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SPO, fic Cristina, dete Semede: raid era, Revita Malema / Revita do Stor de Letra Africans de 21/6381 hip evita af bind pp lesb) ODETE SEMEDO: ORALIDADE ETRADICAO ODETE SEMEDO: ORALITY AND TRADITION Erica Cristina Bispo' RESUMO: Este texto se destina a investigar a construgio de contos recriados a partir da tradigao oral guineense pela escritora Odete Semedo, bem como seus mecanismos de simulaso da oralidade na escrita, Para tanto, retoma-se 0 conceito de oralitura, de Lambert-Félix Prudent PALAVRAS-CHAVE: Odete Semedo, oralidade, tradigio oral ABSTRACT: This text aims to investigate the short-stoies by Odete Semedo whose construction is founded in the recreation of oral tradition of Guinee Bissau, aswell its mechanisms of simulation of oral tadition in writing For this, we will revisit the concept of orature”, by Lambert-Félix Prudent. KEYWORDS: Odete Semedo, orality, oral tradition © ato gozoso de contar ¢ ouvir estérias & to antigo quanto a humanidade, porém, hoje, tal gozo &, ‘em algumas sociedades, reduzido a um passatempo destinado, apenas, a criangas e velhos, ou seja, Aqueles {que se encontram fora dos efrculos do lucro ¢ do capital. Nas tradigdes orais, no s6 da Africa, mas também ‘em outras sociedades que privilegiavam a voz, a enunciagao envolvia mais do que entretenimento, Através dos contadores, os ouvintes podiam conhecer a historia de sua gente, suas leis, costumes ¢ tratados. De ‘etnia para etnia se modificavam a razio ¢ a forma de narrar, porém, em nenhuma delas, se perdia a nogéo da relevincia dos ensinamentos ¢ do prazer transmitidos por essas narrativas a cada povo, Como forma de evocar o passado anterior colonizag30 em busca de raizes culturais, diversos au- tores africanos de lingua portuguesa enveredam pelos bosques da tradigao para, assim, fazerem nascer ou ressuscitar uma identidade que congregue, por meio da meméria, os povos de seus paises. Dentre esses, se encontra a escritora guineense Maria Odete da Costa Semedo. Nascida em 7 de novembro de 1959, em. Bissau, Licenciada em Estudos Portugueses ~ Linguas ¢ Literaturas Modernas — na Universidade Nova de Lisboa, pela Faculdade de Cigncias Sociais ¢ Humanas, Odete foi diretora da Escola Normal Superior Tehi- ora do Instituto Federal de EducesSo, Ciéncia «Tecnologia do Rio de Jancro, Doutora em Literatures Africanas de sige; bispoerica@ gmail.com, (dete Semedo: oralidade e tradiczo co Té, em Bissau, ¢ também foi fundadors ¢ membro do conselho de redagao da revista Teholona. Concilia participacdo educacional, atuando como professora; politica, tendo sido ministra da Saide e da Educagio do pais; além de ter importante papel na vida cultural, como, por exemplo, sendo membro-fundadora da Associagio de Escritores da Guiné-Bissau, As estorias de Odete tém, por vezes, como ponto de partida a tradigao e ganham uma nova roupa- ‘gem, por meio de uma mie-en-scine narrativa, na qual sio reinventadas e dramatizadas, no papel, as vozes € 18 gestos caracteristicos das narrativas orais, Nas palavras de Inocéncia Mata, os contos da fiecionista “nao sao simplesmente ‘textos da oratura’ mas contos com uma autoria identificada, uma elaboragio estilistica © uma intengio, a estética”. (MATA. In: SEMEDO, 2000, p. 7). Diante disso, este texto se destina a investigar as estratégias usadas pela eseritora Odete Semedo para a construsio do conto “Aconteceu em Ga-Biafada”, publicado em 2000 no livro Djénia — historias ¢ passadas que ouvi contar Il, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). A sclegio deste conto dentre os dez que compiem a coletinea Histérias ¢ passadas que ouvi cantar II se deve & sua curiosa trajeté- ria, © conto, que hoje temos pela pena de Odete Semedo e abre o livro Djénia, integra o compéndio de narrativas orais do imaginério guincense. Fm Bolama, contava-se que Lamarana e Saliu eram dois amigos aque se amavam, mas a unio nio dera certo, Em Kansala, dizia-se que no era um casal, mas duas amigas {que trataram mal uma pessoa doente, que as amaldigoou ¢ as duas morreram. No local da morte nasceram duas drvores, as quais acreditavam ser as duas amigas. O miisico guineense José Carlos Schwarz, por sua vez, também revisitara a histéria, ixando-a pela escrita em crioulo guineense na cangio Sali ku Lamarana, ‘cujo final diz-mon na mon, pe na mundo, que tradwzido surge no texto da recriasao de Odete “mao na mao ¢ pésno mundo” (SEMEDO, 2000, p. 27) ‘Mais do que a claboragio de uma nova narrativa sobre a historia oral, Odete Semedo recria também. © ambiente da contag , encenando no papel os gestos ¢ as vozes do momento da contacio, Sendo assim, vérios processos mneminicos utilizados pelas “mulheres-grandes” e pelos griots sio empregados por Odete Semedo em sua fiego como recursos estéticos que recriam ou encenam o discurso dos mais velhos, par- ‘indo dos mesmos temas, ora legitimando-os, ora transgredindo-os, A autora nfo sé recria a histéria, como também os momentos ¢ as estratégias de contagao. Sendo assim, Odete Semedo vale-se de formas tradicio- jentadas para construir sua escrita, Nessa, hd ceos da tradigio preservados por recursos diversos. recurso é largamente utilizado dentre diversos escritores afticanos, Mergulhar na inesgotivel fonte da tradig2o oral para dela extrair ¢ recriar artisticamente a efabulagao literSria tem sido marca nao s6 da ficgdo de Semedo, mas também é lida em Boaventura Cardoso ou Mia Couto, por exemplo. A beleza da rectiasio das narrativas tradicionais orais pela literatura escrita est4 justamente na reinvengio da oralidade {eita por um discurso escrito que se apresenta como uma espécie de mise-en-scéne, 0 que permite a0 leitor sentir-se ao redor de uma fogueira diante de alguém muito sdbio e ao lado de pares sedentos das palavras ouvidas de um narrador que se comporta como um griot, O que temos nao a literatura escrita no modelo ocidental, tampouco a literatura oral, uma vez que se apresenta por meio alfabetico. Hi um registro que esté entre os dois universos, Valendo-se da escrita, imita-se a oralidade: oralitura termo “oralitura”, “expressio ji canonizada entre os estudiosos antilhanos” (MATA, 1998, p. 58), foi o termo utilizado pela professora Leda Martins (MARTINS, 1997, p. 21) para definir o provesso que 2 O termooraltars”édefinido por. LF Prudent, na obra J. Literate REVISTA MULEMBA 46 utilizou ao registrar, por escrito, a histéria do Reinado do Rosirio em Jatobé, em Minas Gerais, no Brasil Durante o levantamento de dados, a pesquisadora se deparou com uma série de aspectos orais sem equiva- lentes escritos, 0 que a levou A seguinte conclusio: (Queria eu desenbar wma melopein que traduzisse na letra escrita (impossvel dessa!) 0 flor da pafrasace orl, os matics de ums linguagem sinestésca que conjugase as palavras, os gest, ‘mises o enoantamento imanentes ds cantars ¢festejos dos congados; uma dioslo que no lise 6 ujeita €o objet, 0 sopra e a este, 0 ritmo e a cor. [uo] Opte, pos, por um estilo indireto de naragio, atuando eu mesma como narrador, bordando a letra do texto dgrafo como 0s afalites do escrito, itervindo algumas vezes com brovesefugazesreflexses, pontuando o owido ‘eo ldo, como um corifeu que diloga, 3s wzes por interjeigbes, como o coro e os protagonist, ‘ransitande por ses mitiplos timbres ¢interalos, (MARTINS, 1997, p, 20-21) Leda Martins, a0 usar o termo “oralitura’, se inspirou no termo inglés orature (SCHIPPER «pud MARTINS, 1997, p. 21), largamente utilizado em estudos culturais africmos de autoria anglo-saxénica; tal expressio refere-se ao emprego de elementos préprios da oralidade recriados pelo registro escrito. Lourengo do Rosirio também se referi ao termo inglés, mas o traduviu por oratura que, segundo ele, sur- giu “por oposicdo em extensio de significado a designagio Literatura” (ROSARIO, 1989, p. 53). Segundo Rosirio, “a oposisio Literatura/Oratura nao cobre de modo nenhum todos os aspectos distintos existentes entre os dois sistemas literarios” (ROSARIO, 1989, p.53) © termo “oralitura”, por sua vez, € mais abrangente que oratura; pois contempla a encenacio das peculiaridades da oralidade na escrita, agregando em si marcas do oral e 0 radical litter, letra, equilibran- do, assim, os valores da oralidade e da escrita, ao mesmo tempo que une, criativamente, a origem tematica do registro oral e a “performance” estética da escritura literdria. Em suma, estamos falando aqui de um. provesso de “griotizagio” do discurso que envolve a recriagio dos textos tradicionais, o conhecimento da forma de narrar oral ¢ a encenasao de aspectos que levam o leitor a imaginar-se na situagao da contasio. © que temos nesses contos & uma criagao estética que se debruga sobre a tradigao, revisitando-a © drama- tizando-a no papel, ou seja, a vor narradora do griot é reinventada na cena da eserita, Russell Hamilton, contudo, nos alerta parao carter aberto do te: clo pola escrita, uma ver que Seria eeado pensar, porém, que waa vex transformada em escrits a oralidade se torna ests, pois cada ltr reformula at fungGes dos fatoneslinguiticos por meioe diferentes dagusles “empreyados por um ouvine, que reeebea mensagem normalmente no meio de osros ouvines (HAMILTON, 1987, p. 230) A medida em que lemos uma obra oriunda da tradigao oral, percebemos “coincidéncias” e reinci- déncias de temas especificos. De acordo com Lourenco do Rosirio, a génese da narrativa oral é impossivel de ser determinada com precisio, mas é inegével sua natureza poligenética, em que o carter universal da temitica desencadeia as reincidéncias por tratarem das relagées humanas exemplificadas nas narrativas Por essa razio & que sempre encontramos temas “repetidos” como consequéncia da ganincia, a esperteza dos pobres para subverter a ordem estabelecida pelos ricos, 0 amor proibido buscado a qualquer preso, a amizade posta em xeque diante do poder financeiro, dentre outros; além dos personagens-tipo A valorizagio da meméria social e do legado cultural que identificam as tradigdes locais tem sido hoje uma das tendéncias Jo contemporinea, praticada por escritores africanos de lingua portuguesa. [Na Guiné-Bissau, essa & uma das marcas da moderna literatura nacional, especificamente na produgio do lihtimo deeénio do século XX. Mule Rio de Janeiro: UR, «14, n.2.p. 45053, jul/dez 2016, ISSN: 2176-381X a (dete Semedo: oralidade e tradiczo A originalidade da literatura popular transformou-se na principal fonte inspiradora. As publicagdes, desde entio, se mostraram preocupadas com os rumos do pais, buscando solugaes para o mesmo, criti cando as imperfeigies da sociedade, além de proporem o criativo resgate ¢ a difusio da cultura oral pela literatura. A respeito deste tiltimo traco Leopoldo Amado afirma: cas poderosa cultura popula a fone incegotivel da noss inspirago cultural eo expelho no ‘goal melhor nos reconecemos que estimul e inspira os iteratos guineenses que abandonaram, num paseado recente, a ideogralia do exelusvismo revolucionsrio, (AMADO, 1999, p. 67) “Aconteceu em Ga-Biafada” foi publicado pela primeira vez em Bissau na revista Tcholona, em outu- bro 1994 (TCHOLONA, 1994, p. 20-22) e esti presente em Djénia —histérias e passadas que ouvi contar TI (2000). © conto se estrutura por narrativas encaixadas, dando voz a trés narradoras: a mae, que conta acerca do amor proibido entre Lamarana e Saliu; a filha, que ouve a mae e informa ao leitor sobre as mu dangas de diregio da passada; e a “mulher-grande” que, na narrativa, a respeito do destino de Lamarana e Saliu, thes dé a formula de como estas poderio livrar-se da maldicio dos antepassados, A estéria sobre o amor de Lamarana e Saliu é-nos narrada por duas vozes, sendo o discurso da filha ‘© que se acumplicia com a vor. enuinciadora do conto eo discurso da mie o que se apresenta como uma representagio reinventada do oral A filha ocupa dois lugares na narrativa, ela ¢ quem informa ao leitor acerca da diresio da pascade © & também, ouvinte da estéria, Tal qual Walter Benjamin caracteriza o narrador, ou seja, como quem explica ‘0s contetidos a serem narrados, a filha interrompe a voz materna para dizer: “Comegou a minha mie a con- tar as criangas que estavam sua volta, Fu fazia parte desse grupo” (SEMEDO, 2000, p, 20). Situa, assim, o leitor no contexto narrative, Outra informasio importante é acerca do uso do pretérito imperfeito do indicativo em “Eu fazia parte desse grupo” (SEMEDO, 2000, p.20). © tempo verbal nos revela que a filha nos conta © que era habito ouvir quando crianga. No entanto, nem a sua infancia, nem o costume de escutar estérias narradas compéem 0 contexto atual, isto é, 0 tempo da enunciagio, que se configura como tempo presente em relagdo ao tempo do enunciado, sendo este constituldo pela narr iva de sua mie. Entendemos, as que ‘o narrar da filha se tece na distancia existente entre o tempo do enunciado ¢ o tempo da enunciagio, Vale ressaltar também que a voz enunciadora desse conto acumula a fio de narrar num plano narrativo ea de ser personagem participante de outro, Portanto, cla é também um “ser de papel” (BARTHES, 1972, p. 48) A narrativa sobre Lamarana c Saliu é um exemplo de encaixe: entre os primeiro ¢ segundo finais esta ‘uma nova intervengio da filha, que nos conta a reagao dos ouvintes e dela mesma ao primeiro final, quando Lamarana ¢ Saliu morrem por descumprirem a tradigio. Sobre a estrutura de encaixe, Tzvedan Todorov afirma, em concordincia com o pensamento de Wale ter Benjamin, que“a histria raramente é simples; contém frequentemente muitos fios’ e é apenas a partir de um certo momento que estes fios se reimem” (TODOROY, 1972, p. 213). A metifora dos fios nos remete 4 nogio etimolégica da palavra texto (tecido), dé-nos a dimensio exata do encaixe narrativo que pressupde “a incluso de uma histéria no interior de uma outra” (TODOROV, 1972, p. 234). Em outras palavzas, o encaixe é uma micronarrativa inserida num contexto macro. A narrativa encaixada pode estabe- lecer um efeito de espethamento, complementagdo metaférica ¢/ou alegérica em relagio & macronarrativa ‘ou, simplesmente, ser uma estratégia estética para a representagio do contexto narrativo oral REVISTA MULEMBA 48 Tal trago no ¢ exclusividade deste conto, mas se manifesta em Odete Semedo em diversas nar- rativas. Seus contos apresentam dois niveis narrativos: um em que 0 narrador narra de fora; 0 outro em que o narrador & personagem. No primeiro nivel, 0 narrador é onisciente, é ele quem informa © leitor do contexto narrativo, de como 0 narrador aprendeu ou conheceu a estéria ¢ da reagao dos couvintes em primeira instincia, Constata-se uma espécie de férmula estrutural, na qual a autora cria a situago narrativa, onde ha, geralmente, uma vor enunciadora que tem como interlocutor o leitor ¢ um arrador que conta para um grupo de ouvintes “de papel”, isto é, para personagens que ouvem as estérias. Nas estruturas encaixantes, ‘conhecemos as personagens que sio uma espécie de griot ¢ os outros que participam do exercicio dialogico de ouvir © apartear, Como resultado, ha a narrativa de encaixe, que, segundo Todoroy, é“uma explicitagao, a propriedade mais profunda de toda narrativa. Pois a narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa” (TODOROV, 2003, p. 126). Nos contextos orais — sejam africanos ou no — so comuns esses tipos de daveis fios das estorias de Sherazade, cuja sedusio de narrativas que saem umas das outras como os ing contar a salvou da morte e a fez ser considerada uma teceld por exceléncia. Walter Benjamin complementa tal ideia a0 ensinar-nos que “contar historias sempre foi a arte de conticlas de novo, ¢ ela se perde quando as historias no sio mais conservadas, Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a his- t6ria” (BENJAMIN, 1986, p. 205). ‘Amie é a figura da genuina “mulher-grande”, cla & a mais velha, exerce a fungio didatica © adéqua seu discurso A situagio, Seu contar se assemelha, portanto, ao padrao narrativo descrito por Walter Benjamin, Em seu discurso, cla nao diz, como aprendew o conto, mas deixa claro seu objetivo na adverténcia inical: "Naguele tempo, as raparigascram educudas de forma aobedccerem no s6 os mais velhosmasatodaa ‘cormunidade, dase que eraaforma mais ylhas, nem resroungar quando eram castigodas verbalmente ou com mantampa* Desobedlecer 20 pai e 4 mie era um sarilégioe conduuia sempre a uma pea, ist é flba que descbedecesse $5 aconteciam desgragas.Todavia,Lamarana desobedeceu. (SEMEDO, 2000, p. 20) correcta de da rian’, Nio devin pon desobedecer 208 ensinamento ou a moral, que é 0 resultado do conto, ¢ anunciado logo no inicio: “meninas, obe- degam, caso contrario as consequéncias sero graves”. 1H poucos tragos descritivos das personagens: “Lamarana tornava-se cada vez mais numa bonita e esbelta adolescente, com seus grandes olhos ¢ as trangas corridas com missangas a cair, que sempre trazia” (idem). A descrigéo de Lamarana concentra-se em sua beleva, a que ela tem e a que cla adquire no dia do casamento: Lamarana estava linda! Vestida de branco, com gargantifas de ouro cobrindo quase todo pescogo,[..] As trancas corridas com at missangas [ie] a ear realgavarn a beleza daquele rosto meio escondide pelo lengo brance que Lamarana tambim travis, (SEMEDO, 2000, p. 23) ‘Mussa, noivo escolhido pelo pai da noiva, como Lamarana, também é descrito por seu exterior. Ele é um vizinho “muito mais yelho” (SEMEDO, 2000, p. 20) que a moga, “um homem rico e poderoso, pro- prictério de bolanhas ¢ pontas” (idem). Mussi nos é apresentado apenas pelo que cle tem Saliu, por sua vez, & descrito exclusivamente como 0 namorado de Lamarana que & um “jovem dda sua idade” (SEMEDO, 2000, p.20). A descrigdo fisica enfatizada — beleza, em Lamarana; riqueza, em 3 Daredve 4 Vara delgadac flexivel usada como chicote doméstico Mule Rio de Janeiro: UR, «14, n.2.p. 45053, jul/dez 2016, ISSN: 2176-381X a (dete Semedo: oralidade e tradiczo -Mussé; juventude, em Saliu — é 0 ponto de partida para que o leitor delineie as caracteristicas psicologicas decorrentes das fisicas e que podem ser depreendidas através das ages. Em outras palavras, so as atitudes © 08 atos das personagens que nos mostram quem elas sio, Lamarana é a moga capaz de romper com a tradisio para priorizar scus scntimentos, mesmo qu isso de eneadeie consequéncias inesperadas. Muss & ‘o homem que mata e morre para cumpri e fazer ser cumprida a trad 10. Saliu & o jovem disposto a aven- turar-se para vivenciar seu grande amor, Estas conclusdes acerca das personagens no nos oferece a mie, a narradora, mas tanto os ouvintes, quanto os leitores chegam a clas, De acordo com a légica diditica apresentada na adverténcia inicial da narrativa, Lamarana devia pagar pela desobediéncia, o que, de fato, ocorre no primeiro final, no qual Lamarana morre, com uma facada dada por Mussé, Lamarana, abragada a Saliu, por nio encontrar junto com este um lugar no mundo dos mortos, se transforma com o amado em uma arvore, cujo tronco se assemelha a duas pessoas enlaga- das. No entanto, este final no agrada aos ouvintes que estavam “todos com as faces molhadas de ligrimas” (SEMEDO, 2000, p. 27). Entio, respeitando 0 gozo do narrar e do ouvir, a narradora prope outro final ‘Muss morre ¢ Lamarana e Saliu seguem em diregio ao futuro, “felizes para sempre”, £ claro que a narradora nao pode, simplesmente, abandonar a fungao didatica inicial; por isso man- tém-se a punigao em face a desobediéncia, embora surja um novo final. Hé um meio tradicional para que Lamarana sea liberta da praga adquirida pela desobediéncia. Assim, africanamente, Lamarana consegue ser ceternamente feliz ao lado de Saliu, Ressalte-se que a narradora desse conto & a mie que quer levar as filhas a obedecerem ¢ parece, portanto, contraditério oferecer & Lamarana, que é desobediente, um final feliz, Mas, ao mesmo tempo ‘em que a voz materna rompe com a tradigio, cla a mantém ao enunciar mais uma historia, cujos fios se cenlagam 4 narrativa maior: a lenda mandinga de Se n’ah n’ah, Esta versava sobre Bidam, onde 0 segredo cera o valor mais sagrado eo filho do régulo nio havia guardado o sigilo de familia; por isso fora punido ¢ transformado num pissaro, cujo oficio era levar recados de alegria ou de tristeza até ser perdoado. Ao narrar esta lenda, a me reiterou a tradigio © manteve a ordem estabelecida pela comunidade, A ruptura provocada pelo final de Lamarana no subverteu totalmente a ordem, pois a maldigio sofrida pela moga era fruto da tradicio, o que é diferente do que acontecera com Kelé, filho do régulo, que fora amaldigoado pelo pai Kelé, meu iho, por tua causa mas de trés moransas que vivian em harmonia caram destraidas tu, como gostas muito de falar ¢ de contar o que nio te perguntam, his-de te transformar ‘num grande pastro, bonito mas snisto,e sers eterno; pork, 0 teu castigo vai ser de teres de ppercorrer quilémetros para levar roca sja de alegria seja de tristera, até seresperdoaeo um sla! (SEMEDO, 2000, p. 34) Ao contririo do régulo, pai de Kelé, rapaz transformado em passaro, a mie de Lamarana a aben- s00u, A protegio dada i Lamarana excedeu 0 perdi. © modo afticano, jé mencionado, para conceder a Saliu.¢ Lamarana o final feliz passa pela tradigi0, ‘mas nao sé. Para um novo final, surge no texto o dado sobrenatural. A metamorfose dos amantes em drvore éa primeira marca disso, revelando a forte presenga do elemento magico. No segundo final, vemos Musi tormar-se uma sombra na estrada de Ga-Biafada, 0 qual, em busca de Lamarana, assombra os que por ali passam. Além disso, é por meio do sobrenatural que o pecado dos amantes é expurgado, REVISTA MULEMBA 50 51 [Estavam ambos cada ver mais assustados, sobretudo quando viram a mulher-grande, que jnlgavam desaparecida, transformar-se num pate de asas enormes. (SEMEDO, 2000, p. 31) DDar-vos-i tes ovos de Se n'ahen'aht, pasa sagrado, que sb canta & meiacnoite de eada sexta {eira. (SEMEDO, 2000, p. 32) Sen'ah n'ah era um principe que foi transformado em phssaro.(SEMEDO, 2000, p. 33) ‘Acabou de tomar banko e estava a enxugar-te quan Dragos a tranaformarem-se em asas de um pare, (SEMEDO, 2000, p. 36) xrpreendido, viu as suas mios...os seus © processo envolve uma mulher-grande, que abarea a presenga da ancestralidade, ¢ ela que detém ‘© conhecimento, além de também conter um elemento magico ao transformar-se em pissaro, apos des- pedir-se do casal. A metamorfose nao é exclusividade da ancia, mas estende-se também ao principe Kelé, que, em forma de passaro, é 0 elemento de libertaco da praga que paira sobre Lamarana e Saliu, O canto, de Kelé, na forma do pissaro Se n’ah-n’ah, & 0 elemento que insere a mitologia mandiga como mediadora dda purgacio, Temos entio mais um dado tradicional que é a cantiga Sen'ah-n'ah,sen'ah Exte &0 me destino (bra dos meus defuntos ‘Que de mim fzeram peregrine Mas a vis trago este hina ‘Mantenha da bos nova CChegou o tio esperade dia, ah. te n'sh (SEMEDO, 2000, p. 37) Sen'ahn'ah..sen'a ‘Vemos, na insergao da cantiga, um dos processos mneménicos tipicos da produsio oral, Ditus, for- ‘mulas e provérbios, que para Honorat Aguessy,“revelam-se como sendo belos ‘resumos’ de longas e ama- durecidas reflexes, resultado de experigncias mil vezes confirmadas” (AGUESSY, 1977, p. 111), sio utic lizados pelos griots para manterem a atengio do piiblico © emocioné-lo, Através dos provérbios, a tradigao © 05 costumes se fazem representar na literatura como substratos de uma cultura que, embora reprimida pelo mundo da escrita, acaba por subverter 6 modelo do colonizador, afirmando as raizes orais que resis: tiram e sobreviveram a opressio, A recuperagio da figura do griot como exemplo maior narrativo provoca a aproximagio entre o oral eo escrito, A cangio, bem como a lenda do filho do régulo transformado em pissaro colaboram para que as narrativas de Odete Semedo se mantenham no limite entre o oral ¢ o escrito. E segundo Walter Benjamin, “entre as narrativas escritas as melhores so as que menos se distinguem das histérias orais contadas pelos inimeros narradores andnimos” (BENJAMIN, 1986, p. 198) Além da revisitagio do modelo narrativo, a cangio do passaro Se n’ah-n’ah também é uma retomada dos contetidos da tradigio, A formula para a libertagio da praga nao se limita apenas aos ascendentes ja finados, mas também se relaciona A desobediéncia aos pais, tema da narvativa sobre Saliu e Lamarana. Dessa forma, a cantiga encerra em sio ensinamento que precisa ser aprendido pelas ouvintes da narradora e, por ser cantada, ja carrega em si um método mneménico que facilitaa fixasao. de grande porte da mitologis mandings, Rio de Janeiro: UR, «14, n.2.p. 45053, jul/dez 2016, ISSN: 2176-381X a Mule (dete Semedo: oralidade e tradiczo Embora a narrativa encaixada traga um ensinamento acerca da obediéncia tratando especificamente do casamento, a narrativa encaixante langa incisivas criticas a esse modelo, Em “Acontecen em Ga-Biafa- 2” hi um dado de ruptura de um habito tradicional: o casamento escolhido pelo pai. A deniincia comega ogo no inicio do conto: “Como era costume nessa altura, a noiva cra a diltima a saber” (SEMEDO, 2000, Pp. 20). O casamento de Lamarana fora fruto do interesse econémico, jé que o futuro marido, Mussé, era ‘um homem de muitas posses. A vor enunciadora do conto efetua ai uma critica a esse tipo de supremacia ‘masculina, comum em certas etnias guincenses. A autora focaliza costumes tradicionais que rompem com a liberdade de escolha e isso se di de forma bastante sutil.f fato que este conto & representativo de segmen- tos do imaginario cultural guineense; no entanto, na recriacio feita pela escrita, duas frases, quase imper- cceptiveis, nos fazem notar a critica, Uma é a frase transcrita acima ea outra se encontra no primeiro final dda narrativa: “Passaram muitos anos, a vida continuou ¢ os pais continuaram a decidir sobre os casamentos das filhas” (SEMEDO, 2000, p. 25). Tal enunciado nos causa espanto ¢ este aumenta ao lermos o fim tragico de Lamarana e Saliu, vendo que nada mudou, mesmo apés o depoimento do pai da noiva ao declarar sew arrependimento por té-la obrigado a casar-se. Comportando-se como as canges de manjuandades, as estorias reinventadas pela escrita de Odete Semedo funcionam como ensinamentos que, ao mesmo tempo que mantém as tradigdes, sio pontes para ‘o presente, onde o passado & criativamente reinventado, mas nunca esquecido. Entendemos que Odete Semedo reinventa em sua escrita os processos mneménicos, os provérbios ¢ (8 ditus usados por griots guineenses, Além esses tragos, hd uma especificidade nos textos da escritora: ela oferece, recriado pela escrita, o ambiente guincense da contaga0 in loco, permitindo ao leitor atribuir mais de um final As narrativas, tal como acontece com as narragdes efetuadas pelos auténticos griots da tradigao que, de acordo com as reagdes do piblico, fazem as estérias mudarem de rumo, REFERENCIAS: AGUESSY, Honorat; SOW, Alpha I; BALOGUM, Ola; DIAGNE, Pathé. Introdusdo 4 cultura africana. Trad. Emanuel L. Godinho; Geminiano Cascais Franco; Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edigdes 70, 1977. 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