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Gestão Participativa no SUS e a Integração

Ensino, Serviço e Comunidade: a experiência


da Liga de Saúde da Família, Fortaleza, CE1
Participatory Management in SUS through Integrating
Education, and Community Service. The Experience of a
Family Health League as a Project of University Extension in
Fortaleza - Ceará

Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Walda Viana Brígido Moura


Doutora em Pediatria. Pós-doutora do Département de psycho- Doutora em Ciências da Saúde. Professora do Curso de Odontologia
pédagogie et d’andragogie - Faculté des sciences de l’éducation da Universidade Federal do Ceará e Coordenadora de Ação Social
- Université de Montréal”. Professora Adjunta da Universidade e Comunitária da Pró-Reitoria de Extensão.
Federal do Ceará. E-mail: walda@ufc.br
Endereço: Rua Prof. Costa Mendes, 1609, 5º andar. Bairro Rodolfo
Cezar Wagner de Lima Góis
Teófilo, Fortaleza, CE, Brasil.
E-mail: ivana_barreto@ufc.br Psicólogo. Doutor em Psicologia Social. Professor Adjunto da
Universidade Federal do Ceará.
Luiz Odorico Monteiro de Andrade E-mail: cwlg54@gmail.com
Doutor em Saúde Coletiva. Pós-doutor do “Département
Caio Garcia Correia Sá Cavalcanti
d’administration de la santé - Faculté de Médicine - Université de
Montréal”. Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará. Mestre de Saúde Pública da UFC. Professor das Faculdades INTA.
E-mail: odorico_andrade@ufc.br Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Gestão em Saúde da
Escola de Saúde Pública do Ceará – ESP/CE.
Ana Ester Maria Melo Moreira E-mail: caiogcsc@yahoo.com.br
Mestre em Saúde Pública. Professora substituta da Universidade
Maria Marlene Marques Ávila
Federal do Ceará.
Endereço: Rua Prof. Costa Mendes, 1609, 5º andar. Bairro Rodolfo Doutora em Saúde Coletiva. Professora adjunta do Curso de Nu-
Teófilo, Fortaleza, CE, Brasil. trição da UECE.
E-mail: estermelo@yahoo.com.br E-mail: marlenemarquesavila@uol.com.br

Márcia Maria Tavares Machado Maria Fátima Maciel Araujo


Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Doutorado em Enfermagem. Professora adjunto da Universidade
Federal do Ceará. Coordenadora Pedagógica da Liga de Saúde Federal do Ceará.
da Família da UFC. E-mail: fatima.maciel@ig.com.br
E-mail: marciamachado@ufc.br Lucilane Maria Sales da Silva
Maria Rocineide Ferreira da Silva Doutora em Enfermagem. Professora adjunto da Universidade
Doutoranda em Saúde Coletiva. Mestre em Saúde Pública. Profes- Estadual do Ceará.
sora Assistente da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: lucilanemaria@yahoo.com.br
E-mail: rocineideferreira@gmail.com Maria Graça Barbosa Peixoto
Lúcia Conde de Oliveira Mestre em Saúde Pública. Professora adjunta da Universidade
Doutora em Saúde Coletiva. Professora Adjunta do Curso de Serviço Estadual do Ceará e enfermeira sanitarista da Secretaria de Saúde
Social da Universidade Estadual do Ceará. do Estado do Ceará.
E-mail: lucia_conde@uol.com.br E-mail: gracab@saude.ce.gov.br

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Carlos André Moura Arruda Resumo
Pedagogo, Mestre em Saúde Pública, Professor adjunto I da Fa-
culdade de Ensino e Cultura do Ceará-FAECE. Fruto da experiência de duas universidades públicas
E-mail: andrecaninde@yahoo.com.br e uma privada, o Projeto de Extensão Liga Saúde da
André Luís Façanha da Silva Família (LSF) constitui-se numa estratégia de gestão
Professor de Educação Física, Preceptor de Categoria (Educação participativa no campo da formação de profissionais
Física) da Residência Multiprofissional em Saúde da Família de da área da saúde, com base nos conceitos de educa-
Sobral/Ceará. ção permanente em saúde, educação popular em
E-mail: andre_facanha@hotmail.com
saúde, equipe multiprofissional e interdisciplinar,
Herley Medeiros Lins atenção primária à saúde, promoção da saúde, estra-
Estudante de Medicina, monitor da disciplina Assistência Básica tégia saúde da família, metodologias participativas
à Saúde 4 – Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da
de pesquisa e atuação inserida no território vivo.
Universidade Federal do Ceará.
E-mail: herleylins@gmail.com Este relato apresenta a experiência da integração
ensino-serviço-comunidade por meio do Projeto
1 Este artigo foi baseado no trabalho apresentado à 3a edição do de Extensão Liga Saúde da Família, no contexto
Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa da Secretaria de do Sistema Municipal de Saúde Escola (SMSE), em
Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, 2008,
Fortaleza-Ceará, que dialoga com a gestão participa-
tendo recebido menção honrosa como “Experiências Exitosas”.
tiva no Sistema Único de Saúde (SUS). Esta proposta
do LSF foi implantada no SMSE a partir de uma ação
apoiada pelo sistema de saúde de Fortaleza que visa
potencializar os espaços de co-gestão docente–assis-
tencial, por meio da proposta do método da roda e
da tenda invertida. O protagonismo dos integrantes
e da comunidade na construção das atividades do
projeto e a ampliação do olhar crítico sobre a rea-
lidade social e do trabalho em saúde estão entre os
maiores avanços surgidos dessa experiência. Esse
projeto permitiu a integração ensino - serviço - co-
munidade, atendendo a uma perspectiva de gestão
participativa e dialógica.
Palavras-chave: Gestão em Saúde; Atenção Primária
à Saúde; Ensino; Educação, Extensão.

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Abstract Notas para um Diálogo
As a result of the experience of two public universi- O presente relato objetiva apresentar a experiência
ties and a private one, the Extension Project “Family de integração ensino - serviço - comunidade por
Health League” (LSF) introduced a participative meio do Projeto de Extensão Liga Saúde da Família
management strategy in the field of education of he- (LSF) no contexto do Sistema Municipal Saúde Es-
alth professionals, with the support of power-ideas cola (SMSE) de Fortaleza, Ceará, que em seu arranjo
such as permanent education in health, popular dialoga com a gestão participativa no Sistema Único
education, multiprofessional and interdisciplinary de Saúde (SUS). Tal objeto é fruto da experiência de
groups, primary health attention, family health duas universidades públicas e de uma de iniciativa
strategy, participative methodologies and practi- privada que incluem pesquisadores de três grupos
ce inserted in a live territory. This report aims to de pesquisa da Rede Interdisciplinar de Pesquisa e
introduce an experience of integrating teaching Avaliação em Sistemas de Saúde (RIPPAS) (os grupos
to community service through the Family Health Determinantes Sociais, Equidade e Promoção da
League Extension Project (LSF), in the context of Saúde; Educação em Sistemas de Saúde e Desen-
the Health-School Municipal System (SMSE) in the volvimento de Tecnologia em Estratégia Saúde da
city of Fortaleza, Ceará, Brazil. This experience was Família; Comunidade de Estudos e Pesquisas sobre
planned in the spirit of participative management in Políticas e Gestão em Saúde – POIÉSIS), que se asso-
the National Health System (SUS). The proposal of ciaram a três outros grupos, a saber: Laboratório de
LSF emerges, in the SMSE, from a recommendation Seguridade Social e Serviço Social (LASSOSS); Labo-
supported by the city’s health system which aimed at ratório de Práticas Coletivas em Saúde (LAPRACS)
improving co-management spaces of education and e Grupo Multidisciplinar de Políticas e Intervenção
services and used the methods of circle discussion em Saúde e Nutrição.
and inverted tent. The protagonism of the project Nesse trabalho, compreende-se a extensão uni-
members and of the community in the organization versitária como um espaço privilegiado de diálogo
of the project’s activities and the amplification of a do Sistema Municipal Saúde Escola de Fortaleza
critical view over social reality and health work are (Barreto e col., 2006), na perspectiva da gestão par-
amongst the major advances which emerged from ticipativa. Por conseguinte, considera-se importante
this experience. This project has made possible the o processo de inserção dos estudantes de saúde
integration of teaching, health service and commu- nos espaços oficiais do serviço de saúde, sobretudo
nity, from the perspective of a communicative and mediante uma base territorial comunitária e com
participative management. enfoque nas necessidades sociais em saúde.
Keywords: Health Management; Primary Health Na visão de Sousa (2000), a Extensão Universitá-
Care; Teaching; Education; Extension. ria caracteriza-se como uma atividade fomentadora
da reflexão crítica na universidade, pois é o canal
que amplia a relação desta com a realidade social e
a vida concreta das pessoas. Nessa perspectiva, pode
fomentar a formação crítica dos futuros trabalha-
dores do SUS comprometidos com os princípios da
Reforma Sanitária Brasileira. Tal atividade permi-
tiria a construção do inédito-viável, segundo Freire
(1987); que consiste em uma proposta de superação
das condições opressoras da realidade por intermé-
dio de uma práxis de libertação2.

2 Em Freire (1996) uma práxis de libertação pressupõe uma ação-reflexão que possa transformar a realidade vivenciada.

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Nessa perspectiva, pretende-se que a formação meio do trabalho. Neste sentido, a aprendizagem
em saúde deve adequar-se às necessidades dos usu- não seria produto de reflexões e esforços puramente
ários, do serviço e do sistema de saúde. Conforme individuais, como leva a crer o senso comum, mas
dispõe a Constituição Federal de 1988, em seu art. o resultado das relações sociais entre os homens e
200, inciso III, compete ao SUS, além de outras atri- entre estes e a natureza.
buições, “ordenar a formação de recursos humanos À proporção que os indivíduos elaboram projetos
na área da saúde”. A Lei nº 8.080 (Lei Orgânica e neles se engajam, independentemente do tipo de
da Saúde), que regulamenta o sistema de saúde, projeto, eles acabam por se adaptar aos colegas e ao
estabelece no parágrafo único do seu art. 14 que os ambiente. Juntas, as pessoas aprendem a colaborar
serviços públicos que integram o SUS constituem coletivamente e, assim, produzem novas formas de
campo de prática para o ensino e a pesquisa (Brasil, trabalho ou atenção e novos conhecimentos. Estas
2008a, 2008b). práticas, se consolidadas junto à população, podem
Transformar a teoria em prática é um desafio, se constituir um empreendimento coletivo. Desta
pois, como afirma Vasconcelos (2001), foi construído perspectiva é que Wenger (1998) concluiu ser o
um fosso cultural entre os profissionais de saúde e a termo “comunidade de prática” o mais apropriado
comunidade. Isto tem produzido visível impacto na para descrever este coletivo de pessoas.
organização dos serviços de saúde, especialmente As comunidades de prática estão em todo o lugar
porque os profissionais , são de origem socioeconô- e vão desde as mais informais (especialistas em in-
mica e cultural muito diferente da dos segmentos formática que participam de um grupo de discussão
populares atendidos pela Estratégia de Saúde da na internet, um núcleo de alcoólicos anônimos, etc.),
Família,, trazendo, para o centro de suas práticas, até as mais formalizadas e mesmo oficiais, e regula-
preconceitos sobre o universo popular. das por lei, como os médicos, enfermeiros e demais
Diante disso um grupo de professores da UFC e profissionais da saúde e suas especialidades.
da UECE, lideranças estudantis da área da saúde e Em geral, as comunidades de prática desen-
integrantes da Articulação Nacional de Movimentos volvem processos para agregar novos membros,
e Práticas em Educação Popular em Saúde (ANEPS), os novatos. Lave e Wenger (1991) denominaram
em parceria com a gestão 2005-2008 da Secretaria estes processos como “aprendizagem periférica
Municipal de Saúde de Fortaleza, consideraram legitimada”, ou seja, permitida, e às vezes, mas não
estratégico aproximar os cursos de graduação em necessariamente, criada pela própria comunidade.
saúde do debate da implantação municipal do SUS e Na área da saúde e na academia, seriam exemplos
da Estratégia Saúde da Família (ESF), considerando de aprendizagem periférica legitimada os estágios,
especialmente os itinerários terapêuticos percorri- monitorias, cursos de graduação e especialização,
dos pelos usuários dos serviços. É nesse contexto, de bem como a participação em ligas acadêmicas e em
atuação comunitária, que será possível articular aos associações científicas.
serviços de saúde as realidades e dinâmicas sociais A teoria social do aprendizado oferece reflexões
vivenciadas pela população. que justificam a criação de mecanismos coletivos
de formação e desenvolvimento profissional, como
é o caso da LSF.
Breve Referência às Bases Teóricas A própria Política de Educação Permanente para
e Epistemológicas do Projeto o SUS, definida “como estratégia de transformação
das práticas de atenção, de gestão, de formulação
Da Teoria Social do Aprendizado à Educação de políticas, de participação popular e de controle
Permanente e à Educação Popular em Saúde social no setor saúde” (Brasil, 2005, p.11), traz à tona
Segundo a ótica de alguns estudiosos da educação a concepção de que, no cotidiano do serviço, das
(Lave e Wenger, 1991), o conhecimento e, portanto, práticas de trabalho, também são construídos os
a aprendizagem, se produzem à medida que os ho- saberes, as práticas são repensadas e modificadas
mens coletivamente interagem com a natureza por ao longo desse processo de aprendizagem-ação.

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Gestão Participativa Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da
Como observado, o diálogo na LSF aponta para a Família
sensibilização de uma gestão participativa que de- Considerada como primeiro contato dos usuários
pende fundamentalmente de determinação política nos serviços de saúde, especificamente nas equipes
dos gestores, da academia e dos atores comunitários de saúde da família, a Atenção Primária à Saúde
para democratizar as instituições, partilhando e (APS) pode ser considerada como uma estratégia
descentralizando o poder. É nesse contexto que os flexível, e capaz de fornecer atenção sobre a pessoa
grupos e instituições parceiras, responsáveis pela e não a enfermidade no decorrer do tempo. Tal es-
criação da LSF, adotaram o método de co-gestão de tratégia garantiria uma atenção integral oportuna
coletivos, sistematizado por Campos (2007) como e sistemática em um processo contínuo, mantida
estratégia metodológica para o referido processo. No por recursos humanos cientificamente qualificados
caso do Projeto de Extensão LSF, que envolve várias e capacitados a um custo adequado e sustentável.
instituições e organizações, a gestão participativa Organizada em coordenação com a comunidade e
precisava ensejar o dialogo interno nos diferentes concatenada com os demais níveis da rede sani-
níveis da gestão de cada instituição e organizações tária, para proteger, restaurar e reabilitar a saúde
participantes do processo, bem como abrir espaços dos indivíduos, das famílias e da comunidade, sua
de participação social e comunitária nas atividades lógica transcende o campo sanitário e inclui outros
propostas. setores, em um processo conjunto de produção social
Esta proposta é inovadora, pois o Brasil possui de saúde – através de um pacto social – que inclui
uma longa história de autoritarismo. Nas palavras os aspectos biopsicossociais e do meio ambiente,
de Marilena Chauí (1993) o Estado brasileiro é au- sem discriminar nenhum grupo humano por sua
toritário porque a sociedade é autoritária. Dessa condição econômica, sociocultural, de raça ou sexo
forma, gera-se uma cultura política que marca as (Lago e Cruz, 2001).
relações dos sujeitos individuais e coletivos na sua Na busca de uma conceituação mais ampla dessa
ação política. Nesse processo, as políticas sociais política, definimos a ESF como um modelo de aten-
são instrumentos de controle social e legitimação ção primária operacionalizado por estratégias/ações
das elites no poder, as quais, historicamente, ex- preventivas, promocionais, de recuperação, reabili-
cluíram a população da participação política e, as- tação e cuidados paliativos. Tais ações, realizadas
sim, suas iniciativas foram duramente reprimidas. por equipes de saúde da família comprometidas com
Contudo, os movimentos sociais participam da luta a integralidade da assistência à saúde, são focadas
pela democratização, reivindicando liberdades civis na unidade familiar e consistentes com o contexto
e políticas, direitos sociais e, fundamentalmente, a social e econômico, cultural e epidemiológico da
democratização do aparelho do Estado e a influência comunidade na qual a equipe está inserida(Andrade
na gestão pública. e col., 2006).
Nessa caminhada, o Estado na sua dimensão Ainda, é importante destacar que a equipe de
contraditória passa a ser um espaço de disputas. saúde da família é composta essencialmente por um
Ao mesmo tempo, representantes dos movimentos grupo interdisciplinar de profissionais envolvidos
de democratização assumem posições nas diferen- na cadeia de assistência integral e primária à saú-
tes esferas de governo e incrementam ações que de. Normalmente, como integrantes desta equipe,
facilitam esse processo, implementando gestões constam um médico generalista, um enfermeiro,
participativas. Todavia, transformar uma cultura um auxiliar de enfermagem, um cirurgião-dentista
política tradicional em uma cultura democrática e quatro a seis agentes comunitários de saúde que
requer intenso trabalho de educação permanente, são primariamente responsáveis pela cobertura de
tanto para os profissionais dos serviços, quanto para aproximadamente 800 famílias (3.450 indivíduos)
os que estão em processo de formação, sejam eles residentes em território urbano ou rural, com limites
estudantes e/ou pessoas da comunidade. geográficos definidos.

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A decisão de implementar a ESF em Fortaleza partilhada os problemas sociais concretos da nossa
foi coerente com os princípios doutrinários do SUS sociedade, com o intuito de transformar a realidade
para se alcançar a universalidade de acesso, a inte- social na qual estamos inseridos num processo em
gralidade de atenção à saúde e a descentralização que todos participem de forma ativa, como sujeitos
do planejamento e da gestão política administrativa da ação. Conforme percebemos, a proposta da LSF
(Andrade e col., 2005). Hoje a formação de recursos destaca a importância de uma práxis pedagógica
humanos para atuação na ESF é um dos desafios à viva no cotidiano do trabalho em saúde, ao eviden-
sua consolidação e à efetividade de suas ações. Para ciar que toda ação humana é um ato criativo e nos
enfrentar este desafio foi criado a LSF. exige uma postura pedagógica de aprender fazendo
ou pesquisar intervindo, ou seja, é uma ponte para a
Extensão Comunitária Libertadora e Psicologia co-construção da autonomia (Brandão, 1984).
Comunitária Uma leitura crítica propositiva da realidade
Nossa proposta de atuação baseia-se na Extensão social na qual estamos inseridos e das práticas e
Comunitária Libertadora. Segundo Ximenes e col saberes de saúde coletiva de base comunitária nos
(2005), historicamente a Extensão Universitária re- exige uma reflexão sobre a vivência, a atividade e a
produz diversos tipos e práticas de atuação. As ações participação comunitária e sobre todas as relações
possuem hegemonicamente o caráter de prestação sociais tecidas nesse processo entre agentes inter-
de serviço à comunidade, desconsiderando o saber nos e externos.
popular. Para esses autores, a EU Na nossa ótica, a atuação dos estudantes na comu-
nidade representa uma prática social em permanente
[...] possui um caráter político com o sentido de
transformação, pois se constitui a partir da dinâmica
propiciar uma apropriação dos moradores e dos
comunitária e da história de vida dos sujeitos e nos
parceiros (agentes externos) que será planejado
requer compreender a história, a política, a cultura
e executado conjuntamente pelos envolvidos no
e a mística popular no cotidiano do trabalho.
processo. [...] A relação entre moradores e dos par-
Historicamente a universidade guarda um distan-
ceiros (agentes externos) que é integrativa. O foco
ciamento das classes populares. Isto aflige muitos
de atuação não é somente os problemas, mas sim a estudantes e gera angústia, medo, resistência. Gera,
prevenção destes e as melhorias que podem servir a também, a pergunta sobre como fazer. A formação é
promoção da qualidade de vida. A ideologia presen- estruturada em saberes técnicos à margem da vida
te é o reconhecimento da força e da capacidade dos social e que não dialogam com outros campos de
moradores (potência transformadora) e do conflito saberes, como o saber popular e as ciências sociais
de classes como base de transformação (Ximenes e e humanas.
col., 2005, p. 2086).
Na LSF, o método utilizado é a inserção comu-
O Início do Sonho Coletivo
nitária que consiste em conhecer a comunidade a
partir de suas atividades culturais, das reuniões Para apresentar a experiência da LSF, gostaríamos
comunitárias em associações locais, da caminhada de situar historicamente como foi tecido o sonho
com informantes-chave, para compreender as dimen- coletivo da sua criação. Essa construção iniciou-se
sões históricas, políticas, culturais, econômicas do em 2005, logo após a mudança na gestão municipal
lugar e construir laços afetivos e de confiança com os de Fortaleza, pois a equipe que assumiu a Secretaria
moradores (Góis, 2008). Para isto, é importante usar Municipal de Saúde tinha um histórico de atuação
linguagens e posturas que permitam a aproximação na implantação e defesa do SUS, e mantinha uma
com a cultura local, com vistas ao encontro entre o tradição de diálogo com os movimentos sociais,
saber popular e o saber científico. inclusive com o movimento estudantil.
A secretaria de saúde reconheceu a importân-
Metodologias Participativas de Pesquisa cia estratégica de pautar as propostas de luta do
A inserção das metodologias participativas de coletivo de estudantes de saúde local – o Fórum de
pesquisa e de atuação visa estudar de forma com- Estudantes de Saúde de Fortaleza (FESF), consti-

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tuído em torno da proposta do Projeto VERSUS3 lidades e formulação, a LSF surge como dispositivo
Brasil – reconhecendo-os como aliados no processo de aprendizagem contextualizada do SMSE. A pro-
de transformação do modelo assistencial à saúde posta emerge organicamente de uma ação apoiada
de Fortaleza. A experiência relatada representou pelo SMSE que visa potencializar os espaços de co-
uma estratégia de gestão participativa no campo da gestão docente - assistencial por meio da proposta do
formação, em virtude de agregar atores ainda sem método da roda (Campos, 2007) e da tenda invertida
interfaces de diálogo. (Andrade e col., 2006).
Naquela ocasião, delineava-se um momento De acordo com Barreto e col. (2006), o SMSE é
histórico em Fortaleza-CE, com a possibilidade real uma estratégia de educação permanente, destina-
de protagonismo dos estudantes no processo de da a transformar toda a rede de serviços de saúde
formulação da Política de Educação Permanente existente no município em espaços de educação con-
em Saúde. Após dois anos de articulação e diálogos, textualizada e desenvolvimento profissional. Nessa
concretizou-se a iniciativa do Projeto Liga Saúde da perspectiva, o objetivo da Secretaria Municipal de
Família, em parceria com a Pró-Reitoria de Extensão Saúde de Fortaleza era transformar, gradativamen-
da Universidade Federal do Ceará (UFC), produzindo te, todas as suas unidades de saúde em espaços de
interface com o desenho organizacional do SMSE de ensino, pesquisa e assistência.
Fortaleza-CE (Barreto e col., 2006). Para a construção de uma nova relação política,
É importante assinalar que o SMSE é composto acadêmica e institucional, vai sendo tecida junto
pela gestão municipal, pelos trabalhadores de saúde, à UFC e à UECE uma ação na qual o mestre vai ao
pelas instituições de ensino e pelos usuários do SUS, território do aprendiz, garantindo a autonomia dos
aproximando o modelo de gestão (que aponta para a sujeitos no processo de co-gestão e tomada de deci-
co-gestão participativa) do modelo de atenção (ESF). são. Para Campos (2007, p. 158):
Em 4 de janeiro de 2007, o SMSE foi normatizado
O Método da Roda trabalha com a categoria de co-
pela Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza,
gestão, ou seja, com a idéia de poder compartilhado
conforme a portaria 160/2006, publicada no Diário
e não poder exercido de forma solitária e isolada.
Oficial do Município de Fortaleza-CE.
Rede de poder, diversos espaços de poder, mas sem-
Dessa forma, a proposta da LSF, fruto do desejo
pre pensando-os como instâncias de poder relativo,
político da UFC e mediante atuação conjunta da
poder parcial (2007, p.158).
Pró-Reitoria de Extensão, da Secretaria Municipal
de Saúde (SMS) de Fortaleza, dos estudantes, movi-
mentos populares, professores e professoras mais Apresentando os Objetivos e os
próximos ao campo social da área de saúde, foi ins-
titucionalizada. A primeira edição do projeto, com Atores do Liga Saúde da Família
início em agosto de 2007, envolveu seis cursos de Situada no contexto da extensão comunitária e na
graduação da UFC (Educação Física, Enfermagem, perspectiva da gestão participativa no SMSE, a
Farmácia, Odontologia, Medicina e Psicologia) e o proposta da LSF enfatiza a importância da atuação
Curso de Gestão Hospitalar da Faculdade Integrada no cotidiano de vida das classes populares para a
do Ceará (FIC). Durante esse processo, formalizou-se formação do profissional de saúde, através da produ-
também um grupo de trabalho na Universidade Es- ção de projetos pedagógicos que tenham espaço para
tadual do Ceará (UECE) com o objetivo de construir a inclusão do saber popular ao saber técnico. Esta
sua participação no projeto com base em suas espe- perspectiva de integração, coerente com a tradição
cificidades. Esta se efetivou em março de 2008. das ciências sociais e humanas, foi buscada na parti-
Em seguida, com a etapa de construção de viabi- cipação de grupos populares locais na estruturação

3 O Projeto VERSUS Brasil consiste em um dispositivo de mudança da graduação em saúde do Ministério da Saúde e do movimento estu-
dantil de saúde, que objetivava aproximar estudantes universitários aos desafios inerentes à implantação do SUS. Tal projeto previa a
permanência de quinze dias de vivência intensiva em um sistema municipal de saúde.

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do desenho pedagógico e operacional do projeto. . ponibilizou profissionais de saúde especializados
O objetivo geral da LSF foi desenvolver a inserção em saúde da família, que formaram a equipe técnica
de estudantes de graduação de cursos da área de de coordenação do projeto, e preceptores que acom-
saúde na ESF de Fortaleza-CE. Assim, possibilitou a panharam as atividades de campo nos Centros de
construção de uma parceria na perspectiva da gestão Saúde da Família (CSF) e na comunidade onde as
participativa entre universidades, serviços de saúde equipes de estudantes estavam inseridas.
e comunidade, para formação profissional na APS
tendo como eixo metodológico o método da roda.
Desenho Operacional e Pedagógico
Especificamente o projeto se propunha a: a) ense-
jar a integração entre ensino, serviço e comunidade do Projeto
a partir do método da roda como espaço coletivo de O projeto foi realizado com desenhos operacionais
co-gestão; b) propiciar a vivência de trabalho em e pedagógicos singulares em cada realidade (UFC e
equipe multiprofissional na atenção primária para UECE), construídos a partir do diálogo entre movi-
estudantes de graduação da área da saúde com mento estudantil (FESF), professores universitários
base no princípio da integralidade; c) estimular o e técnicos da SMS de Fortaleza. Este formato garan-
estudo e o debate sobre o SUS e a ESF; d) possibili- tiu a coerência com algumas idéias-força já descritas
tar aos estudantes do campo da saúde a vivência na neste relato, em particular a gestão participativa,
comunidade e o aprendizado dos saberes e fazeres orientação que norteia o sistema de saúde munici-
ali construídos; e) discutir um campo comum de pal. Embora tanto a UFC quanto na UECE tenham
conhecimento e intervenção das diversas categorias adotado a gestão participativa, buscou-se garantir
profissionais na ESF; f) discutir os núcleos especí- a autonomia das instituições e respeitar as carac-
ficos de conhecimento e intervenção das diversas terísticas de professores e estudantes e o período
categorias profissionais na ESF; e g) potencializar histórico de implementação em cada universidade.
o desenvolvimento de pesquisas, especialmente as Após a construção e desencadeamento da primeira
participativas, na comunidade. fase do projeto, o núcleo central de membros, mais
A composição da LSF incluiu os seguintes ato- estável, constituído pelos professores universitários
res sociais: professores universitários da área de e técnicos da SMSF, manteve reuniões periódicas
saúde que atuavam como tutores do grupo; profis- para planejamento e programação das atividades.
sionais de saúde vinculados à SMS que atuavam O primeiro contato com os estudantes é o pro-
como coordenadores da formação; preceptores de cesso seletivo, que se baseia em entrevista coletiva
campo (preceptores de território) e os estudantes e análise de uma carta de interesses e do curriculum
extensionistas. Quanto a seus integrantes, tive- vitae. Concluída a seleção, há um período de está-
mos professores e pesquisadores de saúde coletiva gio de vivência, quando os integrantes discutem
dos seis cursos de graduação em saúde da UFC, a as idéias-força que norteiam o projeto e conhecem
saber: Enfermagem, Educação Física, Farmácia, algumas experiências de grupos populares do mu-
Odontologia, Medicina e Psicologia, bem como seis nicípio de Fortaleza-CE.
estudantes de cada um destes cursos, perfazendo um Ao fim do estágio de vivência promove-se um
total de 42 extensionistas. Além destes, integraram planejamento participativo, no qual são definidos,
o grupo dois professores e seis estudantes do Curso dentre outros pontos, as principais diretrizes e o
de Graduação em Gestão Hospitalar da Faculdade cronograma geral e por categoria das atividades do
Integrada do Ceará. A UECE participou com 11 pro- projeto. Para a composição das equipes interdiscipli-
fessores e 25 estudantes dos cursos de graduação nares são feitas oficinas de trabalho que definem o
em Enfermagem, Medicina, Medicina Veterinária, território de atuação da cada equipe interdisciplinar
Nutrição e Serviço Social. Em 2009, estudantes e de estudantes.
professores do Curso de Educação Física passaram Em cada universidade são constituídas equipes
a integrar o grupo. interdisciplinares compostas por estudantes dos
Destacamos, ainda, que a SMS de Fortaleza dis- diferentes cursos de graduação, profissionais do

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SMSE que atuavam como preceptores de campo a todos os membros da equipe multiprofissional em
com o apoio pedagógico dos professores orientado- saúde da família: SUS (normas, gestão, financiamen-
res. Cada equipe formada passa a atuar em um ter- to), atenção primária à saúde e ESF, saúde pública,
ritório, área de inserção comunitária de referência. vigilância à saúde e educação popular em saúde são
As atividades de campo dessas equipes acontecem os principais temas.
durante a semana, geralmente no espaço dos Centros 2. A comunidade de prática específica de cada pro-
de Saúde da Família, e aos sábados, vivenciando o fissão: nestas comunidades os estudantes se apro-
contexto comunitário da área de abrangência do ximam do perfil de atuação e de produção científica
serviço. de sua categoria profissional na atenção primária
Os estudantes integrantes das equipes interdis- à saúde. Eles vão se apropriando do jargão caracte-
ciplinares também realizam uma roda por categoria rístico de sua profissão no interior do processo de
profissional, com seus professores orientadores. trabalho da equipe de saúde da família, do perfil
Nesta oportunidade, os alunos inseridos em dife- da clientela e dos tipos de problemas de saúde com
rentes territórios de atuação, junto às equipes in- os quais trabalham, bem como do modo específico
terdisciplinares, apresenta sua vivência e discute a como sua profissão atua neste espaço. Outras ati-
atuação de cada categoria profissional no contexto vidades significativas, que aprofundam a inserção
da saúde da família. Esta atividade favorece a inte- na comunidade de prática de cada profissão são os
gração entre teoria e prática, e permite também ao congressos científicos.
grupo construir uma compreensão sobre o núcleo Mensalmente, todos os integrantes do projeto se
(teórico e prático) da atuação de cada profissão – encontram em uma roda ampliada que além de ser
os conhecimentos específicos úteis aoprocesso de um espaço de deliberação é também espaço para
trabalho da equipe de saúde da família. avaliação e planejamento de atividades e estudos.
Esta metodologia tenta propiciar momentos em Conforme assevera Brandão (1984), a equipe
que os estudantes trabalham e vivenciam a atuação interdisciplinar inicia o processo de inserção co-
em equipe interdisciplinar, e momentos de distan- munitária, considerada uma etapa importante e de
ciamento da prática, quando eles refletem, com caráter transversal no projeto, por meio da técnica
colegas do mesmo curso de graduação e professores, de investigação ação-participante. O primeiro con-
sobre a atuação específica de sua futura profissão tato com a comunidade ocorre por intermédio da
na Estratégia de Saúde da Família. identificação dos informantes-chave, dentre os quais
Assim, os estudantes, à medida que participam lideranças comunitárias, lideranças espirituais,
das atividades práticas e dos momentos de reflexão, homens e mulheres envolvidos diretamente na or-
através de um processo de “aprendizagem periférica ganização da vida comunitária. Este momento deve
legitimada” (Lave e Wenger, 1991), vão se integrando se pautar na autenticidade, compromisso e transpa-
progressiva e concomitantemente a duas comunida- rência com o outro. Nesse processo, a comunidade
des de prática (Wenger, 1998): acolhe pessoas, que se apresentam e informam sua
1. A comunidade de prática interdisciplinar de saúde origem institucional e o motivo de sua presença. Pela
da família, formada pelo grupo multiprofissional que aproximação afetiva e dialógica com os informantes-
compõe a ESF: médicos, enfermeiros, odontólogos, chave inicia-se um processo de familiarização entre
assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas, nu- os agentes externos e internos (Montero, 2006).
tricionistas, educadores, técnicos de enfermagem, A familiarização consiste em um momento de
agentes de saúde e lideranças comunitárias. Nesta troca de identidades pessoais e coletivas, com vis-
comunidade os estudantes têm contato com a reali- tas à compreensão do modo de vida do lugar, seus
dade de vida das comunidades da periferia de Forta- maiores valores culturais, suas lutas históricas,
leza, com sua história, sua cultura e com os métodos conquistas e derrotas. Além dos aspectos históricos
e rotinas de trabalho das equipes multiprofissionais e culturais, importa também o conhecimento da rea-
de saúde da família. O repertório compartilhado é lidade social e geográfica do local, concretizada pelo
constituído pelo campo de conhecimentos comuns ato de passear ecaminhar pela comunidade junto

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com os moradores locais, conhecer os espaços cole- comunitária, são realizadas rodas de conversa
tivos comunitários, as instituições governamentais sobre elaboração de projetos sociais com todos os
e as não-governamentais. integrantes do projeto, onde cada equipe deverá
Esse é um espaço de troca mútua entre todos elaborar seu projeto de atuação comunitária. Com o
os participantes, onde acontece a abertura dos plano de atuação elaborado, promove-se uma oficina
agentes internos para que os agentes externos de apresentação das equipes com a participação de
apreendam seus valores sociais e culturais. Nesse todos os atores envolvidos: estudantes, professores,
momento ocorre um levantamento da história de facilitadores, co-facilitadores e comunidade.
luta e resistência da comunidade, fazendo emergir A seguir, durante um período de quatro meses,
alguns dos principais problemas da comunidade os estudantes desenvolvem o plano de atuação em
e as potencialidades presentes. Pouco a pouco, o parceria com a comunidade e a equipe de saúde da
trabalho em equipe vai sendo produzido por meio família, até o momento de desligamento progressivo
da construção de vínculos afetivos com a realidade das equipes para a chegada de novos integrantes. A
social, do convívio com trabalhadores de saúde, téc- última etapa do projeto constará da construção
nicos dos serviços, atores comunitários, bem como das estratégias de desligamento progressivo (Góis,
com os colegas de equipe. Complementarmente, os 1993), com a elaboração de processos de reflexão
dados demográficos, socioeconômicos e epidemioló- sobre a experiência vivida e a socialização junto à
gicos acessados no Instituto Brasileiro de Geografia comunidade e à equipe.
e Estatística (IBGE) e nos Sistemas de Informação Concluído o primeiro ano de atuação, os estudan-
em Saúde são fontes importantes de construção da tes mais envolvidos são convidados a continuar no
leitura ampliada da comunidade. projeto como co-facilitadores de campo, e trabalha-
Essa etapa do estágio tem como um de seus rão no apoio ao processo de preceptoria juntamente
resultados a produção de um relatório conjunto com profissionais do SMSE. É fundamental sua
da equipe interdisciplinar, comunidade e serviços participação no processo de inserção comunitária
de saúde. Este relatório deve ser apresentado aos das novas equipes selecionadas.
principais parceiros da equipe, instituições locais, Conforme observamos, no seu cotidiano de
informantes-chave e lideranças comunitárias, e práticas, o projeto enfrenta alguns desafios, como
constitui um dispositivo de problematização sobre a formação dos profissionais de saúde que histo-
a realidade comunitária, abrindo a discussão sobre ricamente desconsidera a possibilidade da inter-
temáticas significativas para a elaboração de um venção no campo da saúde interagir com o saber
plano de atuação que seja considerado importante construído pelo cotidiano de práticas de cuidados
pela comunidade, para ser desenvolvido em parceria da comunidade. Como sabemos, a perspectiva tra-
com a equipe do LSF. dicional do ensino na educação superior não inclui
A definição da temática pode acontecer de diver- as estratégias didático-pedagógicas ou os modos
sas formas: ela vai sendo tecida durante o processo de ensinar problematizadores, construtivistas ou
de inserção comunitária da equipe. Por ser etapa concretizados mediante o protagonismo dos estu-
decisiva, dispõe-se de tempo hábil para a elabora- dantes. Mais ainda, desconhece a importância da
ção e o desenvolvimento compartilhado do plano interação entre estudantes das diversas profissões,
de atuação, ressaltando-se a relevância da efetiva bem como o valor da interação entre os estudantes
participação da comunidade para a sustentabilidade e as comunidades nas quais irão atuar no futuro.
das ações propostas. Nesse caso, os agentes externos Portanto, contribui para o distanciamento das di-
(estudantes, professores e técnicos da saúde) são versas categorias profissionais de saúde entre si e
facilitadores de uma caminhada que deve ter como entre estas e a população.
protagonista a própria comunidade. Esta vivência Podemos destacar ainda a pouca flexibilidade
possibilita aos estudantes lidar com questões con- dos currículos da área de saúde, aliada às diversas
cretas de estratégias de gestão participativa. grades curriculares paralelas de cada estudante.
Após o momento de consolidação da inserção Isto dificulta a vivência de trabalho em equipe in-

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terdisciplinar, a inserção e a participação efetiva Na experiência da UFC cada equipe produziu, de
em experiências de extensão como a LSF. Daí a re- forma compartilhada com os diversos atores, um
levância do planejamento conjunto das atividades, plano de atuação com base nas situações-limite e
especialmente nos espaços de atuação das equipes, potencialidades que atendesse às necessidades da
como também da dedicação e compromisso ético comunidade. Tal plano foi apresentado e discutido,
do estudante com a sua formação e com as pessoas no território e internamente, entre os integrantes
envolvidas nos processos de trabalho. do projeto e técnicos do SMSE.
A operacionalização desse plano, em cada ter-
ritório de atuação, teve a participação e o acompa-
Avanços e Desafios do Projeto Liga nhamento da comunidade e dos serviços de saúde,
Saúde da Família destacando-se o planejamento participativo das
No mês de julho de 2008, a LSF completou um ano atividades e, principalmente, o processo de gestão
na UFC, encerrando as atividades da primeira turma participativa na operacionalização do plano e no
e preparando o processo seletivo para a turma de cotidiano de práticas das equipes. Refletiu-se,
estudantes que ingressou em agosto de 2008. Na então, uma parceria entre universidade, serviço e
UECE, após a discussão entre professores e técni- comunidade.
cos do SMSE acerca das idéias-força e referenciais Conforme descrito, as experiências guardam sin-
norteadores do projeto na instituição de ensino, gularidades. Nesse sentido, a experiência da UECE
realizou-se o processo seletivo de estudantes, uti- adotou a estratégia de fomento à elaboração de um
lizando uma metodologia de entrevistas coletivas. planejamento participativo nos Centros de Saúde
Houve um planejamento geral do projeto, quando da Família onde as equipes estão inseridas, com a
se definiram as atribuições dos participantes, o participação de estudantes, profissionais de saúde
cronograma de atividade geral e de categoria, as e usuários do serviço. Isto “denota” a riqueza da
estratégias de co-gestão, e foram criadas comissões construção compartilhada, que aponta para a gestão
e um colegiado de coordenação do projeto, com par- participativa nos espaços onde a LSF tem atuado.
ticipação docente, estudantil, da comunidade e dos Ao final do primeiro ano das atividades do projeto
serviços de saúde. Como evidenciado, há profundo houve um processo de avaliação geral participativa,
envolvimento, empolgação e protagonismo de estu- do qual emergiram questões importantes para re-
dantes e professores na construção do projeto. flexão e aprendizagem, que subsidiaram a tomada
Durante os anos de 2007 e 2008, respectivamen- de decisão.
te, os integrantes da LSF da UFC e da UECE realiza- Historicamente a LSF constitui-se como uma
ram o processo de inserção comunitária, conhecendo experiência pioneira no campo do trabalho de inter-
a organização e o funcionamento dos Centros de locução entre universidade - serviço - comunidade na
Saúde da Família. Estimulou-se o mapeamento de perspectiva da gestão participativa, configurando.
equipamentos sociais juntamente com as equipes da um salto histórico nessa relação, pois colocou na
ESF, destacando-se as caminhadas no território na mesma arena política todos os atores envolvidos
companhia de agentes comunitários de saúde e pes- no processo.
soas da comunidade. A partir dessas caminhadas, Como conseqüência da experiência vivida nos
construíram-se vínculos e aprendizado comparti- territórios e das reflexões teóricas gerais, no âm-
lhado e, conseqüentemente, as equipes teceram uma bito das equipes interdisciplinares e nos grupos de
análise da situação de saúde do território. Percebe- discussão por categorias, verificou-se um processo
mos a importância desse reconhecimento, no qual de sistematização dessas experiências, evidenciado
o equipamento social é também considerado uma pela elaboração e apresentação de resumos e traba-
potencialidade de saúde para a comunidade, o que lhos em eventos científicos locais e nacionais, com
amplia o debate sobre territorialização nos espaços participação efetiva de estudantes, facilitadores e
de atuação das equipes. professores. Em 2008, por exemplo, a LSF foi lem-

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brada como menção honrosa no Encontro Regional a equipe técnica de coordenação juntamente com
de Estudantes de Medicina, e um relato da experiên- as universidades.
cia produzido por uma das equipes foi premiado Outro resultado considerado relevante foi à
no 9º. Congresso Brasileiro de Medicina de Família inserção de parte dos estudantes participantes do
e Comunidade, ocorrido em Fortaleza-CE. Neste primeiro ano do Liga Saúde da Família na UFC como
ano de 2009, fomos contemplados entre as quinze co-facilitadores dos estudantes selecionados para
experiências exitosas no Prêmio Sergio Arouca de o segundo ano do projeto. Este fato caracteriza a
Gestão Participativa, organizado pelo Ministério da aproximação destes estudantes do núcleo de conhe-
Saúde. Este é um fato bastante significativo para cimentos e práticas da saúde coletiva.
uma experiência recente, mas com potencialidade Mencionamos ainda como avanço a obtenção
para fortalecer o tripé da universidade pública ao de financiamento para o projeto por meio do Pro-
articular ensino, pesquisa e extensão. grama de Educação pelo Trabalho para a Saúde
Ressaltamos a complexidade de um projeto de ex- do Ministério da Saúde (PET - Saúde) em 2009, o
tensão que busca uma identidade popular e caráter qual proporcionou maior integração de diferentes
interdisciplinar, no qual estão envolvidos diversos profissionais dos Centros de Saúde da Família nas
atores com formação acadêmica e social distintas, atividades do projeto.
cada um com seus anseios e motivações, interagin- Estivemos, nestes dois anos de caminhada,
do e aprendendo com os desafios e dificuldades no aprendendo coletivamente a construir essa experiên-
cotidiano do fazer. cia, descobrindo conquistas e desafios por meio da
Apesar de alguns problemas operacionais do vivência no território e das reflexões teóricas, dos
projeto, percebeu-se uma ampliação do olhar crítico quais o mais importante foi a participação ativa
e propositivo dos estudantes e o ganho na capacidade dos diversos atores no processo de planejamento e
de trabalhar em equipe, diferencial identificado pelos co-gestão do projeto.
professores em sala de aula, no cotidiano do ensino.
Como observamos, alguns estudantes aproxima-
ram-se de movimentos sociais, tal como a ANEPS-
Concluindo o Relato
CE, exercendo um papel protagonista também na Segundo percebemos, o projeto possui espaços de
organização do IV Encontro Nacional de Educação vivência e formação pedagógica integrada e parti-
Popular em Saúde em Fortaleza-CE. cipativa. As referências pedagógicas essenciais da
Observamos ainda uma maior integração entre nossa prática são a educação popular em saúde e a
os professores dos diversos cursos da área de saúde. educação permanente em saúde. Ambas permitem o
Tal fato merece destaque na universidade em face desenho de metodologias participativas no processo
da sua história de fragmentação do diálogo entre as de trabalho.
diversas graduações em saúde. Dessa forma, o traba- Dessa experiência emergiram muitos avanços.
lho interdisciplinar foi percebido durante o processo Entre estes gostaríamos de ressaltar o trabalho em
de avaliação como um dos maiores avanços, ao lado equipe, o protagonismo dos integrantes e da comu-
da perspectiva de trabalho comunitário. nidade na construção das atividades e a ampliação
Como uma das instituições idealizadoras da LSF, do olhar crítico sobre a realidade social e o trabalho
a Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza-CE em saúde. Destacamos ainda como avanço para os
apoiou amplamente o projeto, e houve uma interface saberes e práticas no contexto da saúde da família a
no sentido do processo ensino-aprendizagem com as ênfase na perspectiva do trabalho comunitário.
diversas iniciativas do SMSE, tais como: Preceptoria Compreendemos o projeto como uma comunida-
de Território, Residência de Medicina de Família e de ampliada de aprendizagem, gerador de integração
Comunidade e Especialização em Saúde da Família. entre ensino, serviço e comunidade. Dessa forma,
Ademais, na construção do projeto foi fundamental atende a uma perspectiva de gestão participativa
a participação de profissionais de saúde compondo e dialógica.

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Recebido em: 27/04/2011


Aprovado em: 18/09/2011

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