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TÍTULO ORIGINAL
Le Liseur du 6h27
PREPARAÇÃO
Tamara Sender
Luísa Ulhoa
REVISÃO
Juliana Souza
André Marinho
DESIGN DE CAPA E LETTERING
Mariana Newlands
GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca
REVISÃO DE EPUB
Juliana Pitanga
E-ISBN
978-85-8057-792-1
1a edição
»
Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
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Sobre o autor
Leia também
A Sabine,
sem a qual este livro não existiria,
a meu pai,
que, mesmo invisível, continua
a me inspirar seu amor eterno,
1.doc
Uma vez por ano no equinócio de primavera, eu reconto. Assim, só para
ver, comprovar que nada jamais muda. Nesse momento do ano tão particular
em que a noite e o dia compartilham o tempo em partes iguais, eu reconto,
tendo no íntimo a ideia ridícula de que talvez, sim, um dia talvez até uma
coisa a princípio tão imutável quanto a quantidade de cerâmicas que reveste
meus domínios do piso ao teto possa mudar. Isso é tão inútil e idiota quanto
acreditar na existência do príncipe encantado, mas há em mim esse
fragmento de garotinha que não quer morrer, e que, uma vez por ano, quer
acreditar em milagres. Conheço de cor as minhas cerâmicas. Apesar dos
golpes diários de esponja e produtos de limpeza, muitas continuaram
brilhantes como no primeiro dia e souberam conservar intacto esse esmalte
ligeiramente leitoso que recobre sua terracota. Para dizer a verdade, essas
pouco me interessam. O grande número fez de sua perfeição uma banalidade
sem atrativo. Não, as minhas atenções vão antes para as defeituosas, as
rachadas, as amareladas, as lascadas, para todas as cerâmicas que o tempo
aleijou e que dão ao lugar, além desse estilo meio antiquado do qual passei a
gostar, um toque de imperfeição que estranhamente me acalma. “É nas
cicatrizes dos gueules cassées, os militares sobreviventes da Primeira Guerra
Mundial com sequelas de combate, sobretudo deformações no rosto, que é
possível ler as guerras, Julie, não nas fotos dos generais em seus uniformes
engomados e recém-passados”, disse-me um dia minha tia enquanto nós
duas lustrávamos vigorosamente com flanelas os ladrilhos para lhes devolver
o brilho de outrora. Às vezes digo a mim mesma que o bom senso de minha
tia merecia ser ensinado na faculdade. Os meus gueules cassées
testemunham que aqui, como em qualquer lugar, a imortalidade não existe.
Dentre todo esse grupinho de cerâmicas danificadas, naturalmente tenho as
minhas preferidas, como a que fica no alto, à esquerda da terceira torneira,
e cujo brilho ausente desenha uma bela estrela de cinco pontas, ou essa
outra cujo brilho nunca desapareceu e o aspecto estranhamente terno
contrasta com a pureza faiscante de suas congêneres da parede norte.
Portanto, esta manhã, nas primeiras horas da primavera, percorri minha
área ladrilhada, caneta e bloco em mãos, a fim de proceder à grande
contagem anual de minhas cerâmicas. Meus passeios obedecem a uma lógica
bastante cartesiana, que consiste em ir do mais fácil ao mais difícil, do mais
visível ao menos acessível. Assim, o recenseamento começa sempre pelas
duas vastas paredes que se estendem de ambos os lados da escada que leva
aos meus domínios. E depois percorro as paredes norte e oeste, e o canto
formado por elas onde se encontra a mesinha que me serve de escrivaninha.
Ao passar, não deixo de abrir a porta do depósito para contar as poucas
cerâmicas que servem de tapete para as paredes de divisória, e que ficam
mergulhadas nas trevas da manhã até a noite, em meio a vassouras, baldes,
embalagens de produtos de limpeza e panos de chão. De vez em quando,
preciso suspender a contagem para acrescentar no bloco com espiral o
resultado dos meus levantamentos. Empurrando com o ombro, entreabro a
larga porta vaivém que dá no setor feminino. Ali, varro com o olhar aguçado
o contorno dos espelhos, a superfície das bancadas, a parte de baixo das
pias. Após inspecionar uma a uma as oito cabines, vasculhando com os olhos
os recantos escuros para desentocar os azulejos afogados na penumbra, saio
para proceder da mesma forma no masculino, área em tudo idêntica à do
outro gênero, a não ser pelos seis mictórios que ornam a parede ao fundo.
Sentada diante da mesa, peguei a calculadora científica guardada na
gaveta para digitar freneticamente um a um os números escritos no bloco.
Como em todos os anos, meu coração começou a bater um pouco mais
depressa no instante em que meu dedo pressionou a tecla EXE para a grande
soma final. E, naturalmente, como em todos os anos, foi o mesmo número
desesperador que invadiu a tela: 14.717. Sonho sempre com um número mais
caloroso, mais redondo, mais agradável aos olhos. Um número que contenha
alguns zeros bem barrigudos, até uns oitos, uns seis ou uns noves tão
pançudos quanto possível. Um belo três, generoso como o peito de uma ama
de leite, seria mais que suficiente para a minha felicidade. Um número como
14.717 é só osso. Expõe-nos sua magreza sem rodeios, agride nossa retina
com o agudo de seus ângulos. O que quer que façamos, quando colocado no
papel parece sempre uma sequência de retas fraturadas. Bastaria uma única
cerâmica a mais ou a menos para vestir esse número antipático com um
início de redondeza agradável. Suspirando, guardei a calculadora em seu
estojo. 14.717. Vou precisar mais uma vez me contentar com esse número
sem graça pelos próximos doze meses.
Apesar de todo o cansaço do dia que incendiava seus olhos, Guylain releu
o texto três vezes. E a cada uma delas passeava junto a essa mulher com o
mesmo arrebatamento. Após fazer para si um chá preto bem forte, imprimiu
tudo e se enfiou debaixo do edredom antes de começar a leitura do segundo
documento. Até o meio da madrugada, Guylain leu todos os setenta e dois
textos com uma voracidade jubilosa. Percorrida a última página, mergulhou
no sono, repleto dessa Julie e de seu mundinho ladrilhado que acabavam de
surgir em sua vida.
Nessa manhã, Guylain não contou ao descer a avenida. Nada, nem seus
passos, nem os plátanos, nem os carros estacionados. Pela primeira vez, não
sentiu necessidade disso. À luz do dia nascente, a pichação no aço da porta de
enrolar da livraria La Concorde pareceu-lhe mais colorida do que de costume.
A bolsa de couro pesava agradavelmente em sua mão direita, balançando no
ritmo de seu andar. Mais adiante, ele passou, sem que nenhum nojo o
inundasse, pelas baforadas quentes de gordura que o respiradouro do açougue
Meyer e Filhos vomitava continuamente. Em toda parte, havia apenas
reflexos e cintilações. O breve aguaceiro no meio da noite havia embelezado
todas as coisas, envernizando-as com sua água. Na altura do número cento e
cinquenta e quatro, ele não deixou de cumprimentar o velho-de-pantufa-e-
pijama-por-baixo-do-casaco-impermeável. O homem sorria de alegria diante
de Balthus, que regava com um longo jato forte o pé de sua árvore. Guylain
subiu o lance de degraus que levava à plataforma e foi até sua linha. Ela se
estendia no meio do cinza, mais branca que nunca. O trem das 6h27 chegou à
estação às 6h27 em ponto. O banco retrátil não gemeu quando ele abriu o
assento. Guylain tirou a pasta da bolsa pousada a seus pés. Embora o
processo não diferisse em nada do dos outros dias, pareceu aos observadores
mais atentos que os gestos dele estavam menos mecânicos. O mal-estar que
normalmente enrijecia seus traços em uma máscara triste desaparecera. Esses
mesmos observadores também puderam notar que mata-borrões e pedaços de
páginas haviam dado lugar a folhas comuns de formato A4. Sem nem sequer
esperar a partida da composição, Guylain leu o primeiro texto com uma voz
grave:
Então, sem texto e sem outro condutor a não ser a memória fantástica que
tinha, Yvon Grimbert, também conhecido como Vernon Pinder, soltou nos
ouvidos da plateia estupefata uma primeira lufada. Tirada de Fedra
declarando seu amor a Hipólito, ato II, cena 5.