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NA PONTA DA LINGUA Catherine Kerbrat-Orecchioni 4, Rsirangeirismos — guerras em tarno da Uingua, Carlos Alberto Faraco [org] 2, Lingua materna —letramento, variagio ¢ ensina ‘Marcos Bagno, Michael Stubbs & Gilles Gagné “Historia concisa da linguistica, Barbara Weedwood Sociotingutstica — ama inavedscao critica, Louis-Jean Calvet “Histévia concisa da escrita, Charles Higoune = I a anaélise da disciplina, Robert Mastin ow Inirodugae aos esiudes cutturais, Armand Mattelart & ‘Erik Neveu A pragmética, Francoise Armengand A O | O. Hdra concla da semiétice, Anne Hast Principios e métodos 10. Historia concisa da seméntica, Irene Tamba 11, Linguistica computacional Gabriel de Avila Othero & § 1B. Linguistien histrica — soma inardugo ao estado da histiria as Iinguas, Carlos Albesto Faraco 33, Lutar com palavras —"evesio e coeréncia, Trandé Antunes teoria & prética ingio de Mowra Memuzzi 14, Andlise do discurso — hist6riae préticas, Erancine Maziere 15. Mas.a que é mesmo “gramdtica"?, Carlos Franchi 16. Andtise da conversagite: princtpios e métodos Catherine Kerbrat-Oreechiont 11. As politicas tinguisticas, Louis Jean Calvet 18, Praticas de letramnento no ensino: leitura, escrita ¢ diseurso Caatos Alberto Faraco, Maria do Rosério Gregolin, Gilvan Males TRADUGAO, de Oliveisa, Telma Gimenez & Luiz Carlos Travaglia Carlos Piovezani Filho 19. Retewincia sociat da tingutstica:linguagem, toria ecnsina Luiz Percival Leme Britto, Marcos Bagno, Neiva Maria Jung, Heméria de Lourdes Saveli & Maria Marta Furlanetto 20. ‘Toda mundo devia escrever, Georges Picard 21. A argumentagdo, Christian Plantin 22, Tradigdo oral & tradligao escrita, Louis:Jean Calvet 23, ‘Tradugéo — historia, eorias¢ métodas, Michaél Owstinoft ‘24, Gramética de bolso do portugués brasiteiro, Marcos Bagno “Titulo orighal: ta conversation © Editions du Seutl, juin 1996 | ISBN: 2-02.026030-1 oro eros Marcio Cameron axince: Andréia Custbio Iweciia Eorowns Anna Rachel Macedo ‘Commo Ebronm: Ane STaN Zilles (Unsinos Dhnela Pale anisio UFPEL Cavos Abert Faraco FPL Egon de Olvera angel PUCSP] ven lle de Ova [USC pel] Fenn Nonteagud [universe de Santiago de Compestsah navi Rajagopalan UNICANPL DorcosBagno{U8) Mafia Nava area Schr UFES| Rachel Gama de Andrade [PUCSPL Roberts Muliacd [Unsesidade de Bolonhs) Fane Reo UNICANPL Sarma Tanns Mucha [PUCSPL Sitio Poet (UNAM! Ste ar Gorton Rcd (Un CCIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI we Kerb Oechion Casing 183 ridseda converge: pnpesemétodsCathsne eta tro ate Pern it So Palo Parl Esra 2008 “peta dng 15) scree Sadia dea comersaon Ircablogate EN me s5EAse50 4. conraga Tul I Se, sua cop a0sse cau 2005s re Direitos eservadosa Parabols Editorial ua Dr Nério Vicente, 394- Ipiranga (04270-010 Séo Paula SP aby [1°] $061-$262 | 2589-9263 | fox (11 5061-8075 Frome pege:wirmparabolaeditorialcombr e-mail rarabolagparabolaeditoralcom.cr Te sprang es MEMES Naar oe teal oars om qu eta ou Eo ‘ee ern pc oa Pol Eid Us SBN: 976-85-88456-56-7 + ediggo - 2 reimpresso:junho de 2014 1 da ecicao: Parébola Eadlitorial, Sdo Paulo, setembro de 2006 SUMARIO. 1. A andlise das conversacées .. 7 2. As diferentes correntes em andlise das interagdes 16 3. O contexto 25 4. O material... sos 36 5. O sistema de turnos de fala 43 6. A organizacio estrutural das conversagées .... 52 7. A relagio interpessoal . en) 8. A polidez: aspectos tedricos . 76 9. As manifestagées linguisticas da polidez..... 84 10. A polidez: balango . 93 11. A variagdo cultural: alguns dados un... 103 12. A variagdo cultural: outros aspectos. 112 13. Por uma tipologia dos “estilos comunicativos” 119 14. Estudo de duas trocas rituais: pedido de desculpas ¢ agradecimento. 127 15. Conclusées . — 137 Sugesties de leitura . 142 CAPITULO 1 A ANALISE DAS CONVERSAGOES “Nao se pode ndo comunicar” (P. Warz.awicx). “Queira ew on nda, eston preso num cireuito de troca” (R, BARTHES). “0 didlogo — a toca de palavras — é 4 forma mais natural da linguagem” (M. Baxsr) Estas trés citacdes nos lembram a vocagao co- municativa da linguagem verbal. Com efeito: © O exercicio da fala implica normalmen- te uma alocugdo, ou seja, a existéncia de um destinatario fisicamente distinto do falante (0 monélogo prolongado é admitido no teatro, mas se vé geralmente proscrito em sociedade). e O exercicio da fala implica ainda uma interlocucdo, ou seja, uma “troca de pala- vras”. 5 verdade que algumas praticas linguis- ticas (escritas, sobretudo, mas também orais) excluem qualquer possibilidade de resposta imediata. Mas é igualmente verdade que a si- tuagéo mais comum de exercicio da lingua- gem é aquela em que a fala circula ¢ se troca (0 didlogo, portanto) e em que se permutam 8 ANALISE OX CONVERSAGKO: PRINCIPIOS E METODOS permanentemente os papéis do emissor ¢ do receptor. 5 por esse tipo de situacdo que nos interessaremos aqui, na medida em que ela representa para o individuo, desde seu nasci- mento, a experiéncia linguistica por excelén- cia: a comunicagao oral face a face, na qual pelo menos dois falantes (que chamarei de F, e F,) se exprimem, cada qual em seu turno, e Correlativamente, enfim, o exercicio da fala implica uma interacéo, ou seja, ao longo do desenrolar-se de uma troca comunicativa qual- quer, os diferentes participantes, aos quais cha- maremos “intetactantes”, exercem uns sobre os outros uma rede de influéncias muituas — falar é trocar, e mudar na troca. A. Anogao de interacéio Para que haja troca comunicativa, nao basta que dois falantes (ou mais) falem alternadamente; é ainda preciso que cles se falem, ou seja, que estejam, ambos, “engajados” na troca ¢ que deem sinais desse engaja- mento miituo, recorrendo a diversos procedimentos de validacdo interlocutéria. Os cumprimentos, apresentagées ¢ outros rituais “confirmativos” desem- penham, nesse sentido, um papel evidente. Mas a va- lidagao interlocutoria se efetua, sobretudo, por outros meios mais discretos ¢, no entanto, fundamentais. a, Oemissor Ele deve indicar que esté falando com alguém pela orientagao do corpo, pela direcao do olhar ou pela pro- ANALISE DAS CONVERSAGOES ° ducdo de formas de tratamento; ele deve também pres- tar atencio aos tipos de “captadores” (tais como “hein”, “né”, “sabe”, “voce ve”, “digamos”, “vou te dizer”, “nem te conto” etc), ¢ eventualmente “corrigir” falhas da es- cuta ou problemas de compreensio, por meio de um aumento da intensidade vocal, das retomadas ou das reformulagdes: qualificamos, geralmente, de fatieos esses diversos procedimentos, dos quais se vale o falan- te para se assegurar da escuta de seu destinatario. b. Oreceptor Fle também deve produzir alguns sinais que visam confirmar ao falante que esté, de fato, “ligado” no circuito comunicativo. Esses reguladores (ou sinais de escuta) tém realizagdes diversas: no verbais (olhar e meneio de cabeca, mas também, dependendo da ocasiao, franzimento desobrancelhas, sorrisinho, ligeira mudanca de postura....), vocais (“humm” ¢ outras vocalizagées), ou verbais (“sim”, “certo”), ou retomadas na forma de eco. Eles tm também significagdes variadas (“estou te acompanhando”, “temos um problema de comunicago” etc.), mas, em todo caso, a produgao regular desses sinais de escuta € indispensivel para o bom funcionamento da troca: experiéncias prova- Tam que sua auséncia acarreta importantes perturbagdes no comportamento do falante. A sincronizagio interacional ___Além disso, as atividades fitica e reguladora nao so independentes uma da outra, mas so, ao contré- tio, solidarias, 10 ANALISE DA CONVERSAGKO: PRINGIPIOS © METODOS Esté claro, por exemplo, que: @ em caso de falha do falante (que manifesta um certo embaraco na sua elocugao), o ouvinte tende espontaneamente jmulinioat cs mavadoes e emcaso de fala do ouvinte (que produz sin de “desinteresse”), o falante tende espontanea- mente a multiplicar os procedimentos faticos. Um bom exemplo dessas “influéncias mtituas”, exercidas pelos interactantes, é 0 fato de que eles ajus- tam, coordenam, harmonizam permanentemente seus Tespectivos comportamento: Chamamos sincronizacéo interacional o con- junto desses mecanismos de ajuste, que intervém em todos os niveis do funcionamento da interagao. Esse fenémeno caracteriza, por exemplo: o funcionamento dos turnos de fala (> capi- tulo 5); © os comportamentos corporais dos diferentes participantes presentes a uma interagao: as and- Tises efetuadas a partir de gravagoes em video por alguns especialistas em comunicacao nao- verbal mostraram exatamente que, em tma interagdo, os participantes “parecem dangar um balé perfeitamente ajustado”, adaptando instintivamente suas posturas, gestos e mimi- cas aos de seus parceiros, © aescolha dos temas, do estilo da troca, do re- gistro de lingua, do vocabulario utilizado ete vemos, assim, como 0 conjunto do material discursivo, produzido durante a interagao, pode ser objeto de negociacées (por vezes, explicitas; mais frequentemente, implicitas) entre as diferentes partes em presenca. ANALISE DAS CONVERSAGOES "1 Em suma, na interagao face a face, o discur- so ¢ inteiramente “coproduzido”, é 0 produto de um “trabalho colaborativo” incessante — esta éa ideia-forca que embasa 0 enfoque interacionista das produgdes Tinguisticas. B. A nogao de conversacio 44, Diversidade das interagies comunicativas Os meios pelos quais os membros de uma socieda- de podem interagir so extremamente diversos, e nem sempre de natureza linguistica. Observemos, pot exem- plo, 0 fluxo de veiculos nos crwzamentos das ruas: cada um deve, ndo “falar em seu turno”, mas “passar na sua vez”, sendo obrigado tanto a ceder o lugar, quanto a se apossar dele; mas o tréfego de automéveis apresenta outras analogias com o funcionamento das conversacées: @ existe, por vezes, um “distribuidor oficial de tur- no” (seméforo ou agente de transito; animador ou “moderador”, nos debates ou coléquios); ® na auséncia desse distribuidor, a alternincia dos turnos deve ser autogerida, com base num certo mimero de regras interiorizadas pelos participan- tes, como a preferéncia a direita, ou, nas conver- sagGes, as regras de alterndncia dos turnos de fala; © nos dois casos, o sistema concede um lugar im- portante as “negociacies interacionais”, que po- dem se desenrolar de uma maneira pacifica ou conflituosa, cortés ou agressiva (e, frequente- mente, sob a forma de golpes de forea para ocu- par o lugar ow se apossar do turno de fala); 12 ANALISE DA CONVERSAGKO: PRINCIPIOS E METODOS ‘© esse sistema pode também provocar violagdes deliberadas (“interrupedes” ou “intrusdes”, no caso dos turnos de fala; semaforos “quebrados” ou preferéncias desrespeitadas, no caso dos cruzamentos de ruas), violagdes passiveis de sangées, juridicas ou sociais; ele pode, enfim, provocar “danos” involuntérios, de consequén- cias mais ou menos graves (“a superposicao de falas” € exatamente, na conversacao, 0 que é 0 “engarrafamento” no transito). bh Interacies verbais endo verbais Distinguiremos, portanto, primeiramente, as interagdes verbais (que se realizam principalmen- te por meios verbais, como as conversacées) ¢ as interagdes nao verbais (circulacdo, danca, esportes coletivos etc.). Notemos que, nesse sentido, alguns ti- pos de trocas comutiicativas so mistas, pelo fato de que neles vemos sucederem-se ou se misturarem acdes verbais e nao verbais igualmente indispensdveis ao de- senvolvimento da interacéo — por exemplo, as con- sultas médicas (cujo “cendrio” se decompoe em dife- rentes fases, tais como a anamnese, 0 exame, o diag- néstico ¢ a prescrigao), ou as interacdes que se desen- volvem em alguns estabelecimentos comerciais (res- taurante, loja de roupas etc.). « Diferentes tipos de interagoes verbais A familia das interacées verbais é numerosa ¢ diversa. Encontramos nela, por exemplo, entre outras: ANALISE DAS CONVERSAGOES 13 as conversacdes familiares, as conversas de todos os géneros, as entrevistas, os debates, as transagdes co- merciais, as trocas didaticas, os encontros cientificos, as reunides de trabalho, as sessdes de tribunal, as con- feréncias diplométicas... Portanto, a primeira tarefa da andlise das interagGes é: tentar fazer seu inventa- tio e sua tipologia, a partir dos seguintes critérios: — a natureza do lugar (quadro espacotemporal); — 0 nuimero ¢ a natureza dos participantes, seus estatutos e respectivos papéis, ¢ 0 tipo de con- trato que os mantém juntos (> capitulo 3); — 0 objetivo da interacio; — seu gran de formalidade ¢ seu estilo (pre- dominantemente, sério ou hidico, conflituoso ou consensual... Assim, a conversagao tem como caracteristica implicar um numero relativamente restrito de parti- cipantes, cujos papéis nao esto predeterminados, que gozam, em principio, dos mesmos direitos e deveres (a interagao é de tipo “simétrico” e “igualitatio”) e que nao tém outro objetivo explicito que no seja o ptazer de conversar; ela tem, enfim, um cardter fami- liar e improvisado: temas abordados, duragao da tro- ca, ordem das tomadas de turno, tudo isso se deter- mina passo a passo, de maneira relativamente livre — telativamente, pois, conforme o veremos, até mes- mo as conyersagées aparentemente mais andrquicas ohedecem, de fato, a algumas regras de producdo, dei- xando, no entanto, aos interlocutores uma margem de manobra nitidamente mais extensa que em outras formas mais “coercitivas” de trocas comunicativas. Recapitulemos: 14 ANALISE DA conversagio: pRINcipios E METODOS e As conversacées constituem um tipo particular entre as interacées verbais (que, por sua vez, constituem uma subclasse no conjunto das interagées sociais). Mais precisamente, as conversagdes sao geralmente consideradas como a forma prototipica nesse dominio; ou seja, a for- ma mais comum e representativa do funcio- namento geral das interagdes verbais. e As trocas comunicativas reais nao so for- gosamente “tipologicamente puras”: cons- tatam-se frequentemente, ao longo de uma mes- ‘ma interagéo, alguns deslocamentos de um géne- ro a outro (por exemplo, de um bate-papo infor- mal para um registro mais profissional numa ne- gociacdo comercial ou numa consulta médica). C. As regras conversacionais Quando encontro e cumprimento um colega na rua, quando discuto entre amigos em torno de uma mesa ou quando faco minhas compras na mercearia do bairro. para exercer de maneira eficaz essas atividades, por mais banais que elas sejam, adapto-me a algumas regras conversacionais, cujas caracteristicas sio as seguintes: © Essas regras sio de natureza bastante di- versa, porque as conversagdes sao ohjetos com- plexos que funcionam em diferentes nfveis. © Algumas dentre elas valem para todos os tipos de interagdo € outras so especificas de um ou de outro “género” particular. © Elas sio bastante solidarias com o contexto. ANALISE DAS CONVERSAgSES 15 Variam amplamente, segundo as socieda- des € as culturas. e Estao em conjuntos relativamente flexiveis (mais flexiveis, por exemplo, que as regras da gramatica das frases). @ Sao adquiridas progressivamente desde o nascimento, mas nao se constituem, em sua maioria, como o objeto de um aprendizado sistematico. B por isso que elas sao geralmen- te aplicadas de maneira inconsciente (a cons- ciéncia da existéncia de tais regras quase nun- ¢a ocorre, a nao ser que seja suscitada pelo surgimento de alguma “falha” ou fracasso na comunicagio). O objetivo da andlise conversacional é, precisamen- te, explicitar essas regras que sustentam o funcionamento das trocas comunicativas de todos os géneros; ou, em outros termos, decifrar a “partitura invisivel” que ori- enta (sempre the deixando uma ampla margem de im- provisacio) o comportamento daqueles que se encon- tram engajados nessa atividade polifénica complexa que é a condugao de uma conversacio. CAPITULO 2 AS DIFERENTES CORRENTES EM ANALISE DAS INTERAGOES E no comego dos anos 1970 que se assiste a emergéncia desse novo campo de pesquisa ¢ que as conversagées (¢ outras formas de interacdes verbais) tornam-se objeto de uma investigacao sistematica. Nao que elas tivessem sido, até ento, totalmente negligencia- das: da Renascenga a nossos dias, a literatura que trata da conversacdo é abundante, mas advém, sobre- tudo, de moralistas (mencionemos, por exemplo, Montaigne, La Bruyére ou La Rochefoucauld); 0 ponto de vista é essencialmente ético e estético ¢ a pers- pectiva € normativa, dado que se trata, antes de tudo, de inculear as regras da “arte de bem conversar”, Atual- mente, ao contrario, a perspectiva se pretende cientifica, ou seja, puramente descritiva: trata- se de ver, 0 mais objetivamente possivel, a partir de corpora gravados e cuidadosamente transcritos, como so produzidos esses objetos particulares que so as conversagées. Dado que essa tarefa pode ser abordada de v4- tias maneiras, a reflexdo no campo do interacionismo esta, atualmente, bastante diversificada: em vez de um AS DIFERENTES CORRENTES EM ANALISE DAS INTERAGOES ‘7 “dominio” homogéneo, convém falar de um “campo movente” que atravessa diversas disciplinas e cuja unidade repousa mais sobre alguns postulados funda- mentais — como a ideia de que o discurso é uma cons- trugdo coletiva —, do que sobre a existéncia de um conjunto unificado de proposigées descritivas. Transdisciplinar desde suas origens, a andlise das conversagdes relacionou-se, parcialmente, com as seguintes disciplinas: psicologia social e psicologia interacionista; microssociologia, sociologia cognitiva, sociologia da linguagem, sociolingu‘stica; linguistica, dialetologia (particularmente, a urbana), estudos do folclore; filosofia da linguagem; etnolinguistica, etnografia, antropologia; cinésica, etologia das comu- nicagdes... Multiplicidade de rétulos que reflete uma andloga multiplicidade de quadros metodolégicos, bem como uma certa confusio na articulagéo dessas dife- rentes disciplinas, cujas fronteiras se superpdem muito frequentemente (C. Bachmann et al., a esse respeito, falam de “corrente de dguas misturadas”). Para colocar um pouco de luz nesse imbréglio disci- plinar, dividirei essas diferentes correntes em quatro grandes tipos de enfoque, que abordarei a seguir. A. Oenfoque de tipo “psi” (psicolégico ¢ psiquiatrico) O interacionismo em psicologia é representado, sobretudo, pela Escola de Palo Alto (P. Watzlawick et al.), cujas preocupagées sao, primeiramente, de ordem terapéutica: a questo € tratar os “casos” — disfuncées da relag&o conjugal, criangas esquizofrénicas — a par- 18 ANALISE DA CONVERSACKO: pRINCIPIOS E METODOS tir de um enfoque sistémico; aqui, a ideia fundamen- tal é a de que as perturbacdes que afetam o individuo resultam, segundo um processo de “causalidade cir- cular”, de uma disfumcdo do sistema relacional global no qual esse individuo se encontra inserido, sendo, portanto, sobre a transformago desse sistema global que o tratamento deve incidir. Mas alguns dos concei- tos elaborados nesse quadro sao facilmente transponi- veis da comunicagdo patolégica para a comunicagao “normal”; particularmente: — a oposic&o entre comunicacdo simétrica vs. complementar; — a distingdo dos niveis do contetido e da re- lagéo; — a nogdo (herdada de G. Bateson) de duplo vineulo (double bind), que parece bastante produtiva para considerar as comunicacées so- ciais no seu conjunto. Veremos, mais adiante, que partido a andlise das conversacées pode tirar dessas diferentes nogdes. B. Enfoques etnossociolégicos Sao os mais importantes e diversos. aA etnagafiada comatnicagio (D.Hymes, J. Gumperz) Em reacio contréria A concepeao chomskyana da linguagem, Hymes publica em 1962 um artigo em que expde sua prdpria crenga e funda, por extensio, a etnografia da comunicacdo: para ele, saber falar nao é somente, como o pretende N. Chomsky, ser capaz de pro- AS DIFERENTES CORRENTES EM ANALISE DAS INTERAGOES 19 duzir e de interpretar um numero infinito de frases bem formadas, mas é também dominar as condicdes de uso adequado das possibilidades oferecidas pela lingua. A competéncia linguistica deve, portanto, ser considerada no interior de um conjunto mais amplo, no qual saberes linguisticos e saberes socioculturais estao inextricavel- mente misturados: a competéncia commnicativa pode ser definida como o conjunto de capacidades que permi- tem ao sujeito falante comunicar de modo eficaz, em si- tuagoes culturalmente especificas. E na condigao de de- tentor de uma competéncia comunicativa, e nao somente de umacompeténcia linguistica, que oindividuo podesobreviver em sociedade: o “bebé chomskyano”, observa Hymes, se- tia um “monstro” predestinado a uma morte rapida, por- que seria capaz de enunciar frases impecavelmente “grama- ticais”, mas incapaz de utilizé-las no momento oportuno, no lugar preciso e com o interlocutor adequado... Outras caracteristicas da etnografia da comunicagao: e Interesse pelos fendmenos de variagéo do eédigo de uma comunidade a outra (cf. os trabalhos de Gumperz sobre a comunicacao intercultural e 0 impressionante conjunto de es- tudos que descrevem o funcionamento desse ou daquele “evento de comunicagio” nessa ou na- quela sociedade), mas também no interior de uma mesma comunidade: levantando-se contra aideia de “comunidade homogénea” (ainda, Chomsky), a etnografia das comunicagées demonstra por meio do estudo de diversas sociedades que, na realidade, a situaciio mais atestada é aquela em que os membros dessa sociedade dispdem de uma gama de “estilos” diferentes, de dialetos 20 ANALISE DA CONVERSAGKO: PRINCIPIOS & METODOS diferentes ¢ até mesmo de linguas diferentes, com os quais eles jogam, em fungéio de seus ohjetivos do momento, Em outros termos, a diversidade de sistemas comunicativos nao deve ser encarada apenas nos seus aspectos negativos (problemas de intercompreensio), porque ela de- sempenha também um papel positive importante como marcador de identidade do falante, ou na construcdo da relagao interpessoal. © Interesse igualmente pelas aplicagaes possiveis da reflexdo teérica (por exemplo, no dominio da comunicacio interétnica, no meio escolar, em particular, ou em outras instituigdes). @ Adogao de um procedimento indutivo e “na- turalista”: trata-se de observar os “eventos de comunicacao” no seu meio natural e de considerar © mais exaustivamente possivel os dados recolhi- dos, gracas a um paciente trabalho de campo. b Actnometodologia O termo “etnometodologia”, forjado por H. Garfinkel, a partir do modelo da “etnobotanica” e de outras “etnociéncias”, deve ser compreendido do seguin- te modo: trata-se, nessa perspectiva, de descrever os “métodos” (procedimentos, saberes e técnicas) que os membros de uma dada sociedade utilizam para gerir como convém 0 conjunto de problemas comunicativos que eles tém de resolver na vida cotidiana. Os princi- pios que fundam a etnometodologia s4o os seguintes © Todos os comportamentos observaveis nas trocas cotidianas sio “rotinizados”: [AS DIFERENTES CORRENTES EW ANALISE DAS INTERKGBES a eles repousam sobre normas implicitas, admi- tidas como evidentes, cabendo & etnometodo- logia exumar todas as falsas evidéncias sobre as quais se constréi nosso ambiente familiar, AS normas que sustentam os comporta- mentos sociais preexistem parcialmen- te ao mesmo tempo em que a eles, sio perma- nentemente reatualizadas e reengendradas pela pratica cotidiana num movimento sem fim de construgao interativa da ordem social. A vida em sociedade aparece ent&o como uma “realiza- ao continua”, como um trabalho permanente para construir sua identidade social, para tor- nar inteligivel o conjunto de seus comportamentos € para ser aceito como membro habilitado dessa sociedade, Para o etnometodologista, um médi- co 86 & médico na medida em que “desempe- nhao papel de doutor”, anunciando seu estatuto pelo conjunto de suas condutas; uma “pessoa comum? somente o é porque se empenha inces- santemente em realizar sua “ordinarismo” etc. O procedimento etnometodoldgico é teo- ricamente aplicavel a todos os campos da atividade social (delinquéncia juvenil, regime das prisdes ou do mundo cientifico). Mas, a0 lado dos estudos que incidem sobre os tipos de atividades em que a linguagem verbal constitui apenas uma componente entre tantas, uma ver- tente da etnometodologia erigiu-se gradativa- mente, sob o impulso de H. Sacks ¢ E. Schegloff, como dominio auténomo de pesquisa: trata-se da andlise conversacional, ctsjo ohjetivo é des- 22 ANALISE DA CONVERSAGRO: PRINGIPIOS E NETODOS crever o desenvolvimento das conversacdes coti- dianas em situagdo natural. As conversagaes apa- recem, com eftito, como um lugar privilegiado de observagain das organizagies sociais em seu conjun- 10, nas quais elas sdo somente uma forma parti- cular, ¢ particularmente exemplar: nelas, obser- ‘vamos como os participantes recorrem a técni- cas institucionalizadas para efetuar em conjun- to a gesto de diferentes tarefas que cles tém de completar (assegurar a alternancia dos turnos de fala, “corrigir” as eventuais falhas da troca comunicativa, conduzir uma narrativa ou uma descric&o, encaminhar de modo eficaz:a negocia- co dos temas, da abertura e do encerramento da troca etc.). O que interessa aos partiddrios da andlise conversacional é, portanto, a “tecnolo- gia da conversagao”, tal como ela pode ser reconstituida a partir da minuciosa observagao de amostras gravadas, A andlise conversacional stricto sensu constitui, de certo modo, a vertente linguistica da etnometodologia a versio etnometodologica da andlise das conversacées. & Outras abordagens socioldgicas As duas correntes anteriormente evocadas tem como caracteristica comum adotar uma perspectiva resolutamente interacionista. Mas elas néo sao as tini- cas a alimentar a reflexdo no campo das interagGes so- ciais, Podemos, ainda, mencionar os trabalhos em- preendidos em sociolinguistica por pesquisadores como W. Labov, J. Fishman ou S. Ervin-Tripp, e, sobre- AS DIFERENTES CORRENTES EM ANALISE DAS INTERAGOES 23 indo, os de E. Goffman. Goffman nao fundou verdadei- ramente uma escola, mas est onipresente em filigrana na literatura interacionista; suas intuicbes fecundas, stias observacies perspicazes e suas sugestées tesricas estimu- laram ¢ alimentaram, de maneira decisiva, 0 estudo etolégico das comunicagbes da vida cotidiana. C. A abordagem linguistica 8, no minimo, paradoxal constatar que, apesar de as conversacoes serem antes de tudo objetos de lingua- gem, a linguistica sé tenha vindo a se interessar por clas tardiamente, e sob a pressio de investigacdes condu- zidas fora de suas fronteiras. Mas o fato é este: até um periodo recente, a linguistica se ocupava essencialmen- te desse sistema abstrato que é a lingua, apreendida a partir de exemplos produzidos para a circunstancia; e quando ousava enfrentar 0 discurso, geralmente se tra- tava de discursos escritos ¢ “monologais” (produzidos por um tinico e mesmo falante). Apenas bem recente- mente € que se assiste reabilitacao do empirismo descritivo e se reconhece a necessidade de conceder prioridade as produces efetivas (corpora “auténticos”); nessa perspectiva, as construgées teéricas devem ser inteiramente postas a servico dos dados e nao 0 contrario (cf. Labov: “Doravante os linguistas nao podem mais continuar a produzir ao mesmo tem- po a teoria e os fatos”); também se devem priorizar os discursos orais ¢ dialogados, considerados como a for- ma primordial de realizagio da linguagem. Desse modo, nesse movimento interacionista, a lin- guistica, em alguma medida, pegou o bonde andando. 2a ANALISE DA CONVERSAGKO: PRINCIPIOS E WETODOS ‘Mas, durante os anos 1980, ela se empenhou na recupe- xacao do tempo perdido, gracas a um certo ntimero de pesquisadores que se debrucaram ativamente sobre a conversacio (para falar apenas do dominio francéfono, mencionemos a “Escola de Genebra”, ¢ os trabalhos con. duzidos em Paris, Lyon, Rouen ou Aix-en-Provence). Encontraremos nesta obra, que se inscreve prin- cipalmente na abordagem linguistica, numerosos ecos desses trabalhos. D. A abordagem filoséfica ‘Todos os modelos conversacionais adotam, com diferentes disposicdes, a nogio de ato de fala, clabo- rada no quadro da filosofia analitica anglo-saxdnica (J. L. Austin, J. Searle), ou seja, eles retomam, a seu modo, a concepcao pragmatica do discurso, se- gundo a qual “dizer 6 fazer”. No campo da filoso- fia, nasceram muitas outras nogées ttilizadas quando da andlise das conversagées, como aquela de “jogo de linguagem”, desenvolvida por Wittgenstein, ou as famo- sas “mAximas conversacionais”, de H. P. Grice (maxi- mas de qualidade, de quantidade, de relagao e de moda- lidade). Mas, o principal representante do enfoque filo- séfico do didlogo 6, sem diivida, F. Jacques, que perse- gue incansavelmente seu empreendimento de definicao de uma “candnica do didlogo” e das “condigdes de pos- sibilidade da comunicabilidade, em geral”. Reflexio de alcance “‘metatedrico”, mas que prope, ao mesmo tem- po, um certo niimero de ferramentas (emprestadas das semdnticas modais ou da teoria dos jogos) titeis na des- ctigdo e na tipologia dos didlogos. CAPITULO 3 O CONTEXTO A Linguistica moderna em set conjunto, seja ela estrutural ou gerativa, edificou-se a partir da ideia de que era possivel ¢ até mesmo necessério descrever as frases independentemente de seu contexto de atuali- zacao. Para o enfoque interacionista, ao contrario, 0 objeto de investigagéo nao sao frases abstratas, mas discursos atualizados em situagées de comuni- cacdo coneretas. A. Os ingredientes do contexto O contexto, ou situagao comunicativa, compre- ende os seguintes elementos: 4, Olugar (setting ox quadro espacotemporal) © O quadro espacial pode ser considerado nos seus aspectos puramente fisicos: quais séo as caracteristicas do lugar onde se desenvolve a interacao (lugar aberto ou fechado, ptiblico ou privado; apartamento, loja, restaurante, con- sultdrio médico, sala de aula, tribunal de jus- tica...), mas também sob o Angulo de sua fun- 26 ANALISE DA CONVERSAGKO: PRINCIPIOS E METODOS cao social ¢ institucional (0 tribunal de justica nao mais como ediffcio, mas como lugar de exercicio da fungao judiciéria), © O quadro temporal é igualmente determinante para o desenvolvimento da interag&o: 0 discurso deve ser apropriado ao lugar, mas também ao ‘momento (nao se cumprimenta o interlocutor no meio da conversagao, nao se exprimem votos de feliz. ano novo em pleno periodo junino etc.), b, Oohjetivo Distinguem-se 0 objetivo global da interacdo (ex: “consulta médica”) € os objetivos mais pon- tuais que correspondem aos diferentes atos de fala realizados ao longo do encontro. Outra distingéio importante para a constituigao de uma tipologia das interagdes: aquela que opoe as interagdes com finalidade externa (compra, obten- gao de informagées, tratamento médico) ¢ as interacdes mais “gratuitas” que sdo as conversagées, nas quais os fins séo de natureza mais relacional que transacio- nal: fala-se por falar, ¢ para assegurar a manutengio do lago social. ¢ Os participantes Nesse nivel, sdo considerados: © seu ntimero: conversagdo face a face, a trés (“tridlogo”) ou mais (“polidlogo’ @ suas caracteristicas individuais: idade, sexo, profissiio, posigao social, tracos de carter ete; © coNTEXTO 27 © suas relagées miituas: gran de conhecimen- to, natureza do laco social (familiar ou profis- sional, com ou sem hierarquia) e afetivo (sim- patia ou antipatia, amizade, amor e outros sen- timentos que podem ser ou ndo partilhados), Vamos agora focalizar mais de perto, o “quadro participative”, que constitui o aspecto mais importante do quadro comunicativo. B. O quadro participativo a. Os papéis interlocutivos Toda troca comunicativa implica a existéncia: — de um emissor, ou falante, em principio, tinico (salvo em caso de superposiedo de fala); — de um ou varios receptores ou ouvintes. Em uma conversagao, os participantes so chame- dos a ocupar, cada um a seu turno, a posi¢do emissora (ficando, no resto do tempo, relegados a posicao receptora), ou seja, as configuracées interlocutivas nao cessam de se modificar ao longo do desenrolar da interacao. b. Os diferentes tipos de receptores © Podem-se, com Goffman, distinguir no conjun- to dos receptores: 1° os participantes “reconhecidos”: eles fazem oficialmente parte do grupo conversacional, assim como atestado pelo “arranjo fisico” desse grupo e pelo compor- tamento nao verbal de seus membros (distancia na qual se posicionam, orientacgo do corpo e dos olhares); 28 ANALISE DA CONVERSAGKO: PRINCIPIOS E METODOS 2° 08 simples espectadores (bystanders) que sao somente as testemunhas de uma troca, da qual esto, em principio, excluidos; categoria no interior da qual Goffman distingue ainda: — 08 receptores “ocasionais” (overhearers): 0 emissor estd consciente de sua presenca no espago perceptivo (situagao frequente nos luga- res ptiblicos); — © 08 “espides” (cavesdroppers), intrusos que surpreendem, a revelia do falante, uma men- sagem que nao lhes é, de modo algum, desti- nada (é assim, por exemplo, que uma conver- sacao privada pode ser escutada pelo vao de uma porta por um ouvinte de passagem, ou, mesmo, cair nas maos de um especialista em andlise das conversacées...), © A primeira categoria mencionada (que é também a mais importante), a dos receptores reconhecidos, ou destinatérios, compreende: — 08 destinatirios diretos ou alocutértos, ou seja, aqueles que o falante admite abertamente como seus principais parceiros de interacdo; — € 08 destinatirios indiretos (ou “laterais”). Nas conversagdes com dois participantes, 0 nao falante corresponde necessariamente ao alocutario (ha um tinico destinatario direto e nao hé destinatdrio indireto presente), Mas, a situacéio é mais complexa nos “tridlogos” (e a fortiori nos “polidlogos”), jé que pode- ‘mos ter os trés esquemas seguintes: F, > Frralocutétio direto * Fy alocutério indireto F, —— Falocutsrio direto * Fralocutério indireto F, —> F, + Fz hd enderecamento coletivo © conTexTo 29 e O destinatario direto pode ser identifi- cado a partir de certo niimero de in ces de alocugao produzidos pelo falante gue sao de natuteza verbal ou nao verbal. Indices verbais: termo de tratamento ou se- quéncia metacomunicativa que define a iden- tidade do destinatério direto (“Diga-me, Pedro, o que vocé acha disso?”); esses marcadores s40 claros, mas estio longe de ser sistematicos. Indices no verbais: orientacdo do corpo € diregdo do olhar. Goffman chega até mesmo a definir 0 alocutario como “aquele para 0 qual 0 falante dirige sua atenedo visual”, esses marca- dores esto, com efeito, constantemente presen- tes nas interagdes orais, mas esto longe de ser sempre claros. Assim, 0 olhar é um dado emi- nentemente flexivel: ele pode se deslocar de uma_ ‘pessoa para outra sem que isso corresponda ne- cessariamente a uma mudanca de alocutério (em todo caso, o falante nunca deixa de olhar, ao menos, intermitentemente, para seu destinaté- tio direto). Portanto, nem sempre é possivel dis- tinguir claramente destinatario direto e indire- to: em ver de opé-los radicalmente, é frequen- temente preferivel falar de destinatario pri- vilegiado vs. secundario (hierarquia eviden- temente mével no curso de wma mesma conver- sago e até mesmo de um tinico turno de fala). ¢. O “tropo comunicacional” A determinagio do alocutério complica-se ainda pelo fato de nem sempre ser possivel confiar nos indi- 30 ANALISE DA CONVERSAGRO: PRINGIPIOS € METODOS ces de alocugio: um alocutario pode esconder um outro; ou seja, pode ocorrer que o destinatirio “cer- to” nao seja aquele que os marcadores utilizados para esse fim selecionam, assim como o observa, em varios lugares, o narrador de Em busca do tempo perdido: Abt! disse ele, em esclarecer a quem se diriia, paraser owvido, a0 mesmo tempo, por Madame de Saini-Euverte, a quem ele falava, e por Madame de Laumes, para quem falava [...) Oducado de Aumale pertenceu por muito tempo & nossa famt- lia, antes de entrar para acasa de Franca, explicava osenhor de Charlus ao senhor de Camibremer, diante de Morel embashaca- doe a quem, na verdade, toda essa dissertagio era, se niio dirigida, 20 menos destinada. Gostei de ter-Ihe dito, dirigindo-me, todavia, pata tanto, a sua sogea, como quando, no bilhar, para atingir uma bola, joga-se de vis, que Chopin, antes de sair de moda, era omsico preferido de Debussy. Ou ainda na famosa tirada antifeminista de As sabi- chonas (ato I, cena VII): “Estou falando com vocé, minha irma”, repete Crisale, alids, com uma insisténcia um tan- to suspeita; mas tudo leva a crer que, de fato, é a sua esposa Filaminta, que, inclusive, sabe perfeitamente a quem 0 discurso se destina, porque ele “visa” bem mais diretamente a ela que a pobre Belisa. O esquema interlo- cutivo é, portanto, nessa ocasiao, o seguinte: — aparentemente: destinatdrio direto = Belisa / destinatario indireto = Filaminta; —na realidade: destinatério principal = Filaminta / destinatério secundério = Belisa. Esse estratagema enunciativo (a0 qual chamamos de tropo comunicacional) esté amplamente atesta- do, tanto na vida como no teatro. Acrescentemos que, (9 CONTEXTO 7 nesse tiltimo caso, 0 tropo é utilizado, por vezes (assim como no exemplo anterior), pelas personagens que se falam entre si; mas o 6, de mancira mais constante, num nivel bastante distinto de comunicacao, o da re- lacio personagem/publico. No teatro, com efeito: © aparentemente: as personagens se dirigem as personagens por meio de atores interpos- tos, sem que 0 ptiblico tenha para elas forma alguma de existéncia (trata-se de um “espidio” que “surpreende” um discurso que, em prin- cipio, nao lhe é dirigido); [ © mas, na realidade: é exatamente a esse pii- blico que o discurso se destina, em ultima e principal instancia — assim, o texto teatral funciona, na sua globalidade, ao modo do tropo comunicacional. A mesma anélise pode ser feita em alguns tipos de interacées nao ficcionais, como as entrevistas ou debates midiaticos, nos quais os participantes fingem estar falando exclusivamente entre si, quando nos é permitido pensar que é, antes de tudo, aos ouvintes que visa o discurso que se constréi no esttidio. Conclusao: a configuracaéo do formate de recep- sao é, a0 mesmo tempo, fltrida (porque as fronteiras que separam as diferentes categorias de receptores nao sdo nitidas) e flutuante (porque o estatuto interlocu- tivo dos participantes ndo para de se modificar ao lon- g0 do desenvolvimento da interagao). d. Os papéisinteracionais Se os papéis interlocutivos (do falante vs, des- tinatério, direto ou indireto) sao, por definigao, mé-

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