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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

ÂNIMA EDUCAÇÃO

LUANA KOTRYK

VIOLÊNCIA POLICIAL:

UM ESTUDO SOBRE A LEGÍTIMA DEFESA, O ABUSO DE PODER E A AÇÃO


DO ESTADO NOS CASOS DE MORTES DECORRENTES DE INTERVENÇÃO
POLICIAL.

Curitiba

2022
LUANA KOTRYK

VIOLÊNCIA POLICIAL:

UM ESTUDO SOBRE A LEGÍTIMA DEFESA, O ABUSO DE PODER E A AÇÃO


DO ESTADO NOS CASOS DE MORTES DECORRENTES DE INTERVENÇÃO
POLICIAL.

Monografia apresentada ao curso de


graduação em Direito do Centro Universitário
Curitiba, como requisito parcial para obtenção
do título de bacharel.

Orientador: Prof. Alexandre Knopfholz

Curitiba

2022
LUANA KOTRYK

VIOLÊNCIA POLICIAL:

UM ESTUDO SOBRE A LEGÍTIMA DEFESA, O ABUSO DE PODER E A AÇÃO


DO ESTADO NOS CASOS DE MORTES DECORRENTES DE INTERVENÇÃO
POLICIAL.

Essa Monografia foi julgada adequada à


obtenção do título de Bacharel, em Direito
Penal e aprovado em sua forma final pelo
Curso de Direito, Instituições de Ensino
Superior (IES) da Ânima Educação.

__________________, ______ de _________________ de __________.

Local dia mês ano

__________________________________________

Prof. e orientador Alexandre Knopfholz

__________________________________________

Prof. membro da banca


Dedico esse trabalho em memória de todas
as vítimas da violência, pela falha do sistema;

Às suas famílias, pela dor da perda e pelo


sentimento de injustiça;

E à polícia, pela falta de suporte e assistência


do estado.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Deus, por me colocar no caminho certo e permitir ultrapassar todos os


obstáculos encontrados durante todos os meus anos de estudo.

À minha família, por todo o apoio e por me incentivarem nos momentos difíceis. Às
minhas irmãs, Keila e Leticia, por serem exemplos de mulheres fortes e profissionais
determinadas. Aos meus pais, Eduardo e Lindamir, por nunca terem medido esforços
para me proporcionar um ensino de qualidade, por manterem meus pés no chão, e
por me aguentarem, quando eu mesma não conseguia, sem vocês eu não chegaria
até aqui. A vocês o meu amor incondicional.

Aos meus amigos, que sempre estivem ao meu lado, com quem pude conversar e
compartilhar ideias sobre esse trabalho, e que demonstraram apoio em todos os
momentos delicados da minha vida. Em especial, ao Gabriel, pela cumplicidade e por
me ajudar a terminar o curso. Ao Mario, por sempre demonstrar sua admiração. E a
Amanda (in memoriam), que sempre esteve comigo em pensamento.

Aos meus professores, por todos os ensinamentos ao longo desses cinco anos de
faculdade. Em especial ao meu orientador, professor Alexandre, pelos conselhos, pela
ajuda e pela paciência, a você toda a minha admiração.

A todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para a realização desse trabalho.
RESUMO

O presente trabalho monográfico tem como objetivo fazer uma análise acerca da
violência policial em nosso país. Estudando desde os princípios mais básicos de
nosso ordenamento jurídico até os dados disponibilizados pelas Secretarias de
Segurança Pública dos respectivos Estados, para tentar compreender o porquê de
sermos um dos países que apresentam uma das maiores taxas de letalidade policial.
É necessário fazer a distinção de até onde a nossa polícia age em legítima defesa –
pois de fato, vivemos em um país onde a criminalidade é sobressalente – e em qual
momento ela se torna abuso de poder pelas autoridades responsáveis. Assim como,
entender como esses casos são tratados pelas instituições internas e pelo estado,
com o propósito de tentar frear o crescimento alarmante da violência estatal.
ABSTRACT

This monographic work aims to carry out an analysys of police violence in our country.
Studying from the most basic principles of our legal system to the data available by the
Public Secretariat of the respective states, trying to understand why we are one of the
countries among those with the highest police fatality rates. It is necessary to
distinguish when police act in self-defense –in fact, we live in a country where
criminality is spare – and when at point does it become power abuse by the
responsible authorities. As well as understanding how these cases are handled by
internal institutions and the State, iming to tryto stop the alarming growth of state
violence.
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil, 2013 a 2021........21

Tabela 2 – Taxa de mortalidade por intervenções policiais, Brasil e UFS, 2021..........23

Tabela 3 – Proporção de Mortes decorrentes de intervenções policiais em relação às


Mortes Violentas Intencionais.....................................................................................40

Tabela 4 – Letalidade Policial Brasileira......................................................................42

Tabela 5 – Pessoas mortas pelas polícias norte americanas – EUA (1983-2012).......43

Tabela 6 – Relação de civis mortos e civis feridos pela polícia civil e militar nos três
primeiros semestres de 2021......................................................................................44

Tabela 7 – Relação entre o número de mortes decorrentes de intervenção policial e o


número de policiais vítimas de CVLI...........................................................................45

Tabela 8 – Policiais Civis e Militares vítimas de CVLI, em serviço e fora de serviço....47

Tabela 9 – Policiais Civis e Militares vítimas de CVLI, em serviço e fora de serviço –


Brasil ..........................................................................................................................49
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO..............................................................................................10

2. CONCEITOS BÁSICOS SOBRE A VIOLÊNCIA E COMO ELA EVOLUIU


HISTÓRICAMENTE......................................................................................11

2.1. DO PODER DE POLÍCIA...............................................................................11

2.2. DO USO DA FORÇA......................................................................................14

2.3. A VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA.........................................................................17

2.4. O REGISTRO DE MDIP NO TEMPO E ESPAÇO..........................................20

3. LEGITIMIDADE E EXCESSO........................................................................25

3.1. DO USO DA FORÇA......................................................................................25

3.2. DA LEGÍTIMA DEFESA..................................................................................28

3.2.1. Das espécies de legítima defesa.................................................................28

3.2.1.1. Legítima defesa real, própria ou autêntica......................................................28

3.2.1.2. Legítima defesa putativa................................................................................29

3.2.1.3. Legítima defesa recíproca..............................................................................29

3.2.1.4. Legítima defesa de terceiro............................................................................30

3.2.1.5. Legítima defesa sucessiva.............................................................................30

3.2.1.6. Legítima defesa da honra...............................................................................31

3.2.2. Dos elementos que integram a legítima defesa.........................................32

3.2.3. Legítima defesa e a aberratio ictus.............................................................33

3.3. DO EXCESSO E DO ABUSO DE PODER......................................................34

3.3.1. Do excesso de legítima defesa...................................................................34

3.3.2. Do abuso de poder.......................................................................................35

4. A VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL E A ATUAÇÃO DO ESTADO...........38


4.1. CRITÉRIOS PARA AFERIR A LETALIDADE POLICIAL...............................38

4.1.1. A proporção de civis mortos pelas polícias em relação ao total de


homicídios....................................................................................................40

4.1.2. A razão entre civis feridos e civis mortos pela polícia.............................43

4.1.3. A relação entre civis mortos e policiais mortos........................................44

4.2. O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DAS MDIP...........................................50

4.3. A ATUAÇÃO DO ESTADO.............................................................................54

4.4. CASOS QUE REPERCUTIRAM NA MÍDIA....................................................56

4.4.1. Massacre do Carandiru...............................................................................57

4.4.2. Chacina de Costa Barros............................................................................58

4.4.3. Chacina do Jacarezinho.............................................................................59

4.4.4. Caso Chauan Jambre e Allan de Souza Lima...........................................59

4.4.5. Caso Maicon, Favela de Acari...................................................................60

4.4.6. Carta das mães e familiares para o Rio de Janeiro.................................61

5. CONCLUSÃO..............................................................................................63

6. REFERÊNCIAS...........................................................................................65
10

1 – INTRODUÇÃO

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia


Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” 1

A primeira aparição acerca do tema aqui estudado, é encontrada no topo


do ordenamento jurídico brasileiro, antes mesmo dos primeiros artigos da lei
suprema, no preâmbulo da Constituição Federal, onde fica assegurado, entre
outros direitos inerentes, o direito à segurança e também o comprometimento do
Estado com a solução pacífica das controvérsias.

A partir dessa ideia construímos os fundamentos que regem nosso


ordenamento jurídico, pautado em princípios como a dignidade da pessoa
humana e garantindo a todos, sem qualquer distinção, igualdade perante a lei e
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, conforme artigos 1º e 5º da Constituição Federal, os quais dispõe
sobre os princípios, direitos e garantias fundamentais.

Para tratar do presente tema é imprescindível ter em mente um dos


princípios basilares do nosso ordenamento jurídico, o da dignidade humana. É
em torno dele que, assim como esse estudo, toda e qualquer questão sobre a
sociedade se envolve.

Alexandre de Moraes conceitua o princípio da Dignidade Humana como:

1BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
11

Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta


singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das
demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo
estatuto jurídico deve assegurar de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos
direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a
busca ao Direito à Felicidade.2

Assim, ciente dos princípios que regem a vida em sociedade,


analisaremos a seguir, as questões que envolvem a violência policial no Brasil e
a importância de virarmos os holofotes para esse problema que infelizmente nos
apresenta dados amedrontadores.

2 – CONCEITOS BÁSICOS SOBRE A VIOLÊNCIA E COMO ELA EVOLUIU


HISTÓRICAMENTE

2.1. DO PODER DE POLÍCIA

Diante da necessidade de se proteger os bens jurídicos, seja a


segurança, o patrimônio, ou até mesmo a própria vida, historicamente a
sociedade recorre a uma autoridade maior, aquela que detém o chamado “Poder
de Polícia”, atualmente regulado pelo artigo 144 da Constituição Federal, o qual
endossa que a segurança pública é um dever do estado, um direito e
responsabilidade de todos, e é exercida para preservar a ordem pública e outros
aspectos, sendo dividida entre seis órgãos de defesa.

Art. 144. A segurança pública, dever do estado, direito e


responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem

2
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33ª ed. São Paulo. Atlas, 2017.
12

pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos


seguintes órgãos:

I- Polícia federal;

II- Polícia rodoviária federal;

III- Polícia ferroviária federal;

IV- Polícia civil;

V- Polícia militar e corpo de bombeiros.

IV- Polícias penais federais, estaduais e distrital. 3

O Poder de Polícia pode ser definido, nas palavras do doutrinador Tácito


(1975, apud MEIRELLES, 2002, p. 128)4, em suma, como o conjunto de
atribuições concedidas a Administração para disciplinar e restringir, em favor do
interesse público adequando, direitos e liberdades individuais. Ou seja, são as
prerrogativas fornecidas ao agente do estado para que este possa preservar a
ordem pública, fazendo uso dos meios necessários para tal. Mas é importante
frisar que mesmo que esse uso necessário dos meios seja atribuído aos agentes
para administrar os conflitos sociais, ele não é ilimitado, devendo o agente agir
de acordo com o princípio da discricionariedade, seguindo com base na
legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência,
conforme prevê o parágrafo único do artigo 78 do Código Tributário Nacional:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração


pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade,
regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades
econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder
Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos
direitos individuais ou coletivos.

3
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
4
TÁCITO, 1975, apud MEIRELLES, 2002, p. 128
13

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia


quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei
aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de
atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de
poder (BRASIL, 1966).5

Além de observarmos a discricionariedade, é necessário também


entender o instituto da coercibilidade, pois enquanto o primeiro tem como
objetivo a limitação do poder da polícia em razão da conveniência e da
proporcionalidade, o segundo pode ser caracterizado como a imposição coativa
de medidas para reprimir os comportamentos que vão em desacordo com o
ordenamento jurídico. Ou seja, enquanto um regra a liberdade de escolha do
policial, agindo dentro do limite legal, medindo sempre a proporção da resposta
frente ao conflito, o outro legitima o uso da coação e dos meios necessários para
manter a ordem, admitindo inclusive o uso da força pela polícia frente à uma
resistência por parte do infrator.

Porém, ao passo que é dever do Estado garantir a segurança pública,


também é necessário preservar o direito de ir e vir e proteger a integridade física
e moral do cidadão, tendo em mente que o uso da força e o emprego de armas
de fogo deverá ser aplicado somente quando não restarem outras alternativas
ao agente. Dessa forma, o limite entre a força legítima e o abuso de poder é
extremamente estreita.

Existe uma série de legislações, normas e protocolos nacionais e


internacionais que visam regular esse poder de polícia, a exemplo da Declaração
de Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos
Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotada no XVIII Congresso
das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos
Delinquentes, realizada em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de
1990, que diz em seus itens 4 e 5 o seguinte:

5BRASIL. Decreto Lei nº 5. 172, de 25 de outubro de 1966. Código de Tributário Nacional.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 15 de
novembro de 2021.
14

4. Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, no exercício das


suas funções, devem, na medida do possível, recorrer a meios não
violentos antes de utilizarem a força ou armas de fogo. Só poderão
recorrer à força ou a armas de fogo se outros meios se mostrarem
ineficazes ou não permitirem alcançar o resultado desejado.

5. Sempre que o uso legítimo da força ou de armas de fogo seja


indispensável, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei
devem:

a) Utilizá-las com moderação e a sua acção deve ser proporcional à


gravidade da infracção e ao objectivo legítimo a alcançar;

b) Esforçar-se por reduzirem ao mínimo os danos e lesões e


respeitarem e preservarem a vida humana;

c) Assegurar a prestação de assistência e socorros médicos às


pessoas feridas ou afectadas, tão rapidamente quanto possível;

d) Assegurar a comunicação da ocorrência à família ou pessoas


próximas da pessoa ferida ou afectada, tão rapidamente quanto
possível.6

2.2. DO USO DA FORÇA

Havendo a iminente necessidade do agente fazer uso da força, este


deve estar pautado no conhecimento da lei e do seu treinamento técnico, tendo
em mente que no momento da ação, sua prioridade é em primeiro lugar, proteger
a sociedade em geral, em segundo proteger a si mesmo, e só após isso, proteger

6Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes,
XVIII, 1990, Havana/Cuba. Declaração de Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de
Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. Disponível em:
http://www.defensoria.ms.gov.br/images/nudedh/sistemas_onu/33_-
_principios_basicos_sobre_o_uso_da_for%C3%A7a_e_arma_fogo_pelos_funcion%C3%A1rios
__respons%C3%A1veis_pela_eplica%C3%A7%C3%A3o_da_lei__1990.pdf. Acesso em: 15 de
novembro de 2021.
15

a segurança do infrator, não podendo jamais expor terceiros não envolvidos em


situações de perigo.

O uso da força deve se ater estritamente no intuito de cessar a violação


do direito, sendo proporcional à gravidade do ato ilícito cometido, caso não seja,
incorre no abuso de poder, devendo trazer penalidades ao agente que a comete.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano


ou degradante;”7

Diante da necessidade de regular o uso da força pelos agentes de


segurança, as escolas de formação passaram a utilizar como embasamento para
o treinamento de agentes os diversos protocolos de uso progressivo da força
existentes em todo o mundo. Esses protocolos consistem num processo de
avaliação prévia do policial em relação ao indivíduo suspeito ou infrator,
passando pela seleção adequada de opções de força pelo policial, em resposta
ao nível de submissão daquele indivíduo, findando na resposta do policial
(SENASP, 2006).

A Secretaria Nacional de Segurança Pública traz o seguinte modelo


básico de uso progressivo da força que é utilizado como referência nas
atividades policiais:

1. Presença física: é a simples presença policial, diante de um


comportamento de normalidade por parte de um agressor, onde não
há necessidade da força policial.

7
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
16

2. Verbalização: é a comunicação, a mensagem transmitida pelo


policial, utilizada diante de um comportamento cooperativo por parte
do agressor, que não oferece resistência e obedece às determinações
do policial.

3. Controle de contato: são as técnicas de conduções e imobilizações,


inclusive por meios de algemas, utilizadas diante da resistência passiva
do agressor, que age em um nível preliminar de desobediência (ele não
acata as determinações, fica simplesmente parado).

4. Controle físico: é o emprego da força suficiente para superar a


resistência ativa do indivíduo, o qual desafia fisicamente o policial,
como num caso de fuga. Cães e agentes químicos podem ser
utilizados.

5. Táticas defensivas não letais: é o uso de todos os métodos não


letais, por meios de gases fortes, forçamento de articulações e uso de
equipamentos de impactos, como os bastões retráteis, diante de uma
agressão não letal pelo agressor, que oferece uma resistência hostil,
física (contra o policial ou pessoas envolvidas na situação).

6. Força letal: é o mais extremo uso da força pela polícia e só deve ser
usado em último caso, quando todos os outros recursos já tiverem
sidos experimentados. Nesse caso o suspeito ameaça a vida de
terceiros. (SENASP, 2006).

Muitas vezes somente a presença dos agentes no local já faz cessar a


ocorrência ilícita, mas em casos mais drásticos a polícia não tem outra alternativa
senão fazer o uso de armas letais, muitas vezes em operações onde a equipe é
recebida no local com disparos de armas de fogo. Contudo, faz-se necessário,
mais uma vez, frisar que o uso de armas letais deve ser utilizado somente em
último caso, quando não restarem mais alternativas ao agente. Dessa forma,
torna-se extremamente necessário o treinamento desses agentes para saber
como agir diante dessas situações, o que infelizmente, não aparenta acontecer
nos dias atuais, onde é possível verificar inúmeros casos de excessos por parte
dos agentes de segurança, seja por falta de treinamento técnico, por incentivo
da sociedade à violência ou até mesmo por falta de ética do próprio policial.
17

2.3. A VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA

Na teoria, a violência pode ser definida como “Ação violenta, agressiva,


que faz uso da força bruta; Ato de crueldade, de perversidade, de tirania; Ato de
oprimir, de sujeitar alguém a fazer alguma coisa pelo uso da força; opressão”.8
Ou ainda, em seu aspecto jurídico como “Constrangimento físico ou moral
exercido sobre alguém, que obriga essa pessoa a fazer o que lhe é imposto:
violência física, violência psicológica.”9.

Contudo, apesar de já estarmos naturalizados com esse conceito, não é


possível estabelecer uma data concreta que nos remeta ao início do uso da
violência pelas instituições públicas, mas há quem diga que essa repressão se
tornou evidentemente mais intensa com o início da Ditadura Militar em 1964. Foi
nesse período que a polícia brasileira recebeu treinamento de guerra de forças
americanas e francesas, onde eram passadas técnicas de infiltração, sequestro,
captura, desaparecimento de opositores, extermínio, técnicas de tortura e
interrogatório, entre outras tantas coisas.

Deduz-se que foi a partir desse momento que o estado passou a ver os
cidadãos como um mero instrumento para um determinado fim, onde direitos
individuais eram ignorados, a violência era normalizada e a tortura era um meio
legal para se chegar aonde queria. O medo e a violência foram
institucionalizados, milhares foram torturados e centenas foram mortos.

É de se imaginar que com um passado marcado por tanta truculência, a


sociedade seguiria por um caminho diferente, o que na prática, infelizmente não
se observa. Quase 40 anos após o fim da Ditadura Militar e com a volta da
democracia com a promulgação da chamada Constituição Cidadã, nós ainda não
fomos capazes de reestruturar nossas polícias, trazendo em nosso DNA a
cultura inquisitorial, onde a polícia muitas vezes não se importa com a prestação
serviços de segurança em favor da população, mas sim somente manter a
“ordem pública” a qualquer custo.

8
VIOLÊNCIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Disponível em:
https://www.dicio.com.br/violencia/. Acesso em: 01/10/2022.
9
Ibidem.
18

O treinamento da nossa polícia, até os dias atuais utiliza táticas e


ideologias semelhantes ao de um exército, vários militares ainda apoiam a volta
da ditadura, e muitas repartições ainda seguem a política de extermínio, à
exemplo do BOPE, criado em 1978, e nas palavras de Luiz Eduardo Soares,
André Batista e Rodrigo Pimentel (2006, p. 8), “O BOPE não foi preparado para
enfrentar os desafios da segurança pública. Foi concebido e adestrado para ser
máquina de guerra. Não foi treinado para lidar com cidadãos e controlar
infratores, mas para invadir territórios inimigos.”10

Não é à toa que os cânticos de guerra do BOPE deixam claro seu


objetivo:

“Homem de preto,

Qual é sua missão?

É invadir favela

E deixar corpo no chão.”

“Você sabe quem eu sou?

Sou o maldito cão de guerra.

Sou treinado para matar.

Mesmo que custe minha vida,

A missão será cumprida,

Seja ela onde for

- Espalhando a violência, a morte e o terror.”

(SOARES; PIMENTEL; BATISTA, 2006, p. 9)

Inclusive, em 1969, no auge da repressão da Ditadura, período


compreendido como “anos de chumbo”, que se criou o auto de resistência, figura
essencial e de pontapé inicial para o presente estudo.

10
SOARES, Luiz Eduardo; PIMENTEL, Rodrigo; BATISTA, André. Elite da Tropa – Rio de Janeiro: Objetiva,
2006.
19

Os autos de resistência surgiram com uma Ordem de Serviço da


Superintendência da Polícia Judiciária do antigo Estado da Guanabara, que
dispensava a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de
inquérito policial diante da hipótese prevista no art. 292 do Código de Processo
Penal.11

Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à


prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o
executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios
necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que
tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

(CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 1941)

Se pensarmos na prática, funciona da seguinte forma: Diante de um


possível confronto, um policial atira e acaba matando um suposto infrator,
alegando haver resistência à prisão, o policial aponta legítima defesa,
caracterizando assim a excludente de ilicitude12, assunto que veremos mais
adiante. Considerando a escassez de informações e de testemunhas – essa
última, onde geralmente são somente os policiais envolvidos na ocorrência –
toma-se como verdade a palavra do próprio policial, acarretando assim, na
imensa maioria dos casos, no arquivamento do feito, sem que haja maiores
investigações.

Hoje essas mortes são denominadas "mortes em decorrência de


intervenção policial", e continuam sendo uma prática comum da polícia. E foi a
partir do Projeto de Lei nº 4471, em trâmite desde 2012 na Câmara dos
Deputados, que a discussão acerca dos autos de resistência foi colocada em
pauta. Parlamentares, organizações de direitos humanos e movimentos sociais
seguem na luta para que haja alguma mudança, porém, o cenário ao longo dos
anos parece estar somente piorando, os dados são críticos e a situação é
assustadora.

11
BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm
12
O Art. 23 do Código Penal versa sobre a exclusão de ilicitude: “Não há crime quando o agente pratica
o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal
ou no exercício regular de direito.”
20

2.4. O REGISTRO DE MORTES EM DECORRÊNCIA DE INTERVENÇÃO


POLICIAL NO TEMPO E ESPAÇO

Segundo o Índice Global da Paz, uma pesquisa realizada pelo Instituto


para a Economia e Paz, responsável por monitorar e medir o nível de paz e
ausência de violência em 163 países, o Brasil ocupa atualmente a 128ª posição
do ranking pelo segundo ano consecutivo, apresentando um declínio de 42
posições desde 2011, quando estávamos em 86º lugar. Dados assustadores que
mostram que estamos mais próximos de países como Afeganistão, Síria e
Iraque, que apresentam grandes conflitos políticos e ideológicos, do que
imaginamos.

O alto índice de violência, qualquer seja ela, não é novidade para os


brasileiros, infelizmente essa condição está inserida em nosso dia a dia, a
população está acostumada a ter medo de sair na rua e a se precaver em
diversas situações. Porém um dos grandes problemas, o qual é o enfoque aqui,
é quando a sociedade além de ter medo do criminoso, passa a ter também medo
de sua própria polícia.

Apesar de todas as leis, normas e protocolos orientando como deve ser


a abordagem pelos agentes e quais os limites, os números de violência policial
tendem a crescer cada ano mais, tornando-se índices alarmantes, ainda mais
por serem dados de violência causada por aqueles que, na teoria deveriam ser
os responsáveis por tentar atenuar essa taxa.

Em 2020 o Brasil atingiu uma marca nunca antes vista no país, mas que
já vem de uma série de aumentos significativos desde 2013, quando o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar essas ocorrências. O
número de mortes decorrentes de intervenção policial chegou em 6.416, tendo
uma média de 17,6 vítimas fatais por dia, apresentando um crescimento de 190%
desde o primeiro ano de análise.

Vindo de uma escala crescente, em 2021 o número de mortes


decorrentes de intervenções policiais ultrapassou a marca de 43 mil vítimas,
21

contudo, desde que o índice passou a ser monitorado, essa foi a primeira vez
que pudemos ver uma redução na taxa de letalidade policial, já que os dados
apontam uma queda de 267 mortes em relação a 2020, auge de ocorrências de
MDIP13.

Tabela 1 - Mortes decorrentes de intervenções policiais no Brasil, 2013 a 2021

7.000
6.351 6.413
6.175 6.145
6.000
5.179
5.000
4.220

4.000
3.330
3.146
3.000
2.212

2.000

1.000

0
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; PC-MG; Fórum
Brasileiro de Segurança Pública.

Os dados foram fornecidos pelas secretarias de segurança pública


estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da
Segurança Pública, coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
estão disponíveis no Anuário Brasileiro de Segurança Pública14, o qual é
publicado desde 2007, mas que só passou a divulgar os números de mortes em
decorrência de intervenção policial em 2013, quando os indicadores passaram a
ser monitorados. O Anuário nos traz uma série de estatísticas importantes para

13
Mortes Decorrentes de Intervenção Policial
14
In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança pública: 2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em:
01/10/2022.
22

auxiliar no entendimento acerca da letalidade policial no Brasil, dados que serão


analisados mais precisamente no decorrer do presente estudo.

Além do número total de mortes por intervenção policial no país ser


chocante por si só, é necessário levar em consideração que há uma grande
variação regional, onde alguns estados parecem concentrar grande parte do
problema, enquanto outros raramente registram casos e possuem uma
baixíssima taxa de mortalidade, como é possível verificar no gráfico logo abaixo,
onde o Amapá possui uma taxa de 17,1 mortes a cada 100 mil habitantes,
enquanto o Distrito Federal registrou 0,3 mortes a cada 100 mil habitantes,
ficando bem abaixo da média nacional, a qual é registrada em 2,9 mortes a cada
100 mil habitantes.
23

Tabela 2 - Taxa de mortalidade por intervenções policiais, Brasil e UFS, 2021

Brasil 2,9
AP 17,1
SE 9,0
GO 8,0
RJ 7,8
BA 6,7
PA 6,2
RN 4,3
PR 3,6
MT 2,9
TO 2,6
AM 2,3
AL 1,9
MS 1,5
RR 1,4
RS 1,4
CE 1,3
PB 1,3
SP 1,2
AC 1,2
MA 1,2
PE 1,1
PI 1,0
ES 1,0
SC 1,0
RO 0,6
MG 0,5
DF 0,3

0,0 2,0 4,0 6,0 8,0 10,0 12,0 14,0 16,0 18,0

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; PC-MG; Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Ao comparar o gráfico de 2020 e 2021 foi possível observar que 15


unidades federativas apresentaram uma redução na taxa de mortalidade, 11
apresentaram um aumento e somente 1 manteve o mesmo índice. O caso mais
alarmante é o de Amapá, onde a taxa de vítimas em conflito com a polícia chegou
a 17,1 pessoas para cada 100 mil habitantes, sendo que em 2020, apesar de
também estar em primeiro lugar disparado, registrava a taxa de 13 pessoas
24

mortas a cada 100 mil habitantes. Essa foi a maior taxa já registrada pelos
marcadores, apontando a polícia do Amapá como a mais violenta do país.

O Sergipe, passou a ocupar a segunda posição, registrando um aumento


de 8,5 para 9,0 mortes, enquanto Goiás registrou uma queda de 8,9 para 8,0
mortes, caindo para a terceira posição. O Paraná encontra-se atualmente na
oitava posição, sendo que apresentou um aumento de 3,2 para 3,6 mortes.

É importante considerar que apesar do Rio de Janeiro e de São Paulo


não estarem a frente no ranking com as maiores taxas de mortalidade, eles são
os Estados que mais apresentam casos de mortes por intervenção policial,
chegando a totalizar juntos 32% de toda a letalidade policial registrada no país
em 2020, com respectivamente 1.250 e 833 mortes decorrentes de intervenção
policial durante o ano. Ambos os estados possuem as seguintes notas que
devem ser evidenciadas: O Rio de Janeiro, apresentou um aumento na taxa de
mortalidade por intervenções policiais, de 7,2 para 7,8, alcançando a quarta
posição, contudo, cabe ressaltar que esse crescimento se deu mesmo sob as
medidas impostas pela ADPF 635, também conhecida como ADPF das favelas,
que restringiu as operações da Polícia Militar e Civil do Estado do Rio de Janeiro
durante a pandemia de covid-19.15. Já o Estado de São Paulo, surge como
destaque positivo, já que apresentou uma queda de 1,8 para 1,2, fato que pode
ser atribuído às medidas institucionais tomadas pela Polícia Militar, que desde
meados de 2020 adotou o uso de câmeras corporais nas fardas utilizadas pelos
policiais.

Outro dado regional fornecido pelo FBSP que também chama a atenção,
é que além de alguns estados possuírem uma maior concentração de
mortalidade, essa estatística também reflete nas cidades. Das 6.416 mortes,
5.608 foram possíveis identificar de qual município vieram as ocorrências,
chegando à conclusão de que em 50 municípios – entre os 5.570 existentes no
Brasil – concentram-se 55% das mortes decorrentes de intervenção policial,

15
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 foi ajuizada pelo Partido
Socialista Brasileiro (PSB) com a pretensão de que fossem reconhecidas e sanadas graves lesões a
preceitos fundamentais constitucionais, decorrentes da política de segurança pública do Estado do Rio
de Janeiro marcada pela "excessiva e crescente letalidade da atuação policial". O pedido foi deferido e
os ministros vetaram operações policiais no Estado enquanto durar a pandemia, com a ressalva em
casos excepcionais e previamente comunicados pelas forças de segurança do Estado ao MP/RJ.
25

destacando-se com maior número de vítimas as cidades de Rio de Janeiro/RJ


com 415 vítimas, São Paulo/SP com 390 vítimas, Salvador/BA com 381 vítimas,
São Gonçalo/RJ com 199 vítimas, Goiânia/GO com 135 vítimas e Curitiba/PR
com 104 vítimas, o restante dos municípios apresentou números abaixo dos 100.
Embora os municípios listados tenham o maior número de mortes, não são os
que apresentam a maior taxa de letalidade, a qual fica a cargo de Tomé-Açu/PA
com a taxa de mortalidade de 37,5 mortes a cada 100 mil habitantes, seguida
por Japeri/RJ com 24,6 mortes por 100 mil habitantes, Itaguaí/RJ com 24,5
mortes e Luís Eduardo Magalhães/BA com 20 mortes por 100 mil habitantes.16

A partir da análise dos dados é possível verificar que apesar do país


apresentar números expressivos de violência policial, isso não é uma realidade
geral, o problema se concentra em determinadas regiões, onde se faz necessário
uma análise mais profunda das estatísticas para entender o porquê do
fenômeno.

É importante frisar que o presente estudo não tem como objetivo alegar
que toda a ação policial que teve como resultado uma morte é ilegal, mas sim
que não seria coerente afirmar também que, diante dos números estrondosos,
todas elas são legítimas, sem que haja uma devida investigação dos fatos.
Mostra-se assim, extremamente importante o monitoramento desses
indicadores.

3. LEGITIMIDADE E EXCESSO

3.1. DO USO DA FORÇA

Um dos conceitos mais utilizados até hoje sobre o tema, tanto na ciência
política quanto no direito, vem de anos atrás, com Max Weber, que classifica o
Estado como um agrupamento humano que “reivindica de forma bem-sucedida

16
BUENO, Samira; MARQUES, David; PACHECO, Dennis. Anuário Brasileiro de Segurança Pública: As
mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil em 2020. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em: 25/11/2021.
26

o monopólio da violência física legítima”17. Weber explica que a relação entre o


Estado e a violência é particularmente íntima, e que desde sempre, em qualquer
que seja o agrupamento político, ela é usada como instrumento normal de poder.
Mas ressalta também que é característica dos nossos tempos de não reconhecer
o uso da violência a qualquer grupo de indivíduos, ficando assim, restrito ao
Estado fazer o uso legítimo.

No Brasil, não há uma legislação específica que trate especificamente


sobre os procedimentos de uso da força pela polícia, mas há legislações gerais
que legitimam a força policial. Quando ocorre uma morte por intervenção policial,
geralmente tem-se como preceito que o policial agiu em legítima defesa, tendo
respaldo nos artigos 23, 24 e 25 do Código Penal Brasileiro, já que essa,
entendida como o uso moderado dos meios necessários afim de repelir injusta
agressão, atual ou iminente, a seu direito ou de outrem, não constitui crime,
diante da exclusão de ilicitude, nos termos do artigo 23 abaixo:

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de


direito.

Excesso punível

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo,


responderá pelo excesso doloso ou culposo.

(CÓDIGO PENAL, 1940)18

Quando um indivíduo pratica uma conduta típica, aquela que é descrita


na lei penal como crime, julga-se também como uma conduta antijurídica,
contudo, em alguns casos, como explica Aníbal Bruno (2005, p. 365): “pela
posição particular em que se encontra o agente ao praticá-las, se apresentam

17
WEBER, Max. Ciência e Política, duas vocações – São paulo: Cultrix, 1997, p. 56.
18
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de
Janeiro, 31 dez.
27

em face do Direito como lícitas”19, situações excepcionais e previamente


classificadas que geram a exclusão de ilicitude. Ou seja, a exclusão de ilicitude
pode ser entendida pela presença de elementos que afastam a ilegalidade de
uma conduta tida como antijurídica, é uma exceção a proibição legal.

As três causas de excludente de ilicitude elencadas no referido artigo


acima, possuem definição nos artigos seguintes do Código Penal.

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato


para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem
podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas
circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Rogério Greco (2012, p. 122) conceitua o estado de necessidade como


um instituto onde “ambos os bens em conflito estejam amparados pelo
ordenamento jurídico. Esse conflito de bens é que levará, em virtude da situação
em que se encontravam, à prevalência de um sobre o outro”.20 Destaca-se que
diante da necessidade de colocar os bens em conflito numa balança, configura-
se o princípio da ponderação dos bens, onde é necessária uma prévia avaliação
dos bens juridicamente protegidos para assim poder colocar um em detrimento
do outro. Greco usa como exemplo os policiais que se abrigam dentro de uma
residência – sem solicitação prévia ao morador – a fim de se protegerem durante
uma troca de tiro. Nessa situação o bem jurídico prejudicado é a inviolabilidade
de domicílio com a finalidade de proteger um bem de maior valor, que é a vida.
Portanto, os policiais que assim agissem, não poderiam ser responsabilizados
criminalmente pois estão amparados pelo estado de necessidade.

Diferentemente se conceitua a legítima defesa, já que nessa o agente


age em resposta a uma injusta agressão. Logo, enquanto no estado de
necessidade há a colisão de dois ou mais bens juridicamente protegidos, na

19
BRUNO, Anibal. Direito Penal – Parte geral. Imprenta: Rio de Janeiro, 2005, p. 365.
20
GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e
constitucionais – Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 122.
28

legítima defesa um dos agentes age em inconformidade com o ordenamento


jurídico.

3.2. DA LEGÍTIMA DEFESA

De acordo com Nucci (2012) na legítima defesa existe um conflito entre


o titular de um bem ou interesse juridicamente protegido e um agressor, agindo
ilicitamente, ou seja, trata-se de um confronto entre o justo e o injusto.21

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando


moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual
ou iminente, a direito seu ou de outrem.

3.2.1. Das espécies de legítima defesa

É possível classificar esse instituto em seis espécies, sendo a legítima


defesa real, própria ou autêntica; legítima defesa putativa; legítima defesa
recíproca; legítima defesa de terceiro; legítima defesa sucessiva e legítima
defesa da honra.

3.2.1.1. Legítima defesa real, própria ou autêntica

Pode ser entendida como a defesa exercida em seu próprio favor diante
da ocorrência de uma injusta agressão que esteja efetivamente ocorrendo no
mundo concreto. É necessário que a reação seja na mesma proporção da ação,
atendendo aos limites legais, para que não haja excesso de poder.

21
NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
29

3.2.1.2. Legítima defesa putativa

Ao contrário da real, a legítima defesa putativa ocorre quando a injusta


agressão não é efetiva, ela existe no imaginário do agente. É um erro diante das
circunstâncias, onde o agente, numa situação de perigo, acredita que pode vir a
sofrer uma injusta agressão, a qual, no mundo concreto, não ocorre. Nas
palavras de Zaffaroni (1999, p. 639), pode ser entendido como “uma causa de
ausência de culpabilidade, motivada no erro, que impede a compreensão da
antijuridicidade da conduta”.22

Também conhecida como descriminantes putativas, tendo previsão legal


no §1º do artigo 20 do Código Penal.

Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui


o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Descriminantes putativas (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas


circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação
legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o
fato é punível como crime culposo.

3.2.1.3. Legítima defesa recíproca

Ocorre quando há a legítima defesa por ambas as partes em


conflito. Seria a legítima defesa usada contra a legítima defesa, numa situação
de agressão mútua, onde não é possível identificar quem causou a injusta
agressão por primeiro.

22
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual do Direito Penal Brasileiro: parte
geral. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 639.
30

Cabe ressaltar que essa modalidade não é aceita pelo


ordenamento jurídico brasileiro, já que para que configure legítima defesa é
necessário a existência de uma agressão injusta, e havendo a reciprocidade da
ação, não seria lógico afirmar que ambas as partes agiram em legítima defesa,
sem que alguém tenha iniciado a injusta agressão. Nesse sentido, ressalta Nucci
(2014, p. 268) que “não existe tal possibilidade, pois a agressão não pode ser
injusta, ao mesmo tempo, para as duas partes distintas e opostas”.23

3.2.1.4. Legítima defesa de terceiro

O próprio artigo base do instituto conceitua a legítima defesa como


podendo ser usada para repelir injusta agressão a direito próprio ou de outrem,
mesmo que esse terceiro não tenha nenhum vínculo de proximidade ou
afetividade com o agente. Nas palavras de Barros (2006, p. 333),

A legítima defesa de terceiro consagra o sentimento de solidariedade


humana. Não é necessário relação de parentesco ou amizade com o
terceiro em favor de quem se exercita a legitima defesa. O terceiro
pode ser uma pessoa jurídica, o nascituro, a coletividade, o Estado.
Afinal, a legítima defesa é uma forma de autotutela, que auxilia o
Estado na luta pela preservação do direito.24

3.2.1.5. Legítima defesa sucessiva

Esta pode ser entendida como a legítima defesa em razão do excesso


de legítima defesa, ou seja, diante de uma injusta agressão, a vítima reage, e
acaba ultrapassando o limite do razoável, obrigando o primeiro agressor a agir
em legítima defesa.

23
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado – São Paulo: Forense, 2014, p. 268
24
BARROS, Flavio Augusto Monteiro de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2006.
31

Conforme leciona Rogério Greco (2016)25, quando o agente alcança seu


objetivo, qual seja, fazer cessar a agressão injusta, já não poderá ir além. Dessa
forma, podemos entender que a primeira ação de legítima defesa é lícita até o
momento que ela efetivamente cessa a agressão, a partir desse momento, todo
o excesso é ilícito, convertendo o primeiro agressor em vítima, até que esse
precise agir em legítima defesa.

3.2.1.6. Legítima defesa da honra

O Código Penal não trouxe em seu texto as especificações acerca da


legítima defesa, sendo abrangente em questão aos bens protegidos. Quem
corrobora para o entendimento nesse sentido é Mezger (1995, p. 454), que
explica:

É indiferente a índole do interesse juridicamente protegido contra o


qual o ataque se dirige: pode ser o corpo ou a vida, a liberdade, a
honra, a honestidade, a inviolabilidade de domicílio, a situação jurídica
familiar, o patrimônio, a posse, etc. [...] Todo bem jurídico é suscetível
de ser defendido legitimamente.26

Contudo, esse não é um entendimento pacificado, ele gera


controvérsias, onde alguns doutrinadores defendem que a ofensa à honra, pode,
na esfera judicial, ter seu dano reparado, não sendo plausível agir para repelir a
ofensa. Podemos pensar nas seguintes situações: quando há uma agressão
física, a ação de legítima defesa é mais tangível, podendo o agente imobilizar o
agressor. Porém, quando se trata de uma agressão a honra, a legítima defesa
se torna volátil, sendo incerto qual a forma correta para repelir a ação.

O direito à honra é garantido constitucionalmente, e levando em


consideração que não há restrição de direitos a serem protegidos no texto legal,
torna-se a honra passível de legítima defesa.

25
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 18ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2016.
26
MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal, Madri: Revista de Derecho Privada, 1995, p.454.
32

3.2.2. Dos elementos que integram a legítima defesa

Para Rogério Greco (2012, p. 129):

Para que se possa reconhecer a legítima defesa, todos os elementos


constantes do art. 25 do Código Penal e 44 do Código Penal Militar
devem estar presentes. A ausência de um deles descaracteriza essa
causa de exclusão de ilicitude, abrindo-se a possibilidade de punição
do agente.27

Assim, para que a legítima defesa seja considerada lícita, é


indispensável a existência de uma agressão injusta, da utilização dos meios
necessários, da moderação no uso dos meios necessários, da atualidade ou
iminência da agressão e da defesa própria ou de terceiros.

A agressão injusta pode ser entendida como uma lesão, física ou moral,
a um bem juridicamente protegido, causada por uma ação humana, ou seja, não
é possível caracterizá-la por um ataque de animal.

Os meios necessários são aqueles disponíveis ao agente no momento


do ato, e que sejam suficientes para fazer cessar a agressão. Independente de
qual seja o meio utilizado, o mesmo deve ser usado com moderação, tendo em
mente a proporcionalidade da ação e da reação, sob o risco de incorrer de força
excessiva.

O conceito de atualidade de agressão é autoexplicativo, é a legítima


defesa aplicada no momento exato em que ocorre a agressão, já a iminente é
aquela que de fato irá acontecer, mas num futuro próximo, que está prestes a
acontecer.

27
GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e
constitucionais – Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 129.
33

A defesa própria ou de terceiros é aquela já conceituada nas espécies


de legítima defesa, pode ser utilizada para proteger bem jurídico pessoal ou
intervir na defesa de terceira pessoa.

3.2.3. Legítima defesa e a aberrario ictus

O conceito de aberratio ictus é o erro acidental na execução do crime


quanto à pessoa da vítima, ou seja, quando no intuito de ferir ou matar alguém,
o infrator, por acidente ou erro, atinge outra pessoa se não aquela da qual era
seu objetivo. Esse instituto, aplicado à legitima defesa, consiste na ação de uma
pessoa, que age na tentativa de repelir a injusta agressão, mas devido a erro na
execução, atinge pessoa diversa daquela pretendida.

Assim, com amparo no artigo 73 do Código Penal e artigo 37 do Código


Penal Militar, que dispõem sobre erro na execução, entende-se viável a hipótese
de legítima defesa em caso de aberratio ictus. Conforme discorre Greco (2012,
p. 132):

Pode ocorrer que determinado agente, almejando repelir agressão


injusta, agindo com animus defendendi, acabe ferindo outra pessoa
que não o eu agressor, ou mesmo a ambos (agressor e terceira
pessoa). Neste caso, embora tenha sido ferida ou mesmo morta outra
pessoa que não o seu agressor, o resultado advindo da aberração no
ataque (aberratio ictus) estará também amparado pela causa de
justificação da legítima defesa, não podendo, outrossim, por ele
responder criminalmente.28

Ou seja, num caso prático, em determinada operação policial, o agente


ao tentar repelir ou fazer cessar uma injusta agressão, atinge terceiro, que não
possuía relação nenhuma com os fatos, ocasionando a morte do mesmo, ao

28
GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e
constitucionais – Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 132.
34

alegar erro na execução, estaria sujeito a exclusão da ilicitude, sendo assim,


absolvido pelas mortes ocasionadas.

3.3. DO EXCESSO E DO ABUSO DE PODER

3.3.1. Do excesso de legítima defesa

Presente em absolutamente todas as doutrinas, entende-se


pacificamente que a legítima defesa deve sempre ser usada de forma razoável
e proporcional à ação do agente causador da agressão, não excedendo aos
limites legais.

Para os excessos, o parágrafo único do artigo 23 do Código Penal e o


artigo 45 do Código Penal Militar, dissertam:

Art. 23 [...]

Excesso punível

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo,


responderá pelo excesso doloso ou culposo.

Art. 45. O agente que, em qualquer dos casos de exclusão de crime,


excede culposamente os limites da necessidade, responde pelo fato,
se êste é punível, a título de culpa.

Para Greco (2012. p. 140), se mesmo depois de ter feito cessar uma
agressão que estava sendo praticada contra sua pessoa, o agente não
interrompe seus atos e continua com a repulsa, a partir desse momento já estará
incorrendo em excesso.29 Ou seja, o ato é lícito até o exato momento em que o

29
GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e
constitucionais – Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 140.
35

agente consegue fazer cessar a agressão, após isso, torna-se excesso, incidindo
em abuso de poder.

3.3.2. Do abuso de poder

O poder de polícia, como visto anteriormente, é uma das prerrogativas


da Administração Pública, a qual tem como uma de suas finalidades atender o
interesse público, agindo dentro da legalidade e da legitimidade, ou seja, ao
agente público é restringido agir de acordo com aquilo que a lei determina e com
o que ela não veda. Já o abuso de poder vai em sentido contrário ao que
realmente deveria ser exercido, já que este representa o comportamento
irregular de um indivíduo para fazer valer suas vontades particulares em
detrimento a vontade coletiva.

O Conselho Nacional do Ministério Público traz em seu glossário a


definição de abuso de poder como a “1. Exorbitância dos poderes conferidos.
Excesso de mandato. Exercícios de atos não outorgados ou não expressos no
mandato ou na procuração. 2. Prática de atos que excedem as atribuições
conferidas em lei ou que escapam à alçada funcional.”30

A necessidade de estabelecer parâmetros para o uso da força pela


polícia e o dever do Estado de supervisionar essa atividade já foi dito e reiterado
diversas vezes, contudo, o problema é recorrente e o controle interno e externo
é falho. Os casos em que a polícia é obrigada a fazer o uso legítimo da força,
para proteger a si próprio ou a terceiros, misturam-se com os erros de
procedimento e nos casos mais graves, com as execuções sumárias31. A

30
GLOSSÁRIO. Conselho Nacional do Ministério Público, 2021. Disponível em:
https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/476-glossario/8237-abuso-de-poder-1. Acesso em: 23 de
novembro de 2021.
31
Consideram-se Execuções sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais todo e qualquer homicídio praticado
por forças de segurança do Estado (policiais, militares, agentes penitenciários, guardas municipais) ou
similares (grupos de extermínio, justiceiros), sem que a vítima tenha a oportunidade de exercer o direito
de defesa num processo legal regular, ou, embora respondendo a um processo legal, a vítima seja
executada antes de seu julgamento ou com algum vício processual; ou ainda, embora respondendo a
processo legal, a vítima seja executada sem que lhe tenha sido atribuída uma pena capital legal.
PIOVESAN, Flávia et al. Execuções Sumárias, Arbitrárias ou Extrajudiciais: Uma Aproximação da
Realidade Brasileira. Recife: 2001.
36

distinção entre o uso legitimo da força e o abuso de poder é extremamente dúbio


e decorre de uma série de fatores.

Diariamente, milhares de cidadãos são vítimas de diferentes crimes,


vendo-se na necessidade de recorrer ao estado, o qual, no exercício de seu
ofício, analisa a situação e toma as providências cabíveis, seguindo as diretrizes
do uso progressivo da força, conforme dito anteriormente. A simples presença
da polícia no lugar do fato já pode ser entendida como uso da força, e deve ser
seguida progressivamente, de acordo com a necessidade de atuação, levando
em conta que o uso de armas letais deve ser somente em último caso, quando
não restar mais nenhuma alternativa ao agente.

Esse limite imposto, infelizmente é constantemente ultrapassado pelos


órgãos de segurança pública, como podemos observar em nosso dia a dia. São
muitos os casos que chegam a nosso conhecimento, desde uma abordagem
num tom de voz mais agressivo, o uso desmedido de algemas, a agressão verbal
e física e até mesmo a utilização de armas letais. Dessa forma, muitos agentes
acabam extrapolando o limite de suas funções, deixando de observar os
princípios da proporcionalidade e a razoabilidade. Nas palavras de Mingardi
(2015, p. 15):

Tanto aqui como na maioria dos países existem dois motivos básicos
para justificar, interna corporis, a violência policial. O primeiro é que
muitas vezes a lei é dúbia, deixa margem para interpretação. Em casos
assim, os policiais agem de acordo com regras próprias, por vezes
infringindo o espírito das leis. O segundo é que alguns policiais
extrapolam a lei, atuando de forma ilegal, espancando, torturando ou
mesmo executando criminosos ou supostos criminosos.
Frequentemente com o apoio de algum segmento social.32

Um caso recente, que repercutiu na mídia e que é um claro exemplo do


abuso de poder e uso excessivo da força é o de Genivaldo de Jesus Santos,
morto em 25 de maio de 2022, durante uma abordagem da Polícia Rodoviária

32
MINGARDI, Guaracy. Apresentação. In: KUCINSKI, Bernardo, et al. Bala perdida: a violência policial no
Brasil e os desafios para a sua superação – São Paulo: Boitempo, 2015, p. 14.
37

Federal, em Umbaúba, Sergipe. Genivaldo tinha 38 anos, era negro, casado,


dois filhos, diagnosticado com distúrbio de esquizofrenia, para o qual tomava
remédios controlados há 20 anos, e foi assassinado dentro do porta-malas de
uma viatura da PRF, usada como uma “câmara de gás”, sua morte, conforme
laudo do IML, se deu por asfixia mecânica e inflamação intensa nas vias
respiratórias, causada pelo uso do gás lacrimogênio.

“Foi dada a ordem de parada, ele parou, botou a moto no descanso e


atendeu todos os comandos. O policial pediu para ele levantar a
camisa, ele fez e falou que estava com o remédio no bolso e com a
receita médica indicando que ele tem problemas mentais, foi quando o
policial chamou reforço”, relata Wallyson de Jesus, sobrinho de
Genivaldo. Segundo Wallyson, outros dois policiais chegaram e
iniciaram o que o sobrinho chamou de “sessão de tortura.” “Pegaram
ele pelos braços e pelas pernas. Quiseram colocar algemas nos pés
dele, mas não coube e pegaram uma fita lá dentro e amarraram nele.
Começaram a pisar nele e depois de tudo isso ocorrido, eles pegaram
meu tio, colocaram na viatura e colocaram uma granada daquela de
gás”, relata o sobrinho da vítima. As imagens mostram dois policiais
segurando Genivaldo dentro da viatura, com as pernas para fora. 33

O inquérito policial segue em fase final de investigação e a PRF informou


que abriu processo disciplinar para investigar a conduta dos policiais.

O uso da força policial é um ato discricionário e legal, sendo uma medida


necessária legitimada pelo Estado para garantir o devido cumprimento dos
direitos e deveres da sociedade, assim como proteger seus bens jurídicos. Mas
cabe ressaltar que ele não é ilimitado, é derivado do poder de polícia e deve
seguir os princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade. O agente
deve sempre ter em mente que no exercício da sua função, ele tem o dever de
proteger a sociedade e preservar a ordem pública, garantindo o cumprimento

33
Morte de Genivaldo foi causada por asfixia mecânica e inflamação de vias aéreas. CNN Brasil,
02/09/2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/morte-de-genivaldo-foi-causada-
por-asfixia-mecanica-e-inflamacao-de-vias-aereas/. Acesso em: 02/10/2022.
38

das leis, e não ter uma visão da sociedade como um eventual inimigo, a quem
se deve reprimir.

Fernanda Mena (2015, p. 20) ressalta a relação negativa dos brasileiros


com a polícia, baseando-se no Índice Confiança da Justiça, realizado pela FGV
em 2012, onde diz que 70% da população do país não confia na instituição, e
63% se declaram insatisfeitos com a atuação da polícia. E ainda vai além,
citando dados da Pesquisa Nacional de Vitimização, realizado pelo Datafolha,
Mena frisa que um terço da população teme sofrer violência policial, e índice
semelhante receia ser vítima de extorsão pela polícia 34.

A partir dos dados apresentados e de uma análise do nosso cotidiano,


não seria razoável crer que o instituto da Segurança Pública no Brasil é efetivo,
já que podemos dizer que nos encontramos no meio do fogo cruzado, num país
que tem índices alarmantes de criminalidade mas que também apresenta uma
das policiais mais letais do mundo.

A maior questão e talvez o ponto principal deste estudo é reconhecer se


podemos dizer que essa letalidade por parte do estado está somente ligada ao
alto índice de criminalidade ou se existem outros fatores que podem corroborar
com essa situação, e para onde deveríamos focar nossa atenção no intuito de
alterar esse triste cenário, pautas que aprofundaremos mais adiante.

4. A VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL E A ATUAÇÃO DO ESTADO

4.1. CRITÉRIOS PARA AFERIR A LETALIDADE POLICIAL

Os dados acerca da violência e letalidade policial sempre foram – e ainda


são – muito escassos, seja por falta de controle interno da própria polícia, ou
controle externo pelo Ministério Público, ou até mesmo pela deficiência de ter um

34
MENA, Fernanda. Um modelo violento e ineficaz de polícia. In: KUCINSKI, Bernardo, et al. Bala
perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para a sua superação – São Paulo: Boitempo, 2015,
p. 20.
39

sistema capaz de contabilizar com exatidão esses dados repassados. Porém,


em 2013 o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) iniciou um
levantamento sobre a letalidade policial, se tornando uma das grandes – e
confiáveis – fontes para acesso à essas informações, e foi a partir desse
momento que podemos perceber um crescimento até mesmo nos estudos mais
aprofundados na temática.

No mesmo ano, logo após a publicação do anuário pelo FBSP, o site


UOL divulgou uma matéria com base nos dados fornecidos pelo Fórum, onde
demonstra-se que mesmo com a recente coleta de dados, já foi possível
identificar que a polícia brasileira mata, em ações policiais, quatro vezes mais
que a polícia Estadunidense e duas vezes mais que a Venezuelana.

As polícias Civil e Militar no Brasil mataram, em média, mais de quatro


vezes mais civis que a dos Estados Unidos, em 2012, e mais de duas
vezes que as polícias da Venezuela, país que têm o dobro da taxa de
homicídios do Brasil, hoje, em 24,3 pessoas a cada grupo de 100 mil
habitantes. No Reino Unido, onde a taxa de homicídios do ano passado
foi de uma pessoa para cada grupo de 100 mil habitantes, uma das
menores do mundo, foram registradas 15 mortes em confronto com as
polícias – 126 vezes menos que no Brasil.35

Aferir com exatidão se a força utilizada pela polícia foi ou não apropriada
e se essa agiu com excesso e violência é dificultoso – se é que não podemos
dizer que praticamente impossível – pois varia de caso para caso e depende das
circunstâncias. No entanto, a partir do estudo de diversos pesquisadores no
intuito de buscar critérios para analisar o uso da força policial, foram criados
padrões internacionais para aferir a letalidade das polícias.

Por esses padrões, três critérios são usualmente utilizados para aferir
o uso da força letal: (1) a relação entre civis mortos e policiais mortos;

35
UOL – disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/11/05/policias-
brasileiras-mataram-126-vezes-mais-que-a-do-reino-unido-em-2012-diz-estudo.htm - acessado em
26/11/2021.
40

(2) a razão entre civis feridos e civis mortos pela polícia; (3) a proporção
de civis mortos pelas polícias em relação ao total de homicídios
dolosos.36

Com base nesses critérios, e com os dados fornecidos pelo Fórum


Brasileiro de Segurança Pública, faremos a seguir uma análise dos casos no
Brasil e em seus estados.

4.1.1. A proporção de civis mortos pelas polícias em relação ao total de


homicídios.

O terceiro critério é usado por muitos pesquisadores, pois é possível


supor que em um território mais violento, onde há uma grande incidência de
homicídios, a polícia vê-se com mais frequência em situações de risco, havendo
uma maior possibilidade de confronto e uso da força letal. Assim, tendo em vista
a quantidade total de Mortes Violentas Intencionais (MVI), quanto maior o índice
de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP), pode-se entender que a
polícia está cometendo abuso de poder e excessos no uso da força letal.

Para termos um parâmetro, Cano (1997)37 em seu estudo, indicou que a


proporção de mortes em decorrência de intervenção da polícia não poderia
ultrapassar os 10%, pois configuraria assim, um indicador do uso excessivo da
força.

Tabela 3 - Proporção de Mortes decorrentes de intervenções policiais em relação às Mortes


Violentas Intencionais.

36
BUENO, Samira; CERQUEIRA, Daniel; DE LIMA, Renato Sérgio. Sob fogo cruzado II: Letalidade da ação
policial. In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2013, p.
119.
37
CANO, Ignácio. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iser, 1997.
41

Morte Decorrente
Grupos Mortes Violentas de Intervenções Proporção de
segundo Brasil e Intencionais - MVI Policiais (MDIP) em MDIP em relação
39
qualidade Unidades da serviço e fora de às MVI
dos Federação serviço
dados 38 Número Absoluto Número Absoluto Em percentual (%)
2020 2021 2020 2021 2020 2021

Brasil 50.448 47.503 6.413 6.145 12,7 12,9

Alagoas 1.249 1.069 86 63 6,9 5,9


Ceará 4.183 3.418 143 118 3,4 3,5
Distrito Federal 425 347 11 8 2,6 2,3
Espírito Santo 1.206 1.160 40 40 3,3 3,4
Goiás 2.209 1.881 631 576 28,6 30,6
Maranhão 2.041 2.021 94 85 4,6 4,2
Mato Grosso 990 889 128 103 12,9 11,6
Grupo 1
Pará 2.876 2.881 527 546 18,3 19,0
Paraíba 1.166 1.161 38 51 3,3 4,4
Paraná 2.490 2.407 377 414 15,1 17,2
Pernambuco 3.760 3.368 116 102 3,1 3,0
Piauí 707 782 29 34 4,1 4,3
Santa Catarina 811 744 86 70 10,6 9,4
Sergipe 988 792 196 210 19,8 26,5

Bahia 6.696 6.734 1.138 1.010 17,0 15,0


Mato Grosso do
607 589 21 44
Sul 3,5 7,5
Minas Gerais 2.708 2.450 122 114 4,5 4,7
Rio de Janeiro 4.907 4.755 1.245 1.356 25,4 28,5
Grupo 2 Rio Grande do
1.357 1.155 145 152
Norte 10,7 13,2
Rio Grande do
2.033 1.824 123 156
Sul 6,1 8,6
São Paulo 4.157 3.666 814 570 19,6 15,5
Tocantins 458 390 27 42 5,9 10,8

Acre 322 192 27 11 8,4 5,7


Amapá 356 472 111 150 31,2 31,8
Grupo 3 Amazonas 1.121 1.670 102 100 9,1 6,0
Rondônia 413 454 20 11 4,8 2,4
Roraima 212 232 16 9 7,5 3,9
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Monitor da Violência/G1;
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

38
Grupos segundo qualidade estimada dos registros estatísticos oficiais de Mortes Violentas
Intencionais. Grupo 1: maior qualidade das informações; Grupo 2: qualidade intermediária das
informações; Grupo 3: menor qualidade das informações.
39
A categoria Mortes Violentas Intencionais (MVI) corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso,
latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e
fora (em alguns casos, contabilizadas dentro dos homicídios dolosos). Sendo assim, a categoria MVI
representa o total de vítimas de mortes violentas com intencionalidade definida de determinado
território.
42

Considerando a orientação indicada por Cano, podemos observar que a


média nacional já está acima dos 10%, e quando se trata de determinados
estados a situação se apresenta ainda mais crítica, como é o caso de Goiás,
Sergipe, Rio de Janeiro e Amapá, todos com uma proporção acima dos 25%.

Levando em conta que o total de Mortes Violentas Intencionais (MVI) em


2021 foi de 47.503, cabe evidenciar que as Mortes Decorrentes de Intervenção
Policial (MDIP) possuem o maior número, sendo registrado 6.145 ocorrências,
comparado às mortes por latrocínio, registradas em 1.445; à lesão corporal
seguida de morte, registrada em 512; e às mortes de policiais civis e militares,
registrada em 190, conforme os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública.40

Ao colocarmos os dados na ponta do lápis, descobrimos mais um


número que assusta, em 2021 a Polícia Civil e Militar – aqui um destaque para
a PM, já que essa mostra registros bem acima da PC – matou em média 16
pessoas por dia no Brasil.

Conforme o 8º Anuário de Segurança Pública 41, publicado em 2014, a


letalidade da polícia brasileira em 5 anos, matou tanto quanto a polícia norte
americana matou em três décadas.

Tabela 4 – Letalidade Policial Brasileira

2009 2010 2011 2012 2013 TOTAL


2.177 2.434 2.042 2.332 2.212 11.197
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Sistema Nacional de
Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (SINESP)/ Secretaria Nacional de
Segurança Pública (Senasp) /Ministério da Justiça; FBI; Statistical Abstract of the United
States:2002, The National Data Book; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Tabela 5 – Pessoas mortas pelas polícias norte americanas – EUA (1983-2012)

40
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 02/08/2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em:
02/10/2022.
41
8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível
em: https://forumseguranca.org.br/storage/8_anuario_2014_20150309.pdf. Acesso em: 02/10/2022.
43

1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993
406 332 321 298 296 339 362 379 359 414 453

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
459 382 357 366 369 308 297 378 341 373

2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 TOTAL
367 347 386 398 378 414 397 404 410 11.090
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Sistema Nacional de
Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (SINESP)/ Secretaria Nacional de
Segurança Pública (Senasp) /Ministério da Justiça; FBI; Statistical Abstract of the United
States:2002, The National Data Book; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

4.1.2. A razão entre civis feridos e civis mortos pela polícia

O segundo critério partiria do pressuposto que o número de civis feridos


deveria ser maior do que o de civis mortos pelas polícias, do contrário, seria
indevido supor que a polícia está agindo apenas no intuito de proteger e
resguardar a sociedade, mas sim “atirando para matar”.

Nesse cenário devemos imaginar que em operações ou confrontos, a


polícia deveria seguir os preceitos de uso progressivo da força, ou seja, mesmo
em último caso, quando é necessário utilizar-se de armas letais, prioriza-se
aquelas de menor potencial ofensivo ou seu disparo deve mirar em áreas não
vitais do corpo do agressor. Ou seja, seguindo essa lógica, em eventuais
confrontos o registro de feridos deveria ser maior.

Para esse critério não foram encontrados dados disponíveis a nível


nacional, apenas do estado de São Paulo, disponibilizados pela Secretaria de
Segurança Pública.

Tabela 6 – Relação de civis mortos e civis feridos pela polícia civil e militar nos três primeiros
semestres de 2021.
44

Estado de São Paulo – 2021 1º trimestre 2º trimestre 3º trimestre


Pessoas mortas em confronto com a polícia civil
4 3 2
em serviço
Pessoas mortas por policiais civis de folga 4 2 1
Pessoas feridas em confronto com a polícia civil
11 13 11
em serviço
Pessoas feridas por policiais civis de folga 8 2 10
Pessoas mortas em confronto com a polícia militar
159 113 72
em serviço
Pessoas mortas por policiais militares de folga 33 25 34
Pessoas feridas em confronto com a polícia militar
58 55 39
em serviço
Pessoas feridas por policiais militares de folga 24 22 36
Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Disponível em:
http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Trimestrais.aspx

Com relação à polícia civil realmente é possível verificar que o número


de pessoas feridas foi maior do que a de pessoas mortas, em qualquer um dos
trimestres. Já em relação a polícia militar, verificamos a ocorrência
consideravelmente superior de mortes comparado à de pessoas feridas.
Enquanto o número de feridos por policiais militares em serviço e fora dele
totalizou 234 pessoas, o registro de pessoas mortas por policiais militares em
serviço e fora dele alcançou quase o dobro, totalizando 436 vítimas.

Apesar de não terem sido encontrados dados concretos desse índice no


Brasil e em outros estados, fora São Paulo, podemos imaginar que,
proporcionalmente, os registros seguem a mesma linha. Mais uma vez,
demonstrando que a polícia – aqui em destaque, a PM – não está devidamente
preparada e alinhada com normas e técnicas institucionalizadas.

4.1.3. A relação entre civis mortos e policiais mortos

O primeiro critério a ser utilizado parte do pressuposto que se o número


de civis mortos é muito superior, há por parte da polícia o abuso da força,
considerando que diante de uma situação de risco, se o policial vê a necessidade
de fazer uso da força letal – de acordo com a razoabilidade e proporcionalidade
– esses indicadores deveriam ser próximos. Porém, quando esses números são
45

muitos díspares é difícil crer que em todos os casos a polícia agiu visando sua
defesa.

É difícil estabelecer um quantitativo fixo para o grau de aceitabilidade do


uso da força letal pela polícia, por isso existe uma divergência entre os
parâmetros. O FBI, por exemplo, trabalha com a proporção de 12 civis mortos
para cada policial morto; Chevigny (1991) sugere que quando a proporção de
civis mortos é maior do que 10, a polícia está abusando do uso da força letal;
Cano (1997) trabalha com a proporção de 4 civis mortos para cada policial
morto.42

Tendo como base o maior índice, usado pelo FBI – 12 civis para 1 policial
morto – quando nos deparamos com os dados apresentados no Brasil, é no
mínimo chocante. Em 2020, para cada policial morto, em serviço ou fora dele,
foram 33,1 pessoas mortas em intervenções policiais no Brasil, quase o triplo do
aceitável nos parâmetros do FBI. O índice varia de estado para estado, enquanto
em Rondônia, Piauí e Mato Grosso do Sul a proporção foi abaixo de 6, em Goiás
e no Paraná os números nos deixam incrédulos. Em Goiás a relação foi de 210,3
civis mortos para 1 policial morto em intervenções policiais, e no Paraná o
número chegou a 186,5, apresentando uma queda significativa comparada a
2019, quando a proporção era de 288 civis mortos para cada policial.

Tabela 7 – Relação entre o número de mortes decorrentes de intervenção policial e o número de


policiais vítimas de CVLI43.

UF e Brasil – 2019 a 2020

Brasil e Unidades
2019 2020
da Federação
Brasil 36,9 33,1
Acre 23 27
Alagoas 29 43
Amapá 122 -
Amazonas 88 16,2
Bahia 96,6 103,4
Ceará 68 14,3
Distrito Federal - 11
Espírito Santo - 46

42
Ibidem, p. 119.
43
CVLI: Crimes Violentos Letais Intencionais
46

Goiás 88,8 210,3


Maranhão 72 19,6
Mato Grosso 24,3 130
Mato Grosso do Sul 62 5,3
Minas Gerais 17,8 24
Pará 20,1 38,6
Paraíba 13 19
Paraná 288 186,5
Pernambuco 8,1 9,6
Piauí 21 5,1
Rio de Janeiro 44,2 28,3
Rio Grande do Norte 13,3 29
Rio Grande do Sul 16,5 -
Rondônia 11 5
Roraima - 15
Santa Catarina - 43
São Paulo 25,5 16,6
Sergipe 83 65,3
Tocantins - -
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Monitor da Violência;
Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A partir da análise desses dados, seria passível dizer que, apesar dos
estados de Rio de Janeiro e São Paulo serem os que tem a maior proporção de
mortes em decorrência de intervenção policial, não são os que possuem a polícia
mais letal.

Não seria razoável crer que, à exemplo do Paraná, com a proporção de


186 civis mortos em intervenções policiais para cada 1 policial morto, o estado
estaria apenas tentando “manter a ordem pública”. O Ministério Público do
Paraná, por meio do GAECO, divulgou número de mortes em confrontos com
policiais civis e militares e guardas municipais no estado. No total, foram 417
civis mortos em 2021, tendo um aumento de 9,74% em relação ao ano anterior,
quando ocorreram 380 mortes44. Já em relação ao número de policiais vítimas
de Crimes Violentos Letais e Intencionais em serviço e fora de serviço, os dados
foram fornecidos pelo FBSP45, e indicam um número incrivelmente díspar ao de

44
Mortes em confrontos com policiais no Paraná cresceram 9,74% em 2021. Ministério Público do
Paraná, 27/04/2022. Disponível em: https://mppr.mp.br/2022/04/24444,10/Mortes-em-confrontos-
com-policiais-no-Parana-cresceram-974-em-2021.html. Acesso em: 02/10/2022.
45
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 02/08/2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em:
02/10/2022.
47

civis. Em 2020 foi registrado 6 mortes de oficiais, enquanto em 2021 esse


número caiu para 3 mortes.

Tabela 8 - Policiais Civis e Militares vítimas de CVLI, em serviço e fora de serviço

PARANÁ 2020 2021


Policiais Civis mortos em confronto em serviço 1 0

Policiais Militares mortos em confronto em serviço 1 1


Policiais Civis mortos em confronto ou por lesão não natural
2 0
fora de serviço
Policiais Militares mortos em confronto ou por lesão não
2 2
natural fora de serviço
Total 6 3
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Monitor da Violência;
Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Entretanto, conforme informa Samira Bueno, diretora-executiva do


Fórum Brasileiro de Segurança Pública e uma das responsáveis pelo Anuário,
“o Brasil não é apenas um dos líderes no ranking de países mais violentos do
mundo quando o assunto é homicídio46. Infelizmente, também nos destacamos
por sermos um dos países em que os policiais mais morrem e mais matam.”47

Apesar de todos os dados até aqui sugerirem que a polícia brasileira é


extremamente violenta e que aparentemente não segue as normas e
procedimentos determinados pelo ordenamento jurídico – e de fato, possui uma
alta taxa de letalidade – é necessário olharmos por outro viés, já que o presente
estudo não tem o condão de induzir quem o lê a acreditar que a polícia é a fonte
dos problemas da violência no Brasil.

Os dados acerca da vitimização dos policiais também são


preocupantes e comprovam que a legitimação da violência não traz

46
Segundo estudo da ONU referente ao ano de 2012, o Brasil registrou 11,4% dos homicídios do
planeta, ainda que concentrasse apenas 2,8% da população mundial no mesmo ano.
47
8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pág. 43.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/storage/8_anuario_2014_20150309.pdf. Acesso em:
02/10/2022.
48

prejuízos somente para a segurança de civis, mas também para a


segurança dos policiais que a praticam. Onde há ação violenta da
polícia, há reação violenta da sociedade.48

Primeiramente, observa-se, conforme os dados já apresentados em


tópicos anteriores, que a Polícia Militar é a protagonista no cenário da letalidade
policial no Brasil, já que em 2021 a mesma foi responsável pela morte de 4.257
pessoas em intervenções policiais – sendo 4.035 em serviço e 222 fora de
serviço – enquanto a Polícia Civil registrou a marca de 166 mortes decorrentes
de intervenções policiais – sendo 145 em serviço e 21 fora de serviço49.

Um dos motivos ensejadores para esse fenômeno – e provavelmente o


principal – é o fato da Polícia Militar exercer sua função de forma ostensiva,
sendo responsável por manter a ordem pública e pela prevenção de crimes. O
que obviamente os expõe a situações que necessitam de respostas rápidas ou
imediatas, mas que precisam de cautela, tendo em mente que eventuais ações
podem gerar risco a vida da parte contrária, da sua própria e de terceiros,
envolvidos ou não. O que, conforme já citado, acarreta numa linha extremamente
tênue entre a ação necessária para manter a ordem pública e o abuso de poder.

Ao passo que a Polícia Militar é a que apresenta maiores índices de


excesso de violência em suas abordagens, também é a que mais sofre com a
vitimização de seus agentes.

Tabela 9 - Policiais Civis e Militares vítimas de CVLI, em serviço e fora de serviço – Brasil

2020 2021
Policiais Militares mortos em confronto em serviço 46 34
Policiais Militares mortos em confronto ou por lesão não natural 142 124
fora de serviço

48
SILVA, Jennifer Caroline Araújo; EBERHARDT, Marcos Eduardo Faes. Letalidade da polícia militar: o
modelo de polícia ostensiva militarizada e as consequências da arbitrariedade para sociedade e para
os agentes de segurança, pag. 11, 26/11/2021. Disponível em: https://www.pucrs.br/direito/wp-
content/uploads/sites/11/2022/02/jennifer_silva.pdf. Acesso em: 03/10/2022.
49
16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
02/08/2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-
2022.pdf?v=5. Acesso em: 02/10/2022.
49

Policiais Civis mortos em confronto em serviço 14 9


Policiais Civis mortos em confronto ou por lesão não natural fora 20 23
de serviço
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Monitor da Violência;
Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Por um lado, enquanto a letalidade policial é causada


predominantemente durante o exercício da função, a vitimização policial é
gerada com mais frequência enquanto os agentes estão fora de serviço. Um dos
possíveis fatos é explicado por Silveira50:

Em primeiro lugar, há a explicação de que devido à baixa remuneração


que impera na grande maioria das Unidades da Federação, policiais
precisam fazer “bicos” para sustentar suas famílias. Com isso, ficam
bastante expostos. Isso se dá devido ao fato de no trabalho paralelo
em geral os policiais estarem sem o apoio dos colegas e não
possuírem condições de acionar rapidamente apoio quando se
envolvem em um conflito. Uma das grandes máximas da ação policial
é sempre estar em superioridade numérica e, no “bico”, isso é
praticamente impossível. [...] Há, ainda, policiais que sofrem “vendeta”
por conta de ações que realizaram contra criminosos ou grupos de
criminosos enquanto estavam em serviço. Ou seja, o policial acaba
sendo morto por cumprir a sua missão. Por fim, outro fator que não
pode ser descartado para explicar o morticínio de policiais no Brasil,
infelizmente, é que algumas das mortes acontecem pelo fato de alguns
policiais se envolverem com criminosos e terem a morte encomendada
devido a desavenças com o crime. A dura e triste realidade das forças
policiais brasileiras é que, para alguns indivíduos, o limite entre o certo
e o errado acaba ficando muito tênue e “cruzar a linha” entre ser um
agende do Estado e ser um criminoso é um fato que se constata.

50
SILVEIRA, R. A. A morte do policial. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2015. p. 24-25. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2015.retificado_.pdf. Acesso em:
03/10/2022.
50

Outro número importante que precisa ser monitorado é a ocorrência de


suicídio entre policiais da ativa, índice que também foi monitorado pelo FBSP,
no Anuário de Segurança Pública de 2022, o qual registra que o número de
policiais civis e militares que cometeram suicídio teve uma alta de 2020 para
2021, sendo que no primeiro ano foram registradas 65 ocorrências enquanto no
ano seguinte subiu para 101 casos. Importante ressaltar que os números são
superiores quando se trata da Polícia Militar, a qual registrou 52 casos em 2020
e 80 casos em 202151.

Tanto a letalidade quanto a vitimização policial apresentam números


preocupantes, ainda que esses sejam escassos. É extremamente necessário o
monitoramento desses registros para a elaboração de políticas públicas efetivas
para frear o crescimento do atual problema, antes que o sistema de segurança
pública entre em colapso – mais do que já está.

4.2. O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DAS MORTES EM DECORRÊNCIA


DE INTERVENÇÃO POLICIAL

Conforme explicado anteriormente, o chamado “auto de resistência” foi


um instituto jurídico criado durante o período da Ditadura Militar, o qual consistia
na possibilidade de um policial agir de acordo com o necessário – leia-se aqui,
de forma excessiva – para fazer cessar uma resistência por parte do infrator,
amparado pelo art. 292 do CPP, sendo dispensado a lavratura do auto de prisão
em flagrante ou a instauração de inquérito policial.

Esse termo foi muito utilizado com a intenção de ocultar execuções


sumárias e evitar investigações de homicídios cometidos pela polícia, já que
esses, quando ocorriam, eram prontamente classificados no Registro de
Ocorrência como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, e não
como homicídios. Ou seja, na prática, o policial cometia o homicídio, alegando
legitima defesa frente à resistência do infrator, a ocorrência era qualificada como

51
In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança pública: 2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em:
01/10/2022.
51

“resistência” e não era instaurado o inquérito policial, visto que o agente estava
amparado por uma excludente de ilicitude. Assim explica Michael Misse (2011,
p. 28)52:

Quando uma pessoa é morta por policiais – sejam eles militares ou


civis –, e estes agentes alegam ter havido legítima defesa, devido a
uma resistência à prisão, faz-se um Registro de Ocorrência (RO), na
delegacia distrital da Polícia Civil mais próxima ao local do fato. Neste
registro, a morte recebe a classificação de "Homicídio Proveniente de
Auto de Resistência". Não se trata de um tipo penal, mas de uma
classificação administrativa feita por policiais civis, no sistema
informatizado da polícia, de modo a orientar o trabalho de investigação

[...]

O termo “auto de resistência” advém do artigo 292 do Código


Processual Penal, que autoriza o uso de meios necessários para
"defender-se ou para vencer a resistência", se houver resistência à
prisão em flagrante. O artigo diz ainda que deverá ser lavrado um auto
subscrito, mediante a presença de duas testemunhas, as quais são, na
imensa maioria das vezes, os próprios policiais envolvidos. A
tipificação penal aplicada no Registro de Ocorrência é, no entanto, o
“homicídio”, previsto no artigo 121 do Código Penal, combinado com o
artigo 23 do mesmo, que prevê a “exclusão de ilicitude”

Michel foi o responsável por produzir um dos estudos referência no


campo da atuação da polícia, a partir da análise de inquéritos policiais nas
delegacias e promotorias do estado do Rio de Janeiro. Explica o pesquisador
que quando ocorria o homicídio pela polícia, os próprios policiais comunicavam
a ocorrência na delegacia, era lavrado o Registro de Ocorrência, ganhando a
classificação de “auto de resistência”, em seguida os próprios policiais forneciam
seus termos de declaração – ressalta-se aqui que praticamente todas as versões
eram quase idênticas, alterando-se apenas o nome do autor do termo, o que
corrobora para a tese de que existe uma narrativa padrão da polícia –

52
MISSE, M. (coord.) “Autos de resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na
cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e
Violência Urbana (NECVU) / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
52

declarações que era tidas como verdade, já que duvidar da versão dada pelos
policiais é conduta atípica dentro da cultura organizacional das policias,
prevalecendo a fé pública do agente, conforme ressalta Misse (2011, p.40)

Na imensa maioria dos casos analisados, os Termos de Declaração


diziam que os policiais estavam em patrulhamento de rotina ou em
operação, perto de ou em localidade dominada por grupos armados de
traficantes, 15 quando foram alvejados por tiros e, então, revidaram a
“injusta agressão”. Após cessarem os disparos, teriam encontrado um
ou mais "elementos" baleados ao chão, geralmente com armas e
drogas por perto, e lhes prestado imediato socorro, conduzindo-os ao
hospital. Em quase todos os “autos de resistência”, é relatado que as
vítimas morreram no caminho para o hospital, e os Boletins de
Atendimento Médicos posteriormente atestam que a vítima deu
entrada no hospital já morta. (MISSE, 2011, p.33)53

Além da narrativa padrão apresentada pela polícia, também há outros


fatores que corroboram para absolvição sumária dos agentes, como o processo
de incriminação do sujeito morto, na qual sua identidade é pré-vinculada à
conduta criminosa, ou pela não-preservação da cena do crime, já que na imensa
maioria dos casos, os policiais alegam ter prestado socorro às vítimas,
colocando-as no camburão e levando até o hospital – fato que Misse ressalta
que em quase todos os casos, o boletim médico informa que a vítima já chegou
ao hospital sem vida – desfazendo assim a cena e impossibilitando a perícia de
local.

Após esses primeiros procedimentos, o corpo da vítima é encaminhado


ao IML para realização de exame cadavérico, os objetos que estavam em posse
da vítima, que era o eventual infrator, sejam armas ou drogas, são apreendidas
e encaminhadas ao Instituto de Criminalística, assim como também são
apreendidas as armas utilizadas pela polícia, para que sejam periciadas – prática
que nem sempre é efetivada, como exemplo o caso de grandes operações, onde

53
Ibidem.
53

deveriam ser feitas várias apreensões, contudo não há a possibilidade do


batalhão ficar sem as armas.

Ao final das investigações, o Inquérito Policial, com todas as peças


essenciais – inclui-se aqui, a folha de antecedentes criminais da vítima – é
encaminhado ao Ministério Público, a qual cabe denunciar o policial por
homicídio ou arquivar o feito.

Os inquéritos de “autos de resistência”, quase que em sua totalidade,


resultam em um pedido de arquivamento por parte do MP, seja devido
à precariedade das investigações realizadas pelas autoridades
policiais, que resultam na carência de provas (laudos técnicos e
testemunhas), ou em virtude da “fé pública” dos agentes, que é
utilizada como prova central da legalidade de suas ações, resultando
na prevalência da versão apresentada pelos policiais no RO, sendo
indiferentes as demais evidências colhidas. (Feldkircher, 2015, p. 59)54

Um dos pontos mais importantes da pesquisa realizada por Misse (2011,


p.28), foi mostrar que no período analisado por ele, o Ministério Público propôs
o arquivamento em 99,2% dos casos de autos de resistência, sugerindo que,
para o MP, a polícia age predominantemente em legítima defesa,
consequentemente, não recebendo nenhum tipo de punição.

Foi em 2012, por meio de uma Resolução do Conselho de Defesa dos


Direitos da Pessoa Humana, que o termo “auto de resistência” deixou de ser
usado, passando a ser adotado “homicídio decorrente de intervenção policial”. A
mudança se deu em razão da necessidade de apuração de todos os homicídios,
sendo eles praticados por agentes do estado ou não, assim como a excludente
de ilicitude, que deveria ser atribuída somente após a devida investigação.

54
FELDKIRCHER, G. F. Autos de resistência: o extermínio dos invisíveis. 2015. 89 f. Monografia
(Bacharelado em Direito) — Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/25461/25461.PDF.
Acesso em: 04/10/2022.
54

Considerando que todo caso de homicídio deve receber do Estado a


mais cuidadosa e dedicada atenção e que a prova da exclusão de sua
antijuridicidade, por legítima defesa, estado de necessidade, estrito
cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, apenas
poderá ser verificada após ampla investigação e instrução criminal e
no curso de ação penal.55

4.3. A ATUAÇÃO DO ESTADO

Com o crescimento exacerbado da letalidade policial e com o


aprimoramento do monitoramento dos dados acerca da atuação policial, com o
decorrer dos anos, algumas foram as medidas adotadas para tentar atenuar os
índices.

A exemplo da ADPF635, já citada anteriormente, a qual impôs restrições


as operações da polícia nas comunidades do Rio de Janeiro durante o período
da pandemia de Covid-19, com o objetivo de que fossem reconhecidos os
preceitos fundamentais que estavam sendo violados e elaboradas medidas para
a sua contenção, visto que política de segurança pública do Estado do Rio de
Janeiro está marcada pela "excessiva e crescente letalidade da atuação
policial"56.

Conforme já demonstrado nos dados apresentados – mais


especificamente, nas tabelas 2 e 3 – os números de violência policial no Estado
de São Paulo registraram uma baixa significativa, sendo que em 2020 foram
registradas mais de 800 mortes e em 2021 o número ficou em 570. Fato que se
atribui em sua maioria pelo projeto “Olho Vivo”, implementado pela Polícia Militar
do Estado de São Paulo, que consistia no uso de câmeras corporais acopladas
na farda do policial, as quais não necessitam de acionamento manual e também

55
CONSELHO DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA. Resolução nº 8, de 20 de dezembro de
2012. Dispõe sobre a abolição de designações genéricas, como "autos de resistência", "resistência
seguida de morte", em registros policiais, boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crime.
Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-
social/old/cndh/resolucoes/2012/resolucao-08-auto-de-resistencia. Acesso em: 04/10/2022.
56
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 – Rio
de Janeiro. Relator: Min. Edson Fachin.
55

impedem que o policial as desligue durante uma operação, gravando em tempo


integral e possibilitando uma eventual análise posterior de operações.

Não é atoa que outros Estados estão seguindo a medida tomada por
São Paulo e implementando aos poucos o uso de câmeras nas fardas, já que o
Estado registrou uma queda de mais de 80% nas ocorrências de confronto da
Polícia Militar desde o início da medida.

Assim como no Paraná, onde após a divulgação dos dados sobre o alto
crescimento da letalidade policial no Estado foram divulgados pelo GAECO57, foi
elaborado e encaminhado um ofício ao governador do Estado, Carlos Massa
Ratinho Junior, com sugestões para a redução do número de mortes causadas
em intervenções policiais 58. Dentre as medidas propostas, estão a
implementação de um sistema de geolocalização e de gravação de áudio e vídeo
nas fardas e viaturas dos policiais, e também a estruturação de um curso sobre
direitos humanos, obrigatório para todos os agentes que integram o sistema de
justiça.

Também em 2022, a Defensoria Pública do Estado da Bahia – estado


que está entre os que mais possuem casos de MDIP – enviou um documento a
Secretaria de Segurança Pública contendo 13 medidas para a redução das
intervenções policiais com resultado morte no Estado da Bahia59. O documento
propõe a adoção de medidas como a adoção das câmeras corporais, a
concessão de prêmios e incentivos pela redução no índice de intervenções
policiais com resultado morte, a criação de um canal de atendimento à população
para fornecimento de informações em casos de desaparecimento de pessoas
após abordagem policial, criação de um aplicativo para coleta de dados e para
prestar atendimento as vítimas de violência policial, a criação de uma Política de
controle de armamento, entre outras providências.

57
Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado
58
Instituições propõem medidas para reduzir mortes em ações policiais. Ministério Publico do Paraná,
2022. Disponível em: https://mppr.mp.br/2022/04/24446,10/Instituicoes-propoem-medidas-para-
reduzir-mortes-em-acoes-policiais.html. Acesso em: 09/10/2022.
59
Treze medidas para a redução das intervenções policiais com resultado morte no Estado da Bahia.
Defensoria Pública do Estado da Bahia. - 1ª ed. - Salvador: ESDEP, 2022. Disponível em:
https://www.defensoria.ba.def.br/wp-content/uploads/2022/03/sanitize_240322-022120.pdf. Acesso
em: 09/10/2022.
56

As medidas tomadas são apenas o pontapé inicial de uma longa


caminhada que ainda temos pela frente. O monitoramento dos índices de
violência precisa ser mais detalhado, as informações mais precisas e de fato,
investigadas. É preciso uma análise regional dos problemas e a consequente
tomada de providências de acordo com o necessário, dentro de suas
peculiaridades. É necessário frear urgentemente os dados que ultimamente só
crescem. A população precisa de segurança, a polícia precisa de assistência e
o estado precisa prestar o devido suporte.

4.4. CASOS QUE REPERCUTIRAM NA MÍDIA

Em documento obtido pelo UOL60, a ONU cobra esclarecimentos do


governo brasileiro referente aos últimos 20 anos de violência policial.

A carta enviada em 20 de junho de 2022 possui 48 páginas e busca


evidenciar o crescimento da letalidade policial no Brasil, assim como cobrar
respostas por assassinatos cometidos pela polícia que até hoje seguem sem
esclarecimentos. Mais especificamente, o documento discorre sobre a morte de
69 pessoas e o desaparecimento de mais 3 indivíduos por membros da polícia,
incluindo 13 menores de idade, no período de 1999 a 2020. Alerta a ONU:

Embora os casos relatados demonstrem a natureza sistêmica e


sustentada do uso excessivo e letal da força pelas forças de segurança
brasileiras, eles não representam todos aqueles afetados por tais
padrões de supostos abusos dos direitos humanos.

De fato, apesar da carta da ONU dirigida ao Brasil ressaltar apenas 69


casos, infelizmente esse não é o número da nossa realidade. Somente em 2020

60
CHADE, Jamil. Órgãos da ONU cobram Brasil por 20 anos de assassinatos pela polícia. UOL, 21 de
agosto de 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/08/21/orgaos-da-
onu-cobram-brasil-por-20-anos-de-assassinatos-pela-policia.htm. Acesso em: 08/10/2022.
57

foram registradas cerca de 17 mortes em decorrência de intervenção policial por


dia.

Números que se mostram presentes todos os dias em notícias


estarrecedoras nos jornais, nas redes sociais, na televisão. São casos marcados
em nossa história e na vida dos familiares das vítimas.

4.4.1. Massacre do Carandiru

Lembrado até os dias de hoje como o ápice da falência do sistema


prisional brasileiro e como um dos maiores massacres da história do Brasil, o
Massacre do Carandiru aconteceu em outubro de 1992, após uma rebelião
dentro de um dos pavilhões da Casa de Detenção de São Paulo – mais
conhecido como Carandiru. Para controlar a situação foram acionados cerca de
300 policiais ocasionando a morte de 111 detentos, segundo dados oficiais
fornecidos pelo governo do Estado de São Paulo.

Contudo, existem diversas versões do que aconteceu após a entrada da


polícia no pavilhão. A versão oficial da polícia relata que a Polícia Militar foi
acionada e contou com a presença de 300 agentes, após tentativas frustradas
de negociação entre o Diretor da penitenciária e os presos, o local foi invadido
num primeiro momento por cerca de 86 policiais, mas a situação continuava fora
de controle, necessitando da intervenção dos demais, os quais foram recebidos
com agressões, acarretando assim no confronto com mortes, agindo a polícia
em legítima defesa.

Já a versão contada pelos presos sobreviventes e por grupos de direitos


humanos, alega que foram mais de 200 mortes, por mais de 300 policiais, e que
mesmo após os presos decidirem pôr fim à rebelião, a PM os teria executado.

O perito criminal Osvaldo Negrini, que esteve no local da chacina, em


depoimento, afirmou que não houve confronto entre policiais e
detentos, porque os presos do Pavilhão 9 não tiveram a possibilidade
de reagir. De acordo com ele, a grande quantidade de tiros
58

encontrados nos corpos dos presos, especialmente na cabeça e no


tórax, juntamente com as marcas na parede da cela, é um sinal que os
policiais já teriam chegado atirando, impossibilitando a reação dos
apenados. Além disso, apenas 26 dos 111 mortos contabilizados pela
perícia se encontravam fora das celas.61

Em 1993, o Ministério Público acusou 120 policiais de homicídio,


tentativa de assassinato e lesão corporal. Em 1998, 85 policiais se tornaram réus
no processo. O Coronel Ubiratan responsável pela operação foi sentenciado a
632 anos de prisão, podendo recorrer em liberdade – Cabe ressaltar que o
mesmo teve sua sentença anulada e foi absolvido pela Órgão Especial do
Tribunal de Justiça de São Paulo.

Apesar do caráter claramente violento e de todas as evidências, todos


os condenados tiveram o direito de recorrer em liberdade, e até hoje, 30 anos
após o massacre, nenhum dos responsáveis foi preso.

4.4.2. Chacina de Costa Barros

Em novembro de 2015, cinco amigos, em um Fiat Palio, foram


brutalmente assassinados pela polícia, ao voltarem do Parque Madureira, onde
comemoravam o primeiro emprego de um deles.

A polícia, que aguardava suspeitos de terem roubado uma carga de


caminhão, metralhou o carro do grupo com 111 tiros, não dando qualquer
esperança de sobrevivência a algum dos jovens. Os policiais alegaram
confronto, mas a perícia descartou a hipótese. Dos quatro policiais envolvidos,
três foram condenados e um deles inocentado, contudo, o que chama atenção é
que somente cinco anos após o ocorrido os três PMs condenados, foram
expulsos da Polícia Militar.

61
MOYA, Isabela; PIRES, Marilza. O Massacre do Carandiru e suas versões. POLITIZE!, 5 de junho de
2019. Disponível em: https://www.politize.com.br/massacre-do-carandiru/. Acesso em: 08/10/2022.
59

Na reconstituição do crime, a mãe de um dos jovens – que chegou no


local assim que os disparos foram feitos – conta que presenciou os policiais
colocando duas armas próximo ao carro das vítimas. O irmão de uma das vítimas
– que acompanhava o carro em sua moto – conta que após os primeiros disparos
os morados gritavam “é morador, é morador, não é bandido, não atira”62

4.4.3. Chacina do Jacarezinho

Ocorrida em maio de 2021 – durante a vigência da ADPF 635, mais


conhecida como ADPF das favelas, a qual restringe operações da polícia na
favela durante a pandemia de Covid-19 – na favela do Jacarezinho, foi a
operação policial mais letal da cidade do Rio de Janeiro e uma das maiores do
estado, totalizando 28 mortos.

A operação que tinha como objetivo a prisão de 21 investigados, acabou


resultando na morte de um policial civil e três investigados mortos, o restante dos
assassinatos não tinha qualquer relação com a investigação realizada pela
polícia, além de inclusive contar com feridos, que estavam em uma estação de
metrô próxima.

A maioria dos inquéritos abertos foram arquivados por falta de provas.


Restam apenas 3 ações penais em curso.

Em maio do mesmo ano, foi construído um memorial para os mortos na


chacina, que consistia em um muro com placas fixadas com os nomes de todas
as vítimas, inclusive do policial André. Cinco dias após a inauguração do
memorial, a Polícia Civil entrou na favela com conhecidos “caveirões” e derrubou
o monumento, tal ação foi filmada e divulgada nas redes sociais.

4.4.4. Caso Chauan Jambre e Allan de Souza Lima

62
Depoimento retirado do documentário “Auto de Resistência”. Direção: Natasha Neri e Lula Carvalho.
Produção: Joana Nin, Bruno Arthur de Melo, Lia Gandelman. Brasil, 2018. Amazon Prime Video.
60

Em fevereiro de 2015, Chauan, de 19 anos e Allan, de 15 anos,


brincavam na rua com outros dois amigos, quando policiais dentro de uma
viatura chegaram atirando. Allan morreu e Chauan foi atingido no peito por um
dos disparos, mas resistiu aos ferimentos.

A versão da polícia foi a mesma de sempre, estavam em operação e


foram recebidos por tiros, e agindo em legítima defesa, atiraram contra os jovens.
O que foi desconstituído após o vídeo feito por Allan viralizar nas redes sociais,
nele os jovens aparecem brincando na rua, quando começam a correr, logo em
seguida é possível ouvir o disparo das armas e então Allan cai no chão, gemendo
de dor, o celular continua a gravar, ao fundo é possível ouvir Chauan, que havia
sido atingido por um dos disparos, implorando a deus pela sua vida. Após vários
minutos de gritos pelos moradores da rua, os policiais colocam Chauan na
viatura e Allan, já morto, é jogado em seu colo e o levam para o hospital, a
câmera interna da viatura grava as cenas. Chauan ainda chegou a ser preso,
sob a falsa alegação de que havia tido uma troca de tiros e a polícia havia agido
em legítima defesa.

A gente estava no portão contando piadas e brincando porque tinha


faltado luz. O Alan falou “camuflagem” e eu comecei a correr atrás dele,
numa brincadeira. Nesse momento, só escutei os tiros. Aí eu caí, vi o
sangue e comecei a rezar — lembrou Chauan.63

4.4.5. Caso Maicon, Favela de Acari

Em abril de 1996, Maicon, de apenas 2 anos, brincava na porta de casa,


na favela do Acari no Rio de Janeiro, quando foi baleado e morto por policiais.

63
NUNES, Marcos. Após divulgação de vídeo de jovem morto por PM, comandante de batalhão é
exonerado. EXTRA, 27 de fevereiro de 2015. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-
policia/apos-divulgacao-de-video-de-jovem-morto-por-pm-comandante-de-batalhao-exonerado-
15451815.html. Acesso em: 08/10/2022.
61

Apesar de sua idade, o policial autor do disparo alegou legitima defesa e o caso
foi registrado como auto de resistência.

Nenhum policial foi punido, nem mesmo investigado, pelo contrário,


aqueles que participaram da ação, receberam uma bonificação pelo serviço, na
época, conhecido como gratificação faroeste64.

Após anos de discussão sobre qual seria o juízo competente para julgar
a ação – judiciário militar ou tribunal do júri, na justiça comum – o caso foi
arquivado. O crime prescreveu sem que houvesse nenhuma responsabilização
pelo homicídio de Maicon. O caso ainda tramita na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos.

Seu José, pai de Maicon, protesta em frente ao Ministério Público do Rio


de Janeiro todos os anos na data do aniversário de seu filho. Ele ainda não
perdeu a esperança de ter justiça por Maicon, mesmo após 26 anos da tragédia.

4.4.6. Carta das mães e familiares para o Rio de Janeiro

Esta é uma carta com a história e a luta de muitas mães e familiares


que tivemos nossos filhos assassinados, encarcerados e violentados
pelo Estado e pela sociedade. Somos aqui as vozes de nossos filhos.
Nossos filhos que foram baleados a caminho da escola. Nossos filhos
que receberam tiro de fuzil nas costas, brincando em frente de casa.
Nossos filhos que se renderam, mas assim mesmo receberam um tiro
na cabeça. Nossos filhos que foram torturados, executados. Não
mataram só corpos. Nossos filhos tinham nome, tinham rosto, tinham
história. Eram meninos que gostavam de viver, namorar, brincar,
sonhar. Eram craques em Matemática, gostavam de cozinhar e tantas
outras coisas. É difícil falar. Vamos viver essa perda todos os dias de
nossas vidas. Todos os dias, ouvimos eles dizendo: -Mãe, cheguei!
Eles entrando em casa.... Hoje vivemos só com a metade do nosso
coração. Dizem que somos fortes, guerreiras, mas na verdade não

64
A chamada “gratificação faroeste” foi criada pelo governador Marcelo Alencar em 1995, podendo
aumentar em até 150% o salário de policiais que tivessem praticado supostos atos de bravura, quase
sempre em ações que resultavam na morte de acusados. Tal gratificação foi uma das responsáveis pelo
aumento dos homicídios classificados como “auto de resistência.
62

temos opção: somos mães e o que nos mantem vivas é o amor pelos
nossos filhos que morreram e os que ficaram. Quando o esposo ou
esposa morre, torna-se viúvo ou viúva, quando não se tem pai e mãe,
são órfãos. Mas quando se perde filho, não tem nome para essa dor
que sentimos. Mas temos outros filhos e temos que nos levantar.
Buscamos Justiça para continuar em pé. Nossa luta é para que outras
mulheres, negras, faveladas não sintam a nossa dor. E a luta é grande.
Somos nós que não desistimos de investigar o que aconteceu e pedir
Justiça. Muitas vezes, a polícia não investiga. No Ministério Público, as
denúncias não são aceitas. Ou quando finalmente entramos no
Tribunal, acreditando que a Justiça vai ser feita, matam ali o nosso filho
pela segunda vez. Em vez de investigarem os culpados pela morte dos
nossos filhos, nossos filhos passam ser os condenados. Outras vezes,
enterram nossos filhos como indigentes, e temos que lutar para colocar
na certidão de óbito que ele tinha nome, mãe e pai. A injustiça e o
desrespeito se repetem por todos os lados: Quando perguntamos para
o policial: o que fizeram com o meu filho? Ele me nos olha e diz que o
filho dele está em casa. Mas teve outro policial que chorou junto... Não
desejamos nossa dor nem para a mãe de quem matou os nossos filhos.
A Justiça maior será feita. Você pode ser negro, ser favelado, mas a
gente tem que ter direito de viver dignamente no lugar onde moramos.
E nós descobrimos a nossa força nas outras mães. Viva o Movimento
Moleque, as Mães de Manguinhos, as Mães Sem Fronteira, as Mães
da Baixada, as Mães sem Fronteiras, do Chapadão! Viva cada mãe
que luta! Muitas de nós já ficamos doentes, não conseguimos voltar a
trabalhar. Perdemos o pouco que demoramos tanto em conquistar,
porque ser mulher, negra, favelada nunca é fácil. Mas aí a gente
conquista e matam nossos filhos e perdemos o chão. Nossos filhos
deixam irmãos, que hoje dizem ter medo de morrer também e nos
deixar sozinhas. Hoje, quando olhamos outros adolescentes, vemos
neles os nossos filhos. E desejamos vida, proteção, oportunidades.
Eles querem um curso, um trabalho, uma vaga de aprendiz. Queremos
dizer aos meninos que não desistam, que estamos juntos por uma vida
sem racismo, sem desigualdade. Queremos Justiça, queremos paz,
queremos vida. Parem de nos matar!

Assinado pelas: Mães da Baixada, Mães de Manguinhos, Mães da


Maré, Mães Sem Fronteiras, Movimento Moleque.65

65
30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança. Carta das mães e familiares para o Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 21 de novembro de 2019. Disponível em:
63

5. CONCLUSÃO

Em suma, é evidente que o problema não se trata somente das questões


aqui trazidas, ele é muito maior do que se pode mensurar, não é algo que
podemos resolver rapidamente, é como uma doença que precisa de um longo
tratamento – e profundo – já que várias questões estão enraizadas em nossa
cultura.

Os dados trazidos no presente estudo, possuem a intenção de


demonstrar que o cenário da violência policial não está somente na relação direta
de infrator-polícia e polícia-infrator, mas sim evidenciar que a violência também
está na relação estado-polícia, polícia-polícia e até mesmo sociedade-polícia.
Não há um só culpado. A violência e a corrupção podem estar dentro das nossas
casas, em nossa rua, bairro, cidade, elas estão dentro de cada corporação, e em
cada órgão que integra o sistema de justiça.

O questionamento que nos resta é saber qual a causa, o que gera o alto
índice de violência na atividade policial, se ele vem historicamente carregado por
uma corporação que traz consigo desde a época da Ditadura Militar as táticas
de guerra e repressão; se o Estado tem sua parcela de culpa, pelo descaso, pela
falta de treinamento e assistência para com seus agentes; se é pela cultura de
extermínio, do incentivo da própria polícia para criar “cães de guerra” e da
sociedade que apoia que “bandido bom é bandido morto”.

A violência policial possui várias vertentes, quando a sociedade incentiva


a agressividade, a polícia se torna agressiva; onde há ação violenta da polícia,
há a reação violenta da sociedade; a polícia se torna um instrumento de
repressão, e onde se tem o aumento da letalidade, há o aumento da sensação
de medo da população em relação não só aos criminosos, mas também à sua
polícia.

https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-11/carta-maes-30anos-cdc.pdf. Acesso
em: 04/10/2022.
64

É necessário que os dados sejam apurados da maneira mais precisa


possível, que haja a devida investigação, que haja uma responsabilização pelo
excesso e pela violência. Mas também que seja dado a devida assistência
àqueles que agem em nome do estado, mas que erroneamente são incentivados
às práticas incorretas, seja pelo estado ou pela sociedade.

Não há espaço para racionalidades quando as pessoas estão em uma


espiral de violência – umas contra as outras e contra si mesmas.66

66
In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança pública: 2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em:
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