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kg 2 EDUCAGAO AUTOCTONE NOS SECULOS XVI AO XVII OU AMERICO VESPUCIO TINHA RAZAO? Paula Caleffi Este capitulo parte de uma afirmagiio: a educagdo esti presente em to- das as sociedades humanas, tendo elas ou nao sistemas de ensino institu- cionalizados. As formas como ocorre a edueagiio e o que esta compreende sio elementos peculiares a cada cultura Para isto necessitamos um conceito que entenda a educagio como um amplo processo nfo vinculado necessariamente a um sistema de ensino ins- titucionalizado ou mesmo a existéncia da lingua escrita, mas a edueagio como o provesso de socializagao dos individuos em uma dada cultura, To- dos 0s elementos e nogdes que um sujeito apreende e que faz dele membro de uma determinada comunidade constitui um processo educativo. Aquilo que aprendemos de nossos pais, parentes e do grupo no qual vivemos, a for- ‘ma herdada, cotidianamente reinventada de compreensio de um cosmos. Poderiamos ser acusados aqui de uma demasiada aproximagao entre 0 conceito de educagio ¢ o de cultura; em relagio a isto argumentamos: no foram os sistemas de ensino criados pelos diversos Estados, maneiras ins- titucionalizadas de garantir a continuidade de uma forma de vida? De uma visio de mundo? Assim, tomamos como proceso educativo aquele que socializa um in- dividuo em uma determinada cultura, processo formador de idemtidades, provesso no qual o sujeito interage constantemente, pois, segundo Sahlins, “Sea cultura for como querem os antropslogos, uma ordem de significa- ¢¢40, mesmo assim 0s significados sio colocados em risco na agio” (1990: 9). Ou seja, mesmo que herdemos de nosso meio social, com formas insti= 2. Educagde autéctone nos séculos XVI a0 XVII. 33 tucionalizadas ou nio, significados que nos ajudem a entender o mundo, reavaliamos estes significados no momento de po-los em pritica, toman- do-nos assim sujeitos das ¢ nas dinimicas soci is. Nosso objetivo, neste capitulo, & extremamente ambicioso: escrever, dar a conhecer, a educagao autéctone (indigena), em parte do territorio do Império colonial portugués, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, ter rit6rio este que viria a formar a Repiblica Federativa do Brasil. Para um tema com tamanha amplitude faz-se necessario escolhermos ¢ assumirmos determinados procedimentos metodolégicos. Como aborda- gem escolhemos 0 “perspectivismo” elaborado por Todorov, onde o autor defende a ideia de que para a compreensio do outro é necessirio termos a perspectiva da cultura deste outro, entendendo-o como participante de um contexto social mais amplo (1983, p. 187, apud Sablins, 2001: 25). Assim, perseguiremos 0 objetivo de entender 0 outro (0 indio) como sujeito de sua historia, portador de culturas distintas da vivenciada pelo ‘mundo greco-judaico-cristo do colonizador, agente criador de um cos- ‘mos, que, diferente do que pensavam os europeus que aqui chegaram, nao era uma etapa da evolugdo humana, onde a cultura europeia seria a forma amadurecida ¢ portanto civilizada, mas sim uma maneira original, tio completa ¢ amadurecida quanto pode ser a curopeia ou qualquer cultura, porém diferente, peculiar, uma outra maneira de sere estar no mundo, 0 iiltimo censo elaborado pelo IBGE, em 2000, aponta uma cifra de 729,000 individuos para a populagao indigena no territério brasileiro per- tencente a varias culturas distintas, Apesar dos censos da época colonial apresentarem iniimeros problemas, e em trés séculos, do XVI ao XVIII, a situagdo demogrifica haver se modificado muito, podemos inferir uma ci- fra bem maior que a de 2.000 para o periodo colonial. A Fundagio Nacio- nal do indio (Funai), mesmo com grande variagdo, corrobora nossa afi maga ao estimar para 1.500, uma ciffa entre um e dez milhes de indige- nas no que constitui-se hoje territério brasileiro, com aproximadamente mil etrezentas linguas distntas, Pois bem, cada cultura indigena tem uma forma peculiar original de construcao do mundo, vivenciando uma histo- ricidade que Ihe ¢ propria, Assim, ndo existe “o indio” portador de uma cultura homogénea, mas um mosaico de culturas diferentes entre sie dife- rentes da do colonizador. Com isto definimos que nossa andlise buscara a abrangéncia da com- preensio dos processos de educagao nestas culturas, privilegiando tragos em comum que elas possam ter em detrimento de uma andlise mais apro- Historias e memérias da educagao no Brasil- Vol. | 34 fundada de uma delas, o que necessitaria uma delimitagdo de tempo e espa sodiferente. Como dissemos, cultura e educagio so entendidos por nds como pro- cessos insepariveis; neste sentido faz-se necessério aproximarmo-nos ¢ compreender as culturas indigenas no que elas tém de semelhante, o mixi- 1mo possivel, buscando “mergulhar” em suas légicas, para, na medida em ue formos tecendo a conformagao dos tragos em comum destas culturas, fazer com que emerjam os processos educativos como indissociaveis dos processos culturais. ‘A questo do quanto podemos “mergulhar” ¢ entender uma cultura di- ferente da nossa é muito discutida pela bibliografia antropol6gica e mesmo filos6fica, Talver seja impossivel atingirmos a totalidade da alteridede, pois deixariamos de traduzir o que percebemos para nossas pautas cultu- rais, e passariamos a compreender o outro exclusivamente a partir da sua cultura, 0 que seria o mesmo que abrirmos mao de nossa identidade ¢ nos tomarmos o outro, E esta ndo seria uma forma de convivéneia intercultw ral, porém para que esta convivéncia com o diferente seja possivel acredi- tars, sim, ser necessario o exercicio de busca da compreensio da cultura do outro como tum todo, com coeréncia prépria, construida por sujeitos historicos, porém sem perdermos a nogdo de onde falamos. FONTES. Nosso desafio é duplo, pois trabalharemos com uma dupla dimensio daalteridade: uma referente & compreensio de culturas diferentes ¢ outra em relagdo ao tempo, compreender estas culturas em outro tempo. Os registros historicos que tratam das culturas indigenas foram produ- Zigos pelo colonizador, e com isto espelham a visio do europeu sobre estas culturas, Encontramos, durante os primeiros séculos, os relatos dos explo- radores/conquistadores, dos viajantes, dos missionarios, ea documentagio decariter oficial. Porém, os produtores destes registros estavam preocupa- dos em resolver outros problemas, diferentes da compreensio dos proces 05 educativos dos povos indigenas, se & que consideravam a existéncia destes, pois justamente a auséncia destes serviria como um argumento a mais para submeter estes povos ao “processo civilizador”. Segundo Melia, as fontes documentais escritas sobre os povos indige nas possuem uma centralidade que certamente nao é a da meméria indi- gena, Porém, com a emergéncia dos estudos antropolégicas, tomou-se possi- 2. Educagdo auléctone nos séculos XVI ao XVIlL. 35 vel fazer uma leitura a partir de outra hermenéutica, diferente da que pro- dluziu as proprias fontes (1997: 37-38). Américo Vespiicio, relatando sua viagem as terras do Império Portu- gués nas Indias Ocidentais, em um trecho de carta dirigido a Lorenzo di Pietro Medice, desde Lisboa, diz 0 seguinte: Esta terra é povoada de gentes completamente nuas, tanto os homens quanto as mulheres. Trabalhei muito para estudar suas vidas, pois du- rante 27 dias dormi e vivi em meioa eles. Nao tem lei nem f€alguma, vvivem de acordo com a natureza ¢ ndo conhecem a imortalidade da alma, Nao possuem nada que Ihes seja prprioe tudo entre cles & co- ‘mum; nao tem fronteiras entre provincias ¢ reinos, nao tem reis ¢ no ‘obedecem a ninguém [...] (1502). Ao lermos esta carta, e principalmente o trecho selecionado acima, constatamos que uma leitura a partir de uma outra hermenéutica corrobora tanto as descobertas arqueolgicas sobre as populagdes indigenas, como 40s estudos de etnologia. A mesma afirmagdo, exa- VESPVC| minada sem o preconceito da : poca na qual foi escrita, indica que estas sociedades indigenas Y eram sociedades que se orga- nizavam a partir de lagos de parentesco ¢ nio a partir de um poder separado do corpo so- cial © institucionalizado cha- mado Estado, por isto Vespiicio nao encontra um rei, Eram so- N ciedades onde a religiosidade perpassava todos seus aspec~ tos, em todos os momentos, nas (quais a relago com a natureza era muito importante ¢ 0 mito possuia um papel fundamen- tal, porém, Vespicio, no en- contrando idolos, imagens ou cédices religiosos, considerou Américo Vespicio (Série RaizesGaichas.Vol.|~ que eram sociedades sem fé. Rio Grande do Sul Histrico, Poo Alegre: rigs tarabéin gociedades dé PaineV/RBS, s.4., p. 20). tradicdo oral onde as ideies e as Histéris e meméras da educagao no Bras! ~ Vol. 36 rnormas eram transmitidas de outras maneiras que no a eserita, Vespaicio, novamente nio compreendendo esta caracteristica ¢ a0 no encontrar leis escritas, concluiu que as sociedades indigenas eram sociedades sem lei APRENDER SEM PROFESSOR ‘As sociedades que tém nos lagos de parentesco um dos principais pontos de organizacio sto, como ja dissemos, sociedades que vivenciam 0 mundo de forma diferente do que aquelas que tém na instituigdo do Estado seu “si tema nervoso central". Por Estado entendemos aqui um estratoinstituciona- lizado da sociedade, que detém o poder e que pode legitimamente exercé-1o ccomo forga coercitiva sobre o corpo social (SERVICE, 1984: 11), Nas so- ciedades de parentesco prevalece a ideia da comunidade, o sujeito encontra seu lugar no mundo porque esta inserido em uma coletividade, ali ele apren= de seus deveres e 0s deveres da coletividade para com cle. As comunidades formam-se a partir das familias extensas (geralmentetrés geragdes), que es- tabelecem lagos sociais entre si através de casamentos, ampliando os lagos de parentesco. Também ¢ possivel estabelecer aliangas através de um outro clemento chamado reciprocidade. Com a reciprocidade eu garanto que no ‘momento em que convidei uma outra familia para partithar de uma comida cu de uma festa serei por ela convidado em outra ocasiio, Estas sociedades possuem suas proprias nogdes de produgdo e de traba- tho, por exemplo, dizem delas que nao sio sociedades que vivem para traba- Ihar, mas que trabalham simplesmente para viver (SAHLINS, 2001). O tra- balho estédividido pelas categorias de sexo e maturidade, ou seja, todos os homens ¢ mulheres de uma mesma faixa etiria tém acesso a todo 0 conheci- ‘mento necessirio para desempenhar qualquer tarefa que, naquela cultura, diga respeito justamente & sua condi sexual e sua faixa de maturidade. ‘iio comunidades que produzem para satisfazerem suas necessidades did- rias, parando com as atividades produtivas quando estas estio sats Por serem comunidades com uma especial vivéncia da natureza, nio faz sentido que os mesmos colham uma roga inteira de mandioca em um dia se no pretendem consumi-la, enquanto a mesma esti muito melhor conserva- da ficando na terra e sendo retirada de acordo com as necessidades. Poderia- ‘mos dar varios exemplos deste tipo, como a pescaria: para que pescar uma enorme quantidade de peixes se os mesmos nio serio todos consumidos? Pesca-se o necessiirio para o dia, ¢, aso a comunidade decida comer pei- xe no outro dia, retorna-se ao rio. Os estoques destas comunidades encon- tram-se na natureza esto formados de diferentes maneiras com o mancjo de 2, Educagio aulécione nos séuulos XVI ao XVII a7 raizes, arvores frutiferas; a horticultura pode estar presente, a caga e a pesca entre virios outros. Estas sociedades no buseam armazenar bens fora da na- tureza, por isto uma das priticas, quando ocorrem excedentes de algum tipo, 6 que os mesmos motivem convites inter e intracomunitarios, para os encon- tros ¢ feslas que reafirmam as aliangas ¢ constituem momentos de retribuir convites. A reciprocidade ¢ fundamental para a articulagao da continuidade deste modo de ser, Assim, Vespiicio observa em sua carta que estas pessoas nao possuiam nada de proprio ¢ tudo entre eles era comum, A no existéncia de um Estado institucionalizado nestas sociedades in- digenas nao significa que nao existam lideres, Porém, a lideranga deve es- tar alicergada nas qualidades pessoais do sujeito, pois o mesmo consti- tui-se er uma autoridade sem status formal (ARENDT, 1961: 92-93). Isto significa que autoridades emergirdo somente no momento que o grupo te- nha necessidade delas. Algumas das qualidades consideradas fonte de prestigio das liderangas slo a generosidade, a capacidade de oratéria ¢ a coragem (CLASTRES, 1987). Através da generosidade o lider reforga justamente a categoria da reciprocidade; a eapacidade de oratdria & fundamental nas sociedades de tradigdo oral, pois através desta oratoria o lider tem condigdes de repe- tir sobrea comunidade elementos importantes da cultura, ou seja, o lider & responsavel por derramar sobre a sociedade o discurso que emana dela mesma. A coragem é uma importante qualidade capaz de garantir, em de- terminadas situagGes, a propria continuidade fisica do grupo. Porém, no significa que exista apenas um lider em cada comunidade, pois a mesma abrird espago para que os lideres aparegam com suas qualidades de acordo com a nevessidade do momento, acarretando que contextos diferentes pos- sam levar ao primeiro plano pessoas também diferentes. Por exemplo, a pessoa que dirige um ritual é geralmente um ancido, versado na mitologia da comunidade, porém, provavelmente a lideranga que desponta frente a ‘uma situagao de conflito entre comunidades 6 alguém cuja coragem e ju- ventude se destaque (SERVICE, 1984: 69). Nao podemos imaginar que as comunidades indigenas estejam além das relagies de poder. Apesar da nao existéncia de um estrato de poder ins- titucionalizado separado do corpo social, as relagdes de poder esto pre- sentes no cotidiano das pessoas como priticas sociais de autoridade, fazen- do da “Microfisica do Poder”, trabalhada por Foucault (1995), um instru- ‘mento teérico muito pertinente no estudo das sociedades de parentesco, As relagdes de autoridade sio vivenciadas no proprio cotidiano, entre os sujei- tos, podendo envolver as mais diversas categorias de relagies, dependendo Histérias @ memérias da educacdo no Brasil ~ Vol. | 38 da caltura da qual estejamos falando, disputas entre geragdes, disputas en- tre homens e mulheres, entre homens ¢ homens ¢ entre mulheres e mulhe- res, tendo diregdes preferenciais, mas nio predefinidas; durante estas dis- putas também vai ocorrendo a prépria tessitura das atualizagdes culturas, Um dos pontos que gostariamos de chamar a atengo, como referimos acima, & que todos nas comunidades de parentesco tém acesso a todo 0 co nhecimento que a comunidade detém. A lideranca espiritual pode aparecer como a mais préxima de uma excegdo porter um conhecimento mais espe- cializado no trato da saiide e deter um canal espiritual privilegiado, o que nao significa que os outros nao o tenham. Entretanto, como dissemos, a li- deranga espiritual, por suas qualidades e pelos caminhos iniciéticos que pereorreu, detém um conhecimento de forma privilegiada, Mas todas as pessoas sabem fazer tudo o que Ihes corresponde sendo, em geral, respei- tada a divisio sexual nas tarefas ¢ a divisio segundo a maturidade. Por exemplo, todas as mulheres sabem fazer cerimica, se esta fizer parte das atividades femininas na respectiva cultura, Pode ocorrer de uma pessoa ter maior habilidade que outra para uma atividade, porém todas deterio o mes mo conhecimento, o que confere a estas comunidades caracteristicas bas- tante igualitirias neste sentido, Assim, no vamos encontrar um Gnico pro- fessor nas sociedades de parentesco, mas tantos professores quantos sujei- tos compuserem a comunidade, o que significa que ninguém possui um status de professor que o diferencie do corpo social. A educasao, princi palmente das eriangas, ¢ assumida pela comunidade como um todo. Notamos em alguns desenhos de André Thevet e de Cesare di Lorenzo Cesariano, ambos do século XVI, que as criangas so retratadas, quando ainda bebés, presas nas costas de uma mulher (supostamente as respectivas mies). Porém, quando jé podem andar, estas criangas so retratadas total- mente integradas nas cenas sem estarem vinculadas a nenhum adulto em especial (THEVET & CESARIANO, apud BELUZZO, 1994: 39-40) QUAL O TEMPO DE APRENDER? O TEMPO TODO! As culturas de tradigdo oral so culturas que possuem normas de con- duta muito claras, transmitidas de diferentes formas, porém, Américo Ves plicio, ao nio encontrar cédigos ¢ leis eseritas, ¢ ao nio estar preparado para entender estas novas formas de viver que se desvelavam para ele, con- cluiu que eram sociedades sem lei. Aprender as normas de conduta da comunidade a qual cada um perten- ceé fundamental, pois é a partir deste aprendizado que o sujeito entende 0 2. Educagao autéctone nos séculos XVI a0 XVII 39 mundo ¢ consegue situar-se ncle. Desenvolvendo as nogdes de pertenci- mento a um grupo, 0 sujeito esta desenvolvendo suas proprias nogdes de iddentidade Asnormas de conduta social, bem como tudo 0 que um sujeito necessi- ta saber para fazer parte de uma comunidade de tradigio oral, encon- tram-se presentes nos mitos da cultura destas comunidades, nas historias sagradas. Os mitos so as historias exemplares vividas pelos ancestrais e pelos herdis civilizadores em um tempo considerado pré-humano, € con- {ém todos os ensinamentos necessirios que um individuo tem que saber para pertencer a uma determinada cultura, “desde as formas de executar os ais diversos trabalhos, as diferentes formas de alimentar-se, de fazer amor, de expressar-se, até mesmo aqueles gestos sem importincia aparen- te (ELIADE, 1973: 141). O mito, nas sociedades orais, é a verdade absoluta transmitida pelos “fundadores” das respectivas culturas. Os ancestrais miticas e os herdis cculturais. Sua veracidade jamais & questionada, pois so revelagdes sagra- das, O grande equivoco, nas sociedades orais, o que nunca pode acontecer, 0 esquecimento, o esquecimento das historias sagradas que trazem todo um universo cultural, Por isto, uma das qualidades, fonte de prestigio das liderangas, como dissemos acima, ¢ a capacidade de oratéria, pois nao é uum discurso proprio que essas liderangas emitem, mas sim o discurso dos ancestrais ¢ dos herdis culturais. A meméria é assim um componente fun- dante ¢ fundamental. Todos em uma comunidade sabem historias sagradas e podem con- ticlas, em diferentes momentos ¢ para diferentes interlocutores, dependen- do da situagao. O relato destas historias contém, ao mesmo tempo, a atuali= zagio da cultura ea formagao das subjetividades, pois ao conta-las os su- jeitos esto apoiados na meméria, ¢ esta, segundo Le Goff, “...] no mo- ‘mento que é acionada faz intervir nao s6 a ordenacdo de vestigios, mas a releitura destes vestigios” (1992: 424). Logo, estando a tradigZo oral apoiada na meméria, possui uma dinami- ‘ca continua, uma capacidade de atualizago cultural permanente, pois cada vez que ela é acionada a partir de um tempo presente faz com que elemen- tos que se mantenham importantes para a cultura sejam reafirmados, bem ‘como elementos que ja estejam absoletos deixem de ser mencionados novos elementos sejam introduzidos, formando as dinamicas proprias de atualizagio cultural, fazendo com que o “...] sistema seja no tempo a sin- tese da reprodugio ¢ da variagao” (SAHLINS, 1990: 9). Hist6ras e memérias da educagdo no Brasil - Vol. 1 40 Fania do chefe Caicanpreparando-se para uma festa (Famille in chef Camacan se préparant pour une fe, , 1820-1830 — Jean-Baptiste Debret. Un franca d la cour du ‘Brésil (1816-1831), Pais: Centre Cultrel Clouste Gulbenkian, 2000, p. 137), Assim, os momentos de aprendizagem so também momentos de atua- lizagio da cultura, Os mitos ou historias sagradas sio muito contadas pelos idosos da comunidade, nio porque estes detenham algum tipo de monopé- lio sobre elas, mas sim porque sio justamente estes que estdo ha mais tem- pono mundo, asim estdo ha mais tempo aprendendo, o que gera um senti- ‘mento de respeito aos ancios, pois estes possuem uma fungao social im- portantissima, fazendo com que em diferentes ocasides a comunidade os consulte sobre determinados temas, Mas todos, como salientamos, & medi- da que vao conhecendo os mitos e histérias sagradas, esto aptos a con- téelas, em diferentes situagdes,respeitando-se aquelas sob as quais existem preceitos, como de determinados momentos especificas para serem conta- das ou de sexo do narrador, e ainda alguma outra especificidade estabeleci- da pelas respectivas culturas. As historias sagradas no so reveladas todas ao mesmo tempo, ou to- ddas nos primeiros anos de vida, clas possuem uma légica paulatina, que ge- ralmente esté relacionada ao sexo do sujeito cognoscente e a sua faixa de ‘maturidade. Assim, conforme o individuo vai crescendo, passando pelas 2. Eduoagéo autoctone nos séculos XVI a0 XVIlL 4 diferentes tapas de vida, relacionadas com sua maturidade, vai aprenden- do as historias e por consequéncia os fazeres e responsabilidades que Ihe tocam, Desse modo, todo o tempo ao longo da vida é tempo de aprender. Entrelanto, a palavra, mesmo que fundante, ndo vem sozinha, ¢ os mi tos sio contados também através das expressies faciais do locutor, das mi- micas, com ritmos, musicalidades e por vezes dangas que os acompanham. Como afirma Vernan, “...] 0 verbo age sobre o ouvinte 4 maneira de uma encantagio, e€ orientado assim em diregdo ao prazer” (1992: 174), A imitagdo é um outro elemento importantissimo na educagao das so- ciedades orais. Ao imitar os adultos, por exemplo a partir de brincadeiras, ou mesmo acompanhando os mesmos no desenvolvimento de atividades, a crianga vai ensaiando e adquirindo qualidades motoras para que um dia ela possa assimira atividade imbuida da responsabilidade social que a mesma exige daqueles que possuem o estigio de maturidade compativel com ela. ‘As criangas seguem os adultos nas mais diferentes atividades, na caga, na coleta, no cuidado com as plantas cultivadas, na pesca. Imitam os adul- tos e, a0 imité-los, esto imitando os priprios herbis culturas, pois foram eles que fundaram, como vimos, todas as formas de fazer as coisas no inte- rior das culturas. Assim, um homem pesca como pesca porque assim fa- ziam seus antepassados miticos que Ihes transmitiram estes conhecimen- tos, e queseguem transmitindo-os sempre que necessirio de diferentes for- mas através dos sonhos, através do comportamento de um animal, através ‘de uma conformagao de nuvens ou da forma como sopra vento. As possi- bilidades e capacidades de leituras da natureza e do mundo sio inesgoté- veis e pertinentes a cada cultura, Seguir os adultos em suas atividades cotidianas significa participar de varios momentos de aprendizagem, pois as socicdades indigenas das quais falamos possuem uma forma integrada de vivenciar 0 tempo, nfo encon- trando respaldo a nogdo de diviso entre tempo de trabalho e tempo de lazer. Quando um grupo dedica-se 4 pesca, integra atividade produtivae lazer. Ou quando dirige-se a outraatividade, esta no 6, nevessariamente, feita toda de uma vez, podendo estar intercalada com tempos de descanso, onde hist6- rias so contadas, conversas e sests fazem parte das rotinas, desta forma a crianga vai vivenciando ¢ aprendendo uma maneira de ser ¢ estar no mundo. Um avé enquanto tece uma cesta rodeado por criangas que o imitam, brin- cam e o escutam ao mesino tempo, transmite uma forma de sere viver. tempo de aprender ndo esti restrito apenas na passagem do que se poderia chamar infincia para a idade adulta, mas é continuo, pois os adul- Historias © memérias da educacéo no Brasil ~ Vol. 42 tos devem estar sempre preparando-se para assumir responsabilidades con- ccernentes aos mais velhos, pois quando atingirem esta faixa de maturida- de terdo outras fungBes a desempenhar para as quais devem igualmente es- tar preparados. ritual constitui-se também num maravilhoso espago de aprendiza- ‘gem, pois ali deflagra-se o mundo exemplar, o mundo dos aneestrais mit cos e dos herdis culturais. Durante a vida cotidiana as pessoas agem segundo os ensinamentos dos fundadores da cultura, fuzendo assim com que a religiosidade esteja presen- te em todos os aspectos da vida, H4, no entanto, o tempo sagrado por exce- léncia, o tempo do ritual, onde os homens nao apenas seguirao os ensina- mentos deseus herdis culturais como se vestirdo como eles e observariio nos inimos detalhes os preccitos transmitidos. Se todo o tempo nas sociedades indigenas ¢ tempo sagrado pela imitagdo constante dos fundadores da cultu- ra, 0 fempo do ritual & o tempo da fusiio com os fundadores da cultura, Arena privilegiada para aprender todos os aspectos da comunidade, tudo 0 que & permitido e tudo 0 que deve ser evitado, nos rituais cada um tem papel definido ¢ o cosmos em seus miltiplos aspectos € recriado, sem idolos, sem imagens, sem grandes templos. Talvez isto tenha confundido Vespiicio feito com que ele afirmasse que estas sociedades, perpassadas pela religiosidade, eram sociedades sem f€ alguma e que seus integrantes nao acreditavam na imortalidade da alma. E fato que estes indigenas no rezavam para as suas divindades, apenas buscavam agir como elas. ConcLusio Américo Vespacio nao possuia os recursos da etnologia e da historia oral para entender as populagdes indigenas, mas nés os possuimos. As po- pulagdes indigenas que sobreviveram a todo o processo de conquista e co- lonizagao estao ai, so nossas companheiras no territério nacional. Muda- ram desde a época da conquista, sio sociedades com culturas dinamicas; nossa sociedade e cultura também mudou e continua mudando no cotidia- no, assim como as indigenas que, mesmo mudando, mantiveram a logica de seus sistemas de tradigao oral, de religiosidade, de educacdo, enfim de compreensio do mundo. Terminamos nosso artigo com uma citagao de Darlene Yaminalo Tau- kane pertencente ao povo indigena Bakairi, que sintetiza de forma simples clara tudo o que tentamos explicar: 2, Educagao autbctone nas séculos XVI a0 XVI. 43 A nossa educacio se di através do tempo do espago; desde que acor- cdamos para a clareza do sol, nés aprendemos vivendo. Ela se processa através da participag3o nas atividades da vida cotidiana, das mais aparentementeinsignificantes até as mais sagradas. Desde pequenas, as criangas ouvem a narrago de mitos, escutam os canticos sagrados do Kado [...], observam ¢ aprendem a respeitar as regras da vida em sociedade. Crescem ouvindo historias de lutas de nossos antepassa- dos e, ouvindo-as, alimentam sua autoestima. Aprendemos fazendo junto com os mais velhos, imitando-os, ecolaborando nas atividades do dia a dia: cagar, pescar, catar lenha, cuidar dos inmiios mais novos, socar arroz, carregar ‘gua, tecer, confeccionar trangados, com suas formas e desenhos. Nas rogas, os meninos crescem ajudando no pre- paro do terreno para o plantio, na colheita, Cabe a eles a responsal dade de espantar os passarinhos que atacam as lavouras. Aprendemos também, através das brincadeiras com bonecas, carrinhos ¢ bicicletas, produtos industrializados bem aceitos ¢ presentes em nossas aldcias (1997, apud SILVA, 2002: 47). REFERENCIAS ARENDT, Hannah. Between past and future. Nova York: Viking, 1961. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Imaginario do novo mundo — Vol. I; O imaginario dos viajantes. Sio Paulo: Metalivros, 1994. CLASTRES, Pierre. Investigaciones en antropologia politica. México: Gedisa, 1987. ELIADE, Mircea. Lo sagrado y lo profano. Lisboa: Ediges 70, 1973 FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995. LE GOFF, Jacques. Histéria e meméria. Campinas: Unicamp, 1992. MELIA, Bartomeu. E! Paraguay inventado, Asuncién: Cepag, 1997. SAHLINS, Marshal. 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