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Competência 6

Habilidade 20

Linguagens NÃO é interpretação


Linguagens, códigos e
suas tecnologias

AUTORES:
Felipe Pereira Cunha | Gabriel Torres

IMAGENS:
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© FreeImagens.com
© Autores

CAPA:
Humberto Nunes

PROJETO GRÁFICO E
DIAGRAMAÇÃO:
Vânia Möller | Cristiano Marques

DIREITOS RESERVADOS:
© Felipe Pereira
HABILIDADE 20
Reconhecer a importância do patrimônio linguístico para a preservação da
memória e da identidade nacional

O que é Patrimônio Linguístico?


É curioso notar que a palavra patri- Isto é, patrimônio não se refere
mônio é usada mais frequentemen- unicamente a bens materiais, mas
te para referir-se a bens materias também à imaterialidade que fica,
de consumo: a casas, a carros, a ao que não vemos e que nos une, ao
terras. Ou a bens materiais de pro- que não tocamos mas que orienta
dução: uma empresa, uma marca, nossa vida. O patrimônio ao qual
uma ideia também são patrimô- temos acesso é tudo aquilo que nos
nios passíveis de serem registrados deixaram: a língua que nos passaram,
Constituição Federal
Art. 216, Da Cultura como propriedade. Patrimônio é os costumes que nos incutiram, os
Constituem patrimônio aquilo que fica, que permanece, modos de entender a realidade,
cultural brasileiro os bens de que é passado de geração em ge- as festividades que nos ensinaram
natureza material e imaterial, ração e vai sendo aperfeiçoado, a amar, os bens de consumo que
tomados individualmente aprendemos a desejar, as relações
ampliado e, por vezes, destruído.
ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, É algo que está para além dos ho- e os modos de se relacionar que
à ação, à memória dos mens, mas que é produto exclusivo observamos para depois reproduzir
diferentes grupos formadores da humanidade, afinal nós, huma- e etc. Se eu nasci em uma cidade
da sociedade brasileira, nos interiorana e litorânea, é inevitável
quais se incluem:
nos, temos orgulho do patrimônio
que nos deixam, e lutamos, com to- que esse ambiente me influencie, me
I - as formas de expressão;
das as forças, para que algo de nós modifique e deixe algo dele em mim
II - os modos de criar, fazer e
viver; fique nesse mundo; vivemos para por meio da ação das pessoas que
III - as criações científicas, que tenhamos a capacidade de dei- nele estão. Por mais que eu nunca
artísticas e tecnológicas; mais venha a morar em uma cidade
xar um legado: algo de nós que per-
IV - as obras, objetos,
maneça, que não acabe, que faça do interior, a língua e a linguagem que
documentos, edificações e
demais espaços destinados com que se lembrem de nós. O fim lá me foram passadas sempre farão
às manifestações artístico- último da vida humana é transcen- parte de mim. Os costumes que lá
culturais; aprendi fazem parte do patrimônio
der a si mesmo, conectar-se com os
V - os conjuntos urbanos
outros: poder transformar-se em daquele local e, portanto, de mim.
e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, patrimônio, e assim sentir que sua Tomo meu caso como um mero
arqueológico, paleontológico, vida valeu a pena. exemplo, porque todo ser humano
ecológico e científico. tem uma existência histórica e
Filosofias à parte, o patrimônio comunitária, o que faz com que
é algo que tem sua importância cada um de nós se forme com sua
reconhecida concreta e coleti- própria forma de existir, de pensar,
vamente, na forma da lei. Há leis a de agir, mas sempre influencia por
respeito de patrimônio, voltadas uma comunidade específica, que
a defini-lo, a declarar que todos os nos passa uma cultura específica. O
cidadãos têm direito de ter acesso reconhecimento de que exista um
ao patrimônio cultural do seu país. patrimônio é a evidência de que nossa

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existência coletiva nos influencia em quem somos, qual nos revelamos aos outros e a nós mesmos é
como pensamos, como agimos. Esse algo que se uma herança. Partindo disso, podemos ampliar a
eterniza é a contribuição das individualidades visão de patrimônio linguístico a tudo aquilo que é
para a construção do coletivo, daquilo que é de consequência da língua: as histórias, as opiniões,
todos que me rodeiam, e justamente por isso os conselhos, os discursos, as expressões, os
me importa e me enche de orgulho. Sentir-se jargões, e tudo aquilo que é língua, que expressa,
parte de, ou ter acesso a um patrimônio é ter que funciona em um sistema estruturado e que
consciência de que meu pai, minha mãe, meus serve de patrimônio a todos que compartilham o
avós e meus bizavós tomavam chimarrão e saber mesmo sistema de comunicação verbal.
que eu estou agora tomando, como se essas
pessoas tivessem me passado o bastão da vida Levar essa visão às últimas consequências é uma
para que eu a continuasse da maneira como eles atitude diabolicamente democrática. Afinal, sem
acreditavam que era o melhor. Não precisamos dúvidas, o livro “Grande Sertão: Veredas” faz
ser reféns do passado, para não repetir os seus parte do patrimônio linguístico brasileiro, porém
erros. Porém, é imperioso reconhecer que o as história da “Turma da Mônica” também fazem.
patrimônio representa a importância do passado Assim, a gravação de um pronunciamento de um
como formador do presente. presidente eleito democraticamente que declara
Considerando essa breve explanação acerca de o fim de uma ditadura é um patrimônio linguístico
patrimônio, podemos nos dirigir especificamente (são palavras que ecoam na história), porém
ao patrimônio linguístico, que pode ser entendido, as histórias que minha vó me contava também
em um primeiro momento, como a própria são. “Iracema”, de José de Alencar, forma
língua. Isto é, a língua é o maior patrimônio que nosso patrimônio histórico (tirano, colonialista,
recebemos. O sistema linguístico (no nosso caso covarde, explorador), no entanto a tradição oral
o português) que nos foi passado e por meio do indígena também forma.

A palavra cultura está relacionada ao sentido


de “cultivo”, “plantio” – tanto que é assim
usada: temos a cultura da cana, da soja,
do arroz. Porém, o sentido metafórico é,
curiosamente, o mais comum. A cultura de
um povo é aquilo que esse povo escolhe
plantar e cultivar, mas esse plantio já não
é mais literal e botânico, mas sim humano,
linguístico, semiótico, significativo, artístico.
A cultura reúne as formas que determinado
grupo humano decidiu utilizar para seu
melhor existir. E essas formas se expressam
por meio dos costumes, das histórias
populares, dos ditados populares, e de tudo
aquilo que é compartilhado em nome da
felicidade da vida coletiva.

Competência 6 |3
Ministério da Cultura inicia, por meio
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, política de reconhecimento das diferentes
línguas e dialetos falados no Brasil através de
processos de inventários, apoio a pesquisas,
divulgação e promoção. 23/06/2014,IPEA.

“Iracema, a (índia) virgem Como o patrimônio linguístico preserva


dos lábios de mel, que tinha
os cabelos mais negros que a (constrói) a memória e a identidade nacional?
asa da graúna, e mais longos
que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce A língua é a grande responsável pela em nome da nação. Não estávamos
como seu sorriso; nem a
baunilha recendia no bosque formação da memória coletiva. Do aqui quando os portugueses ini-
como seu hálito perfumado. que nos lembramos? Daquilo que ciaram a sua colonização, porém
A graciosa arara, sua compa- está escrito. O pensamento, quan- temos acesso ao que se escreveu
nheira e amiga, brinca junto do vira palavra, se legitima, se gra- sobre esse período histórico; temos
dela. Às vezes sobe aos ramos
da árvore e de lá chama a vir- dua em verdade social, em registro acesso a livros de literatura sobre
gem pelo nome. histórico. São as palavras que reco- essa época; temos acesso a registros
Rumor suspeito quebra a brem a realidade e transformam-na históricos, temos acesso a relatos
doce harmonia da sesta. Er-
em memória, afinal sabemos muito históricos, e a partir do contato com
gue a virgem os olhos, que o
sol não deslumbra; sua vista bem que há uma grande diferença a língua é que construímos nossa
perturba-se. Diante dela e entre o que de fato vivemos e o que
todo a contemplá-la está um memória acerca do que se viveu.
guerreiro estranho. Tem nas lembramos. Mais ainda, podemos
faces o branco das areias que não viver determinados momentos Isto é, por mais que nunca te-nhamos
bordam o mar; nos olhos o estabelecido um contato profundo
mas podemos nos lembrar deles
azul triste das águas profun-
das. Ignotas armas e tecidos com base nas palavras que lemos so- com um índio, temos uma visão
ignotos cobrem-lhe o corpo.” bre eles. Isto é, a memória nacional sobre esse humano, sobre a maneira
Iracema, José de Alencar é formada pelas palavras emitidas como vive, e temos uma valoração
e coletivizadas nacionalmente ou dessa maneira de ele viver – tudo isso

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não por meio do contato direto com suas formas
de organização social, mas por meio dos textos que “O estímulo inicial para esta reflexão (sobre
a cultura indígena) foram as numerosas
lemos acerca da cultura indígena. referências a uma concepção indígena segundo
a qual o modo como os seres humanos veem os
Falar sobre a cultura indígena e sobre o modo
animais é profundamente diferente do modo
como nossa historiografia a trata é falar da como os animais vêem os humanos e se vêem
memória brasileira, daquilo que nos marca a si mesmos.
historicamente em relação às outras nações. Visto Na nossa cultura, os humanos, em condições
que o índio não foi pacificamente integrado à normais, vêem os humanos como humanos e
vida europeizada, sendo dizimado junto com sua os animais como animais. Entretanto, na cultura
indígena, os animais predadores e os espíritos
cultura, nós, os ocidentalizados, criamos textos
veem os humanos como animais de presa. O
para representá-los, para falar sobre eles, para ser humano se vê a si mesmo como tal. A lua, a
“homenagiá-los”, sem nem percebermos que serpente, o jaguar o veem, contudo, como um
tiramos a voz dos protagonistas da sua própria tapir (animal mamífero de grande porte). Em
cultura por meio do uso da nossa língua e da suma, os animais são gente, ou se vêem como
pessoas. Tal concepção está quase sempre
nossa linguagem. No momento em que não nos associada à idéia de que a forma manifesta de
dedicamos à língua indígena, não nos dedicamos cada espécie é um envoltório (uma ‘roupa’)
à memória indígena, aniquilando-a (a verdadeira a esconder uma forma interna humana,
morte é o esquecimento). Assim, formamos nossa normalmente visível apenas aos olhos da própria
espécie ou de certos seres transespecíficos, como
identidade, excluindo muitas vezes a do outro. É
os xamãs. Essa forma interna é o espírito do
imprescindível ter com que se identificar, no que animal: uma intencionalidade ou subjetividade
se ancorar. É definitivamente decisivo lançar um formalmente idêntica à consciência humana,
olhar inteligente sobre si mesmo, e partindo dis- materializável, digamos assim, em um esquema
corporal humano oculto sob a máscara animal.”
so, reconhecer-se nos outros, identificar-se, ver-se
parte, nunca todo. No entanto, essa identificação Perspectivismo Ameríndio,
com aquele que é próximo de mim nunca pode Eduardo Viveiros de Castro
legitimar a aniquilação daquele com que não me
identifico. Utilizar a língua (por meio da escrita, da
fala, da leitura e da audição) para formar e reco-
nhecer nossa identidade é lindo, profundo e hu-
mano. No entanto, isso não nos dá o direito de,
por meio de nossa língua e de nossa linguagem,
dizimar as outras culturas e as outras identidades,
como se fosse menos legítimas, menos profun-
das, menos valiosas, menos humanas.

A palavra “identidade” vem do latim


e está associada à ideia de igualdade,
semelhança, aproximação. Temos o prefixo
“idem-”, que significa “o mesmo”. Quando
nos identificamos com algo ou alguém, vemos
uma parte de nós mesmos naquilo que é
observado. Conseguir identificar-se é conseguir
expandir-se, reconhecendo que muito da
nossa individualidade e de nosso ineditismo só
nasceram na coletividade e na repetição.

Competência 6 |5

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