Lacan epsicose 189
que tenha incidido sobre essas teses. Pode-se muito bem falar de transmis-
sor, de mensagem etc...., a extensio cartesiana nao deixa de permanecer
como fundamento, Evidentemente, ¢ a eficacia que ¢ sempre problematica
no prolongamento que Changeux faz disso; a eficdcia eventual do método
nao retira nada do fato de que ela mesma seria determinada molecularmente,
a loucura permanecendo vivida pelo sujeito no registro do sentido!
Tal como Lacan evocava, encontraremos talvez um dia o transmissor
da esquizofrenia, por que nao?, isso nao mudara estritamente nada nesse
contexto, no que diz respeito ao registro do sentido na loucura. O que
proporei, de minha parte, para o exame dos trabalhos que vocés terdo este
ano, uma Vez que normalmente esse conceito de sentido nos ¢ certamente
comum, sera o exame do que sdo, do que podem ser as leis do sentido.
NOTAS
1, Texto estabelecido a partir de anotacées feitas durante conferéncia pronunciada em
29 de outubro de 1987, em Marselha.
2, No original, “a chacun sa chacune, d Lacan sa lacune”; @ chacun sa chacune é
uma expressao popular francesa, (N.T.) .
3. No original sio mencionadas, respectivamente, “La Chose freudienne” e “La
Psy-chose lacanienne”. (N.T.)Clinica irdnica
Ao considera em toda a sua generalidade, o probleme da clinica diferencial
s psicoses, pense, para esclarecé-lo, comecar por lhe opor uma climca
‘universal
do delirio.! Proponho, como fundamento da clinica diferencial
das psicoses, uma clinica universal do delirio. Nada menos.
Chamo
le clinica universal do delirio aquela que toma como seu ponto de
partide o seguinte: todos os nossos discursos nao passam de defesas contra
oreal.
infernal
incide na raiz de toda relacdo social. A clinica universal do
Pata construir essa perspectiva clinica, seria preciso aleanar a ironia
o esquizofrénico, equela da qual ele faz uma arma a iz lac
ICHIF10 $0 pode
ser encontrada, isto é cessar de ndo se escrever, ao ser proferida do ponto
devista
o esquizoftenico,
Como jremos definir o esquizofténico aqui? Proponho, no momento,
defini-lo, apos Lacan, como 0 sujito que se especifica por nao ser apreen-
dido em nenhum discurso, em nenhumn Lago soctal.2 Acrescento que ¢ 0
Uinlc9 su
jelto que, diferente do que todos nos fazemos quando no somos
es enicos, nao se defende do real por meio do simbolico, Ele nao se
fen
de
a
=
o real através da linguagem porque para ele o simbolico¢ real.
a-se da ironia do esquizofrenico, ¢ no de seu humor. Ironia e
humor, ambos fazem rit, mas por estrutura se dstinguem,
nio falta
O humor ¢a vertente comica do supereu, diz Freud.3 Ao neurdtico
lumor, 0 perverso é totalmente capaz disso, assim como o filosofo
190clinica irdnica 191
tia maxima universal 4. igualmente o surealista.5 0 humor se insoreve na
pespena do Outro, O dito humoristico se profere, por exceléncia, no
lugar do Outro, Ele capta o sujeito na miséria de sua impoténcia, Pensem
neeSse famoso humor judaico que se cultiva no gueto, esse lugar social por
exceléncia, uma ver que segreva, onde o Deus Yervel de Abra, Isaac ¢
Jaco encerra seus filhos, a
AA tronta, 40 contrario, néio ¢ do Outro, ela ¢ do sujeito, ¢ vai contra o
Outro, O que a irona diz” Diz que o Outro nio existe, que o lag socal no
fundo ¢ uma escroquera, que néo ha discurso que nao seja de semblante
— titulo de um Seminario de Lacan.6 0 verdadeiro masoguista, és vezes,
alcanca a itonia quando faz a demonstragio de que o Outro do qual ele se
mostra como escravo ¢ apenas 0 fantoche de sua vontade, da vontade que
conceme ao masoquista. E por essa via, sem duvida, que a ironia é
conventente ao psicanalista, assim como ao revolucionario, Lenin, assim
como Socrates, da provas de ironia, mesmo se a disfarca por meio da
Invectiva e mesmo se essa itonia se enfraquece quando se trata de sua
causa. A ironta ¢ a forma cOmica tomada pelo saber de que o Outro néo
existe, isto é, de que, como Outro do saber, & nio énada, Quando o humor
se exeree do ponto de vista do sujeito a saber, a ironia sO se exerce
al onde a queda do sujito suposto saber for consumada,
Ennisso que, segundo Lacan apsicandlise, na viaprescrita por Freud,
Testaura a ironta na nieurose. Seria, com efetto, formidavel curar a neurose
pela ironta, Se chegassemos a curar a neurose pela tronta, néo tertamos
necessidade de fazé-lo pela psicandlise, Ainda néo fomos curados da
psicanalise, apesar da ironia de Lacan e, sem duvida nenhuma, do gue era
seu designto.
Esperando, portanto, curar da psicandise, 0 voto que formulo ¢ que nossa
clinica seja ironica, 7
__Acescolha é uma escolha forcada: ou bem nossa clinica sera irdnica,
isto ¢, fundada sobre a inexisténcia do Outro como defesa contra o real, ou
bem nossa clinica sera, apenas uma ep pouco eriativa da clinica psi-
quan A clinica psiqutatrica ¢ de bom grado, humoristica. Zomba
qiientemente do louco, desse pobre louco que ¢ fora de discurso, Mas
Zombar do louco significa ape ue se constroi sua propa clinica apartir
de discursos estabefecidos. (que digo aqui no poupa a clinica psicanalitica
claspsicoses quando esta se Lumita amedir a psicose com a bitola do discurso192 maternass
estabelecido do analista — ou seja, referila a norma edipiana, Eu ndo
apontaria 0 dedo nessa direcio sé Lacan ndo tivesse ido, em sua clinica
ocupa um lugar que se poder
Sujeitos, 0 simbolico ¢ apenas
Chamo aqui de esquizo
fala-ser [parletre] “
le semblante, ha um delirio.
uizofrenico, E dai que se po
ertence a clinica diferencial
animals nao sio loucgs, a a
5
3808, produz
ata eles no Outro,
orque ha linguagem para el
‘uma proposicdo do primeiro
apalayra ndo ¢ o asassinato
E nesse sentido que, se
eudiano, tal como foi pontua
“apalavra ¢o assassinato da C
sicanaitica das psicoses, para além da norma ediprana, Ele espera que 0
sigamos nisso. Evidentemente, ssoe humor, .
No ae ett chamo de clinica universal do deliro, o esquizoftenico
a dizer de exclusao interna. Com efeito, se
esquizofrénico¢ esse suet para quem todo o simbolico ¢ real, ¢certamente
a partir de sua posi¢do subjetiva que pode parecer ae pata 0s outros
semblante, Acitculacdo dos quatro discursos
stinguidos ¢ formelizados por Lacan ¢ feta certamente, para mostrar que
niio ha discurso que nio seja de semblante. E essa curculagao so ¢ concebivel
a partir do fundamento do sujito fora do discurso.
rénico o sujeito que néo evitaria o real. E 0
“para quem o simbolico néo serve para evitar 0 real,
porque esse simbolico é, ele mesmo, ral. Se ndo ha discurso qe no seja
que é do teal, ¢ trata-se do delirio do es-
le construr o universal do deliro.
Observemos que a tese sobre 0 universal do delirio ¢ urna tese
reudiana, Para Freud, nada detxa de ser sonho. E o que Lacan diz que Freud
diz. Se tudo ¢ sonho, todo mundo ¢ louco, isto ¢, delirante.$ Eis a tese que
roponho colocar no frontio de uma clinica diferencial das psicoses: todo
mundo ¢ louco. Toma-se interessante, entio, estabelecer as diferencas.
Todo mundo ¢ louco — isto ¢, delirante — ¢ uma verdade que
ta humanidade ¢ da animalidade. Pots os
xcecfio do asno, aquele que traz o Santo
Sacramento e que, devido a essa carga, pela gual ele atribui merito a sua
(0 de presuncio. Os animais, entretanto, podem se
Suicidar, por menor que se a causa do desejo que a domesticagdo fez exist
Simplifiquemos. 0 delirio ¢ universal porque os homens falam e
es, Eis, entéo, 0 a-b-c ao qual se volta: a
inguagem tem, como tal, efetto de aniquilamento, . .
. _ Emtermos daléticos, pode-se dizer: apalavra é o assassinato da coisa,
exnsino de Lacan.) Tudo ja esta dito, pois isso
comport que 0 simbolico se separa do real, Na perspettiva esquizotrenica,
coisa, cla éa cosa,
0 psicotico nio cré no Outto, ele esta, no
entanto, certo da Coisa, Se vocgs sabem escutar nesse “a Coisa” o das Din
lopor Lacan em seu erica dapsicandlie,
isa” quer dizer que o gozo ¢interdito aqueleclinica irinica 193
({uc fala como tal, ou ainda, que o Outro, como lugar do significante, ¢ 0
terreno nivelado, limpo do gozo. Para o paranoico, a palavra nio é tanto 0
assassinato da Coisa, uma Vez que para ele falta, em uma certa ocasiéo, a
colsa se chocar contra a Coisa,o kako! no Outro, em um ato de agresséo
que poder Ihe serv, durante sua vida de metifora, de sulencia, i como
se ve no caso Aimee, 20 melancolico faz voltar contra si mesmo 0 efeito
mortifero da linguagem, no ao suicida em que cumpre seu destino de kakon,
“A palavra € 0 assassinato da Coisa” quer dizer que a palavra ¢ a
morte, A “pulsio de morte”, designada assim por Freud, ¢ merente ao
fala-ser (parlétre), Sem divida, o curto-circuito melancolico prolonga-se
nomeurdtico, cujo desejo é talvez, menos decidido, Observemos que letra
se distingue da palavra. A insténcia da letra mata a Cotsa? Ou a letra é murto
mals a os ' 3
0 que disse em terms dialéticos pode ser dito em terms diacriticos,
ao se passar de Hegel para Saussure, 4 Nao ha correspondeéncia biuntvoca
entre a palavra e @ coisa: a palavra néo representa & coisa, a palayra se
articula& palavra, Esse axiom estruturalista nio ¢ menos patético do que
p dito dialetico. Ele implica uma patxio. Unicamente o fato, concemente a
linguagem, de colocar a funcdo da articulagdo no lugar da fungdo de
representagdo— como faz oestruturalismol}— tem efetos perfeitamente
pateticos de deliro, Dizer que o significante nfo tem relaedo com a coisa,
nas com um outro signficante — repete-se i380 como uma antifona —
implica que 0 sae tem unma fungdo de inealizagio. O signifcante
imealiza 0 mundo, 6 . 8
., So quando a relacko do significante,com o significante ¢ interrom-
pida, quando ha cadeta quebrada, frase intertompida, ¢ que o simbolo
alcanca o real. Mas ele néo o alcanga sob a forma da representacdo,
significant a tanpuorea uma maneira que no deixa Lat dduvida—
‘ejam as frases iferrompidas do presidente Schreber.I7 Na frase interrom-
pida, o significante ndo representa sequer um pouco do real, ele faz at sua
Imupcio, isto ¢, uma parte do simbolica se toma real. E nisso que a
(Sane tal como foi redefinida aqui, pode ser chamada de a medida
sicose.
Se recomendo essa perspectivairdnica sobre a inguagem, ¢ que, ao se tomar
as coisas pelo ayesso dessa perspectiva, ve-se que Isso Val ale, por ere
a chamada teoria das descrigdes que deve seu nome a Bertrand Russell. 18194 maternasi
Russell comeca essa teoria das descrigdes em 1905, na mesma época
cm que Freud escrevia seus Tres ensais sobre a teoria da sexwalidade, Nao
€ excessivo dizer que toda a filosofia anglo-saxdnica contempordnea pro-
vem dat, Em nossos dias, isso se desenvolve sob o nome um pouco ridiculo
de ontologte formal —trata-se, ao mesmo tempo, de uma heranca da teoria
medieval das suposigSes19 que teve seus evos no proprio Lacan com seu
sujeito suposto saber. 20
Essa teoria das descricées ocupa-se da suposta referéncia do discurso
ou, para chamé-la pelo nome que Frege lhe deu, da Bedeutung 2/ E qual sua
penne’ O gue atormenta Bertrand Russell eos outros ¢ que se possa
falar disso que ndo existe como se existisse. E a mesma questao de Platao
em seu Sofista: falar do néo-sero faz existir de alguma maneira.2 A teoria
das desergdes pretend reduzi a verdade a exatidéo: que sa somente
0.que &, portanto que o discurso desereva o real, Ela queria despistar 0
discurso que diz o0 a niio ¢. O exemplo princeps de Bertrand Russell ¢“O
rei da Franca ¢ calvo”.23 Em 1905, ¢ para um inglés — que ndo é um
monarquista francés, no ha ret da Franca, “O ret da Franca é calvo” ¢
delirio. Evidentemente, ha muitas conotagdes em tomo desse “O rei da
Franga¢ calvo”, é um eco da querelafranco-britinica, néo deixa de evocar
en)
“ore esta nu”,
_ Oque escapa a Bertrand Russell nio é que se possa falar do que no
€, mas que o que e, unicamente pi fato de que dele se fala, se toma fiecéo,
Seo rei da Frangeexistse, soba forma de um personagem que usasse a
coroa, ele nio deixaria de ser uma ficedo. O que ¢ significantizado ¢, a0
mesmo tempo, “semblantificado”, [sso nio existe porque dele se fala,
Entio, ¢ preciso se calar, como diz Wittgenstein24— ¢ preciso calar aquilo
ge se quer que exist, E € 0 que o psicanalista faz em sua pati, Ateona
s descrgdes ¢ va ndo s0 porgue o rei da Franca néo existe, ndo porque a
palayra faz existir 0 que néo ¢, mas certamente porque a linguagem faz
inexistiraquilo do que ela fala
O axioma de Lacan segundo o qual a verdade tem estrutura de fiegéo
comporta que a palavra tem efeito de ficcd0.25 0 segredo da clinica
universal do delirio ¢ que a referencia é sempre vazia, Se ha verdade, ela
nio ¢ adequacio da palavra ¢ da coisa, ela € interna ao dizer, isto é, a
articulagio, Nesse sentido, o signficante, na medida em que se articula a0
significante, comporta ae a referencia € vazia, ¢ ¢iss0 que constitui o
simbolico como uma ordem, a ordem simbolica como Lacan a nomeou. E
mesmo movimento que se observa em Freud quando ele passa da seducdo
factual para a sedugio fantaststica, do fatoafantasia,26 da busca da exatiddoclinica iréniea 195
Descansio da verdade, do inconsciente como saber referencial ao incons-
lente como saber textual,
Como encamar a referencia yazia? Nada mais simples, cas0se lembre
de gee clinica freudiana gira inteira em tomo de um objeto que néo existe,
a saber, o penis da mde, Q rel da Franca que ¢ calvo ¢ o pénis da mie, E um
lato que Freud comegou po sono, que concebeu a interpretacdio dos
sonhos como aia regia da psicanalise ¢ que tomou o sono como uma
articulacdo significante sem referéneia, E por isso que Freud considerou o
sonho como ma forma de delino, E ¢ tambem o porque de Lacan ordenar
toda sua clinica em relacéo a um “néo ha”, seja escrevendo-o como (