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JOSE MURILO DE CARVALHO OS BESTIALIZADOS O RIO DE JANEIRO E A REPUBLICA QUE NAO FOI fim, o capitulo quinto procuraré reconstituir 0 mundo da cidadania no Rio de Janeiro e buscar razdes para cexplicéo. Embora se trate de uma investigagio de natureza histérica, no resta dvida de que o problema da cidada nia continua no centro da preocupacio de todos nos dias de hoje, quando mais uma mudanca de regime se efetua fe mais uma tentativa ¢ feita no sentido de construir a comunidade politica brasileira. A historiografia & aqui, tuma vez mais, projegio do presente e instrumento de tentativa de construgio da historia. Diziam os positvis- tas que os mortos governavam 0$ vivos, o passado 0 pre- sente, Ao reler a historia com os olhos de hoje talver pudéssemos dizer que 08 vivos, a0 tentar reconstruir 0 passado, tentam governar os mortos na ilusto de po- derem governar a si préprios. Ou, em versio pessimista, nna frustragio de © nio poderem fazer. “ CAPITULO ORIO DE JANEIRO EA REPUBLICA* Nao seria exagero dizer que a cidade do Rio de Ja neiro passou, durante a primeira década republicana, pela fase mais turbulenta de sua existéncia. Grandes transformagées de natureza econdmica, social, politica e ccultural, que se gestavam ha algum tempo, precipit Fame com a mudanga do regime politico e langaram a capital em febril agitagdo, que so comecaria a ceder a0 final da década. O que se leré a seguir sera a tentativa de descrever sumariamente a natureza destas mudangas examinar as conseqiigncias delas advindas para a vida dos fluminenses. Atencio especial sera dada ao impacto do novo regime, que se pretendia ancorado na opiniso pablica, na formacio de uma comunidade politica na antiga capital do Império. ‘A andlise concentrarse4 na fase inicial de consol dagio do nove regime, estendendose até o final do go- verno Rodrigues Alves, quando ja estavam nitidamente definidos os vitoriosos e os vencidos e estabelecidos os rumos ¢ a natureza da politica republicana tanto para (© pais como para a capital. No que se refere a esta, es tavam definidos nto s6.0 papel que Ihe caberia como tam- ‘bém as regras para representélo. + Versio modicads deste captlo fl publica em Rete Bras sare de Historia, $9) 19, abe ES. 5 Como a maior cidade e a capital econdmica, politica ce cultural do pafs, 0 Rio de Janeiro no poderia deixar de sentir, em grau mais intenso do que qualquer outra fidade, as mudangas. que vinham fermentando durante fs tltimos anos do Império e que culminaram na aboli ‘gio da escravidio e na proclamacio da Repablica, A mu ‘danga de regime, com todas as expectativas que trazia € também com todas as dificuldades que implicava, como que projetou luz intensa sobre as novas fealidades, tor nando a vivéncia delas também mais intensa © mais di fundida, De uma maneira ou de outra, para melhor ‘ou para pior, grande parte dos fluminenses foi pela pri meira vez envolvida nos problemas da cidade e do pais. Esta consciéncia nova e ampliada e as conseqiiéncias que erava, terizaram o Rio da primeira década republicana, ‘Mas as alteragées quantitativas sio inescapaveis. A primeira delas foi de natureza demogrifica, Alterouse ‘8 populacio da capital em termos de nimero de babi tantes, de composigdo tnica, de estrutura ocupacional. [A aboligio langou o restante da mio-deobra escrava no mercado de trabalho livre ¢ engrossou 0 contingente de subempregados desempregados. Além disso, provocou uum éxodo para a cidade proveniente da regio cafecira do estado do Rio e um aumento na imigracio estrangei- ra, especialmente de portugueses. Os indices de cresc ‘mento da populagio podem ser vistos na tabela 1 ‘Vése que a década que precedeu a Republica apre- senta 0 maior crescimento populacional relativo. Em termos absolutes, temse que a populagio quase dobrou entre 1872 ¢ 1890, passando de 266 mil a 522 mil. A ci dade teve ainda de absorver uns 200 mil novos habitan tes na iiltima década do século. $6 no ano de 1891, en traram 166 321 imigrantes, tendo saido para os estados intes mesmo que mudancas quantitativa, carac: 6 Tatoo Crescimento anal da popula do Mle de Janae, 18721006 ‘ane ‘Crescent anual) serasa80 ase saan 1090 ase 12901900 323 9004908 2a 71264, Este enorme influxo populacional fazia com que, fem 189, 28,7% da populagio fosse nascida no exterior € 26% dela proviesse de outras regides do Brasil. Assim, apenas 45% da populagio era nascida na cidade. ‘Outro resultado importante da intensa imigrasio era © desequilibrio entre 0s sexos. Em 1890, entre os estran geiros, os homens eram mais que o dobro das mulheres, Na populagio total, a predominancia do sexo masculino girava em torno de 56%. O desequilibrio refletiase no indice de nupeialidade, que era apenas de 26% entre os homens brancos ¢ caia para 125% entre os negros em 1890." Em verdade, quanto a este ponto tinha havido alguma melhoria cm relagio a 1872, mas permanecia muito alto o mimero de solteiros ¢, portanto, muito bbaixo © niimero de familias regularizadas. Uma terceira conseqiiéncia do répido crescimento populacional foi o aciimulo de pessoas em ocupasdes mal remuneradas ou sem ocupagio fixa. Domésticos, jorna: leiros, trabalhadores em ocupagdes mal definidas chega: vam a mais de 100 mil pessoas em 1890 © a mais de 200 sil em 1906 e viviam nas ténues fronteiras entre a lega lidade ¢ a ilegalidade, as vezes participando simultanea: ‘mente de ambas, Pouco antes da Republica, o embaixa: dor portugués anotava: "Esti a cidade do Rio de Janeiro a Jade gunose malleiores de toda epi can regulamenteio do sega dome, fe ope cnls Mural em 192, Erssto de Moraes SLM tala capal "gente desocpada om CoEEr uatnde,sendo nivel © mer de mene Sandon rn popula poder er comparda be cles pe clas ou potercaveteperian de que ofl ‘rs meade do seule XIX, Eran ladies, post iam malades, desertores do Enc, da Marina © doe rane sstrangsves,cgaos,ambulonte, tapes, Grado, serente de veartiies ible, rotors, tcberer de bonds, cgrtaes,ctrctros, ora, Dicer, jogadores,reccpadors, iets (@ plea 6 tua), eso figure. paint caren do cr poste, cul uma je epalkar porto © pa cao Ramer for acta en torn de 20m hs pers da epublica” Morand, agin’ wablhando, na maior pane, ns rans cena da Cade Vela, tale pecs Cram a qr ras compare eat eatin erin Ga poca expeciniente a referees contravene Ao tp doordem,valagun,erbrlague: og, Em 80, sau conavengies ram rtponivels por 6 di Pt ties de penonrrclida Cat de Deen Anotese ainda © impacto do cescimento popula cionl sclera sobre ap cong de vida, cm a8 comeatiner preter wbre a amines munich pel, Agveramse muito o> proba de abtaio, {an em term de quantdade quanto de qualia. A "Shsolutn flu” de cet expecaimente puro Pobre, fa salctade em 1090 pela Sodade Unto ds Pro prcion ¢Arredatirin de Pr, que a aribula 8 Imig. A Sociedade slictava teeta eH fone ae fost mas catelosa s0 manda char habit hs 98es, pelas conseqiiéncias que a medida poderia acarre tar‘ Os velhos problemas de abastecimento de égua, de saneamento e de higiene viramse agravados de maneira ramatica no inicio da Republica com 0 mais violento surto de epidemias da historia da cidade. O ano de 1891 foi particularmente tragico, pois nele coincidiram epide: mias de variola ¢ febre amarela, que vieram juntar-se as tradicionais matadoras, a maliria e a tuberculose, Nesse ‘ano, a taxa de mortalidade atingiu seu mais alto nivel, rmatando 52 pessoas em cada mil habitantes. Até 1896, ‘8 mortalidade permaneceu acima de 38 por mil, com a 1 nica excegio de 1893. A cidade tornarasse, sobretudo no verdo, um lugar perigoso para viver, tanto para na cionais quanto para estrangeiros. Nos meses de maior calor, 0 corpo diplomético fugia em bloco para Petré- polis a fim de escapar as epidemias, nem sempre com @xito. O governo inglés concedia a seus diplomatas um adicional de insalubridade pelo risco que corriam repre- sentando Sua Majestade. [Nao terminavam af as atribulacoes por que passava « capital. Pelo lado econémico e financeiro, os tempos também foram de grandes agitagdes. Novamente a ori igem de tudo remontava aboligdo da escravidio. Nio é necessério repetir em pormenores uma histéria ja bem sabida, Basta lembrar que, devido & necessidade de apla- car 0s cafeicultores, especialmente do estado do Rio, € de atender a uma demanda real de moeda para 0 paga- mento de salirios, 0 governo imperial comesou a emitir dinheiro, no que foi seguido com entusiasmo pelo go- verno provisério, este preocupado também em conquis- tar simpatias para o novo regime, Concedido o direito de emitir a varios bancos, a praga do Rio de Janeiro foi inundada de dinheiro sem nenhum lastro, seguindo-se a conhecida febre especulativa, bem descrita no romance w\ de Taunay, O Encithamento, Segundo um jornal da épo- fa, “todos jogaram, © negociante, 0 médico, 0 juriscon- Sulto, o funciondrio piblico, 0 corretor, 0 zangio; com jpouco pecilio proprio, com muito pecilio-alheio, com as Uiferengas do dgio, e quase todos com a cauglo dos pré- pros instrumentos do jogo".* Falta acrescentar & lista de especuladores os fazendeiros do estado do Rio de Janeiro, que afluiram & capital para jogar na especulagio 'o dinheiro dos empréstimos. Os anos de 1890 e 1891 fo- ram de loucura, segundo a expressio de um observador cestrangeiro, o qual acrescenta ter havido corretores que ‘obtinham lucros dirios de 50 a 100 contos e que uma ‘oscilagio do cimbio fazia © desfazia milionarios.* Por dois anos, © novo regime pareceu uma auténtica rept: blica de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo ‘custo com dinheiro de especulacto. [As conseqiiéncias nao se fizeram esperar. Desde logo, hhouve enorme encarecimento dos produtos importados devido a0 aumento da demanda e a0 consumo conspicuo dos novos ricos. A seguir, a inflagSo generalizada e a du plicagdo dos precos j& em 1892. Ao mesmo tempo, co rmegou a queda do cimbio, encarecendo mais ainda os produtos de importagio, que na época abrangiam quase tudo. Em 1892, j era necessério 0 dobro de mil réis para comprar uma libra esterlina; em 1897, 0 triplo. Por cima, 0 governo aumentou os impostos de importagio e passou a cobré-los em oure, © que contribuiu ainda mais para o agravamento do custo de vida. Até o embaixador inglés sofreu as conseqiiéncias quando um funciondrio a embaixada pediu aumento de salério, demonstrando com listas de precos que seus 70$000 mensais nio eram mais suficientes para sobreviver. 0 embaixador encami- hou favoravelmente 0 pedido a0 Foreign Office, dizendo {Que 06 salérios nio tinham acompanhado o aumento dos » pesos, € terminou seu oficio com uma tirada de orador popular: “[...] até quando podemos esperar que o povo brasileiro aceite carregar tal peso?”. Com efeito, segundo alguns céleulos, no primeiro qilingiiénio republicano hhouve aumento de 100% nos salérios para um aumento de mais de 300% nos pregos.? Artur Azevedo reflete a situagio em O Tribofe, es- crito em 1892: as algbeiras somese o cobre ‘Como levado por um tufdo: Carne de vaca no come 0 pobre, Qualquer dia ndo come pio, Fésforos, velas, couve, qulabos, Vinho, aguardente, mil, feij, Frutas, conservas,cenouras, nabos Tudo se vende pr'sm dinheirdo!® (© aumento no custo de vida era agravado pela imi- sracio, que ampliava a oferta de miodeobra e acirrava 8 luta pelos escassos empregos disponiveis. Tal situagio constituiu © combustivel para o movimento jacobino, que principiou no governo Floriano © perdurou até o fim da presidéncia de Prudente de Morais (1898). 0 ja cobinismo elegeu como principal alvo de suas iras os portugueses, considerados usurpadores de empregos exploradores dos brasileiros através do controle que exerciam sobre grande parte do comércio e das casas de aluguel.* Pelo meio da década, a queda dos precos do café contribuiu para agravar a crise e 0 pais entrou em fase de deflagso ¢ recessio econdmica, de que sé come- sou a sair ao final do governo Campos Sales, no inicio do nove século, Jé foram mencionades alguns fatos politicos. Foi a politica outro aspecto, e talvez o mais salient, das trans formagies © abalos sofridos pela capital federal. A pro- 2 clamagio da Republica trouxe grandes expectativas de renovasio politica, de maior participagao no poder por parte nao s6 de contraclites mas também de camadas antes excluidas do jogo politico. 0 fato de ter sido o novo regime proclamado por movimento que se desenro- lara totalmente na capital, para surpresa de quase todas 4s provincias, veio contribuir ainda mais para as expecta tivas da populagio. Por quase uma década, o Rio seria ‘4 arena em que os destinos nacionais se decidiriam. Depois da independéncia, era o momento de maior gl6- ria, de maior visibilidade para a capital, transformada fem ovo das atengdes de todo o pais. Acontecimentos, por banais que fossem, assumiam importancia desme- ddida em fungio da ressonéncia produzida pela situacio privilegiada em que se achava a cidade. Uma tentativa de assassinato, um empastelamento de jornal, uma gre- ve, uma revolta de quartel ou de navio, que abalassem a capital, reverberavam pelo pais inteiro Pela expectativa despertada, pelas lutas a que deram inicio e mesmo por razses diretamente vinculadas & po- Iitia, os primeiros anos da Republica foram de repeti das agitagdes © de quase permanente excitaglo para os fluminenses, Os militares tinham provado 0 poder que desde o inicio da Regéncia thes fugira das mios. Dai em diante julgaram-se donos e salvadores da Repibica, com © direito de intervir assim que thes parecesse convenien: te, Rebelavam'se quartéis, regimentos, fortalezas, na vios, a Escola Militar, a esquadra nacional em peso. Ge- nerais brigavam entre si, ou com almirantes, © Exército brigava com a Armada, a policia brigava com o Exército, Por seis meses, a esquadra rebelada bloqueou © porto © bombardeou partes da cidade, causando pinico, desloca- mentos macigos de populagdo para os subirbios, amea- ‘sas de saques. Os opersrios, ou parte deles, acreditaram 2 nas promessas do novo regime, tentaram organizarse fem partidos, promoveram greves, seja por motivos poli- ticos, seja em defesa de seu poder aquisitivo erodido pela inflacio. ® Ferrovidrios, maritimos, estivadores, co- cheiros e condutores de bondes fizeram sua entrada no cenario politico, promovendo as primeiras paralisagbes da capital, que dependia do funcionamento da rede fer- rovidria e do porto, pois dat provinha todo 0 seu abas tecimento. Pequenos proprietarios, empregados, funcio- nvios pablicos também se mobilizaram pela primeira vex no bojo da xenofobia florianista, organizando clubes jacobinos e batalhdes patriticos. Os jacobinos mantive- ram um clima generalizado de tensio politica, especial: ‘mente durante a campanha de Canudos no governo de Prudente de Morais. Quebravam jornais, promoviam arruagas, vaiavam congressistas, espancavam e matavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam ini ‘migos. Em 1897 tentaram matar o presidente da Repi- blica, depois de terem feito o mesmo com o slime pre- sidente do conselho de ministros da Monarquia. Politicos republicanos © monarquistas assinavam manifestos, en- volviam-se em conspiragées, planejavam golpes. Talver 0 tinico setor da populagio a ter sua atuagio comprimida pela Repiblica tenha sido © dos capoeiras, Logo no inicio do governo provisério foram perseguidos ppelo chefe de policia, presos e deportados em grande ‘niimero para Fernando de Noronha. Sampaio Ferraz Vingavase deste modo das hostilidades sofridas pelos propagandistas da Republica, entre os quais figura por parte dos capociras incorporados & Guarda Negra, Nao conseguiu destrutlos, mas domesticouos criando ccondigdes para sua reincorporagéo 20 novo sistema em termos mais discretos. Também ndo houve tolerancia al: sguma para com os anarquistas estrangeiros que pela pri: a meira ver aportaram as praias fluminenses. Para eles, a Repubblica mostrou logo sua face violenta, expulsando-os sem maiores delongas. Durante 0 governo de Floriano Peixoto foram expulsos 76 estrangeiros. Desses, 36 por crimes politicos, 19 expressamente sob acusagio de anar- quismo, As deportagoes faziamse por simples decreto presidencial, precedendo solicitaczo do chefe de policia, 0 primeiro decreto data de 14 de agosto de 1893." Por tltimo, 6 preciso mencionar também a movi ‘mentagdo que se deu no mundo das idias e das menta- lidades. A Repiblica no produziu correntes ideoligicas proprias ou novas visées estéticas. Mas, por um momen to, houve um abrir de janelas, por onde circularam mais livremente idéias que antes se continham no recatado mundo imperial. Criouse um ambiente que Evaristo de Moraes chamou com felicidade de porre ideolégico, € ‘que poderiamos também chamar, sob a inspiragio de Sérgio Porto, dé maxixe do republicano doido. Nesse Porre, ou nesse maxixe, misturavam-se, sem muita preo- ccupacio légica ou substantiva, vérias vertentes do pen samento europe, Algumas delas j4 tinham sido incor poradas durante o Império, como o liberalismo € 0 po- sitivismo; outras foram impulsionadas, como 0 socialis- ‘mo; outras ainda foram somente entio importadas, como o anarquismo, Entre os republicanos histérieos, havia os que se ligavam & corrente liberal spenceriana ¢ federalista, 8 moda de Alberto Sales e dos paulistas em geral, © 05 que se inspiravam antes na tradigio da Revo- lugo Francesa, que favorecia uma visio mais rousteat- rniana do pacto social, mais popular e centralista, ao es: tilo de Silva Jardim, Lopes Trovlo, Joaquim Serra. E havia ainda os positivstas, que exultaram com o advento o novo regime, julgando ter chegado a hora, a que se ‘consideravam destinados, de exercerem a tutela intelec a“ tual sobre a nagdo, Mas mesmo entre eles houve riantes civil e militar, que da doutrina retiravam apenas, 0s aspectos que mais interessavam & acio politica Descendo um pouco na escala social, intelectuais de classe média e artesios qualificados, como os grificos, viram sua possibilidade de intervir na politica através de propostas de natureza socialista. Langaram jornais de propaganda e tentaram formar organizagses que pudes- sem traduzir em ago concreta seus princfpios. Acredi tavam na possibllidade de democratizar a Repiblica indo além das propostas liberal e positivsta que predo- ‘minavam entre os hist6ricos. Finalmente, um pouco mais tarde, j& no bojo do desencanto com a pouca ou ne rnhuma sensibilidade do novo regime para reformas de- Imocratizantes, surgiram as propostas anarquistas, tra zendo alternativas radicais para a organizagio politica do pais. A frente dos novos propagandistas estariam in telectuais de classe média e lideres operdrios, estrange 105 € brasileiros. O capitulo seguinte desenvolvers me- Ihor este tépico. Mais importante que a circulagao de idéias talvez tenha sido a nova atitude dos intelectuais em relacio & politica, Da invasio da Camara Municipal a 15 de nove bro de 1889, antes mesmo de proclamada a Repibica, participaram varios intelectuais. Alguns, por certo, anti: 08 militantes do movimento abolicionista, como José do Patrocinio, mas outros pela primeira vez movidos & agio politica conereta, como Olavo Bilac, Lu's Murat, Pardal Mallet. Um més depois, intelectuais do Rio enviaram um manifesto de entusiéstico apoio ao governo provisério, fem que se referiam a alianga entre os homens de letra © 0 povo, A patria, dizia o manifesto, abrira as asas rumo ao progresto, “a literatura vai desprender tam 2s bbém o véo para acompanhé-la de perto”. "© entusiasmo durou até o governo Floriano, quando se deu um cisma entre os intelectuais,¢ alguns dos antigos entusiastas da Republica tiveram de fugir da capital para evitar a prisio. Como exemplo de perseveranga e de fé, ja agora obce cada, nos ideais de um republicanismo jacobino, restaria apenas Raul Pompéia. Seu suicidio em dezembro de 1895, alguns meses pds a morte de Floriano, foi © trigico simbolo do fracasso de uma alternativa politica, assim como a fuga de Bilac, Guimaraes Passos © outros indi ‘cava que nio seria to Facil estabelecer os parimetros de uma convivéncia pacifica entre a Repablica da poli tica e a Repiiblica das letras. A convivencia se daria mais tarde em termos algo distintos dos imaginados inicial- mente. Mais dificil de avaliar & 0 impacto da proclamago do novo regime a nivel das mentalidades. Entre as el tes, houve sem divida a sensacio geral de libertagio, que atingiu ndo s6 0 mundo das idéias mas também dos sen- timentos e das atitudes. Nao hé estudas sobre este ponto, exagerado dizer que a saida da figura austera © patriarcal do velho imperador, que imprimia forte marca em toda a elite politica e mesmo em setores ‘mais amplos da populacio, significou a emancipacéo os que seriam simbolicamente seus filhos. A mudanga parece ter sido importante sobretudo no que se refere a padroes de moral e de honestidade. A comecar por esta Ultima, vimos que o encilhamento trouxe uma febre de enriquecimento a todo custo, escandalizando velhos mo- nnarquistas, como o visconde de Taunay, que via no fend- meno uma degradagao da alma nacional. Como diriam 0s jornais da época, “a Republica € a riqueza!”." Pode: ramos dizer que se deu uma vitoria do espirito do eapi- talismo desacompanhado da ética protestante. Desabro- 2% chou 0 espirito aquisitivo solto de qualquer peia de va- lores ¢ticos, ow mesmo de cilculo racional que gatan tisse a sustentagdo do Iucro a médio prazo, Era um capi- talismo predatério, fruto tipico do espfrito bandeirante na concepsio que Ihe deu Viana Moog. 0 que antes era feito com discriglo, ou mesmo as escondidas, para fugit A vigilincia dos olhos imperiais, agora podia ser gritado das janelas ou dos coches, era quase motivo de orgu- Tho pessoal e de prestigio piblico. Os hersis do dia eram cs grandes especuladores da bolsa ‘A quebra de valores antigos foi também acelerada no campo da moral e dos costumes. Certamente, © Rio hhé muito deixara de ser exemplo de vida morigerada, se 6 que alguma vez 0 foi. Os altos indices de populagio ‘marginal e de imigragio, o desequilibrio entre os sexos, a baixa nupeialidade, a alta taxa de nascimentos ilegiti ‘mos sio testemunhos seguros de costumes mais soltos. Aponta na mesma direcio o romance de Manuel Anténio de Almeida, Memérias de um Sargento de Milicas, es: crito em 1853. Mas, novamente, pareceme que © que an- tes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a Re piblica, se excetuarmos o governo de Florian, foros de legitimacio pablica. 0 pecado popularizow-se, personifi- cou-se. Na revista do ano de Artur Azevedo, O Rio em 1877, domina a temitica politica e os personagens sho todos simbélicos, como © Boato, a Politica, o Zé Povi tho ete. J4 em O Tribofe, revista apresentada no inicio de 1892, 0 engano, a sedusio, a exploragio, a mutreta, 0 tribofe, enfim, aparecem encarnados em pessoas muito reais e possuem até mesmo certo charme. Entre jogado- res, cocotes, bons vivants, fraudadores de corridas, pro- prietérios exploradores, perdese a virtude da familia in teriorana. Primeiro, some a empregada, seduzida por um personage que se diz langador de mulheres, ou 7 formador de prostitutas; a seguir, vai o préprio 1szen- deiro nos bracos de uma cocote; finalmente, desaparece © filho em agitagdes estudantis. Todos pegam o “micré bio da pandega”. Se do ar da cidade medieval se dizia ‘que tornava livre social e politicamente, do ar do Rio pode-se dizer que libertava moralmente. Ou, como diz em © Tribofe Quinota, a filha do fazendeiro, referindo-se 20 pai: "Respirou o ar desta terra, e perdeu a cabeca”; € ‘completa: "Aqui hé muita liberdade e pouco eseripulo. fazse ostentagio do vicio e das grandezas [...] Nao se respeita ninguém’"!* Nao por acaso, A Cidade do Rio, jor nal de Patrocinio, representava-se como uma mulher nua, assim aparecia em desenhos dialogando com Deodoro, para a suprema irritagio do austero soldado (ver eaderno de fotos). Tal liberagio se deu a despeito da acio moralista de certas autoridades republicanas, O chefe de policia de Deodoro perseguit os capociras, e todo 0 governo Flo- riano teve uma cara repressora. O jogo, as apostas foram reprimidos, e tentouse acabar com 0 entrudo. Porém a jogatina da bolsa, favorecida pelo governo provisério, tinha dado o tom, Apesar da ago das autoridades, quan- do havia tal acio, abriramse cassinos, casas de corrida, frontdes, belédromos, que vieram juntarse ao tradicio- nal jogo do bicho, ou dos bichos, como se dizia na épo- ca, € As casas clandestinas de jogo. A confianca na sorte, no enriquecimento sem esforgo em contraposicio 20 ‘ganho da vida pelo trabalho honesto parece ter sido in- centivada pelo surgimento do novo regime. E 0 que re vela o testemunho insuspeito de Raul Pompéia: "Desa- prendewse a arte honesta de fazer a vida com o natural «firme concurso do tempo, do trabalho. Era preciso me- Thorar, mas de pronto: a¢ jogo pois!”, publicado no Jor- nal do Commercio, a4 de janeiro de 1892, E pedia, para a ry salvagdo da Repiblica, o fim da “epidemia de jogatina”. ‘Mas ha um ponto que ¢ preciso salientar. O fato de a Repiiblica ter favorecido 0 grande jogo da bolsa e per- seguido capoeiras e o pequeno jog0 dos bicheiros sugere ‘uma recepgao diferente do novo regime por parte do que poderia ser chamado de proletariado da capital. A eufo- ria inicial, a sensagio de que se abriam caminhos novos de participagio parecem ndo ter atingido este setor da populagio, Eu diria mesmo que a Monarquia caiu quan @o atingia seu ponto mais alto de popularidade entre esta gente, em parte como conseqiiéncia da aboligao da tescravidio. A aboligéo deu ensejo a imensos festejos po- pulares que duraram uma semana e se repetiram no ano Sequinte. cinco meses antes da proclamacio da Repabli- ca. A simpatia popular se dirigia ndo so a princesa Isa- bel, mas também a Pedro I, como ficou evidenciado por ‘casio da comemoragao do aniversario do velho impe rador, a 2 de dezembro de 1888, Segundo 0 testemunho {do republicano Raul Pompéia, © Paco Imperial foi in vadido por “turba imensa de populares, homens de cor 12 maior parte”. A policia teve de intervir para convencer ‘alguns dos manifestantes de que pelo menos vestissem ‘camisa para se apresentarem a0 imperador. No meio da ‘multiddo, salientava-se a imponente figura do principe (Oba, um negro que se dizia rei africano, Principe Obs fadornara de penas sua farda de alferes honorario. "A ‘cena foi sem civida motivo de riso e chacota, e principe (Obé acabou sendo preso pela policia. Mas revelava pro- fundo simbolismo: um rei negro, um rei das ruas © becos dda cidade, vai paramentado, combinando a farda do ‘mundo oficial com as penas de suas origens africanas, € acolitado pela multidio dos miseraveis saudar o impera- dor de olhos azuis. [A reagio negativa da populagio negra & Replica » manifestouse antes mesmo da proclamacio, através da Guarda Negra organizada por José do Patrocinio. Varios incidentes verificaramse entre os propagandistas © a Guarda. O mais sério de todos se deu com a interrupgao, {que resultou em mortos e feridos, de uma conferéncia de Silva Jardim, em dezembro de 1888, na Sociedade Fran- ccesa de Ginistica, Dizer que se tratava apenas de capoci ras baderneiros manipulados pela policia, como o fize ram 0s republicanos e até mesmo Rui Barbosa, no bas ta, Permanece o Fato de que os republicanos nko conse- guiram a adesio do setor pobre da populacio, sobretudo dos negros. © proprio Silva Jardim, ao acompanhar 0 conde 'u em sua viagem a0 norte do pais em 1889, ‘experimentaria mais uma vez, em Salvador, a ira da po- pulagio negra, Por ele e pela Repiiblica manifestaram-se apenas 0s estudantes da Faculdade de Medicina local. A ‘impatia dos negros pela Monarquia reflete-se na conhe- ida ojeriza que Lima Barreto, o mais popular roman- cista do Rio, alimentava pela Republica. Neto de escra: vos, filho de um protegido do visconde de Ouro Preto © romaneista assistira, emocionado, aus sete anos, &s €o memoragées da aboligao € as festas promovidas por ‘casido do regresso do imperador de sua viagem & Ev ropa, também em 1888. Em contraste, vira no ano se ‘euinte seu pai, operdrio da Tipografia Nacional, ser de rmitido pela politica republicana, Trritava-o, particular: mente, a postura do bario do Rio Branco, a quem acusa- va de renegar a parcela negra da populacio brasileira. Em termos concretos, a prevencio republicana con: tra pobres e negros manifestou-se na perseguigio movida por Sampaio Ferraz contra os capoeiras, na luta contra, 1s bicheiros, na destruigio, pelo prefeito florianista Ba rata Ribeiro, do mais famoso cortigo do Rio, a Cabega de 0 Porco, em 1892. Néo por acaso, Barata Ribeiro também comparecera & conferéncia dissolvida de Silva Jardim, Nao seria, a meu ver, exagerado supor que a reago po- pular a certas medidas da administragao republicana, ‘mesmo que teoricamente benéficas, como a vacina obri gatoria, tenha sido em parte alicergada na antipatia pelo novo regime, Mais ou menos & época da Revolta da Va- cina, por exemplo, Joio do Rio verificou, a0 visitar a Casa de Detengio, que "Com rarissimas excesses, que talver nio existam, todos os presos sto radicalmente monarquistas. Passadores de moedas falsas, incendisrios, assassinos, gatumnos, capotiras, mulheres abjetas, sio fer- ventes apéstolos da restauracio”,"" Eram monarquistas «liam romances de cavalaria, Esta extraordinéria revela ‘edo confirma o abismo existente entre os pobres € a Repaiblica e abre fecundas pistas de investigago sobre um mundo de valores e idéias radicalmente distinto do mun- do das elites do mundo dos setores intermedisrios Apontadas rapidamente as transformagées sofridas pela capital, cabe agora perguntar pelas consequéncias dai advindas para a populagdo da cidade e seu governo € para a relagio entre ambos. © problema central a ser resolvido pelo novo regime era a organizagao de outro pacto de poder, que pudesse substituir 0 arranjo impe al com grau Suficiente de estabilidade. Durante quase ez anos de Republica, as agitagdes se sucediam na ca pital, havia guerra civil nos estados do Sul, percebiam-se riscos de fragmentagio do pais, a economia estava amex: sada pela crise do mereado do café e pelas dificuldades de administrar a divida externa, Para os que controla vam 0 setor mais poderoso da economia (exportagao) © para os que se preocupavam em manter 0 pais unido, tor nava-se urgente acabar com a instabilidade politica ‘A natureza da tarefa que se impunha pode ser des ar sta como a necessdade de cliinar, 08 plo menos Scutala, «ute da eapitel na police econ Tit agin polo menos dine cosa: rar ob mi (eee do gonero'e rut 9 nel de partlpato pop reros di fendmenos cram rlconado, pop o Boo de Bacto da Mariah estavalcaiado no Rio de Sacto « mitosmiltares de ambas as corprases x “Sivamse Teqdntemente nas agitagies poss, a “Meo om pots operas, Nas grees, tmulton, rv ton ones de goles, havin sempre militares lado A dumenton cv A aliange fot mals tide dante o periods jacana, asa eso et 1908 Rowe ainda © ccenvivmento prac, com hnterseges, de una = tote popular © uma revota militar. Militares © sears lars nao representavamintereses compat com rie pande comarcio + da grande agra, Porm for etre lao. nd tram conden de impor ua Vero que extapease ov limites do Distto Federal ‘A maneira indireta de neutralizar a capital ¢ as for ‘gas que nela se agitavam era fortalecer os estados, paci feando e coptando suas olgarquias. Era seus a ot garquias em torno de um arranjo que garantisse seu do- Iminio local € sua participagio no poder nacional de ‘acordo com 0 cacife politico de cada uma. Como € si esta foi a obra de Campos Sales, que, além do mais, precisava desesperadamente de paz interna para negociar 1 divida externa com os banqueiros ingleses. O acordo foi consagrado em 1900, durante 0 reconhecimento de poderes da nova legislatura. Por ele, presumiase a legi timidade dos diplomas dos deputados eleitos pelas poli ticas dominantes nos estados, conseguindo-se assim 0 apoio dessas politicas para a agio do governo federal, Se os partidos nao funcionavam como instrumentos de governo, se se dividiam em facgbes, se ficavam presos a 2 caudilhos, @ solugio, para Campos Sales, era formar fentio um grande partido de governo com sustentagio nas oligarquias estaduais. O proprio presidente resumiy laramente seu objetivo: “E de Ié [dos estados] que se governa a Republica, por cima das multiddes que tumul- tuam, agitadas, nas ruas da capital da Unido". E prosse guindo: “A politica dos estados [...] & a politica nacio nal” (grifo de Campos Sales)" © resumo € perfeito: governar © pais por cima do tumulto das multidées agitadas da capital. O Rio podia ser caixa de ressonincia, mas nio tinha forca politica pré- pria porque uma populagio urbana mobilizada politica: mente, socialmente heterogénea, indisciplinada, dividida por conflitos internos no podia dar sustentacgo a um governo que tivesse de representar as forgas dominantes do Brasil agrério. A percepcio do perigo representado por uma cidade deliberante, com um minimo que fosse de vontade propria, ferse sentir logo no inicio da Rept blica. © decreto do governo provisorio que dissolve a ‘Camara dos Vereadores e criou um Conselho de Intendéncia dava a este, em coeréncia com a filosofia descentralizante do novo regime, certa autonomia de alo. Os intendentes acreditaram em seu novo papel © logo decretaram um Cédigo de Posturas, que desagradou profundamente aos proprietérios e arrendatarios de pré- dios de aluguel. A Sociedade que representava estes pro- prietarios recorreu de imediato no ao Conselho, mas 20 governo federal, ¢ este, voltando atrés em seus propé 10s iniciais, suspendeu a exccucio do Cédigo © baixou outro decreto, reduzindo a autonomia do Conselho ¢ sub: metendo suas deliberagdes & apreciagio do ministro do Interior. Demonstrando alguma dignidade, os intenden- tes demitiram-se em protesto. A teoria rapidamente se revelara outra na pritica, A experiéncia de autonomia a urou apenas dois meses ¢ meio. Apesar da curta dura- tio e do carter limitado que tivera, fora suficlente para {ue 0 tradicional érgio republicano O Paiz, dirigido por Quintino Bocaiiva, a ela se referisse como sinal do pe- igo de surgir no Rio uma pequena comua, uma com ‘vengao municipal, despética € tiraniea como a convencio francesa (grifo meu). A desproporsio gritante entre a dimensio real do fato ea que The pretendeu dar o jor nal, conjurando fantasmas da Paris revolucionaria de 1789 ¢ 1871, € um indicador precioso da preocupacio dos republicanos com 0 perigo da mobilizagéo popular na capital {A situagio do governo municipal no mudow muito com a decretagtio da lei organica do Distrito Federal, em 1892, ja em regime constitucional. A lei previa a eleigao dos intendentes pelo voto popular. mas o prefeito, cargo fentio criado, seria nomeado pelo presidente da Rept blica com aprovagio do Senado Federal. As coisas assim permaneceram até o final da Primeira Republica. Na verdade, 0 Rio republican foi governado o tempo todo por interventores, que mais no eram os prefeitos no- meados (0 governo municipal ficou limitado & agdo adminis- trativa e, mesmo assim, dependendo do apoio politico © financeiro do governo federal para iniciativas de maior vulto, O Conselho de Intendentes, mesmo eleito, tina poucas condigdes de se opor ao prefeito nomeado. No governo de Rodrigues Alves, Pereira Passos governow a tidade por seis meses com a Cimara suspensa, ditato- Fialmente, como o fizera na época florianista Barata Ri beiro, com 0 Conselho funcionando. © complemento ine- vitével da despolitizagio do governo municipal fot o fal seamento do processo eleitoral ¢ da representatividade politica. O niimero de eleitores foi mantido sempre em ed niveis baixissimos, e © processo eleitoral foi totalmente falseado pela intimidagio, pela violéncia © pela fraude, como seri demonstrado no capitulo 3 Dissociava-se © governo municipal da representacio dos cidadios. 0 fato era agravado pela freqiiente no- meagio de prefeitos e chefes de policia totalmente alheios & vida da cidade, muitas vezes trazidos dos es tados pelos presidentes da Republica, Abria-se entio, do lado do governo, © caminho para o autoritarisme, que nna melhor das hipéteses poderia ser um autoritarismo ilustrado, baseado na competéncia, real ou presumida, de téenicos. Nio por acaso, muitos dos chefes do go- vero municipal no periodo em foco foram médicos ou engenheiros. Dos seis primeiros, quatro foram médicos, uum engenheiro militar e apenas um tinka a farmagio tradicional da elite politica brasileira, a juridica, O exemplo mais ébvio € naturalmente o do engenheiro Pe- reira Passos. Muitos destes téenicos eram republicans de primeira agua, como Barata Ribeiro. Mas, chegados a0 poder, do espirito de repibliea guardavam no maxi ‘mo alguma preocupacio com © bem pablico, desde que © pilblico, © povo, no participasse do processo de deci slo. O positivismo, ou certa leitura positvista da Repi- blica, que enfatizava, de um lado, a idéia do progresso pela cigncia e, de outro, © conceito de ditadura republi cana, contribula poderosamente para o reforgo da pos: tura tecnocratica e autoritéria, O primeiro exemplo de tal mentalidade foi o Codigo de Posturas Municipais de 1890. Dois meses apés a posse, (0s sete intendentes ja tinham revisto um esboco de Cé- digo legado pela Monarquia e 0 colocado em vigor. O novo cédigo regulava em pormenores vérias atividades, especialmente as referentes a casas de aluguel e de pasto. 35 No ha duivida de que grande parte das medidas era bemintencionada e buscava beneficiar a populagio em termos de maior conforto © maior higiene, ao mesmo tempo que criava dificuldades aos proprietirios. Mas as ‘medidas eram inteiramente irrealistas para a época. Mui- tas delas, como a exigéncia de caiar as paredes duas veres por ano, amulejar cozinhas e banheiros, arejar quartos com aparelhos de ventilagio, limitar 0 nimero de hospedes, envolviam melhoramentos até hoje inexis: tentes em muitas residéncias. Além disso, o Cédigo de xava transparecer a preocupacio republic controle da populagio marginal da cidade. Se executado, poderia ter provocado uma primeira versio da Revolta dda Vacina, Para justificar a afirmativa, basta dizer que incluia a proibiglo de que hotéis, hospedarias e estala- ‘gens recebessem pestoas suspeitas, ébrios, vagabundos, capociras, desordeiros em geral. Exigia-se ainda o regis: tro de todos os héspedes, com anotagio de nomes, em- ppregos e outras caracteristicas. As listas deviam ser en- tregues & policia no dia seguinte até as nove horas da rmanhi, As penalidades pelo descumprimento dos dispo- sitivos iam desde multas até prisio por 30 dias. * Pode- se imaginar 0 impacto dessas medidas, especialmente no velho centro, O Rio possuia, em 1888, 1 331 estalagens © 18 866 quartos de aluguel, em que moravam 46680 pes- s0as, ineluinde todo 0 vasto contingente do mundo da esordem. De uma hora para outra, todos teriam regis: tro na policia, ou ficariam sem onde morar, caso 0s pro prietérios cumprissem rigorosamente a lei. Como se vé, fera uma lei que ou nio se aplicava, ou se aplicava pela violencia. No caso, ela foi suspensa. Em 1908, a lei da vacinagio obrigatérla teve exatamente 0 mesmo espirito de despotismo ilustrado, apesar de votada pelo Congres: 50, Desta vez, a interferéncia do poder puiblico foi levada 36 para dentro da casa dos cidadios, seu altimo e sagrado reduto de privacidade. Na percep¢io da populacSo po- bre, a lei ameagava a propria honra do lar ao permitir que estranhos vissem ¢ tocassem os bragos e a5 coxas de suas mulheres e filhas, A populacio reagiu pela vio- Iencia e forgou a interrupgio da agio dos agentes do governo, como se vers no capitulo 4. ‘A expectativa inicial, despertada pela Repiblica, de ‘maior participagéo, foi sendo assim sistematicamente frustrada, Desapontaram-se os intelectuais com as per- seguigdes do governo Floriano; desapontaram-se 0s ope- ririos, sobretudo sua lideranca socialista, com as dificul dades de se organizarem em partidos e de participarem ‘do processo leitoral; os jacobinos foram eliminados. ‘Todos esses grupos tiveram de aprender novas formas de insergio no sistema, mais faceis para alguns, mais dificeis para outros. Os intelectuais desistiram da poli tica militante e se concentraram na literatura, aceitando postos decorativos na burocracia, especialmente no Tta- maraty de Rio Branco, Os operitios cindiram-se em duas vertentes principals, a dos anarquistas, que rejeitava ra dicalmente o sistema que os rejeitava, e a dos que pro- ccuravam integrarse através dos mecanismos de coopts- lo do Estado. Os jacobinos desapareceram de cena, Quanto ao grosso da populacio, quase nenhum meio Ihe restava de fazer ouvir sua vor, exceto o vetculo limitado dda imprensa.®™ No que se refere & representagio municipal, ela fi cava solta, sem ter de prestar contas a um eleitorado auténtico, A conseqiiéncia foi que se abriu por este modo ‘© campo para os arranjos particularistas, para as bar ‘ganas pessoais, para o tribofe, para a corrupgio. E a ‘entéo fechouse 0 circulo: a preocupagio em limitar a partiipacio, em controlar 0 mundo da desordem acabou Por levar & absorgao perversa desse mundo na politica, tho lado de funcionarios publicos, passaram a envolver-se nas eleigdes e na politica municipais, por iniciativa dos politicos, 0s bandos de criminosos e contraventores do Extilo de Totonho e Lucrécio Barba de Bode, descritos por Lima Barreto, 0s donos das casas de prostituigio & fe jogo. Eram estes malandros, no sentido que tinha a palavra na época, os empresarios da politica, os fazedo Tes de eleigdes, 0s promotores de manifestagies, até tesmo a nivel da politica federal. A ordem aliavase & esordem, com a exclusio da massa dos cidadaos que ficava sem espago politico. O marginal virava cidadio € 6 cidadio era marginalizado. No entanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participagio popular, Sé que este mundo passava ‘20 largo do. mundo oficial da politica. A cidade nao fera uma comunidade no sentido politico, no havia fo sentimento de pertencer a uma entidade coletiva, & ‘que existia era de natureza antes religio: fa e social ¢ era fragmentada. Podia ser encontrada ras grandes festas populares, como as da Penha da Gloria, e no entrudo; coneretizavase em pequenas ‘comunidades étnicas, locais ou mesmo habitacionais; lum pouco mais tarde apareceria nas essociagdes operd: ras anarquistas. Era a coldnia portuguesa, a ingles tram as colbnias compostas por imigrantes dos varios es tados; era a Pequena Africa da Saide, formada por ne- ‘gros da Bahia, onde, sob a matriarcal protecio de Ts Ciata, se gestava o samba carioca ¢ 0 moderno carnaval [Eram as estalagens cuja populagio podia chegar a mais de mil pessoas, O cortigo de Botafogo, descrito por Alu sio Azevedo, possuia no final mais de 400 casas consti 38 tuia uma pequena repablica com vida propria, leis pro: prias, detentora da inabalavel lealdade de seus cidadios, apesar do autoritarismo do proprietatio, Alusio, als, fa la expressamente na “repiiblica do cortigo". Ali se traba- hava, se divertia, se festejava, se fornicava e, principal mente, se falava da vida alheia e se brigava, Porém, & me- nor ameaca vinda de fora, todos esqueciam as brigas in ternas e cerravam fileiras contra o inimigo externo, Este ‘era outro cortigo , principalmente, a policia Frente & policia, dono e moradores se uniam, pois estava ‘em jogo a soberania e a honra da pequena repiblica. Cor tigo em que entrava policia era cortigo desmoralizado:® E profundamente irénico e significative que a republica popular do cortigo se julgava violada, derrotada, quando li entrava o representante da repiblica oficial, No roman- ce, 0 cortigo consegue evitar a entrada da policia, mas na vida real, dois anos apés a publicagao do livro, 0 cortigo Cabeca de Porco seria destruido em auténtica operacio militar por ordem do republicano historico Barata Ribe- +0, 0 governo da Republica destruia as repiblicas sem in tegréslas numa repiblica maior que abrangesse todos os cidadios da cidade. Domesticada politicamente, reduzido seu peso politi- co pela consolidagdo do sistema oligirquico de domina- Ho, & cidade pode ser dado 0 papel de cartio-postal da Republica. Entrou-se de cheio no espirito francés da belle <époque, que teve seu auge na primeira década do século. © entusiasmo pelas coisas americanas limitara-se as for ‘mulas politicas. © brilho republicano expressouse em formulas curopéias, especialmente parisienses. Mais que ‘nunca, 0 mundo literério voltou-se para Paris, os poctas sonhavam viver em Parise, sobretudo, morrer em Paris. Com poucas excesses, como © mulato Lima Barreto € 0 caboclo Euclides da Cunha, os literatos se dedicaram a » produsir para o sorriso da elite carioca, com as antenas estéticas voltadas para a Europa™ ‘Quando as finangas da Repiblica foram recuperadas pela politica deflacionista de Campos Sales, sobraram re {cursos para as obras hi muito planejadas de sanesmento feembelezamento da cidade. Tudo foi feito com a eficién tia e rapidez permitidas pelo estilo autoritério e teenocré- tico inaugurado pela Repablica, O engenheiro prefeito pe: diu 2 suspensio do funcionamento da Camara dos Verea: ores por seis meses para poder agir livremente e decre tar Iegislagio necesséria para o rapido encaminhamen- to das reformas. Um médico sanitarista foi encarregado das medidas de higiene publica, Tendo Paris como mode- fo, 0 centro da cidade foi depressa modificado, a avenida Beira-Mar foi aberta, jardins foram criados e reformados, 0s bondes ganharam tragio elétrica, sem esquecer a cons: trucéo do novo porto, Ao visitar a cidade pouco depois, uma poetisa francesa, entusiasmada, esereveria um livro de poemas com o titulo La Ville Mervelleuse. Vindo de ‘uma francesa, era a gldria, e compensava o epiteto depre- ciativo de rastagileras que em Paris era dado aos brast Ieiros. AAs reformas tiveram como um dos efeitos a reducio ‘da promiscuidade social em que vivia a populagio da ci dade, especialmente no centro. A populagio que se com- primia nas éreas afetadas pelo botaabaixo de Pereira Pas: 505 teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocarse para a Cidade Nova e para os subirbios da Central. Abriuse es aco para o mundo elegante que anteriormente se limita- va a0s bairros chiques, como Botafogo, ¢ se espremia na rua do Ouvidor. O footing passou a ser feito nos 33 me ‘ros de largura da avenida Central, quando nio se prefe ria um passeio de carro pela avenida BeiraMar. No Rio 0 reformado circulava @ mundo belleépoque fascinado com Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Bra: sil pobre e do Brasil negro. Era o mundo do barao do Rio Branco, ministro das Relagses Exteriores do presi dente que promoveu as reformas. O mesmo bario que na juventude tinha sido capoeira e que agora se esforsava fem oferecer & visio do estrangciro um Brasil branco, curopeizado, civilizado, Mas, se 0 novo Rio criado pela Republica aumentava 48 segmentagdo social e 0 distanciamento espacial entre setores da populagio, as repiblicas do Rio, vindas do Im- pério, continuaram a viver, a renovar-se, a forjar novas realidades sociaise culturais mais ricas e mais brasileiras {que 05 versos parnasianos e simbolistas. Fm certos mo- ‘mentos, elas podiam manifestar-se politicamente e de ‘modo violento, como nas barricadas de Porto Artur. To- davia, na maioria das vezes elas cresciam em movimentos lentos e subterrineos. Assim, a festa portuguesa da Penha foi aos poucos sendo tomada por negros e por toda a populacio dos suburbios, fazendose ouvir © samba a0 lado dos fados e das modinhas. Na Pequena Africa da Saide, a cultura dos negros mugulmanos vindos da Ba- hia, sua musica e sua religiéo fertilizaram-se no novo am- Diente, criando os ranchos camavalescos e inventando 0 samba moderno. Um pouco depois, 6 futebol, esporte de clite, foi também apropriado pelos marginalizados se transformou em esporte de massa. Assim, 0 mundo subterrineo da cultura popular en- goliu aos poucos © mundo sobreterrineo da cultura das lites. Das republicas renegadas pela Repiblica foram surgindo os elementos que constituitiam uma primeira identidade coletiva da cidade, materializada nas grandes celebragées do carnaval e do futebol. a

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