporado
A escola tem um grande valor educativo ao proporcionar a formação pelo aluno para permanecer com ele por toda a vida. É uma relação
humana e a continuidade da educação. Entretanto, é preciso considerar que dialética porque o aluno que se transforma em sujeito da aprendizagem não sai
o indivíduo que é educado pela escola é constituído de múltiplas dimensões, da escola do mesmo jeito que nela entrou e continua absorvendo o que
por esta razão, a educação escolar não pode restringir a sua função à tarefa de aprendeu no decorrer de sua vida (ASBARH, 2006).
trans- mitir conteúdos sem considerar o vínculo do indivíduo com outras A relação com o trabalho é imprescindível para determinar os rumos da
dimensões da sociabilidade humana. escola, seja para transformá-la ou para conservar e manter os princípios da
com- preensão de trabalho da classe dominante. Na lógica burguesa, a
[...] quem quer mudar a escola e não tem objetivos de educação pode contribuir com a exploração do trabalhador, passando para as
transfor- mar a sociedade tem uma visão diferente das gerações futuras um tipo de conhecimento desarticulado do saber
mudanças escolares em relação a quem se coloca objetivos de acumulado pelo patrimônio histórico da humanidade. Entretanto, para que
mudança da realidade social. Há uma especificidade do processo
a educação possa contribuir com o processo de mudança, é preciso ter
educativo escolar que precisa ser compreendida e
construída/reconstruída, sem perder a conexão com a coragem de desafiar as formas domi- nantes de internalização do capital. É
totalidade mais ampla da formação humana (CALDART, importante ressaltar que a educação pode contribuir com o processo de
2015, p. 27). transformação social, mas não é a única respon- sável pela centralidade do
processo, pois, segundo Tonet (2009), se a educação assumisse esta tarefa,
As consequências de uma proposta de educação fundamentada na cen- estaria negando o trabalho como categoria fundante do ser social, haja vista
tralidade do trabalho se manifestam em mudanças substanciais na estrutura que os fundamentos de qualquer forma de sociabilidade são determinados
educacional. O objeto e os objetivos são pensados numa perspectiva totalmente pelo trabalho e “não resta a menor dúvida de que é a ele e não à educação
diferente da mentalidade burguesa. A superação da proposta pedagógica exis- que pertence a centralidade no processo de transformação da sociedade”
tente vai sendo construída até ganhar visibilidade no momento predominante. (idem, p. 11).
De acordo com Pistrak (1981, p.33), “entre a nova escola e as melhores escolas Historicamente, a lógica desenvolvida pelo sistema dominante sempre
antigas há apenas uma continuidade dialética e revolucionária, da mesma exerceu uma forte influência sobre a educação, por isso quando se fala em mu-
forma que o novo regime nasce do antigo graças às suas contradições dança na educação leva-se em conta a ideia de que uma mudança radical
internas”. no campo educacional está relacionada com transformações profundas na
Conforme Caldart (2015), pensar a escola como colaboradora do lógica do sistema do capital. A educação institucionalizada pela sociedade
pro- cesso de transformação social, significa analisar o que pode ser burguesa é planejada para atender às necessidades do capital e as reformas
transformado na escola a partir de seu fundamento universal e, na sociedade educacionais não contribuem com mudanças significativas na estrutura do
capitalista, o funda- mento universal que determina o modo de fazer escola processo educativo, pois são adaptações ao desenvolvimento da lógica do
é o modo de produção da sociedade regida pelo capital. capitalismo.
A escola capitalista prepara o indivíduo para viver sem conflitos na so- Na superação do modo de produção da sociedade capitalista, a educação
ciedade do capital, todavia o trabalho, visto como mediação entre o homem e a pode contribuir com a transformação da sociedade, elaborando estratégias para
natureza em função do suprimento das necessidades humanas, desafia a escola despertar a consciência dos indivíduos, de tal modo que sejam capazes de criar
a mudar de paradigmas. Analisando a educação a partir do conceito de trabalho novas condições objetivas de reprodução. Para fazer a interação entre educação

1 1
e trabalho, dois conceitos são fundamentais para o processo educativo:
univer-

1 1
salização da educação e a universalização do trabalho como atividade autorre- gera um novo tipo de sociedade na qual o homem não é mais escravo do
alizadora. Falar em universalização significa dizer que todos são iguais, têm os tra-
mesmos direitos e esta proposta não se compatibiliza com os princípios de uma
sociedade dividida em classes, sobretudo quando há relação de dominação e
exploração de uma classe sobre a outra (MÉSZÁROS, 2005).
O trabalho como categoria que está presente no dia a dia da escola,
de- safia a prática escolar a trabalhar esta categoria na perspectiva
emancipatória, ressaltando a sua dimensão humana como condição de
liberdade e, ao mesmo tempo, contrapõe-se à ideia de liberdade da sociedade
capitalista, que está rela- cionada ao poder de consumo ao proporcionar a
quem tem o poder de compra uma sensação de prazer e liberdade.
A educação emancipatória tira o foco da liberdade como uma conquista
individual e resgata a concepção de trabalho como instrumento de construção
da vida para a totalidade do gênero humano. O trabalho desenvolvido nesta
perspectiva leva em conta os interesses do que realmente é necessário para a
co- letividade e sua valorização está no valor de uso, “organizado
coletivamente en- tre trabalhadores livremente associados, sem patrões”
(CALDART, 2015, p. 41). A emancipação humana exige um modo de
produção que dê ao indi-
víduo a possibilidade de uma forma de sociabilidade na qual o trabalho
seja uma expressão da liberdade. Não basta fazer contraposição ao capitalismo
sem pensar numa alternativa de sustentabilidade de um novo sistema
econômico, político e social que seja capaz de projetar o futuro sem os
resquícios da relação de exploração do trabalhador presente no sistema
capitalista. Uma sociedade diferente é possível com a participação do
trabalhador no centro das decisões.

Ela se caracteriza pelo controle livre, consciente e coletivo e


uni- versal dos trabalhadores sobre o processo de produção e
distribui- ção da riqueza. Isto permitirá que a produção perca o
seu caráter de mercadoria, ou seja, de valor-de-troca, para ter
como objetivo o valor-de-uso, vale dizer, o atendimento das
necessidades huma- nas (TONET, 2012, p. 50).

O trabalho como momento predominante do devir histórico é a efeti-


vação da atividade dos produtores livres e associados e pressupõe um alto nível
de desenvolvimento tecnológico, para que, deste modo, o trabalho seja para o
trabalhador uma ação que lhe proporcione a liberdade. Esta forma de trabalho

1 1
balho e as relações de igualdade entre patrão e empregado, que na de formação para esta classe, mas é
sociedade do capital são determinadas pela mediação do contrato,
sucumbem, pois esta relação é substituída pela associação dos trabalhadores
livres que determinam a intensidade da produção de acordo com a demanda
das reais necessidades so- ciais e estas necessidades não são impostas para
incentivar o consumo, mas são necessidades verdadeiramente humanas para um
ser de carências e necessidades, o ser humano.

Educação do campo e luta de classes

A luta por uma educação “no” e “do” campo não é apenas a reivindica-
ção pela universalização do acesso à educação por todos os brasileiros, direito
assegurado pela Constituição Federal (CF de 1988) e reafirmado na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96), na verdade, é
um movimento que visa à construção de uma educação voltada para o
interesse da classe trabalhadora do campo. Não parece equívoco declarar que
essa disputa é fundamental tanto para o campo quanto para os
trabalhadores urbanos.
O papel da educação escolar na sociedade capitalista é tema ainda con-
troverso nas teorizações de veia marxiana no campo da educação. Duas
posições se destacam: há os que tomam como fundamento da crítica a gênese
da escola e sua processualidade histórica, afirmando que ela é um espaço de
reprodução da sociedade burguesa, portanto, apesar de existir espaço de
contradição, as possibilidades de atuação nela para interesse da classe
trabalhadora é mínimo; outros tendem a compreender a escola como um
importante espaço de disputa por ser ela o lugar no qual a classe trabalhadora
adquire o conhecimento elabo- rado historicamente pela humanidade,
conhecimento fundamental ao processo de construção de uma consciência de
classe. Interessante ressaltar que ambas as posições, apesar de suas
divergências, têm clara compreensão de que a mudança social não vai partir
do complexo social educacional, entretanto, o peso dado a esse complexo
social é singularmente diferente em cada uma.
A título de esclarecimento, aqui se adota uma posição bem mais
afeita aos segundos que aos primeiros. Desde sua gênese como lugar para
onde iam as classes ociosas até o início de sua ampliação para a classe
trabalhadora no con- texto do desenvolvimento industrial e da sociedade
contratual burguesa nascen- te, a escola tem sido também o lugar para a
formação da classe trabalhadora. Não se está afirmando que esse seja o ideal
1 1
o que corresponde ao real histórico hodierno. Como já afirmara Marx e Engels 44 Entre colchetes estão os anos de primeira publicação das obras.
(2007) [1932]44, não se parte de homens pensados ou imaginados, mas de ho-
mens realmente ativos, vivos, de seu processo de vida real; em seguida,
retomou Lukács (1982) [1963], afirmando que as necessidades das
objetivações huma- nas nascem do cotidiano. Assim, a escola da sociedade
capitalista é a escola na qual está sendo educada a classe trabalhadora: este é o
fato histórico concreto. “Nós partimos de um fato nacional-econômico,
presente” (MARX, 2010, p. 80, itálico do autor) [1932].
Partindo da identificação deste fato histórico concreto, é preciso
elaborar dois movimentos: o primeiro corresponde à transposição do
concreto à cons- ciência, da construção do entendimento do que ele significa,
movimento apre- sentado anteriormente no presente texto; o segundo deve
pensar em atuar nessa realidade a fim de modificá-la, já que “Os filósofos
interpretam o mundo dife- rentemente, importa é transformá-lo” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 29) [1932]. Deste modo, preocupa a necessidade de
elaborar meios de construção de uma escola voltada aos interesses da classe
trabalhadora. Tendo em vista o lugar situ- ado dessa instituição na sociedade
capitalista, esta necessidade só pode se efeti- var esporadicamente, bem como
por meio da luta organizada dos dominados.
As conquistas expostas nos textos das leis que regulamentam a
educação do campo e a própria conquista do reconhecimento dela são frutos da
organiza- ção e ação dos movimentos sociais empenhados na luta pela terra,
pela reforma agrária e pelo socialismo, a exemplo do Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Estas conquistas não foram,
portanto, reconhecimento do Estado diante das necessidades destes povos.
O texto da lei, no entanto, não corresponde à realidade. A resolução
CNE/CEB nº 01/2002 da Câmara de Educação Básica do Conselho
Nacional de Educação institui diretrizes ope- racionais para a educação
básica nas escolas do campo e apresenta, como se demonstra abaixo, o pleno
reconhecimento da identidade da escola do campo.

Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida


pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, anco-
rando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes,
na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e
tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais
em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por

1 1
essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (CNE/ separação entre agir e pensar.
CEB nº 01/2002, Art. 2º, Parágrafo único).

A educação do campo é um espaço de disputa, portanto, é fundamental


identificar que conquistar uma escola do campo que condiga com as necessi-
dades dos camponeses é um braço da luta por uma escola pública que
expresse as necessidades da classe trabalhadora. O campo possui suas
particularidades em relação às escolas urbanas e as escolas dos trabalhadores
possuem suas parti- cularidades em relação às escolas da classe dominante,
assim como cada escola possui também, entre as demais, as suas
particularidades. Cada escola é uma totalidade. Efetivamente, uma
organização escolar que preze as diversidades em seu sentido mais genuíno,
que permita a construção de currículos, pla- nos, aulas, etc. inseridas na
realidade de cada local, não é possível na sociedade do modo de produção
capitalista, entretanto, a ampliação dessa compreensão como objetivo a ser
alcançado fortalece a luta por uma escola dos trabalhadores a ser conquistada
e disputada contra o Estado burguês.
A defesa pelo reconhecimento das necessidades educacionais dos
povos campesinos não pode ser confundida com a exacerbação de uma
preocupação com os saberes cotidianos ou um movimento que, ao invés de ter
na educação uma elevação do conhecimento, rebaixe o educando a
conteúdos limitados à sua prática diária. Saber-se partícipe do gênero
humano é fundamental para que os indivíduos se percebam membros da
classe que produz a riqueza e da possi- bilidade de rompimento com essa
forma de sociabilidade. A defesa da educação “no” e “do” campo não pode
perder a dimensão da luta de classes e da con- cepção de educação como
um processo dialético, sob pena de perder de vista a dimensão da
totalidade e (de)formar pela via do conhecimento um homem fragmentado
pelo desenvolvimento histórico da humanidade.
A valorização do cotidiano do campo é pauta presente nas proposições
pela educação do campo. Lukács (1982) [1963] compreende o cotidiano como
aquele lugar no qual as decisões humanas são fundadas em motivos de
natureza espon- tânea, fugaz; lugar no qual teoria e prática não se separam, no
qual o homem lida com os objetos a sua volta de maneira imediata. Para
que o homem lide com a vida cotidiana, é preciso que seu entorno tenha
um funcionamento prático. O homem, apesar de mais ou menos consciente
de que se relaciona com objetos ex- ternos a ele, reage a esses objetos de modo
espontaneamente materialista; imerso no cotidiano, ele não faz uma nítida
1 1
O que possibilita, no cotidiano, uma insípida compreensão do indivíduo singular, a huma-
mundo externo é justamente o trabalho porque o homem só é sujeito mediante
[na re- lação com] um objeto. O homem cansado usa a cadeira para sentar-se,
ele sabe mais ou menos que aquele objeto pode proporcionar descanso; se o
homem para com o objetivo de pensar filosoficamente a cadeira, conhecer
cientifica- mente os elementos da cadeira, apreciar o designer da cadeira;
estará lidando com a cadeira de forma mediada pela filosofia, ciência e arte,
respectivamente [ou ao mesmo tempo].
É importante discutir essa relação para compreender por que é
funda- mental para a luta de classes que a educação do campo não se limite à
cotidiani- dade do campo. Ainda segundo Lukács (idem), é da vida cotidiana
que surgem as necessidades para as objetivações humanas. Ao sanar essas
necessidades, en- tretanto, o homem abstrai elementos do cotidiano para,
em seguida, retornar a ele de forma enriquecida. A arte, a ciência, a
filosofia, o trabalho partem de carências e necessidades postas na vida
cotidiana afastam-se dela para resolvê-las e a ela retornam enriquecendo o
cotidiano. Veja-se: se o homem está sempre preso às determinações de seu
cotidiano, lidando com ele de forma imediata, que tipo de enriquecimento
e compreensão elevada da realidade ele poderá desenvolver?
Assim, a disputa pelo acesso ao conhecimento historicamente
produzido pela humanidade deve ser pautada na disputa pela educação da
classe trabalha- dora. Ciência, filosofia, arte, literatura são indispensáveis ao
homem do campo, ao trabalhador urbano, bem como a qualquer indivíduo
do gênero humano. Tal conhecimento permite ao indivíduo aproximar-se da
totalidade da vida, das relações sociais existentes e do (re)conhecimento de sua
classe. É no trabalho e com seu aperfeiçoamento que se dá a superação da
imediatez do cotidiano. O trabalho empreende um rodeio para a realização de
um fim, assim, suspende a imediatez para investigar a realidade objetiva
como ela é em si.
Quando Demerval Saviani discute a importância da educação escolar,
educação stricto sensu (ou educação em sentido estrito), ele está justamente,
apontando para a importância da aquisição da humanidade e dos conhecimen-
tos produzidos pela História. Ao definir o trabalho educativo, Saviani
(2008) situa a educação na modalidade de trabalho não-material,
afirmando que a educação lato sensu (ou educação em sentido amplo) não se
reduz ao ensino, en- tretanto, ensino é educação. “Consequentemente, o
trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada

1 1
nidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos
homens” (SAVIANI, 2008, p. 13).
Para o autor brasileiro, a escola é, então, “uma instituição cujo
papel consiste na socialização do saber sistematizado” (idem, p. 14). Ao
contrário do que afirmam alguns críticos de Saviani, ele não iguala educação e
trabalho, tendo em vista que ele afirma que é por possuir uma identidade
própria como complexo social que a educação pode ser institucionalizada. A
escola não é, para ele, o lugar do conhecimento espontâneo, do senso
comum, mas do co- nhecimento sistematizado, metódico; é lugar de
apropriação da ciência. “Ora, a opinião, o conhecimento que produz
palpites, não justifica a existência da escola” (idem, p. 15).
Não há em Saviani uma negação do conhecimento espontâneo, do
co- tidiano, mas como demonstrado anteriormente nas proposições de
Lukács, o cotidiano é ponto de partida para uma objetivação e, no ponto
de chegada ele é enriquecido. A permanência dos conhecimentos no próprio
cotidiano, justifi- cada por ele mesmo não se eleva de sentido, pois se prende
a uma relação ime- diata, pragmática. A escola deve exercer a mediação entre
o saber espontâneo, já que a necessidade de saber nasce da prática cotidiana,
ao saber especializado; da cultura popular à cultura erudita.
Observe-se que compreender uma hierarquia entre a cultura popular e a
erudita não é a intenção. Uma percepção da sociedade como uma
construção do gênero humano, ou seja, a concepção marxiana da realidade
não se pauta em uma hierarquização. A cultura é humana, portanto, o
homem do campo é copartícipe das produções ditas eruditas por ser
membro do gênero que as produziram, daí ter direito a se apropriar delas.

Em conclusão: a compreensão da natureza da educação


enquan- to um trabalho não-material, cujo produto não se
separa do ato de produção [o professor produz a aula e o
aluno a consome], permite-nos situar a especificidade da
educação como referida aos conhecimentos, ideias, conceitos,
valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos
necessários à formação da humanidade em cada indivíduo
singular, na forma de uma se- gunda natureza, que se
produz, deliberada e intencionalmente [natureza social],
através de relações pedagógicas historicamente determinadas
que se travam entre os homens (SAVIANI, 2008,
p. 22, colchetes nossos).

1 1
Pode parecer um dissenso com o esforço dos movimentos sociais do Introdução a uma estética marxista: sôbre a particularidade como categoria da estética. Tradução de
Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
cam- po pela valorização da singularidade da educação do campo, afirmar que a
escola deve ter como objetivo a formação para os conhecimentos científicos,
mas, na verdade, advoga-se que os camponeses devem se munir dos
conhecimentos mais desenvolvidos para executar suas atividades de trabalho de
forma mais eficaz, po- rém, principalmente, para que eles se percebam
pertencentes ao gênero humano, participantes da construção histórica de uma
sociedade emancipada.
É preciso repudiar as produções provenientes do Programa Nacional do
Livro Didático do Campo (PNLD Campo, Resolução nº 40, de 26 de Julho de
2011, do Ministério da Educação - MEC) que apresentam um
conhecimento fragmentado, esteriotipado e/ou simplificado. A qualidade e a
complexidade do conteúdo abordado com os educandos camponeses não
devem ser diminuídas sob nenhuma justificativa, tendo em vista que a
capacidade de aprendizagem deles não é inferior aos estudantes da zona
urbana. A singularidade do campo não deve ser privilegiada em detrimento da
universalidade do gênero humano. A escola, entretanto, precisa dar conta da
relação dialética entre elas.
Se a educação escolar se encontra no lugar da particularidade e esta
é uma mediação entre a singularidade e a universalidade, a atividade do
profes- sor medeia a aproximação da singularidade do indivíduo à
universalidade do gênero humano45. Outras objetivações humanas ocupam este
lugar, a exemplo da arte. O trabalho educativo que é realizado pelo professor
somente pode atu- ar neste campo de maneira pensada, programada, daí a
atividade docente ser uma atividade científica que requer conhecimentos
acerca dos elementos que envolvem a produção e a recepção do conhecimento.
A atividade do professor, portanto, não é um ato espontâneo, não se situa no
rol de conhecimento do senso comum.

Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a “sociedade”


como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social.
Sua manifestação de vida - mesmo que ela também não apareça
na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida,
realizada simultaneamente com outros - é, por isso, uma
exter- nação e confirmação de vida social. A vida individual e a
vida genérica do homem não são diversas, por mais que
também - e

45 Sobre as categorias universalidade, particularidade e singularidade, ver: LUKÁCS, György.

1 1
isto necessariamente - o modo de existência da vida individual ontologia lukacsiana desenvolvida a partir de Marx dá ênfase no processo
seja um modo mais particular ou mais universal da vida educativo como indispensável ao fazer homem do homem. Se, como
genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida
afirmou Marx em suas
individual mais particular ou universal (MARX, 2010, p. 107,
itálicos do autor).

A educação escolar não pode, portanto, limitar-se ao particular, pois


a vida individual não é diversa da vida genérica. O homem do campo é,
antes de tudo, um homem; e é preciso que ele saiba o que o faz ser
membro de um gênero que se difere da natureza e faz dela seu corpo
inorgânico. O universal e o particular são momentos da totalidade na qual está
inserido o homem. Apre- ender o mundo em seu movimento dialético é, ao
mesmo tempo, compreender que pensar e ser não se separam (MARX,
2010, p. 108).

O homem - por mais que seja, por isso, um indivíduo


particular, e precisamente sua particularidade faz dele um
indivíduo e uma coletividade efetivo-individual (wirkliches
individuelles Gemeinwe- sen) - é, do mesmo modo, tanto a
totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da
sociedade pensada e sentida para si, assim como ele também é
na efetividade, tanto como intuição e fruição efetiva da
existência social, quanto como uma totalidade de exter- nação
humana da vida (idem, ibidem, itálicos do autor).

A escola é uma instituição que expressa a luta de classes, portanto, não


pode ser abandonada ao ser taxada de burguesa. Majoritariamente, estão
na escola pública os filhos da classe trabalhadora, mesmo que ela seja regida
pelas determinações do sistema capitalista, é preciso fortalecer a disputa por
ela, nes- ta sociedade. Não se pode cruzar os braços, tendo em vista a
importância da educação para a formação dos indivíduos humanos, bem
como se deve exigir o acesso às produções humanas mais elevadas para os
filhos da classe trabalhado- ra. Se o Estado quer oferecer uma educação do
campo pobre em complexidade e conteúdo, os trabalhadores do campo, dos
movimentos sociais devem recusar a subestimação de seus estudantes e querer
qualidade para além do acesso.
Marx e Engels não escreveram um texto sobre educação. É possível, no
entanto, encontrar em suas obras referências a esse complexo social, mesmo
que não seja possível sistematizar uma teorização marxiana sobre a educação
e suas características. Outro aspecto importante de se destacar é que a
1 1
obras, o homem se faz mediante sua ação na natureza e transmite aos demais o totalidade, como um
que desenvolveu, a educação é inseparável do trabalho nesse processo.
A educação escolar se situa também como fundamental para essa per-
cepção, já que, na sociedade capitalista o homem está suprassumido no tra-
balhador. O homem que não trabalha não existe para o capital, este sistema
(de)forma um tipo de homem que só se compreende como tal se for parte
da produção. “O homem nada mais é que trabalhador e, como trabalhador,
suas propriedades humanas o são apenas na medida em que o são para o
capital, que lhe é estranho” (MARX, 2010, p. 91, itálico do autor).
Pensar uma escola apartada da realidade presente é pensar uma escola
numa sociedade essencialmente diferente, numa sociedade comunista. Marx
considera que o homem deve se educar na sua ominilateralidade, como homem
total. A especialização do trabalhador é um fato da divisão social do trabalho
na sociedade capitalista que reduz o homem a um círculo exclusivo de
atividades. “[...] - enquanto que na sociedade comunista, onde cada
indivíduo não tem para si um círculo exclusivo de atividades, mas pode
desenvolver suas aptidões no ramo que melhor lhe aprouver” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 56).
A rebeldia do homem camponês que insiste em lutar por Reforma Agrá-
ria e produzir sua existência por meio da produção comunitária, é para a manu-
tenção do capital uma afronta, já que “O trabalhador só é, enquanto
trabalha- dor, assim que é para si como capital, e só é, como capital, assim que
um capital é para ele” (idem, ibidem, itálicos do autor). O capital que não pode
se sustentar sem a expropriação do homem e da natureza e que se encontra
em crise com seus limites intrínsecos, deve ser combatido em todas as frentes.
O lugar da luta pela permanência no campo e por uma educação que esteja
voltada aos interes- ses dos trabalhadores é um ato de rebeldia contra o
capital.

Considerações Finais

Na sociedade do capital a escola atende aos interesses da sociedade bur-


guesa adequando-se aos diferentes modelos do modo de produção capitalista.
Nesta sociedade, a educação para o trabalho se configura como formação para
as necessidades do mercado em contraposição ao princípio ontológico do
traba- lho que é uma extensão do ser humano e fator de realização pessoal.
Diante das relações de exploração do homem sobre o homem faz-se mister
pensar numa proposta de educação que considere o ser humano na sua
1 1
ser de necessidades que precisa do trabalho para efetivar a sua condição
humana vivida com dignidade numa sociedade de homens verdadeiramente
livres.
Visando a construção deste novo modo de vida social, a educação pode
contribuir com o processo de transformação social, resgatando a formação on-
tológica do trabalho por meio do conhecimento acumulado historicamente
e transmitir este conhecimento concomitante ao ensino do conhecimento
cien- tífico e deste modo a escola pode preparar o indivíduo para pensar o
mundo na ótica da liberdade a partir do trabalho. O destino último do ser
humano é a conquista da liberdade e ontologicamente o ser humano pode
ser livre quando o trabalho for para ele um fator de liberdade.
As conquistas de uma educação do campo, o reconhecimento dos cam-
poneses como sujeitos históricos ainda não se esgotou. É necessário construir
uma concepção de escola do campo aliada à luta da classe trabalhadora e
que expresse os anseios dos camponeses, bem como as necessidades de
formação da classe trabalhadora. Negar o papel da escola na formação dos
seres humanos é negar a realidade. Cabe encontrar e construir ferramentas
para fortalecer a luta sócio-pedagógica como um braço da luta de classes.

Referências

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possibilidade da educação escolar? In: PARO, Vitor Henrique (org.). A Teoria do
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1 1
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EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO DO CAMPO E
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Vol. 1. Barcelona: Ediciones Grijaldo, 1982a.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Introdução
MANACORDA, M.A. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez Editora,
1991 Este artigo tem por objetivos apresentar um panorama da educação
MARX, K. O capital. São Paulo: Nova Cultural coleção Os Pensadores, 1988. no Brasil, trabalhar a realidade da educação do campo, a luta dos
movimentos sociais pelo direito à educação e por outra forma de fazer
MÉSZÀROS, I. A Educação para além do capital. 2a ed. São Paulo: Boitempo,
educação, bem como apontar a Ação Escola da Terra como uma ferramenta
2005. PISTRAK. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1981.
que contribui para repen- sar a escola e a educação desde a formação dos
SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed. professores.
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FERRETI, Celso João (Org.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um Nesta reflexão, parto das contribuições de Roberto Leher, Luiz Carlos de
debate multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994. Freitas, Gaudêncio Frigotto e István Mészáros. Dando um passo a frente,
SOUSA JUNIOR, J. DE. Marx e a crítica da educação. 2a ed. Aparecida, SP: Ideias sistematizo os dados refe- rentes à educação do campo presentes no censo
& Letras, 2010. escolar, a luta dos Movimentos Sociais, em especial o MST, para outra
TONET, I. Marxismo e educação. http://ivotonet.xpg.uol.com.br/ Acesso em: 08 educação que mude esta realidade das comunidades rurais e apresento a
ago. 2014. proposta de trabalho da Ação Escola da Terra para o estado do Ceará.
. Educação contra o capital. 2a ed. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. Na segunda parte, procuro discutir as alternativas à realidade da educa-
ção, apresentando algumas propostas da Educação Popular (Ranulfo Peloso,
. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Unijuí, 2005.
Mauro Iasi e Conceição Paludo), da Educação do Campo (Rosely Caldart, Luiz
Carlos de Freitas e Paulo Silva) e da Pedagogia Histórico – Critica
(Demeval Saviani, Angelo Abrantes, Tiago Lavoura) na busca de um diálogo
para a trans- formação da escola e da educação atual.
Na terceira parte, sistematizo os desafios da Ação Escola da Terra frente
à realidade cearense e apresento proposta para enfrentarmos estes desafios e
avançarmos na implementação da Educação do Campo. Concluo, afirmando o
desafio da classe trabalhadora de assumir a educação como pauta e como tarefa
fundamental para sua emancipação.

1
Atualidade da educação no Brasil pro- cesso. Esta hegemonia se expressa na cultura de instrumentalizar as coisas
e as
A educação em sua historia passou por diversas fases desde um formato
mais voltado para os nobres na Grécia antiga, a uma etapa controlada pela
igreja católica na idade media que tinha como objetivo formar o clero. A
educação voltada para as classes trabalhadora nasce com o capitalismo. Se por
um lado classe burguesa, nesta época, foi uma classe revolucionária que fez
desenvolver a nova sociedade da época para que o nascente capitalismo se
desenvolvesse e para isto era fundamental outro tipo de educação que
contribuísse na evolução téc- nico-científico do novo sistema. Esta educação
no capitalismo nasceu de forma dual com escolas e universidades que devem
formar a classe dominante para os postos de poder e de gerência das empresas
e do Estado e outra escola sobretu- do de nível fundamental que deve preparar
os filhos da classe trabalhadora com o mínimo necessário para os trabalhos e
o ritmo das fábricas.
Por outro lado, a classe trabalhadora sempre lutou pelo o acesso à edu-
cação para todos. Educação que extrapolasse o mínimo permitido e preparasse
os trabalhadores não apenas para o trabalho, mas para sua emancipação.
Em vários momentos da história, houve movimentos que lançaram propostas
para modificar o jeito de fazer educação. Houve propostas de educação
anarquista, escolas ligadas aos sindicatos, e propostas de cunho socialistas com
educadores como Pistrak, Makarenko, Vigotsky e outros.
No Brasil, ao longo de sua história, somos acompanhados por belas leis
que se baseiam em processos educacionais avançados copiados de outros
países, que sevem de base para a nossa legislação educacional e uma realidade
muito aquém destas leis, já que o Estado, de maneira geral, não assegurou
recursos para prover a execução das ideias estabelecidas no código
educacional.
Na atualidade, a educação, assim como os demais aspectos de nossa so-
ciedade, é atingida pela crise do capital, isto influencia o jeito de pensar e fazer
educação. O sistema passa a renegar práticas até então aceitas e a buscar novas
formas que devem se adaptar à fase atual do capital. A educação passa ainda
mais para a lógica da privatização e da busca da qualidade total e da reestrutu-
ração produtiva.
No atual sistema do capital, há uma hegemonia de ideias que, segundo
Basto (pag. 30, 2015) citando Gramsci, é a capacidade que a classe dominante
tem de criar consenso em uma sociedade e se tornar a força dirigente do

1 1
pessoas, tudo é transformado em objeto, para ser vendido e para gerar
lucros. A educação, no capitalismo neoliberal , vem sofrendo um processo
ainda mais violento de mercantilização. Nestes tempos neoliberais, a
educação pensada pe- los órgãos multilaterais e empresas deve apenas
instrumentalizar os sujeitos. “É por isso que é preciso romper com a lógica do
capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional
significativamente diferente”. Diz-nos Mészáros em sua proposta de
educação para além do capital (MÉSZÁROS, 2005, p. 27).
A realidade da educação brasileira, na atualidade, dá seguimento ao
pro- cesso histórico, pois as classes dominantes sempre se negaram a oferecer
níveis adequados de instrução à população do país. Procuraram manter-se
no poder reservando os melhores níveis de ensino para seus filhos, mantendo
o povo na ignorância para conservar o domínio de classe.
Como ensina Florestan Fernandes (1981), no Brasil da revolução
bur- guesa inconclusa, não alcançamos os níveis sociais das “democracias
ocidentais consolidadas” da Europa e dos Estados Unidos. Nas mudanças
que se deram sempre pelo alto, as elites locais evitaram o engajamento
popular nos processos de transformação da sociedade, apesar da intensa
resistência e luta das camadas populares. Neste sentido, convivemos até
hoje com níveis ultramodernos de produção e métodos arcaicos como o
trabalho escravo no campo. Mesmo sendo a 8a economia do mundo em 2015
segundo o Instituto de Pesquisa e Relações Internacionais (IPRI), convivemos
com índices medíocres na educação, saúde e assistência social segundo dados
da Auditoria Cidadã da Divida em 2015.

No ideário da revolução burguesa no século XVIII a escola básica,


hoje entendida no Brasil com o ensino fundamental e médio era
concebida como a instituição que deveria garantir, como direito
social e subjetivo, o acesso universal, público, gratuito e laico
ao conhecimento e ao patrimônio cultural da sociedade. Este
legado permitiria as sucessivas gerações uma dupla cidadania
política e econômica. No primeiro caso, a garantia da
participação ativa na vida política e social, e, no segundo, a
inserção qualificada no processo produtivo que permitisse a
autonomia na construção do futuro (FRIGOTO, 2014, p. 01).

Este ideário nunca se concretizou no Brasil. Sempre foi negada ao


povo a educação e a cidadania plena e sua inserção produtiva foi sempre
de forma
1 1
desqualificada e sem perspectiva de futuro. Vários pensadores brasileiros têm Fundação Airton Senna, Gerdau).
feito este diagnóstico da especialidade estrutural brasileira. Níveis avançados
de desenvolvimento convivem com níveis arcaicos em nossa sociedade.

Com efeito, em plena segunda década do século XXI a


sétima economia do mundo em produção de riqueza
mantém mais de 13 milhões de analfabetos absolutos.
Também na educação infantil (de zero a cinco anos)
permanece uma imensa dívida, especialmente com os filhos
das frações mais pobres da classe trabalhadora. Avançamos nas
últimas décadas na quase universa- lização do ensino
fundamental, mas sem oferecer as bases mate- riais de uma
aprendizagem adequada. Bases estas que implicam prédios
adequados, bibliotecas, laboratórios, espaços de lazer e cultura,
tempo integral do aluno na escola e professores com ex- celente
formação geral e específica, e dignamente remunerado [...]
(FRIGOTO, 2014, p.01).

Segundo Frigoto (20014) Mesmo com a criação de 16 novas


Universida- des Federais e de 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia (IF), nos governos Lula e Dilma, atualmente, 80% das matriculas
do ensino superior no Brasil se encontra no setor privado que atende
principalmente os setores da Classe Trabalhadora, caracterizando outra
contradição da Educação Pública no Brasil Somados os alunos dos setores
públicos e privados nas universidades temos ainda níveis inferiores a países da
região como Argentina e Colômbia.
O ensino médio é outro nível de educação que se encontra em crise
desde os investimentos em infraestrutura até na questão da definição de
sua função na educação nacional. Metade dos jovens brasileiros não faz ou
não permanece neste nível de ensino, cerca de 18 milhões de jovens estão
fora da escola. (INEP/MEC, 2011).
Outra questão dos últimos governos é que o Projeto Educacional do
Ministério da Educação (MEC) tem sido dirigido numa visão empresarial de-
senvolvendo suas lógicas e conceitos com vista a adaptá-los às escolas e
univer- sidades. Este processo está orientado no Brasil por uma articulação
empresarial conhecida como “Todos por uma educação de qualidade”, que
reúne as prin- cipais fundações e instituições, vinculado diretamente aos
empresários do país, principalmente o setor financeiro (Fundação Bradesco,
Fundação Itaú Cultu- ral, Fundação Santander, Fundação Roberto Marinho,

1 1
Ao longo da década de 2000, o capital logrou constituir uma território nacional, prioridade do ensino para disciplinas de português e mate-
ro- busta organização de classe para disputar os rumos da
educação, o que envolve a imagem da crise da escola. Com
efeito, o setor fi- nanceiro, objetivamente, a holding Itaú-
Unibanco, em associação com setores industriais, como
Gerdau, logrou a maior coalizão já feita entre as frações
burguesas dominantes, reunindo, de fato, o fundamental dos
grupos econômicos que atuam no Brasil. A des- peito da
crença do senso comum de que os setores dominantes não se
importam com a educação popular, nunca estiveram tão
presentes – e organizados – na definição dos rumos da
educação (LEHER, 2014, p.02).

Uma importante vitória deste grupo foi à incorporação pelo


governo Lula das propostas deste grupo empresarial à agenda de governo.
Isto significou a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB), a adesão estados, municípios e escolas a um plano de metas
estabelecido pelo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) que
incorpora praticamente todas as me- tas do “Todos pela Educação” e adesão
destes ao Programa de Ações Articuladas (PAR).

A partir do avanço dessa coalizão, a iniciativa burguesa se fez


Es- tado. De fato, o governo Federal tomou para si as metas e
estraté- gias do Todos pela Educação em seu Plano de
Desenvolvimento da Educação, a principal iniciativa
educacional do governo Lula da Silva que, reconhecendo a
origem da agenda, denominou o plano governamental com o
nome “PDE: Compromisso Todos pela Educação”; no
governo Dilma, a coalizão converteu outro item de sua
agenda em política de governo, o Programa Nacional
Alfabetização na Idade Certa, bem como as avaliações
correspon- dentes. Ao mesmo tempo, logrou avanços de grande
monta entre os secretários estaduais de educação (CONSED)
e municipais (UNDIME). Seus tentáculos principais são as
OSCIP, como Itaú-Social, Fundação Ayrton Senna etc. Desse
modo, é possível afirmar que a agenda do capital alcança,
direta ou indiretamente, todas as mais de 190 mil escolas do
país, operando por meio do Estado e de organismos privados
(LEHER, 2014, p.02-03).

Algumas características da reforma empresarial na educação brasileira:


foco na avaliação com a aplicação de provas nacionais em todas as escolas do
1 1
mática, retorno de uma visão tecnicista de educação com a expansão de escolas No campo, persistem as piores condições das escolas que resistem nas co-
técnicas nos estados e cursos técnicos aligeirados através do Programa munidades. A Pesquisa Nacional da Educação na Reforma Agrária (PNERA),
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (PRONATEC). feita em mais de 6338 assentamentos, constatou que 60% das escolas não têm
Segundo Luiz Carlos de Freitas (2014), os reformadores empresariais luz elétrica, 6% não possui acesso aos correios, em 56% não há biblioteca e em
aduzem as seguintes sequelas para educação: estreitamento curricular com 10% não existe computador. De acordo com estes dados, constata-se que
foco em português e matemática, competição entre os profissionais para as escolas do campo não têm as condições mínimas necessárias para
alcançar os resultados pelos órgãos superiores, diminuição da visão coletiva funcionarem e que há um movimento de fechamento das escolas nas áreas
por parte dos professores, pressão sobre o desempenho dos alunos, preparação rurais.
para avaliações externas, multiplicação dos casos de fraudes devido à pressão Neste sentido, devemos pensar propostas educacionais para além das es-
exercida sobre as escolas, aumento da segregação socioeconômica no colas, das universidades, do que está estabelecido na lógica do capital. Além de
território com as escolas se especializando em determinadas camadas de ocupá-las com os sujeitos das camadas populares, é preciso fazer uma
estudantes, restrição de alunos não desejados em determinadas escolas, educação para além destas escolas, desenvolvendo meios de atingir outras
aumento da segregação socioeconômi- ca dentro das escolas com apoio e dimensões que as escolas tradicionalmente não atingem, como a dimensão da
premiações para que determinados grupos de estudantes mantenham as comunicação, da formação política, das lutas dos movimentos sociais.
notas, segregação de outros estudantes em grupos separados, precarização da No Brasil, um dos movimentos populares que tem assumido a educação
formação dos professores através do apostilhamen- to,ou seja, síntese dos como tarefa de emancipação dos trabalhadores é o Movimento dos
conteúdos a serem repassado aos educadores com foco nos aspectos práticos Trabalhado- res Rurais Sem Terra (MST), buscando construir uma proposta
a serem realizados em sala de aula. educativa que assuma o projeto da classe trabalhadora do campo. Sistematizado
Este modelo, ao contrário do propagandeado, não garante uma na obra Escola é mais do que escola na Pedagogia do Movimento dos
educa- ção de qualidade, pois precariza a atividade educativa e restringe os Trabalhadores Rurais Sem Terra, de Rosely Salete Caldart. Em 1998, foi
conteúdos a serem trabalhados com os estudantes o que levará a um novo realizado em Luziânia, Goiás, a I Conferência Nacional por uma Educação
período perdido na educação brasileira. Básica do Campo, organizado pelo MST, Universidade de Brasília (UNB),
Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com a colaboração da
Atualidade da educação, Educação UNESCO e do UNICEF. Nesta confe- rência, foi cunhado o conceito de
do Campo e Escola da Terra no Ceará
Educação do Campo em oposição ao termo educação rural, que significou,
em sua trajetória, uma escola apenas para apren- der a ler escrever,
As populações do campo vêm sofrendo um duplo ataque seja pelo avan-
majoritariamente atrelada aos interesses dos latifundiários e ignorante à
ço do agronegócio que vem expulsando estas populações de suas áreas tradi-
realidade dos povos do campo.
cionais, já que este modelo necessita de quantidades cada vez maiores de terra
A luta e a pressão dos Movimentos Sociais do Campo provocou o
para produzir, de preferência sem gente e com uso intensivo de tecnologias
Governo Federal a lançar o Programa Nacional da Educação do Campo
e agrotóxicos com enormes prejuízos para a natureza e para as
(PRONACAM- PO) que representa uma política de educação específica para o
comunidades camponesas. Tal situação tem ocasionado a diminuição
campo, juntamen- te com os sistemas públicos de ensino dos níveis federal,
populacional nas regi- ões de amplo impacto deste modelo agrícola. O outro
estadual e municipal e os movimentos sociais e sindicais do campo devem realizar
ataque se dá através do fechamento de escolas. Segundo o Censo
a efetivação de suas ações para garantia da educação como um direito público
Escolar/MEC de 2013, referente aos anos de 2013 e 2014, foram fechadas 32.5
subjetivo. O PRONACAM- PO está subdividido em quatro eixos: Gestão e
mil escolas, cuja maioria estava no nordeste, 17.592 mil. Deste número,
Práticas Pedagógicas, Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional,
3.968 mil eram do Ceará. Na região na qual os índices educacionais eram
Infraestrutura Física e Tecnológica e Formação Inicial e Continuada de
mais baixos foi onde mais se fechou escolas.
1 1
Professores. No eixo da Formação Inicial e Continuada de Professores se
encontra a Ação Escola da Terra.

1 1
Segundo o Manual do Programa (2015), a Escola da Terra é ação incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente
que busca promover o acesso, a permanência e o aperfeiçoamento das uma estratégia
condições de aprendizagem dos educandos do campo e quilombolas em suas
comunidades. São objetivos da Ação: promover a formação continuada
específica de educado- res para que atendam às necessidades de
funcionamento das escolas do campo e das localizadas em territórios
quilombolas e oferecer recursos didáticos e pe- dagógicos que atendam às
demandas formativas das comunidades camponesas e quilombolas.
O suporte às escolas do campo e escolas localizadas em territórios qui-
lombolas incluídas na ação Escola da Terra se dá em turmas compostas por es-
tudantes de variadas idades dos anos iniciais do ensino fundamental em classes
multisseriadas, fortalecendo a escola como espaço de vivência social e
cultural. A Formação Continuada de Professores deverá constar de um tempo
uni- versidade que se constitui em encontros presenciais executados pelas
instituições formadoras, com exigência de frequência ao curso, ministrado em
carga horária entre 90 e 120 horas; e de período formativo denominado tempo
escola-comunida- de, realizados em serviço e acompanhados pelos tutores, com
carga horária entre 60 e 90 horas. O objetivo da formação continuada de
profissionais da Escola da Terra constitui-se em fortalecer o desenvolvimento
de Projetos Políticos Pedagó- gicos e metodologias adequadas às comunidades.
A implementação da formação ocorrerá com a oferta de curso de
aperfeiçoamento, com carga horária total míni- ma de 180 horas. O material
didático e de apoio pedagógico será disponibilizado
diretamente as escolas em período subsequente a realização do Projeto.
No Ceará, a Ação Escola da Terra vem trabalhando com
aproximada- mente 750 cursistas (professores) de 25 municípios dos 121 do
Ceará que pos- suem escolas multisserias, segundo o censo escolar de 2012.
Conta com 19 professores formadores e uma equipe de coordenação para a
realização das for- mações organizadas em 06 etapas com objetivo de
desenvolver uma visão critica do mundo, da escola e da capacidade de
pensar outra escola para o campo.

Educação Popular, Educação do Campo e Pedagogia Histórico-


Critica um diálogo para construção de alternativa

É por isso que hoje o sentido da mudança educacional radical


não pode ser senão o rasgar da camisa-de-força da lógica

1 1
de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos -internalização”, coerente e sustentada, que não se esgota na ne-
os meios disponíveis, bem como com todos os meios ainda a ser gação – não importando quão necessário isso seja como uma
inven- tados, e que tenha o mesmo espírito (MÉSZÁROS, fase
2005, p. 35).

Como dito anteriormente, há uma hegemonia da classe dominante


que permeia a maioria dos sujeitos na contemporaneidade da luta de classe. A
maio- ria repete suas ideias, seus sonhos, seus gestos, suas vestimentas e se
delicia com seus sabores. Internalizamos todo o sistema através dos grandes
meios de comu- nicações, que servem como moduladores culturais e o
principal partido da classe dominante, neste momento. Por isto, uma
pedagogia que reme na contramaré do sistema, que tenha sua centralidade nas
pessoas e não nas estruturas e que já vem se construindo, principalmente nos
movimentos sociais, deve ser potencializada para um maior número de grupos
no objetivo de combater a ideologia dominante. O sistema conseguiu
aperfeiçoar seu processo de dominação que se tornou, cada vez mais,
imperceptível ao olho popular, sem uma análise mais profunda, atingindo
áreas que em outros momentos históricos não havia con- seguido. Por isso,
é tão falho o trabalho de grupos de esquerda que concentram seus esforços em
apenas algumas áreas como a econômica e a política, deixando
outras dimensões, como a educação e a cultura, sem serem trabalhadas.
Na educação, é preciso ampliar os trabalhos e não deixar apenas
nas mãos dos governos e empresas. Devemos intensificar o trabalho, pois a
forma- ção humana é essencial na construção deste “outro mundo possível”,
persegui- do por todos aqueles que sonham com outra sociedade. Neste
campo, é preciso recuperar, mesmo na educação formal, seus elementos
progressistas.
Alguns grupos vêm procurando realizar e sistematizar propostas de
edu- cação de forma diferenciada. Apresentarei, em síntese, as contribuições
das seguintes contribuições educativas: Pedagogia Histórico-Critica, da
Educação Popular e Educação do Campo, procurando trazer elementos
complementares que podem contribuir na formação dos professores da Ação
Escola da Terra e das Escolas do Campo.

Educação Popular

Necessitamos, então, urgentemente, de uma atividade de


“contra-
1 1
necessário nesse empreendimento – e que define seus objetivos mente pela experiência da igreja progressista, que desenvolveu um trabalho de
fun- damentais, como a criação de uma alternativa abrangente
concre- tamente sustentável ao que já existe (MÉSZÁROS,
2005, p. 56).

A educação popular no Brasil tem como um dos mestres Paulo


Freire, que primeiro procurou experimentar e sistematizar uma educação a
partir dos oprimidos. Paulo Freire parte, em sua pedagogia, da realidade dos
educandos. Esta realidade que ele procura captar através do diagnóstico,
método que pro- cura identificar os problemas principais para, a partir desta
realidade, estruturar os temas que servirão de base para o processo de ensino
aprendizagem, os temas geradores.
Paulo Freire parte do contexto dos alunos, da história, da luta para
ge- rar os textos a serem apropriados pelos educandos. Ele vê a educação
como um processo no qual os sujeitos fazem e refazem a realidade, sua
história, sua própria vida. A pedagogia de Paulo Freire conta ainda com
círculos de cultura nos quais se realiza a troca de conhecimentos entre os
educandos e educadores. A educação popular só tem sentido quando está
imbricada a luta e a organização popular que busca uma transformação
estrutural da sociedade. A educação popular não pode um método que
procura envolver os trabalhadores e dinamizar a educação, sem questionar esta
própria sociedade que lhe exclui do conhecimento e dos avanços alcançados
pela humanidade. A educação popular deve ser um instrumento de
engajamento e conscientização dos trabalhadores
na atualidade para a transformação deste sistema.
Segundo Ranulfo Peloso (2012), a educação popular difere radicalmente
de capacitação, ou treinamento, também não é discurso como pensam e prati-
cam alguns militantes sociais, não se confunde com dinâmica de grupo ou algo
semelhante, que procura apenas tornar mais atrativo o processo educativo, não
é um método fácil, é doloroso e complexo, tanto para os educadores,
quanto para os educandos. É um processo coletivo de busca e de
socialização do co- nhecimento, que aprimora o potencial da luta popular,
rompe com a lógica do capital e se propõe a construir uma alternativa da
classe trabalhadora.
Segundo Peloso (2012) No campo da educação popular, também ocor-
reram algumas polêmicas ao longo da história. Uma dessas divergências foi
entre a educação realizada pelos partidos tradicionais de esquerda, que reali-
zavam uma educação muito dogmática. Esta prática foi combatida principal-
1 1
formação na base popular iniciado antes do golpe militar, passando pelos anos conhecimentos sistematizados pela
de chumbo da ditadura militar e contribuindo com o surgimento de muitos
movimentos sociais, inclusive o MST. Este trabalho desenvolvido por setores
progressistas da igreja católica e também de algumas igrejas protestantes utili-
zou como metodologia principal o método “ver, julgar e agir”
O método “ver, julgar e agir”, é um método que parte do ver, um diag-
nóstico da realidade vivida nos meios populares; em seguida, desenvolve o
jul- gar, através de uma análise desta realidade, sobretudo com base na
doutrina da igreja, de seus documentos e da Bíblia; e, por último, segue a
etapa do agir, que busca realizar intervenções nesta realidade para modificá-la
com ações con- cretas. Este método desenvolve uma crítica profunda às
práticas de formação desenvolvidas, até então, pelos partidos e organizações
de esquerda e procurou desenvolver uma prática nova, fazer um trabalho de
formação e de base mais perto da realidade, menos dogmático e mais
participativo.
Por outro lado, devemos buscar compreender essas duas experiências
no seu momento histórico procurando aprender suas qualidades e defeitos
para refletirmos o momento atual que passamos na formação política, como
nos diz Mauro Iasi:

Na verdade, também nesse campo, as coisas não são tão


simples. A tradicional formação dos PCs, ainda que
inegavelmente dog- mática, mostrou-se portadora de grande
eficácia na socialização e consolidação de valores
revolucionários, expressos na incorpo- ração do significado do
que é ser comunista, de ser revolucioná- rio. Ao mesmo
tempo, os grupos de cristãos comprometidos e sua proposta
educativa acabaram por propiciar a emergência de elementos
da cultura popular, a preocupação com a mediação das
técnicas e da linguagem, o que levou também a resultados
bastante significativos tanto na organização quanto na
motivação política (IASI, 2007, p.158).

Nos últimos anos, temos observado que algumas correntes da educação


que focam sua pedagogia nas técnicas ou no processo, como o
construtivismo, e que deixa o conteúdo de lado, têm influenciado também a
educação popular, que com o temor de ser taxada de tradicional, tem relegado
conhecimentos im- portantes para a classe trabalhadora. Esta concepção ao
fixar-se na importância de partir dos sujeitos acaba por desprezar os

1 1
sociedade, como nos fala Newton Duarte (2001) fazendo uma critica a ideia de como
nova pedagogia do “aprender a aprender”, já que, segundo o
construtivismo.

(...) É mais importante o aluno desenvolver um método de aqui-


sição, elaboração, descoberta, construção de conhecimentos, do
que esse aluno aprender os conhecimentos que foram descober-
tos e elaborados por outras pessoas. É mais importante adquirir
o método científico do que o conhecimento científico já
existente. Esse segundo posicionamento valorativo não pode ser
separado do primeiro, pois o indivíduo só poderia adquirir o
método de investigação, só poderia “aprender a aprender”
através de uma atividade autônoma. (Duarte, 2001, p.36 e 37)

Para Mauro Iasi, é preciso não cair nos extremos, pois “o conhecimento
ganha sentido na medida em que se traduz para um contexto concreto,
assim como esse contexto só é compreendido à luz do conhecimento anterior”
(IASI, 2007, p.162).
As entidades, movimentos sociais e educadores têm avançado bastante
no debate da educação popular e isto ajuda a qualificar e aprimorar a
prática educativa. Esperamos que, à luz da história, os próximos embates
possam ser desenvolvidos em um novo patamar, na medida em que cresce a
consciência e o trabalho de formação entre os trabalhadores, que devem ser os
principais atores deste processo.

Educação do Campo

Se, entretanto, os elementos progressistas da educação formal


fo- rem bem sucedidos em redefinir a sua tarefa num espírito
orien- tado em direção à perspectiva de uma alternativa
hegemônica à ordem existente, eles poderão dar uma
contribuição vital para romper a lógica do capital, não só no
seu próprio e mais limitado domínio como também na
sociedade como um todo (MÉSZÁ- ROS, 2005, p. 59).

Neste tópico, inicio com a reflexão de Marx sobre a consciência da


classe trabalhadora, do destaque de Lenin à organização dos professores e dos
cam- poneses no processo de mudança da sociedade. Depois, apresento as
reflexões de alguns pensadores atuais e outras próprias, desenvolvendo a

1 1
a educação e a escola podem contribuir para elevar o nível de consciência dos quilombolas, indígenas, extrativista, assentados, acampados). Ela nasce como
camponeses e seus filhos, portanto contribuindo para as mudanças sociais. nos diz Rosely Caldart (2012) como uma crítica à educação brasileira e
Comecemos por Marx e Engels que nos explicam o que determina a principalmente a realizada no
consciência em nossa sociedade: “Não é a consciência dos homens que deter-
mina seu ser, mas o seu social que determina a consciência” (MARX;
ENGELS, 1986, p. 56).
Marx e Engels nos explicam que este processo de formação da
consciên- cia é um produto social e que o homem em sua fase inicial
possui uma cons- ciência natural, pouco desenvolvida por suas condições de
vida quase animal.

A consciência, portanto, é desde o início um produto


social, e continuará sendo enquanto existirem homens. A
consci- ência é naturalmente, antes de mais nada, mera
consciência do meio sensível mais próximo (...) e coisas
situadas fora do individuo que se torna consciência da
natureza que, a prin- cípio, aparece aos homens como um
poder completamente estranho, onipresente, inexpugnável,
com o qual os homens se relacionam de maneira puramente
animal e perante o qual se deixam impressionar como o
gado; é, portanto, uma consciência puramente animal, da
natureza (religião natural) (MARX; ENGELS, 1986. p. 56).

Nos clássicos do pensamento revolucionário de esquerda, sempre foi


re- forçado a importância da aliança operária-camponesa, como sendo
fundamen- tais para a transformação da sociedade. Lenin falava, ainda:
quando os educa- dores do campo derem um passo à frente, os camponeses
darão dois passos à frente. Na atualidade, a composição de classe no
mundo do trabalho mudou, diminuindo a quantidade de agricultores no
Brasil, porém continua fundamen- tal organizar os camponeses para as
mudanças na realidade do meio rural e para as transformações profundas em
toda sociedade.
Deste ponto de vista, é necessária uma organização dos trabalhadores
do campo e a elevação do nível de consciência dos povos do campo das águas
e da floresta. Nesta empreitada, a escola tem um papel a contribuir na
socialização dos conhecimentos e preparação dos camponeses para construir
seu projeto de classe.
Educação do Campo é proposta educacional que tem como
protagonista os trabalhadores do campo (agricultores, pescadores,

1 1
campo. É parte da luta dos povos do campo pelo direito a educação e por outra do trabalho.
forma escolar.
Este movimento pedagógico procura defender os objetivos e propostas
voltadas para o desenvolvimento das populações do campo. Sua materialidade
de origem é a luta dos Movimentos Sociais do Campo voltados a intervir nos
funda- mentos históricos da Questão Agrária brasileira e da educação nacional.
Procura cultivar a identidade do homem e da mulher do campo, vinculados
à luta, aos sonhos, aos valores, a cultura e a história do campo. Busca dar
continuidade a uma tradição pedagógica que trabalha com a emancipação dos
sujeitos.
As matrizes pedagógicas da Educação do Campo procuram desenvolver
de forma intencional uma relação entre a escola e projeto histórico da
classe trabalhadora do campo, buscando articular o local com o universal e
a teoria com a prática, de forma que devemos refletir sobre a escola que
queremos. Só avançaremos nos processos de transformação da escola se
concretizamos estas reflexões.
Para compreender a Educação do Campo, devemos levar em conta
al- gumas características: a) que não é possível desenvolver essa proposta sem
levar em conta a contradição principal entre capital e trabalho dentro do
sistema;
b) que para realizar a instrução faz-se necessário levar em conta a situação real
dos sujeitos envolvidos no processo, isto tem a ver com a cultura, a natureza e
a formação social, a materialidade concreta de sua existência; c) que a
educação dos camponeses não pode ser pensada apenas como educação
escolar, porém a escola é fundamental neste processo de elevação do nível
conhecimento entre os trabalhadores.
Podemos mirar a terra de diversos ângulos, na visão indígena da pa-
chamama, a terra como mãe, a fertilidade, a produtora da vida. A terra
numa interpretação agroecológica, como um ser vivo que sofre as dores
da agressão cotidiana, a terra como a casa comum da humanidade. A terra
como local de produção de alimentos, da criação de animais, da pesca e
de extração de minerais. Uma escola para os camponeses e seus filhos que
apreendam a extrair ensinamentos, conviver e a coproduzir com a terra em
suas várias dimensões.
O trabalho deve ser um dos elementos que devem estar intencional-
mente organizado na escola, o trabalho faz parte da vida, o trabalho é vida,
historicamente o ser humano foi estruturando a vida em sociedade através

1 1
Ter o trabalho como princípio educativo é mais que ligar é mais não nega
que ligar a educação com o trabalho produtivo de bens e
serviços. Tomar o trabalho como princípio educativo é tomar
a própria vida (atividade humana criativa) como princípio
educativo. Vida que é luta, que implica contradições (Freitas,
2011, p.158).

Para a introdução do trabalho na escola e sua relação com a produção


e a vida na comunidade, é fundamental realizar um levantamento da
produção no assentamento/comunidade em que a escola está inserida. No
geral, as famí- lias menosprezam sua própria produção em outros casos a
produção não está organizada a escola pode contribuir com a comunidade,
organizando experi- mentos com os alunos para que possam servir de espelho
para o assentamento/ comunidade.
A cultura é um marco que deve estar intencionalmente organizado na
es- cola, desenvolvendo uma série de atividades culturais para os estudantes e
para comunidade, pois a cultura no campo é um elemento pulsante e que
deve ser trabalhado numa proposta de Educação do Campo, contribuindo
para elevar o nível cultural e de consciência da comunidade. Neste aspecto, a
escola deve traba- lhar a crítica à cultura hegemônica que menospreza a cultura
dos povos do campo e dificulta a valorização da identidade camponesa e de
suas expressões artísticas.
A terra, o trabalho e a cultura são elementos fundamentais na constitui-
ção do campesinato. Uma escola da terra, do trabalho e da cultura
contribui no processo de transformação da escola e da Educação do
Campo trazendo elementos da realidade na qual a unidade está inserida para
ampliar o conteúdo da escola e da educação.

Pedagogia Histórico–Critica

Uma das defesas fundamentais da Pedagogia Histórico–Critica e contra


o rebaixamento da instrução as camadas populares, pela valorização dos
profes- sores e da escola, pela garantia do ensino dos conteúdos
sistematizados ao longo da história da humanidade e que garanta uma
qualidade da educação à classe trabalhadora.

A pedagogia histórico-crítica defende que a escola ensine a


todos, portanto se contrapõe à escola atual e defende mudanças
radicais em seu interior, reconhecendo que essa ação particular

1 1
a importância e a primariedade das lutas que ocorrem na dimen- no sistema capitalista como a exploração e alienação e tem aspectos positivos
são estrutural da sociedade. No entanto, não descuida do fato de
como à criação, a criatividade e a construção. Como afirma Frigoto (2012),
que a efetivação e incorporação dos conhecimentos aos filhos da
classe trabalhadora é um meio fundamental para transformações
Em sua concepção dialética, por ser a forma mediante a qual, em
radicais da sociedade, portanto a luta pela concretização de
qualquer tempo histórico, se define o modo humano de
um sistema escolar público que ensine e promova o
existir, criando e recriando o ser humano, mesmo nas formas
desenvolvimento é estratégica à classe que vive do próprio
mais brutais da escravidão, o trabalho humano não é pura
trabalho (ABRANTES, Angelo, 2015, p.136).
negatividade. Mes- mo o escravo, ainda que não reconhecido
como tal e tomado como um animal, como um meio de
Segundo a Pedagogia Histórico–Crítica, a escola tem uma dupla função produção, é um ser humano que não se reduz a objeto e cria a
de formação de mão de obra e de reprodutora da ideologia burguesa nos estu- realidade humana. Não fosse assim, teria sido impossíveis superar
dantes das classes populares. as relações escravocratas e feudais, e o capitalismo seria eterno.
(Frigoto, 2012, p. 748 e 749)
A formação dos indivíduos, considerando formação um vir-
-a-ser marcado pela unidade dialética entre o ser e o não ser A escola é a mediação criada pela humanidade para repassar aos seus
da pessoa, para além de uma suposta apropriação passiva de semelhantes o saber sistematizado ao longo da história da humanidade e cons-
saberes, é tarefa do fazer pedagógico que representa duplo mo-
truído pelo trabalho. A Pedagogia Histórico–Crítica é método pedagógico que
vimento: de continuidade, em que são transmitidos e apropria-
dos ativamente os conhecimentos que conquistaram na prática procura trabalha a mediação do conhecimento em cinco passos sistematizados
social e histórica estabilidade relativa, e de ruptura, em que são por Saviani que parte da pratica social e retorna a pratica social de forma enga-
socializados problemas humanos que não encontraram solução jada. Savini (2015) sistematiza abaixo.
no atual momento histórico e são reconhecidos como A prática social é o reconhecimento de questões postas pela realidade e
necessá- rios à sociedade, encontrando possibilidades de pelas necessidades dos humanos e que disponha de elementos teóricos e práti-
solução. A tare- fa educativa, compreendida como longo e
cos para a sua solução. O segundo momento na Pedagogia Histórico–Crítica é
intencional processo de ensino e aprendizagem, é a de
possibilitar a tomada de cons- ciência dos indivíduos sobre a problematização na qual o professor deve encaminhar as possíveis soluções
contradições no campo da prática social humana, a pressupor da prática social. Instrumentalização, terceiro momento, se refere aos
relação ativa com as conquistas e desafios nos campos de conteúdos a serem transmitidos aos alunos para que se tornem efetivamente
atividade científica, artística e filosófica (ABRANTES, 2015, instrumentos da prática social. O quarto momento é chamado de Catarse e
p.138). ocorre quando a mais alta elaboração da estrutura se transfigura em
superestrutura na consciên- cia do ser humano, o retorno à prática social com
A mediação é uma das categorias centrais na Pedagogia Histórico-Crí- uma nova síntese integrando a sua vida.
tica. Para esta concepção pedagógica, a educação é uma atividade mediadora A Pedagogia Histórico–Crítica contribui para a construção de uma esco-
dentro da pratica social. A “mediação”, “ação recíproca”, “totalidade” e a la voltada para a classe trabalhadora que tem como ponto de partida e chegada
“con- tradição” fazem do invólucro conceitual básico da teoria dialética da a prática social, sem descuidar e tendo como central, a defesa dos
realidade e do conhecimento. conteúdos sistematizados como forma de garantir a socialização do
Foi pelo trabalho que os seres humanos se fizeram humanos conhecimento para a classe operária e camponesa.
transfor- mando a natureza e se destacando da natureza pela capacidade de
projetar por antecipação o objeto a ser construído, criado e esta capacidade
difere o homem dos outros animais. O trabalho visto de forma dialética tem
aspectos negativos

1 1
Desafios da Ação Escola da Terra na formação de coletivos e pelos movi-
educadores das escolas do campo do Ceará

A Ação Escola da Terra deve incentivar o gosto pelo estudo e pela refle-
xão nos professores que se encontram apáticos pelo predomínio do
pragma- tismo educacional nas formações dos educadores promovido pelos
governos e empresas do ramo educacional.
Denunciar e resistir à ingerência dos reformadores empresariais na
educação que procuram mercantilizar o ensino e trabalhar a educação
como mercadoria. As escolas e a sala de aula passam a ser geridos como
empresas onde predomina as reformas dos reformadores empresariais. A
uma disputa permanente entre os movimentos sociais que lutam por uma
política pública de Educação do Campo e os setores governamentais, MEC e
as secretarias de educação estaduais e municipais que assumem as metas e
estratégias do Todos pela Educação. Romper com a lógica do sistema e
construir alternativas para que as reflexões e proposições da Ação Escola da
Terra, desde o materialismo histórico e dialético, possam contribuir na
elevação do nível de consciência dos educadores e estudantes.
Dar continuidade a Ação Escola da Terra incentivando a construção de
Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) das escolas do campo em os professores
estão participando da Ação Escola da Terra. Os Projetos Políticos Pedagógicos
(PPP) das escolas devem está sustentados na Educação Popular, na Educação
do Campo e na Pedagogia Histórico–Crítica para que rompa com o atual
sistema nacional de educação que direciona a forma escolar no Brasil através
de meca- nismos como Programa de Ações Articuladas (PAR) que trata do
financiamento e já direciona as prioridades de estados e municípios na
execução orçamentária da educação, há ainda os mecanismos da gestão
escolar, o currículo e avaliação. Dar continuidade e radicalizar a luta por
educação para os povos do campo, assumindo a campanha “fechar escola é
crime”, por que, para realizar- mos as proposta da Educação do Campo e a
Ação Escola da Terra, a primeira condição básica é ter escolas nas
comunidades rurais. A segunda tarefa é lutar
para melhorar a infraestrutura e as condições de funcionamento.
O desafio teórico de aprofundar o debate sobre as concepções de educa-
ção e escola, fazendo um resgate histórico e conhecendo as experiências
desen- volvidas pelos trabalhadores e suas organizações e experiências
revolucionárias. Sistematizar as atuais experiências realizadas por escolas,

1 1
mentos sociais para irmos vislumbrando o caminho a ser construído e método pública e gratuita e integração da educação com a produção material. O Mani-
pedagógico a ser trabalhado.
Precisamos construir uma articulação das entidades da educação nacio-
nal para enfrentar a reforma empresarial da educação, uma frente que
tenha como uma das metas principais a luta pelo financiamento da educação
pública. O futuro da educação está nas mãos da classe dos que vivem do
trabalho por- que a ideologia da classe dominante tem demonstrado
constantemente que não tem compromisso com uma educação de qualidade
para os trabalhadores. Para superar a ofensiva dos empresários é necessário
realizar lutas para além da edu- cação. Para fortalecer a formação política do
conjunto da classe trabalhadora é preciso que as escolas sejam forjadas como
espaço de diagnóstico e de busca de soluções para os problemas nacionais. Os
desafios são políticos, teóricos, organizativos e pedagógicos, porém com o
empenho de construção unitária nos sindicatos e movimentos populares
conseguiremos superá-los.

Conclusão

Os grupos dominantes investem maciçamente no desenvolvimento


tecno- lógico das forças militares para submeter, por meio da força, as nações
inimigas e povos em resistência que venham questionar a situação vigente.
Temem a perda ou questionamento de sua hegemonia através da resistência de
grupos sociais. Por isto, se preparam para usar a coerção, para garantir sua
manutenção caso as lutas sociais saiam do controle e quebrem o consenso
social mantido pelo siste- ma. Porém estes meios se assentam em outros
mecanismos de dominação, como acabamos de refletir, ligados às áreas
política, educacional e cultural. Por outro lado, sabemos que uma verdadeira
mudança social só é viável com mudanças estruturais, ou seja, no modo de
produção, só mudando as bases de produção e reprodução social, podemos
construir uma sociedade de justiça e igualdade.
Para Marx (2005), em suas ideias no Manifesto do Partido
Comunista a classe trabalhadora teria como pilares para a sua vitória a união
da classe para lutar por objetivos comuns e elevação do seu nível de
conhecimento através do saber, dessa forma, os trabalhadores deveriam
assumir a educação em suas mãos, não delegar para o estado, mais assumir
a educação com uma tarefa da classe tirando da influencia da classe
dominante.
Em outro momento no Manifesto Marx (2005) vai defender a educação
1 1
festo faz 169 anos este ano. Tanto tempo depois os desafios são os mesmo para FREITAS, Luiz Carlos. Os empresários e a política educacional. São Paulo, Boletim
a classe trabalhadora do campo e da cidade. Lutar por educação pública e por da Educação, MST, 2014.
uma escola que vincule educação e trabalho. Neste sentido, é que a Educação FREITAS, Luiz Carlos. A Escola Única do Trabalho: explorando os caminhos de
Popular, a Educação do Campo e na Pedagogia Histórico–Critica são propostas sua construção in Os caminhos para transformação da escola. São Paulo:
que favorecem a classe trabalhadora a assumir a sua educação e construírem Expressão Popular, 2011.
uma proposta que faça a vinculação entre educação e produção material. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação básica no Brasil: entre o direito social subjetivo
e negócio. Revista de Educação Pública, Rio de Janeiro, setembro de 2014, disponível
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FERNANDES, Florestan. O que é revolução? In Clássicos sobre a revolução UNESCO. Texto para debate. Conferencia Nacional por uma educação básica
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images/0014/001497/149798porb.pdf> Acesso em: 28 de dezembro de 2015, às
13h 50min.

1 1
UMA ANÁLISE DIALÉTICA DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NA EDUCAÇÃO DO CAMPO

Maria Núbia de Araújo


Frederico Jorge Ferreira Costa

Introdução

Este trabalho expressa as primeiras aproximações de nossa experiência


enquanto docente do Projeto Ação Escola da Terra – Ceará. As atividades ini-
ciaram em 2014 e terminaram no início de 2016, com um projeto de formação
na perspectiva do no materialismo histórico-dialético fundado por Marx,
na pedagogia da alternância que objetiva valorizar no processo educativo as
ma- nifestações sociais e as reivindicações de direitos da comunidade, como
uma forma de diferenciar a educação do campo da educação para o campo
(GIMO- NET, 2007) e na proposta da Pedagogia histórico-crítica, baseada em
(SAVIA- NI, 2013).
O curso de aperfeiçoamento Ação Escola da Terra, desenvolvido pelo
Ministério da Educação no Ceará, realizou-se através do Departamento de
Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Ceará com parcerias
en- tre as prefeituras locais dos 13 polos no interior e capital. A carga horária
geral é de 180hs/aula, divididas entre 130hs/aula de tempo-universidade,
modalidade presencial, realizada aos finais de semana, quando cada professor-
pesquisador se dirigiu até os polos para ministrar os módulos. E na modalidade
à distância, de 50hs/aula de tempo-comunidade/alternância, destinadas às
atividades de- senvolvidas junto às escolas e comunidades.
A metodologia partiu de um levantamento teórico-bibliográfico, das
seguintes obras: Manuscritos econômicos-filosóficos (1844) e A Ideologia alemã
- Marx (1845-46); Por uma ontologia do ser social II (1984) Lukács;
Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (2013); Pedagogia no
Brasil: história e teoria (2012a); Escola e Democracia (2012b) – Saviani e
Educação, cidadania e emancipação humana - Tonet (2005) as quais elucidam
categorias da pesquisa ora apresentada, a concepção de dialética, educação,
conhecimento, práxis e formação de professores.
Dentre os documentos analisados destacam-se as Diretrizes Operacio- ção do campo e seus pressupostos teóricos metodológicos a partir da compre-
nais para a Educação Básica nas Escolas do Campo - Parecer CNE/CEB nº ensão dos fundamentos da educação com vistas a superar uma prática alienante
36/2001, a Resolução CNE/CEB nº 01/2002 e o Projeto Escola da Terra – enquanto elemento central na formação de professores.
Ceará (2014), que versam sobre a identidade da educação do campo e suas Portanto, ao se propor a formar criticamente professores na educação do
diretrizes. campo coloca-se como dupla dificuldade, por um lado o desafio de estudar
Por último realiza-se uma análise da experiência de docente no projeto e apreender os fundamentos ontológicos da educação, que transitam entre
desenvolvido, baseada na concepção de práxis e na disputa hegemônica no es- edu- cação formal e não-formal, apropriando-se das experiências histórico-
paço da escola pública. concretas da luta de classes pelo direito ao acesso à educação, à terra, ao
reconhecimento político-jurídico e social, que ocorrem em espaços não-
Fundamentos ontológicos: conhecimento e formação docente escolares, envolvendo po- pulações historicamente silenciadas como
camponeses, sem-terra, quilombolas, indígenas e outras. Por outro lado,
[...] sua essência (da educação) consiste em influenciar os homens
imprimir um caráter cada vez mais universal e científico, articular órgãos
no sentido de reagirem a novas alternativas de vida do modo so- oficiais, intervir na sociedade civil e, sobretudo o dia- logar e engajar-se com os
cialmente intencionando. O fato de essa intenção se realizar – par- movimentos sociais vinculados a educação do campo.
cialmente – de modo ininterrupto ajuda a manter a continuidade Lukács, em Por uma ontologia do ser social (2013), afirma que a realidade
na mudança da reprodução do ser social; que ela, a longo prazo, é um complexo de complexos, isto é, com uma totalidade social. Nesse
fracasse – parcialmente – de modo igualmente ininterrupto
sentido, a educação, como complexo social, caracteriza-se como um momento
constitui o reflexo psíquico não só do fato de essa reprodução se
da esfe- ra da reprodução social, pois, sua natureza e função são
efetuar de modo desigual, de ela produzir constantemente
momentos novos e contraditórios para os quais a educação mais predominantemente reprodutoras em qualquer modo de produção. Ao
consciente possível de seus fins só consegue preparar manter uma dependência ontológica com o trabalho, o complexo fundante do
insatisfatoriamente, (LUKÁCS, 2013, ser social, a educação não perde sua autonomia relativa e uma determinação
p. 178) (grifos nossos) recíproca de com os demais complexos sociais. Assim compreende-se que a
educação caracteriza-se como uma práxis social com legalidade própria e em
No contexto atual do Brasil, as experiências de formação docente com sua especificidade atua nas cons- ciências influenciando os indivíduos a
base na política nacional de formação de professores 46 carregam em seu bojo determinadas atitudes no processo de autoconstrução humana.
os desafios relacionados à qualificação-titulação, na qual os documentos
oficiais vinculam esta premissa à qualidade em educação. Nessa perspectiva, a [...] o essencial da educação dos homens, [...] consiste em
iniciativa individual na busca da qualificação tornar-se-ia a força motriz para capaci- tá-los a reagir adequadamente aos acontecimentos e às
sanar pro- blemas históricos da educação. situações novas e imprevisíveis que vierem a ocorrer depois em
sua vida. Isso significa duas coisas: [...] que a educação do
Nosso esforço, ao contrário da falsa ideologia presente nos documentos
homem – con- cebida no sentido mais amplo possível – nunca
oficiais, trata dialeticamente de investigar a formação de professores na educa- estará concluída. Sua vida dependendo das circunstâncias,
46 O aprimoramento da formação do professor é essencial para a melhoria da qualidade pode terminar numa sociedade de tipo bem diferente e que lhe
da Educação, tanto no que se refere à formação inicial como à formação continuada. Dos 2,1 coloca exigências total- mente distintas daquelas, para as quais
milhões de docentes da Educação Básica, quase um quarto não possui curso superior. Entre os a educação - no sentido estrito – o preparou. (LUKÁCS,
formados, apenas 32,8% atuam na área em que têm licenciatura, no Ensino Fundamental, e 2013, p. 176)
apenas 48,3%, no Ensino Médio. Priscila Cruz-Todos Pela Educação, Luciano Monteiro-
Editora Moderna, (Orgs). Anuário da Educação Brasileira 2015. Disponível em:
A formação docente constitui um dos desafios para a categoria de
www.todospelaeducacao.org.br, acessado em 10/01/2016.
pro- fessores na atualidade, pois a partir dos fundamentos da educação e da
1 1
práxis

1 1
educacional vinculada às questões do campo traz reflexões acerca das tendên- Assim, sem a teoria, a prática resulta
cias dominantes na educação nacional e as diversas dificuldades para
consolidar uma proposta de formação crítica e dialética.

[...] entre educação no sentido mais estrito e o sentido mais am-


plo não pode haver uma fronteira que possa ser claramente
tra- çada em termos ideais, não poder haver uma fronteira
metafísica. Entretanto, em termos imediatamente práticos ela
está traçada, ainda que de maneiras extremamente diferentes,
dependendo das sociedades de classes. (LUKÁCS, 2013, p.
177)

Não se trata de esgotar a educação na esfera da sala de aula e nem na


relação individual, mas sobre como investigar as contradições na práxis educa-
tiva como categoria real, composta de inúmeras determinações, a fim de que se
compreenda a educação em totalidade concreta. Assim, para Tonet, na funda-
mentação de qualquer ação educativa trata-se:

[...] explícita ou implicitamente [...] uma concepção de mun-


do, de homem e de história; uma concepção acerca da proble-
mática, da relação teoria e prática, etc. E toda fundamentação
filosófica, por mais que procure estar articulada com a realida-
de concreta, sempre terá, por sua própria natureza, um caráter
abstrato e sua relação com a realidade será sempre indireta.
(TONET, 2005, p. 200).

A formação docente ocupa um lugar central nas teorias pedagógicas.


Em seus pressupostos estão postas questões fundamentais vivenciadas no chão
da es- cola, que são inerentes ao complexo educacional e transcendem o
cotidiano ime- diato. Exemplo disso são num primeiro momento, os conteúdos,
as metodologias e a esfera didática, noutro momento, estão: o papel do
professor, a qualificação para obter uma profissionalização e o fortalecimento
de sua categoria.

A teoria depende, pois, radicalmente da prática. Os


problemas de que ela trata são postos pela prática e ela só faz
sentido en- quanto é acionada pelo homem como tentativa de
resolver os problemas postos pela prática. Cabe a ela
esclarecer a prática, tornando-a coerente, consistente,
consequente e eficaz. Portanto, a prática igualmente depende
da teoria, já que sua consistência é determinada pela teoria.
1 1
cega, tateante, perdendo sua característica específica de pelas correntes
atividade humana (SAVIANI, 2008, p. 261-262).

Na obra a Pedagogia no Brasil: historia e teoria (2012a) as


contribuições de Saviani versam sobre os modelos dos conteúdos impressos
na formação do- cente no Brasil, nos quais um deles mais voltado para o
conhecimento geral e, ao mesmo tempo, o domínio específico dos
conteúdos da área concernentes à disciplina a ser ministrada. Outro
modelo pedagógico didático está voltado para o preparo metodológico de
práticas e técnicas de atuação em sala de aula, compondo uma dualidade
histórica entre teoria e prática na formação docente.

Na raiz do dilema, está um entendimento da relação entre


teoria e prática em termos da lógica formal, para a qual os
opostos se excluem. [...] o professor é revestido do papel de
defensor da teo- ria enquanto o aluno assume a defesa da
prática, a oposição entre teoria e prática se traduz, na relação
pedagógica, como oposição entre professor e aluno.
(SAVIANI, 2012a, p. 106)

Esta contradição permeou toda a nossa experiência de trabalho na


Escola da Terra, pois, sobre a relação entre teoria e prática é um aspecto
fundamental na formação docente. De fato tal relação encontra-se subjacente
aos desafios e possibilidades que podem ser levantadas como objetivo de se
desenvolver uma formação profissional com vistas à formação humana.

O professor-educador possui atribuições de natureza técnica,


so- ciopolítica e humana e almeja acentuar a qualidade
humana de sua práxis educativa à medida que objetiva alcançar
a sociedade educadora em nome de um horizonte emancipador.
Em sua lida cotidiana, o professor-educador encontra limites
institucionais, a exemplo do currículo e das normas
escolares, mas reage, in- tentando quebrar a rigidez curricular
e normativa, transgredindo as relações socioeducativas
desviando-as para uma perspectiva transformadora.
(SOARES, 2012, p. 1).

O papel do conhecimento, segundo Saviani (2012a), é compreender as


relações entre os fenômenos, como a realidade se processa, como a sociedade
se organiza e como a humanidade se relaciona entre si. Nesse debate a
discussão sobre a verdade e a realidade tem sido uma das questões negadas
1 1
teóricas contemporâneas. Conforme Saviani (2012a) ocorre hoje uma distorção durante o Renascimento pros-
desses dois conceitos como uma forma de mistificar a base social atual, bem
como ofuscando as suas contradições inerentes, qual seja? A contradição entre
capital-trabalho, entre ser e dever-ser, entre essência e aparência.

Sob a crise estrutural, o capital articula a educação ao trabalho


alienado para a produção destrutiva de homens e de recursos na-
turais. Para esse fim, nega escancaradamente o conhecimento
cien- tífico, filosófico e cultural à classe trabalhadora e busca
cooptar as subjetividades dessa classe produtora da riqueza para
que ela não compreenda a real, e principal, contradição
existente na so- ciedade do capital, que é a contradição capital x
trabalho, contri- buindo, prioritariamente, para o controle do
trabalho explorado (FRERES; HOLANDA apud JIMENEZ;
GOMES, 2011, p. 33).

O educador brasileiro aborda duas grandes linhas da teoria pedagógica,


a tendência tradicional e a renovadora. Para ele, ambas, possuem limitações a
se- rem superadas para uma formação docente com vistas à emancipação
humana. Na esteira de Marx uma investigação do complexo educacional deve
com- preender a realidade em si a partir de uma visão de mundo que supere a
concep-
ção metafísica de ser transcendente e parta dos indivíduos reais e históricos.

Os pressupostos de que partimos não são pressupostos


arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode
abstrair na ima- ginação. São os indivíduos reais, sua ação e
suas condições mate- riais de vida, tanto aquelas por eles já
encontradas como as produ- zidas por sua própria ação. Esses
pressupostos são, portanto, cons- tatáveis por via empírica.
(MARX e ENGELS, 2007, p. 86-87)

Nesse sentido, o marxismo supera a filosofia moderna ao suplantar as


unilateralidades tanto do idealismo e como do materialismo vulgar, por
isso, pode investigar a educação, levando em consideração elementos da
divisão so- cial e técnica do trabalho e seus efeitos na formação humana,
(MARX; EN- GELS, 2011). A formação docente permeada por esse conflito
envolve as ciên- cias ideais e as ciências reais, a primeira refere-se às ciências
naturais e a segunda refere-se às ciências humanas e sociais. Contudo, “A
querela entre a pedagogia da essência e a pedagogia da existência iniciada

2 2
seguiu no decurso do século XVII.” (SUCHODOLSKI, 2002, p. 24) para constituiu e se desenvolveu em função da prática
Sa- viani continua até a atualidade.

[...] situando-me para além das pedagogias da essência e da


existência. [...] essas pedagogias está ausente a perspectiva his-
toricizadora. Falta-lhes a consciência dos condicionamentos
históricos-sociais da educação. São, pois, ingênuas e não
crí- ticas, já que é próprio da consciência crítica saber-se
condicio- nada, determinada objetivamente, materialmente ao
passo que a consciência ingênua é aquela que não se sabe
condicionada, mas ao contrário, acredita-se superior aos fatos,
imaginando-se mesmo capaz de determiná-los e alterá-los
por si mesma. Eis porque tanto a pedagogia tradicional
como a pedagogia nova entendiam a escola como “redentora
da humanidade”. Acredi- tavam que era possível modificar a
sociedade por meio da edu- cação. Nesse sentido, podemos
afirmar que ambas são ingênuas e idealistas (SAVIANI,
2012b, p 63).

Segundo o autor polonês citado acima, o desenvolvimento da


pedagogia da essência estava ligado às tradições racionalistas da antiguidade
– o homem como ser pensante. E a razão era a orientação da vida humana,
nesse senti- do a educação devia desenvolver tal faculdade. Por outro lado a
pedagogia da existência tratava de uma concepção laica e científica das leis da
natureza – o homem com um sistema natural de cultura.
A história da educação evidencia a distinção entre as correntes raciona-
lista - tradicional e empirista - Escola Nova, ao passo que estas teorias tratam
da diferença entre o pensamento e a experiência. Na história da filosofia
da pedagogia estes aspectos se refletem nos fundamentos da política de
formação docente caracterizando-se principalmente na questão da
indissociabilidade en- tre conteúdo e forma como um dos desafios a serem
suplantados.

Consideraremos o problema da relação entre teoria e prática


tendo presente esse entendimento dialético. Teoria e prática são
aspectos distintos e fundamentais da experiência humana.
Nessa condição podem, e devem, ser consideradas na
especificidade que as dife- rencia uma da outra. Mas, ainda que
distintos, esses aspectos são inseparáveis, definindo-se e
caracterizando-se sempre um em rela- ção ao outro. Assim, a
prática é a razão de ser da teoria, o significa que a teoria só se
2 2
que opera, ao mesmo tempo, como seu fundamento, finalidade e A ação Escola da Terra Ceará é um curso de aperfeiçoamento destinado
critério de verdade. (SAVIANI, 2012a, p. 108)
aos professores da educação básica de escolas do campo, nesse sentido nem to-
das as escolas possuem uma compreensão do que seja uma educação do campo
No idealismo kantiano ao desenvolver que uma definição da verdade
com premissas e diretrizes específicas. O Artigo 2º da Resolução CNE/CEB nº
como conhecimento a partir das ideias inatas, iniciadas a partir do realismo
01/ 2002 define a identidade da Escola do Campo:
ingênuo de Santo Agostinho será retomada na concepção renovadora da
edu- cação que engloba Dewey e Piaget reportando-se a Hegel e, com base em Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida
Kant, assenta-se a “ênfase na prática, reforça o papel do aluno. Este é pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, an-
entendido como aquele que só pode aprender na atividade prática. Tendo a corando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes,
iniciativa da ação, ele expressa seu interesse quanto àquilo que é válido na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e
aprender; e, assim proceden- do, realiza, com o auxílio do professor, os passos tec- nologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais
em de- fesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas
de sua própria educação, [...]” (SAVIANI, 2012a, p. 105).
ques- tões à qualidade social da vida coletiva no país. (grifos
nossos)
Dir-se-ia, pois, que teoria e prática, assim como professor e alu-
no, são elementos indissociáveis do processo pedagógico.
Nesses termos, a saída do dilema por um ou por outro de seus A definição de escola constituiu uma das questões no processo do
pólos constitutivos revela-se igualmente difícil e, no limite, tra- balho e na defesa de uma perspectiva ontológica e histórica fundamentada
impossível. Eis por que as duas tendências pedagógicas vigentes em uma indagação essencial que contribui na concepção crítica de
na atualida- de resultam igualmente incapazes de resolver o educação do campo.
dilema pedagógi- co. (SAVIANI, 2012a, p. 106)
O conhecimento da realidade, o modo a possibilidade de conhe-
A partir dessas premissas levantadas sobre a cisão entre teoria-prática, cer a realidade dependem, afinal, uma concepção da realidade,
professor-aluno e conteúdo-forma, segue-se agora para uma apresentação da explicita ou implícita. A questão: como se pode conhecer a rea-
ação Escola da Terra, cuja ação se fundamentou na perspectiva de lidade? É sempre precedida por uma questão mais fundamental:
que é a realidade. (KOSIK, 1976, p. 35)
formação humana, a partir dos pressupostos do materialismo histórico-
dialético desen- volvidos pela Pedagogia histórico-crítica.
Atualmente predominam nas teorias da educação e nas diretrizes das po-
Pressupostos da educação para o campo: líticas de formação docente para o campo pressupostos históricos e sociais que
elementos oficiais e da crítica configuram uma conceituação unilateral, seja ‘‘idealista ou materialista’’.
Nessa proposta de curso realiza-se uma crítica a essas concepções de
compreensão do real como síntese de múltiplas determinações e não
[...] só é possível conquistar a libertação real caracterizadas por verdades parciais, portanto, a
[wirbklicheBefreiung] no mundo real e pelo emprego de meios
reais [...] não é possível libertar os homens enquanto estes forem Educação do Campo está sendo entendida [...] como um
incapazes de obter alimen- tação, bebida, habitação e vestimenta, fenô- meno da realidade brasileira atual que somente pode
em qualidade e quantidade adequadas. A ‘‘libertação’’ é um ato ser com- preendido no âmbito contraditório da práxis e
histórico e não um ato de pen- samento, e é ocasionada por condições considerando seu tempo e contexto histórico de origem. A
históricas, pelas condições da indústria, do comércio, da agricultura, essência da Educação do Campo não pode ser apreendida
do intercâmbio [...] (MARX, ENGELS, 2007, p. 29) senão no seu movimento real, que implica um conjunto
articulado de relações (fundamental- mente contradições) que

2 2
a constituem como prática/projeto/po-

2 2
lítica de educação e cujo sujeito é a classe trabalhadora do de afirmação de um projeto de agricultura da classe trabalhadora
campo. (grifos dos autores) (CALDART et al, 2012, p. 3) camponesa. (SILVA, 2015, p. 23).

Na esteira desta concepção a formação dos professores se materializou A educação do campo caracteriza-se pela defesa de uma escola pública,
em seis momentos, cujos módulos foram: I - Trabalho, educação e gratuita e de qualidade na disputa da hegemonia no campo contexto do capital
emancipação humana: bases onto-históricas; II - Política educacional no em crise estrutural, em que se encontram cristalizadas as relações de
Brasil em tempos de crise estrutural do capital47: propostas globais para dominação entre latifundiários e sem-terra, agronegócio e agricultura familiar,
ações locais; III - Fun- damentos e princípios da educação do campo e em a monocul- tura e a policultura. Desse modo, para superar as disparidades
comunidades quilombolas; IV - Fundamentos político-pedagógicos para a regionais como expressão da luta de classes não basta somente um discurso
educação do campo I - a escola do campo; V - A organização curricular e teórico e sim uma atividade organicamente ligada à realidade.
pedagógica das escolas multisseriadas do campo e VI - I Seminário Escola da
Terra do Ceará com apresentação de tra- balhos de conclusão de curso, troca Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao de-
de experiências, palestras e mesas redondas referentes à educação do campo. senvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transfor-
A proposta de formação da Escola da Terra – Ceará se destaca das demais mam também, com esta sua realidade, seu pensar e os
produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a
formações sobre a educação do campo realizadas no país, pois desenvolveu
vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro
uma atividade articulando o conhecimento sistematizado, a formação prévia e modo de consi- derar as coisas, parte-se da consciência como
apro- fundada dos professores-formadores sobre o método em Marx, a do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real,
ontologia do ser social em Lukács, a filosofia da práxis em Gramsci, os princípios parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a
e legislações sobre a educação do campo, a pedagogia da alternância e a consciência apenas como sua consciência. (MARX, ENGELS,
pedagogia histórico- 2007, p. 94).
-crítica em Saviani, como aspectos gerais e essenciais de uma totalidade.
A educação do campo na perspectiva da Escola da Terra – Ceará A superação dos antagonismos de classe e dos tipos de alienação
vincula- (objeti- va) e estranhamentos48 (subjetivos) se dá na vida cotidiana como uma
-se a um projeto de construção de uma nova realidade, com novos parâmetros constru- ção permanente de uma práxis revolucionária.
de sociabilidade para o desenvolvimento de novas relações sociais. Afirma-se Entre os óbices na práxis docente estiveram carências teóricas advindas
à formação humana omnilateral (MARX, 2010), negando e superando a dos professores, a necessidade de avançar articulando o domínio teórico e a
pers- pectiva unilateral hegemônica na formação de professores em que há prática para superar os limites como professores e contribuir na tomada de
uma se- paração entre campo e cidade, entre teoria e prática entre conteúdos e consciência dos cursistas com a qual não se tem a certeza de sua concreção.
formas. Ao tratar da mais-valia em uma exposição emergiram em alguns profes-
sores a indignação ao compreender tal realidade. Nesse momento, identifica-se
O antagonismo da educação do campo não é com a educação da um salto da passagem de uma visão crítica-mecanista para uma perspectiva
cidade, mas, com o projeto de educação burguesa para a crítica-dialética. Com essa apropriação dos fundamentos onto-históricos da
classe trabalhadora. Essa elaboração vem sendo concretizada no
educação e do modo de produção histórico-concreto desta sociedade, é possí-
acir- ramento da luta de classes no campo, na atual
conjuntura, que
confronta o projeto de agricultura capitalista com a necessidade
47 [...] uma crise histórica sem precedentes. Sua severidade pode ser medida pelo fato de afeta — pela primeira vez em toda a história — o conjunto da humanidade, exigindo, para
que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as esta sobreviver, algumas mudanças fundamentais na maneira pela qual o metabolismo social
vividas no passado, mas a uma crise estrutural, profunda, do próprio sistema do capital. [...] é controlado, conforme MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. In: Revista

2 2
Outubro. Nº 4, 2000.

48 Estranhamento para Marx (2010) possui quatro dimensões: (1) produto do trabalho –
estranho e poderoso sobre ele se materializa num mundo alheio e hostil. (2) ato da produção, ou
seja, no processo, no interior do trabalho – atividade é estranha, não pertencente ao trabalhador,
natureza – de sua função ativa (3) do gênero – essência humana (4) o homem de si mesmo.

2 2
vel, ao mesmo tempo, a assimilação de seus condicionamentos históricos e as [...] a Lei nº 12.695 de 2012 (PRONACAMPO), afirma que
possibilidades de negação destas formas de educação e sociabilidade. dentre os objetivos da Escola da Terra, no Art. 2º encontra-se
no I- a seguinte proposição: ‘‘promover a formação continuada
Escola da Terra - Ceará como mediação de uma práxis social de professores para que atendam às necessidades específicas de
funcionamento das escolas do campo e daquelas localizadas em
comunidades quilombolas’’ (ZIENTARSKI, 2014, p. 3)
[...] a filosofia da práxis, tal como Gramsci chamava o
marxismo, é justamente a teoria que está empenhada em Elucidam-se as questões relacionadas ao tempo do curso e dos professo-
articular a teoria e a prática, unificando-as na práxis. É um res, as concepções de educação e de formação advindas destes e, sobretudo os
movimento prioritaria- mente prático, mas que se fundamenta
desafios da prática em si a partir de uma teoria crítica da educação.
teoricamente, alimenta-se da teoria para esclarecer o sentido,
para dar a direção à prática. Então, a prática tem primado
sobre a teoria, na medida em que é originante. A teoria é [...] teorias críticas em educação aquelas que, partindo da visão
derivada. Isso significa que a prática é, ao mesmo tempo, de que a sociedade atual se estrutura sobre relações de
fundamento, critério de verdade e finalidade da teoria. dominação de uma classe social sobre a outra e de determinados
grupos so- ciais sobre outros, preconizam a necessidade de
À educação, na medida em que é uma mediação no seio da
superação dessa sociedade. Com esse objetivo, essas teorias
prá- tica social global, cabe possibilitar que as novas gerações
procuram entender como e com que intensidade a educação
incor- porem os elementos herdados de modo que se tornem
contribui para a repro- dução dessas relações de dominação.
agentes ativos no processo de desenvolvimento e transformação
(DUARTE, 2010, p. 64).
das re- lações sociais.
(SAVIANI, 2013, p. 120-121)
Dentre as dificuldades houve uma paralisação do projeto nos pólos
Com relação ao contexto de atuação e sujeitos envolvidos no curso no período de julho a novembro de 2015, devido o não repasse das verbas
de aperfeiçoamento, estão: Ministério da Educação e a Universidade Federal em tempo hábil. Ao retornar às atividades, o município sofreu uma
do Ceará como coordenação geral da Escola da Terra, as prefeituras locais inflexão re- duzindo o número de professores de 43 para dezoito (18) no
dos 13 pólos, incluindo capital e interior 49. O contato com as prefeituras segundo módulo e nos últimos contou-se apenas com 13 professores. A
locais se deu através da coordenação estadual via Secretaria de Educação do realidade na qual estes professores estão inseridos, com a instabilidade de
Estado contratos temporários, parte deles findaram seus contratos em novembro, outra
– SEDUC e secretarias municipais de educação. No caso apresentado, o parte em dezembro e os que continuaram estão à espera da conjuntura política
município de Itatira contou com uma professora-pesquisadora, com três eleitoral em 2016. Problemas que aparentemente versam sobre a
(03) tutoras e quarenta e três (43) professores cursistas. particularidade de tal município, mas traduz a universalidade dos problemas da
A investigação do objeto realiza-se com destaque de suas características educação no Brasil em que Saviani (2013) trata muito bem sobre o problema
gerais, dificuldades enfrentadas e possibilidades de atuação numa perspectiva do financiamento e descontinuidade em educação.
crítica, dando ênfase ao ensino considerando que este [...] “é o sistema de or- Outra problemática enfrentada foi o tempo, pois os professores em
ganização dos meios pelos quais se transmite ao indivíduo a experiência elabo- sua maioria graduados, alguns estudavam nos finais de semana cursando pós-
rada pela humanidade, considerado eficiente aquele ensino que se adianta ao gra- duações. O retorno das atividades da Escola da Terra marcado no
desenvolvimento.” de acordo com FACCI (2004, p. 230) e a intencionalidade período de
do professor.
49 Municípios – pólos: Canindé, Cascavel, Caucaia, Crateús, Fortaleza, Itapipoca, Icó,
Independência, Itatira, Quixadá, Parambu, Santa Quitéria e Tamboril.

2 2
avaliações internas do final do bimestre, coincidindo ainda com avaliações ex- A resposta aos obstáculos reais que se impuseram no trabalho referente
ternas da Educação Básica.50 aos componentes teórico-metodológicas aparece como elemento central na pe-
Conciliar tais desafios impostos pela realidade com elementos teórico- dagogia histórico-crítica, o saber objetivo e a afirmação do papel do professor,
-práticos da formação em si é possível? Em outras palavras, o que e como (SAVIANI, 2013). Optou-se por realizar uma aula com poesias e músicas, tex-
serão desenvolvidos os conteúdos de maneira que eles possam compreender as tos, exposições dialogadas sobre os diferentes temas. O curso de
cate- gorias, pois uma proposta de formação docente com caráter de totalidade aperfeiçoamen- to tratou de fundamentos sociais, históricos, políticos e
carre- ga em si elementos contraditórios. Em tempos em que a negação da base culturais que permeiam o complexo do trabalho e incide sobre a educação
social se apresenta como um parâmetro implícito ou explícito nas teorias nega,
educacionais contemporâneas, engendrar uma práxis diferenciada é
imprescindível o vínculo orgânico com o contexto. A perspectiva da construção do conhecimento via experiência
O desenvolvimento dos módulos, cujos temas foram trabalho, educação prático-sensível do sujeito com o meio empírico-cotidiano aca-
e emancipação humana: bases onto-históricos trouxeram dificuldades iniciais ba por fundamentar o conjunto das pedagogias do ‘‘aprender
a aprender’’, notadamente a pedagogia construtivista, a
com vistas à elaboração do planejamento da aula, dentre as questões estavam
pedagogia de projetos, a pedagogia das competências, a
às seguintes perguntas: Qual o ponto de partida e de chegada dos módulos pedagogia da for- mação do professor reflexivo e a pedagogia
a se- rem desenvolvidos? Como elucidar o complexo do trabalho, da educação multiculturalista. A despeito de possíveis diferenças entre elas,
entre outros em dois (02) dias? Como desenvolver uma proposta de aula a tornam-se bastante evidentes os seguintes elementos presentes
partir de cotidiano e a eleve a um patamar superior? Essas indagações nas propostas teóri- co-metodológicas destas pedagogias: a
tornaram-se um contínuo no processo formativo. defesa da centralidade das interações discursivas; um ceticismo
epistemológico e um relati- vismo cultural; defesa da formação
Esses questionamentos essenciais para se propor uma atividade pedagó-
dos indivíduos centrada no singular, no particular e no
gica que articulasse o conteúdo e forma, resultando em uma aula como unidade cotidiano; aceitação tácita de uma suposta ‘‘crise de paradigmas
na diversidade. Iniciam-se os encontros afirmando o ponto de partida e de clássicos’’ de racionalidade científi- ca, incitando a valorização
chegada à realidade. Faz-se uma ponderação quanto aos conteúdos, estes vistos e/ou recuperação de outras formas de conhecimento; defesa da
nas universidades seja na graduação ou na pós-graduação durante um semestre, interação entre alunos e do resgate do ‘‘lúdico’’ no processo
portanto o desafio foi posto, o quê, como e em tão pouco tempo trabalhar de aprendizagem como suposta superação da relação vertical e
hierarquizada da relação professor e aluno (DUARTE, 2008,
tantas categorias.
2010, 2011).
A cada dia, de cada módulo solicitaram tanto os tutores, como dos pro-
fessores de que os conteúdos fossem trabalhados de forma mais dinâmica, eis o
A concepção de educação e formação advinda dos professores era, em
dilema em que o curso foi desenvolvido e a exigência e autocrítica da docente
termos de Gramsci (2006), uma ideologia compósita em uma mesma visão
crescia.
de mundo convivem dialeticamente elementos de alienação e de superação,
50 O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), conforme estabelece a Portaria n.º 931,
ou seja, de senso comum e de bom senso. Essa concepção contraditória se fez
de 21 de março de 2005, é composto por dois processos: a Avaliação Nacional da Educação presente do início ao fim da formação, à medida que se criticavam o
Básica (Aneb) e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc) A Aneb é realizada por trabalho alienado, a função reprodutora da educação e era posto a
amostragem das Redes de Ensino, em cada unidade da Federação e tem foco nas gestões
possibilidade de mu- dança frente à reprodução do sistema capitalista, o curso
dos sistemas educacionais. Por manter as mesmas características, a Aneb recebe o nome do SAEB
suas divulgações; A Anresc é mais extensa e detalhada que a Aneb e tem foco em cada unidade seguia numa dialética de afirmação, negação e negação da negação.
escolar. Por seu caráter universal, recebe o nome de Prova Brasil em suas divulgações. Retirado Saviani assegura que para realizar uma práxis educativa sólida e cons-
do site: http://portal.inep.gov.br/saeb, acessado em 15/01/2016. ciente é fundamental partir do cotidiano para [...] ‘‘analisar a prática educativa
guiados pela teoria pedagógica, ultrapassando o saber doxa (o saber opinativo)
2 2
e atingindo o nível da episteme (o saber metodologicamente organizado e teo- do campo, como aspectos inerentes a esta sociabilidade marcada pela luta
ricamente fundamentado)’’ (SAVIANI, 2012a, p. 131). de classes.
Nesse sentido, se eleva o ponto de vista do cotidiano em que a Para COSTA (2001) a concepção do marxismo enquanto referencial te-
maioria dos professores em suas opiniões e visão de traziam a necessidade de órico traduz-se em três elementos: a visão humanista, de homem como produto
respostas imediatas aos problemas diversos enfrentados no cotidiano da sala de de sua própria atividade que fundamentou este processo de formação, a firma-
aula, com a gestão, com a família, dentre outros e a proposta tratou-se de ção do caráter histórico concreto com a defesa da mudança e como processo de
passar do ime- diato ao mediato, ao elevar a um novo patamar de reflexão e de autocriação humana presente nas análises dos complexos trabalhados no curso
práxis social. e por último a razão dialética se caracteriza pela imbricação contraditória entre
racionalidade objetiva, imanência do real e apreensão subjetiva por meio
Considerações finais da razão dialética, nosso esforço de realizar tal reflexão se deu ao longo do
desen- volvimento desta experiência.
A formação da Escola Terra Ceará articula-se, sobretudo com as
Entende-se que a educação caracteriza-se como uma práxis social e es-
lutas gerais de superação do capital e lutas específicas do direito a uma
pecificidade ímpar ao mesmo tempo em que a práxis educativa é determinada
educação pública, gratuita e de qualidade. Nas palavras de Marx para que o
pela realidade, esta também influencia a esfera de reprodução social, no que se
reino da necessidade sirva de base para o reino da liberdade. Esse debate caro
refere à educação do campo trata-se da defesa de uma educação com vistas
em pleno século XIX, ainda é possível um contexto de desigualdade real no
à emancipação humana, de forma que supere a cisão dual da educação na
mundo dos homens em que a maioria da população do campo não acessa
socie- dade hodierna.
condições de vida básicas para a sobrevivência, quiçá uma vida plena de
A análise da educação numa perspectiva dialética pressupõe uma supe-
sentido.
ração da educação escolarizada da forma que é encontrada hoje, isto é, da for-
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem se-
ma mais desenvolvida de educação, conforme Saviani (2013). Desse modo, ao
gundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles tratar o complexo educacional na especificidade da formação docente deve-se
próprios, e sim nas circunstâncias imediatamente encontradas, considerar a manutenção de uma dependência ontológica ao trabalho como
dadas a transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gera- complexo fundante do ser social, sem negar sua autonomia relativa.
ções mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo. Isso implica a compreensão do processo histórico e suas mediações, que
E mesmo quando estes parecem ocupados a revolucionar-se,
resultam na complexidade do ser social. Compreender o aspecto histórico-so-
a si e às coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é
pre- cisamente nessas épocas de crise revolucionária que
cial da educação e sua relação com trabalho significa, em última instância, de-
esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do fender a possibilidade de uma transformação radical do mundo.
passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras
de ordem de comba- te, a sua roupagem, para, com esse disfarce Referências bibliográficas
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2 2
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2 2
AS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS DE ANTÔNIO
GRAMSCI E DERMEVAL SAVIANI NA CONSTRUÇÃO
DE UMA PROPOSTA REVOLUCIONÁRIA PARA A
ESCOLA DO CAMPO: ELEMENTOS CONCEITUAIS
À LUZ DA ONTOLOGIA MARXIANA
Diana Silva Monteiro
Sávio Abreu de Freitas
Sylvio Barros

Introdução

O presente trabalho é resultado das discussões feitas nos encontros formati-


vos do curso de aperfeiçoamento Escola da Terra no Ceará51·. Trata-se de um
esforço de aproximação inicial e síntese, que busca elencar, de forma
introdutória, alguns elementos conceituais do referencial teórico marxista, cuja
abrangência certamente desconsiderou informações cruciais, não atenuando,
todavia, sua relevância, pes- soal e sócio-educacional. Assume como objetivo
discutir, de forma inicial, à luz da ontologia marxiana, uma proposta
educacional voltada para comunidades do campo e quilombolas, destacando os
pressupostos teóricos de Gramsci, resgatadas por Dermeval Saviani, na defesa
da tese do trabalho como princípio educativo. Cabe aqui, primeiramente,
explicitar que partimos da ontologia marxia-
na para o entendimento dos fatos sociais, porque esta ferramenta teórica
52

possi- bilita investigar se as determinações histórico-sociais e as leis que regem


o movi- mento do real compreendem a essência e a aparência como mutáveis e
processuais

51 O projeto “Escola na Terra” foi instituído pela Portaria Nº 579 de 02 de julho de 2013 como
uma das ações do PRONACAMPO. No Ceará, iniciou-se em 2015 por meio de uma
parceria entre Universidade Federal do Ceará, Ministério de Educação e alguns municípios
do Estado, visando ofertar curso de aperfeiçoamento de 180 horas em regime
presencial/alternância, para 750 cursistas (professores) da rede estadual e municipal de classes
multisseriadas no campo ou quilombolas no Estado do Ceará
52 Uma perspectiva investigativa proposta por Lukacs embasada no método da dialética
marxista que pretende perscrutar a realidade concreta por meio de uma análise abstrata do
complexo do ser social, apropriando-se de suas categorias basilares para enriquecer o desvelamento
da imediaticidade dos fatos, no contínuo processo cognitivo e analítico de idas e vinda, para a
compreensão das mediações e entrelaçamento dos complexos , inseridos numa da totalidade
social.
que se determinam reciprocamente. Nesse sentido, Tonet (2005) elucida que o tuintes no trabalho, pois, nele, estão postos a ontogênese do ser social, os nexos
marxismo se contrapõe à dicotomia entre o pensar e o agir, entre a subjetividade fundamentais que colocam em movimento a totalidade social e, por conseguin-
e objetividade, e pretende não somente interpretar o mundo, mas, também, te, as demais práxis em níveis superiores.
trans- formá-lo. Referindo-se a tal abordagem Tonet (2013, p. 125) esclarece, Como bem elucida Lessa (2007), o trabalho é a protoforma da atividade
humana e, através dessa atividade, o homem pode se tornar o senhor do seu
E contra todo ecletismo e pluralismo metodológico, que predo-
destino e se distanciar das amarras impostas pelas leis naturais. Por meio da
minam, hoje, na Filosofia e nas Ciências Sociais, reafirmamos,
com Gramsci (1978, p. 186-187), que “...a filosofia da práxis ati- vidade produtiva, diante das necessidades postas, o homem buscou seus
‘basta em si mesma’ contendo em si todos os elementos meios de subsistência na natureza e, diferentemente dos outros animais,
funda- mentais para construir uma total e integral concepção acionou os elementos contidos na natureza para cumprir determinados fins.
do mun- do(...)”. Com isto, Gramsci não quer, de modo Transforman- do a natureza, ele transformou a si próprio. Dessa forma,
nenhum, afirmar que os marxistas detêm a verdade e todos os pôde ampliar-se ge- nericamente, estabelecendo novas relações sociais e
outros pensadores só dizem falsidades. Ele quer apenas
históricas e, ainda, criar no- vas habilidades e necessidades, cuja satisfação o
enfatizar que Marx lançou os fundamentos de uma concepção
radicalmente nova de mun- do. Nada do que foi construído a trabalho não poderia cumprir, criando, dessa forma, outras práxis sociais
partir desses fundamentos é verdadeiro simplesmente porque (como a linguagem, a educação, a arte, etc.), que se complexificaram e
tem esses fundamentos como base. Sua verdade dependerá da continuaram mantendo uma interdepen- dência com o trabalho. Por isso, o
correta tradução do processo real, historicamente verificado. trabalho é esta atividade do ser social que primeiro deve ser examinada,
Somente a prova ontoteórica e a prova ontoprática poderão porque toda práxis social, como indica Lukács (1978), tem como base a
demonstrar a verdade ou a falsidade de qualquer
atividade humana do trabalho, ou seja, a relação recí- proca entre teleologia e
conhecimento.
causalidade, ou, subjetividade e objetividade no plano das necessidades postas.
Apenas reiterando, dizer que o trabalho é a forma ori- ginária do agir do
Assim, nos termos do referencial aqui assumido, o método
configura- homem não significa que
-se, de fato, como um onto-método, priorizando o objeto em sua legalidade
[...] todos os atos humanos sejam redutíveis ao trabalho.
onto-histórica, ou seja, em sua gênese, evolução histórica e função social. Ten-
Luká- cs argumentou, em diversas oportunidades, que
tando não perder de vista esse complexo categorial para a realização da investi- inúmeros atos humanos não podem ser reduzidos a atos de
gação, recorremos à pesquisa teórico-bibliográfica, elegendo para exame obras trabalho, em que pesa o fato de o trabalho ser a forma
de Marx(2004), Luckács(1978), Saviani (2003), Lessa(1997) que abordam os originária e o fundamento ontológico das diferentes formas da
conceitos e os fundamentos onto-históricos para o entendimento da categoria práxis social. Para o filoso- fo húngaro, a reprodução social
trabalho como princípio educativo, escola unitária e Pedagogia histórico-críti- comporta e, ao mesmo tempo, requer outros tipos de ação
que não especificamente de traba- lho. Todavia, sem a
ca, destacando as contribuições filosóficas elaboradas por Antonio Gramsci e
categoria do trabalho, as inúmeras e variadas formas de
recuperadas por Dermeval Saviani. atividade humano-social não poderias sequer existir (LESSA,
1997, p. 23-24).
Sumário sobre os nexos onto-históricos entre trabalho e educação
De acordo com a perspectiva lukacsiana, no cosmos existem três esferas
Sob o perscrutar da filosofia marxista, os problemas ontológicos gerais ontológicas distintas e indissoluvelmente dependentes entre si: a inorgânica, a
tornam-se axioma central para o entendimento da realidade. Por isso, tratamos orgânica e a do ser social. Explica-nos Lessa (1997; 2007) que a esfera
aqui, primeiramente, da ontologia do ser social, explicitando o problema fun- inorgâni- ca não possui vida, sua evolução é o permanente movimento de
damental para o entendimento da temática, mostrando os elementos consti- transformação em algo distinto, caracterizando-se pelo tornar-se outro mineral.
2 2
A esfera orgâ-

2 2
nica, ou seja, a esfera do ser biológico tem como essência o repor o mesmo da 2004, p. 97-98).
reprodução da vida. A esfera do ser social, por fim, destaca-se pela incessante
produção do novo, na qual o trabalho atua como salto ontológico que permitiu
ao homem, através de finalidades prefiguradas idealmente, objetivar-se num
processo intenso de transformação da realidade.
Ao contrário dos homens, os outros animais (esfera orgânica) só podem
reproduzir a si mesmo e repor o mesmo. Agem somente para atender à exi-
gência imediata, para se reproduzir enquanto seres biológicos. Sua atividade é
determinada pelo estatuto genético.
Na esfera do ser social, como já apontamos, através da atividade
primária produtiva, o homem pode se desvencilhar das forças naturais e, sob
alguma me- dida, subjugá-las. Isso se tornou possível pela ação da consciência,
visto que o homem é o único ser capaz de antecipar idealmente os resultados e
os caminhos da sua ação, num processo de acumulação peculiar. Mesmo
nos animais su- periores, a consciência atua como mero epifenômeno da
reprodução biológica. Tal constatação se baseia na clássica formulação de
Marx, que, ao tratar sobre o papel determinante da consciência, e,
consequentemente, da atividade produti- va na formação do ser social,
afirma:

Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusiva-


mente ao homem. Uma aranha executa operações
semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um
arquiteto hu- mano com a construção dos favos de suas
colmeias. Mas, o que distingue, de antemão, o pior arquiteto
da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça,
antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho
obtém-se um resultado que já no início deste existiu na
imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não
apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural;
realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que
ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua
atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa
subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos
que trabalham, é exigida à vontade orientada a um fim, que
se manifesta como atenção durante todo o tempo de traba-
lho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo
próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução,
atrai o traba- lhador, portanto, quanto menos ele o aproveita,
como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais (MARX,

2 2
Por isso, a consciência tem o peso ontológico no salto do animal – ser mesmo e sobre os outros, é nas posições secundárias que se enraíza a origem
na- tural – para o ser social. Marx, na passagem supracitada, mostra que o ontológica
trabalho do ser social, diferente do trabalho instintivo, é constituído por
momentos on- tologicamente inextricáveis. São eles: a prévia-ideação e a
objetivação. A prévia-
-ideação é o primeiro momento, é a capacidade de projetar com
antecedência a ação e o seu produto na consciência humana, é o
planejamento que orienta a atividade. Porém, a atividade apenas se efetivará
quando o resultado ou o obje- to de sua ação materializar-se na prática.
Assim, de acordo com Lessa e Tonet (2008), a objetivação é esse momento
de conversão da ideia em objeto com a transformação de um setor da
realidade, produzindo em decorrência uma nova situação, na qual realidade
e indivíduo não são mais os mesmos. Em suma, a cada nova transformação
da realidade, são produzidos e adquiridos novos co- nhecimentos, novas
habilidades, que fazem surgir novas possibilidades e novas necessidades e
que, por sua vez, impulsionam o indivíduo, num continuum dialético, a
novas prévias-ideações e a novas objetivações.
Segundo Lukács (1978), a capacidade humana de aplicar finalidades a
uma ação antes de efetivá-la não se restringe a elaborações de uma fração
da natureza, isto é, a posições teleológicas primárias, pois a partir delas foi
possí- vel criar novas posições teleológicas, denominadas de secundárias,
porque tem como objeto o próprio sujeito, o homem.

Digna de nota, para nós, é aqui a manifestação de uma nova


for- ma de posição teleológica; ou seja, aqui não se trata de
elaborar um fragmento da natureza de acordo com finalidades
humanas, mas ao contrário um homem (ou vários homens) é
induzido a realizar algumas posições teleológicas segundo um
modo prede- terminado. Já que um determinado trabalho (por
mais que possa ser diferenciada a divisão do trabalho que o
caracteriza) pode ter apenas uma única finalidade principal
unitária, torna-se neces- sário encontrar meios que garantam
essa unitariedade finalística na preparação e na execução do
trabalho. Por isso, essas novas posições teleológicas devem
entrar em ação no mesmo momento em que surge a divisão do
trabalho; e continuam a ser, mesmo posteriormente, um meio
indispensável em todo trabalho que se funda sobre a divisão
do trabalho (LUKÁCS, 1978, p. 9).

E é nesse campo aberto ao pôr consciente do homem sobre si


2 2
dos outros complexos sociais, como a ciência, a arte e a educação. Mesmo com executam. O estranhamento torna a atividade vital do homem, seu trabalho,
o desenvolvimento das relações produtivas e sociais, mesmo quando existem
mediações amplas, multiformes e complexas, as práxis sociais continuam man-
tendo com o trabalho uma relação de dependência ontológica e de
autonomia relativa, numa determinação recíproca sob o primado da totalidade
social.

O traço mais marcante destes desdobramentos é que as


catego- rias específicas do novo grau de ser vão assumindo, nos
novos complexos, uma supremacia cada vez mais clara em
relação aos graus inferiores, os quais, no entanto, continuam a
ser o funda- mento material da sua existência. É o que acontece
nas relações entre a natureza orgânica e inorgânica e o que
acontece agora nas relações entre o ser social e os dois graus do
ser natural. Esse desdobramento das categorias próprias de um
grau do ser sempre se dá através de uma crescente
diferenciação, de tal modo que elas se tornam cada vez mais
autônomas – é claro que em sentido relativo – no interior dos
respectivos complexos de um tipo de ser (LUKÁCS, 1976, p.
44).

Tonet (2007) explicita que, em seu sentido largo, a educação é um com-


plexo universal e cumpre uma função essencial na difusão do
conhecimento acumulado e da cultura humanística construído
historicamente pela humani- dade. Assim, como o homem não nasce
homem, mas, produz-se socialmen- te como membro do gênero humano,
em todo tipo de sociedade, de alguma maneira, o homem necessitará
apropriar-se da herança acumulada pelo gênero humano.
Entretanto, devido ás mudanças sócio-históricos, com o surgimento da
propriedade privada, a educação além do sentido lato incorpora o sentido es-
trito adequando-se aos interesses da classe dominante. Por conseguinte, numa
sociedade pautada a exploração do homem pelo homem é negado um processo
educacional que possibilite a elevação cultural daqueles que produzem a
riqueza da humanidade.
Na sociedade atual, que está mergulhado na lógica do capital, é impos-
sível a realização de uma atividade explicitadora das potencialidades humanas,
mas sim um trabalho pautado na exploração do homem pelo homem e na
reprodução alienante (TONET, 2006). No capitalismo, o trabalho assumiu
características desumanas, os trabalhadores não se realizam nas atividades que

2 2
apenas um meio para sua existência, transformando a sua vantagem com rela-
ção ao animal na desvantagem de lhe ser tirada a natureza, o objeto da sua
pro- dução e, por conseguinte, também a sua vida genérica. No trabalho
estranhado, quanto mais o homem produz, menos tem para consumir, menos
pode possuir e mais fica sob o domínio do seu produto, ou seja, a vida que
concede ao objeto se torna hostil e estranha, então

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza


produz, quanto mais sua produção aumenta em poder e
exten- são. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais
barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do
mundo das coisas aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz
somente mercadorias, ele produz a si mesmo e ao
trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral. (MARX, 2004, p. 80)

Em suma, com a propriedade privada, o trabalhador torna-se


ontologi- camente estranhado em relação ao produto do trabalho, a atividade
produtiva, a vida genérica e aos outros homens. Esse estranhamento inicia-
se no mundo do trabalho e ecoa em todos os complexos sociais, dentre eles, o
complexo edu- cacional. Devido ao desenvolvimento das forças produtivas,
que converteram a ciência em potência material, os capitalistas resolveram
estender a escola básica para todos, pois quanto mais avança o processo
urbano industrial, mais se tem a necessidade de expansão escolar. A partir daí
a educação escolar passou a ser a forma dominante de educar nessa
sociedade. Esta forma se confunde com a própria educação e as outras
expressões da educação são secundarizadas.
Segundo Tonet (2007), a educação na sociedade burguesa surgiu
para reproduzir os interesses da classe dominante, sendo encarada como um
instru- mento ideológico poderoso para reprodução do capital, já que nela se
concen- tra a “consciência do povo”. Além disso, baseado no postulado
burguês, que advoga a igualdade (formal e não real) entre todos os homens
como fenômeno natural, proclama-se o direito de todos a uma formação
integral. Porém, o que se percebe é um discurso não condizente com a
realidade existente, em que, com a acentuação da exploração do homem pelo
homem, calcada na liberdade formal do processo de compra e venda da
força de trabalho, a formação om- nilateral vem sendo negada ao
proletariado, que está inserido num processo
2 2
produtivo de distanciamento entre o produzir e o pensar. Ademais, é enaltecida do toda uma tradição burguesa, interpondo um sistema de governo com
uma formação unilateral que privilegia os aspectos espirituais (formação base no poder coercitivo de um lado, com o atributo da força e da
moral, intelectual, cultural). repressão, e de outro, de maneira a estabelecer o consenso das massas
Para Saviani (1994), a generalização da escola proclamada pela socie- utilizando-se de diversas táticas55, entre as quais, a educação, por meio da
dade moderna tem caráter contraditório. A generalização que se defendeu foi escola organizada naquele contexto histórico.
a da educação escolar básica, a educação das massas limita-se à escola básica O sistema educacional italiano do século XX, tinha, à frente, o
e quando tem prosseguimento, restringe-se a habilidades profissionais. Nou- ministro da educação, Giovanni Gentile, que se encarregou de ajustar as classes
tras palavras, limita-se à formação de mão-de-obra para capital. Na verdade, a subalternas por meio de uma educação em atendimento às exigências da
formação desejável para o trabalhador é aquela educação minimalista, apon- ditadura fascista, tornando-a mola propulsora na (de)formação das classes
tada por Adam Smith (1983), uma educação mínima necessária para inserir o subalternas, colocando o homem do campo e da cidade sob o jugo da
homem no processo produtivo, mas tendo precaução de não ultrapassar ditadura, garantindo a chamada governabilidade, que tinha a sua frente o
esse mínimo. Ultrapassar esse mínimo era perigoso para a burguesia, governo de Benito Mussolini.
porque, na sociabilidade do capital, o saber é força produtiva e a ciência é Gramsci, sendo, notadamente, um intelectual orgânico 56, envolvido com
transformada em potência material. O saber como força produtiva deve ser as massas, trouxe a defesa de um horizonte revolucionário às classes subalternas,
propriedade privada da burguesia. A contradição da sociedade capitalista com vistas à superação do modelo de sociedade vigente e, com isso, a defesa
reside no fato de que os burgueses querem que o trabalhador detenha apenas de implantação de um governo gerido pelos próprios trabalhadores,
a força de trabalho, mas, em contrapartida, para ele produzir, precisa propondo, inclusive, a superação do antagonismo de classes, em face da
dominar algum tipo de saber: o mais imediato, utilitário e mínimo questão meridio- nal, que colocara, aos camponeses da Região Sul, uma visão
possível! estereotipada de retrocesso, de região atrasada, povoada de indivíduos
inferiores e incapazes, pelo simples fato de serem camponeses 57 e não serem
A escola do campo a luz do construto teórico gramsciano dos centros urbanos (SCHLESENER, 2002). Desta feita, Gramsci, com o fito
de superar a “questão meridional” para além da divisão social que se colocara
O teórico sardo italiano, Antonio Gramsci 53, mesmo não sendo um edu-
entre as regiões Norte e Sul, que impactavam as relações humano-genéricas,
cador nos ditames da escola proposta pelo capital, em seus escritos produzidos
coloca a figura do Partido como cerne do processo revolucionário, cujo o
no cárcere, deixou-nos um legado, apresentando-nos uma literatura acerca de
atributo é aglutinar e organizar organicamente trabalhadores, operários e
uma educação voltada para a classe trabalhadora, colocando a escola a serviço
camponeses, sem esquecer de que a escola, a posteriori, seria como espaço
da formação de homem completo, homem omnilateral, ou seja, uma escola que
para consolidação do almejado “patamar superior”58, exercendo a função
prime pelo desenvolvimento e a elevação do conhecimento da classe trabalha-
precípua de consolidar e estabelecer o consenso hegemônico das classes
dora ou classes subalternas54.
subalternas (SOUSA, 2014).
Gramsci traz a defesa de uma escola distinta da que existira na Itália
à época do fascismo, pois esta tinha como projeto o estabelecimento de um
consenso hegemônico em face aos interesses da classe dominante, conservan-
55 O governo fascista utilizava-se da escola, de jornais, de propagandas de governo, de
intelectuais tradicionais para manutenção do status quo.
53 Considerado um dos maiores revolucionários do século XX, foi um dos fundadores do
56 De acordo com Semeraro (2006), Gramsci afirma que o intelectual orgânico “deve ser um
Partido Comunista Italiano – PCI, que combateu a ditadura fascista na Itália, no governo de
‘construtor, organizador, educador permanente’ [...]” (p.135)
Benito Mussolini.
57 Não possuidores de terra, ou seja, viviam do construto de seu trabalho, da força de trabalho
54 Nas classes subalternas estavam todos aqueles que se encontravam sob o julgo da classe
que era ofertada aos grandes proprietários de terra.
dominante: camponeses, trabalhadores assalariados e tantos outros que eram colocados à
58 Este patamar superior seria o que Gramsci chamaria de sociedade emancipada sendo esta,
condição de dominados.
consolidada a posteriori da sociedade regulada, sociedade em os próprios trabalhadores
2 2
exercerão a condição de “dirigentes e dirigidos”.

2 2
Neste viés, a perspectiva gramsciana pauta-se na constituição de uma Assim, a escola unitária deve ser uma escola desinteressada, com fun-
escola que supere a que fora proposto pela Reforma Gentílica (1923), uma damentos para a perspectiva “formativo-humanista” e uma “dimensão práti-
reforma que trazia em seu bojo um modelo educacional deficitário, um modelo ca-produtiva”, devendo estender-se a todo o âmbito escolar, colocando, como
que desprezava a elevação do conhecimento das grandes massas, que, no con- atributo dos docentes, a função laboriosa de ater-se a um ensino pautado na
texto do pós-guerra, condicionava a escola aos interesses imediatos do capital preservação dos conteúdos historicamente produzidos, como exemplifica o te-
e, com isso, rebaixava as possibilidades de apreensão do real por meio de um órico sardo quando cita os estudos de gramática, latim, grego e italiano, pois os
conhecimento aquém das dimensões políticas e culturais mais amplas, considera essenciais para a análise dos aspectos sócio-históricos de cada época.
tanto para as massas campesinas como para o operariado. Isto posto, a escola que temos, seja ela urbana ou do campo, de
Nessa lógica, Gramsci defende um ensino de qualidade que venha a modo geral caminha na contramão do que se espera quando se alinha aos
atender os aspectos humanísticos, científicos e tecnológicos, de modo a suble- interesses do capital, ou seja, condiciona as classes subalternas a um
var o nível de conhecimento das classes subalternas, por meio de uma pretensa engessamento in- telectual, dada a limitação e a inconsistência teórica em que
e possível escola, chamada: escola unitária. Traz consigo a defesa de uma escola são abordadas as concepções teórico-metodológicas das instituições de ensino,
que tenha como ponto de partida a preocupação com os primórdios da vida necessitando sim, de uma escola em que pese o contínuo trabalho em favor da
de qualquer ser, pois se os estudos forem alavancados desde a infância até aos própria existência do homem, do operário-camponês e de todo e qualquer
“umbrais da escolha profissional”, de fato teríamos um ensino “rico de noções sujeito histórico no pleno desenvolvimento de suas capacidades cognitivas e
concretas”. técnicas do indivíduo, afim de torná-los governantes e governados59 .
Portanto, Nesse sentido, Gramsci coloca sua visão acerca do modo de ser do novo
tipo de intelectual, visão esta que poderá consubstanciar a defesa da escola uni-
[...] nesse período, o estudo ou a maior parte dele deve ser
tária, uma escola com ênfase na práxis, uma relação entre teoria e prática, e
(ou aparecer como sendo aos discentes) desinteressado, isto é,
não deve ter finalidades práticas imediatas ou muito imediatas, não mais, ou meramente, na eloquência de oradores, como se colocara nas
deve ser formativo, ainda que “instrutivo”, isto é, rico de noções escolas elitizadas. Assim, o modo de ser do intelectual deve pautar-se
con- cretas. (GRAMSCI, 1982, p.136)
[...] num imiscuir-se ativamente na vida prática, como
Nosella (2010), ao esboçar acerca da escola unitária, esclarece e exem- constru- tor, organizador, “persuasor permanente”, já que não
apenas ora- dor puro— e superior, todavia, ao espírito
plifica a preocupação de Gramsci com o rigor do ensino formativo às massas,
matemático abstrato; da técnica-trabalho, eleva-se à técnica-
expondo, didaticamente, a estrutura que se pretende alcançar, a saber: o ensino ciência e à concepção hu- manista histórica, sem a qual se
deve atender desde os 6 anos de idade até os 16 e 18 anos, do ensino permanece “especialista” e não se chega a “dirigente”
primário à academia; sendo o ensino primário e médio (1º grau) a preparação (especialista mais político) (GRAMSCI, 1982, p.8).
do jovem para o mundo do trabalho, um ensino preocupado com o
desenvolvimento de leis objetivas que governam a natureza (societas rerum) Percebemos que a proposta educacional gramsciana tem como assento
e a sociedade (societas hominum), superando o “mundo mítico” da fantasia, do fundamental o trabalho na sociedade moderna. Defende o aprendizado para o
folclore e das relações subjetivo-familiares. Já o Liceu (2º grau), o que seria trabalho, isto é, o ensino profissional, no final da educação escolar, mas sem se
fase final da escola unitá- ria, desenvolveria o caráter metodológico-didático, restringir à dimensão formativa prático-utilitária imposta pelo mercado capita-
[...] “não apenas de forma ativa e participativa e sim também de maneira 59 Gramsci coloca que [...] a democracia política tende a fazer coincidir governantes e
criativa [...]” (p.169) passando, posteriormente, à escola profissionalizante governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada
governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação técnica geral necessárias ao
(universidade-academia) podendo e devendo possuir também a dimensão
fim de governar. (GRAMSCI, 1982, pág. 137).
prático-interessada.

2 2
lista. Ao contrário, seu projeto pedagógico defendia que a educação deveria ser Desta forma, destacamos que as elaborações feitas pelo fundador do PCI
ao mesmo tempo intelectual, física e técnica, ou seja, uma educação “desinte- têm como panorama histórico a crença na possibilidade real de transição socia-
ressada”, em substituição àquela que Gramsci considera “interessada”, imposta lista, a partir da experiência soviética. Portanto, a luta de Gramsci pela escola
pela industrialização, “que é profissionalizante, técnica e ideologicamente ime- pública coincide com a luta pelo socialismo, por este ser uma forma de produ-
diatista” (GRAMSCI citado por NOSELLA, 2010, p.76). ção que socializa os meios de produção, superando sua apropriação privada.
De acordo com Jimenez (2001, p.73): Para Gramsci a reflexão sobre a função da escola, de modo mais amplo,
trata também do abismo entre o que se aprende apenas para cumprir uma fun-
Gramsci, por seu turno, vislumbrava um cenário sócio-educati-
ção do sistema capitalista e uma formação que realmente ajude o ser
vo, que, plantando-se no solo do trabalho industrial moderno,
apontasse, como horizonte educativo, capacitar o trabalhador humano a exercer suas potencialidades. Assim, do mesmo modo, refletir sobre
para assumir a função de dirigente do processo de produção e o princí- pio educativo do trabalho significa valorizá-lo como atividade
da vida social. teórico-prática. Como assinala Gramsci na seguinte passagem:

A tese defendida por Gramsci, de assumir o trabalho como princípio O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o
educativo, demarca uma clara contraposição a uma formação dentro dos princípio educativo imanente à escola elementar, já que a ordem
sócia e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na
in- teresses do Capital, que define o mercado como regulador da concepção e
ordem natural pelo trabalho. O conceito do equilíbrio entre
or- ganização do trabalho e da educação, ou seja, é uma proposta contra a or- dem social e ordem natural sobre o fundamento do
ordem, contra o capital. trabalho, da atividade teórico-prática do homem, cria os
Em consequência, sua busca pela compreensão da relação entre trabalho primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda
e formação humana está em consonância com o pressuposto marxista, o magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o
qual reconhece a intervenção do homem sobre a natureza e os mecanismos posterior desenvolvimento de uma concepção histórico-
dialética do mundo (GRAMSCI, 1982, p. 130).
cada vez mais aperfeiçoados, ou seja, assume o “trabalho industrial como
princípio e fato pedagógico da escola” (NOSELLA, 2010, p. 35).
A proposta de Gramsci, que aponta para a escola única, traz
Do mesmo modo como Marx assentou no “Manifesto Comunista”,
implícita uma outra propositura, que é a construção de sociedade única,
de 1848, a unidade indissolúvel entre teoria e prática na práxis revolucionária
isto é, está em estreito laço com a construção de uma nova sociabilidade e
e de “elevar a classe operária acima das classes superiores e médias”, também
rumo à superação das contradições e dicotomias presentes no tipo de
Gramsci defendeu, em sua trajetória intelectual e política, a necessária união
organização social que co- nhecemos. Pelas palavras do próprio Gramsci:
entre formação manual e intelectual. Como explicita Jimenez,
O advento da escola unitária significa o início de novas relações
Mais de meio século após os Manuscritos, Gramsci, por sua vez,
entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na
vai ampliar os termos das formulações oferecidas por Marx
es- cola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por
sobre as relações entre o trabalho e o processo de formação
isso, re- fletir-se-á em todos os organismos de cultura,
humana. E ainda que tenha possibilitado um maior
transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo.
aprofundamento e uma melhor sistematização em torno de uma
(GRAMSCI, 1982, p.125)
concepção educativa de base marxista, incide Gramsci,
basicamente, na mesma tônica: a defesa de uma educação –
que se denominou, escola única, ou unitária - que se realizasse Tal prerrogativa traz à tona a impossibilidade de se concretizar a escola
como síntese da prática produtiva e do trabalho intelectual, a unitária ou o princípio educativo do trabalho na sociedade atual, uma vez que,
teoria e a prática (JIMENEZ, 2001, p.72). no contexto hodierno, impera o capital, não o trabalho, não a busca de realiza-

2 2
ções plenas para toda a sociedade, mas o que se tem é uma base reguladora da relações sociais existentes no passado e no presente, é preciso estudar as diversas
vida social, e com isso, a escola tende ou não a se colocar em um processo áreas do saber e estudar com profundidade os conhecimentos que nos sãos ne-
de luta contra a hegemonia capitalista. Ademais, é muito comum gados, para que possamos traçar o futuro de nossas existências. Desta feita, não
presenciarmos discursos60 de natureza aleatória, despolitizados e fragmentado podemos admitir que tenhamos conteúdos “rebaixados”, pelo simples fato de
das obras grams- cianas, bastante recorrente, principalmente, nos estudos ser uma educação do campo.
educacionais atuais, configurando um enxerto ideológico na propositura de
adequar os elementos das contribuições teóricas revolucionárias de Gramsci Pedagogia Histórico-crítica: uma proposta nos moldes
para o trabalho fabril nos moldes capitalistas. Na verdade, essas apropriações gramsciano para a escola no/do campo
indébitas das elaborações de Gramsci são feitas na tentativa de minimizar a
dimensão revolucionária contida em sua obra (SOBRAL, 2010). Corroboramos com o desafio que é subjacente à concepção da
Em vista disso, diante dos aspectos que foram abordados por pedagogia histórico-crítica, a exposição esclarecida da luta de classes,
Gramsci em defesa da escola unitária, mesmo sem adentrarmos proficuamente permeando a prá- tica pedagógica do Escola do Campo, imersa no seio da
no debate da escola do campo, pois a esta temática diretiva ainda não se fazia sociedade capitalista, emblematicamente oposição aos princípios morais e
menção em suas obras, exceto as discussões em torno da questão meridional, estéticos deste modelo de produção. Por um lado, como desenvolver a esfera
compreende- mos e entendemos que se assimilarmos a concepção de escola autônoma da educação nes- ta modalidade de ensino, sem abstrair o contexto
unitária grams- ciana, traremos sim, uma defesa de escola do campo que possa sócio-econômico? De outro lado, reconhecendo os condicionamentos desta
atender às reais necessidades da vida humana, mesmo sabendo que nesta sociedade sobre a educação, não eliminar a atuação dos sujeitos da
escola encontraremos resistência, pois medidas paliativas serão tomadas para educação.
que a educação campe- sina não avance o suficiente, rumo a constituição de Este é o nosso entendimento, destacando a identidade teórica, a impor-
um novo tipo de sociabi- lidade humana. tância da pedagogia histórico-crítica. Primeiro, porque não nega, nem esquece
Nesse sentido, é preciso que tenhamos educadores conscientes, que co- que a sociedade em que vivemos está centrada na reprodução do capital, o que,
nheçam todo o processo histórico-social e que coloquem em atendimento dos em última instância, condiciona todas as esferas da sociedade, em particular, a
interesses da coletividade, educadores que sejam verdadeiramente comprome- educação, com sua carga de desigualdade e alienação. Segundo, porque
tidos com a luta das classes subalternas, educadores que se coloquem enquan- percebe que a realidade social, mesmo repleta de desigualdade e alienação, é
to “intelectuais orgânicos” e que primem pela defesa dos conteúdos histori- produto da atividade humana, e, portanto, na esfera da educação, os sujeitos da
camente produzidos. Destarte, pensar em educação campesina, não se atividade educativa – os trabalhadores da educação e os alunos – têm um papel
trata “simplesmente” de pensar em uma educação voltada para a vida do relevante a cumprir.
campo em si, é preciso também pensar na constituição da vida humana, A partir dessa demarcação de campos, é possível destacar as categorias
como se dão as centrais, segundo nossa leitura, da pedagogia histórico-crítica, como homem,
trabalho, educação e função da escola.
60 É comum nos depararmos com defesas em torno do pensamento gramsciano de Para Saviani, a natureza da educação está ligada à categoria trabalho.
maneira equivocada ou deturpada, pois ao invés de se defender uma ruptura do capital rumo a Para ser mais precisa, ao trabalho não-material. Na medida em que o
construção de um horizonte revolucionário, às vezes, o que temos é a própria legitimação e/ou
homem transforma a natureza, ele também se transforma. O homem não
manutenção do status quo, a exemplo disto temos as políticas de Estado que embasam o
funcionamento dos conselhos, os quais são compostos em sua grande maioria por estratos da produz apenas coisas materiais, produz também, “ideias, conceitos, valores,
sociedade política e em sua minoria por estratos da sociedade civil; outro ponto seria a símbolos, hábitos, atitudes, habilidades”, que além de caracterizar a ciência,
concepção de “partido político” que se coloca nos “partidos politiqueiros”; e tantas outras a ética e a arte, ex- pressam o universo em que se situa a educação. Com
ações do Estado que, no momento, não convém mencioná-las, mas que corroboram em favor
das classes que dominam o modo de produção vigente. isto, entendemos que a educação é um trabalho não-material.

2 2
No entanto, para chegarmos à natureza da educação, faz-se necessário Bem, tendo compreendido a natureza da educação, agora podemos pas-
ainda compreendermos que a categoria de produção “não-material” se divide sar à segunda parte: da especificidade da educação. O que cabe à educação,
em duas modalidades: qual sua função segundo a Pedagogia Histórico-crítica?
A educação está associada a “[...] ideias, conceitos, valores, símbolos,
A primeira refere-se àquelas atividades em que o produto se se-
há- bitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entretanto, não lhe interessam
para do produtor, como nos casos dos livros e objetos artísticos.
Há, pois, nesse caso, um intervalo entre a produção e o em si mesmos, como algo exterior ao homem” (SAVIANI, 2003, p.12).
consumo, possibilitado pela autonomia entre o produto e o Compreende- mos que tais categorias, segundo a Pedagogia Histórico-crítica,
ato de produ- ção. A segunda diz respeito às atividades em que por serem ineren- tes ao homem, só interessam enquanto forem úteis ao
o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso, não processo de humanização. Assim, se dá o trabalho educativo, que é definido por
ocorre o intervalo antes observado; o ato de produção e o ato Saviani (2003, p.13) como:
de consumo imbri- cam-se. É nessa segunda modalidade do
trabalho não-material que se situa a educação (SAVIANI,
[...] o ato de produzir direta e intencionalmente, em cada
2003, p.12).
indiví- duo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletiva- mente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da
Assim, podemos perceber a coerência interna da pedagogia histórico- educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos
crí- tica ao identificar a educação como uma modalidade de trabalho não- culturais, que precisam ser assimilados pelos indivíduos da
material, aquela em que há uma unidade entre o ato de produção e o ato de espécie humana para que eles se humanizem e de outro lado, e
consumo. Para compreender isso, é oportuna outra passagem de Saviani concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas
para atingir esse objetivo.
(2003, p.12):

Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se esclarece Portanto, a atividade educativa especifica-se como o ato de humanizar
a partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao cada indivíduo singular por meio da transmissão e assimilação do conjunto de
ensino, é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, objeti- vações61, produzidas pelo desenvolvimento histórico e social da espécie
participa da natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a humana.
atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que Agora, nesse contexto, é possível falar da educação escolar, que possui
supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor e a
uma particularidade em relação às outras formas de educação, pois além de
presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula, é inseparável
da produção desse ato de seu consumo. conter todas as suas características essenciais, tem uma especificidade diante das
outras - socializar o saber sistematizado e não qualquer outro saber. Portanto,
Esclarecendo, podemos dizer que a educação é uma atividade que está “[...] a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao saber
ligada à reprodução da sociedade, transmitindo valores, hábitos e conhecimen- espon- tâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado. Em suma, a
tos. Já o ensino é um momento dela, tendo um caráter específico, escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente
pressupon- do entre outras coisas educador e educando, conteúdo, o saber metódico, sistematizado” (SAVIANI, 2003, p.14).
currículo e forma de transmissão e construção desse, metodologia entre outras Em termos mais precisos:
coisas. Porém, como momento da educação, o ensino tem necessariamente a
A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumen-
mesma natureza dela. Por isso, Saviani utiliza o exemplo da aula, própria do
tos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem
ensino, para explicitar a natureza da educação como um tipo de trabalho não- como o próprio acesso aos rudimentos desse saber. As
material em que o ato de produção não se separa do ato de consumo. atividades da escola básica devem organizar-se a partir dessa
questão. Se

2 2
61 Entende-se a categoria objetivação como quaisquer produtos da atividade humana,
material ou espiritual. Um carro é uma objetivação como o são também um livro, uma
música, uma teoria, um valor, um hábito, um conhecimento, uma língua ou uma técnica.

2 2
chamarmos isso de currículo, podemos então afirmar que é a (organizador, 1a edição em 2000)
par- tir do saber sistematizado que se estrutura o currículo da
escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura
erudita, é uma cultura letrada. Daí que a primeira exigência
para o acesso a esse tipo de saber seja aprender a ler e escrever.
Além disso, é preciso conhecer também a linguagem dos
números, a linguagem da na- tureza e a linguagem da sociedade.
Está aí conteúdo fundamental da escola elementar: ler, escrever,
contar, os rudimentos das ciên- cias naturais e das ciências
sociais (história e geografia humana) (SAVIANI, 2003, p.15).

Tal concepção da função social da escola, baseada em uma fundamenta-


ção, que parte da caracterização do ser humano, confronta-se com as posturas
hegemônicas atualmente presentes no universo das teorias educacionais. Prin-
cipalmente, com as chamadas “pedagogias do aprender a aprender” ou
“pós-
-modernas”, que negam, muitas vezes, a importância do saber sistematizado,
e que são sustentadas por quatro posicionamentos valorativos, os quais foram
identificados e vem sendo questionados por pesquisadores vinculados à corren-
te histórico-crítica, em especial Newton DUARTE62.
Pensamos que, a identificação desses posicionamentos e sua crítica são
importantes para que seja possível uma educação escolar de qualidade.
O primeiro posicionamento valorativo aponta que:

[...] as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas


quais está ausente a transmissão, por outros indivíduos, de
co- nhecimentos e experiências, é tida como mais desejável.
Apren- der sozinho seria algo que contribuiria para o aumento
da auto- nomia do indivíduo, ao passo que aprender algo como
resultado de um processo de transmissão por outra pessoa
seria algo que não produziria a autonomia e, ao contrário,
muitas vezes até seria um obstáculo para a mesma (DUARTE,
2001, p.34).

62 Doutor em educação – Unicamp e livre-docente em psicologia – Unesp. Vem centrando


seus estudos numa leitura crítica das pedagogias do “aprender a aprender”, tendo como obras
centrais: Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski (1a edição em 1996);
Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria
vigotskiana (1a edição em 2000); Sobre o construtivismo: contribuições a uma análise crítica

2 2
O segundo posicionamento valorativo trata:

[...] da idéia de que é mais importante o aluno desenvolver


um método de aquisição, elaboração, descoberta, construção
de conhecimentos, do que aprender os conhecimentos que
foram descobertos e elaborados por outras pessoas. É mais
importante adquirir o método científico do que o conhecimento
científico já existente (idem, 2001, p.35).

Ao qual: “[...] articula-se a ideia de que uma educação democrática não


pode privilegiar uma determinada concepção ideológica, política etc. Uma
edu- cação democrática seria uma educação relativista” (id., ibid., 2001,
p.35).
Já o terceiro posicionamento valorativo relaciona-se ao, “[...] princípio
segundo o qual a atividade do aluno, para ser verdadeiramente educativa,
deve ser impulsionada e dirigida pelos interesses e necessidades da própria
criança”. (id., ibid.,2001, p.40).
Para Duarte (2001, pp. 40-41):

A diferença entre esse terceiro posicionamento valorativo e os


dois primeiros, consiste em ressaltar que além de o aluno
buscar por si mesmo o conhecimento e nesse processo construir
seu mé- todo de conhecer, é preciso também que o motor desse
processo seja uma necessidade inerente à própria atividade da
criança, ou seja, é preciso que a educação esteja inserida de
maneira funcio- nal na atividade da criança.

Por último, o quarto posicionamento valorativo:

[...] é o de que a educação deve preparar os indivíduos para


acom- panharem a sociedade em acelerado processo de
mudança, ou seja, enquanto a educação tradicional seria
resultante de sociedades estáticas, nas quais a transmissão de
conhecimentos e tradições produzidos pelas gerações passadas
era suficiente para assegurar a formação das novas gerações, a
educação nova (ou construtivista) deve pautar-se no fato de que
vivemos em uma sociedade dinâmi- ca, na qual transformações
em ritmo acelerado tornam os conhe- cimentos cada vez mais
provisórios, pois um conhecimento que hoje é tido como
verdadeiro pode ser superado em poucos anos ou mesmo em
alguns meses. O indivíduo que não aprender a se atua-

2 2
lizar estará condenado ao eterno anacronismo, à eterna mentar uma prática que envolva as questões de uma didática de novo tipo.
defasagem de seus conhecimentos (id., ibid., 2001, p.41).
Para tanto, nos baseamos no trabalho de Gasparin (2002), que busca definir os
contornos de uma didática para a pedagogia histórico-crítica.
Esses posicionamentos podem, no extremo, levar à conclusão de total
Quando falamos em didática, uma das primeiras coisas que nos vem
desprezo pelo saber sistematizado. Como, por exemplo, a concepção que uma
à mente é o planejamento. Todos reconhecem a necessidade de um plano
criança pobre, que não frequente a escola; mesmo pública e centrada numa
de trabalho, porém, o que observamos na nossa cotidianidade é que nem
atividade pedagógica que não prioriza o conteúdo, mas os métodos, possui um
todos os professores fazem e seguem um, devido a uma série de fatores, que
perfil cognitivo diferenciado de uma criança escolarizada, mas não inferior.
não vêm ao caso retratarmos agora. No entanto, compreendemos que, para
Sen- do até, em certo sentido superior, pois, se na “escola da vida”, ela vende
alcançar os objetivos de qualquer tarefa, e especificamente, da atividade
laranjas nos semáforos, pode estar desenvolvendo um método de aquisição,
docente, é indis- pensável a previsão e a organização das atividades que serão
elaboração, descoberta e construção de conhecimentos próprio, ao invés de
desenvolvidas.
aprender os conhecimentos que foram descobertos e elaborados por outras
Somos conscientes que uma prática que não é orientada por uma teoria,
pessoas. Assim, a efetuação de operações matemáticas de soma exigidas pela
se torna um todo confuso e difuso, um misto entre incertezas e certezas, onde
contabilidade das frutas vendidas em esquinas possibilita uma certa
não deixa claro onde se quer chegar, assim também uma teoria, sem uma apli-
vivência que uma criança centrada no saber sistematizado não tem.
cabilidade possível, deixa em dúvida a sua veracidade e função a que pretende.
Porém, há nisso tudo, um problema óbvio. É que:
Nessa nova dimensão, tanto o professor, quanto o aluno, têm papel funda-
[...] quando a criança de rua transforma operações simples de mental na transmissão e construção do conhecimento. O conhecimento passa a
multiplicação em operações de soma, encontrando, de cabeça, a ser teórico-prático, não tendo espaço para o estudo dos conteúdos por si só,
resposta certa, está provando sua capacidade de vender laranjas, sem uma finalidade social, mas estes, sendo apropriados teoricamente pelos
mas não está provando a tese de que seu saber é superior ao alunos, se- rão úteis para a compreensão e transformação da realidade. Este novo
da criança escolarizada. A criança que aprendeu a multiplicar fazer, impli- ca que os conteúdos sejam trabalhados de forma contextualizada,
pode resolver não somente as operações de multiplicação como
pois diz Saviani:
as de soma, pois a multiplicação supõe acesso a um degrau mais
avança- do de organização cognitiva. O pequeno vendedor
No mundo de divisões do conhecimento, das especificidades que
ambulante está condenado a realizar operações de soma, e assim
possibilitam e, frequentemente, proporcionam a perda da
mesmo lidando com números extremamente simples
totalida- de, busca-se cada vez mais, a unidade, a
(ROUANET, 1998, p.139).
interdisciplinaridade, não como forma de pensamento
unidimensional, mas como apreensão crítica das diversas
Isso significa, no nosso entender, que o saber que é próprio do senso dimensões da mesma realidade (2002, p.3).
comum, ou seja, aquele conhecimento espontâneo e não sistemático, que nasce
da experi- ência cotidiana por si só, não humaniza plenamente o indivíduo, que Portanto, o conhecimento, para a concepção dialética, além se originar
necessita da escola. Porque, é por meio da apropriação efetiva do da realidade material e da ação humana sobre ela, origina-se também das
conhecimento sistematiza- do por parte das novas gerações, que será garantida or- ganizações culturais, políticas, econômicas, religiosas, entre outras formas
uma educação de qualidade. de instituições sociais. Tudo isso dentro do processo histórico de
transformação do mundo e da sociedade, que deve ser levado em conta em
A pedagogia histórico-crítica como fundamento da prática escolar qualquer reflexão sobre o conhecimento, isto é, em qualquer perspectiva
epistemológica de com- preensão da estrutura particular do conhecimento
Nessa parte do ensaio, depois de situadas as coordenadas teóricas da
como sendo:
pedagogia histórico-crítica, enfatizamos que é possível, a partir delas, funda-
2 2
[...] o movimento que parte da síncrese (sensorial concreto, o
em- pírico, o concreto percebido), passando pela análise
(abstração,

2 2
separação dos elementos particulares de um todo, identificação o conteúdo sistematizado. De acordo com Gasparin (2002, p.36):
dos elementos essenciais, das causas e contradições fundamen-
tais) e concreto mais elaborado, uma prática transformadora
(CORAZZA apud GASPARIN, 2002, p. 5).

Partindo dessa teoria dialética do conhecimento, Gasparin estabelece


cinco momentos referenciais para uma didática histórico-crítica.
O primeiro momento diz respeito à prática social dos sujeitos da
edu- cação, o que é um dado elementar da realidade. Isso deve convidar
professor e alunos a um conhecimento que possibilite uma reflexão sobre a
atividade cotidiana. É o que Gasparin denomina de “prática social inicial do
conteúdo”. O aluno deve ser, inicialmente, mobilizado para “[...] perceber
alguma relação entre o conteúdo e sua vida cotidiana, suas necessidades,
problemas e interes- ses” (Gasparin, 2002, p. 15). Assim:

Uma das formas para motivar os alunos é conhecer sua práti-


ca social imediata a respeito do conteúdo curricular proposto.
Como também ouvi-los sobre a prática social mediata, isto é,
aquela prática que não depende diretamente do indivíduo, e sim
das relações sociais como um todo. Conhecer essas duas dimen-
sões do conteúdo constitui uma forma básica de criar
interesse para uma aprendizagem significativa do aluno e uma
prática do- cente também significativa (GASPARIN, 2002, pp.
15-16).

Tal postura, rompe com as didáticas baseadas nas pedagogias tradicio-


nal e tecnicista que desprezam, na prática, o aluno como sujeito da
atividade educativa, o que cria um fosso entre as preocupações dos alunos
e conteúdos escolares. Pois, os conteúdos em si não interessam imediatamente
aos alunos. Eles precisam se relacionar com as opiniões e necessidades
trazidas pelos edu- candos. Precisam se encaixar no cotidiano, tornando-se
uma segunda natureza. Daí, a importância do professor em contextualizar os
saberes, expressão de seu mundo, de suas vivências e de suas práticas sociais.
Com isso feito, é possível ao professor enunciar os conteúdos e explicitar os
objetivos da aprendizagem, tendo como ponto de partida o que os alunos já
sabem, o que gostariam de saber a mais.
O segundo momento implica na “problematização”, etapa essencial para
o salto do fazer cotidiano para a cultura elaborada. É o começo do trabalho
com

2 2
Nesse processo de problematização, tanto o conteúdo social e sua reconstrução na escola. É a expressão teórica dessa
quanto a prática social tomam novas feições. Ambos começam postura men- tal do aluno que evidencia a elaboração da
a se alterar: é o momento em que começa a análise da prática totalidade concreta
e da teoria. Inicia-se o desmonte da totalidade, mostrando ao
aluno que ela é formada por múltiplos aspectos interligados.
São evidenciadas também as diversas faces sob as quais pode
ser visto o conteúdo, verificando sua pertinência e suas
contradições, bem como seu relacionamento com a prática.

Isso implica em uma ruptura com qualquer tendência que busque


centrar o conhecimento escolar apenas no contexto da experiência cotidiana
dos alunos, condenando-os a um horizonte cultural limitado. A
problematização, pelo con- trário, permite identificar os principais
questionamentos suscitados na prática so- cial sobre um conteúdo específico.
Esse é o desafio para o processo de ensino e aprendizagem, que deve estar
centrado “[...] em função das questões levantadas na prática social e retomadas
de forma mais profunda e sistematizada pelo conteúdo curricular”
(GASPARIN, 2002, p.37). Dessa maneira, a atividade pedagógica tem
condições de possibilitar aos educandos, principalmente os das camadas
populares, a compreensão da essência dos conteúdos a serem estudados,
partindo do senso comum para um conhecimento totalizante, que não se
desvincula do seu contexto. O terceiro momento é definido como
“instrumentalização”, ou seja,
“[...] é o caminho através do qual o conteúdo sistematizado é posto à disposição
dos alunos para que o assimilem e o recriem e, ao incorporá-lo, transformem-
-no em instrumento de construção pessoal e profissional” (GASPARIN, 2002,
P.53). Neste momento, o professor ressurge com a função de auxiliar o aluno
a confrontar o seu conhecimento cotidiano com o conhecimento apropriado e,
a partir daí, reelaborar mentalmente o seu objeto de conhecimento. Pois, ao
pôr em prática os conhecimentos adquiridos, o aluno modifica sua própria
realida- de imediata. Nesse movimento, o conhecimento teórico perde seu
caráter de simples compreensão para se tornar um guia efetivo para a
ação.
O quarto momento é a “catarse”. Enquanto na “instrumentalização”
o elemento básico é a análise, na “catarse” destaca-se a síntese:

A catarse é a síntese do cotidiano e do científico, do teórico e


do prático a que o educando chegou, marcando sua nova
posição em relação ao conteúdo e à forma de sua construção

2 2
em grau intelectual mais elevado de compreensão. Significa, ou- por dezesseis anos de um projeto administrativo que levou a educação em
trossim, a conclusão, o resumo que ele faz do conteúdo aprendi- Fortaleza à beira do caos:
do recentemente. É o novo ponto teórico de chegada; a manifes-
tação do novo conceito adquirido (GASPARIN, 2002, p. 128).

A “catarse” revela o nível de incorporação efetiva dos conteúdos, sua


integração na atividade do próprio aluno. Não uma incorporação ou integração
formais, típicas dos modelos tradicional e tecnicista. Mas, uma nova visão que
percebe que há uma totalidade integradora, onde antes só se via partes disper-
sas sem sentido. A realidade geográfica, histórica, linguística, matemática, por
exemplo, se torna coerente com o seu próprio cotidiano que agora está situado
em um contexto maior, histórico e contraditório.
O quinto momento, e último, representa “[...] o ponto de chegada do
processo pedagógico na perspectiva histórico-crítica é o retorno à Prática So-
cial” (GASPARIN, 2002, p.143). Há aí uma contradição latente, do ponto
de vista da didática escolar, porque o retorno à prática social final:

[...] extrapola a dimensão acadêmica porque a finalidade da


esco- la, em todos os níveis e áreas do conhecimento, não é
apenas pre- parar um profissional, mas um cidadão. Por isso, a
prática social final do conteúdo ultrapassa o nível institucional
para tornar-se um fazer prático-teórico no cotidiano extra-
escolar nas diversas áreas da vida social (GASPARIN, 2002,
p. 145).

No entanto, é possível destacar que os princípios do método


proposto “[...] são revolucionários porque não pretendem transformar apenas a
escola, mas a própria sociedade”. Logo, que os sujeitos, participantes do
processo des- crito, em especial, professores e alunos da escola pública, a
partir da compre- ensão de sua situação no mundo, terão maior capacidade
organizativa e uma postura política afirmativa de seus direitos e
necessidades.
Agora, podemos fazer a seguinte pergunta: até que ponto uma
didática histórico-crítica pode ser assimilada pelo Sistema Municipal de
Educação?
A resposta a essa pergunta não é simples e foge aos limites desse artigo.
Porém, podemos destacar alguns elementos condicionantes da realidade educa-
cional de Fortaleza. Primeiro, a política neoliberal para educação,
materializada na atual LDB e nas diretrizes do MEC. Segundo, a hegemonia,

2 2
não há um Conselho Municipal de Educação, uma Lei que estruture o uma sociedade comunista.
Sistema Municipal de Ensino e um Estatuto do Magistério atualizado; as
condições de trabalho não são boas e a maioria dos anexos, como várias
escolas, não possuem condições para um trabalho pedagógico; não há
professores e técnicos suficientes e a política de formação continuada é débil.
Em terceiro lugar, o clientelismo e a repressão seletiva aos opositores, criaram
uma cultura do medo e do atraso no cotidiano escolar. A organização sindical
apenas consegue organizar a luta salarial dos trabalhadores sem nenhum projeto
alternativo ao neoliberalismo e à econo- mia de mercado, de educação escolar
a ser construído na resistência diária.
Tal situação não deixa de favorecer, além das políticas oficiais neoliberais,
os “modismos” e as falsas soluções, que, no nosso entender, muitas vezes
bus- cam remodelar posturas e atitudes mantendo a mesma estrutura.
Mesmo assim, entendemos que é possível apontar um caminho alterna-
tivo centrado numa crítica à sociedade existente e na afirmação de uma
atitude pedagógica que incentive os sujeitos da educação a uma auto-
organização tanto no espaço escolar-pedagógico como na realidade social.

Considerações finais

Diante do exposto, podemos afirmar que a escola do/no campo, precisa


engendrar na busca da conscientização social, sobre a forma societal que
vemos atualmente, para que os sujeitos escolares da comunidade do campo
possam se engajar numa luta, não de um indivíduo, mas de uma classe
trabalhadora. Uma formação que os fundamentem e lhes dê sustentação
teórica para efetivarem práticas educativas emancipadoras, na batalha por
uma escola que conside- re o homem como um ser ontológico, inserido
numa totalidade, e agente da história e da sociedade, que difunda o
conhecimento sistemático e elaborado, construído historicamente, para
servir como instrumento de luta contra as determinâncias da forma societal
atual e por um projeto maior de sociedade, se constituído um saber para a
consciência crítica
Dessa forma, destacamos a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica,
na esteira da proposta de escola unitária de Gramsci, visto que ambos
defendem a elevação do ser humano, de fazer de cada indivíduo um
contemporâneo de seu tempo, isto é, a apropriação e acesso a todo
patrimônio intelectual e ma- terial construído historicamente pela
humanidade, e consequentemente, a luta teórica e prática pela construção de
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2 2
AÇÃO ESCOLA DA TERRA E MOVIMENTOS
SOCIAIS: EDUCAÇÃO DO CAMPO PARA
O FORTALECIMENTO DA PERSPECTIVA
DA EMANCIPAÇÃO HUMANA

Francisco Carlos Falcão Junior


Antônio Ozielton de Brito Sousa

Introdução

Este Trabalho situa-se no âmbito dos estudos em torno da Educação do


Campo. As inclinações para a produção deste artigo surgiram a partir da
in- serção na Universidade Federal do Ceará (UFC), entidade executora do
Projeto Escola da Terra, que desenvolve atividades voltadas para a formação
de profes- sores e professoras que atuam em salas de aula multisseriadas das
comunidades quilombolas.
Através de pesquisa bibliográfica, intervenções junto à ação Escola da
Terra e inserção em outros projetos direcionados à docência no campo, nos
inclinamos para a discussão apresentada neste trabalho.
O poder público federal deliberou o incentivo e fomento de
programas voltados para difusão da Educação do Campo, através de mais uma
modalidade do Pronatec, desta vez especificamente destinada às instituições e
movimentos sociais ligadas às questões agrárias. O Pronatec foi criado para
promover me- lhorias e expandir o acesso à educação do campo, melhorar os
índices brasilei- ros de inserção no trabalho e educação, além de qualificar
para o mercado de trabalho.
A Ação Escola da Terra, desenvolvida pela UFC, visa, entre outros
obje- tivos, a qualidade na relação ensino/aprendizagem nas escolas e
comunidades quilombolas do semiárido cearense, auxiliando na elaboração de
um diagnósti- co e posteriormente de um plano de ação, detectando a melhor
estratégia para o alcance dos melhores resultados através dos docentes.
A estratégia utilizada foi à formação dos docentes, iniciando com a
sensi- bilização desses e dessas profissionais para a importância de uma
educação con- textualizada aos cenários de vida complexos de cada
comunidade potencializan-
do suas particularidades de âmbito social, político e cultural. Compreender a modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) é mais de 3,7 milhões de
importância do seu papel junto aos seus educandos e educandas é determinante pessoas (INEP/
para suprir suas necessidades e especificidades para existir na luta e resistência.
A ação Escola da Terra junto a esse público procura intervir, desenvolver
a participação e a pesquisa no processo de formação dos educadores e
educado- ras, com a perspectiva de melhoria da qualidade do ensino nas
comunidades e distritos utilizando como metodologia a Pedagogia Histórico-
Crítica e Pedago- gia da Alternância.
A Ação Escola da Terra é um curso de aperfeiçoamento para promover
formação continuada de educadores para as Escolas do Campo e das comuni-
dades quilombolas e tem por objetivo o desenvolvimento de propostas
peda- gógicas e metodologias adequadas às comunidades atendidas, para
melhorar a educação nessas regiões. É uma parceria da UFC com o Ministério
da Educação (MEC), Secretaria da Educação do Estado e secretarias de 19
municípios.
A metodologia do curso foi dividida em seis módulos que trataram
desde os elementos filosóficos até os elementos legais e técnico-pedagógicos da
Educa- ção do Campo. As aulas foram ministradas no formato da Pedagogia
da Alter- nância, com atividades presenciais no polo (sede) e de campo, nas
comunidades.
Educação do Campo: Alguns fundamentos e reflexões
A Educação do campo foi nomeada de Educação Básica do Campo,
na preparação para a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do
Cam- po, em Goiás, em julho de 1998. Apenas em novembro de 2002, a
partir das discussões do Seminário Nacional, em Brasília, surgiu à expressão
“Educação do Campo”, essa decisão foi confirmada em 2004, na II
Conferência Nacional. A utilização da palavra ‘campo’ passou a ser
incorporada para valorizar o traba- lho camponês, suas lutas sociais e
culturais.
É construída ‘por’ e ‘para’ as pessoas do campo, respeitando os
diferentes sujeitos, territórios, o meio social em que o individuo está inserido e
a identida- de cultural que compõe o campo, apresentando-se como garantia de
ampliação das possibilidades de homens e mulheres, povo tradicional do
campo, com a esperança de um futuro melhor.
O Brasil tem uma população de 42,3 milhões de pessoas com 15
anos ou mais de idade que não frequentam a escola e que não têm o Ensino
Fun- damental completo. O número de estudantes matriculados na

2 2
MEC, 2013). Da população com 15 anos ou mais de idade, 13,3 milhões
são consideradas analfabetas [8,5%] (PNAD/IBGE, 2013).
Acesso à Educação Básica no Campo
Escolas no campo: 76 mil Matrículas: 6,2 milhões
Corresponde a 12,4% do total de estudantes matriculados
Escolas com turmas multisseriadas: 71,37% Representa 22% das matrículas totais campo Professores no campo: 342 mil
Professores COM ensino superior: 182.526 - 53,24%
Professores SEM ensino superior: 160.319 - 46,76%

Fonte: Censo Escolar Inep 2011- Censo IBGE 2010

As inquietações movidas nesse trabalho implicam diretamente no des-


pertar político e crítico dos professores e professoras da zona rural e a
reverbe- ração dessas formações nas comunidades quilombolas atendidas.
Percebemos a importância e relevância de experiências e vivências na
construção dialética dos conhecimentos empírico e científico.
Percebemos a ausência da disciplina de Educação do Campo nos
cursos de Pedagogia como um desagregador na formação geral e ampla do
pedagogo, perdendo seu caráter humanista e filosófico deixando de
sensibilizar para as particularidades das comunidades campesinas.
Ao tratar de questões primordiais no processo ensino/aprendizagem na
docência, passaremos a refletir sobre esse fenômeno e sua objetivação na
pers- pectiva que vá de encontro com a educação como reprodutora de
desigualdades sociais.
A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394/96 delibera os cursos de nível
superior também para a iniciativa privada, através das Faculdades, sem a obri-
gatoriedade do tripé institucional regido pelo Ministério da Educação
(pes- quisa-ensino-extensão) exigido nas universidades, implicando na
qualidade da formação de profissionais das áreas afins.
Consequentemente, o modelo de expansão universitária amplia as
facul- dades de formação técnica aligeirada, fortalecendo o modelo
neoliberal, entre o público e o privado, enxertando verba pública no
particular, implicando no sucateamento das universidades, a precarização do
trabalho docente e mecani-

2 2
zação na formação discente através do Programa de Reestruturação e Amplia- 64 De acordo com Bottomore (2013), a práxis refere-se em geral à atividade livre, universal,
criativa por meio da qual o homem cria, faz, produz e transforma a história (p 430).
ção das Universidades Federais (REUNI)63.
Profissionais de nível superior devem ser estimulados e sensibilizados a
se descobrirem dentro de suas aptidões e habilidades, oportunizando e
relacionando o conhecimento trabalhado nas disciplinas com a formação humana
dos atores sociais que os espaços escolares deveriam criar, entretanto criticamos a
estrutura atual.
É fundamental estreitar relações com pessoas ligadas às lutas e causas
campesinas para entender a realidade do homem e da mulher do campo, a luta
histórica pela terra, saber como essa luta se dá no território nacional e qual
a forma de implementação de suas políticas públicas. Esse fenômeno gera
cons- cientização e tomada de decisão, importante para potencializar e
concretizar o exercício da práxis64.
A formação executada na Ação Escola da Terra busca reflexões e modi-
ficações de âmbito pessoal, profissional e social. Na prática, passa-se a
dialogar com os processos de ensino/aprendizagem e aprimoramento no
exercício da práxis. Gerar crise e iniciar um novo processo de desequilíbrio e
desconstrução dos sujeitos, no questionamento da estrutura educacional como
formadora de conhecimento e inserção para o mercado de trabalho.
A formação do profissional de qualquer área repercute diretamente
na sua ação social. Com o professor não seria diferente: se esse profissional
não ti- ver uma visão crítica e política, se reproduzirá uma educação
descontextualiza- da e que não atende em nenhuma instância as
particularidades e especificidades dos sujeitos do campo. A falta de ação
transformadora deflagra a falta de práxis. A formação baseada na Pedagogia
Histórico-Crítica é o diferencial na for- mação dos educadores e educadoras,
que reflete na concretização e manifestação de seus educandos e educandas, no
qual o compromisso assumido pelos(as) cur- sistas acontece através da
formação continuada. Exploramos essa realidade, pois é visível a
materialização nos resultados da construção individual de cada forma- dora e
formador, influenciando no comportamento organizativo dos atores de-
senvolvidos através de discussões de temas sociopolíticos, econômicos e culturais.
Para entendermos a Educação do Campo é necessário que primeiramente
possamos perceber a diferença que ocorre entre ela e a Educação Rural, pois a
mes- ma é construída por e para as pessoas do campo, respeitando os diferentes
sujeitos,

63 file:///C:/Users/CARLA/Desktop/Downloads/620-2036-1-PB.pdf

2 2
territórios, o meio social em que o individuo está inserido e a identidade formação para o meio rural.
cultural que compõe o campo, apresentando-se como garantia de ampliação
das possibili- dades de homens e mulheres camponesas, com a esperança de um
futuro melhor.
A temática sobre a Educação do Campo projeta o compromisso com
essa problemática. O interesse pela Educação do Campo e a questão agrária
aprimo- ra e intensifica a partir da inserção e participação dos(as) cursistas na
formação continuada para o fortalecimento da educação campesina no
semiárido cearense.
A formação dos professores da zona rural traz consigo ideias direcionadas
para o ator crítico, político e sistêmico. A diferenciação na formação dos
do- centes está na abordagem pedagógica: Pedagogia Histórico-Crítica e
Pedagogia da Alternância65. Essas abordagens se relacionam com tendências
pedagógicas críticas, não tradicionais e que questionam o modelo de educação
e de socieda- de que produz desigualdades.
O quadro abaixo sistematiza os principais elementos que
diferenciam as tendências pedagógicas críticas: libertadoras e progressistas,
das tendências pedagógicas tradicionais:

Quadro 1 – Fonte: VEIGA, 1994.

65 Segundo Teixeira (2008) a Pedagogia da Alternância consiste numa metodologia de


organização do sistema escolar que conjuga diferentes experiências formativas distribuídas ao
longo de tempos e espaços distintos. Esse método começou a tomar forma em 1935, a partir da
insatisfação de agricultores franceses com o sistema educacional do seu país que não atendia a

2 2
Concepções que orientam a pratica pedagógica Com o olhar crítico, o Educador(a) tem autonomia de alterar suas es-
do processo ensino/aprendizagem tratégias metodológicas de acordo com as necessidades e peculiaridades de
seus educandos(as). A formação que se fundamenta, trás consigo intenções na
A Pedagogia Histórico- crítica tem como principal teórico Demerval aná- lise da realidade, na percepção do sujeito, na sociedade e no exercício da
Saviani, e indica que a função da educação e da escola é a de socialização dos práxis.
conhecimentos historicamente acumulados pelo conjunto da humanidade e Nos estudos de Paulo Freire (1992), fica claro o apanhado histórico
construídos através de sua atividade prática de intervenção na realidade. e social que introduz suas obras. O autor demonstra ainda, a preocupação
A Pedagogia da Alternância, em linhas gerais, propõe a aprendizagem em denunciar a relação de poder na construção dos sujeitos do campo,
através dos espaços escolares e dos espaços produtivos. Desse modo, configura contextua- lizando a importância dos Movimentos Sociais em defesa da
o processo de escolarização sem que seja necessário abdicar das atividades de- Educação Popular e a luta campesina como processo educativo.
senvolvidas no campo. Freire faz referencias a outros autores em suas obras, nas quais fica per-
Estas metodologias tornam mais orgânicas a relação educador(a)/edu- ceptível a influencia dos demais teóricos sobre ele. Fala também, sobre suas
cando(a) no processo de ensino/aprendizagem. Facilitando a identificação das viagens e suas experiências, sua participação em encontros por todo o mundo
necessidades dos/as educandos/as com mais clareza, possibilitando atuar com com acadêmicos, camponeses e operários.
mais eficiência, consciência e segurança. Retrata a relação entre educação e a crise que se vive na modernidade,
A práxis é determinante para a boa mediação nos espaços educativos e onde sua abordagem nos abre questões sobre a estética na educação. Essa é sua
de valorização dos saberes tradicionais do/a educador/a na relação orgânica nova perspectiva do homem na sociedade, falando sobre o conhecimento
com os/as educandos/as, na troca de valores, crenças, experiências e hábitos. inteligível e o saber sensível, como o mundo é pensado por nós e como nosso
São essas as características necessárias, que ampliam o universo dos sujei- corpo conhece
tos em formação para suas mediações. Relacionando estímulo e o mundo.
desenvolvimen- to em suas competências cognitivas, sociológicas e Para o autor, é fundamental compreender a tendência destrutiva e
psicomotoras. A capacidade de ação e sensibilização dos/as educadores/as é alienan- te do progresso regido pelo capital. Refere-se a uma educação que não
decisiva para o sucesso ou o fracasso de uma atividade pedagógica. Entender a fique presa somente a escola, mas para além dela, articulando vida e sentidos
complexidade estabelecida no espaço educativo, compreender suas na construção que parte da sensibilidade corporal mais básica até o pensamento
particularidades e agir com estratégias metodológicas próprias, facilita na mais abstrato.
objetivação de seus resultados. Dentre os autores citados por Freire, as obras de Hegel (1999) e Fromm
Assimilar a formação do educador como peça fundamental da engrena- (1974) sistematizam temas ontológicos e explanam o processo de desenvolvi-
gem da educação transformadora e participativa, é primordial para a mudança mento na construção subjetiva de homens e mulheres, a negação da liberdade e
real das práticas pedagógicas. A potencialidade na mudança de visão do profis- os fenômenos implícitos nas relações humanas. Esses autores contribuíram
sional e o resgate da autoestima estão intrinsecamente ligados aos bons resulta- com as ideias e reflexões, estruturas e elaborações do pensamento freireano.
dos. A formação deve ser destaque nesse processo formativo. O Dicionário da Educação do Campo (Caldart et al,2012) e o
Nas instituições de ensino superior, há um reforço expressivo de cunho Dicioná- rio do Pensamento Marxista, (Bottomore,2012) nos auxiliarão na
ideológico elitista, burguês e reacionário reproduzido na vida prática social, elucidação de conceitos sobre as lutas do campo, da organização do trabalho e
concretiza-se na subjetividade dos sujeitos em formação. O resultado é a repro- do pensamento político pedagógico.
dução de uma educação cada vez mais impositiva, tecnicista e mecanizada, no Brandão (1981), afirma que a educação está no cotidiano das pessoas e
campo ou na cidade. que se manifesta de várias formas, seja em casa ou na rua. O autor acredita ser
através dos repasses dos saberes de uma geração a outra, a forma de perpetuar a

2 2
educação por meio da tradição, costumes e crenças de cada uma. A educação
como fenôme- no livre, existe na sociedade e se perpetua pelo fortalecimento
das culturas de cada

2 2
povo, onde na visão ocidental a educação deve ser transmitida por um De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril,
professor e na escola. O autor ainda faz um belo apanhado de como se dão preten- de-se a objetivação do trabalho pedagógico. Com
efeito, se no artesanato era subjetivo, isto é, os instrumentos de
as trocas de saberes de sociedades em que não estão sujeitas a pedagogia e
trabalho eram dispostos em função do trabalhador e este
como ele chama de ensino formal, quando existem técnicos e especialistas
dispunha deles segun-
executores do saber.
Faz uma relação entre os jovens e a cidade como processo educativo
para além dos muros da escola. A obra é um convite à reflexão sobre a
deformação humana dos jovens, onde ressalta a violência e o desrespeito no
contexto escolar. Rejeita toda arbitrariedade, uniformidade, passividade e
docilização dos corpos, possibilitando o reconhecimento dos jovens como
sujeitos de conhecimento e de ação. Em sua idealização, perpassa, também,
pela escola como objeto de incorporação e naturalização do que é educativo. A
cidade passa a ser então, o espaço educativo, originando assim, dois novos
sujeitos, os jovens e a cidade.

A importância dos Movimentos Sociais e a formação humana

Nesse tópico fazemos uma breve contextualização histórica do homem e


da mulher do campo e a importância da educação na construção dos
sujeitos. Discorremos também sobre o processo educativo que existe na
luta em si e a importância dos Movimentos Sociais para esse despertar
organizativo.
Para fundamentar esse tópico, utilizaremos principalmente as contribui-
ções do Dicionário da Educação do Campo (CALDART, et al 2012) e
Intro- dução à Filosofia de Marx (LESSA e TONET, 2011). Essas foram obras
impor- tantes para nossa percepção de forma crítica e histórica do objeto de
estudo.
Precisamos pensar o homem e a mulher do campo, seu modo de ser e de
estar. Com a falta de recursos estruturais e segurança para garantir
equilíbrio e estabilidade à família, os/as sujeitos/as vêm se metamorfoseando.
Essa meta- morfose acontece na relação entre os que roubam e os que têm sua
humanidade roubada. E esse processo ocorre em uma sociedade que é dividida
entre classes. Na organização da divisão da sociedade entre classes, uma parte
significativa dos indivíduos trabalha e produz as riquezas, e a outra parcela é
detentora dos meios de produção. Ou seja, vivemos em uma sociedade de
classe que se divide entre oprimidos e opressores, explorados e
exploradores.

2 2
do seus desígnios, na produção fabril essa relação é desde o final do século XX. Trata-se de um fenômeno que criou pontos em comum na
invertida. Aqui é o trabalhador que precisa se adaptar ao vertente econômica, social,cultural e política, e que consequentemente tornou o mundo
processo de tra- balho, já que esse foi objetivado e organizado interligado, uma Aldeia Global. http://www.significados.com.br/globalizacao/
na forma parcela- da. Nessas condições, o trabalhador ocupa 67 http://www.cimi.org.br/site/pt-br/
seu posto na linha de montagem e executa determinada parcela
de trabalho necessário para produzir determinados objetos. O
produto é, pois, uma de- corrência da forma como é
organizado o processo. O concurso das ações de diferentes
sujeitos produz assim um resultado com o qual nenhum dos
sujeitos se identifica e que, ao contrário, lhes é estranho
(SAVIANI, 1987, p.16-17).

O ser livre ao perder sua independência perde também sua


autonomia. Descaracterizado esse homem ou essa mulher deixam de ser em
si e passam a ser para o outro. Essa interferência que não deixa o outro ser
mais molda um ser inseguro, amedrontado e dependente. Essa violenta
introjeção condiciona os sujeitos envolvidos a viverem a “sombra” de outro,
criando um vazio pela perda da liberdade, gerada da relação impositiva
opressor/oprimido.
Com isso, os Movimentos Sociais passam a ter uma função
determinante e cada vez mais importante, no intuito de trazer à reflexão as
famílias do campo. A formação empregada pelos Movimentos Sociais garante
o amadurecimento psicológico e social, onde passam a refletir cada vez mais
sobre suas realidades. A história dos povos do campo esta ligada às lutas,
cotidianamente repleta de violências, enfrentando o Estado e a Propriedade
Privada.
Nossa sociedade construída na base acelerada do capital se fortaleceu
ainda mais com a globalização66. A forma com a qual os povos do campo
admi- nistram seu tempo e seu trabalho é vista pelo capital como atrasada,
concluin- do na perda de tempo e de dinheiro. As comunidades
tradicionais vêm sendo constantemente afetadas pela lógica do capital, o
avanço e a determinação dos capitalistas não respeitam a vida em nenhuma
instância.
Para compreendermos até onde vai à ganância no sentido de
acumulação e apropriação da produção, a vida passa a não ter significado no
processo de estra- tificação. O Conselho Indigenista Missionário67, no ano de
2013, divulgou que nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) as
mortes contra a população

66 É um conjunto de transformações na ordem política e econômica mundial visíveis


2 2
indígena aumentaram em 168% - O genocídio de camponeses nos governos do 68 http://www.cptnacional.org.br/
PT também aumentou 10,3%, segundo a Comissão Pastoral da Terra68 (CPT).
Há intencionalidade no enfraquecimento dos Movimentos Sociais e seus repre-
sentantes, para que o homem e a mulher do campo se submetam cada vez mais
ao capital e deixem de lado sua liberdade e autonomia conquistada a cada dia.
A forma de ordenação das comunidades campesinas tradicionais altera-
das pelo agronegócio ampliam as dificuldades e as desigualdades que já vivem
esses povos por falta de incentivos por parte do Estado, sejam eles técnicos ou
financeiros.

O termo agronegócio foi criado para expressar as relações


econô- micas (mercantis, financeiras e tecnológicas) entre o
setor agro- pecuário e aquele situado na esfera industrial (tanto
de produtos destinados a agricultura, quanto de
processamentos daqueles com origem no setor), comercial e
de serviços. Para os intro- dutores do termo, tratava-se de
criar uma proposta de analise sistêmica que superasse os
limites da abordagem setorial então predominante.
(CALDART, et al, 2012, p. 78)

A atuação do capital nessas comunidades altera o modo de vida do cam-


ponês através da interferência direta em seu trabalho e no manuseio da cultura,
direcionando sua mão de obra para a assalariada, descaracterizando esses ho-
mens e mulheres gerando dor e sofrimento. Historicamente, os povos do cam-
po lutam por uma melhor organização do seu território em suas comunidades,
sejam elas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, dentre outras.
Na agricultura campesina o foco é a subsistência, deparando-se com a
lógica do capital que visa unicamente o lucro, esses dois sujeitos construídos
em lógicas opostas, não tem como evitar o confronto. De um lado está a
agroeco- logia e do outro o agronegócio, a relação do homem e da mulher no
mundo no trabalho é determinante para sua conduta diante da vida.

A agroecologia se constitui como um conjunto de conhecimen-


tos sistematizados, baseados em técnicas e saberes tradicionais
(dos povos originários e camponeses) que incorporam princípios
ecológicos e valores culturais às práticas agrícolas, que com o
tempo foram desecologizadas e desculturalizadas pela
capitaliza- ção e tecnificação da agricultura (CALDART et al,
2012).

2 2
As formas primitivas de produção aconteciam em equilíbrio com o
meio ambiente para atender as necessidades que se apresentavam aos grupos
de indi- víduos que vivem de modo tradicional.
Essa mesma lógica acompanha o campesinato até a atualidade. É
impor- tante compreender que o homem e a mulher se constituem como
sujeitos histó- ricos através do trabalho. O trabalho se dava de forma que a
produção acontecia para seu uso, trocando o excedente por outros produtos
que necessitavam.
O valor de troca é incorporado com a mudança na dinâmica da
relação do trabalho e o surgimento da propriedade privada. Onde se passou a
acumular e explorar o trabalho do outro, em função da contenção de terras,
ferramentas e instrumentos.

É justamente esse caráter essencialmente humano da força


de trabalho que é negado pelo capitalismo ao reduzi-la a
simples mercadoria. Mercadoria são coisas, não são pessoas.
Fazer das pessoas coisas é o que Marx denomina processo de
reificação ou de coisificação. Reificação é, por tanto, o
desenvolvimento de relações sociais que apenas contemplam
aquilo que, no individuo pode ser comprado e vendido: sua
força de trabalho (LESSA e TONET, 2011, p. 67).

Nesse contexto de lutas e de exploração de uma classe sobre a


outra, a Educação do Campo é discutida na organização dos Movimentos
Sociais dos Camponeses, contrapondo-se a Educação Rural. Em 1997, no
Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária, realizado pelo
Movimento dos Sem-Terra, MST, houve uma reflexão da situação que estava
acontecendo no campo e também com a educação nesse espaço.

A Educação do Campo nomeia um fenômeno da realidade


brasileira atual, protagonizado pelos trabalhadores do campo e
suas organizações que visa incidir sobre a política de educação
desde os interesses sociais das comunidades camponesas. Obje-
tivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do
conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao
embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas
de agricul- tura que tem implicações no projeto de país e de
sociedade e nas concepções de políticas publicas, de educação
e formação humana. (CALDART et al, 2012, p. 257)

2 2
Embasados na concepção libertadora de Paulo Freire, na Pedagogia So- Uma das conquistas significativas dos movimentos sociais junto ao go-
cialista e na Educação Popular começa um movimento de formulação e prática verno federal é o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (PRO-
de outra educação para os trabalhadores do campo. Assim, foi emergindo e NERA). Assim, concluímos que a mudança de compreensão acerca da educa-
afirmando a concepção de Educação do Campo. Nesse sentido, a modalidade ção oferecida às comunidades camponesas é resultado da luta e resistência dos
de ensino visa contribuir para o estudo e afirmação dos camponeses, sendo trabalhadores do campo organizados em movimentos.
a educação assentada em bases especificas para o campo como direito social. A Educação do Campo se configura enquanto uma bandeira dos Movi-
Exemplo que podemos citar, de articulação e envolvimento com a mentos Sociais, dessa forma, faz-se necessário reavivar a memória das ações pela
fo- mentação dessa prática de educação, são as Escolas Família Agrícolas garantia de uma educação de qualidade vinculada a uma concepção de estudo
(EFA’s) voltadas para a agricultura familiar, a luta indígena e dos povos da que garanta o acesso ao conhecimento.
floresta por uma escola condizente com a sua identidade. As contribuições deste capítulo foram importantes para a observação da
inserção histórica e social dos formadores na construção dos sujeitos do
A concepção de escola do campo nasce e se desenvolve no bojo
campo, bem como traceja as inclinações políticas e pedagógicas do Projeto
do movimento da educação do campo, a partir das experiên-
cias de formação humana desenvolvidas no contexto de lutas Escola da Terra. No capítulo que segue, abordaremos algumas especificidades
dos movimentos sociais camponeses e por educação. (...) a con- da Educação do Campo e da formação de educadores e educadoras para
cepção de escola do campo se insere também na perspectiva atuação nessa área.
gramsciana da ESCOLA UNITÁRIA, no sentido de desenvol-
ver extrategias epstemologicas e pedagogicas que materializem Educação do Campo: um desafio sócio-histórico
o projeto marxiano de formação humana omnilateral, com
sua base unitaria integradora entre trabalho, ciencia e cultura,
Neste tópico, de forma sucinta, falaremos sobre as contribuições dos
ten- do em vista a formalção dos intelectuais da classe
trabalhadora. (CALDART et al, 2012, p. 324-325)
Movimentos Sociais na construção da Educação do Campo e as
potencialidades da formação docente como agente de mudança.
O trabalho do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Para embasar esse tópico, utilizaremos principalmente as contribuições
Terra (MST) pelas escolas de assentamento e acampamento na área da da obra Como se Formam os Sujeitos do Campo (CALDART, PALUDO e
Alfabetização de Jovens e Adultos vem sendo complementado pelo trabalho DOLL, 2006), Movimento Camponês (RIBEIRO, 2010) e O Medo à
do Movimento de Educação de Base e na área de formação dos professores, os Liber- dade (FROMM, 1974). Essas obras foram importantes para construção
Movimentos Atingidos por Barragens (MAB), Associação Regional das Casas ideoló- gica e política do objeto de estudo.
Familiares Ru- rais (ARCAFAR), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Diferentemente de outros animais, o homem e a mulher se
Agricultura (CONTAG), Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar compreen- dem dentro de uma prática social e conseguem refletir sobre sua
(FETRAF), Ministério da Previdência e Assistência social (MPAS), Comissão realidade. O encontro do ser humano com sua humanidade significa o ser
Pastoral da Terra (CPT), Movimento de Mulheres do Campo (MMC) e encontrar-se con- sigo mesmo, pela sua parte humana e igual. Não pelo
Universidades. caminho inverso, do que é desumano e desigual. Nesse movimento, acontece a
A sociedade civil organizada em movimentos sociais vem tentando pre- conscientização, o resgate da autoestima e da segurança, quando muitos não se
encher o vazio deixado pelo Estado no que concerne à educação do campo, acham capazes. O que se havia perdido emerge e ai acontece à
rea- gindo às exclusões e lutando por políticas públicas que atendam com transformação esperada.
eficiência a demanda dessa educação, garantido o acesso de qualidade e Quando o homem se percebe nesse fenômeno, a busca de ir além
fortalecendo a identidade das mesmas. aconte- ce. Dialético e constante, o ser humano deixa o medo pelo domínio do
outro e passa a agir de forma consciente, clara e crítica, essencialmente

2 2
existindo para o seu próprio reconhecimento. Compreender o ser como
sujeito histórico é com-

2 2
preender que o homem é inacabado e inconcluso, assim, por mais consciência a garantia do voto universal e secreto, agora estendido às mulheres, a pluralidade sindical e o direito
à livre expressão. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/estado-
que tenha de si mesmo, esse processo não cessa. Sua percepção da realidade se
novo-1937-1945- a-ditadura-de-getulio-vargas.htm
amplia, o mundo que antes não existia, agora existe.
A característica da violência imposta, nos dias atuais, por homens
contra outros homens, é a desconstrução do humano no outro, onde
desconsidera o sujeito histórico e a historicidade do outro. A educação
potencializa o ser hu- mano a deixar de existir numa vida pré-humana para a
existência de uma vida humana. É acabar com a coerção. É romper com
paradigmas e crenças antes não questionadas. Quebrar estruturas significa
quebrar-se, sair do conforto, to- mar a responsabilidade de seus atos das
mãos de outros.

Agir contra o comando da autoridade, cometendo um pecado,


é, em seu aspecto humano positivo, o primeiro ato de liberdade,
isto é, o primeiro ato humano. (...) O ato de desobediência como
um ato de liberdade marca o nascimento da razão (FROMM,
1074, p. 37).

A Educação do Campo no conhecido “breve período democrático” 69


(1945-1964), aparece nas disputas de projetos políticos para o Brasil, com
a criação dos movimentos de educação popular. Esse período antecede a
ditadu- ra do Estado Novo70 (1937-1945). Pedagogicamente as orientações se
davam em torno de três eixos: pedagogia tradicional, pedagogia da Escola
Nova e as estratégias da educação popular com a máxima influência da
teoria de Paulo Freire. Compreender esse confronto como uma disputa
política pelo conceito

69 Com o fim da II Guerra Mundial e a deposição de Vargas, o país entra em um período


de estabilidade democrática que se prolongará por quase 20 anos. O governo de Marechal
Dutra (1946-1951), candidato apoiado por Getúlio, vai promover a realização de obras
importantes para os fundamentos de nossa infra-estrutura, graças aos saldos de divisas
acumulados durante a guerra. No entanto, os grandes dispêndios decorrentes desses
empreendimentos, somados a uma política de importação indiscriminada de bens supérfluos,
levarão o país a enfrentar novas dificuldades cambiais. Como medida saneadora, institui-se, em
1948, o sistema de licenciamento prévio das importações, favorecendo, dessa forma, os
produtores internos. Disponível em: http://
www.bb.com.br/portalbb/page3,8703,8714,1,0,1,6.bb
70 Getúlio Vargas assumiu a presidência do Brasil em 1934, eleito indiretamente pela
Assembleia Constituinte, quatro anos após a Revolução de 30. A constituição de 1934 marcou o
início do processo de democratização do país, dando sequência às reivindicações
revolucionárias. Ela trouxe avanços significativos como o princípio da alternância no poder,

2 2
que nortearia o desenvolvimento no Brasil é esclarecedor para a análise
histórica da cultura popular dos anos 1960.
A formação realizada pelos Movimentos Sociais (MS) é importante
para despertar novos atores. Essa formação crítica e política trabalhada em
seus es- paços faz com que o indivíduo saia de sua parte, visualize o todo e
retorne para si, relacionando sociedade e realidade. Esse é um exercício
que exige muita sofisticação mental, o que é imprescindível na luta social.
A ação revolucionária construída coletivamente é um processo educa-
tivo. Os educadores e educadoras militantes têm uma tarefa educativa:
cons- cientizar o povo de sua opressão e não manipular ou tomar o lugar do
opressor. No momento em que acontece essa relação equivocada, o fenômeno
opressor/ oprimido permanece reproduzido ainda à esfera do opressor em sala
de aula. A lógica da quebra na relação desumana é não haver opressor ou
oprimido, em vez disso, uma relação horizontal, franca, direta e objetiva.
Nessa perspectiva, é que desvelamos o aparelhamento do Estado, junto
á escola dualista, como ferramenta de perpetuação de desigualdades sociais,
im- posição da ideologia burguesa, mantendo a classe trabalhadora
marginalizada e sem compreensão de sua formação para o trabalho.

Enquanto aparelho ideológico, a escola cumpre duas


funções: contribui para a formação de força de trabalho e
para a inclu- são de ideologia burguesa. Cumpre, assinalar,
porém, que não se trata de duas funções separadas. Pelo
mecanismo das práticas escolares, a formação da força de
trabalho se dá no próprio pro- cesso de inculcação ideológica.
Mais do que isso: todas as práti- cas escolares, ainda que
contenham elementos que implicam um saber objetivo (e não
poderia deixar de conter, já que sem isso a escola não
contribuiria para a reprodução das relações de produ- ção) são
práticas de inculcação ideológica. A escola é, pois, um aparelho
ideológico, isto é, o aspecto ideológico é dominante e comanda
o funcionamento do aparelho escolar em seu conjunto.
Consequentemente, a função precípua da escola é a
inculcação da ideologia burguesa. Isto é feito de duas formas
concomitante: em primeiro lugar, a inculcação explícita de
ideologia burguesa; em segundo lugar, o recalcamento, a
sujeição e o disfarce da ide- ologia proletária (SAVIANI,
1987, p. 31).

2 2
Enquanto a formação da classe trabalhadora é direcionada para a do Campo que tenta agregar um modelo de educação baseado na realidade dos
quali- ficação e inserção no mercado de trabalho condicionado a atender as camponeses, surgiu a partir dos anos de 1960.
demandas elitistas, a formação burguesa busca apreensão de conhecimentos e
saberes para a vida, ocupando superposições e fortalecendo as hegemonias e
oligarquias nas es- feras municipais, estaduais e federais, de âmbito público e
privado. Obscurecidas as intencionalidades, desmistificadas nas análises entre
seu discurso e sua prática. A intencionalidade é algo sempre presente em
qualquer tomada de ação, podemos destacar na evolução educacional em que
historicamente foi consti- tuído o Brasil, o demérito referente aos Povos
Tradicionalmente do Campo. A Educação Escolar, desde 1934 sempre foi
mencionada com a importância de- vida, entretanto o Brasil por se tratar de
um país originalmente agrário, passou sem nenhuma menção sobre a
Educação Rural71 nos textos constituintes de
1824 e 1891. (RIBEIRO, 2010)
Ao perceber como a Educação do Campo é ignorada, entendemos a in-
tenção com que se organiza o sistema educacional brasileiro. O fator
econô- mico, através da vinculação com o setor agrário e apoiado pelo
latifundiário se utiliza de trabalho escravo ou análogo ao escravo para o
controle da população campesina.

Na luta contra os problemas da sociedade e na luta por outro(s)


mo- delo(s) social(is), constituem lutadores e lutadoras por um
mundo melhor. É assim, que o MS se torna, através de sua
dinâmica, um agente para uma sociedade mais justa e fraterna.
E essa é, e deve ser cada vez mais, a pedagogia que surge da
luta e que torna o MS um agente educativo (CALDART,
PPALUDO e DOLL, 2006).

A articulação dos Movimentos Sociais no campo foi fundamental para


que dela surgissem outras propostas de educação. Uma educação que atendesse
realmente as necessidades e especificidades demandadas não só no campo,
mas para os povos do campo, respeitando seus conhecimentos e que fosse
constitu- ída também por pessoas que moram e vivam no campo
valorizando-os como sujeito social e não marginalizados por suas condições
ou modo de vida.
71 A Educação Rural consiste na oferta de ensino na mesma modalidade da que
é oferecida as populações que trabalham e residem nas áreas urbanas, não havendo
nenhuma tentativa de adequar a escola rural as características dos camponeses ou dos
seus filhos. (CALDART, et al 2012, p. 293). Vale ressaltar que o termo Educação
2 2
A marginalidade é, pois, um fenômeno acidental que afeta educativo, o diálogo.
in- dividualmente um numero maior ou menos de seus
membros o uqe, no entanto, constitui um desvio, uma 72 http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/207/a-voz-do-campo-318118-1.asp
distorção que não só pode, como deve ser corrigida. A
educação emerge ai, como um instrumento de correção dessas
distorções. Constitui, pois, uma força homogeneizadora que
tem por função reforçar os la- ços sociais, promover a coesão
e garantir a integração de todos os indivíduos n corpo social.
Sua função coincide, pois, no limite, com o fenômeno da
marginalidade. Enquanto esta ainda existe, devem se
intensificar os esforços educativos; quando for supera- da,
cumpre manter os serviços educativos num nível pelo menos
suficiente para impedir o reaparecimento do problema da
margi- nalidade. Como se vê, no que respeita às relações entre
educação e sociedade, concebe-se a educação com uma ampla
margem de autonomia em face da sociedade. Tanto que lhe
cabe um papel decisivo na conformação da sociedade evitando
sua desagregação e, mais do que isso, garantindo a
construção de uma sociedade igualitária. (SAVIANI, 1987,
p. 8)

O campo ainda é visto como uma parcela marginalizada e atrasada


da sociedade. O número de pessoas não alfabetizadas é alarmante, isso
decorre da ausência de condição do camponês para estudar. O cenário se
multiplica em todo o Brasil. Segundo dados do Censo Escolar Inep/MEC,
ao longo da última década, o número de escolas do campo brasileiras sofreu
uma redução de 31,46%, ou seja, 32.512 unidades a menos. De 2012 para
2013, o levanta- mento indicou 3.296 escolas do campo a menos no
Brasil72.
Outro fator é a falta de profissionais qualificados para trabalhar na
Edu- cação do Campo. Atualmente, muitos professores e professoras não
estão aptos a lecionar ou tem muito baixa escolarização, isso implica
diretamente no acesso e permanência da escola, potencializando a evasão
escolar ainda mais. Outro complicador é a distancia da moradia à escola,
resultando em muitos casos, frequência apenas nas séries iniciais.
A sensibilização é uma ferramenta extremamente eficaz para a consoli-
dação de um grupo específico em formação. Uma das formas de trabalhar
essa ferramenta é socializar entre o grupo problemas concretos da vida
cotidiana. Os pares aos poucos vão se formando na tentativa de resolver esses
problemas. Nes- sa dinâmica se apresenta o mais importante do processo

2 2
Sendo fundamento do diálogo, a problematização dessas vivências e re- va, dialético e dialógico, fora e dentro dos sujeitos. O processo educativo se dá
alidades vão sendo desveladas através do diálogo. A essencial tarefa dos nesse momento de discussão e encontro com a realidade.
sujeitos é perceber em qual posição estão nesse fenômeno, que possam O texto governista de universalização da educação é facilmente desfeito
verificar-se na relação de dominados. Esse exercício incessante tem como fio quando se choca com a enfática falta de matrículas em todos os níveis do siste-
condutor a pro- moção da inquietação, auto-conhecimento e despertar crítico. ma escolar e quando apenas uma parcela da população tem acesso a ela. Como
É olhar o mundo de um viés antes nunca percebido. É quebrar com se essa parte da população pertencesse a outro Brasil. Na verdade, acreditamos
paradigmas, é romper com o silencia e a imobilidade física e intelectual. que a Pedagogia Histórico-Crítica resgata a cidadania dos desumanizados, po-
Suscitar uma educação diferenciada para crianças e adultos, é emergen- tencializa a consciência dos manipulados e faz reagir os abatidos. A esperança
cial para a estruturação de uma sociedade sadia. O modelo que ai se encontra, e a fé na ação humana são indispensáveis para o bom combate. Sem essas
não atende às reais necessidades e particularidades da população atendida, ferra- mentas, o educador ou a educadora nada mais é que um ativista.
tanto na cidade quanto no campo. Percebemos a formação docente como O papel da escola é justificar as desigualdades sociais, o sofrimento e a
fonte de atuação na educação possibilitando um modelo de educação eficaz, docilização histórico de homens e mulheres, naturalizando a alienação, o estra-
elucidando questões micros e macros das populações diversas do território nhamento do trabalhado, a precarização da profissão docente, a estratificação
brasileiro, res- saltando a realidade, sociedade, política, economia, família, da vida pelos modos de produção. Os questionamentos se dão dentro uma
religião, relação de trabalho, relação de poder, dentre outros. espontaneidade, por trás de uma intencionalidade.

Considerações finais Referências

A educação traz conflito e desequilíbrio, a liberdade e igualdade BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista, 2a edição. Rio e Janeiro,
defendi- das na sociedade atual e os espaços democráticos não acontecem em editora Zahar, 2012.
si ou por si só. Naturalizar e brutalizar o trabalho estratificado pelo capital BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. São Paulo: Editora
amplia o modelo em que homens e mulheres são tratados como escravos e Brasiliense, 1981.
servos. Impulsionar as críticas ao novo modo de produção, a visão social de CALDART et al, Dicionário da Educação do Campo, Rio de janeiro, São Paulo:
mundo e o poder político que se firma, se relaciona com a necessidade de uma Escola Política de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
nova estrutura de ensino.
CALDART, Roseli Salete. Paludo, Conceição. Doll, Johannes. Como se formam
No século XX, a luta dos movimentos reivindicatórios de os sujeitos do campo¿ idosos, adultos, jovens, crianças e educadores, Brasília:
contestação e busca pelo poder político, fortaleceu a luta por condições PRONERA
dignas de vida e pela possibilidade de afirmação das identidades. Nessa : NEAD, 2006.
relação é que surgem concepções diferentes de educação. Podemos analisar a FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005.
educação por dois di- recionamentos: o liberal e o socialista. O modelo
. Pedagogia da Esperança: Um encontro com a Pedagogia do Oprimido, 17a
liberal incorpora dentro de sua lógica a socialização para a submissão e para edição. - São Paulo, Paz e Terra, 2011.
a aceitação e reprodução da so- ciedade dividida em classes. O modelo
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito, Petrópolis, 4a
socialista propõe uma educação crítica, problematizadora da ordem social,
edição. Vozes Ltda, 1999.
despertando homens e mulheres na atuação da construção de outro projeto de
LESSA, Sérgio. TONET, Tonet. Introdução à filosofia de Marx, 2a edição. São Paulo:
sociedade.
Expressão Popular, 2011.
Nesse momento, os movimentos sociais, são importantes no processo,
pois através dessa organização, essas estruturas incompreensíveis e intocáveis FROMM, Erick. O medo à Liberdade, 9a edição. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1974.
por muitos, são trazidas à luz. O movimento se dá de forma individual e coleti-
2 2
RIBEIRO, Marlene. Movimento Camponês, Trabalho e Educação liberdade,
autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana, 1a edição, São
QUILOMBO: CONCEITOS E DEFINIÇÕS COM
Paulo. Expressão Popular, 2010. VISTA A EDUCAÇÃO DAS COMUNIDADES
SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 10. ed. São Paulo: QUILOMBOLA E DO CAMPO
Cortez, 1991.
Marlene Pereira dos Santos
. Escola e Democracia. 39. ed. Campinas: Autores Associados, 2007.
. Pedagogia Histórico-Crítica: Primeiras aproximações. 9. ed. Campinas:
Autores Associados, 2005.
VEIGA, Ilma Passos Alencastro. A prática pedagógica do professor de didática. Introdução
Papirus Editora, 1994.
O conceito de quilombos e a percepção política e social sobre estas
populações negras denominadas de quilombolas variaram através dos tempos,
mas teve um considerável papel político para o movimento negro no
Brasil. Os estudos e as publicações de livros sobre quilombos são
significativos, sendo que podemos citar as contribuições de Clovis Moura
(1959), como veremos mais adiante, como um marco importante e
histórico nesta área de conheci- mento. Este artigo apresenta a importância
dada ao conceito de quilombo em diferentes momentos da história brasileira
e as variações de percepção sobre o significado das comunidades de quilombos
para os movimentos negros. São apresentados também, os meios pelos quais
estas organizações impulsionam a sociedade nesta discussão. Quilombo é um
termo associado aos estudos sobre comunidades negras rurais e suas
identidades.
O conceito de quilombos, na atualidade, cita uma formulação guiada pe-
los conceitos de patrimônios materiais e imateriais, sendo definido e reconheci-
do com base na cultura quilombola. Neste artigo, são revistos marcadores desta
transformação conceitual. Para tais entendimentos, definiu-se como objetivo
conceituar quilombo, território, identidade, patrimônio cultural, pois estes
ele- mentos vêm estabelecer elos fundamentais para o entendimento e a
valorização da história da população negra quilombola e da inserção digna
desses na edu- cação brasileira. A sociedade brasileira apresenta uma
diversidade de formação étnica e também de perspectivas sobre a história e a
cultura, entretanto, devido a uma educação de valores eurocêntrica, essa
diversidade não é apresentada à sociedade, nem seus conceitos são tratados na
educação formal. Pesquisar sobre quilombo e ser professora formadora do
programa Escola da Terra instigaram a abordar este tema. Por se constituir um
marco histórico que deve estar presente de forma positiva na história, na nossa

2
sociedade e, principalmente, na educação.

2
A formação histórica do Brasil, nestes quinhentos últimos anos, é bas- principalmente, pelas suas teses pioneiras.(FERREIRA,(2001),In: Luiz Gama (183O-1882).
tante diferente daquela ocorrida nos países europeus, devido à existência de
um sistema de produção escravista criminoso73, de duração que quase 350
anos. Neste período, se estabeleceu a importação compulsória e sistemática de
tra- balhadores africanos para o desenvolvimento econômica da colônia
portugue- sa e, depois, do império brasileiro. A colonização do Brasil foi
realizada por uma massiva vinda de africanos e a reprodução dos seus
descendentes, o que constituiu uma estrutura social, colocou em oposição
africanos e europeus. No campo das relações intercontinentais, existiu,
também, durante 400 anos, uma intensa luta entre nações africanas e europeias,
resultando num grande sistema colonial de dominação dos povos africanos
pelos europeus. Como consequên- cia desses sistemas de dominação foi
produzida uma ideologia de inferiorizar as populações africanas e descendentes
e as suas culturas com relação as europeias. Como um dos resultados dessa
ideologia ocorre também uma desqualificação social dos povos africanos e
descendentes para os trabalhos realizado nos diver- sos setores da produção
escravistas. Trabalho de negro tornou-se sinônimo de trabalho feito sem
qualidade. Esses processos históricos de tornar inferior e de desqualificar
socialmente é o que podemos denominar como racismo contra as populações
negras. A escravização de africanos se deu em período menor em todos os
demais países das Américas, sendo, portanto, o Brasil o país que por mais
tempo e de forma mais intensa praticou a exploração dos trabalhadores
aprisionados no continente africano e dos descendentes desses. Esse processo
produziu uma profunda desigualdade social na estrutura social brasileira entre
as populações descendes de africanos, populações denominadas como de
negras e negros, em relação às populações de descendentes de europeus,
denominadas brancas e brancos. Em respostas à desigualdade é que emergiram
os movimen- tos sociais das populações negras. Deixamos claro que negros e
brancos são apresentados neste texto sobre a ótica da história social e não
como raças bio-

73 Racismo criminoso é um conceito consagrado, sendo que as Nações Unidas, em caso de leis
anti humana, adota o conceito de revisão humanitária, incluindo indenizações. As populações
que sofrem o sistema dão a sua definição, vide o holocausto judeu, endossado pelas leis injustas
da Alemanha. Portanto, o conceito de escravismo criminoso é legítimo e nada anacrônico.
Mesmo no período do escravismo no Brasil, o jurista Luiz Gama advogava sobre a injustiça
e a criminalidade dos atos praticados contra os negros e propôs que o escravizado que
matava o “senhor” o fazia em legitima defesa, o que configura o escravismo como crime contra
a pessoa. Nesse sentido, Luiz Gama foi diplomado pela USP, pós morte, como advogado,

2 2
lógicas, portanto, mesmo tendo ocorrido as misturas populacionais, os grupos O conceito de quilombo na história do Brasil apresenta várias
resultantes têm a polarização social entre os denominados negros (mulatos e conota- ções, desde reunião de negros fugidos para o mato, até o atual
morenos) e os denominados brancos. significado base- ado na constituição brasileira(SANTOS, 1995). Os
Como explica o historiador Walter Rodney (1942 – 1980) (RODNEY, quilombos ganharam um
1972), nestes dois grandes processos, do escravismo criminoso nas
Américas e da colonização europeia na África, o continente africano ficou
subdesenvol- vido, retrocedeu na sua dinâmica econômica, social e política
e a Europa se expandiu. As reações aos escravismos e aos processos de
escravização tiveram uma intensa participação das populações africanas e
afrodescendentes,que, em parte, produziu a fuga dos locais de trabalho e a
organização de um sistema de comunidades de auto defesa, conhecido
como quilombos.
Nesse texto, apresentamos, de forma introdutória, o desenvolvimento
do conceito de quilombo, a presença de quilombos no Ceará e as forma de
como os sistemas de educação deram respostas aos movimentos negros no
tratamento sobre a educação quilombola. O artigo compreende os seguintes
subtítulos:
O conceito de quilombo e apontamentos sobre sua constituição no esta-
do do Ceará; A Evolução sobre as ideias de quilombos na história do Brasil;
A identidade coletiva enquanto fator de conhecimento; Memórias de negros
qui- lombolas com base na literatura sobre comunidades negras; Território e
territo- rialidade; Salvaguardando: o Patrimônio cultural material e
imaterial; In- cursão nas Diretrizes curriculares nacionais para educação
escolar quilombola.

O conceito de quilombo e apontamento sobre


sua constituição no estado do Ceará

Quando se pensa ou fala em quilombo, logo nos reportamos para um


lu- gar no meio dos matos, para onde os negros escravizados fugiam, mas
quilombo é mais do que espaço físico, que nos leva a pensar e buscar
subscrever um novo conceito a partir da educação e das relações étnico-
raciais. Não só como local de fuga ou resistência, mas como busca espacial,
é que, por todo o país, agru- pamentos negros rurais, suburbanos e
urbanos, se construíram ao longo dos anos, formando um território que é
social- histórico, através da manutenção e reprodução de um modo de vida
culturalmente próprio.

2 2
estatuto novo na história política brasileira com o seu reconhecimento tidade (DANTAS, 2009, p. 48)
como Comunidades de Remanescentes de Quilombos na Constituição de
1988.
Vemos a importância dos quilombos como lugar de resistência, de lutas,
e sobre tudo lugar de africanidades e negritude.Negritude, conceito que
surgiu na década de 1940, é uma forma política de auto determinação e
valorização da população negra, que podemos entender como um conceito
que trata a cultu- ra e a história numa perspectiva da qualificação social que
tinha sido roubada pelas teorias da dominação racista. A perspectiva da
negritude implica numa revisão da história escrita no ocidente sobre as
populações negras no mundo e isto impacta a reformulação do conceito de
quilombo e que foi muito nutrido pelas práticas políticas e culturais dos
movimentos negros devido à necessidade de auto-reconhecimento das
populações negras e suas especificidades no âmbito do movimento social. Ser
valorizado e respeitado socialmente foi sempre o dese- jo das populações
negras no Brasil e expresso nos diversos movimentos negros. Sobre as origens
da palavra quilombo, podemos encontrar algumas in-
formações, sendo a mais conhecida a do professor Kabengele Munanga:

A palavra Kilombo é originária da língua banto umbundo, falada


pelo povo ovimbundo, que se refere a um tipo de instituição
sociopolítica militar conhecida na África Central, mais especifi-
camente na área formada pela atual República Democrática
do Congo (antigo Zaire) e Angola. Apesar de ser um termo
um- bundo, constitui-se em um agrupamento militar composto
pelos jaga ou imbangala (de Angola) e os lundos (do Zaire) no
século XVII (MUNANGA, 2004, p. 00).

Das origens históricas africanas às definições atuais, podemos ver que


não pode ser reduzido apenas ao passado, sendo uma boa definição a seguinte:

Quilombo, ou melhor, reminiscência não é coisa do passado,


está em movimento no processo histórico e apresentam pro-
blemas sócio-econômicos, jurídicos contemporâneos. Preci-
sam ser devidamente reconhecidas na atualidade histórica e
não estereotipada ou negada suas permanências que na lógica
histórica foram adaptadas, revigoradas como todas as histórias
em interação com os tempos, que sempre foram dinâmicas. O
reconhecimento histórico é fundamental tanto para obtenção
de direitos sociais como para o processo de construção de iden-

2 2
A definição acima é resultado de uma longa construção de ideias e con- comu- nidades rurais tradicionais e diz que são comunidades que no passado,
ceitos que veremos adiante, sendo que a origem de Quilombo como uma realizaram
pa- lavra africana tem uma importância, pois marca uma continuidade
histórica, vem do kilombo, com vários significados nas sociedades africanas.
Segundo DOS ANJOS (2006, p. 46), “a palavra quilombo tem origem na
língua banto e se aproxima de termo Congo, significa “lugar para estar
com Deus”. DOS ANJOS (2006) ressalta essa sacralidade na luta que os
negros tiveram que em- preender para manter-se nas terras que eles
conquistaram:

Na Lei de Terras do Brasil, de 1850, os africanos e seus


descen- dentes foram excluídos da categoria de brasileiros e
classificados apenas como libertos. Mesmo que tivessem
comprado, herdado ou recebido terra em doação, eram
frequentemente expulsos dos territórios escolhidos para viver.
Assim, para o povo quilombola a terra sagrada e comunitária
passou a ter outro significado: a luta para mantê-la,
exatamente como faziam os seus ancestrais (ANJOS, 2006, p.
62).

Andrewes (2007) chama a atenção para o fato da Colômbia e do


Brasil serem os dois países da America Latina a terem uma lei, que, mesmo
de forma capenga, garante proteção às terras de comunidades negras e institui
ensinos afros:

Na Colômbia, os ativistas negros orgulham-se de ter


conseguido proteções constitucionais para as terras de
propriedade dos ne- gros (assim como a pesquisa e o ensino
sobre a história e sobre a cultura afro-colombianas, obrigatórios
por lei federal), mas teme que com o desenvolvimento
econômico nas planícies florestais do Pacífico, as leis não
sejam adequadamente cumpridas e as famílias negras percam
as terras em que caçaram, mineraram e cultivaram durante
gerações (ANDREWES, 2007, p.224).

Na Constituição brasileira de 1988, o direito das comunidades de


qui- lombo foi consolidado dentro do item comunidades rurais e comunidades
tra- dicionais. A formulação de comunidades tradicionais foi baseada no
conceito de patrimônio histórico e cultural.
A nossa Constituição reconhece quilombo dentro do conjunto das

2 2
o enfrentamento à sociedade escravista. Trata-se de populações com especificida- africana. Portanto mocambo é tratado como sinônimo de quilombo.
des históricas e culturais, mas inseridas dentro da categoria população negra.
O reconhecimento dos remanescentes de quilombo indica uma história
de movimentos sociais de luta pelo direito à terra e ao patrimônio cultural.
Quilombos ou comunidades de quilombo fazem parte das reivindicações his-
tóricas, econômicas, políticas e sociais pautadas pelos movimentos negros. Os
quilombos têm aspectos espaciais, temporais e culturais próprios. Constituem
uma herança africana que, ao longo de décadas, realizam, naturalmente, no
fazer de todos os dias, transmissões de conhecimentos técnicos, científicos, re-
ligiosos e culturais de origem africana. No estado do Ceará, dada a formação
ideológica de negação da presença negra na constituição histórica local, o
reco- nhecimento da existência de comunidades de quilombos ou de
comunidades negras rurais é muito recente, embora, desde a origem do
povoamento do es- tado, se noticie a existência de quilombos (NOBRE,
1988). Hoje, eles fazem parte, sobretudo, do discurso social atual, já sendo
reconhecidas mais de 80 comunidades no Ceará.
Através da diversidade de processos, os negros africanos e seus descen-
dentes construíram comunidades no meio rural brasileiro ao longo dos séculos.
E com a Constituição Federal de 1988, por meio do artigo 68 das Disposições
Transitórias, o estado brasileiro buscou reconhecer às comunidades remanes-
centes de quilombos o direito de propriedade das terras que ocupam:

Art.216. Inciso. S5-Ficam tombados todos os documentos e os


sí- tios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos. Disposições Transitórias - Art. 68- Aos
remanescentes das comu- nidades de quilombos que estejam
ocupando suas terras são reco- nhecidas a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos
(CONSTITUIÇÃO DO BRASIL, 1988).

O decreto 4.887/03 regulamentou os procedimentos para a


identifica- ção, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por esses grupos. A publicação desse decreto institui também que a
caracteri- zação dessas comunidades como remanescentes de quilombos deve
ser atestada mediante auto-definição dos membros das próprias
comunidades.
Estes decretos reconhecem a denominação histórica de quilombos ou de
mocambos como lugares de moradia de população negra ou de origem

2 2
Na prática, a titulação das terras é a última etapa de um processo em eram problematizadas.
três etapas. Somente a titulação garante o direito à propriedade da terra. Na
primei- ra etapa, é necessário o auto-reconhecimento, ou a auto-definição da
comuni- dade e a solicitação do reconhecimento pela Fundação Cultural
Palmares, órgão do ministério da Cultura. A ideia do reconhecimento é
baseada no recolhimen- to e organização do patrimônio cultural da
comunidade, sua memória coletiva e histórica. Obtido o reconhecimento na
Fundação Cultural Palmares, a etapa seguinte consiste na solicitação da
titulação no INCRA. O processo no INCRA depende de um laudo
antropológico, elaborado pelos antropólogos deste órgão. O laudo é um
documento resultante de um estudo sobre a história, a cultura e o uso do
território pela comunidade de quilombo. A dificuldade burocrática é a
demora deste laudo, devido ao número reduzido de profissionais de antro-
pologia. No caso do Ceará, existe apenas um antropólogo para todo o estado e
uma demanda de mais de trinta localidades, sendo necessário, em média,
um mês para cada laudo.
Vemos então que, para reconhecimento das suas terras, os
remanescentes precisam se auto-definir como quilombolas, o que também
significa percebe- rem-se como negros/as. Esta dificuldade é devido às
informações controvertidas do que é ser negro e às imposições e assimilação
do racismo e o menosprezo que atinge a sua cultura. Aos que foi dada a
possibilidade de perceber a importância de sua cultura, já se colocam de
forma mais afirmativa e combativa perante a sociedade envolvente,
inclusive assumindo sua negritude. Assim, o desconheci- mento explícito do
texto do Artigo 216 da constituição de 1988 é relativizado pela prática de
valorização de suas manifestações culturais, reconhecidas como patrimônio
imaterial brasileiro.
O Ceará é um estado que construiu uma forte resistência da popula-
ção em se definir como negra ou descendente de negros. Mesmo com o censo
demográfico do IBGE indicando um alto índice de pretos e pardos (64%),
permanecem as declarações de que no Ceará não há negros. O fato de se acre-
ditar de forma ideológica que no Ceará não há negro implica que não teríamos
cultura negra e nem comunidades de remanescentes de quilombos.
No passado, o Instituto Histórico do Ceará foi uma das
organizações que trabalhou a ideia que no estado não haveria negros,
visto que a produção escravista tinha sido fraca em comparação com a dos
estados de Pernambuco e Bahia. A negação oficial da existência de negros no
estado era dada pelas pesqui- sas vindas deste órgão e as suas afirmações não
2 2
A discussão sobre a população negra no Ceará tomou força a partir na com nomes diferentes. O nome mais comum nas Américas é o de Marrons
de 1980, com os movimentos negros e, principalmente, com o Movimento
dos Agentes Pastorais Negros – APN, particularmente, entre 1985 e 1995.
RATTS (2009) lembra que foi um período de (re) nascimento do
movimento negro:

[...] na década de 80 nasce o movimento negro no estado, o


que desencadeia um processo de afirmação da presença negra
nos bair- ros e favelas de Fortaleza e em vários municípios do
interior atra- vés, principalmente, da formação de grupos.
(RATTS, 2009, P.19).

A partir da década de 1990, os movimentos negros passaram a enfatizar


as revisões da história do Ceará para combater as afirmações errôneas
realizadas pelos historiadores sobre a formação populacional cearense
enquanto branca ou indígena. Nesta revisão, foi produzido um número
considerável de dados e indicadores acerca da existência de produção
escravista e de concentração de trabalho escravo nas cidades e no campo.
Hoje, com a influência desses debates dos movimentos negros e a inter-
ferências de diversas instituições da sociedade, tais como Ordem do
Advogado, as universidades, os sindicatos rurais, os Coletivos de Professores
Negros, a As- sociação Brasileira de Pesquisadores Negros, o Conselho da
Participação Negras e as ONGs, já temos um movimento de comunidades
negras rurais que em de- terminado tempo histórico se auto-identificam como
comunidades de quilombo e passam a solicitar do estado e da federação direitos
presentes na constituição de 1988, notadamente, políticas de ação afirmativa.
Assim, encontramos cada vez mais comunidades negras cearenses
identificando-se como negras e quilombolas.
O quilombo também pode ser visto como parte do movimento social
rural, entre os movimentos que lutam pela posse da terra. Entretanto, a
pauta da luta dos quilombos difere da pauta da maioria dos movimentos rurais
e nem sempre sua caracterização como tal é evidente, pois ele não luta em
primeiro lugar pela reforma agrária. Para os quilombos, a luta contra o
racismo é tão im- portante como a luta pela terra. O combate ao racismo, a
obtenção de respeito social na região são lutas fundamentais das comunidades
de quilombo. O racis- mo, os preconceitos e as discriminações marcam muito a
vida das populações negras rurais.
Devemos ainda ver que quilombos apareceram em toda a América Lati-

2 2
ou Maroons na Jamaica, na maioria das ilhas do Caribe e Guianas fazendo estudos sobre comunidades de quilombos no sul do país e tornou-se
(BEZERRA, 2012). Palanques em Cuba e Panamá, também em Cuba usa o uma das principais referências para a discussão das identidades e cidadania das
termo cimarrón. comunidades negras

A Evolução sobre as ideias de quilombos na história do Brasil

No período escravista, quilombo ou mocambos tinham, como


definição, os ajuntamentos de negro, que eram os conjuntos com mais de
cinco casas ou malocas. Essas definições eram dadas pela sociedade
escravista para justificar a repressão pelas autoridades (REIS; GOMES,
1996).
É provável que o antropólogo negro, baiano, Edson Carneiro, tenha
sido o primeiro estudioso sistemático da história do quilombo dos Palmares a
escrever sobre o assunto em 1947. O livro “O quilombo dos Palmares: 1630 –
1695” (CARNEIRO, 1947) contou com uma primeira edição muito festejada
pelos movimentos negros que estavam em grande evidencia no Rio de
Janeiro e em São Paulo, com importantes movimentos, como o Teatro
Experimental do Negro (NASCIMENTO, 1982), sendo reeditado em
1956 e 1958. Outro livro de importância e pouco conhecidos, que passou
despercebido do grande público, foi o “Reino de Palmares” escrito por M.
Freitas e publicado em 1954 pela biblioteca do Exército Brasileiro
(FREITAS, 1954).
Nas universidades brasileiras, foi a antropóloga Maria de Lourdes Ban-
deira uma das pesquisadoras pioneiras nos estudos sobre a identidade étnica
das comunidades negras rurais, tendo como base a geografia. A identidade
dos gru- pos negros adquire um enfoque de territorialidade, que configurou
uma situa- ção de autoridade e que demarca uma especificidade. As relações
sociais passam a ser analisadas com um recorte racial e a base territorial como
determinante é marcada pelo uso da terra. São incluídos os modos de
produção e sistemas de trocas, relações sociais e políticas com as
comunidades vizinhas e as formas de sociabilidade internas, as festas e
expressões culturais, bem como a memória so- cial. Maria de Lourdes
Bandeira reúne e conecta todos os fatores considerados hoje determinantes na
compreensão das comunidades de quilombos. Realizou seu estudo pioneiro
da territorialidade negra de Vila Bela em Mato Grosso (BANDEIRA,
1988).
A professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Ilka
Boaventura Leite, através de um núcleo de pesquisas, vem, desde 1991,
2 2
rurais e bairros urbanos (LEITE, 1991). O Núcleo de Estudo sobre Identidade cultural e de bens materiais e imateriais. Território, cultura, identidade e
e relações interétnicas (NUER) realizou um número importante de projetos, es- história são as categorias
tudos e publicações, que contribuiu decisivamente para as metodologias, enfo-
ques teóricos e empíricos, sobre os laudos de reconhecimento das comunidades
de quilombos (LEITE, 1996).
Os estudos geográficos voltados para quilombos exerceram a tarefa de
de- terminar a grandeza numérica e as densidades das comunidades de
quilombos nas diversas regiões do Brasil. Na geografia, neste trabalho, se
destaca o professor da Universidade de Brasília, Rafael Sanzio Araújo dos
Anjos (ANJOS, 2005, 2011). A definição de quilombos ou de remanescentes
de quilombos na atuali-
dade é vinculada à dimensão territorial, ou seja, o território define a comunida-
de de quilombo. Os territórios para a definição das comunidades de quilombo
podem ser retirados dos enfoques dados por Santos (1996) para espaço geográ-
fico e território que, por sua vez, se apoia na definição de patrimônio cultural.

Desta maneira, com a produção humana há a produção do es-


paço. O trabalho manual foi sendo relegado a segundo plano e a
maquinaria foi sendo cada vez mais usada até chegar a automa-
ção. A produção do espaço é resultado da ação do homem
agindo sobre o próprio espaço, através de objetos, naturais e
artificiais. Cada tipo de paisagem é a reprodução de níveis
diferentes de for- ças produtivas, materiais e imateriais, pois o
território também faz parte do rol das forças produtivas
(SANTOS, 1996, p. 64).

Entre os seres humanos e a natureza, existe uma relação que é cultu-


ral, política e técnica, assim, o espaço geográfico é um espaço historicamente
construído.
O território ganha sua importância na definição de configuração
terri- torial. A configuração territorial é para Milton Santos (1996) uma
totalidade que articula o espaço geográfico a um conjunto da sociedade. O
território tem valor econômico, não apenas pelas suas partes, mas pelo todo da
sociedade que classifica, o torna institucional e atribui a ele valor social e
econômico.
Na atualidade, algumas definições conceituais de comunidades de qui-
lombos ou de remanescentes de quilombos são produzidas como respostas
à necessidade de solução de problemas estruturais, históricos, culturais e
jurídicos dessas populações, havendo uma identidade de patrimônio
2 2
mais comumente presentes na discussão conceitual de quilombos como patri- direitos sociais.
mônio histórico ou cultural.
O conceito de quilombo foi pensado no campo da identidade
cultural, do território e da permanência histórica. O termo patrimônio cultural
pode ser visto como material e imaterial, mas ambos ligados à produção da
identidade e da territorialidade (LARAIA, 2004). Embora o pensamento
nacional predo- minante no campo de patrimônio cultural tenha trabalhado
por muito tempo com a ideia de monumentos e a ideia de patrimônio
material, visando à pre- servação, hoje essas noções foram ampliadas e
formatam um conceito de patri- mônio cultural fundamentado na referência
aos processos culturais. Ressalta-se que a preocupação com a construção de
um adequado conceito de patrimônio incide na discussão entre a nação, a
identidade e a territorialidade nacionais. As- sim, então, identidade e
territorialidade são dois requisitos fundamentais para a referência cultural e
esta, por sua vez, para os conceitos ampliados do que vem a ser o patrimônio
cultural material e imaterial. Essa referência cultural tem forte vinculação
com a relação de pertencimento no sentido de “nossa identidade” “nossa
territorialidade”.
Atualmente, devido às novas percepções sobre comunidade negras
rurais e à definição de quilombos e remanescentes de quilombos, temos
visto que comunidades rurais e “urbanas,” que, antes se viam como mestiços
ou brancos, estão se definindo como negras, passando a ter uma consciência
política e afe- tiva de cor negra, configurando-se como famílias negras. Este
fato está muito presente na realidade recente do estado do Ceará. Desta
forma podemos con- cluir que os negros enfrentaram um passado difícil, seu
espírito de luta pela dig- nidade permanece e cria uma nova perspectiva,
marcando um novo tempo para a vida em comunidades negras rurais como
remanescentes de quilombos. Assim também buscam uma educação que
repeita e valorize sua história e cultura.

A identidade coletiva enquanto fator de conhecimento

A definição de identidade sofre na atualidade muitos ataques. Visto que


a identidade tem determinado a existência de grupos sociais diferenciados
e com direitos sociais diferenciados, surge um campo político de disputa
pela afirmação ou pela negação das identidades. Certamente, as identidades
não são fixas, são dinâmicas como a história. A identidade coletiva e
individual como aponta Ciampa (2002, p. 134) é um problema político e de
2 2
A questão das políticas de identidade de grupo envolve a Não se trata apenas, portanto, de convivência em uma sociedade, mas do
discussão sobre a autonomia (ou não), que se transforma para os
estabelecimento de laços comuns. Dentre estas ligações, a própria luta elabora-
indivíduos em indagações sociais sobre a autenticidade (ou não)
de identida- des políticas, talvez refletindo duas visões opostas, da como movimento social reforça os elos de identidade. No caso dos quilom-
dependendo de se colocar a ênfase na igualdade – uma bos, a identidade é reconhecida, sobretudo por apelo à história oral e à
sociedade centrada no es- tado – ou na liberdade – uma memória coletiva (SANTOS, 2010).
sociedade composta por indivíduos. Outra forma de abordar a identidade e sua formação é através do
reco- nhecimento do patrimônio histórico e cultural. O patrimônio
Desde o advento das Nações Unidas e da Declaração dos Direitos histórico e o di- reito à valorização desta leva a se reconhecer as identidades
Hu- manos, a confirmação da identidade de um povo funciona como individual e coletiva (NOUGUEIRA, 2008).
instrumento do direito de autonomia deste povo (NAÇÕES UNIDAS, ). Podemos pensar em definir comunidades de quilombo e remanescente
Porém, os direitos sociais das populações negras têm sido postos em discussão de quilombo como um território de identidade coletiva de uma população afro-
ou em contestação quando se afirma não existirem, no cotidiano da sociedade, descendentes, demarcada pela história social desta comunidade. Sendo que os
identidades negras brasileiras. Questionar quem é negro, o que é o negro, laços de identidade são descritos pela memória coletiva e pelas transformações
mostra a dificuldade de reconhecimento da identidade negra (SANTOS, da cultura do grupo social. Para tal, podemos fazer uso tanto da definição
2010). Para os movimentos negros e para as comunidades de quilombo, a de patrimônio cultural, como da história social comum nestas comunidades.
existência de uma identidade coletiva, cultural ou política é uma questão de Des- ta maneira, a identificação e reconhecimento das comunidades de
sobrevivência. Da existência da identidade surgem os marcos de valores quilombos poderia ter forte apelo à história coletiva aos laços de identidade
culturais e sociais comuns. Dela são reconhecidos os direitos sociais e civis. entre os mem- bros e uso comum do território.
A identidade tem sido discutida ao longo da história do conhecimento Quilombos e comunidades de quilombos ou de remanescentes de
humano por diversas correntes de pensamento. Uma dela é a corrente da psi- qui- lombos são movimentos sociais rurais, que se enquadram na nomenclatura
cologia social, em particular, a vertente da psicologia sócio-histórica (SILVA, dos movimentos sociais dos anos de 1980. Embora já existentes desde épocas
2000; CIAMPA, 2002). A identidade tem a ver com o psiquismo humano muito anteriores, estes movimentos sociais somente recebem visibilidade com
e com as formas de vida através da história e da formação da sociedade. A a cons- tituinte, dentro da ótica dos movimentos negros. E vista à teoria dos
identidade implica na fixação do indivíduo e dos grupos de indivíduos ao movimen- tos sociais, podemos classificá-los como movimentos sociais rurais
meio físico. de luta pela terra (LEITE, 2004, p. 83).
Silva (2000) ressalta a importância das relações de poder, de cultura
e das relações sociais na formação da identidade, na sua fixação ou na sua Memórias de negros quilombolas com base na
de- sestabilização. No presente, temos os movimentos contrários às literatura sobre comunidades negras
comunidades de quilombo, forçando a desestabilização da identidade
quilombola. Os argu- mentos sobre a mestiçagem também são formas de Muitos trabalhos sobre comunidades tradicionais e comunidades de qui-
contestação da existência de uma identidade quilombola. Na fixação da lombos trabalham o problema da memória sempre como parte da cultura.
identidade social do grupo, Silva afirma que: No entanto, as especificidades desta memória dentro de cada cultura não
são tra- tadas. A maioria dos trabalhos de pesquisa parte das referências dos
é necessário criar laços imaginários que permitam ligar pesso- problemas conceituais sobre os temas da memória e da história em sociedades
as que sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem europeias (BERGSON, 1985; HALBWARCH, 1990). Sendo que o
nenhum sentimento de terem qualquer coisa em comum (Silva,
primeiro autor tra- ta a memória como um processo mental do indivíduo e
2000, p.85).
com pouca relação

2 2
com os fatos sociais; e o segundo, ao contrário, pensa a memória como mória, que opera sobre a ideia de pertencimento ou não a determinada realida-
uma construção coletiva e representativa das estruturas sociais, sendo as de social, econômica, política e cultural condicionada pelo bairro ou pela rua.
lembranças uma reconstrução do passado no presente. A memória coletiva Embora a mobilidade entre áreas diversas possa ser grande numa so-
é um fato so- cial, distinto da memória histórica que se apoia nos fatos ciedade e mesmo que os sistemas de informação sejam amplos, ainda a
institucionais. Temos, como principal referência brasileira, os estudos de Ecléa vida de uma maioria de pessoas é condicionada pelas áreas das localidades de
Bosi sobre a memória de velhos imigrantes (BOSI, 1979). Importante notar vida. Cada localidade teria, nos seus habitantes, as suas formas de cultura
que ela particulariza este acesso à memória com as especificidades de geração, coletiva e produziria as suas identidades, como também as suas memórias
memórias de velhos e a de grupo cultural, ou seja, de imigrantes italianos na coletivas. Portanto, as memórias são um produto dos grupos sociais. No caso
cidade de São Paulo. Ela nos apresenta um caminho para pensarmos na das popu- lações vivendo em áreas de maioria negra, temos a formação de uma
existência de uma memória de negros quilombolas. memória negra, relacionada à cultura negra local e correlacionada a
Neste trabalho, estamos estudando a memória coletiva de comunidades identidade negra. Estas memórias de negras e negros são, portanto, resultado
negras, que têm como particularidade a cultura negra. Estamos tomando as da vivência em ter- ritórios de maioria negra. Para a pesquisa
definições já reelaboradas na literatura sobre populações negras e comunidades afrodescendente, temos admitido e comprovado este processo em diversos
de quilombo. Quando nos referimos à memória de negros, geralmente, aparece trabalhos (SOUSA, 2010; SILVA, 2011; LIMA, 2001).
a pergunta, o que ela tem de particular? Esta memória difere de outras memó- Concluímos que existe uma forte ligação entre os elementos dos patri-
rias? Acreditamos que sim, devido à relação entre oralidade, memória e mônios culturais, materiais e imateriais, com a memória e as identidades coleti-
cultura. Cada grupo social tem a sua forma de trabalho da memória dado vas dos grupos sociais, no caso os grupos sociais afrodescendentes. São
pelos tipos de fatos sociais que têm maior importância nestas comunidades. proces- sos sociais (históricos e culturais) particulares, específicos e
Um exemplo marcante é o que se refere à memória de grupos urbanos negros irreprodutíveis em outras condições.
com relação ao samba e ao carnaval. A memória aparece nos relatos guiada Dentro dos parâmetros do conhecimento africano, esta relação entre me-
pelas composições dos sambistas (VARGENS, 2001). Portanto, a memória mória e patrimônio cultural é forte, assim, temos que a memória coletiva é um
coletiva de populações negras, devido à base cultural processada, será, neste reflexo em grande parte da existência de bens patrimoniais, sendo também
estudo, denominada como memória de negros quilombolas. a memória coletiva um patrimônio cultural.
Estamos trabalhando com a hipótese de que as memórias coletivas e
mes- mo a individual sejam produto da cultura realizada numa determinada Território e territorialidade
socieda- de, num determinado período histórico. Acreditamos que o
enfoque sobre os fatos (materiais ou imateriais) que são importantes ou não No caso das comunidades de quilombo, os conceitos de território e terri-
para os indivíduos guardam uma relação intima com a cultura. Sendo torialidade têm uma grande importância jurídica na atualidade, devido aos lau-
assim, a memória é, em parte, resultado do patrimônio cultural e histórico de dos antropológicos para titulação das terras terem, como referência, o território
uma localidade. Os bens culturais de uma rua compõem o acervo cultural ou em estudo e a abrangência do raio de ação das atividades da população
repertórios culturais dos seus habitantes e frequentadores. Este patrimônio de definido pela sua territorialidade.
bens culturais e históricos é parte das operações da memória e constitui Em relação à pesquisa sobre a história com base na oralidade e a
também uma das áreas de forma- ção das identidades coletivas. Quem morou a memória coletiva, os conceitos de território e territorialidade são elementos
infância toda numa determinada rua ou num determinado bairro tem importantes de delimitação das identidades e do patrimônio histórico e
impressões e lembranças comuns a outros moradores do mesmo período e cultural.
adquirem valores sobre estes fatos de forma muito semelhantes. Este Os conceitos de localidade e de lugar podem ser tomados, inicialmente,
conjunto de lembranças são fatos registrados na me- como designação geográfica e como uma relação primeira das relações sócio-

2 2
-espacial. O lugar tem vínculo com o cotidiano como uma noção intuitiva das semelhança de propósito entre os grupos sociais, entre os indivíduos num
relações entre as pessoas e o espaço geográfico. Que lugar você mora? Em que espaço geográfico. A
lugar você nasceu? Para Antonio Arantes (1994), embora sendo uma noção in-
tuitiva, o lugar carrega uma dimensão simbólica relacionada ao espaço
geográfi- co e ao território. O lugar surge da relação entre o ser humano ou a
coletividade e o espaço geográfico. O lugar pode ser definido como uma
porção geográfica que se distingue de outro a partir de elementos físicos e
simbólicos.
O território tem uma definição técnica. Podemos definir o território por
um conjunto inter-relacionado de atributos ou dimensões. Sendo o
primeiro de dimensão física. O território é dado pela topografia e nela os seus
atributos físicos territoriais. Neste, conta a noção de fronteira ou de limite do
espaço ge- ográfico. Segundo a menção populacional, o grupo social ou a
população que ocupa um espaço físico. No caso dos quilombos, procura-se
esta dimensão pela rede de parentesco determinados pelos laços de família. A
dimensão econômica se dá pelas formas de exploração econômica realizadas
em um espaço geográfi- co, o que é plantado e criado ou extraído de um
lugar num período de tempo. Podemos considerar uma terceira abordagem a
dimensão político-social-orga- nizacional que estão relacionadas com as
noções de propriedade e de uso formal dos bens materiais de uma localidade.
A quarta dimensão é a simbólica e envol- ve as práticas realizadas num espaço
físico, as dimensões das religiões, das festas e dos favores familiares, como
cemitérios e lugares de adoração. Esta dimensão simbólica é produto das
identidades coletivas e das representações sociais da po- pulação em um
espaço físico. A dimensão simbólica é imbricada na dimensão cultural. Os
territórios são conceituados do ponto de vista da construção his- tórica
realizada pela população interna e externa a um dado espaço geográfico. A
população externa também ajuda na determinação das diversas fronteiras de
um dado território. O território é uma noção dinâmica, está em constante mu-
dança, segundo as mutações da sociedade e de seus valores (BECKER, 1993).
Os territórios não são iguais, eles são particulares, têm a sua
personalida- de individual, portanto os territórios podem ser identificados pelas
diferenças entre uma conformação sócio-espacial e outras circundantes.
A territorialidade é uma noção abstrata sobre territórios, reflete uma
ideia de dialética sócio-espacial. Trata-se de uma interpretação de valores sobre
o que está sendo realizado ou pensado sobre determinado território. Tem um
sentido de solidariedade orgânica, uma solidariedade que funciona pela

2 2
territorialidade é uma noção semelhante à de nacionalidade, aquilo que nos
faz brasileiro é, sobretudo, um sentimento de pertencimento ao Brasil. A
territoria- lidade quilombola é aquilo que a faz sentir-se população
quilombola. Dimen- siona o espaço (abstrato) entre os que estão dentro e os
que estão fora, mesmo que por razões diversas utilizem o mesmo território. A
territorialidade regula relações como o uso comum de um rio ou lagoa entre
comunidades diferente e de origens diversas, mas com sentimentos também
diversos de pertencimento à localidade (ANJOS, 2011).

Salvaguardando: o Patrimônio cultural material e imaterial

Quando trabalhamos dentro de grupos sociais de cultura específica,


como é caso das comunidades de quilombo, grupos tradicionais ou em bairros
de maioria afrodescendente, os conceitos de repertórios culturais ou de
patri- mônio cultural são de utilidade, como nos mostra Maria Batista
Lima (2001) no seu estudo sobre o quilombo em Sergipe. O patrimônio
cultural é parte da história da população, determina marcadores que auxiliam
na produção da história local. O patrimônio cultural também é referência
na constituição da memória e da identidade do grupo social e, desta forma, é
de interesse definir este conceito para este artigo, tendo em mente que o
reconhecimento da comu- nidade em termos legais do laudo antropológico é,
em parte, a identificação do patrimônio cultural material e imaterial.
Devido às disputas políticas e aos processos de dominação entre os
grupos socais ou mesmo em razão das especulações imobiliárias e avanços do
capitalismo, alguns patrimônios culturais estão ameaçados de extinção. Para
proteção destes acervos culturais, é que as Nações Unidades se preocupo com
a definição de patrimônio cultural e formulou a seguinte proposição, tendo
em vista, principalmente, os bens imateriais (UNESCO, 2003, 2006):

Patrimônio cultural imaterial são práticas, representações, ex-


pressões, conhecimentos e técnicas - junto com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são
associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns
casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de
seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial,
que se transmite de gera- ção em geração, é constantemente
recriado pelas comunidades e grupos em função de seu
ambiente, de sua interação com a

2 2
natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade no âmbito
e continuidade e contribuindo assim para promover o
respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para
os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o
patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os
instrumentos in- ternacionais de direitos humanos existentes e
com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades,
grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável.
(UNESCO, 2006).

O patrimônio cultural é exemplificado da seguinte forma:


a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do pa-
trimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e
atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao
universo;
e) técnicas artesanais tradicionais.
A noção de patrimônio cultural é dinâmica, implica na identificação
das construções de valores, símbolos, signos, modos de vida e instrumentos
materiais presentes nas adaptações dos seres humanos na ocupação de um de-
terminado território. Os bens materiais e imateriais são apresentados em
ínti- ma relação e produzidos no suprimento das necessidades de realização da
vida nos seus diversos aspectos. A ideia de patrimônio cultural pode ser
sintetizada como um legado entre as gerações e dado um conjunto de bens
construídos, reconhecidos por uma sociedade, como representativos de sua
história e da sua produção social, é o testemunho da presença das pessoas em
determinado espa- ço geográfico (SANTANA, 2009).
A memória social e os elementos associados a ela também se inserem
no acerto dos repertórios culturais denominados de modo geral como
patrimônio cultural. Neste sentido, a escrita da história oral depende da
identificação e do recolhimento do patrimônio cultural.
Da forma como tem sido concebido pelos organismos internacionais
e pelo Ministério da Cultura, através do Setor de Referências Culturais do
IPHAN, o conceito de patrimônio material e imaterial possui fortíssima
con- sistência, baseada na ideia de processo cultural. Este fica caracterizado
pelas práticas culturais e pelos objetos pelo meio dos quais os grupos sociais se
re- presentam. Através destas práticas e objetos, os grupos culturais elaboram a
sua identidade e produzem a sua territorialidade. Este conceito de patrimônio
cul- tural é importante para identificação das comunidades de quilombo,
para seu estudo e, principalmente, para fins jurídicos do seu reconhecimento
2 2
da Fundação Cultural Palmares e nos processos de titulação a cargo do escola, com a motivação de reforçar
INCRA. É importante destacar que o reconhecimento é diferente da titulação,
mas am- bas as etapas são obrigatórias para as comunidades obterem a posse
das terras.

Incursão nas Diretrizes curriculares nacionais


para educação escolar quilombola

A longa trajetória de lutas políticas para o reconhecimento dos direitos


de propriedade das terras quilombolas é uma conquista dos movimentos
negros e, em particular, dos movimentos quilombolas. Ter reconhecimento
nacional de uma causa das populações não foi fácil, devido aos problemas
de como o país desconhece a sua história a os feitos das populações negras.
Em muitos dos estados da federação brasileira, existe uma forte negação de
existência de popu- lação negra e mesmo da importância desta. O mesmo
percurso desta conquista política e institucional é seguido para o
reconhecimento do direito à educação quilombola.
No passado, aos negros foi negado o direito à educação escolar, foi
in- feriorizada sua história e sua cultura. Hoje, se busca pagar a dívida que se
tem para com a população negra, então, se percebe a necessidade de uma
educação quilombola, ou seja, uma educação que restitua, de forma
valorosa, a cultura, a história do povo afrodescendente, quilombola, através
de ensino e aprendiza- gem a partir do cotidiano dos alunos.
A educação quilombola não é só ter escola dentro do quilombo, é ou
de- veria ser uma educação de qualidade, que promova a valorização da
cultura e da história local, que forneça recursos para o desenvolvimento
socioeconômico, que fortaleça o sentido de identidade positiva e contenha a
critica as formas de racis- mo. Deve ser uma educação que garanta aos
estudantes o direito de se apropriar dos conhecimentos tradicionais e das suas
formas de transformação autônoma da realidade em vivem. Auto
reconhecimento como comunidade quilombola, o reconhecimento da
dignidade humana, respeito a vida e aos direitos das comuni- dades de
quilombo são esperados como resultado da educação quilombola.
A educação dos afrodescendentes no Brasil teve um ganho
importante com a edição da Lei 10.639, de 09 de janeiro, de 2003, que
obriga o ensino da história e cultura da África e dos afro-brasileiros em todos
os níveis da educação. Trata-se de uma lei que pretende que a história, a
cultura e todos os temas de in- teresse da população negra sejam tratados na
2 2
a identidade positiva de negras e negros no país e que também seja base dos territórios quilombolas;
para o combate ao racismo na educação e na sociedade. Em função da lei, foi
elaborado um documento de incorporação das diretrizes curriculares da
educação, que mo- difica a Lei de Diretrizes e Base da Educação,
incorporando a lei 10.639.
Com relação à educação das populações quilombolas, foi iniciado, em
2011, um trabalho na Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Na-
cional de Educação, órgão responsável pela legislação da educação brasileira.
Deste trabalho, resultou o documento de diretrizes curriculares nacionais para
a educação escolar quilombola, que institui orientações para que os sistemas de
ensino formulem projetos político-pedagógicos adequados à especificidade das
vivências, realidades e história das comunidades quilombolas do país.
Devemos lembrar que, na Conferência Nacional de Educação, em 2010, em
Brasília, re- sultou na inclusão da educação escolar quilombola como
modalidade da educa- ção básica. Isso significa que a regulamentação da
educação escolar quilombola nos sistemas de ensino deve ser consolidada
nacionalmente e seguir orientações curriculares gerais da educação básica
(BRASIL-MEC, 2013).
Para a elaboração do documento das diretrizes curriculares nacionais
para a educação escolar quilombola, houve ampla participação das comuni-
dades remanescentes, de educadores, pesquisadores e representantes dos movi-
mentos sociais. Foram realizadas audiências púbicas nos estados do Maranhão
e da Bahia, em razão do grande número de comunidades nestes estados. A
apro- vação das diretrizes atende as normas da legislação brasileira e, também,
as con- venções internacionais, das quais o Brasil faz parte, pois a tema
quilombo ou comunidades negras rurais é comum a todos os país do
continente americano. Dentro as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação Escolar Qui-
lombolas encontramos que:
Art.1º, §1º A Educação Escolar Quilombola na Educação básica:

III - destina-se ao atendimento das populações quilombolas ru-


rais e urbanas em suas mais variadas formas de produção
cultural, social, política e econômica;
IV - deve ser ofertada por estabelecimentos de ensino
localizados em comunidades reconhecidas pelos órgãos públicos
responsá- veis como quilombolas, rurais e urbanas, bem como
por estabe- lecimentos de ensino próximos a essas comunidades
e que rece- bem parte significativa dos estudantes oriundos
2 2
V - deve garantir aos estudantes o direito de se apropriar direito coletivo de propriedade da terra.
dos conhecimentos tradicionais e das suas formas de
produção de modo a contribuir para o seu reconhecimento,
valorização e con- tinuidade;
VI - deve ser implementada como política pública educacional
e estabelecer interface com a política já existente para os povos
do campo e indígenas, reconhecidos os seus pontos de
intersecção política, histórica, social, educacional e econômica,
sem perder a especificidade.

Como parte das diretrizes da educação quilombola, temos que a


edu- cação escolar quilombola deve ter como referência valores sociais,
culturais, históricos e econômicos dessas comunidades. Sendo que a escola
deve se tornar um espaço educativo, que efetive o diálogo entre o
conhecimento escolar e a realidade local, valorize o desenvolvimento
sustentável, o trabalho, a cultura, a luta pelo direito à terra e ao território.
Assim, a escola nas comunidades de remanescentes de quilombos precisa de
currículo específico e apropriado, como também ter projeto político-
pedagógico, no qual figure os espaços e tempos, como calendários e temas
adequados às características de cada comunidade quilombola. Estes temas são
necessários para que o direito à diversidade étnco-
-raciais seja uma realidade concreta e não apenas um discurso ou uma lei
não cumprida. Também as diretrizes deixam claro a necessidade de formação
básica e continuada dos educadores e uma permanente discussão sobre o
tema.
Na trajetória histórica do Brasil, configurou-se o processo de exclusão
so- cial, econômico, político e cultural de grande amplitude e atingindo parte
signi- ficativa da população, sendo que, ao racismo antinegro soma-se a
outros modos de restrição dos direitos e da participação autônoma na
sociedade brasileira para as comunidades de remanescentes de quilombos. Para
os quilombos, o reconheci- mento, a titulação de terras, a valorização da cultura e
acesso à educação específica e de qualidade é ainda uma discussão que
apresenta forte resistência por parte da sociedade, devido à ausência de
informação e, também, os que se beneficiam dessas exclusões. Diante desse
contexto educacional, que coloca a educação qui- lombola como modalidade
de ensino, além da obrigatoriedade da presença da história e cultura africana
nos currículos educacionais, nos diferentes níveis de ensino, faz-se pertinente
a discussão apresentada sobre o conceito de quilombo, que o apresenta como
comunidade tradicional, como história e cultura específica e como seres de
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Considerações finais. . Territorialidade quilombola. Foto e Mapas. Brasília: Editoria Mapas e
consultoria. 2011.
O conceito de quilombos desenvolvido, ao longo do texto, demonstra a ARANTES, Antonio. A guerra dos lugares. Cidades. Revista do Patrimônio Histórico
luta de uma população negra organizada em movimentos sociais e que obtive- e Artístico Nacional. N.24, Rio de Janeiro, 1994.
ram conquistas com marcos legais e que deposita, na educação, uma esperança
ANJOS, R. S. A. Quilombos. Geografia Africana, Cartografia Étnica Territórios
de mudança quanto aos modos históricos de submissão impostos pelos grupos tradicionais. Brasília: Mapas Editora e consultoria, 2009.
dominantes e muitas vezes pelas populações próximas. O racismo antinegro
BECKER, B. O uso político do território: questões a partir de uma visão do terceiro
ainda se impõe como uma restrição ao exercício da vida cidadã para as comu- mundo. Rio de Janeiro: UFRJ/Geo. 1993.
nidades de quilombos, sendo esse aspecto importante a ser percebido e tratado
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço de Branco. São Paulo,
na educação quilombola.
Brasiliense, 1988.
O fato da existência de um número de dezenas de comunidades de qui-
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
lombos no estado do Ceará, em todas as regiões desse estado, implica na
pre- sença de uma diversidade de modos históricos em ser quilombola, BRASIL-MEC. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de
introduz, desta maneira, problemas novos e desafiadores para a educação Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câmara Nacional de
quilombola e do campo no estado.
Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica /
Para pensarmos a educação quilombola dentro dos marcos legais da Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e
edu- cação no Campo, podemos sempre nos referir ao artigo segundo do Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. 562p. ISBN: 978-857783-
decreto número 4.887, de 20 de novembro de 2008, que estabelece que os 136-4
quilombos são “grupos étnico-raciais segundo critérios de autoatribuição, BOSI, Ecléa. Memória & sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, SP. T.A.
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, Editor, 1979.
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
CARNEIRO, Edson de Souza. O Quilombo dos Palmares: 1630 -1695. São
opressão histórica sofrida”. As comunidades quilombolas no Brasil são Paulo: editora Brasiliense. 1947.
múltiplas e variadas e se en- contram distribuídas em todo o território
CIAMPA, Antonio da Costa. Políticas das identidades e identidades políticas.
nacional, tanto no campo, quanto nas cidades. As diretrizes para a educação In: Bunker / Passos/ (org.) Uma psicologia que se interroga: ensaios. São Paulo:
quilombola oferecem um caminho para pensar esta educação. No entanto, Edicon, 2002. Pp. 133 – 144.
resta o trabalho importante dos educadores e participantes da educação em não
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola, Brasília, DF, 2012.
apenas fazer valer a lei, mas dar a ela uma prá- tica política e pedagógica, que
possibilite uma educação mais efetiva, democrática e libertadora das FERREIRA, Ligia Fonseca. “L’identité énigmatique de Luiz Gama”. In: Luiz Gama
(183O-1882): Étude sur la vie et l’oeuvre d’un noir-citoyen… Op. cit, vol. I, 2001.
comunidades de quilombo. Que, através da educação, os qui- lombos possam
ver as suas histórias e cultura espelhadas, de forma a fortalecer a identidade FREITAS, Decio. Palmares. A Guerra dos Escravos. Porto Alegre: Ed. Movimento,
1971.
política e a importância das comunidades de quilombo e que afaste os
incômodos da invisibilidade da existência e também o racismo que estas FREITAS, M. L. Reino Negro de Palmares. Rio de Janeiro: Biblioteca do
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