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Nota do Editor Esta edigdo , a * em lingua portuguesa, actualisa a grafia dos nomes, das designagdes e expresses em lingua nacional kimbundu, conformando-a com as normas linguisticas africanas vigentes. Por exemplo, 0 nome da autora passou a grafarse Dya Kasembe, com “y” entre 0 “D” ¢ o “a” e apenas um “s” no lugar de dois em Kasembe. © mesmo ocorre com o topénimo Kisama e demais termos ¢ ou expressées kimbundu. As Mulheres Honradas e Insubmissas de Angola Esta publicacdo também foi possivel gragas ‘a0 patrocinio parcial da ONG - ADMA ~ Assoclacdo para 0 Desenvolvimento da Muther Angolana, presidida pela Dr° Alzira Ficha Técnica As Mulheres honradas e Insubmissas de Angola Autora: Dya Kasembe Titulo original do francés: Angola, femmes sacrées, insoumises et "rebelles” Traducdo: Amélia de Fatima Cardoso Reviso: Artindo Isabel e Anténio Setas Outras Tradueées: Inglés e Naliano @ Dya Kasembe /Editorial Nzila, L.da, Luanda ~ 2005 Eddigdo: Editorial Nzila Rua Ndunduma n.° 308 ~ apto 2 r/c ~ Sao Paulo / Luanda Caixa Postal n° 3462 ~ Luanda ‘Telefax: 244 222 43 07 31 / E-mail: nzila@ebonetnet Colecedo: Ensaio ~ 26 Mustragdo da Capa: Imbondeiro da Kisama Foto de Eddy Brock Impressio e Acabamento: Offset Rua NGola Kilwanji, 178 Tiragem: 1 000 exemplares 1.* edigdo: Luanda, Agosto de 2005 Depésito Legal n.° 2735/05 ISBN 972-8950-00-4 Reservados todos os direitos em lingua portuguesa. ‘Nenhuma parte desta publicagfo, incluindo a capa, poe set ‘eproduzids, armazenada ou transmitida, de maneira alguma ou Por qualquer meio, seja electrénico, quimico, de gravapa0 ou de forocdpia, sem permissio prévia do editor. Dya Kasembe As Mulheres Honradas e Insubmissas de Angola Nzila Coleesao: Ensaio - 26 ‘Agosto, 2005 Luanda Ficha Técnica AAs Mulheres honradas e Insubmissas de Angola Autora: Dya Kasembe Titulo original do franeés: Angola, femmes sacrées, insoumises-et “rebelles Traducdo: Amélia de Fatima Cardoso Revisii; Arlindo Isabel e Anténio Setas Outras Tradugdes: Inglés ¢ Italiano @ Dya Kasombe /Editorial Nzila, Lda, Luanda ~ 2005 Edigdo: Editorial Nzila Rua Ndunduma n.° 308 ~ apto 2 r/c — Sao Paulo / Luanda Caixa Postal n.° 3462 ~ Luanda ‘Telefax: 244 222 43 07 31 / E-mail: nzila@ebonet.net Colecedio: Ensaio — 26 | Hustragao da Capa: Imbondeiro da Kisame | Foto de Eddy Brock Impressdo e Acabamento: Offset Rua NGola Kiluanji, 178 Tiragem: 1 000 exemplares 1."edigéo: Luanda, Agosto de 2005 Depésito Legal n.° 2735/05 ISBN 972-8950-00-4 Reservados todos os direitos em lingua portuguesa, Nenhuma parte desta publicagdo, ineluindo a capa, pdoe ser reproduzida, armazenada ou transmitida, de maneira alguma ou por qualquer meio, seja electrénico, quimico, de gravagio ou de fotocépia, sem permissao prévia do editor. Dya Kasembe As Mulheres Honradas e Insubmissas de Angola Editorial bk Nzila Cates: Ensaio - 25 ‘Agosto, 2005 sada oa Dedicatéria A Fabiana Dya Kasembe Rosa Trigo Maria Kambundu ‘Vavo Luzia Madalena Matoso Antonica Matoso Que me educaram e sem elas este livro nfo seria possivel Dya Kasembe 1496 a 1961 a 1974 - 1975 - 1975— 1979 — 1991 — 1992 - 1992 — 1994 — 2002 — 2002 — Algumas datas 1975 ~ Angola esté sob dominagao portuguesa 1974 ~ Ultima revolta do povo contra o colonialismo Fim da Guerra Colonial 11 de Novembro ~ Independéncia Nacional Inicio da primeira Guerra Civ 10 de Setembro — Morte do primeiro Presidente de Angola, Dr. Antonio Agostinho Neto (1922-1979) Fim do regime monopartidario Inicio do Processo de Democratizagio 29-30 de Setembro ~ Primeiras Eleigdes Gerais Legislativas ¢ Presidenciais Outubro ~ Inicio da Segunda Guerra Civil 20 de Novembro ~ Assinatura dos Acordos de Lusaka, Zambia, entre 0 Governo ea UNITA Inicio da Terceira Guerra Civil 22 de Fevereiro — Morte de Jonas Malheiro Sidénio Savimbi, lider rebelde da UNITA 4 de Abril — Assinatura dos Acordos de Paz, precedidos dos entendimentos do Lwena, Moxico, Fim da 3 Guerra Civil. INDICE Nota da autora eo 1s Prefaicio 19 INTRODUGAO ........ 0505s cece eee 2 PRIMEIRA PARTE, 0 QUE FICOU NA MEMORIA COLECTIVA Kisama eee ca 2 AMULHER - segundo a visio de Kasembe AMulher grivida Paice 30 Parto Normal ~ Parto dificil. : 3 ‘A Crianga iluminada do Sacro-Magistal 34 © POS - PARTO Os rituais depois do partum ......... 37 Creneas e Simbolismo —o ritual ........222++ 37 Explicagdo do ritual do Cordao 38 Olbebs Sete eee aeieeeee 39 OS CUIDADOS A TER COM 0 RECEM NASCIDO O bebé e 0 calendatio do tempo ......... 40 Cuidados especificos 40 OS CUIDADOS COM A MULHER DEPOIS DO PARTO Os banhos ... 2 O Desmamamento . 42 AINFACIA DA RAPARIGUINHA J Mulher DAPUBERDADE A IDADE ADULTA A Puberdade O Ritual que marca & Puberdade . A Visita na Tua cheia Kizombas e kuswingilas © Alambamento A Ceriménia do Casamento ANOVA ESPOSA NO LAR POLIGAMO © Quotidiano na corte do poligamo Diserigao da dibata 0 Marido .. a Os ‘ilhos no lat Poligamo A Monogemia . ‘A Viuvez e as regras a respeitar . + ‘A Heranga ORGANIZACAO SOCIAL, A Nanda (circuto dos Sabios) Condigdes de Admissao no Nganda AS MULHERES ‘A Mulher Sagrada A Mulher Rebelde A Mulher Estéril A Mulher iluminada SEGUNDA PARTE (1961 -1975) AMISSAO CIVILIZADORA A Aculturagaio 45 7 60. 61 62 63 64 65 65 68. n 4 80 MUXIMA © que ficou na meméria da Fabiana (Ntonga) ..... 83 A Catedral da Muxima ... 87 ‘As Devotas .. : rete tad 89 Madame Corina e o seu “maximbombo” 91 © SUCESSO DA ACULTURACAO Morrer para renascer .......66ceceereeees 92 AESCOLARIZACAO DA RAPARIGA INDIGENA 0 Papel de Igreja Catdtica na edueagio ....... 103 A Situaea0 Social. los Porfil tipo do amante branco 104 MULHERES DE VILA ANTES DA INDEPENDENCIA Concubina do Mestre para o mal ¢ 0 pior 107 Mulher de Ningoém 2.000... ..ccccceeeeseee 108 © Homem da casa . ul Eas Criangas nesse meio. i 112 As mulheres da Igreja Protestante et 112 AMulher Tradicional que resistiu........ 113 ‘A Muther Liberal 14 ‘A Muther Camponesa 116 ‘TERCEIRA PARTE (De 1975...) AS AQUISICOES DA MISSAO CIVILIZADORA ‘Vertigens da Liberdade eet 123 ‘A Familia da Missio Civilizadora oe 123 CIDADAOS POLITICAMENTE CORRECTOS A vertigem do poder e 0 MIFI 127 © Homem é um ser politico «5.2.6... 128 Viver hoje porque amanhl ...........ceeeeeee 129 DIGNOS CIVILIZADOS Elites do desespero . 0s Candogueiros Cuidado, Ble é General ‘| Mex Cooperante 0 quanto te amo. Mutheres com pasta sem podetes CONCLUSAO... 131 131 132 132 133 137 NOTA DA AUTORA Esta obra teve como base 0s ditos e feitos da tradigao oral, da meméria colectiva, acima de tudo, o testemunho das velhas personalidades cujos nomes figuram na primeira pagina deste modesto trabalho. ‘Agradeco infinitamente a colaboragio prestada. Baseei-me também na observagio de gestos que se repetem de uma forma arbitriria, maquinalmente, ¢ que séo a tinica heranga de um passado remoto. Quase toda Africa negra e muito em particular Angola viu o essencial das suas tradigdes e a sua propria histéria traidas por falta de uma escrita ¢ linguagem concertada. Quero dizer com isso, que os angolanos, eles proprios nunca tiveram a ocasito de contar e escrever a sua vertladeira historia, sem que Ihes fosse imposto pensadores europeus, ou a consulta das suas obras ou enttio escrever sob a sua protecgdo literdria sendo ele o manipulador da lingua no qual o verdadeiro autor iria se exprimit. Ora, muitas vezes, esses europeus tinham uma visdo e uma interpretacdo diferentes do que 0 autor queteria exprimir. A tradugdo dos feitos da nossa lingua matema para as linguas adquiridas, é tragica. E para agravar ainda mais, vém juntar-se & deformagdo das tradugdes, 0 aculturismo e 0 mimetismo. Por isso mesmo, é que devemos reestruturar 0 nosso pensamento € restabelecet a verdadeira histéria do nosso pasado. Relembremo-nos, que 0s primeiros invasores da nossa cultura nio falavam a nossa lingua e se a falassem, a interpretagao que davam do assunto a tratar era marcadamente dirigida © tendenciosamente distorcida. Do nosso lado nés também no dominavamos © pensamento europeu de modo a traduzir correctamente 0 nosso pensamento e relevar as nossas ideias. E 16 ‘Dya Kaserbe foi por isso que nds ingressamos na via do mimetismo, o que era quase normal para um povo dominado e sem escrita. Mas hoje que Angola esti independente, cabe-nos 0 inegavel direito de restaurar de forma incisiva a nossa identidade histirica e cultural, fundada na honestidade intelectual de por em vida e de contestar para corrigir 0 que erradamente foi escrito para que 0 mundo saiba, 0 que fomos, 0 que somos € deduzir 0 que seremos ou em vias de ser. Houve muito poucos curopeus que tendo frequentado a Afrca se tenham impregnado da sua alma para poderem traduzir a realidade dos nossos paises. Isto porque a prioridade era dominar, empobrecer o dominado em todas as suas faculdades intelectuais e materiais, Infelizmente essa estratégia teve sucesso com a nossa colaboragao — nds os colonizados. Aqueles que pretendiam ter uma alma nobre subtraindo-se da maioria dominadora, foram muitas vezes ignorados, marginalizados em favor de certos aventureiros, ditos historiadores, mas que no fundo eram simplesmente amadores de exotismo, folclore e safari. Ou 0 exotismo num quadto luxwoso. No caso de Angola, a igndrdncia do povo portugués conjugava com 0 nosso iletrismo; de um lado Portugal pais subdesenvolvido mas apresemtado a0 indigena iletrado como desenvolvido, do outto, 0 indigena fortemente assimilado que defendia a aculturagao. Portugal emerge do seu obscurantismo com as tltimas independéncias das suas colénias em Africa. ‘Mesmo assim, em 1980 a maioria dos europeus desconheciam a situagio demogréfica de Angola. Interessava-lhes mais ouvir falar da guerra e de Savimbi, dos diamantes e do petréleo. O seu pow ndo existia. As obras que se aproximam da verdadeira histéria de Angola € dos angolanos, como os livros de René Pelissier, t8m uma audiéncia quase nula em Angola ¢ os proprios angolanos, ndo sentem a necessidade de saber algo mais que os dites dos seus dominadores. ‘Nao tenho nenhuma pretensio de assumir o fardo histérico de restabelecer a verdade. Eu pretendo simplesmente exprimir numa tinica pagina, 0 que os historiadores tero de investigat. Dya Kasembe PREFACIO A autora e eu mesma somos duas avés. Digamos que somos duas avés que muito andémos e que partindo de dois lugares diferentes sobre os caminhos da mestigagem cultural encontrimo-nos nesta obra. Que alegria! ouso_exclamar! Mesmo se entre nés hé muita diferenga, a verdade & que. vivemos os mesmos, eventos, saltando 0 muro do convento € encarando os mesmos obsticulos do anti-feminismo. Enfim, eis- ros aqui diante da complexidade da vida num pais que se diz “civilizado”, trazendo nas nossas bagagens um grande € fervoroso desejo de Africa, ‘Ao ler estas paginas da obra da autora, eu revivi aquelas paisagens africanas e em especial as de Guiné-Bissau, compreendendo melhor as suas mensagens por vezes camufladas, © um desejo insacidvel apoderou-se de mim, dando-me a dnsia de as rever... ! Perdoem a minha emogdo ‘vamos todas juntas analisarmos as muitas mensagens da autora. ‘As mulheres sagradas de Angola encontraram felizmente uma das suas netas para levantar o véu que pesava sobre 0 templo do saber, fruto de um dever filial. Nés temos aqui um testemunho tinico no género: 0 de uma mulher iniciada nos costumes tradicionais do seu meio materno, para depois ser escolarizada nos meios ocidentais ¢ de alienago; uma mulher & demais angolana cuja coragem de nos ter revelado todos esses mistérios, deve ser louvada. Este livro € também uma ironia, gritos e dentadas impiedosas de alguém que sabe observar e compreender. Sabem 0 que € o despertar de uma consciéncia feminina? E uma raiva legitima, profunda e violenta. E uma raiva que nos interpela a eo 18 oyaxwonte todas e cuja propagacao é incontrolivel. Nao se pode impedir uma forga vital que nos conduz além do pensamento humano que nos prepara & vida planetéria que se transmite ds geragdes funuras de se abafar ou de se calar. | Mas 0 mais importante nesta obra ¢ a tomada de consciéneia da autora, que jd se manifestara com sucesso no livro precedente, intitulado Angola 20 anos guerra civil, uma ‘mulher acusa. Ela nos convida a todas ¢ a todos de termos a coragem de defender a razio, denuneiar a injustiga, propor solugdes e difundir a verdade seja quais forem os meios, No caso da autora ela utiliza a escrita que & a via mais implacavel, néo acham? | ‘Anne Marie Hochet dune Marie Hocker, francesa Soci-enroploga I cspeilzada em projets de desenvolvimento em Afton, + anor de vires obras Tris, Jen niente: Les mesceaie tu Developement te Crpusete diag, mthaage, et (titulo original: FLOR MORENA) Nasei do hémus virgem das profundezas da terra tenho a idade do mundo bem registada bem marcada, no calendério do tempo... Depois. ampliei-me, pluralizei-me, ramifiquei-me; 05 meus bragos famintos do além, apontaram para o céu. Mas... eu sou da terra, bem da terra! €.0 meu corpo, harmonioso e ritmico, nfo abandonou 0 mundo. Volto & terra me ... floriu! Floriu no esplendor dos meus olhos cheios de mistério, a desafiarem os astros floriu nos meus seios, ‘timidos de promessas a garantirem a vida Floriu na minha boca, ardente de desejos a prometer Amor! E foi assim que por deereto do Senhor nasceu de mim a Flor Flor Morena Poema escrito pelo Dr. Mourdo Correia, que fol professor de flosofta de Amélia de Fétima Cardoso, allis DYA KASEMBE, Professor ¢ aluna viveram uma paicio platénica que durou wirios anos. INTRODUCAO Eu acabava de desembarcar num mato modemo em bet, asfaltado e cimentado, vindo de-um mato natural ¢ quente, onde animais e homens viviam em perfeita harmonia. No meu mato tropical, a chuva, 0 sol e o tempo so ainda hoje os ingredientes naturais, devidamente equitéveis: os dias tm mesmo vinte ¢. quatro horas divididos de forma igual entre o dia © a noite. As stages do ano siio mesmo duas, a estago quente que traz as chuvas, ¢ @ estagdo seca (cacimbu ou Kassimbu). E, seguindo este ritmo, a fauna incluindo 0 homem, e a flora, nascem, ‘erescem e morrem. Um escritor da Guinée de nome CAMARA LAYE, no seu ro intitulado O Menino Preto, dé-nos mais ou menos ¢ padrao de todos os meninos pretos sob a colonizagtio. Nos veremos aqui no que se transformaram as meninas pretas vindas do mato em busca de uma vida melhor nas cidades. Veremos de que maneira ficaram elas estagnadas nas periferias das vilas encantadorés, perdendo as raizes que jé cresceram no vento. Esse menino preto de Camara... tem a haver com quase todos os meninos pretos espalhados pelo mundo fora, apesar das nomenclaturas de racializagdo entre bochimanos, pigmeus, bantu, peuls, etc...; algo de mais profundo nos une, tirando a cor da pele. Nés fomos hé muito, rejeitados das entranhas do universo mas com um tinico cordio umbilical: AFRIKA. 'N6s estamos a ser vornitados das entranhas do mundo que se diz civilizado para depois sermos enterrados em nenhuma parte. Os outros fazem a sua histéria espelhando-se num passado. N6s preferimos rejeitar 0 nosso que ficou pendurado no vento. 22 dyakasemde Com um passado que quase ndo existe, um futuro comprometido, andémos por este mundo dando a aparéncia de gente equilibrada e indiferente aos acontecimentos mesmo quando nos dizem respeit. Nesta obra, eu. vou retragar 0 percurso da mulher angolana que mesmo sendo africana perdeu quase tudo ou mesmo tudo da sua propria historia. Nés sofremos quinhentos anos de uma educagdo evangelizada, sem contudo apagar da meméria colectiva, a nogao de Kimbanda Muloji, Mukiche, Wanga... e outras tradigdes sagradas, omnipotentes © ‘ommnipresentes nos nossos usos e costumes, e esas crengas quase que guiam o nosso viver. Assim sendo, mesmo frequentando as igrejas vindas do além, fica-nos no mais fundo interior um vazio que s6 se pode preencher com as nossas réprias croneas, ‘és vamos pois, sulear nas sendas dessa mulher angolana de outros tempos fazé-la emergir do passado, para atingir 0 homem dito “instruido”, que evoluiu no mundo modemno sem se aperceber 0 quanto ela jé estava uistanciada, Tomarei como exemplo a regido de Kasembe que noutras tempos, ¢ talvez.seja pretensdo da minha parte, mas justificada, foi a capital dos reinados da KISAMA. Em homenagem aos descendentes directos: KALEMBE KASEMBE, falecida em 2002 com mais de 100 anos; NIVA KASEMBE, falecida em 1989 e NTONGA, KASEMBE, falecida em 1995; BANDA KASEMBE, morto pelos portugueses em 1946, porque intitulava-se rei e nao queria coder as suas terras Os cscravagistas decidiram que KISAMA seria nada menos que uma reserva de animais para cagadores, Toda a histbria foi reduzida a cinza, Nada ficou escrito, ¢ a sua hist6ria seria ja uma lenda, se no houvesse descendentes. O que vou relatar nesta minuciosa obra, foi-me transmitido pelas préprias herdeiras € os préximos que viveram os acontecimentos, sobretudo pela Ntonga que assumiu o papel de “Soba” nas liltimas décadas depois da morte de seu pai, ele-proprio NGANA BANDA DYA KASEMBE. As velhas que me iniciaram legaram-me a salvaguatda do reino contra todos os 23 As Mutheres Honradas e Insubmissus de Angola contratempos da missio civilizadora, Farei os possiveis de narrar fielmente o que me confiaram, mesmo sendo a minha educago j& perturbada entre os incensos de Roma Catélica cantando HOSSANA! HOSSANA! GLORIA A DEUS NAS ALTURAS, por outro lado aprendi no geniceu da minha av6, conjurando o destino evocando: ALUKENO ABICHILA KIA ALO TAMBULA.... Além do mais, também fui iniciada na escola mundana pelas tias, tios, pelos mais velhos que me iam incumbindo a wiissao dificil de proteger as geragdes vindouras. , € nesse geniceu, que se aprende que a terra é fémea e, como fémea ela pare fémeas. Por isso, em Kasembe 0 nascimento de uma crianga do sexo feminino é uma bengao ¢ uma semente para a terra, Os rituais si pomposos, porque enquanto howver, mulheres o mundo continuaré a existir; é ela que pare 0 mundo. A tiltima parte desta obra seré consagrada a descoberta de outras mulheres angolanas depois da minha iniciagdo no mundo que se diz civilizado. Essa iniciagdo permitiu-me colher elementos impressionantes que confirmam que quando uma mulher se enaltece, o homem recua. Este modesto complemento histérico, foi classificado como uma obra sociolégica, 0 que no corresponde com a minha intengo priméria; sendo eu poetiza antes de tudo, quis simplesmente recitar para transmitir 0 que me foi legado. PRIMEIRA PARTE O QUE FICOU NA MEMORIA COLECTIVA Vgana Nfwvana Nronga Banda dya Sembe (Fabiana), herdeira do Reino da Kisama. Faleceu em Maio de 1995 I, KISAMA Sobados da Kisama € 0 nome histético dado pelos portugueses ¢ que designa o conjunto dos pequenos reinados. Os franceses chamayam de “roitelets” (micto-teinados), com um ‘certo menosprezo para com os Estados e Reinos indigenas. Os Estados da KISAMA, estendiam-se entre o litora! sul eo centro, de Angola de hoje. Tudo se perdeu no tempo, porque, desses reinados nada ficou escrito. O nome do Soba Grande de Kassembe nao figura em nenhuma parte. E, portanto, foi o rebelde mais acérrimo contra os portugueses. Mataram-no € © seu nome também. Ninguém dessa regio podia pretender chamar-se Kasembe ou simplesmente descendente de Kasembe, razo pela qual os sobreviventes desse reinado nunca tiveram nenhum papel de identificaggo. KALEMBE e NTONGA, sé foram identificadas depois de 1975, isto é, depois da independéneia de Angola. NIVA, morreu no anonimato total. Mas a minoria letrada, que andow nos liceus ¢ que fez 0 sétimo ano ou 0 quinto ano, pode hoje dizer que sabia ou que estudou a histéria de Angola? E, o que teria Portugal a esconder, para no divulgar aos indigenas a historia dos seus reinados? Pois, ninguém ja se lembra que até 1975 vésperas da nossa independéncia, nada se sabia da nossa propria hist6ria. Mas sabjamos éramos obrigados saber até sobre o clima da Europa, os “polders” da Holanda, os Alpes Sulgos, 0 macigo central da Franga, ¢ toda a historia do “nosso querido Portugal do aguém e além mar em Africa?” Durante quase cinco séculos foi-nos proibido saber o que éramos, ¢ 0 que fomos, O nosso quotidiano cra este: “Come, Cala-te. Nao olhes para trés nem para frente ‘mas sim para o chéo”. Os rebeldes morreram ou deixaram 28 dyaKasenbe Angola. Outros corajosos pegaram em armas & muitos deles Imorreram nas matas, A maioria como eu continua a ser humithada e ofendida, mas ficou. Porque alguém tinha que ficar, alguém tinha que garanti o lugar do indigena, t ‘Vamos agora orientar 0 leitor (a), para uma compreensio correcta do que foi a KISAMA. Hoje diz-se de uma mancira ligeira: SOBADOS DA KISAMA. Teoricamente. Porque na realidade, nfo existem provas concretas nem pesquisas sérias sobre esses Estados. Nés fizemos a reconstituisa0 dequilo que orelmente nos foi transmitido. Este temo de sobados da Kisauma, dito até com um certo menosprezo pelos portugueses, nao encontra, ou seja no tem nenhum valor histérico para com (8 indigenas. Assim como os sobas de hoje que nfo tém nada de comum com os de autrora. Os verdadeiros descendentes chemavam esses sobas de “mulekes", fabricados pelo branco. © que muitos de nés nao sabiam, é que antes da chegada dos portugueses, j& nés andévamos em contlitos comerciais com © Médio Oriente. J& softiamos a invastio dos érabes. E, plas nossas relagBes com esses powos orientais, muito antes dos I Portugueses e outros ocidentais, a comparagio que podemos fazer dos nossos reinados que vao do DONDO ao SUMBE (ex- NOVO REDONDO — notar a semethanea entre Dondo Redondo) ~, obedecia aos mesmos critérios de organizegio do que hoje se chama “EMIRATO". Hoje diz-se principe emirato, © que quer dizer sobs. Um principe arabe é um soba. Ele reina sobre um Emirato, Portanto, os Emiratos da Kisama, eram Estados independentes, cada um com o seu principe. Nao é por nada — e | isto veremos mais adiante ~, que 0s portugueses, construlram a sua fortaleza ¢ a catedral de Muxima. Esses emiratos da Kisama, falavam uma lingua entre Kimbundu e as linguas do Sul de Angola. Esses Estados foram simplesmente banidos da historia de Angola. E 0s historiadores angolanos nao possuem uma base de pesquisa. Da regio do Dondo, passando por Kandanje, Kasembe, Kamenha, Kaxarandanda, (0 K traduz unidade-singular, porque 0s dsscendentes dizem simplesmente Sembe, Dange, Amenha, As MaleresHonreéas ensubmisos de Angola — 29 Axarandanda), chegando & regiio de Mumbondu, Lwuandu, Kafuchi Muxima e por af fora, esses Estados foram confiscados ‘0s herdeiros, ¢ muitos deles ainda esto vivos. Do rio Longa que, atravessa Kadé, enfim, hi muito que desvendar de tudo quanto os portugueses destruiram e esconderam. Mas, deixemos essa parte da historia para os pesquisadores. Aqui estamos na transmissio oral com algumas falhas de meméria colectiva. E é sobre a mulher que vamos falar. Os Estados da Kisama, pertenciam aos ambundu e aos ovimbundy, © da fusdo do kimbundu e umbundu deu a resultante que se chama Dihungu. No fundo é um kimbundu misturado com outras linguas de quase toda Angola, porque nesta lingua estio ineluidas palavras que vio do Kikongo ao SWAILI. Esses Estados tinham uma particularidade comum: todos rebeldes contra o rei do Kongo, a quem eles _negavam pagar impostos. A chegada dos portugueses foi fatal para eles, porque o reino do Kongo ligou-se com os portugueses. Depois de terem conquistado esses pequenos reinados submetendo-os @ escravidio, apagaram na histéria @ sua existéncia. Kasembe que foi o Estado-mie nem jé figura no mapa ordinario. Kasembe foi um dos Estados (emiratos) da Kisama, e € nessa regio que a memoria colectiva ainda vivente vai-nos elucidar, nao sobre tudo 0 que desejariamos saber, mas sobre o essencial para entrarmos no limiar da historia, A rendigdo total de Kasembe s6 teve lugar depois de 1961, com a imposigZo da missio civilizadora em todo 0 territério para melhor control dos ditos terroristas (UNITA, FNLA e MPLA), que quetiam a independéncia de Angola. 2.4 MULHER — segundo a visio de Kasembe Os bantu de Kasembe definem a mulher da seguinte forma: a mulher é esséncia da vida. A mulher dé a luz 20 mundo. © povo de Kasembe, no seu coneeito filoséfico diz: A tetra dé sempre fémeas a mulher pariré o mundo, A mulher & um mundo de bem ¢ de mal. Bla é fémea sedutora, ela é mae protectora que traz no seu ventre o mundo, As suas delicias tanto podem salvar como matar... Nés retemos as que nos pareceram menos metafisicas, mas hd outras consideragdes sobre a mulher na filosofia dos Kasembes. [és relevamos algumas expresses que vao no mesmo sentido, como por exemplo: WANGA WA MWATU WIKI ~ 0 que quer dizer: 0 feitico de uma mulher tem sabor de mel. E diz-se ainda nessa tegido que “mais doce que a docura € o feitico de uma muiher”. Kasembe ¢ rica em adagios que se enquadram na vida quotidiana dos habitantes. E, & medida que as ocasides se apresentarem nés as citaremos jé traduzidas, porque a nossa escrita em kimbundu ainda esté por discutir pelos nossos linguistas. AMuther gravida A gravidez é 0 momento mégico de uma mulher. Durante a gestagao, ela ¢ intocdvel, consagrada, ela traz dentro de si o mundo, isto é: 0 ser humano. O espago das nove luas de gestagdio, cobria todo © mistério da natividade. A gravida era ultra protegida, dos maus olhares, das feitigarias, de criaturas, meléficas ¢ outras foryas intervenientes que pudessem perturbar uma gestagao sadia 31 ‘As Mutheres Honradas ¢ Ineubmissas de Angola ‘A mulher envolvida nesse ambiente tio cuidadoso tornava-se conscientemente num ser teivindicativo. Ela aproveitava durante as nove luas, para manipular tudo e todos & sua volta, com o fim de obter 0 que por vias normais, seria impossivel adquirir. Nessa fase, ela no podia ser contrariada, porque ha um ditado que diz: “ao desefo de uma mulher gravida, mesmo Deus cede”. E, porque a vida que ela traz dentro do seu ventre é uma didiva do Criador ¢ uma particula do mundo, por vezes em certas mulheres, essas exigéncias tomavam-se quase numa patologia préxima do sadismo, porque era para elas uma bela ‘casio para desforra, sobretudo aquelas que viviam em coabitago com outras mulheres rivais pertencendo ao mesmo marido ~ em poligamia. ‘Nesses lares de poligamos (veremos isto mais adiante), cada mulher esperava com ansiedade o momento da sua desforra pondo assim 0 marido numa situagdo de depresso constante, sobretudo para aqueles que possufam quatro a cinco mulheres. Nesse contexto 0 homem safa de uma depresstio para entrar noutra, porque havia sempre uma gravi ‘Mas para a mulher esse era o melhor momento na sua vida de mulher. Ela exigia; ¢ a sua altivez estava no limite da arrogiincia, E todos & volta dela tinham de ser cautelosos porque ha um adégio que diz: “livra-te Deus da praga de uma mulher gravida” E se, por exemplo, ela decidisse que durante as nove luas as outras esposas deveriam absterem-se sexualmente, a cléusula era respeitada. Depois do parto havi 0 periodo do aleitamento que durava vinte e quatro luas. Nessa fase as condigdes eram outras, mas, dado adagio que diz: “a praga de uma mulher que amamenta cai-te em cima para todo o sempre”, o matido fazia muita atengdo. Como {id dissemos, as rivalidades entre elas néo favoreciam um ambiente ‘equilibrado; clas tomavam-se como as viboras que despejam todo ‘0 seu veneno no marido. Veremos mais adiante, © controlo da gravidez era feito por matronas com vasta experigncia no dominio, e conhecidas em toda a regio. Bram parteiras tradicionais a quem nada escapava. Durante as 32 ‘Dya Kasembe consultas clinicas, apenas observando o ventre sem tocar, elas davam a idade exacta do feto, as extremidades dos dedos das ios, a cor das unhas, 0 andar da grivida, a tez da pele, 0 comportamento incluindo as suas exigéncias. Todos esses elementos observados minuciosamente, dava-lhes informagies, sobre 0 sexo do bebé, a sua posigao no ventre ¢ data exacta do parto. Elas davam também 0 diagnéstico dos partos dificeis (vamos abordar este assunto mais adiante). Em Kasembe, uma mulher grivida era da respon- sabilidade da comunidade inteira, Todas as mulheres sentiam- se envolvidas, et toda a Sanzala na ansiedade do evento. Todos os habitantes dedicavam & paciente muitos cuidados. Mesmo as rapariguinhas ainda criangas longe da puberdade, ja se sentiam também implicados no caso, Contrariamente aos outros povos que por pudor exiremo, escondem as eriangas o segredo da maternidade, aqui em Kasembe desde a tenra idade a crianea é preparada para ser me e para um dia encarar uma relagéo sexual. As criangas de Kasembe sabem como se fazem os bebés © sabem tudo sobre 0 sexo oposto. Nao existe histérias de cegonhas, nem outras lendas sobre a vida sexual. Por esta razéo a gravida era rodeada ¢ 0 seu feto fazia jé parte integrante da comunidade. Toda a gente conversava com o ventre da gravida. Por exemplo, quando se cruzava uma mulher conccbida, as primeiras saudagdes iam para o ventré: “entdo como estd ele ou ela, esta se portando bem para com a mée?”... Cada um dizia © que queria no bom sentido. A velha parteira tradicional fard algamas recomendagées, & dard alguns conselhos restritos, sobre a alimentago, Por exemplo, o bagre era proibido durante toda a gravidez ¢ durante as vinte e quatro luas do aleitamento. A came de caga, sobretudo 0 javali, aves e certos peixes sem escamas. Fazia parte das recomendagdes a interdigio de tomar banho no tio e nas lagoas. Ao atravessar o cruzamento dos caminhos a mulher concebida deveria fazer oferendas, porque nos passeiam nesses sitios e é ai onde eles esperam as suas vitimas, O trabalho nas lavras era interrompido. As imagens que se véen normalmente de mulheres gravidas com fardos & cabega 33, As Mulleres Howradas ¢Insubmissas de Angola ou sobre 0 dorso, datam da era da escravatura, em que 03 homens eram apanhados e deportados e muitas mulheres tinham de assumir, 563 0 sustento dos seus lates. O Parto normal Passadas as nove luas chega o momento do parto. Ela vai portanto parir_o mundo, Um evento importante que vai alyorogar toda a comunidade. A familia préxima tem 05 nervos 4 flor da pele, e volta da parturiente, todo 0 mundo se agita com os preparativos. A parteira esta presente ¢ ¢ ela que vai ‘orquestrar 0 trabalho. A serenidade dela ou o comportamento da agitagao da parteira identificard o desentolamento da facilidade ou dificuldade do parto. O evento passa-se normalmente nit residéncia dos pafs da parturiente. No quarto do parto sé estario presentes a avé materna, ¢ a parteira com a sua assistente, quando 0 parto € normal. Parto Dificit A inguietude 1é-se nos othos da parteita antes de comegar o trabalho. E, em colaborago com a familia pede-se apresenca dos sibios misticos da regio, irés no maximo, que gram acompanhados por uma crianga. A chegada dos misticos era segredo dos deuses. Ninguém deveria saber, se ndo seria, uma oportunidade para os espiritos perversos, aproveitarem- se da situago e atacar. Os curandeiros misticos e famosos eram alertados na véspera, depois do diagndstico da parteira aps uma reuniao de familia. Quando 0 parto se apresentava difieil era porque a descida do bebé pela via normal representava um perigo iminente. Ou porque o bebé em vez de tomar a posigo occipital, apresentava-se transversalmente, © que era menos grave, ou porque a anatomia pelviana da parturiente era muito estreita para permitir uma passagem normal. Estes casos to raros, eram atribuidos aos espiritos perversos. Eis a razo pela qual teriam de ser combatidos pelos espititos adversos | | 34 bya Kasembe Misticos, parteira e a sua ajudante, cada uma dessas figuras eram imprescindiveis. Contudo, a presenga dessa crianga, com menos de dez anos de idade, era 0 né vital nesse ‘momento metafisico, em que vida e morte se afrontavam de uma forma quase fatal. Todos os sentimentos habitam as entranhas dos presentes, numa cena trégica. No grupo dos icos, cada um tinha a sua especialidade: — hd o anatomista cirurgito, que vai confirmar o que {0 dito pela parteira, e, com o poder dos espiritos ira modificar a anatomia da bacia por uma cirurgia sem cicatriz, simplesinente manipulando com as suas mios, 0 esqueleto ¢ os érgios da mulher implicados no parto. ~ hao mistico interpretador dos espiritos e que num sacro magistral, vai comunicar com eles para transmitir as mensagens do além, Umas das mensagens, é ditigida a parturiente que apesar de estar jd a softer de dores insuportaveis, tem que obrigatoriamente responder és quest6es do mistico, E, @ questo primordial era: “tens animosidades com alguém”? © contexto do quadro, nao permitia erros nem mentiras; ela respondia com toda a sincetidade. Se a resposta fosse Positiva, @ pessoa ou as pessoas com quem ela teria tido diferendos, eram chamados, para ouvir da boca da parturiente o perddo ou 0 contrétio. Desse modo, os misticos poderiam prosseguir as invocagées. . Vamos descrever o papel da crianga que acompanha os misticos. A Crianca luminada do Sacro magistral __ Esta erianga que tem o delicado papel de impedir que os espititos entrem no quarto onde se passa o evento, ndo-é uma 35 As Matheres Honradas « Insubsisas de Angola crianga como outra qualquer; ¢, ela s6 esté presente entre os isticos em casos muito graves, como neste do parto dificil, ou em outras circunstincias, como por exemplo em julgamentos dificgis. Esta crianga pode ser do sexo feminino ou masculino. (0 que a elevava a esse estatuto ¢ a sua capacidade intelectual, Ela ¢ escolhida entre tantas outras pela sua maturidade precoce. Ela é iniciada e faz parte do circulo secreto ¢ sagrado dos misticos. Esse cfreulo, & diferente do que iremos descrever mai adiante que é uma assembleia a que nés chamamos aqui “Colégio dos Ancidios”. Neste cfrculo sagrado e secreto, a experiéneia ndo bastava. Era necessario possuir outros poderes que se manifestavam desde a tenra idade. Uma iluminagao espiritual que se elevava ao grau de vidente. Era preciso comegar a sua iniciagtio como a crianga aqui presente, que j4 nascera com um dom de andlise profundo das coisas. Essas criangas eram observadas, protegidas e iniciadas. ‘Uma erianga cuja maturidade, nao fosse compreendida por outras criangas do seu tempo, nao podia encontrar interesse nas brincadeiras nem nas conversas de criangas da sua idade. Por essa raza, ela era protegida ¢ iniciada. Nessa iniciagao cla encontrava 0 espairecimento moral ¢ intelectual de suas ideias. Ela sentia-se bem entre os mais velhos. ‘A sua presenga nesse quadro dramético do parto dificil servia para simbolizar a inocéncia ¢ 0 poder do bem contra 0 ‘mal. Um adégio popular da regio de Kasembe diz que “quem ‘mancha a inocéneia & banido da vida para todo o sempre ‘mesmo vivo e mais ainda depois de morto, porque a sua alma rodard no abismo” ‘Vamos personificar 0 ritual do que se passava no quarto dda parturiente: Normalmente a crianga ficava sentada atrés da porta, de costas viradas para a parturiente e para impedir de ver a nudez da mulher numa posigfo degradante. Os misticos vao pedir a crianga para se concentrar fechando os olhos. Nas maos uma corda cheia de nés que ela teré de desfazer a pedido de um dos FEE EEE _=—C CO $6 ace i risticos, um né por cada invocagao. Todas as invocagées sto | dirigidas a Deus todo poderoso através dos espititos. Cada | ristico fizz a sua invocagao a pedido do chefe deles, quer dizer, do espirito mais elevado que encama um deles. 0 mistico. cirurgiéo fica concentrado no ventre e trabalha com as méos sobre 0 ventre enquanto que todos eles tém os olhos fachados. ormalmente a fé e a manipulagao do ventre fazem com que as 3. O POS-PARTO coisas se passem da melhor forma possivel, salvaguardando as z duas vidas, 7 Aqui em Kasembe, tudo é regulado pela magia da vida | ‘Nunca houve livros nem escolas do Estado e muito menos ainda privadas, mas havia sabios diplomados nas. universidades naturais do géneto humano, Universidades seoretas onde a | sublimaséo ¢ 0 altruismo ndo eram s6 adjectivos ou palavras ‘omamentais, onde 0s espiritos elevados concebiam as leis, as regras ¢ estruturavam 0 pensamento segundo a evolugao dos tempos. Aqui em Kasembe, o saber nfo tinha outra alternativa para os que sabiam, 7 A vida era de uma importancia tal que se consagrava toda ‘ atengto até mesmo exagerada ao recém nascido para que a sua integrago no mundo fosse itil Os Rituais Depois do Parto Que o bebé nasa com ou sem pario dificil os rituais eram quase idénticos. Nos partos onde os misticos eram obrigados a intervir, havia um ritual altamente secreto, saido dos timulos seculares. Nés pedimos uma autorizagéo especial, para podermos revelar aqui neste modesto trabalho em que consistia esse ritual | Crenga e Simbolismo — O ritual Depois do bebé nascer a placenta ¢ o cordao umbilical so enterrados no local onde se passot © parto, isto é, na residén dos pais da mulher. Antes de enterrar a placenta, subtrai-se do cordio umbilical equivalente a dois ou trés centimetros, e com PEE EE EEE EE EEE EEE ee Eee re PEEP EE eEEeeerE EERE Eee er eeeerereeeerrerereereeeerereee 38 ‘Dya Kasembe esse pedago, vai-se encerrar o ritual; & que 0 pedacito retirado do cordao sera preparado e servido como refeigao aos misticos, excluindo a crianga. Depois enterrar-se- a panela que serviu para a preparago do pedacito do cordao com o resto e a placenta. Este ritual era muito secreto. Isto leva-nos & viajar no espago, numa outra cultura néio muito longe da nossa: trata-se de Madagiscar. Ai quando o jovem entra na puberdade ¢ faz a cireuncisio, o prepticio cortado, ¢ servido dentro de uma banana 0 chefe patriarca. E, além dos misticos, participardo nesse ritual os aves Paterno € matemno, mas, se no momento do parto os avés sao falecidos, entio tomardo parte 0s. parentes paternos e matemos mais préximos, A ingurgitagio ¢ feita com a ajuda de um grande copo de maluvo, extraida da palmeira apenas vinte e quatro horas antes. Explicagao do Ritual do Cordio... O significado desta ceia ficaré sempre no segredo dos deuses. Alguns anos depois, voltando as fontes, interrogimos certos sobreviventes do circulo sagrado e secteto ¢ puderam dar- ‘nos uma ideia légica desse mistério: 1 ~ Se um dos avds se sentisse mal ou enojado depois da ingestio de um milimetro desse corto, ou entéio se morresse trés Iuas depois da ingestio a parturiente teria de abandonar 0 matido, porque 0 feiticeiro era um deles, 2- confirmagao da patemidade sem condigdes da parte dos parentes do pai do bebé. © como principal objectivo, o de eliminar totalmente 0 inimigo ou seje a destruigéo do mal A saber: esse ritual s6 acontecia nos partos dificeis, onde a vida ¢ a morte estivessem em causa, 39 As Mutheres Honradase Insubmissas de Angola O Bebé A chegada desse bebé que escapou do perigo iminente vai tragsformar 0s dados, isto ¢ ja nfo ter o nome previsto, ¢ tirando 0s cuidados normais, outros rituais the sero predicados. Haveré muitas invocagées. Todas as bengiios Ihe serio dadas. A sua chegada ao mundo sera recebida como um milagre. 4. OS CUIDADOS A TER COM O RECEM-NASCIDO O ser naseido, ¢ jé uma oriatura que tem de ser o mais rapidamente possivel, enttegue & comunidade. Por isso mesmo seré considerado como uma pessoa de bem ¢ de mal, que chega ‘29 mundo confrontado com todos os perigos existentes. Por isso mesmo, 0 seu primeiro contacto com a vida mundana ser agressive: o seu primeiro banho, para comegar, sera de agua fii, ¢ depois momma. Dar-se-Ihe-8, uma pitada de sal, para depois fazer-se-Ihe provar uma gota de mel. Estes so os sabores da vide O Bebé e 0 Calendario do Tempo Os primeiros cuidados do recém-nascido so confiados parteira que assistiu ao parto e que seguiu toda a gravidez da mae. F, durante os trés primeiros meses, serd ela a pediatra Como cla é experimentada na matéria, poderd detectar todas anomalias que possam existir, como a surdez, cegueira, tonicidade muscular e outras patologias que possam ameacar 0 desenvolvimento da crianga. Depois do parto a placenta € enterrada perto de uma arvore ¢ é nesta arvore plamtada no mesmo dia do nascimento, que sera gravada também a data. O acto civil ficara s6 na ‘meméria da parteira. O calendario Romano ou Iskimico nao faz parte da cultura bantu. Os sabios da academia jé citada diziam: “a vida ndo tem idade no tempo. Deus deu-nos a morte, mas ninguém sabe guando chega”. Por isso era quase un sacrilégio perguntar a alguém a sua idade, Portanto davam ou sabiam a idade dos seus 41 Ae Muthores Honradas © Msubmissas de Angola animais. Af reside o paradoxo. Em cada nascenga havia sempre tum evento que deveria marear esse dia. E, assim os anos passavam, mas o evento do dia da nascenga ficava na meméria colegtiva, Cuidados Especificos J4 falémos do banho quente e frie, do gosto salgado ¢ doce. Os outros cuidados dados ao bebé, vao durar trés meses ou seje tés luas fechadas, em que mie e bebé sero privados da claridade do dia, Nem no quintal poderdo ficar. O tratamento dado ao recém-nascido, poderd parecer tortuoso. para um observader fora do contexto & 0 correspondente 20 teste de APGAR, feito nas maternidades ocidentais. Aqui esse teste dura ‘és meses e & muito impressionante. Depois do banho seguem- se as massagens que fazem chorar o bebé ea mama, sobretudo quando ela € primepare. Sobre a pressio das grossas mos da parteira que assistiu 0 parto, 0 corpito vai ser massado, esticando 0s bracitos’ e as pemitas, pressionanda 0 peito © 0 dotso, aplicando os uguentos de ervas cujo o segredo de prepatagao 36 ela sabia. Nesse periodo em que durardo as trés luas fechadas, s6 serdo admitidas visitas dos parentes directos. E no fim das trés luas, 0 bebé podera sair e idem para a mae. (0 receio dos maus olhados influia nessa selecgio; por isso todas as precaugdes eram poucas. Mas sobretudo, que, depois dessas massagens, depois desses esticangos, 0 recém- -nascido estard apto a entrar no mundo violento ¢ apressado das bricandeiras de outras criangas. Ele pode assim, sem perigo algum, ser tomado em todos os bragos mesmo os menos ajeitados. Depois dessas trés Iuas, além do leite materno, 0 bébé poderd degustar outros sabores, mas continuando a ser amamentado até aos dois anos de idade isto 6 depois das vinte € quatro luas, que € tempo legal do aleitamento. Durante esse periodo a mulher ficaré na casa dos pais, para evitar as relagdes sexuais durante o periodo do aleitamento, 0 que, segundo os uusos e costumes, seria nefasto e causaria um atraso mental & crianga. 5. OS CUIDADOS COM A MULHER DEPOIS DO PARTO Depois do’ parto, a prioridade era dada aos cuidados vaginais. A mulher tinha de encontrar a elasticidade ou (estreiteza) da forma inicial e era pelos banhos @ vapor com ervas especificas que ela era tratada. Esses banhos eram uma verdadeira tortura, porque comegavam logo depois do parto. Fazia-se sentar a parturiente numa grande bacia ou selha onde famegavam numa gua quase escaldante as tais ervas, ¢, a Parteira empenhava-se & espremet o corpo da cabega aos pés, Passava-a depois numa outta selha mas com Agua bem fia maisando-lhe 0 corpo todo. Isto permitia a vagina de conservar 2 sia elasticidade de adolescente virgem. O tratamento podia durar de trés a quatro luas. A alimentagdo da parturiente merecia também uma ‘tengo particular, favorencendo os produtos que pudessem ‘aumentar a quantidade e 2 qualidade do leite mateo, O Desmamamento Durante o tempo do aleitamento, isto 6, durante as vinte & quatro Iuas como jé foi dito, a parturiente nao deveria ter telagdes sexuais com o seu marido, Por esta tazao ela ficava durante esse tempo na casa dos pais. Isto no caso de ela ser a linica esposa. Ou entdo, se fosse necessério a mie da parturienta instelava-se no lar dela para obrigar 0 marido a dormir no quarto dos fithos. Depois das vinte e quatro luas, de um parto normal 0 bébé ja crianga, com 0 desenvolvimento psicomotor normal, comegava @ conviver num mundo de adultos, e induzida jf de Pee eee ee eee eee eee 4B As Malheres Houradas Insubmiseas de Angola ‘uma certa responsabilidade...Ela vai aprender € adaptar-se muito rapidamente e ocupar 0 espago que Ihe pertence. A crianea vai aprender com os mais velhos que o iniciam’ a evitar os perigos domésticos. Estudos feitos nos anos 80, por certos médicos no dominio enfantil, demostram que a crianga afticana nao ovidentalizada, até aos cinco anos é muito mais sagaz ¢ com reflexos muito mais ripidos do que’a crianga ocidentalizada e ‘mesmo europeia na mesma escala de idades. “O que seria dessas criancas europeias que nascem com todo o conforto e que muitas delas chegam & adolescéncia som munca terem manipulado um bottio de gaz? Tenho a certeza que teriamos muito mais acidentes. Porque as nosias criangas europeias so tio protegidas que ignoram os perigds domésticos. As eriangas negras pobres, que € 0 caso da maioria em Africa, conhecem e sabem evitar o fogo,-as panelas com dgua em ebolicio, as facas afiadas, os insectos venenosos, respeitam os objectos de utilidade comum e sobretudo sabem escutar os mais velhos”. - Explicagao do Dr. Zerbib durante uma aula de pediatria aos alunos de enfermagem na maternidade de LILAS em Paris. A crianga africana rural desde a sua tenta idade, passa mais tempo com os avés do que com a prépria mae. Aos trés anos de idade, ela jd é responsavel pelo irmag ou rma mais novo. E isto porque havia as tais vinte quatro luas obrigatérias, ‘caso contrario, de doze em doze meses a mulher erigravidaria, A mulher gravida era muitas vezes irascivel © depressiva, pelas gravidezes sucessivas. Dois anos apenas e jé grivida de novo, na maioria das vezes, sentia-se cansada e sem desejo de acarinhar a sua propria crianga, que se via obtigada a procurar carino junto da avé. Era nesta fase que a criaiiga adoecia com ciémes do bebé recém-nascido. Ela tomava-se depressiva e € ‘também nessa fase que se observava 0 indice elevado da mortalidade infantil, O carinho matemo ajuda no desenvolvimento intelectual. A crianga sente-se protegida. Esté crescimento acelerado apagam as etapas normais do desenvolvimento. 44 Dya Kasembe Ela tem apenas trés anos j4 se ocupa de uma outra crianga mais nova e que muitas vezes, esta mesma crianga, que mama ainda e esta na faixa dos vinte e quatro meses. tem uum eso superior ao dela, Normalmente uma crianga afticana ‘comeca a dar os seus primeiros passos de pé, entre os nove e dez meses. Uma crianga europeia entre os quinze e dezoito meses. A crianga afticana é iniciada desde 0 bergo a: = obedecer aos mais velhos - ter cuidado © saber distinguir os petigos domésticos, evitar as picadas de insectos, fugir do fogo, subir descer sem se magoar, = no chorar por um tudo e por um nada ~ nfo reclamar carinhos exclusives, porque a partir dessa altura todas as mées serio suas. — Para combater 0 ciéme, aprender a conviver ¢ incutir 0 sentido de partitha. Partilhar até a propria mae. Muitas vezes 0 direito de choramingar por fome duas vezes por dia. Mas aprendia-se a esperar, sempre esperar e saber que era prova de uma ma educago o salientar-se, Como se pode observar nesse comportamento para com a crianga em tenra idade, poderemos concluir rapidamente que esse educago aproximava-se da educagao espartana da antiga Gréeia. Uma educagio ride com mais deveres que direitos TRESS EEEIUCEEETU PEEP PEPE EEE Mee 6. AINFANCIA DA RAPARIGUINHA Jé Muther Nessa regio. de Kasembe, quando se nasce menina, adquire-se automaticamente o estatuto de mae, E, 0 ser-se mie nessa regifio, nao é s6 ser-se ma dos seus prdprios filhos. Mae da humanidade, antes de tudo, mae da comunidade depois de tudo, ‘Aos trinta e seis meses, a crianga da Sanzala é jé uma mulherzinha, Mulher porque ela é fémea, mulher porque sera uum dia mae e esposa de alguém. E € nessa altura, queto dizer, aos trinta e seis meses, que comeca a sua preparagdo para um dia assumir todas essas fungdes. Nas suas brincadeiras de crianga a aplicago do que ela aprende € evidente. Pelo comportamento da rapariguinha, as avés saberdo distinguir a crianga que sera ou nao uma boa amiga, boa esposa, boa mulher, socidvel ou irascivel, tudo isto parece estar j& imprimido no carécter da mocinha, mesmo antes de nascer. O trabalho das educadoras de atrofiar os sentimentos nefastos para que estes nfo sejam entraves aos bons sentimentos. A partir dai, sabe-se qual 0 modo de educar para no aver desvios de comportamento. A uma crianga com uma maturidade precoce vai-se-Ihe confiar tarefas que nao serio confiadas a qualquer crianga, Ela teré uma relaedo privilegiada ‘com os avés. A ela serdo confiados certos objetos importantes como: dinheiro, as chaves, ela e s6 ela saber os esconderijos da av}, 0s cantos sagrados da casa, etc. Ela estard assim a ser preparada como herdeira dos usos costumes. Mas se ela tiver outros dons espirituais seré encaminhada para uma iniciago mais profunda. Neste caso, retira-se a crianga do seu meio para UDEIH HIER DEETANGEEUIIEEEUAIEEETAIEEEITAEEEIEE .EIATUEEIA TERIA EETTTEETTT EGET EEETT GEE 46 Dya Kasembe © circulo sagrado dos grandes iniciadores espirituais. Vimos no pargrafo anterior o papel da crianga iluminada. Ao longo deste trabalho, teremos a ocasifio de voltar ao assunto dos seres iluminados e a sua iniciagéo. Foi a introdugio dos costumes cristiios e a evangelizag’io foryada que fez com que esse tipo de edueagio fosse protbido. ‘A educagdo~tradicional abordava todos os problemas da ‘existéncia humana, a partir mesmo de tenra idade. Quer dizer, logo que a crianga estivesse a altura de compreender. Esse tipo de educagao, para un neéfito ocidental, culturalmente catélico, poderia parecer indecente — alids foi por essa razo que a igreja probiu, por ser rude e crua na maneira de abordar os problemas, como por exemplo as relagées entre o homem e a mulher € a rmaneira de assumir uma vida sexual. Na nossa sociedade jé aculturada, o prazer sexual era € ainda € reservado ao macho. A mulher desempenha um papel passivo, porque, segundo essa educagiio do cristianismo, era pecado o simples facto de se masturbar, de pensar no sexo, ete... a menina nfo era iniciada sobre o sexo. Ora na nossa cultura de origem, a menina era iniciada, ela sabia como ter relagdes sexuais, como dar prazer ao parceiro e a ela propria, assim como ela sabia como se dar prazer com o parceiro sem penstragio vaginal. Em suma, 0 sexo nunca foi tabi, antes da ‘chegada da religido ¢, no caso. de Angola, do Cristianismo. Muito perto de Angola, no Congo Democritico, as mocinhas eram preparadas de uma forma especial no dominio do sexo. Era importante nessa regio de LUMBASHI, desenvorver-se 0 orgio primor da sexualidade feminina, isto é, © ciftoris e ent4o' faziam-se massagens para o seu desenvol- vimento aumentando assim o prazer para a mulher e a excitacio para o homem. Esses costumes também foram tidos como obcenos pelos padres. ‘Se no Congo alongaya-se o clitoris e em Kasembe ensinavam-se-as regras do erotismo, na Africa do Oeste, era precisamente 0 inverso. As mulheres eram condenadas a dar unicamente prazer, e para Ihes tirar toda a possibilidade de elas se excitarem, amputavam-nas a partir da tenra idade, entre os 4 As Mudheres Honradas¢ Insubmissas de Angola quatro e cinco anos. Essas priticas que nés consideramos como bérbaras (com justa razo), persistem: como por exemplo, a excistio ou ampatagdo total do clitoris para justamente impedir é mulher o prazer. Ou ainda, um outro costume: 0 de anfibulagso que se fazia e ainda se faz nalgumas regides, e na mesma escala de idades, esta prética consite em cozer os lébios da vagina € serem “rasgados” na noite de mipcias pelo esposo. ‘Nés em Angola, ndo tivemos esses costumes sobretudo em KASEMBE, onde a mulher sempre foi liberal. Em KASEMBE, nada de incutir nas mocinhas lendas de cegonhas que trazem os bebés, nem milagres de Jesus e outras histérias do arco da velha, A rapariguinha (kilumba), desde a tenra idade era educada para ser mae, mulher e amante, Nada se Ihe escondia sobre 0 sexo. Toda a sua educagio passava-se no eirculo das velhas experimentadas e com vastos conhecimentos. A educagio sexual era feita pelas tias de idade avangada, entre os quarenta ¢ cinco a sessenta anos. A kilumba aprendia sem questionar, obervando e mimando para comprender. Nela incutia-se 0 mundo ¢ todos os valores humanos, & por isso que a mulher negra 6 mie antes de mais. Do outro lado e em paralelo, a educagtio dos mancebos eta assumida pelos avés e tios da mesma forma ¢ com os mesmios valores. Mas aqui sé falaremos da mulher. E se foquei a educago dos mancebos foi para demonstrar que nao havia discordacia na maneira de educar. O homem sabia 0 valor eo lugar da mulher e a mulher sabia 0 valor ¢ o lugar do homem. Nenhum homem tinha o direito de violentar uma mocinha. O facto de as rapariguinhas andarem de seios A mostra, nfio Ihe permitia a ousadia de um gesto malsto. Porém, como 0 instinto do homem é por vezes irracional, as pessoas idéneas anteviam essas atitudes, protegendo as rapariguinhas. Enquanto crianga, nem o préprio pai tinha o direito de acariciar 0 seu corpito nu, muito menos dar-lhe banho ou ‘mesmo mudar a fralda de sua propria filha, isso para ndo despertar aquele instinto animal do subconsciente. Por essa razio, a educagao era sem tabiis ¢ a rapariguinha aprendia a se defender. Em KASEMBE, a aparéncia de uma rapariguinha com ares despreocupada brincando como se estivesse distrafda, era 48 ya Kasembe enganadora. No seu jogo estava a aplicacdo de tudo quanto ela aprendia, Ela estava atenta a cada gesto e a cada palavra, vigilante © protectora, capaz. de deixar a brincadeira e correr a0 socorto de um mais novo que ela, ou se proteger e proteger os ‘outros. Nisso, ela jé era a mae Ela estava pronta para um dia parit 0 mundo. Enquanto rapariguinha, ela passava a maior parte do seu ‘tempo com a ave (mulher sagrada), que fazia parte do cireulo do saber, A avé era a amiga confidente, a ciimplice, a professora conselheira, Os lagos que as uniam eram insepardveis. Bram lagos sagrados e de dependéncia miitua, Uma trazia 9 mundo de dentro para fora, a outra mostrava-lhe o mando de fora para dentro, Eram duas geragdes ¢ dois viveres; uma era 0 passado, @ outta o presente; unidas formavam o futuro. Com a avé ndo havia segredos, com a neta no se ‘guardavam segredos mesmo sobre os seus amores de velhice. Era muito natural a avé pedir conselho & neta no ambito da seduetio, assim como era natural a neta receber da av6 a arte do erotismo, Mas com a sua prépria mae os lagos eram sagrados imaculados e essa imaculaco era reforgada pelo excesso de pudor que existia entre mae e fitha. A medida que ela ia crescendo, ia-se afastando fisicamente da mae e tornar-se mais, proxima espiritualmente, Quando houvesse problemas relacio- nais com a mae, a avé paterna ¢ somente ela poderia intervir no diferendo entre mae e filha A mae nunca assuumia o papel de confidente junto de sua prépria filha. Ela podia aconselhar os filhos da sua propria irma ter toda a cumplicidade com a sua neta tal como a sua filha tinka com a avé. Nesse estrato social de mae para filha ede neta para a avé, havia 0 seguinte patadoxo: a filha néo tinha o direito de considerar a mae como amiga, mas a mie no que dizia respeito a0 seu relacionamento com 0 marido, solicitava a ajuda da filha; era a filha que chamava a atengo do pai, sobre 0 seu comportamento com a sua esposa, antes de 0 assunto ser cent:egue a pessoas mais idéneas. A filha mais velha era o elo de estabilidade na familia, quando era informada de algo errado. 7. DAPUBERDADE A IDADE ADULTA A Puberdade ‘A puberdade para as raparigas comegava com a primeira menstruagdo e para os rapazes com a circuncisio por volta dos quatorze anos, No nos vamos estender nesse campo. Um outro trabalho seria necessaio ¢ dedicado wnica- mente aos mancebos. Aqui falaremos s6 da muther. ‘Aqui comegava 0 extremo do pudor entre mae ¢ filha. Entre pai ¢ filha, 0 contacto corpo a corpo deixou de existir com o crescimento intelectual, quer dizer, logo das primeiras questdes da crianga. Vimos no capitulo antecedente que o pai nao tinha o direito de mudar a fralda da sua crianga feminina, nem brincar com ela nos joethos estando ela toda nua. E, s€ 0 fizesse, setia sempre em presenga de mais pessoas. Esta distancia fisica entre pai e filha era escrupulosamente vigiada. Olhar bem de frente no rosto de seu pai olhos contra olhos como se faz hoje, era quase uma maldi¢ao naquela época. ‘A puberdade para as rapatigas jé iniciadas desde a tenra idade no era uma passagem brutal para a idade adulta. E por jsso que os especialistas europeus afirmam muitas vezes que nos africanos nao ha adolescéncia, passa-se de crianga para a idade adulta. Evidentemente, eu nao concordo muito com essa tese, No afticano néo havia sim, digo bem. “nao havia”, idade de irresponsabilidade. Todo ser humano, seja qual fosse a sua idade e o seu grau de inteligéncia, era responsavel. Tanto mais que a rapatiga nessa idade estava pronta a assumir uma vida de adulta, J4 sabia cozinhar, lavrar a terra, até porque ja possuia também o seu pedago de terra e ela sentia-se orgulhosa em cultivar, Por af também se via o resultado do que ela seria mais tarde, Para as jovens futures esposas, a puberdade era a ceasiao de aprofundar os conhecimentos que estavam sendo inculeados desde a tenra idade. Pois que eles iriam ser esposas, na maioria das vezes de um homem poligamo. As iniciadoras que jé tinham uma grande esperiéncia por terem passado por la, sentiam-so na obrigagdo de alerté-las, porque a coabitagdo nunca foi fécil. Entdo elas preparavam a jovem a repartir 0 coragdo em quatro partes, Esse ensinamento era dado por intermédio de pardbolas. Elas diziam que era necessario guardar s6 para si dois quartos do corago ¢ a0 homem deixar simplesmente um quarto e mesmo assim jé era bastante, porque ele também repartia 0 seu coragdo em ‘multas partes. E para mais seguranga, diziam elas, que a0 homem 86 se podia deixar a parte do corpo que vai da cintura pera baixo. Com isso elas queriam dizer, que no circulo da poligamia, a mulher teria de utilizar simplesmente a razio. Essa preparagio das raparigas, no que diz respeito as relagdes entre homens e mulheres, evitava que houvesse exagero nos citimes e traumatismos causados pela separagao do casal. Em Kasembe, a poligamia deixou de ser praticada muito antes da chegada dos portugueses. As educadoras tudo fizeram para acabarem com esse costume. Foi baseado na experiéneia que elas tinham coneluido que um lar era mais estivel, quando havia uma s6 mulher e que todos os filhos fossem de uma s6 mae. © Ritual que marcava a Puberdade Quando aparecia pela primeira vez a menstruaggo, as ‘Velnas isolavam a rapariga durante trés dias, durante os quais ela itia aprofundar a educagio sexual. Ela, mesmo virgem, ja tinha @ prova de que um dia seria mae. A partir daquele momento todos os euidados serdo poucos para com o seu compo. Ela saberd ‘Que uma s6 penetragao na maioria das vezes poderia engra Ja Portanto, ela faria ateng0 com os rapazes. E além disso, 0 Pee ee eee eee 51 As Matheres Honradas¢ Inubmissas de Angola alambamento ~ que consista a honra da familia ~, 6 se dava as virgens. Era preciso preservar-se, mesmo se em KASEMBE, a virgindade no era a condiggo “sine qua non” para uma unio. + Nesses trés dias, a rapariga ere submetida a um tratamento especifico e idéntico 20 gue se faz 8 parturiente. Quer i ym ervas perfumadas. oer a ema f virgindade nfo Tose obrgatvi, havia um ritual ao qual nenhuma rapariga pabera podia escapar: 0 ccontrolo da virginidade no periodo da lua cheia. A Visita na Lua Cheia primeiro objectivo desta visita era mesmo 0 controlo da enone era uma ginecéloga do sitio. Aquela a quem se recorria no momento do parto. Era a melhor colocad, porque cconhecia em permenor a anatomia feminina. O contetido do seu ‘material eta: ovos de varios calibres (de galinha ou de pato e até mesmo de ganso), que ela introduzia na vagina da rapariga pibera, se 0 ovo escorregasse, sem dificuldade, isso demons- trava a perda da virgindad. : a Apesar dessa vigiléncia acérrima das velhas “matronas”, a perda da virgindade acontecia de vez em quando fora do casamento. Evidentemente, a rapariga-menina despertava com 08 seios espetados, descobertos todo o dia, cruzando olhares apetitosos, tanto nos mancebos como nos adultos velhos mesmo se fingissem no as verem. Era o instinto sexual selvagem que mesmo domesticado, despontava e para 0s fracos 0 inevitével acontecia. ; ; Mesmo se a educagto e a tradigo permitiam o respeito pela mulher-menina, a verdade & que por vezes havia oportunidades em que o instinto sexual dominava, © facto de ja no se ser virgem, néo constituia drama algum, Normalmente, a rapatiga que ja tivesse tido relagSes, antes do casamento, avisava imediatamente av6, ¢ o problema era resolvido em segredo juntamente com o responsével ¢ a sua familia. Normalmente, 0 rapaz.assumia sem qualquer problema. 52 bya Kasemte Esses incidentes eram rarissimos, ¢ assim como também era quase impossivel que um estuprador nio assumisse o seu gesto, Porque era quase sempre por consentimento mituo, Em Kasembe, a violago era crime mortal assim como o incesto. Para otemuar a tensiio que por vezes reinava entre as Jovens piiberes © os mancebos iniciados, eram organizados convivios que também faziam parte da iniciagfo. Kicombas e Kuswingitas As kizombas eram serées ou bailes os jovens de ambos os Set0s que se realizavam na Sanzala. Os adultos participavam como observadores. Esses bailes permitiam a juventude encontros que mais tarde finalizavam em casamento. Esses encontros tinham como objectivo principal o despertar dos sentidos pondo em prética tudo quanto se aprendia de ambas as artes. Era também uma maneira judiciosa de impedir que os notiveis ou os chefes tivessem prioridade na escotha das meninas. Também serviam de testes a fim de se descobrir ‘anomalias no comportamento de ambas as partes. Por exemplo, @ timidez de certos rapazes, a frigidez de certas meninas; impedir desvios sexuais como a homossexualidade. Era nas Kizombas que se testava a virilidade dos rapazes ¢ o poder de sedugtio das raparigas. Cada gesto era a aplicagto do que se aprendia na iniciagdo. Jé falémos disso no capitulo precedente referente A puberdade. As festas de kuswingila eram diferentes. As Kizombas eram rituais que se faziam uma vez por més. As kuswingilas eram por ocasido de qualquer evento. Nao tinham datas fixas e eram uma forma de expresso da comunidade, eram serdes, onde toda a gente dangava ¢ cantava; eam também ocasiGes para alertar através de cangées o mal estar da sociedade ou 0 mau comportamento de alguns. Af satirizavam-se em canges compostas por griots (poetas populares que cultivavam a arte do Poema espontineo declamado em cangdes), e onde cada um odin acrescentar 2 sua estrofe. Nessas cangonetas demun- iavam-se muitos factos passados na Sanzala e muitas vezes os 53 As Malheres Honradas¢ Insubmissas de Angola responséveis estavam presentes, Passava-se em revista os feitos nefastos da vida quotidiana, elogiavam-se os bons e criticavam- se os nefastos. ra deste modo que toda a sociedade era controlada. E, se ninguém queria que 0 seu nome viesse no jomal do kiswingila ‘inha todo interesse em controlar os seus feitos e gestos. O Alambamento © alambamento é 0 dote. Ritual muito importante na sociabilidade humana, Em toda a bumanidade houve sempre essa troca de pessoas e bens. Sao aliangas préprias no contexto humano. Em Angola nalgumas tibus a aiangas easérias t&m ‘onome de alambamento. Na India ou mesmo na Africa do Oeste ddevem ter outros nomes segundo as tradiges de cada povo. Na cultura tradicional, o casamento (nsokana) é normal ¢ imperativo nio 56 para garantir a continuagio da espécie, mas também ¢ desta maneira que se funda uma familia Em KASEMBE, os sibios dizem: Deus eviou 0 homem e ara que 0 mundo tenha sentido, e para que 0 mundo seja completo, e para que o homem tena a nogéo do bem e do mal, Deus dew-Ihe a mulher. : O celibato quando nao era uma maldigdo era inconcebivel. Em KASEMBE, outrora, a mulher era cortejada mesmo antes de nascer. Normalmente o ventre da grivida era pretendido pela familia interessada nessa unido, Era uma questio de alianga segura, uma espéce de investimento na familia adversa, motivado pela forte vontade de pertencer & mesma sedutor do ventre era um parente préximo do pretendente, ou er um brn ov os piri to, Fe po sesso nates rapaz.e nio uma rapariga, a alianga era na mesma conclu porque o recémnascido teria o nome do “galanteador”, No caso ccontrario, por exemplo, se 0 bebé fosse do sexo feminino, 0 galanteador comegava a investir para obter a confianga da familia e mais tarde se concretizarem as aliangas. O sedutor também podia ser uma mulher que cortizava ou para um dos seus filhos, ou para o seu proprio marido 54 Dya Kasembe __Porém, isso no queria dizer que a familia solicitadatinha que acsitar. Ela estudava antes de tudo os interesses de uma tl unit. sehouvesse aromalias nas descendéncias, a familia slicitada podia recusar sem danos. E se ela aceitasse, entio ofereciam-se ‘utuatente presentes para selarem o pacto de emizade. No caso de morte do recém-naseid, as oferendas nio eram devolvidas Se fosse uma menina, entre 0s ttés © cinco anos, comesava a mentalizagéo da erianga, mostrando-Ihe o futuro esposo. O pretendente mantinha-se a distincia, Tinha de se fazer aceitar pela rapariguinha sem se aproximar dela. Muitas vezes 0 dito pretendente era muito mais velho que ela, e, & medida que a crianga ia crescendo ia-se forjando a ideia de um dia vir a ser esposa no scio da familia apresentada. Na puberdade coneretizava-se entio o alambamento. Umm primeiro encontro tinka lugar entre as duas familias sem a presenga da interessada. O noivo, ainda que fosse muito iis velho, fazia-se acompanhar pela sua familia a fir de pedit offsialmente a méo da rapariga. Durante o ritual, estado presentes as avés do efrenlo do saber e outros ancifios da mesma sanzala Esses ancids desempenhavam um papel muito importante: eram cles 0s encarregadas da genealogia dos pretendentes. Um segundo encontro era fixado para que a familia da futura esposa pudesse visitar a outra familia, Porque se o pretendente j tivesse outra ou ouuras esposas, o acordo da primeira esposa era primordial. No terceiro encontro juntavam-se as duas familias e apresentavam os noivos. Fra nessa terceira reunio que havia atroca de bens. Cabia 20s familiares do noivo © encargo das prendas para 0s avés e as tias. Os pais nfo recebiam nenhumas offendas. Em Kasembe, a participagio do dote da mulher era importante, porque ela levava consigo todos os seus bens, incluindo terras e gado. : A Coriménia do Casamento E na casa dos pais da noiva que se passava o evento. Sobre um estrado que era decorado para a ocasito, Estio sentados 08 noivos, distantes um metro um do outro, porque HEE 55 (As Mulheres Honradas¢Insubmisses de Angola entre eles esté a avo matema, um ancigo levanta-se para apresentar 0 noivo, citando todos os pormenores da sua genealogia, incluindo as qualidades, elogiando-o ¢ enaltecendo- 0. Fazia um longo discurso sobre a unio, os direitos e deveres do homem e da mulher, era um discurso téo Tongo que no encontrava ouvidos atentos na juventude, © que a juventude esperava era um outro discurso; uma diversio quase psicanalitica, intencionada vinda das tias rebeldes. Os velhos afastavam-se dirigindo-se ao lugar que thes era reservado, onde lhes seré servido 0 delicioso e copioso banquete. 0 que se iria passar depois do longo discurso de moral seré muito indiscreto e ousado para os ouvidos padicos dos ancifios, porque rebeldes eram completamente desenfreadas. discurso das rebeldes poderia parecer obsceno ou pomogrifico vista e no entender de alguém que ndo estivesse ligado a essa cultura. Mas para os habituados ¢ conhecedores, esse discurso era terapeutico, Nao sé preparava a noite de nipeias do casal antecedendo o que se iia passar, como também desarmava a timidez de ambos. As obscenidades que se diziam ali faziam parte do ritual. A linguagem era crua e nua, especialmente ditigida aos noivos. Além das tias rebeldes, outras pessoas poderiam intetvir e acrescentarem o seu picante. ‘A explosio de risos era de uma maneira geral franca e aberta, ‘Afastavam-se todos os tabtis para se viver esses instantes. 'Nés conseguimos captar e traduzir aqui um exemplo do que se passava nesse espago to hilariante. A mais arrojada das tias comega directamente sem escriipulos dirigindo-se ao noivo: = éeh! tu ai, — (0 noivo deveria fingir que néo estava a perceber, como se as palavras nfo lhe fossem dirigidas), ~ eu tenho a certeza que ainda néo sabes 0 que te espera esta noite, olhem para ele, ele nem sabe onde fica... (e al ela parava olhando para a assisténcia & espera de encorajamentos. Mas ela no continuava, era uma outra rebelde que tomava a palavra: — mas quem & que te disse que ele ndo sabe onde fica; sabe até demais, e amanhéi de manha sabes que eles néio vio nos apresentar a verdadeira prova porque...(cla também parava aqui e voltava-se para a assisténcia) 36 Dya Kasembe Mais uma que se metia na conversa ou seja na provocago € continuava: = Debaixo da cama pusemos uma galinha com uma faca bem afiada, porque sabemos que iriam ficar atrapalhados, procurando, — Uma outra tia continuard mais ousada no seu discurso, — Vai com jeitinho uma chucha de cada vez, anda agui que jé te mostro... ~¢, ousada ela aproximava-se do noivo para the tocar as artes intimas, este deveria lancar o desafio dizendo: ~ Entiio vamos mais diante desses mogos todos para eles aprenderem i ~ O noivo fingia despir-se, mas a tia recuava, jubilando, ~ Ele é mesmo homem. A medida que cada tia (de ambas as partes), tomava a palavra, ia lagando © desafio as outras, e as obcenidades sucediam-se como se fosse um concurso. A assisténcia era uunicamente composta por jovens que se divertiam e provocavam desatando a lingua das tias. Tudo isso fazia parte do ritual das népeias, Com a partida do casal_que era acompanhado pelas tias mais calmas, acabava-se a festa 8. ANOVA ESPOSA NO LAR POLIGAMO ‘A nova esposa seri recebida pelas outras que se esforgardo na medida do possivel para demonstrar uma certa simpatia, que no fundo no serd verdadeira. Ela faré parte das preferidas, ou seja, seré a preferida. O marido como sinal de amor passara todas 2s noites no seu quarto e s6 depois de pb- la gravida ele poderia dormir com outras esposas. Por vezes, nova esposa era ainda menor, quet dizer, com idade comprendida entre os quinze-dezasseis anos, ¢ essas relagdes eram um martirio para ela. Depois de confirmada a gravider de trés luas, entdo ela terd 0 dircito de visitar os pais. Mas durante esse tempo de adaptagii, ela tera aprendido com as outras, os prés e 0s contra do quotidiano no seio do condominio. Elas faréo tudo para ‘conquisté-la e t8-la como aliada contra 0 marido, porque todas essas mulheres mesmo se detestando, detestavam ainda mais 0 dito marido. O Quotidiano na Corte do Poligamo ‘No lar de um poligamo tudo parece harmonioso visto de fora, As suas mulheres parecem dar-se muito bem entre elas, todas sorridentes, que maravilhoso para quem s6 as observa do exterior! Vendo dessa forma superficial, vé-se o encanto do ideal masculino: possuir um Harém com belas donzelas! € bem a vontade sendo de todos, mas de muitos homens. Blas amam um 86 homem, e ele ama todas elas. Mas a realidade que fez com que em Kasembe banissem do cédigo da familia a poligamia foi ssa perfidia que reinava no seio do condominio. EDD S':SCS Oe 58 ya kasente ‘Aqui estava em vigor a mais elevada escola pérfida, onde (0 édio veiculava com o cinismo e a hipocricia, ingredientes permanentes nesse ambiente que a autora conheceu £ conviveu. E, por ter vivido nese meio, comparo-o a um Yiveiro de viboras cujo veneno é descarregado em permanéncia Sobre a proa que é 0 marido. Visto nesse comtexto, o homem é a vitima na sua dibata, Descrigao da Dihata Nessa dibata que € a sua corte, encontra-se a casa Principal rodeada de outras casas mais pequenas mas idénticas ¢ ligadas umas as outras por atalhos de terra batida ¢ distantes lua das outras de 100 @ 200 metros. O quintal que protegia ‘odas essas residéncias era composto de palmeiras, mangueiras, mulembeiras e outras arvores que delimitavam o condominio da familia. A cozinha ficava no fundo do quintal e cada mulher tinha 0 seu anexo de duas divis6es. A medida que os filhos iam crescendo deixavam de coabitar com os pais, separando as meninas dos rapazes. Os fithos eram instalados nouttas as. ‘Alem da cozinha, de forma circular, havia no fundo do Guintal, lado a lado com a cozinha, o celeiro que se distinguia pela sua forma eénica. Ali guardavam-se as provisdes que seriam consumidas durante a estagéo de cacimbo (periodo da seca), onde nao havia culturas por falta de chuvas), As mulheres sabiam conservar vérios alimentos. Além do milho, massambala € feo de facil conservagao, elas conservavam também os leoumes, a came e 0 peixe, secando, fumando e salgando, Neste imenso quintal podiam-se observar animais domésticos como cabras, porcos, galinhas e mesmo alguns Bansos. Tudo isso demonstrava o poder financeiro do Proprictario. O resto das culturas viveiro faziam-se nfo muito Proximo da residéncia, as mulheres percorriam todos os dias para irem lavrar as suas terras dois a trés quilémettos, e as vezes ‘muito mais. Nesta corte (dibaia) do poligamo, vivia também o ‘mais fiel amigo dos homens: o co, que acompanhava o mestre ee 59 As Matheres Honradas Insubmissas de Angola nna caga ou nos longos passeios. Os animais mais apreciados exam a pacaga, a seixa, 05 esquilos. Em Kasembe 0 veado era proibido ao consumo, porque estava ligado ao tétem que nio 1nos foi possivel elucidar. Também nfo se come macaco como no norte de Angola. Mas come-se tartaruga, perdizes e galinha do mato, A gibéia é outro animal impréprio a0 consumo humano para os Kasembes. Ee Nés acabamos de descrever aqui o condominio de um notavel rico. : ‘Vamos penetrar no interior da grande casa ou seja da casa incipal: fa ei coeate ‘majestosa, Era o centro do condominio ¢ composta no minimo de seis compartimentos, Entrava-se pela Porta principal, pelo grande vestibulo para atingir 0 corredor que dividia a casa ao meio para terminar no quintal onde toda a vida social se passava. Ao longo do corredor de um lado e do outro havia compartimentos que serviam de quartos © um compartimento central muito maior que servia de saléo. A decoragio era feita de esteiras bem —trabalhadas geometricamente, a quantidade de esteiras no chiio e nas paredes dependia dos meios de cada um. Nesta casa principal, nenhuma mulher fixava residéncia, a ndo ser a primeita. E era a primeira ‘mulher que tinha © privilégio de habitar no “paléeio” junto do esposo. As que iam chegando, habitavam nas residéncias anexas. : © esposo dividia o seu tempo de forma a contenté-las dos deveres conjugss. Elas preparavam as refeigdes por tumos, ‘menos a primeira mulher se ela fosse jé de idade avangada, Ela ‘era a tinica que tomava as suas refeigdes junto do matido e 03 convidados, isto é se ela fosse de uma idade avangada. Caso contrério comia com as outras, porque as jovens esposas nio usuffuiam desse privilé; 60 bya kasemte 0 Marido No citculo da poligamia vamno-nos interessar pelo matido. Ele escolhia-as ou escothiam para ele as mais puras, queremos dizer, as. virgens. Nenhuma mulher divorciada, mie solteira ou ‘mesmo tendo tido um outro homem na sua vida, era digna de enttar nesse circulo como esposa, a excepedo era permitida as Jovens vitivas de parente directo (a mulher de um immio por exemplo), com o fim de proteger os sobrinhos. O homem polfgamo tem tantas e quantas mulheres a sua fortuna Ihe pemnitir, Ele era possuidor de terras cujas herdeiras sero mais tarde as filhas, Mas isto passava-se, no nosso estudo, em Kasembe, porque no norte de Angola, por exemplo, os herdeiros eram os filhos da irma mais do que os seus préprios filhos. © homem poligamo ostentava uma imagem aparen- temente feliz, descontraida, pai de familia tranquilo cujo sucesso exemplar parecia credfvel_ para os que viviam esta uniio do exterior. Mas, ao penetrarmos na célula central, apercebemo-nos a olho nu, que ele nao era mais do que um homem desequilibrado, sem raizes nos seus lares, estriado entre as suas esposas sempre amuadas quando o viam, escorragado entre 0s citimes ¢ as intrigas pérfidas das mesmas; ¢ que apesar disso tudo ainda aspirava trazer mais uma donzela nesse ninho de “viboras”, para se sentir existir. Ele levava a vida de um parasita no meio dessa horda de mulheres que constituiam, apesar de tudo, a exibigtio do seu poder mesmo sem controlo de nada. O que 0 motivava e the ajudava a sobreviver era justamente a excitagdo forte dos primeiros momentos com uma nova vingem: uma conguista que brevemente seria como as outras; porque nesse circulo 0 tinico perdido era ele. A maior parte dessas mulheres, uma vez adultas, escapava-se dessa vida infernal reganhando o lar dos pais ou entio instalando-se como mulheres liberais. Ble tinha, porém, como tébua de salvagao, a primeira esposa, a que conseguiu resistir ao ponto de envelhecer com ele, era ela que o conhecia ‘to bem, mesmo nos detalhes mais intimos do seu ser. Ele, diaate dela, & medida que o tempo ia passando, tomava-se numa 61 (As Mulheres Honrades¢Insubmissas de Angola crianga, como um fitho de menor idade e quando errava sentia 0 mesmo desamparo ao pensar na punigdo. De toda a maneira ele préprio j4 ndo a via como mulher amante mas sim como mulher- mie, Mas também era ela que manipulava as intrigas © que ficava sempre inocentada, cla escolhia a préxima vitima para 0 Ieito dele, ela controlava tudo triando as que ficariam, Os fithos no Lar Poligamo Os cuidados que as criangas mereciam eram tarefas de todas as mulheres, mesmo aquelas que néo pertenciam a mesma familia, 0 que era quase cultural em toda a Africa. Aqui nesse caso do lar poligamo, independentemente dos cidmes, intrigas e feitigarias do género, as criangas eram protegidas desde a tenra idade com os mesmos direitos. As mulheres organizavam-se © colaboravam de uma forma sadia no que dizia respeito as criangas das suas rivais vivendo no mesmo condominio. Havia sempre alguém no condominio para enquadtar as criangas, durante a estadia das outras maes nas lavras, Como elas cozinhavam por turnos, nfo havia motives para uma discriminago. Quanto &s criangas em si, todas as esposas do pai ‘eram também suas mies, assim como as irmas das esposas do pai. Havia os primos ditos inmaos, as avés e avs de ambas as partes, etc; enfim, isso era 0 protétipo da verdadeira familia africana. Os portugueses, como ocidentais que eram, nunca compreenderam essa complexa filiagio. Os indigenas, trabalhadores nas suas empresas, tinham muitas dificuldades para fazerem compreender que se 0 pai tinha quatro mulheres 0 individuo herdava quatro avés ¢ outras tantas avs, sem contar com as quatro mées, ¢ que, era muito possivel que se uma av falecesse domingo a outra poderia muito bem morrer dois dias depois, e por essa raziio ele precisaria de mais uma dispensa. Mesmo se as mées se ocupavam muito bem de seus fithos, e, por conseguinte, dos fithos das outras, € que visto de fora tudo parecia perfeito, essas criangas softiam certamente da 62 ys Kasembe falta de identidade afectiva. Enquanto elas ndo atingissem a idade dos trés aninhos, tudo era para o melhor da erianga, que tinha muito calor, carinho da mie e se sentia protegido. A partir os trés anos, eles eram jé considerades como itmaos mais velhos com responsabilidade de velar pelos mais pequenos, como também Ihes faltava 0 aconchego e o peito da mae. Pode- s¢ imaginar o traumatismo irreversivel da crianga, que, aliés iria repercutir-se no adulto muito mais tatde. Porque essas criangas afogavam muitos lamentos e nao ousavam protestar contra autoridade ou as autoridades paternais, 0 que fazia delas eriangas modestas, muitas vezes com ambigdes reprimidas ou congeladas. Cresciam obedecendo, forjando-se uma personalidade provisoria para depois, j4 desprendidas dessas autoridades atingirem com muitas dificuldades a auto-emancipasao. Tudo isso nfo passava sem consequéncids, Certos etno-socidlogos atribuem a deriva dos afficanos a escravatura e a0 colonialismo mas também a esse ‘modo submisso de educagao despersonificada, dos rapazes. AS raparigas tinham mais autonomia, por representarem a mae. Diz-se nos adagios populates: “certa ests da tua mie, o teu pai seré aquele que ela quizer..” Mesmo se a poligamia era uma instituigdo potente ao qual no se podia escapar, uma outra corrente inovada pelas mulheres € 08 sibios conseguiu impor-se de uma forma radical. Em Kasembe, as mulheres deixaram a poligamia antes mesmo da chegada do Cristianismo. AMonogamia A monogamia era fortemente encorajada pelas mulheres que chamamos aqui de sagradas, sustentada pelos homens que preferiam esse modo de vida, mais calma e menos problematico, As mulheres que abandonavam os lares poligamos nés baptizdmo-las aqui de rebeldes. ‘inico motivo que poderia levar um homem a procurar uma segunda mulher, era a esterilidade da primeira esposa bem confirmada pelos testes costumeiros. Nesses lares, havia mais 63 As Mulheres Honradas¢Insubmissas de Angola hharmonia, ¢ mais equilibrio na personalidade das criangas. Podia-se falar de amor e no de conveniéncias. Antes do marido procurar uma outra esposa afim de Ihe dar herdeiros, esta, tinha de se submeter 2 um tratamnento antes de concluir que a estérilidade vinha dela. E, se 0 marido nao quisesse de uma outra esposa, eta autorizado a fazer filos com uma relagao extra-conjugal cujos filhos seriam criados pela esposa com quem vivia. Um tipo de mulheres prestava-se a esse jogo, chamémos-Ihe aqui, de rebeldes. Esse sistema visto na optica actual do nosso viver, teria o nome de adopeo ou entio para ser mais precisa, mes portadoras. Em 1960, os dignatétios de Kasembe, ainda caucionavam esse tipo de adopeao tradicional e s6 acabou em 1965 quando essa regio foi evangelizada com a presenga de uma Missao Catdlica. E, se a mae adoptiva viesse a falecer, os filhos eram educados pela mae biolégica sob a protec do pat. A Viuver ¢ as regras gerais a respeitar Os costumes sao sensivelmente diferentes entre vitivos ¢ vitivas, entre monégamos e polfgamos. No lar monégamo: se 0 marido viesse a falever e a esposa fosse ainda jovem, ela teria 0 direito de formar um outro lar com um membro da familia do defunto para a protecgto dos orfés; porém, esta cldusula nfo era imperativamente obrigatéria. (O tempo de abstinéncia era de vinte e duas luas chamadas luas negras (lutu), se 0 casamento se realizasse no scio da mesma familia. Durante essas vinte e duas luas negras, uma das regras principais era a ostentago do lutu, 0 que queria dizer: negligenciar 0 seu corpo, nfo mudar de penteado durante esse tempo, nao se mostrar em passeios ou outras manifestagoes sociais. Findo esse perfodo de viuvez, um tratamento era necessério, ¢ esse tratamento era feito por especialistas A vitva dava-se banhos acompanhados de exorcismos, para liberté-la do espitito do marido ¢ tomé-la assim livre a aceder & um outro casamento, Nesse tratamento utilizavam-se também os elementos supostos representar a vida sobre a terra, 64 Dya Kasembe isto €: a agua, 0 sal ¢ 0 fogo. O tratamento durava trés Iuas © durante esse periodo, a vitiva teria que habitar na casa da kimbandeira, encarregada de a tratar. Durante a fase do tratamento, os banhos no rio ou no mar eram proibidos. Libertada do espfrito do marido, ela era livre de constituir tum novo lar. Mas, se se constatasse que apesar de todos esses exorcismos ela encontrava-se presididria do defunto, entao ficaria vitiva para sempre, Se ela viesse a se encontrar neste contexto a tinica saida era a de pettencer ao cfrculo das mulheres iluminadas, kimbandas ou videntes. ‘Um dos pontos comuns da cultura africana, é a atribuigo de um espirito vingador & morte de um ente querido. O mistério indesvendavel da morte encontra consolagdo na presenga de um espirito maléfico e muitas vezes esse espfrito era encamado num membro ainda vivo no seio da propria familia; © 0 drama comegava precisamente aqui. Quando um homem poligamo morresse, procurava-se um suspeito no meio das esposas, A heranga Em Kasembe, o regime & sem contextos, matriarcal ¢ ‘matriinear. A mulher herdava dos bens e das terras pela mae. Na casa principal ficar4 morando a primeira mulher se ela for velha, ¢ depois da sua morte, habitaré o filho mais velho. O filho habitara ali unicamente como guardido, porque as irmis esto casadas ¢ a viverem com seus maridos. Mas se por acaso uma das filhas se encontrasse na situagdo de solteira ou divorciada, e com uma idade superior a trinta anos, entio seré ela que ocupara casa familiar. A saber que a casa principal era uma heranga de todos e que no poderia ser dividida nem vendida. Seré um bem perpétuo, uma “pousada” para todas as geragdes. As mulheres do defunto no Tar do poligamo se elas nfo se casassem na familia do defunto, deixavam 0 condominio, com as suas terras que elas herdaram de seus pais. Caso contrério ficavam no condominio. ‘Vamos agora nos consagrar ao “status” social. 9. ORGANIZACAO SOCIAL A Nganda (Cireulo dos Sabios) ‘A Neanda que detiva de ngana (exceléneia), era 0 lugar onde os sdbios se reuniem. Hoje dir-se-ia Nganda, para discutirem assumtos do reinado, ou seja, do Estado, Entremos nesse local de sabedoria: é uma assembleia de homens ¢ mulheres que ao longo dos anos acumularam bagagem intelectual, experiéncias e que se sentiam no direito de a ‘transmitirem e utilizarem para uma vivéncia digna ¢ virtuosa. (0 misoginismo nunca teve lugar nesse Nganda, ¢ a mulher cocupava o lugar de destaque que Ihe conferia a sua natureza de mae da humanidade com uma intuig20 profunda ¢ cautelosa que no possuia o homem guetreiro ¢ impulsive. © poder de decistio cabia & mulher. Pode-se aqui avaliar o poder que ela tinha na sociedade. Tal como hoje nas instituigdes modemas, nessas ngandas nao entrava quem quizesse, mas sim quem desse provas de que era digno de merecer a confianga de todos, Conicies de admisséo na Nganda — A dade era uma das condigses essenciais; a nganda era por isso uma academia de velhos, que jé tinham uma vasta, experiéneia de vida. Eles proprios diziam que tinham a idade da vida, =O poder de reflexo, a imparcialidade nos julgamentos —Aexperiéncia de ter vivido, a cultura do espitito; Para as mulheres ¢ para os homens, 0s critérios eram os mesmos. 66 dia kasenbe ANganda e a Justiga Entre as muites actividades do Colégio de Sabios, a OU Seja, @ maneira como a justia era exercida, cativou a nossa atengao, Em Kasembe 0 crime pelo sangue era punido de igual modo. Eram também punidos pela pena de morte os crimes de estupro de menores, © incesto, os depravados, os loucos Perigosos. Os autores desses crimes eram julgados pelos sibios > colégio (nganda) © a sentenca nao admitia apelos Utilizavam-se misturas preparadas pelas feiticeiras que eram solicitadas nas sentengas. Essas decisdes 6 podiam ser utilizadas em casos extremos, quando no houvesse nenhuma outra alternativa e quando o individuo implicado fosse itrecuperavel. O réu era obrigado a beber o veneno, depois levava-se & floresia onde os “mukixes”, esses _monstros legendérios de milhares de cabecas e que habitavam as florestas iriam devoré-lo depois de morto por envenenamento, entdo que os espiritos comeram-no. Antes de 0 criminoso beber o veneno, o teste de eficdcia cre feito num animal; poreo ou cabra, razio pela qual os habitantes dessa regido nao comiam carne de caga, sobretudo se parecida com porco ou cabra. Esses animais depois de mortos pelo veneno ingeride, eram expostos num cruzamento de caminhos, para que a populagao soubesse, ao vé-los, que a Sanzala tinha sido desembaragada de um grande criminoso, Eram julgamentos secretos e a nossa inteng&o nesse Uuadalho ndo foi de tirarmos conclusdes nem de julgarmos 0 que era justo ou no, Sabe-se que outros paises aplicavam e aplicam ainda a pena de morte como os Estados Unidos. A Franga, decapitava os criminosos e isso s6 foi abolido em 1981. Nés quizemos ouvir o testemunho da Ngana Luzia, alids, Kalembe, que peitenceu a esse circulo, e citaremos o caso de MBAXI, pai incestuoso que tinha sido perdoado mas que reircidiu trés vezes com uma das filhas menotes. Aqui a semenga foi sem recurso. Ngana Kalembe foi a juiz que condenou Mbaxi a morrer. Dizia ela que era uma grande izianse 67 As Mulheres Honradas« Insubmisses de Angola cesporsbiidade, mas alo via out alemative, Ee fi apanhado em flagrante e todos os velhos estiveram de acordo, para qu le desaparecese para bem ds fis, | Mas os tempos mudam dizia ela, muitas feiticeras deixavam-se corromper pelas familias e como jé ndo havia a abundincia de animais, 08 testes eram falsos, o individuo bebia mas nio morria e na floresta ele fugia para uma outraregiao. Os expres que iam ver do_defune noe ais nem menos que a propria pessoa que vinha de quando em vez na Sanzala. Também acontecia que grupos da familia da vitima iam & caga desses ditos espititos e conseguiam-no matar para sempre. Por detris desse poder supremo estavam as. mulheres sagradas, que decdiam de too, fora edento ds bastidres. Nessa regio, munea os portaguees conseguir import pritica um servigo administrativo regido pela constituigSo. Esse povo escapava a vginio central, 0 que fez com que os Portugues destisem as Sanzalas de Kasembe par bsg a ponulago a aglomererse o logo das peas eras, ui eotolo mais ec, 658 no final dos anos 60 ¢ que els conseguitam mais ou mencs ‘denifcar as populases, Os homens foram os mais perseguidos e enviados pare as ihas de Sio Tomé, mas também certas mulheres nobres que recusavem 0 trabalho nas estradas. EEE 'CZZS3- OO 10. AS MULHERES Nés vamos estratificar a organizacio feminina, segundo as idades, as experiéncias e o papel delas na comunidade, Essas mulheres pertenciam a grupos bem distintos, que modestamente ‘enkémos compreender, comecando pela mulher suprema, Nos eferimos identificé-las como sagradas. 4 Mulher Sagrada Amulher sagrada nfo era uma mulher ordinécia, Ela tinha Algo mais que todas as outras. Ela era a primeira mulher e fazia parte da Nganda (Nganda). Bla tinha suportado o fardo de uma 2onvivéneia com um homem polfgimo sem nunca desencantar, tendo apoiado 0 esposo em todas as ocasiBes. As divorciadas, as gue abandonavam o condominio, munca teriam o titulo de “sagrada”. Ela sim, porque ela ficou, contra todos os contratempos, foi a tinica, e além disso, foi a primeira, No fundo, ela era uma mulher resignada, que dedicara a sua vida inteira, e por vezes um culto desmesurado, ao esposo que ela chamava com ternura “ngana tata”, (exceléncia, pai dos meus filhes), aparentemente espairecida e pousada. Mulher de poveas palavras. Mas uma 66 palavra safda da sua boca e tudo se destruia (ou se construfa. Ela que soube dar tudo até ao Ultimo évuilo da pré- ‘menopausa assegurando-the assim uma progenitura longa, Ela ¢ 86 cla soube reafinar as intrigas, construir os édios e eliminar do nninbo as “ingratas”. Dotada de uma inteligéncia superior, ela soube dominar o machismo, submeter e impér a sua autoridade incontestavelmente, Ela era rainka e a deusa do templo. Por cla passavam todas as outras esposas, ¢ ele em exchsividade. Ela era omnipotente e omnipresente, Com ela 69 ‘As Mutheres Honradase Insubmissas de Angola ficavam as que Ihe agradavam; as que considerava como perigosas, ela arranjava-se para as fazer partir desse leito cujo controlo era exclusivamente seu, + As mulheres sagradas adquiriam poderes incontornéveis no Ngands e a presenga delas era uma ameaga permanente para os homens que se sentiam controlados, porque toda a decistio tinha de ser filtrada por elas. Esses poderes eram-lhes conferidos pela propria. natureza. Vimos isso no capitulo precedente. O facto mesmo de serem do sexo feminino era jé um privilégio, Porque, segundo as crencas tradicionais, a mulher possula o mistério da vida, e que através dela o ser humano entrava numa ccélula para sair num ser feito e completo, Outro poder era 0 poder econémico: a semente sendo {émea, s6.a mulher tinha 0 dom de cultivar a terra, por essa raztio quem melhor do que ela sabia 0 que estava no celeiro? Atribuia- se também & mulher um poder mistico do sexto sentido. A intuiggo de uma mulher era fatal. Vinfia em seguida 0 poder supremo: ela possuia o caminho do mundo, porque dava a luz. Todos esses poderes, a mulher utilizava-os ¢ abusava, Por todas essas razBes, quando uma mulher “Sagrada” ameagava despir-se diante de uma assembleia para thes mostrar 0 caminho do mundo, os problemas bloqueados ou pendentes pelos homens, encontravam imediatamente solugao. Porque as mulheres ai presentes representavam a imagem da mie, ¢ € com esta autoridade de mie sagrada que elas protegiam toda uma sociedade contra o despotismo dos homens Conhecendo elas de perto os problemas dos lares poligamos ficavam atentas a todos os feitos. Elas nao permitiam que uma mulher fosse maltratada. Quando havia conflitos entre casais a liltima solugo era a intervengio delas, porque elas eram intransigentes nas suas decisdes. Um assunto que chegasse até 80 seu conhecimento tinha resolugdo imediata e radical. Por isso ‘mesmo 6 que clas intervinham s6 como iiltimo recurso. Em 1986, Kwanza Ambundu ainda vivia, ¢ deu-nos 0 quadro na resolugdo de um caso de violéncia conjugal: Ela chegava no domicitio do casal com problemas, cujo 70 Dya Kasembe marido reincidente, acusado varias vezes € repreendido pelos familiares, ndio conseguia emendar-se. Ultimo recurso, Kwanza Ambundu, Dizia ela: “Bra preciso estar de madrugada na casa dos interessados. A hora em que os espiritos regressam aos imulos. No podia comer porque tinha de estar em jejum. Jejuar nessa manhé, fazia parte do ritual. Chegava-se na frente da casa ‘mas batia a porta para entrar, nem se fazia acompanhar de rninguém. Sentava-se numa pedra ou mum banco na soletra da Porta e de costas viradas para a entrada principal da casa. Era uma visita imprevista depois da intervencao de varios familiares. Ela tinha de estar ai sentada até 0 dono da casa acordar e abrir 4 porta, Se a convidasse para enivar ela tinha de negar. Nao mexia nem othava para ele. Ele pegava entéo um banco e sentava-se ndo muito distante mas sufucientemente perio para couvila; sem olhar para ele ¢ sempre de costas viradas ela relatava-the os factos que toda a gente sabia Ele néo podia responder nem desmentir tinha de escutar em siléncio. O aprosimar-se dela seria um ultraje, 0 responder seria uma falta de respeito ¢ ela podia amaldicod-lo; Ela falava sem parar nem esperar resposta, e depois regressava a sua casa. lé ela esperava pela resposta do acusado, Depois de wma boa reflexiio de uma semana ou mais, 0 culpado fazia-se acompanhar de alguns membros idosos seus familiares, e de alguns presentes significativos (mel, milho, tecidos). Expunha os factos efeitos, pedia perdio e prometia nao mais recomecar. E se depois desses rituais, ele ndo se emendasse, 0 caso era transferido ao “Nganda”, votava-se a sua expulstio da Sanzala como elemento perturbador na comunidade, ou se 0 caso fosse muito grave, a pena de morte. Normalmente, as reincidéneias eram raras. Porque além de serem expulsos da sanzala conhecia todas as humilhagées uma delas era o de serem apredejados por criangas. Hayia também uma outra punigo para os casos banais. era a de figurar na topologia das cangées satiricas que agrementavam os Kiswingilas. A esse poder das mulheres sagradas ou supremas, juntava-se o poder das mulheres que nés chamamos aqui de rebeldes (ou liberais) Ns SS Sw FS

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