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Correio

DA U N E S CO julho-setembro 2019

Mudança climática:
os desafios éticos
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Carolina Rollán Ortega comprometem a Organização.
Correio
O

Editorial
DA UN E S CO

Este relatório especial é publicado para marcar a Cúpula sobre Ação Climática das Nações nossos tempos. Porque, paralelamente
Unidas, em 23 de setembro de 2019, e a 25ª sessão da Conferência das Partes da Convenção do às questões científicas que chegam às
Clima das Nações Unidas (COP-25), em Santiago, no Chile, de 2 a 13 de dezembro de 2019. manchetes da mídia, as questões de justiça
e equidade, respeito aos direitos humanos,
solidariedade e integridade científica e
O Relatório especial sobre o aquecimento Mudar as mentes significa estabelecer uma
política, assim como responsabilidade
global de 1,5°C do Painel Intergovernamental nova ordem de prioridades na política, na
individual e coletiva, devem ser os
para Mudanças Climáticas (Intergovernmental economia, na indústria e nas vidas cotidianas
principais pilares de nossas ações em uma
Panel on Climate Change – IPCC) causou de todos nós. Mas acima de tudo, trata-se de
muita turbulência e fez rolar muita água. A escala mundial.
se conscientizar sobre as implicações éticas
fim de evitar consequências catastróficas, o da mudança climática – que ameaçam não Porém, na prática, esse ainda não é o
aquecimento global deve ser limitado a 1,5°C apenas os ecossistemas do planeta, mas caso. Mesmo “a comunidade dos direitos
acima dos níveis pré-industriais, alertou o também os nossos direitos fundamentais ao humanos, com poucas exceções notáveis,
relatório. Contudo, como sabemos, estamos criar injustiças e ampliar as desigualdades. tem sido tão complacente quanto a maioria
longe de alcançar essa marca. Para superar dos governos diante do derradeiro desafio
este desafio do século, os cientistas defendem Na medida em que as dimensões éticas da
mudança climática ainda são relativamente da humanidade representado pela mudança
uma mudança radical no comportamento – climática”, afirma o especialista australiano
algo que não pode ser alcançado sem uma inexploradas, a UNESCO adotou, em
novembro de 2017, a Declaração de Philip Alston, em seu relatório para a ONU
mudança profunda em nossas atitudes. de 25 de junho de 2019. O relator especial
Princípios Éticos em relação à Mudança
“Changing minds, not the climate” (Mudar Climática – uma ferramenta acessível a sobre pobreza extrema e direitos humanos
as mentes, não o clima) é o slogan da todos os atores da sociedade, especialmente considera que as medidas adotadas pela
campanha de conscientização pública líderes políticos, a fim de possibilitar a maioria dos órgãos de direitos humanos
da Estratégia de Ação sobre a Mudança tomada de decisão mais apropriada. da ONU são claramente inadequadas.
Climática 2018-2021 da UNESCO, que está “Marcar itens de uma lista de checagem não
em sintonia com o Acordo de Paris de Com este relatório especial, O Correio vai salvar a humanidade ou o planeta do
2015 (COP-21) e com a Agenda 2030 das pretende abrir novas perspectivas para
desastre iminente”, alerta o especialista.
Nações Unidas para o Desenvolvimento a reflexão sobre esses aspectos menos
Sustentável (ODS). conhecidos do maior desafio mundial de Vincent Defourny e Jasmina Šopova

A estratégia estabelece uma ampla gama de


ações em diversas áreas – da educação para
o desenvolvimento sustentável (EDS) e a
gestão responsável do oceano (por meio da
Comissão Oceanográfica Intergovernamental
– COI), à segurança hídrica (por meio do
Programa Hidrológico Internacional – PHI) e
sítios culturais e naturais sob a proteção da
UNESCO, que servem como Observatórios de
Mudança Climática.
Muitos outros projetos estão em andamento
para aumentar a conscientização pública
sobre a mudança climática por meio da
mídia, ou para informar as crianças por
meio da Rede de Escolas Associadas da
UNESCO (ASPnet). Além desses esforços,
há Cátedras da UNESCO sobre Mudança
Climática e Desenvolvimento Sustentável;
o Climate Frontlines (Linhas de Frente do
Clima), as redes de povos indígenas e outras
comunidades vulneráveis, e as iniciativas
essenciais de Cidadãos Verdes da UNESCO:
Desbravadores para inciativas de mudança.

Pôster do A Planet for Tomorrow


(Um Planeta para o Amanhã), do
projeto Poster for Tomorrow.
© posterfortomorrow 2018 – homework
(tarefa de casa) no plan, no planet
O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 |3
Sumário
GRANDE ANGULAR
7 A mudança climática:
questões filosóficas e éticas
Bernard Feltz
6-35
10 Crimes ambientais devem
ser levados à Justiça
Catriona McKinnon
13 Mudança climática,
um novo tema para o direito
Anne-Sophie Novel
16 O clima e a justiça social
Thiagarajan Jayaraman,
entrevistado por Shiraz Sidhva
19 Paquistão: verde novamente
Zofeen T. Ebrahim
22 Energia solar:
mudando vidas no campo
Victor Bwire
24 Carbono zero,
a começar pelas cidades!
Manuel Guzmán Hennessey
26 Cidades africanas em ação
Niels Boel e Finn Rasmussen,
com Hadra Ahmed
28 A solidariedade
internacional em questão
Johan Hattingh
31 Mudança climática e educação
Laura Ortiz-Hernández
32 Coronel: Devemos
agir rapidamente!
Thierry Geoffroy,
entrevistado por Niels Boel
34 Arshak Makichyan:
o manifestante solitário
Entrevista por Jasmina Šopova
36-43 ZOOM
Juventude árabe,
arquitetos de seu futuro
Fotos:
Yan Bighetti de Flogny
Texto:
Katerina Markelova

4 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


44-49 IDEIAS
45
Um conto de dois futuros
Sandrine Cathelat e Mathilde Hervieu
48
Inovações em IA para
enfrentar os desafios sociais
Dhruv Ghulati e Gil Perry,
entrevistas por Shiraz Sidhva

50-53
NOSSO
CONVIDADO
Baku: cidade multicultural
Fouad Akhoundov,
entrevistado por Mila Ibrahimova

ASSUNTOS
ATUAIS
54-58
55 A África do Sul de Mandela:
sonho ou realidade?
Jody Kollapen,
entrevistado por Edwin Naidu

57 Dmitry Mendeleev:
ensinamentos de um profeta
Natalia Tarasova e Dmitry Mustafin

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Mudança climática:
desafios éticos
Grande angular

Pôster para aumentar a


conscientização sobre
a mudança climática,
concebido por ocasião da
COP-21, do artista belga
© Selçuk Demirel

Luc Schuiten.
Luc Schuiten
A mudança climática: questões

filosóficas e éticas

Bernard Feltz

A humanidade está em débito, pois, ano após ano, consome mais


recursos do que a natureza pode fornecer. Esse consumo excessivo tem
efeito direto no clima. Para melhor compreender as questões em jogo,
o filósofo e biólogo Bernard Feltz lança luz sobre as complexas relações
entre os seres humanos e a natureza e concentra-se nos aspectos éticos
da gestão da mudança climática.

Um grande desafio do nosso tempo, a Podemos ver até que ponto essas A última compreensão sobre as relações
mudança climática diz respeito tanto suposições levaram à exploração entre os seres humanos e a natureza tenta
ao nosso cotidiano quanto à ordem descarada da natureza em todas as suas manter certo distanciamento do radicalismo
geopolítica mundial. É uma das dimensões formas: agricultura, pesca, pecuária dos ecologistas profundos e realça a
de uma crise ecológica mundial, uma intensiva, esgotamento mineral, poluição relevância da crítica à ciência ecológica. A
consequência direta das complexas de todos os tipos. natureza e os seres humanos coexistem e se
interações entre os seres humanos e inter-relacionam em um modo de viver mais
A ciência ecológica é outra abordagem,
a natureza. Essas relações podem ser respeitável. Um animal pode ser respeitado
que transmite uma visão do mundo
divididas em quatro abordagens principais. por si mesmo, sem ter o mesmo status de
completamente diferente. Em 1937, o
um ser humano.
A primeira, a de Descartes, considera a botânico britânico Arthur George Tansley
natureza como um conjunto de objetos propôs o conceito de ecossistema, que Uma espécie viva ou um ecossistema
disponíveis aos seres humanos. O filósofo revolucionaria a relação científica com a específico são respeitáveis como realizações
do século XVII – contemporâneo de Galileu natureza. Esse conceito refere-se a todas as notáveis da natureza, assim como uma
e considerado um grande idealizador da interações das espécies vivas entre si, e de obra de arte é uma realização notável
modernidade – defendeu o estabelecimento todos os organismos vivos com o ambiente da humanidade. A dimensão estética de
de ciências da vida semelhantes às ciências físico: o solo, o ar, o clima etc. Neste uma obra de arte reflete uma dimensão
físicas emergentes. Ele defende a ideia de contexto, o homem redescobre-se como fundamental da realidade que apenas o
uma “máquina animal”. Os seres vivos não parte da natureza, como um elemento do artista é capaz de revelar. No entanto, tal
são nada além de matéria inerte organizada ecossistema. Além disso, esse ecossistema é relação não implica que a obra respeitada
de forma complexa. Somente o ser humano um ambiente finito, com recursos limitados, tenha o status de um ser humano. É possível
tem uma alma substancial distinta do corpo, tanto antes quanto depois da intervenção haver uma hierarquia de valores. Os animais,
tornando-se a única espécie respeitável. O das atividades humanas. as paisagens e determinados ecossistemas
restante da natureza, viva ou inerte, é parte tornam-se respeitáveis de duas maneiras – é
Contudo, muitos pensadores consideram
do mundo dos objetos à disposição da o ser humano que decide respeitá-los, e é
que a abordagem da ciência ecológica
humanidade. Descartes não tem qualquer uma forma de respeito que não se iguala ao
é insuficiente. Os ecologistas profundos,
consideração pelo meio ambiente, o vê de respeito devido aos seres humanos.
por exemplo, acreditam que o cerne do
forma utilitária e o considera um recurso
problema na abordagem científica, incluindo
infinito que os seres humanos podem se
a ecológica, é o antropocentrismo. Defendem
valer sem quaisquer escrúpulos.
uma filosofia da totalidade que integra os
seres humanos aos organismos vivos como
um todo, sem lhes conceder qualquer status
especial. O respeito pelos animais é o mesmo
que o respeito pelos humanos.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 |7


Uma espécie viva
ou um ecossistema
específico são
respeitáveis como
realizações notáveis
da natureza, assim
como uma obra
de arte é uma
realização notável
da humanidade.

Na encruzilhada da
ciência e da política
Uma dimensão da crise ecológica, a
mudança climática abre o caminho para
uma reflexão mais específica sobre a relação
entre a ciência e a política.
A ciência tem grande responsabilidade
pelo surgimento do problema climático.
E entramos no Antropoceno, em grande derivam sua legitimidade de sua eleição. muito mais difícil, se não impossível.
parte, devido ao impressionante poder Eles são eleitos para escolher de forma Conhecemos o princípio do “imperativo da
desenvolvido pelas novas tecnologias e seu precisa o cenário que se encaixa em seus responsabilidade humana”, desenvolvido
uso ilimitado pelos poderes econômicos. sistemas de valores. A mudança climática pelo filósofo alemão Hans Jonas, no final
Pela primeira vez na história, as atividades envolve análises técnicas altamente dos anos 1970, que pondera precisamente
humanas estão levando a mudanças em complexas, que nem sempre estão alinhadas sobre as questões ecológicas: “Aja de
algumas características ambientais que com as orientações políticas. modo que os efeitos de suas ações sejam
afetam toda a humanidade. compatíveis com a permanência da
Entretanto, a ciência também nos torna Ética ambiental e autêntica vida humana na Terra”. A partir
de agora, trata-se de integrar na vida social
conscientes das questões relacionadas à
crise ecológica. Ela desempenha um papel
mudança climática contemporânea a preocupação com a
sustentabilidade do sistema a longuíssimo
determinante no desenvolvimento dos É necessário reconhecer, mesmo assim, que
prazo, e incluir as gerações futuras no
cenários que podem levar à gestão racional iniciamos uma transição em direção a uma
âmbito de nossas responsabilidades.
da crise climática. A ciência pode nos destruir, sociedade moldada de forma decisiva por
mas também pode nos salvar. Integrada a restrições ecológicas. O envolvimento de Essas preocupações ambientais devem
um entendimento mais amplo da realidade, a todos em suas vidas cotidianas, o trabalho ser consistentes com os requisitos éticos
abordagem científica se mantém decisiva no dos diversos atores econômicos em suas contemporâneos, ou seja, o respeito pelos
controle da mudança climática. respectivas atividades são condições direitos humanos e a igual consideração
fundamentais para medidas eficazes – por todos os seres humanos. Nem todas
No entanto, democracia não é tecnocracia.
desde as empresas de pequeno e as populações humanas são iguais frente
Em uma democracia, é o político quem toma
médio porte aos mais poderosos trustes ao desafio climático. Paradoxalmente, os
as decisões. O sociólogo alemão Max Weber
multinacionais, além do envolvimento países mais pobres são muitas vezes os
(1864-1920) fazia distinção entre o reino dos
de estruturas estatais e intermediárias, mais afetados pelo aquecimento global
fatos e o reino dos valores. De um lado, o do
sindicatos, federações empresariais, sem controle. O respeito pelos direitos
conhecimento, os cientistas são especialistas
organizações da sociedade civil (OSCs) etc. humanos deve, portanto, levar a um
em fatos. Eles são responsáveis por analisar
princípio de solidariedade internacional
situações e propor diversos cenários Porque a questão fundamental é o futuro
que, por si só, possa garantir a gestão
compatíveis com as limitações ecológicas. da humanidade. O que nos motiva a
mundial da mudança climática e que sejam
Os políticos, por outro lado, agem de acordo agir é a constatação de que a mudança
tomadas medidas específicas para situações
com os valores que estão comprometidos climática sem controle pode fazer com
particularmente complexas.
em defender. Em um sistema democrático, que a vida humana na Terra se torne

8 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Os princípios éticos da mudança climática
A mudança climática não apenas ameaça nossos ecossistemas, ela enfraquece a fundação
dos nossos direitos fundamentais, aprofunda as desigualdades e cria novas formas de
injustiça. Adaptar-se à mudança climática e tentar mitigar seus impactos não é apenas
uma questão de conhecimento científico e vontade política; exige também uma visão
mais ampla de uma situação complexa.
A fim de ajudar os Estados-membros e outras partes interessadas a tomar decisões apropriadas
e implementar políticas eficazes para o desenvolvimento sustentável, a adaptar-se à mudança
climática e a mitigar seus efeitos negativos, a UNESCO adotou uma Declaração de Princípios
Éticos em relação à Mudança Climática, em novembro de 2017.
A ética constitui o núcleo substancial de qualquer compromisso. Como uma força
mobilizadora, a ética pode orientar a ação, facilitar a arbitragem, resolver interesses
conflitantes e estabelecer prioridades. A ética tem a capacidade de conectar a teoria com a
prática, princípios gerais com a vontade política, e a consciência mundial com ações locais.
A Declaração adotada pela UNESCO baseia-se em seis princípios éticos:
© Minimum Monument por Néle Azevedo / photo Fanca Cortez, 2016

Prevenção de danos – prever melhor as consequências da mudança climática e


implementar políticas responsáveis e eficazes para mitigar e adaptar-se à mudança
climática, inclusive por meio do desenvolvimento e de iniciativas para a redução da
emissão de gases de efeito estufa a fim de fomentar a resiliência climática.

Abordagem preventiva – não postergar a adoção de medidas para prevenir ou mitigar os


efeitos adversos da mudança climática com base na falta de evidências científicas definitivas.

Equidade e justiça – responder à mudança climática de forma que beneficie a todos,


em um espírito de justiça e equidade. Permitir que aqueles injustamente afetados pela
mudança climática (devido a medidas insuficientes ou políticas inadequadas) tenham
acesso a procedimentos judiciais e administrativos, incluindo reparações e soluções.

Desenvolvimento sustentável – adotar novos caminhos para o desenvolvimento que


possibilite a preservação dos nossos ecossistemas de forma sustentável, ao mesmo tempo
em que se constrói uma sociedade mais justa e responsável, mais resiliente à mudança
climática. Atenção especial deve ser dada às áreas onde as consequências humanitárias
da mudança climática podem ser dramáticas, como insegurança alimentar, energética e
Minimum monument (Monumento hídrica, o oceano, a desertificação, a degradação da terra e os desastres naturais.
mínimo), um projeto de arte pública
efêmero da artista brasileira Néle Solidariedade – ajudar, individual e coletivamente, as pessoas e os grupos que são mais
Azevedo. Centenas de pequenas figuras vulneráveis à mudança climática e aos desastres naturais, especialmente nos países menos
humanas de gelo derretem em altas desenvolvidos (PMDs) e nos pequenos estados insulares em desenvolvimento (PEIDs).
temperaturas no momento em que são Fortalecer a ação cooperativa oportuna em várias áreas, incluindo o desenvolvimento e a
instaladas. São Paulo, Brasil, 2016. transferência de tecnologia, o compartilhamento de conhecimento e a capacitação.

Conhecimento científico e integridade na tomada de decisões – fortalecer a interface entre


O princípio da responsabilidade pelas a ciência e a política para otimizar a tomada de decisões e a implementação de estratégias
gerações futuras e o princípio da solidariedade relevantes de longo-prazo, inclusive a previsão de riscos. Promover a independência da
de todos para com todos são essenciais para ciência e amplamente disseminar suas descobertas ao maior número possível de pessoas,
uma gestão equitativa da crise ecológica. para o benefício de todos.

A UNESCO tem longa experiência em ética ambiental, apoiada pela Comissão Mundial
para a Ética do Conhecimento Científico e Tecnológico (COMEST), criada em 1998. Como
órgão consultivo e fórum para reflexão, a COMEST publicou uma série de relatórios na
última década, que ajudaram a informar o debate público. Seu relatório de 2015 serviu de
base para a Declaração de Princípios Éticos em relação à Mudança Climática.
Biólogo e filósofo belga, Bernard Feltz é
professor emérito da Universidade Católica
de Louvain. Sua pesquisa se concentra na
filosofia da ecologia, em questões bioéticas
e nas relações entre a ciência e a sociedade. Uma dimensão da crise ecológica, a
Atualmente, ele é o representante da
Bélgica no Comitê Intergovernamental de
Bioética da UNESCO (Intergovernmental
mudança climática abre o caminho
Bioethics Committee – IGBC). para uma reflexão mais específica sobre
a relação entre a ciência e a política.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 |9


Crimes ambientais
devem ser levados à Justiça
Catriona McKinnon

O negacionismo climático aumentou o risco da mudança mundial


catastrófica. Deveria o direito penal internacional ser usado contra
aqueles que promovem essa tendência perigosa? Os líderes econômicos e
políticos não podem mais fingir que se trata de manter a rotina de sempre
(business as usual). Quer induzam danos ambientais de forma ativa, ou
simplesmente ignorem a ameaça existencial contra a sobrevivência da
espécie humana, os Estados e as empresas devem ser responsabilizados
por suas ações ou pelo imobilismo em relação à mudança climática.

Um incêndio começou no teatro, do qual


não há saídas. Sem controle, o incêndio
Acelerar a extinção da ao que há de mais fundamentalmente
valioso para nós. A mudança climática está
matará e ferirá muitos no teatro, começando humanidade causando exatamente esses danos.
por aqueles que estão nos assentos mais
As sanções penais são as ferramentas mais Ao longo dos últimos 250 anos
baratos. Muitas pessoas podem sentir o
potentes que temos para balizar uma aproximadamente, temos queimado
cheiro da fumaça, mas outras ainda não o
conduta que esteja além de todos os limites combustíveis fósseis para produzir energia
notam. Algumas pessoas estão tentando
da tolerância. A conduta criminosa viola barata, destruído sumidouros de carbono,
alertar a todos para que o incêndio possa ser
os direitos básicos e destrói a segurança aumentado a população mundial, e não
contido antes que se alastre fora de controle.
humana. Reservamos o duro tratamento da conseguimos deter a influência maligna
Outro grupo – a maioria sentada nos
punição para condutas que causam danos dos interesses corporativos na ação política
assentos mais caros – está tentando gritar
em voz alta que não há incêndio, ou que
não é sério, ou que ainda há tempo de sobra
para apagá-lo. Este grupo usa linguagem
emotiva e insiste que não se deve confiar
no outro grupo.
Muitas pessoas no teatro estão confusas
por essas mensagens conflitantes, ou
convencidas por aqueles que negam o
incêndio. Nesse conjunto de confusos/
convencidos há pessoas suficientes para
desacelerar, de maneira significativa, os
esforços daqueles que ouvem os alertas
corretos, aqueles que estão tentando
apagar o incêndio. Nesse cenário, aqueles
que gritam “não há incêndio!” devem ser
silenciados, pois há um incêndio que requer
medidas urgentes e imediatas para impedir
que ele se alastre e se torne incontrolável.
No entanto, o incêndio não está sendo
combatido de maneira adequada porque
muitas pessoas no teatro não sabem em
quem acreditar.
Podemos comparar aqueles que negam a
realidade da mudança climática ao grupo
© Cynthia Carvalho / Greenpeace

que ocupa os melhores lugares do teatro?


A resposta é óbvia: sim.

10 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


que poderia ter tornado a mitigação
exequível. Agora, temos uma janela de
apenas 10 anos ou menos para evitar o uso
O escopo do direito penal
total do orçamento de carbono de 1,5°C, de
acordo com o Relatório Especial de 2018 do internacional faz com que seja
a esfera certa para enfrentar
Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC). Se seguirmos em nossa
atual trajetória de emissões sem uma
mitigação agressiva, poderemos perceber o
aquecimento na faixa de 4°C a 6,1°C acima
das médias pré-industriais até 2100. Mesmo
as ameaças existenciais criadas
que todos os países cumpram suas atuais
metas de mitigação no âmbito do Acordo
pela mudança climática
de Paris de 2015 (COP21), provavelmente
perceberemos um aquecimento de, pelo
menos, 2,6°C até 2100. de 2018. Esse aumento ocorre quando independentemente das fronteiras
Um aumento na temperatura de 4°C a 6,1°C se ultrapassa o limite de tolerância, ou nacionais, agora e no futuro. O direito penal
até 2100 seria catastrófico. Grandes áreas seja, a hora no sistema climático em que internacional expressa os valores que unem
da Terra se tornariam inabitáveis com as o efeito não pode mais ser interrompido, a comunidade humana ao longo do tempo.
elevações do nível do mar e das temperaturas. ocasionando o desencadeamento de Ele assevera a condenação de “atrocidades
Eventos climáticos extremos, quebras de safra, processos que agravam o aquecimento. Por inimagináveis que chocam profundamente a
e conflitos causados pela migração em massa exemplo, a Floresta Amazônica, que deixou consciência da humanidade” – como previsto
nunca antes vistos na história da humanidade, de ser a região que mais absorvia carbono no Estatuto de Roma do Tribunal Penal
provocariam intensa pressão sobre os lugares no mundo para se transformar em uma Internacional (TPI) de 17 de julho de 1998,
habitáveis remanescentes. Nessas condições fonte de emissão de carbono; ou o enorme que define, inter alia, os crimes internacionais
frágeis e turbulentas, o próprio aumento recuo do gelo polar, que reduz o reflexo da sobre os quais o TPI tem jurisdição.
do efeito do aquecimento poderia colocar a luz do planeta e eleva a velocidade de seu
Para que haja um crime, deve haver
humanidade em risco de extinção, conforme processo de aquecimento. Esses limites de
um criminoso. A morte e o sofrimento
publicou o periódico Futures, em setembro tolerância são descritos no quinto relatório
causados pelos impactos climáticos são
de avaliação do IPCC (Fifth Assessment Report
profundamente chocantes, mas isso não
– AR5) como um limiar fundamental no qual
é o bastante para instaurar um processo
o clima mundial ou regional muda de um
no âmbito do direito penal internacional.
“O negacionismo climático se beneficiou estado estável para outro.
A morte e o sofrimento são causados por
da generosidade da indústria de Os aumentos na temperatura de 4°C a 6,1°C erupções vulcânicas, contudo, não há agentes
combustíveis fósseis.” não são prováveis, mas também não são culpáveis nesses casos. A atual crise climática
ficção científica. Essa ameaça existencial se tem sido causada pela atividade humana
torna mais real a cada ano que passa sem dos últimos 250 anos aproximadamente,
uma mitigação agressiva para atingir a marca levando ao acúmulo de gases de efeito estufa
de zero emissão líquida até 2050. Mesmo na atmosfera. A crise climática é, em grande
que o Acordo de Paris aborde de maneira parte, uma consequência não intencional de
agressiva a ambição de mitigação para fechar ações ao longo da história que destruíram
o hiato de emissões até 2030, continua a ser os sumidouros de carbono, aumentaram
o caso, pois já atingimos 1°C de aquecimento. os fluxos de carbono, e concentraram os
Esperam-se novos aumentos na temperatura, estoques de carbono. A maior parte dessa
devido ao intervalo de tempo entre as conduta está além do alcance legítimo do
emissões e o aquecimento que elas direito penal internacional, até porque as
induzem, e ao longo tempo de vida das pessoas relevantes estão mortas. A maior
moléculas de carbono na atmosfera. parte, mas não tudo.

Entre o comportamento ... e o “postericídio”


irresponsável... Propus que o direito penal internacional deva
ser ampliado para incluir um novo crime
Deveríamos usar o direito penal para
que chamo de “postericídio”. Ele é cometido
combater a mudança climática? A
pela conduta intencional ou imprudente,
geração de pessoas vivas atualmente,
apta a provocar a extinção da humanidade.
no Antropoceno, é capaz de danificar e
O “postericídio” é cometido quando a
degradar o meio ambiente de tal forma que
humanidade é colocada em risco de extinção
pode causar a extinção da humanidade. O por conduta realizada com a intenção de
“postericídio” é uma resposta moralmente tornar a humanidade extinta, ou com o
necessária às novas circunstâncias da conhecimento de que a conduta é adequada
humanidade no Antropoceno. O escopo para ter esse efeito. Uma pessoa é imprudente
do direito penal internacional faz com quando ela age mesmo sabendo que sua
que seja a esfera certa para enfrentar as conduta acarretará um risco inadmissível
ameaças existenciais criadas pela mudança a outra. É nas condutas imprudentes, que
climática. O direito penal internacional visa provocam a mudança climática, que devemos
a proteger toda a comunidade humana, identificar as condutas “postericidas”.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 11


As emissões de uma única pessoa não Quem deveria ser processado por O negacionismo climático dificultou
são capazes de provocar a extinção da “postericídio”? Poderíamos começar muito os esforços agressivos de mitigação
humanidade devido aos impactos climáticos examinando a estabelecida rede que poderiam ter evitado nossa atual
– contudo, as emissões de muitos jatos internacional de organizações, devidamente emergência climática. Ele ampliou o risco
particulares e poços de petróleo que as financiadas, dedicadas ao negacionismo que a humanidade enfrenta da catastrófica
pessoas possuem podem provocá-la. climático organizado (Para saber mais mudança climática mundial. Deveriam ser
Entretanto, indivíduos em seus papéis de sobre este assunto, leia o artigo “Text-mining responsabilizadas as pessoas em posições
líderes políticos e empresariais podem the signals of climate change doubt, na de autoridade nos Estados ou nos grupos
exercer amplo controle sobre o quanto revista Global Environmental Change”, industriais cujas mentiras nos colocou em
a mudança climática pode piorar em volume 36, de janeiro de 2016). O epicentro perigo e também nossos descendentes. O
consequência de sua ação. O presidente de dessa atividade está nos Estados Unidos. dano causado pelos negacionistas climáticos é
um país pode retirar um Estado de um acordo Um conjunto de grupos conservadores de hediondo e eles não têm desculpas. Chegou o
mundial de mitigação; um diretor-executivo reflexão tem deliberadamente enganado o momento de processá-los por “postericídio”.
pode autorizar a retenção de informações público e os tomadores de decisões políticas
sobre o progresso e os impactos da mudança sobre as realidades da mudança climática.
climática, pelo fato dessas informações O negacionismo climático ideologicamente
motivado por esse conjunto tem sido
ameaçarem os resultados da empresa.
financiado pela indústria de combustíveis
Em geral, os indivíduos têm controle fósseis, que incluem, por exemplo, a Koch
sobre condutas que eles próprios não Industries e a ExxonMobil. Esse negacionismo Professora de teoria política na Universidade
praticam, por exemplo, ao dar ordens climático tem exercido um impacto significativo de Exeter, no Reino Unido, Catriona
diretas aos subordinados, ou em virtude de sobre a opinião pública e tem impedido a McKinnon publicou diversos artigos e livros
relacionamento especial com outras pessoas legislação para combater a mudança climática. sobre justiça climática e sobre tolerância
cuja conduta cause danos. Isso significa e ideais políticos liberais. Atualmente, ela
que podemos atribuir responsabilidade
indireta aos indivíduos de poder,
Responsabilidade está concluindo uma monografia em
que defende o “postericídio” (Endangering
autoridade e influência dentro de grupos penal indireta Humanity: an international crime), escrevendo
que, como coletivos, pioram a mudança um livro introdutório sobre justiça climática
Rex Tillerson [antigo CEO da ExxonMobil, que
climática a ponto de causar a extinção da e pesquisando as questões éticas levantadas
também serviu como secretário de Estado
humanidade. Assim como o direito penal dos Estados Unidos de fevereiro de 2017 a pela geoengenharia.
internacional considera os líderes militares março de 2018], Charles Koch e David Koch
responsáveis pelo genocídio cometido [proprietários da Koch Industries] deveriam
por suas tropas, ele deve responsabilizar ser julgados pelo crime de “postericídio” no
os líderes políticos e econômicos pelo TPI? Suas responsabilidades penais indiretas
“postericídio” cometido sob sua autoridade. seriam suscitadas pela autorização de vários Hummingbird rising (Insurreição do
Esses líderes devem ir a julgamento no atos de negacionismo climático praticados beija-flor), uma mandala a favor da justiça
TPI e serem responsabilizados pelos por outros, sem os quais, provavelmente, climática em San Francisco, nos Estados
valores fundamentais compartilhados pela teria havido uma ação política agressiva Unidos, do artista norte-americano John
comunidade humana. inicial sobre a mudança climática. Quigley, 2018. É uma mensagem aos
líderes mundiais de que o clima mudou e
nós também devemos mudar.
© Josh Edelson / Greenpeace

12 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Mudança climática,
um novo tema para o direito
Anne-Sophie Novel

Cada vez mais cidadãos e


organizações não governamentais
em todo o mundo estão buscando
os tribunais por justiça sobre
mudança climática. O alcance
sem precedentes dessas disputas
merece ser destacado. Esse
tipo de litígio relativamente
recente está forjando a opinião
pública, e constitui uma forma
de pressão sobre os Estados e as
indústrias que os está forçando
a sair de sua inércia.

Os anos se passam e novos recordes são


definidos para o aumento das temperaturas.
Os gases de efeito estufa (GEEs) continuam
a aumentar, e as populações em todo o
mundo estão cada vez mais preocupadas
e descontentes com a falta de reação dos
Estados frente à crise da mudança climática.
Como resultado, o número de ações judiciais
contra a inércia frente à mudança climática
está em forte crescimento.
O primeiro caso deste tipo no mundo
foi apresentado em 2013, na Holanda. A
Fundação Urgenda, um grupo ambientalista
holandês, processou o governo pelo
“fracasso do Estado holandês em tomar
ações suficientes para evitar a mudança
climática perigosa”. Na época, a Holanda era
© Peter Pa

um dos países mais poluidores da União


Europeia, e a Fundação exigiu a tomada de
medidas para reduzir as emissões do país de
25% para 40% até 2020 (em comparação aos Pôster do ilustrador cambojano-norte-
níveis de 1990). -americano Peter Pa, encomendado
pela amplifier.org.
Em 24 de junho de 2015, o Tribunal de
Primeira Instância de Haia decidiu em favor Mais cedo no mesmo ano, na Noruega, um
da Urgenda – sentença confirmada em 9 de Em 5 de abril de 2018, o Supremo Tribunal veredito menos favorável aos reclamantes
outubro de 2018 pelo Tribunal de Apelação da Colômbia decidiu em favor de 25 jovens foi proferido. Em 2015, duas ONGs, a
de Haia, com base em fatos cientificamente que haviam processado o governo por Greenpeace Nordic e a Nature and Youth,
comprovados e em consonância com o não garantir seus direitos fundamentais à se opuseram à abertura de novas áreas
princípio tradicional do dever de diligência vida e ao meio ambiente. Com o apoio da de perfuração de petróleo e gás no Mar
de um governo. O tribunal decidiu que Dejusticia, uma ONG de direitos humanos de Barents, no Oceano Ártico, um dos
as emissões holandesas de gás devem com sede em Bogotá, eles obtiveram mais frágeis ecossistemas do mundo. No
ser reduzidas em pelo menos 25%. uma decisão judicial ordenando que o entanto, o Tribunal de Oslo decidiu que
Reconhecida como a primeira ação judicial governo, os governadores de províncias e os esses novos esforços de perfuração não
de responsabilização climática do mundo, municípios elaborassem um plano de ação violavam a Constituição da Noruega.
esta decisão estabelece um precedente que, para preservar a floresta – evocando seu Exigiu-se que as ONGs reembolsassem
desde então, inspirou outras ações legais dever de proteger a natureza e o clima em 580 mil coroas norueguesas (US$ 66.100)
por todo o mundo. favor das gerações presentes e futuras. em custas judiciais ao governo.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 13


Procurar a
Justiça é um
meio eficaz
para forçar
a ação.

Também em 2015, nos Estados Unidos,


21 jovens representados pela organização
sem fins lucrativos Our Children’s Trust,
apresentou um recurso em um tribunal do
Oregon exigindo que o governo federal dos
Estados Unidos reduza significativamente
as emissões de CO2. Sua queixa afirma que
o governo, por meio de ações afirmativas
que causam a mudança climática, violou
os direitos constitucionais da geração mais
jovem à vida, à liberdade e à propriedade,
e não protegeu os recursos essenciais da
confiança pública. Conhecido como Juliana vs.
United States Youth Climate Lawsuit (Processo
Judicial Climático Juliana x Estados Unidos),
este julgamento precisa ainda ser aprovado
pela Suprema Corte, apesar do apoio de
centenas de pessoas, inclusive membros do
Congresso dos EUA, juristas, empresários,
historiadores, médicos, advogados
internacionais, ambientalistas, e mais de 32
mil jovens com menos de 25 anos.
Em uma audiência sobre o caso, em 4 de
junho de 2019, realizada pelo Tribunal
de Recursos da Nona Circunscrição [um
tribunal federal dos EUA que precede a
© Chip Thomas

Suprema Corte], um painel de três juízes


continuou cético sobre se o tribunal tinha
algum papel a desempenhar ao lidar com o
caso desse marco histórico. A decisão deles Pôster do artista e ativista norte-
pode ter implicações importantes sobre se Affaire à Tous, uma associação de justiça -americano Chip Thomas, encomendado
os tribunais podem ou não ser usados para climática, com três outras ONGs (Oxfam pela amplifier.org, um laboratório de
julgar uma ação climática nos EUA. França, Greenpeace França e a Fondation design que cria arte para amplificar as
Nicolas Hulot pour la nature et l’homme). vozes dos movimentos populares.
No Paquistão, no mesmo ano, um agricultor
Chamado de “o caso do século”, apresentou
conseguiu requerer aos juízes que
seis demandas ao governo: a inclusão do
obrigassem o governo daquele país – que
clima na constituição; o reconhecimento
é especialmente afetado pelo aquecimento Auxiliada por inúmeros influenciadores, a
da mudança climática como um crime de
global – a adotar leis sobre o clima a fim de petição foi um sucesso sem precedentes, com
destruição ambiental; a possibilidade de os
proteger sua fazenda e garantir seu direito à mais de 2 milhões de assinaturas obtidas em
cidadãos defenderem o bem-estar climático
alimentação e acesso à água.
judicialmente; a redução das emissões de poucas semanas. Em março de 2019, quando
Na França, a primeira ação judicial GEEs; a regulamentação das atividades ainda não havia resposta do governo, as
relacionada à mudança climática teve de empresas multinacionais, e o fim dos ONGs apresentaram um recurso. Elas estão
início em dezembro de 2018 pela Notre subsídios para combustíveis fósseis. cientes de que o procedimento se arrastará,

14 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


mas esperam aumentar a conscientização do Um dos processos mais significativos do “Algumas vezes, os reclamantes sabem muito
público e promover a ideia de que procurar a setor privado foi apresentado na Alemanha bem que o julgamento não tem chance de
justiça é um meio eficaz para forçar a ação. em novembro de 2017. Após dois anos êxito, mas é a cobertura da mídia que importa,
de tramitação, o tribunal concordou em e a forma como o processo é orquestrado”,
No âmbito europeu, o primeiro litígio foi
apreciar o processo de Saúl Luciano Lliuya, explica Sandrine Maljean-Dubois, diretora
iniciado por um grupo de dez famílias de
um camponês peruano e guia montês da de pesquisa no CNRS [Centro Nacional para
oito países – França, Portugal, Romênia,
cidade de Huaraz (100 mil habitantes). Pesquisa Científica] da Universidade Aix-
Itália, Alemanha, Suécia e também Quênia
Lliuya está processando a gigante alemã Marseille, na França. Segundo ela, como ela
e Fiji – em maio de 2018. Os reclamantes do
do setor de energia RWE, a maior emissora vê, “a principal questão é determinar que
People’s Climate Case (Processo Climático do
de carbono da Europa, para forçá-la a o Estado fracassou, que é responsável por
Povo) levaram o Parlamento Europeu e o
pagar pelos danos causados pela mudança essa deficiência e que deve remediar isso e
Conselho da União Europeia ao Tribunal de
climática nos Andes. Depois que sua escolher os meios para cumprir com suas
Justiça da União Europeia por ter permitido
ação judicial foi considerada admissível, o obrigações”. É, portanto, uma questão de
um nível muito alto de emissões de GEEs.
processo entrou na fase de avaliação de obter ação em vez de compensação, e de
Segundo um comunicado à imprensa
especialistas. É um avanço simbólico para exercer pressão política por meio de ações
do People’s Climate Case em abril de 2019,
comprometer os Estados e as corporações à judiciais, mas também por meio de passeatas
os reclamantes requereram aos líderes da
justiça climática mundial. ou de greves em favor do clima e, finalmente,
UE a redução das emissões dos GEEs em
de ver a sociedade civil adotando esse tipo de
55% até 2030 (em comparação a 1990), Nas Filipinas, em 2015, os sobreviventes
abordagem para outros assuntos – poluição
em vez da meta de 40%. Segundo eles, a do supertufão Haiyan e uma coalização
do ar, biodiversidade, meio ambiente etc.
meta atualmente definida é “inadequada de ONGs apresentaram um pedido na
“Mesmo perder uma ação judicial pode ser
em relação à real necessidade de evitar a Comissão de Direitos Humanos do país para
positivo, para mostrar a inadequação da lei”,
perigosa mudança climática, e longe do que agir contra 47 multinacionais, incluindo
conclui Maljean-Dubois.
é necessário para proteger nossos direitos a Shell, a ExxonMobil e a Chevron. Eles
fundamentais à vida, à saúde, ao trabalho e exigiram uma investigação sobre violações
à propriedade”. dos direitos humanos relacionadas
aos efeitos da mudança climática e da
Embora reconheça que a mudança climática
acidificação dos oceanos, e o possível
afeta todos os europeus de maneiras
fracasso das empresas mais poluentes em
diferentes, o EGC indeferiu o caso por questões
cumprir suas responsabilidades para com o Jornalista francesa, autora e diretora de
processuais em maio de 2019, dizendo que os
povo filipino. Outro caso a ser seguido. cinema que se concentra em questões
demandantes não tinham o direito de recorrer
ambientais, econômicas e sociais,
à justiça para contestar a meta climática da Nos Estados Unidos, as ações judiciais contra
Anne-Sophie Novel trabalha para os
UE para 2030. As famílias que iniciaram a a indústria petrolífera estão se multiplicando.
jornais Le Monde e Le 1, para o canal de TV
ação planejam recorrer ao Tribunal de Justiça A Big Oil [como são conhecidas as maiores
Public Sénat e para publicações francesas
Europeu – este é um caso a ser seguido. empresas de petróleo e gás de capital aberto
especializadas. Ela dirigiu o documentário
do mundo] foi acusada de ser responsável
Les médias, le monde et moi (A mídia, o
Processar empresas pela mudança climática e seus efeitos
(aumento dos níveis de água e erosão
mundo e eu), cuja pré-estreia foi realizada
pela mudança climática costeira) e de deliberadamente “desacreditar”
na UNESCO em 28 de março de 2019.
a ciência climática.
Medidas jurídicas por crimes climáticos
também estão sendo tomadas contra o O Programa das Nações Unidas para o Meio
setor privado. A natureza dos pedidos Ambiente (PNUMA) registrou quase 900
difere conforme o objetivo. Dos Estados, processos climáticos em todo o mundo, em
os reclamantes demandam mobilização e maio de 2017. O número está aumentando
ações mais urgentes, proativas e vinculantes. diariamente: em maio de 2018, o banco de
Do setor privado demandam, cada vez
mais, indenizações por perdas (lavouras,
dados do Sabin Center for Climate Change
Law (Centro Sabin para a Lei da Mudança Mesmo
perder uma
infraestrutura) no caso de riscos de mudança Climática), da Universidade Columbia, em
climática (ondas de calor, seca, enchentes Nova York, contou 1.440 processos judiciais
etc.), ou a gestão dos empreendimentos a relacionados ao clima em todo o mundo,
montante, especialmente em áreas costeiras. incluindo 1.151 nos Estados Unidos.
ação judicial
pode ser
Cidadãos Verdes da UNESCO
Aprender sobre e compartilhar iniciativas destinadas a oferecer soluções sustentáveis
positivo, para
aos desafios da vida cotidiana é o objetivo do Cidadãos Verdes da UNESCO. Esse projeto
foi lançado após o sucesso da exposição itinerante de mesmo nome em 2015, que mostrar a
inadequação
apresentou projetos iniciados por 25 cidadãos comprometidos em transformar suas
vidas e as de sua geração – no Egito, na França, na Índia, no Japão, em Marrocos, na
Nicarágua, no Senegal, nos Estados Unidos, em Vanuatu e em outros países.
Descubra as histórias de Fatou Aidara, Elizabeth Salomon, Alberto Lopez, Ezzat Guindy,
Syo Ogasawara, Janaki, Claudia Valle e outros desbravadores para mudança na página de
da lei.
internet Cidadãos Verdes da UNESCO (https://en.unesco.org/greencitizens/green-citizens).

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 15


O clima e a
justiça social
Thiagarajan Jayaraman,
entrevistado por Shiraz Sidhva
O atual impulso rumo a tecnologias verdes a questão da equidade e da justiça torna-se
ofusca a necessidade de se concentrar em muito significativa.
Há uma tendência no debate
igualdade e justiça social no combate à
público sobre a mudança Então, como se evita essas armadilhas da
mudança climática?
desigualdade social enquanto se empreende
climática para apresentar o
Esta é definitivamente uma questão que o desenvolvimento da infraestrutura verde?
uso e o desenvolvimento de precisa ser explorada. Acredito que há um Isto não é apenas uma questão sobre
tecnologias verdes como uma reconhecimento geral de que dificilmente o desenvolvimento da infraestrutura
solução milagrosa ou panaceia. pode-se enfrentar o que é a mais proeminente verde, mas em todas as variedades
Muitas vezes esquecemos um ameaça ambiental à humanidade enquanto de ação climática, e não há solução
se ignora questões de igualdade e justiça fácil para isso. Fingir o contrário é nos
aspecto: é essencial assegurar
social. A tendência natural é argumentar enganar. Por exemplo, as pessoas falam
que seu desenvolvimento que o combate à mudança climática deve de adaptação, de vulnerabilidade ou de
caminhe lado a lado com a justiça acompanhar a justiça social. Infelizmente, a lidar com as necessidades dos vulneráveis
social. “A percepção de que não expressão justiça social se dilui no habitual de determinado modo como parte da
estamos lidando apenas com o discurso de agência internacional, em que, adaptação. Este é o mesmo jargão, levemente
algumas vezes, o tema é abordado, e então deslocado, que vem de conversas anteriores
aquecimento global, mas com perde-se um entendimento específico do que sobre a erradicação da pobreza, como meios
o aquecimento global em um significa a justiça social – significa coisas muito de subsistência sustentáveis. Não é como se
mundo desigual e injusto, ainda diferentes para pessoas muito diferentes. tal conversa fizesse muito para impulsionar a
tem que ser entendida”, segundo erradicação da pobreza. Não existe caminho
Para mim, ao menos uma leitura de justiça
fácil para garantir a equidade social como
Thiagarajan Jayaraman. Sem social é ter um regime ou ordem social e
parte da ação climática. Como todas as
igualdade e equidade – em outras econômica que leva ao aprimoramento,
outras agendas de desenvolvimento, a luta
à extensão e ao desenvolvimento das
palavras, sem paz e segurança por um mundo equitativo e justo é uma luta
capacidades humanas. contínua, e permanecerá. O importante é
– não podemos combater a
Obviamente, não se pode falar de salvar a ficar muito claro que o clima não é exceção.
mudança climática de forma
humanidade enquanto se fala em tolerar Há uma tendência, que se tornou
eficaz, insiste o especialista injustiças no mundo social e econômico. proeminente recentemente, desde a
indiano em política climática. Contudo, na prática, o que acontece é publicação do Relatório especial sobre o
que há uma tendência em uma parte do aquecimento global de 1,5°C, do Painel
governo – especialmente entre aqueles Intergovernamental sobre Mudanças
que são ambientalistas – para argumentar Climáticas (IPCC), em que se procura
que uma é tão importante que a outra argumentar que um mundo de 1,5°C é
deve ser colocada em segundo plano. Por naturalmente equitativo. Acredito que isso é
exemplo, desativam-se fábricas que estão absolutamente falso – não é possível obter
Maskbook (Livro de máscaras), um projeto poluindo antes de preocupar-se com o justiça social, igualdade e desenvolvimento
internacional artístico e participativo da que acontecerá com aqueles que lá estão mantendo o aumento da temperatura média
Art of Change 21, uma associação que empregados. Este tipo de problema é onde mundial em 1,5°C. Isso equivale a dizer que
promove a conscientização do público
sobre a questão climática.

16 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


todos os problemas de injustiça são de Preservando a biodiversidade com solidariedade
origem ambiental, o que é, obviamente, uma
Um milhão de espécies estão em risco de extinção se não agirmos para salvá-las – é
afirmação absurda.
o aviso gritante do Relatório de avaliação global 2019 sobre biodiversidade e serviços
Os políticos que estão cientes da ameaça ecossistêmicos. A atividade humana causou uma crise de biodiversidade que ameaça
da mudança climática e de seu alcance todos os ecossistemas do mundo, segundo um abrangente relatório de 1,5 mil páginas
têm tentado fazer com que as empresas publicado pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços
apoiem as indústrias verdes, dizendo que Ecossistêmicos (IPBES), uma organização ambiental intergovernamental independente
criarão milhões de novos empregos e novas com sede em Bonn, na Alemanha.
oportunidades de crescimento. A justiça
“A saúde dos ecossistemas, nos quais nós e todas as outras espécies dependemos, está
social faz parte dessa equação?
deteriorando mais rapidamente do que nunca. Estamos minando os próprios alicerces de
Até agora, tem havido uma tendência de nossas economias, meios de subsistência, segurança alimentar, saúde e qualidade de vida
proteger empresas e esperar que elas façam em todo o mundo”, disse Robert Watson, cientista ambiental e ex-presidente da IPBES.
o certo pela mudança climática e justiça
“Proteger a biodiversidade é tão importante quanto combater a mudança climática”,
social. Contudo, esta é uma estratégia
disse Audrey Azoulay, diretora-geral da UNESCO, um parceiro institucional da IPBES.
condenada ao fracasso.
Um resumo do relatório para os formuladores de políticas e a mídia, aprovado por
Os países desenvolvidos chegaram a um 132 governos, foi lançado em maio de 2019 na sede da UNESCO.
impasse a respeito disso nas negociações
Compilado por 145 autores de 50 países, o relatório intergovernamental, a ser lançado
sobre o clima. Eles vão e voltam sobre
no final de 2019, é a primeira avaliação mundial da biodiversidade desde 2005.
impostos e mercado de carbono, mas por
que não podem atribuir certas metas a serem A ação humana já alterou gravemente cerca de 75% do ambiente terrestre e
alcançadas por certas indústrias? Tem de haver 66% do ambiente marinho, segundo o relatório. Proteger a biodiversidade e
regulamentos mais rigorosos. Caso contrário, a natureza é a chave para progredirmos rumo à consecução dos Objetivos de
devem ser obrigados a pagar o preço, e isso Desenvolvimento Sustentável (ODS), que têm alcance mundial.
dificilmente parece estar na agenda. Acreditar
O relatório enfatiza que os Estados-nação têm uma responsabilidade para com as
que, de alguma forma, se pode seduzir as
gerações futuras de agir em solidariedade a fim de garantir que o planeta permaneça
empresas a agir moralmente, ou intimidá-las
habitável. O alcance das “mudanças transformadoras sobre fatores econômicos,
para que tomem os passos certos, parece-me
sociais, políticos e tecnológicos” para corrigir as tendências alarmantes de degradação
um pouco absurdo. Não acredito ser um ponto
é explorado. Descarta a noção de que a degradação da biodiversidade é apenas
de vista muito útil também – a economia não
uma questão ambiental. É, de fato, uma questão econômica, de desenvolvimento,
funciona assim. Empresas como a Shell e a
segurança, social, ética e moral, e todos são partes interessadas.
ExxonMobil fazem ruídos de maneira educada
sobre investimentos em tecnologias verdes e, https://en.unesco.org/links/biodiversity/ipbes
então, tocam seus negócios como de costume.
Acredito ser necessária uma estratégia
de duas frentes sobre tecnologia para o uma economia de um nível de uso e eficiência elétricos. O outro problema é que querem
mundo: nos países desenvolvidos, fazer um energética para um outro completamente soluções “tudo ou nada”, o que não
grande esforço a fim de rapidamente se diferente não é apenas uma questão de dizer: funcionará. Por exemplo, querem que a
converterem para tecnologias verdes, o que “se tentar o suficiente, isso pode ser feito”. É Índia não invista em carvão. Meu ponto
não está acontecendo rápido o suficiente. mais complicado do que isso. é, quando os países desenvolvidos são
Por exemplo, muitos países desenvolvidos
Os países desenvolvidos estão dispostos incapazes de implementar a transição
ainda estão pensando em substituir gás por
a ajudar os países em desenvolvimento a de carvão para energias renováveis e,
carvão – ambos são combustíveis fósseis –
em vez de buscar por energias renováveis. alcançar este salto para ajudar a combater a efetivamente, fazem apenas carvão para
mudança climática? gás, por que estão pedindo aos países em
A outra parte da estratégia é que os países desenvolvimento que façam isso?
em desenvolvimento devem dar saltos de O esforço é muito irregular. Onde
forma moderada. Isso tem que ser feito de os países desenvolvidos percebem Por que os países desenvolvidos são tão
forma sensata. Não se pode esperar que eles oportunidades, estão interessados em morosos em reformar o setor de transporte?
saltem de séculos de queima de biomassa trazer suas tecnologias aos países em Por que não há um incentivo pela mobilidade
para a energia solar de última geração. Mover desenvolvimento, como em veículos elétrica nos países desenvolvidos, comparável
© Maskbook - Art of Change 21

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 17


Não existe caminho fácil para
garantir a equidade social
como parte da ação climática.
ao incentivo que está ocorrendo em países estável, e o outro é o interesse próprio em seu de pessoas que serão afetadas, mais até
como a Índia e a China? A China tem cidades próprio país. Contudo, quando se trata dos que os Estados insulares. A ideia de que
inteiras, como Shenzhen, que funcionam Estados Unidos, infelizmente não há sequer o interesse próprio deveria fazê-los se
com transporte elétrico. Não há nada do tipo interesse próprio quanto às condições de vida preocupar com as condições ambientais da
no Ocidente. Esqueça a mobilidade elétrica no próprio EUA. Um estudo recente sugeriu vida humana no mundo desenvolvido em
– mesmo as normas mais rigorosas sobre que uma taxa mais alta de aquecimento nas si, não está inteiramente lá. Isto chegou em
emissões foram adiadas por mais alguns anos latitudes mais altas criará muita atividade casa, acredito que em alguma medida, na
na União Europeia (UE). O transporte é um extra de tempestade, e isso se refere Europa, embora não pareça afetar todo seu
setor em que os países desenvolvidos têm especialmente ao Canadá, aos EUA, à UE e comportamento. Contudo, creio que em
saído impune fazendo muito pouco. à Rússia. Estes são os países – exceto, talvez, muitos outros lugares, essa percepção ainda
a UE, que não está na mesma categoria – não aconteceu.
Em uma ampla variedade de outros setores,
que dificilmente discutem seus próprios
a urgência que surge nas conversas dos Existe essa nova onda de pensamento que
países como os locais dos mais exigentes
cientistas climáticos não se reflete nas atribui toda migração e conflitos às condições
requisitos de adaptação, quando, na verdade,
políticas e em ação climática real. Mesmo climáticas ou ambientais. Parte dela parece
deveriam fazer isso. A Austrália é agora um
os documentos oficiais dos próprios países ser um esforço para despertar o interesse
enorme fardo de adaptação – todos aqueles
desenvolvidos indicam que terão dificuldades próprio dos países desenvolvidos, mas da
incêndios florestais contribuem muito para a
em atingir suas metas de contribuição perspectiva da segurança mundial. Contudo,
mudança climática.
nacionalmente determinada (Nationally a guerra ou os conflitos armados – que têm
Determined Contributions – NDC) no ritmo em Essa ideia de que a adaptação é um muito a ver com a migração – são em grande
que estão se movimentando atualmente. Não problema do terceiro mundo – e não de parte problemas de condições sociais e
há praticamente nenhum furor sobre isso nos seus próprios países (desenvolvidos) – que políticas, e não são motivados apenas pelo
círculos de política climática. ganhou espaço em parte do discurso clima. Por exemplo, a migração norte-africana
político é, acredito, lamentável. De fato, para a Europa tem muito a ver com a enorme
Se a mudança climática agravar as
se compararmos o aumento do nível do desestabilização e derrubada de regimes
consequências diretas e indiretas – um
mar a 1,5°C àquele de 2°C – em termos do que proporcionavam algum bem-estar
aumento na migração, por exemplo –
número de pessoas afetadas, a América básico, então, obviamente, as pessoas estão
também afetará os países ricos. O sr.
do Norte tem o maior número absoluto fugindo nas dezenas de milhares. A fusão
acredita que o interesse próprio – como a
disso com o impacto da mudança climática é
mitigação da migração – pode motivar os
absolutamente injustificável.
países ricos a apoiar a justiça social?
“Um mundo pacífico e seguro é uma Um mundo pacífico e seguro é uma
Existem dois tipos de interesse próprio: um é condição prévia para enfrentar a mudança precondição para lidar eficazmente com
o interesse próprio em uma ordem mundial climática de forma eficaz.” a mudança climática. Contudo, isso não
Luc Schuiten significa que a paz e a segurança surgirão
porque se toma uma ação climática eficaz.

Acadêmico indiano que se concentrou


em ação e justiça climática por mais de
uma década, Thiagarajan Jayaraman
é professor na School of Habitat Studies
(Faculdade de Estudos de Habitat) no Tata
Institute of Social Sciences (Instituto Tata de
Ciências Sociais), em Mumbai, na Índia.
Ele também é membro do Conselho de
Planejamento do governo do estado de
Kerala, e trabalhou com o governo da Índia
em questões de política climática.

18 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Paquistão:

verde novamente
Zofeen T. Ebrahim

Um bilhão de árvores foram


plantadas nos últimos anos
na província paquistanesa de
Khyber Pakhtunkhwa, a cerca de
50 quilômetros de Islamabad,
a capital do país. A paisagem
foi transformada, bem como a
sociedade. O combate à mudança
climática e o combate à pobreza
são a mesma coisa.

Sentada confortavelmente em um

© Zofeen T. Ebrahim
banquinho em seu quintal, debaixo de uma
árvore que lhe proporciona muita sombra,
Farzana Bibi coloca um punhado de terra
do montículo a seu lado em um bolso preto
e alongado de borracha. O cacarejar das
galinhas e o solitário galo pavoneando-se Farzana Bibi coloca um punhado de terra
em volta de seu pequeno quintal verde em uma bolsa de borracha.
são um cenário pastoril perfeito. Depois
de cheio até o topo, ela habilmente faz
um buraco no meio do tubo, aloja uma
semente e a cobre com terra. Em 2014, o Pakistan Tehreek-e-Insaf “O custo foi estimado em 22 bilhões de
(Movimento pela Restauração da Justiça – PTI), rúpias paquistanesas (US$ 155 milhões),
Idílico e cercado por montanhas, o partido político que governou a KP entre 2014 e foi concluído por 14 bilhões de rúpias
vilarejo de Bibi, Najafpur, na província e 2018, se envolveu na luta mundial e aderiu paquistanesas (US$ 99 milhões), uma
de Khyber Pakhtunkhwa (KP), está a ao Desafio de Bonn – que visa a restaurar 150 anomalia para um projeto custeado
cerca de 50 quilômetros de Islamabad, milhões de hectares das terras degradadas pelo governo, que geralmente supera o
a capital do Paquistão. e desmatadas do mundo até 2020. Liderada orçamento”, destacou Aslam, que foi a força
Ela está entre as 400 mulheres que pelo ex-jogador de críquete que se tornou por trás da iniciativa. Em menos de três anos,
foram treinadas de maneira moderna político, Imran Khan, o PTI ambiciosamente se 1,18 bilhão de árvores foram cultivadas.
para preparar e propagar viveiros em comprometeu a restaurar 350 mil hectares de
A estratégia utilizada foi de quatro vertentes,
seus quintais e vender as mudas para floresta e terras degradadas de 2014 a 2018.
incluiu plantar novas árvores e a regenerar
o departamento florestal do governo das florestas existentes; garantir um elevado
provincial. Isso faz parte do Billion Tree
Tsunami Afforestation Project (Projeto
Mais de um nível de transparência; fazer disto um
de Reflorestamento Tsunami de Bilhões bilhão de árvores programa centrado nas pessoas; e enfrentar
a poderosa “máfia” madeireira ou os
de Árvores – BTTAP) da Green Growth madeireiros ilegais.
No curto espaço de tempo que teve, o
Initiative (Iniciativa de Crescimento
departamento florestal não poderia ter
Verde – GGI) do governo para combater a Segundo Aslam, que também atua
concluído ou realizado o que o partido político
mudança climática e a poluição por meio como vice-presidente mundial da União
havia prometido, tudo por conta própria.
do plantio de árvores. Internacional para Conservação da
O modelo adotado para o BTTAP tornou-se Natureza (UICN), 60% da meta de um
A cobertura florestal total do Paquistão bilhão de árvores foi alcançada pela
um negócio envolvendo as comunidades
varia de 2% a 5% da área territorial – o que “regeneração natural por meio da proteção
locais. “Conseguimos concluir o projeto
faz com que seja um país com uma das das florestas gerida pela comunidade”.
em agosto de 2017, antes do tempo!”,
menores coberturas florestais na região, e Essas florestas foram divididas em cerca
disse Malik Amin Aslam, que atualmente
bem abaixo dos 12% recomendados pelas de 4 mil viveiros, com as comunidades
é ministro federal e assessor de Mudanças
Nações Unidas. incentivadas a coletar madeira morta.
Climáticas de Imran Khan, que se tornou
primeiro-ministro do país em 2018. Também se beneficiaram de empregos

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 19


verdes, como nigehbans da floresta, ou
guardas designados pela comunidade, que
protegiam os viveiros do pastoreio, do fogo
e da derrubada ilegal de árvores.
Os 40% remanescentes da meta foram
alcançados empregando um modelo
público-privado de receitas compartilhadas
e crescimento – como os viveiros tratados
por Bibi e outros. O governo também
conseguiu retirar cerca de 3 mil hectares de
suas terras dos invasores.
O projeto foi aclamado nacional e
internacionalmente. O Fundo Mundial para
a Natureza – Paquistão (WWF-Paquistão)
foi encarregado de realizar uma auditoria
de desempenho anual independente do
BTTAP. Hammad Naqi Khan, diretor-geral
da WWF-Paquistão, disse que o projeto foi
“um bom passo na direção certa”.

Combate ao desemprego
Enquanto isso, em Najafpur, o marido de
Bibi, Shaukat Zaman, junta-se para encher os
bolsos. Seu negócio de aves fechou há dois
anos, depois que um vírus mortal aniquilou
todo o lote de galinhas. Ele não conseguiu
© Zofeen T. Ebrahim

recuperar as perdas e recomeçar. Entre eles,


conseguem encher mil tubos com terra e
sementes por dia. Os tubos finalizados são
empilhados ordenadamente na parte de
trás do pátio.
“Nós fornecemos as sementes e os bolsos,
eles pegam a terra, a misturam com
fertilizante orgânico e realizam o trabalho”,
explicou Mohammad Tehmasip, diretor de
“Ano passado, a Anam fez seu dote com
o dinheiro que recebeu preparando um
... e agora, o desafio
projeto do BTTAP.
viveiro”, diz ela, com os olhos marejados. de 10 bilhões
Ao longo das próximas semanas, Bibi e
“Eu nunca tinha visto tanto dinheiro Quando o PTI formou o governo federal em
Zaman têm que encher 25 mil bolsos.
em minha vida; minha vida mudou agosto de 2018, o partido decidiu expandir
Dentro de 6 a 8 meses, as mudas que
completamente, e tudo isso sem sair o projeto a âmbito nacional, plantando
sobreviverem serão compradas pelo
de casa!”, diz Rubina Gul, de 30 anos, 10 bilhões de árvores.
departamento florestal do governo a seis
explodindo de entusiasmo. “Meu filho
rúpias paquistanesas por muda. “Há muito Chamando-o de uma versão “aprimorada”
vai para uma escola particular agora”, ela
desemprego em nosso vilarejo, então, do BTTAP, Aslam disse que isso era, por
sorri. Ela e seu esposo, Sajjid Zaman, têm
qualquer coisa ajuda”, disse Bibi. Seus três natureza, bastante diferente, uma vez
preparado e cuidado de viveiros desde
filhos, todos formados, estão desempregados que lidava com zonas ecológicas mais
2015. “No primeiro ano usamos nosso
e a ajudam a cuidar do viveiro. diversificadas, terrenos diferentes e modelos
jardim da frente para cultivar as mudas”,
de gestão distintos para o plantio de árvores.
“Em menos de um ano, eles ganham cerca lembra Gul, acrescentando que, com os
de 150 mil rúpias paquistanesas (US$ 1.060) lucros, eles conseguiram montar um viveiro “O 10-Billion-Tree Tsunami (Tsunami de
por administrar esses viveiros individuais maior em um terreno vazio que possuíam, 10 bilhões de árvores – BTT) é um desafio
(com 25 mil mudas), e os pagamos em e também converter parte dele em uma muito mais complexo, já que atravessa
três parcelas”, disse Tehmasip. A primeira loja, que alugam por uma renda mensal. diferentes paisagens e modelos de
coisa que Bibi planeja fazer com o dinheiro Conseguiram ainda comprar uma van usada. florestas por seis regiões – de manguezais
recebido com a venda das mudas é um “Agora podemos visitar os vales adjacentes”, a blocos de cultivo, a reservas naturais e
túmulo adequado, com uma lápide, para comemora Gul. arborização urbana”, explicou ele. Tendo
sua filha Anam, de 20 anos, que faleceu lutado contra, e vencido, madeireiros
repentinamente há alguns meses. ilegais na KP, as autoridades estão prontas
para fazer frente à “máfia” fundiária em

20 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Se for dado à natureza
algum espaço e uma
chance de se recuperar,
ela o faz além de suas
expectativas e cálculos.

“O departamento florestal, que já foi das pessoas, especialmente as crianças e os


considerado o departamento mais corrupto, jovens da província de KP, e os fez valorizar
passou por uma limpeza completa. as árvores como um recurso natural. Fez
O trabalho também melhorou muito. isso não apenas dentro da província, mas
Antes não havia monitoramento, nem também catalisou um movimento político
responsabilização, e os oficiais florestais verde pelo país – que agora é mais sensível à
quase nunca iam aos locais de cultivo. Tudo conservação ecológica”, acrescentou Aslam.
isso mudou. Podemos não ter tido a equipe E embora parecesse uma tarefa “impossível”,
mais treinada, mas tornou-se, sem dúvida, especialmente para uma província onde o
a mais dedicada e motivada”, afirmou Nazar domínio da “máfia” madeireira estava tão
Shah, secretária de meio ambiente da KP. bem enraizada, atualmente, em retrospecto,
Mulheres trabalhando em um viveiro de
propriedade do governo da província Em seguida, os infratores – muitas vezes o as duas lições mais importantes para Aslam
Khyber Pakhtunkhwa, no Paquistão segmento mais influente da sociedade, e foram: “Em primeiro lugar, se for dado à
que se consideravam invencíveis – foram natureza algum espaço e uma chance
tratados com mão de ferro e penalizados. de se recuperar, ela o faz além de suas
Tudo isso só foi possível devido ao expectativas e cálculos; e, em segundo
Punjab “a fim de abrir espaço para que as lugar, que nada é impossível se você se
florestas prosperem”, disse Aslam. compromisso político nas altas esferas.
comprometer de todo coração e estiver
E eles já estão agindo de acordo com seu Muitos no departamento florestal disseram disposto a trabalhar duro”.
discurso. A uma hora de carro de Lahore, em que isso trouxe uma mudança na forma
Balloki, na província de Punjab, o governo como as pessoas em KP começaram a olhar
conseguiu retirar terras de propriedade para as árvores. A sabedoria tradicional
estatal daqueles que a ocupavam de conservar e preservar as florestas
foi revivida. “Atualmente, vemos uma
ilegalmente. Eles as transformaram em uma
forte participação nas comunidades”,
reserva natural que abrange 1.011 hectares. Jornalista paquistanês que aborda questões
disse Ubaidur Rehman, oficial de
Usando os canais legais, o governo pretende de desenvolvimento para veículos de
desenvolvimento comunitário junto ao
recuperar 20 anos de rendas em atraso comunicação nacionais e internacionais,
departamento florestal da KP. “Sem a
pelo uso ilegal da terra de 80 políticos e Zofeen T. Ebrahim é editor no Paquistão
comunidade a bordo, este projeto não
latifundiários. Também planeja expulsar, em do The Third Pole, uma plataforma multilíngue
teria tido sucesso”. dedicada a promover a discussão sobre a
breve, os invasores das florestas ribeirinhas e
das zonas húmidas ao longo do Rio Indus. “O que torna o BTT especial é que não se bacia do Himalaia e os rios que lá se originam.
trata apenas de plantar árvores, mas sobre
Mudança de mentalidades mudar mentalidades e fazer as pessoas
pensarem de forma diferente sobre o papel
Para aqueles que tiveram essa chance das árvores, da natureza e valorizar sua
única de aproveitar a onda do BTTAP, foi conservação. O projeto do bilhão de árvores
uma grande experiência de aprendizagem. nos ajudou a modificar o comportamento

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 21


Energia solar:
mudando vidas no campo

Victor Bwire
2,2 quilowatts foi reforçada por uma estrutura desenvolvimento da energia solar no país,
A disponibilidade de bombas solar de 5 quilowatts a fim de garantir que o setor privado – empresas e organizações
funcione mesmo quando os níveis de luz sem fins lucrativos – tem sido fundamental
d’água movidas a energia solar e solar forem baixos. para o crescimento do setor. Por meio
lâmpadas solares teve um efeito de iniciativas como preços altamente
Anteriormente, as pessoas do círculo de
transformador nas comunidades subsidiados, marketing social e regimes de
Rangwe eram forçadas a ferver a água a
empréstimo, várias entidades expandiram
rurais do Quênia, fornecendo fim de evitar contrair doenças transmitidas
intensamente o uso de sistemas solares
água potável limpa e iluminação pela água, como o cólera. Isso se tornou
em todo o país.
especialmente importante depois que
ao mesmo tempo em que elimina os canos de água explodiram e a água
dificuldades, riscos para a saúde limpa foi contaminada pela água sem Visar às redes
e hábitos que contribuem para a tratamento. Ferver a água requer lenha,
de mulheres
mudança climática. O compromisso e a explosão dos canos significou que as
pessoas precisavam buscar água nas bacias A Solibrium, uma empresa local, oferece
do governo de investir em energia hidrográficas – ambas ações contribuem energia solar às pessoas por valores
limpa foi reforçado por empresas para a mudança climática. Foi necessária acessíveis. Vende painéis, sistemas e
privadas para promover mudanças a intervenção da Sociedade da Cruz lâmpadas solares para as comunidades por
Vermelha do Quênia (Kenya Red Cross Society meio dos grupos de mulheres, oferecendo
reais, especialmente para aqueles
– KRCS) e do Membro do Parlamento da empréstimos ou um sistema de preço
que mais precisam. área para reabilitar um antigo projeto de subsidiado. Os moradores têm acesso
abastecimento hídrico concebido em 1979 aos sistemas solares e podem pagar em
“Não tenho mais nada a dizer do que para operar usando diesel, mas que nunca parcelas. Incentivos são concedidos àqueles
agradecer a Deus por se lembrar de nós, e às foi concluído. que pagam prontamente, e alguns usuários
pessoas que tornaram possível a conclusão existentes tornam-se representantes de
deste projeto de água”, diz Jane Akinyi,
moradora de Nyandiwa, no condado de Baía
Eliminar a poluição vendas para recrutar mais usuários.
A Solibrium tem o foco em mulheres
de Homa. Embora a área não esteja longe O trabalho envolveu a KRCS – que gere
das várias comunidades rurais na região
do Lago Victoria (no oeste do Quênia, na o novo projeto – realizando a recente
costeira e ocidental do Quênia e, até o
fronteira com Uganda), um dos maiores lagos proteção da antiga fonte de água e
momento, instalou sistemas solares em mais
de água doce no mundo, o acesso à água cercando-a, projetando e construindo um
de 50 mil domicílios em seis condados. É
potável se manteve inatingível por décadas. novo reservatório e instalando bombas
um desdobramento da Eco2librium, uma
“As mulheres costumavam caminhar vários movidas a energia solar. O uso da energia
empresa B certificada [um novo tipo de
quilômetros até os rios para buscar água solar em vez de diesel para bombear a
negócio que equilibra propósito e lucro], com
e, muitas vezes, as longas filas nos únicos água não apenas salvou a comunidade dos
escritórios nos Estados Unidos e no Quênia.
pontos de água da região significava o altos custos associados ao uso de produtos
petrolíferos, como também garantiu o As lâmpadas solares foram transformadoras
desperdício de todo um dia esperando.
fornecimento estável de energia limpa e para as comunidades. “Os sistemas solares
Significava que as tarefas domésticas
salvou a comunidade da poluição do ar reduziram a carga em saúde e poluição do
permaneceriam por fazer, resultando em
associada ao combustível. ar relacionadas ao uso de motores movidos
outros desafios”, explica Akinyi.
a diesel nas comunidades. Por exemplo,
A recente instalação de cinco bombas Por exemplo, a Solibrium recrutou quase 200
para geradores em bombas d’água e
d’água movidas a energia solar na região membros por meio do movimento do grupo
hospitais, as lanternas solares eliminaram
tornou essas dificuldades algo do passado. de mulheres, que estão promovendo de
o uso de querosene, que não apenas era
Atualmente atendendo a 700 famílias em maneira intensa a venda de produtos solares
caro, mas causava problemas oculares nos
sete vilarejos, o novo projeto hídrico, lançado nos condados de Kakamega, Busia, Bungoma,
usuários. Reduziu a destruição das florestas
em 11 de fevereiro de 2019, proporciona Baía Homa, Taita Taveta e Kilifi, no Quênia.
ao eliminar a necessidade de carvão, e
aos moradores acesso à água potável para O setor privado tem encarado a energia a disponibilidade de energia também
beber e cozinhar, protegendo as bacias solar como uma oportunidade de negócio, possibilita que as crianças façam suas tarefas
hidrográficas em torno dos rios Rangwe e enquanto oferece energia favorável de casa após o anoitecer, sem dificuldades”,
Riana. A bomba d’água em Nyandiwa produz ao clima às comunidades pobres. explica Anton Espira, fundador e chefe de
3 mil litros de água por hora – a bomba de Além do investimento do governo no operações da empresa.

22 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


© Green Energy Africa / Nicholas

As mulheres Masai, no Quênia, caminham


de casa em casa com seus jumentos, que
carregam painéis solares nas costas. colheita melhor também significa segurança em seus estágios finais de promulgação
alimentar para esses agricultores. a fim de facilitar uma resposta eficaz à
mudança climática. Além disso, o governo
Beneficiar pequenos Otimizar a energia solar do Quênia desenvolveu os Regulamentos de
proprietários de terra Energia (Sistemas Fotovoltaicos Solares), que
requerem o registro e o licenciamento dos
De acordo com estimativas da Agência
Os sistemas solares, que incluem lâmpadas Internacional de Energia (AIE), a energia atores no setor.
e carregadores, desempenham um solar fotovoltaica contribuirá com a maior O Plano Diretor do governo para o setor
importante papel na autonomia econômica parte (47%) da combinação tecnológica de energia observa que, devido a sua
das comunidades agrícolas em que operam, para minirredes e sistemas fora-da-rede da posição em relação a linha do Equador, o
segundo John Ohaga, da One Acre Fund, geração de energia na África Subsaariana Quênia é dotado de recursos solares muito
uma organização sem fins lucrativos que até 2040. A M-KOPA Solar, empresa de elevados, entre os dez mais elevados dos
trabalha na África Oriental. “Essas lanternas energia solar queniana de capital fechado, países da África Subsaariana. Dados os
ajudaram alguns dos agricultores a fazer instalou 225 mil produtos de energia solar desafios suscitados pelas fontes de energia
negociações até tarde da noite, aumentando no país até então, indicou um estudo de convencionais e os níveis de pobreza no
assim seus negócios. Eles podem carregar 2016 do World Resources Institute. Quênia, a energia solar tem alto potencial
seus telefones, assim, utilizam plenamente
O Quênia se comprometeu a reduzir suas – o governo, por meio de seu marco
as plataformas de pagamento online, e usam
emissões de dióxido de carbono em 30% regulatório de energia, está trabalhando
as tochas para continuar o trabalho nas
até 2030. Reduzindo o uso de máquinas para garantir a maximização desse recurso.
fazendas depois de escurecer ”, diz ele.
movidas a diesel e gasolina, e aliviando a Prevê-se que o consumo de eletricidade
A One Acre Fund apoia pequenos pressão sobre as florestas ao utilizar menos cresça a médio prazo em uma média anual de
proprietários de terra em toda a África e carvão, os sistemas de energia solar são uma 7,2%, um aumento de 140% com relação ao
oferece serviços estendidos como lâmpadas importante intervenção que não apenas nível de 2015, até 2020. Isto torna imperativo
solares e carregadores de telefone, entre atenua os problemas enfrentados pelas encontrar soluções de energia renovável para
outros, aos agricultores com quem mulheres e crianças nas comunidades, beneficiar os grupos marginalizados e os
trabalham na área de segurança alimentar. mas também desempenha um importante usuários de pequena escala.
Os agricultores também estão usando, cada papel na mitigação dos efeitos adversos da
vez mais, os sistemas de irrigação solar mudança climática no Quênia.
para lidar com as estações imprevisíveis
ocasionadas pelo clima do Quênia. Ao As intervenções sobre a mudança climática
contrário de antes, quando a agricultura de no Quênia são orientadas por decisões
irrigação e a produção agrícola previsível governamentais, como demonstrado na
Estratégia Nacional de Resposta à Mudança Chefe de Desenvolvimento e Estratégia de
eram primordialmente associadas aos
Climática (NCCRS 2010) e o Plano Nacional de Mídia no Conselho de Mídia do Quênia,
ricos que podiam pagar por elas, o cenário
Ação para Mudança Climática (NCCAP 2013). Victor Bwire é jornalista ambiental.
mudou para melhor para estes agricultores
Enquanto isso, um Marco Político Nacional Ele também treina jornalistas em meio
anteriormente pobres, que eram incapazes
para Mudança Climática e legislação estão ambiente, saúde e tópicos relacionados.
de investir em suas plantações e terras. Uma

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 23


Carbono zero,
a começar pelas cidades!
Manuel Guzmán Hennessey
Antes da publicação do Relatório Especial emissões de carbono líquido zero até 2050. As
Atores não estatais, com as do Painel Intergovernamental sobre metas de redução das emissões estabelecidas
cidades em primeiro plano, Mudanças Climáticas (IPCC) em outubro de pela COP21 são, em média, de 25%.
2018, acreditava-se que 2°C seria o ponto
devem ser os primeiros a semear crítico (limiar crítico em que o clima muda
O que deve ser feito? O IPCC pediu
as sementes de uma sociedade “mudanças rápidas, abrangentes e sem
de estado estável para outro) do aumento
precedentes em todos os aspectos da
livre de carbono. A fim de evitar o na temperatura média da Terra. Como
sociedade”, que essencialmente envolvem
pesadelo da mudança climática, aprendemos desde então, agora é de 1,5°C.
a redução de nossas emissões de carbono.
Se este limiar for ultrapassado, observam os
devemos reduzir nossas emissões cientistas do IPCC, a sociedade enfrentará
As emissões acumuladas de CO2 e o
aumento médio da temperatura da Terra
de carbono para além do exigido consequências devastadoras. Estas incluem
estão diretamente relacionados à produção
pelo Acordo de Paris. Isso requer a perda de ecossistemas e espécies inteiras, o
e ao consumo de combustíveis fósseis. A
derretimento das calotas polares e aumento
ações coordenadas em âmbito consequência é o aquecimento global sem
do nível do mar, intensas ondas de calor e
internacional e iniciativas precedentes – os últimos três anos foram os
secas, e uma maior intensidade e frequência
mais quentes da história.
concretas como o transporte de fenômenos meteorológicos extremos.
elétrico, a descarbonização da O Acordo de Paris de 2015 (COP21) não
habitação e uma transição de é suficiente para deter essa catástrofe. Os
energia em grande escala. cientistas explicaram que, a fim de limitar
o aquecimento global a 1,5°C em vez de Future city (Cidade do futuro), desenho
2°C, como estabelecido neste Acordo, seria de Wang Boya, 7 anos, para o The Future
necessário reduzir as emissões globais líquidas World in My Eyes (O mundo do futuro
de dióxido de carbono (CO2) em cerca de em meus olhos), uma atividade de arte
45% dos níveis de 2010 até 2030, e alcançar lançada por O Correio da UNESCO em sua
plataforma WeChat, em 2019.
© Wang Boya

24 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


A educação dos cidadãos,
especialmente dos mais jovens,
é essencial, porque lhes permitirá
Vislumbres de esperança
Então, o que explica a certeza dos cientistas
implementar as transições de
que dizem ser possível estabelecer as bases
de uma sociedade livre de carbono até 2030? maneira ordenada e acelerada.
Segundo eles, a sociedade de emissões
líquidas zero é inteiramente possível. E
não se trata de uma sociedade “alternativa”
ou um modelo social experimental. A
descarbonização é a nova condição para a Por que começar com as cidades? Porque elas As cidades que seguem a rota de carbono
viabilidade da vida no planeta. respondem por 3/4 das emissões de gases líquido zero precisarão combinar o melhor
de efeito estufa e 2/3 do consumo mundial do planejamento urbano e as tecnologias
Entre as fontes mais fidedignas sobre o de energia. Cerca de 70% das cidades do digitais de última geração para enfrentar
assunto está a Agência Internacional de mundo já enfrentam as consequências da esses desafios.
Energia (AIE), que edita sua relevante mudança climática, e quase todas estão em
publicação World Energy Outlook (WEO) Elas terão que acabar com os combustíveis
risco. Até 2060, mais de 1 bilhão de pessoas
todos os anos desde 1977. A partir de fósseis em suas ruas, comprando apenas
– projetados em 10% da população mundial
sua análise, pode-se concluir que os ônibus de emissão zero a partir de 2025,
naquela época – viverão em áreas costeiras
novos atores no combate à mudança para garantir que grande parte de suas
urbanas de baixa altitude, a maioria delas em
climática – grupos não estatais formados cidades não mais tenham emissões de
países em desenvolvimento.
por cidadãos, empresários, governos das carbono até 2030.
cidades e universidades – assumiram a Estes números – fornecidas por Bahareh
Também será importante descarbonizar
liderança nos esforços de descarbonização. Seyedi, assessor de clima e energia do
os edifícios, adotando regulamentos ou
Diversas plataformas demostram as ações Programa das Nações Unidas para o
elaborando políticas para garantir que
climáticas empreendidas por esses novos Desenvolvimento (PNUD) – oferecem uma
novos edifícios reduzam suas emissões
atores. Eles são um exemplo diário de uma visão geral da vulnerabilidade das cidades à
de carbono para líquido zero até 2030 –
transição que está fazendo avanços, que mudança climática, e estimulam a reflexão.
com a medida sendo aplicável a todos os
algumas vezes são mais rápidos do que o É evidente que as cidades terão que edifícios até 2050.
cumprimento das metas estabelecidas por desenvolver planos de ação climática até
seus próprios países. Aqui estão alguns Outra medida fundamental seria reduzir
o final de 2020 – ou seja, amanhã! – para
exemplos dessas novas certezas que a quantidade de resíduos gerados em ao
limitar o aquecimento global a 1,5°C
fomentam a esperança. menos 15% per capita até 2030, e reduzir em
e adaptar-se aos efeitos da mudança
pelo menos metade o volume de resíduos
Em primeiro lugar, em 2016, a taxa de climática. Esses planos de ação podem
sólidos urbanos enviados para aterros ou
crescimento da capacidade instalada dos ser estruturados em torno de três pilares:
incineradores.
sistemas solares fotovoltaicos excedeu as redução das emissões de CO2, aumento da
de todas as outras fontes de energia. Desde resiliência e educação. Por fim, as cidades terão que implementar
2010, o custo de novas instalações caiu em ações climáticas com alto impacto social
Reduzir as emissões de carbono inclui a
70% para a energia solar fotovoltaica, e que ofereçam benefícios ambientais, sociais,
transição dos sistemas de transporte; a
em 25% para a energia eólica. Além disso, econômicos e de saúde significativos,
eficiência energética; a gestão integrada
o custo das baterias fotovoltaicas caiu em especialmente para comunidades
do lixo e a promoção da reciclagem, e
40%. Entre 2020 e 2050, juntas, a energia vulneráveis e de baixa renda.
a renovação da infraestrutura urbana
eólica e a solar serão responsáveis por para alcançar padrões sustentáveis. O
48% do total de eletricidade. E o Conselho aumento da resiliência deve começar pelo
Europeu estabeleceu novas metas a serem reconhecimento de que as cidades são
alcançadas até 2030, que incluem a redução sistemas complexos e, portanto, devem
de 40% nas emissões de carbono, 27% de responder de maneiras complexas aos
energia renovável no mix de energia, e uma efeitos da mudança climática. Fundador da Klimaforum Latinoamérica
melhoria de 27% na eficiência energética. Network (KLN), Manuel Guzmán
Esta abordagem inclui a adaptação dos
Hennessey (Colômbia) é professor na
territórios à mudança climática; gestão
A ação climática e prevenção de riscos; o fortalecimento
Universidade del Rosario, em Bogotá,
na Colômbia. A KLN é uma organização
das cidades dos sistemas de economia circular e
independente dedicada à promoção de
local, e a implementação de sistemas
Parto da premissa de que uma sociedade ações climáticas que contribuam para a
energéticos descentralizados (para a
descarbonizada é possível sob a condição descarbonização da sociedade. Trabalha
produção, distribuição e comercialização
de concentrarmos ações climáticas de em parceria com universidades, empresas
dos excedentes de energia renovável). A
transição na gestão das cidades, e se e grupos cívicos, e é composta por um
educação dos cidadãos, especialmente
empreendermos essas ações de forma conselho consultivo e uma equipe de
dos mais jovens, é essencial, porque lhes
articulada e colaborativa em uma escala reconhecidos defensores ambientais.
permitirá implementar as transições de
internacional entre 2020 e 2030. maneira ordenada e acelerada.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 25


Cidades africanas
em ação
Niels Boel e Finn Rasmussen, com Hadra Ahmed

Noventa e quatro megacidades em todo o mundo se uniram para formar


a rede C40. Seu objetivo é compartilhar suas experiências no combate à A Etiópia
mudança climática e seus efeitos, e estabelecer metas ambiciosas para a
redução das emissões de carbono. é um dos
Os habitantes de Adis Abeba têm a Liderando o caminho países mais
vulneráveis
impressão de que estão vivendo no meio
de um canteiro de obras. Como dizem: “Saia da ação climática
em uma estrada pela manhã e você poderá
Adis Abeba faz parte da C40, uma rede de
encontrá-la bloqueada por um projeto de
desenvolvimento à noite!”. A capital etíope
cidades que representa mais de 700 milhões
de pessoas e um quarto da economia
à mudança
climática.
é um enorme centro continental com
mundial, e que têm trabalhado juntas desde
uma explosão populacional que foge da
2005 a fim de reduzir as emissões dos gases
agitação e da falta de oportunidades das
de efeito estufa (GEEs).
províncias pobres do país. Com a atual taxa
de crescimento, espera-se que o número de Para Hastings Chikoko, diretor regional para
habitantes dobre em 30 anos. a África do Grupo de Liderança Climática de
Cidades da C40, está claro que as cidades
Alguns economistas chamaram a Etiópia
têm um importante papel a desempenhar
de “leão africano”, por imitar as histórias
na produção de soluções e tecnologias
de sucesso dos tigres econômicos da Ásia.
inovadoras para enfrentar a crise climática.
Contudo, esse sucesso econômico e o
“Como as cidades têm instituições do
respectivo crescimento populacional – um
setor privado e de pesquisa dentro de suas
dos mais altos do mundo – têm um preço.
fronteiras, e nós as vemos criando inovações
Embora suas emissões de carbono ainda e sendo capazes de demonstrar aos governos
sejam modestas, a Etiópia é um dos países nacionais que o trabalho de mitigação e de
mais vulneráveis à mudança climática em adaptação à mudança climática pode ser
todo o mundo. A precipitação variável levado a âmbito nacional”.
e o aumento da temperatura causam
Chikoko, um economista malauiano com
secas e fome recorrentes. Os problemas
vasta experiência em mudança climática,
relacionados à mudança climática são
chama atenção para experiências positivas
exacerbados pela rápida urbanização,
em Acra (Gana) e Tsuane (África do Sul),
à medida que empresas multinacionais
onde os congestionamentos foram aliviados
varejistas de roupas, como a Calvin Klein
por iniciativas de transporte, ao mesmo
e a H&M, estabelecem fábricas aqui,
tempo em que as emissões de CO2 foram
aproveitando-se de alguns dos salários
reduzidas de forma significativa.
mais baixos do mundo.
Apesar de reconhecer as dificuldades
Em maio de 2018, Adis Abeba – juntamente
enfrentadas particularmente pelas capitais
com outras sete cidades africanas – assumiu
de muitos dos países mais pobres do mundo,
um compromisso de reduzir suas emissões
Chikoko diz que continua otimista – e destaca
de CO2. Isso significa que a cidade deverá
que algumas cidades decidiram superar as
repensar suas estratégias de transporte,
metas do Acordo de Paris de 2015 (COP-21).
produção de energia e gestão de resíduos.
A rede de cidades C40 está trabalhando
Enquanto isso, os etíopes reclamam que
para promover iniciativas climáticas locais
o progresso concreto na luta contra a
em âmbito nacional, como facilitar a
poluição e congestionamento do tráfego
integração de representantes municipais em
permanece indefinido. “A poluição está
equipes governamentais que participam de
aumentando e as pessoas estão ficando
plataformas internacionais. “Nós garantimos
© Eduardo Soteras / AFP

doentes”, diz Biniam Getaneh, 30 anos, um


que alguns prefeitos da C40 participem de
dos 3,5 milhões de habitantes da capital.
delegações sempre que possível”, explica
Chikoko. “Dessa forma, eles podem usar suas
melhores práticas do âmbito local e levantar
suas vozes nos processos decisórios”.

26 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Além disso, no contexto de escassez das
finanças locais, os municípios estão lutando
Muitas vezes, outro obstáculo à mudança Compartilhar as lições
climática no âmbito da cidade é a falta
para alocar orçamentos no combate à de planos adequados. Um objetivo
aprendidas
mudança climática. A C40 oferece apoio fundamental da rede C40 consiste em O transporte é outra grande fonte de
à capacitação, a fim de viabilizar que as garantir que as cidades envolvidas tenham emissões de carbono – é nesse setor
autoridades municipais tenham acesso a as mesmas referências e mensurações que as emissões mundiais de GEEs estão
fontes alternativas de financiamento. de dados, o que lhes permite acessar e aumentando mais rapidamente.
“Durante a cúpula do clima de Paris, nós comparar seus progressos.
A cidade de Tsuane – criada no ano 2000
lançamos o C40 Cities Finance Facility O prefeito de Acra, Mohammed Adjei pela fusão de 13 entidades municipais,
(Mecanismo de Financiamento de Cidades Sowa, recebeu apoio da rede C40 para incluindo Pretória, a capital administrativa
da C40). Identificamos grandes projetos e coletar dados confiáveis sobre os quais da África do Sul – faz parte da Mass Transit
ajudamos as cidades a identificar os desafios pudesse basear as decisões para o plano Network (Rede de Transporte de Massa)
e a transformá-los em projetos rentáveis que de gestão de resíduos da cidade. A geração da C40, que reúne cidades-membros que
podem ser financiados, por exemplo, pelo de resíduos desempenha um significativo e mostraram inovações nessa área.
Banco Mundial”, acrescenta Chikoko. crescente papel nas emissões de carbono.
“Esta metrópole de mais de 3 milhões
A transferência de tecnologia é outro “Agora, o prefeito está colaborando com o de pessoas trabalhou para melhorar sua
aspecto central que é facilitado pela rede. setor privado para estabelecer um serviço rede de transporte público, tornando-a
“Algumas soluções realmente dependem de eficiente de coleta de resíduos”, explica suficientemente confortável para incentivar
as cidades serem inovadoras. Isso poderia Chikoko. “Outras cidades africanas podem os proprietários de automóveis a utilizá-la.
corresponder a ônibus verdes, ou a uma aprender com isso: primeiramente, aterros Melhorou sua infraestrutura de transporte
tecnologia para a eficiência hídrica. Esta é sanitários ilegais devem ser banidos. Em para incluir faixas exclusivas para ônibus.
uma área na qual as cidades africanas estão segundo lugar, deve-se garantir a existência Esta é também uma das cidades que
ficando para trás. Há também um valor de um sistema eficiente que incentive os mudaram completamente a fonte de
em se identificar as cidades avançadas em residentes a cumprirem as regras”. energia de seus ônibus, de óleo para gás”.
termos de tecnologias limpas, por exemplo.
Podemos, então, facilitar a transferência de As lições aprendidas nas áreas de transporte
conhecimento, bem como a transferência de ou gestão de resíduos nas cidades da C40,
tecnologia, destas para outras cidades incluindo Tsuane, Acra e Chicago, podem
na África, por exemplo”. Cena de rua da terceira edição do inspirar ações em uma cidade superpovoada
Dia sem Carro, em 3 de fevereiro de 2019, e congestionada como Adis Abeba. Quando
em Addis Abeba, a capital da Etiópia. a capital etíope lançou seu plano para um
sistema de ônibus expressos, enviou uma
delegação a Tsuane para aprender com a
experiência desta cidade.
Melhorar o transporte público de Adis
Abeba faz parte da Estratégia Nacional de
Economia Verde da Etiópia, lançada em
2011. Atualmente, o governo etíope está
revisando suas políticas ambientais, levando
em conta a mudança climática, segundo
Chikoko. “Contemplará medidas para que
cidades em diversas partes do país sejam
resilientes à mudança climática e minimizem
suas emissões de carbono, ao mesmo tempo
em que se desenvolvem”.
“O papel da C40”, conclui Chikoko, “é
essencialmente conectar as cidades que
estão tentando implementar soluções para
reduzir as emissões de carbono e ajudar as
cidades a se inspirarem mutuamente”.

Niels Boel, cientista político, jornalista e


escritor dinamarquês, e Finn Rasmussen,
especialista em cultura e sociólogo
dinamarquês, são consultores da seção
Grande angular deste número de O Correio
da UNESCO. A jornalista etíope Hadra
Ahmed contribuiu para este artigo, de
Adis Abeba.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 27


A solidariedade
internacional em questão
Johan Hattingh
exemplo, estão muito mais vulneráveis aos como desculpas para não tratar da mudança
Se os países ricos podem riscos e às fatalidades da mudança climática, climática; e desvincular o diálogo sobre
embora tenham contribuído muito menos, solidariedade dos fatos políticos e sociais e
se adaptar ao aumento das se é que contribuíram, para suas causas. ligá-lo aos princípios éticos.
temperaturas “simplesmente
Do mesmo modo, os países e os grupos mais Vamos abordar os principais temas
ajustando o termostato” – para pobres já precisam se adaptar à mudança em linhas gerais, observando como as
usar a metáfora do sul-africano climática, embora tenham menos recursos considerações éticas já começam a surgir no
vencedor do Prêmio Nobel da para fazê-lo. Os países e os grupos em diálogo sobre o conceito de solidariedade.
Paz, Desmond Tutu – os países desenvolvimento dependem, portanto, da
assistência para essa adaptação, embora as
em desenvolvimento enfrentam partes mais ricas do mundo não considerem
Expandir e aprofundar a
desafios muito mais dramáticos. tal assistência muito urgente. Por ora, os noção de solidariedade
Onde a solidariedade internacional ricos não são diretamente afetados pela
mudança climática ou, se são, podem se Popularmente, a solidariedade tem sido
aparece em tudo isso? Uma compreendida em tempos recentes como
adaptar com relativa facilidade.
reflexão sobre uma solidariedade um apelo por unidade em círculos sindicais
compartilhada fundamentada por Essa assimetria foi perfeitamente ou políticos no combate à exploração
capturada por Desmond Tutu, antigo do trabalho ou à opressão. Em ambos os
uma consciência ética. arcebispo da Cidade do Cabo, na África contextos, a solidariedade como conceito
do Sul, quando a apontou no Relatório está ligada à compaixão e oferece apoio,
No enfrentamento aos desafios da mudança de Desenvolvimento Humano 2007/2008 materialmente ou de outro modo, às
climática, o mundo de hoje precisa, mais (http://hdr.undp.org/sites/default/files/ vítimas de práticas laborais injustas ou
do que nunca, de uma estrutura ética e de reports/268/hdr_20072008_en_complete. de injustiça política.
uma prática eticamente fundamentada de pdf) do Programa das Nações Unidas para
solidariedade internacional. o Desenvolvimento (PNUD), ao afirmar que Todas essas conotações também estão
“para a maioria das pessoas nos países ricos presentes quando a solidariedade é evocada
Essa necessidade surge, em primeiro
a adaptação tem sido, até ao momento, como base para o combate à mudança
lugar, da dura realidade de que os
um processo relativamente indolor. climática: unidade, identificação, compaixão,
desafios mundiais e as megatendências
Suavizado pelos sistemas de aquecimento apoio e assistência. Mas, nesse contexto, seu
do nosso tempo – a mudança climática,
e arrefecimento, eles podem adaptar-se a significado é transferido a públicos-alvo e a
a movimentação das pessoas, as tensões
um clima severo, bastando dar um toque no contextos mais amplos do que aqueles de
geopolíticas, a segurança, e o terrorismo
termostato” (p.168). Contudo, para inúmeras movimentos operários ou lutas de libertação.
internacional – tornam-se cada vez mais
integrados, porém, nossas respostas a eles mulheres em países em desenvolvimento, Na batalha contra a mudança climática, as
são cada vez mais fragmentadas. Essa foi a a adaptação implicaria percorrer distâncias vítimas são geralmente associadas àqueles
principal mensagem de António Guterres, cada vez maiores para buscar água potável que sofrem diretamente – e, com frequência,
secretário-geral das Nações Unidas, em seu para suas famílias. de forma muito dramática e visível – devido
discurso ao Fórum Econômico Mundial, em a condições meteorológicas extremas
Davos, em janeiro de 2019. O leque de (por exemplo, enchentes, furacões, secas,
incêndios). Nesses casos, normalmente,
Em segundo lugar, e talvez mais possibilidades a ajuda humanitária, nos Estados ou
importante, a necessidade de solidariedade
internacional também provém das causas A necessidade de nos unirmos e internacionalmente, é mobilizada
e dos efeitos da própria mudança climática. cooperarmos uns com os outros em com bastante rapidez para atender às
A mudança climática é o produto de um resposta à mudança climática está necessidades imediatas das vítimas.
mundo que já está profundamente dividido claramente lá, mas o mundo está dividido,
Nossa motivação para tais atos de
e, em seus efeitos e impactos, intensifica e e as perspectivas de superação dessas
solidariedade é, em geral, referida como
multiplica as divisões e as vulnerabilidades divisões são muito fracas.
solidariedade humana, baseada na
que já existem. consideração por aqueles semelhantes que
Então, existe algo que podemos fazer
Isso também se aplica, em âmbito quanto a isso? Há três pontos óbvios que sofrem e compartilham o mesmo destino
subnacional, aos grupos sociais e às podemos fazer para começar: expandir que nós – seu destino é nosso destino, e não
comunidades marginalizados. Esses nossa compreensão conceitual da noção podemos ignorá-lo. Com frequência, isso
são fatos políticos e sociais inegáveis, de solidariedade; remover dois dos é capturado por metáforas da sociedade
vivenciados por muitos como injustiças. obstáculos – o desenvolvimento humano e como um organismo, ou toda a humanidade
Os países e os grupos mais pobres, por o emprego – que são muitas vezes usados como uma família.

28 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Balancing Bamboo #3 (Equilibrando
bambu n° 3), Vanuatu, 2015. Com a ilha
A mudança climática, entretanto, nos trabalhadores em desvantagem, então de Malekula ao fundo, uma menina
confronta com a interdependência de eles não podem participar. equilibra uma longa vara de bambu
nós humanos uns com os outros e com em sua cabeça. Este se tornará o novo
A discussão sobre empregos foi
os ecossistemas para nossa sobrevivência horizonte um dia? “Todos os anos, o
precisamente a desculpa usada pelos
e prosperidade. Ecossistemas esses nível do mar está subindo em um ritmo
Estados Unidos para justificar sua saída
incorporados na biosfera, na Terra e nos acelerado”, observa a fotógrafa holandesa
do Acordo de Paris (COP21). Contudo, a
sistemas planetários, todos desdobrando-se Scarlett Hooft Graafland.
redução da pobreza e a manutenção de © Scarlett Hooft Graafland
em processos de evolução natural ao longo empregos são, de fato, tão diametricamente
do tempo. Por conseguinte, as noções opostos às ações de combate à mudança
de solidariedade terrestre, solidariedade climática? Esse foi exatamente o dilema
planetária, e solidariedade intergeracional abordado no Relatório de Desenvolvimento em segundo plano, enquanto, em primeiro
podem ser consideradas para elaborar Humano 2007/2008, com o título sugestivo: lugar, erradicamos a pobreza no mundo.
sobre a realidade de que toda vida na Combater as alterações climáticas: Em resposta à necessidade séria e
Terra faz parte, por assim dizer, da mesma solidariedade humana num mundo dividido. urgentíssima de desenvolvimento
comunidade – a comunidade da vida que
Neste relatório abrangente, duas mensagens humano e redução da pobreza, a segunda
compartilha unida o mesmo destino.
principais são comunicadas. Primeiro, que mensagem mais importante do Relatório
a mudança climática, definitivamente, terá 2007/2008 é que o desenvolvimento
Desenvolvimento um efeito negativo sobre o desenvolvimento humano e o combate à mudança climática
humano versus clima? humano de longo prazo, tornando não são duas agendas separadas. São duas
mais difícil concretizar os Objetivos de dimensões da mesma agenda que estão
Na comunidade internacional, o combate Desenvolvimento Sustentável (quando o inseparavelmente ligadas e devem ser
à mudança climática é muitas vezes relatório foi redigido, eram chamados de perseguidas juntamente.
enquadrado como um dilema. Os Estados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio)
costumam dizer que não podem entrar e, eventualmente, pode até mesmo reverter Em termos de políticas e projetos, isso
nessa luta porque devem primeiro garantir a maioria dos avanços no desenvolvimento significa que as medidas adotadas em
que seus cidadãos tenham oportunidades humano alcançados até este momento da resposta à mudança climática devem,
de desenvolvimento para sair da história. Esta é uma mensagem alarmante, e ao mesmo tempo, contribuir para o
pobreza. A mesma desculpa é usada com coloca um grande ponto de interrogação no desenvolvimento humano e ter um
frequência a respeito de empregos: se o argumento de que as respostas ao combate impacto benéfico em ambas as áreas. Em
combate à mudança climática coloca os às mudanças climáticas podem ser colocadas termos éticos, a solidariedade no combate

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 29


© Rasel Chowdhury

Afastados do mundo, esses aldeões assistem


impotentes à medida que a represa se
à mudança climática significa de forma fazer, em vez de agir contra a mudança rompe e as águas sobem no upazila
inversa que os pobres e os vulneráveis climática. Na esfera ética, o diálogo (subdistrito) de Raomari, em Bangladesh.
não podem ser deixados para trás. Seus desloca-se para a solidariedade como “Tudo aconteceu em meia hora”, lembra o
interesses também devem ser tratados, de uma forma de consciência e uma fonte de fotógrafo bengali Rasel Chowdhury.
fato, como uma questão prioritária, de forma inspiração para ação – ou seja, como um
tão sagaz e inteligente que a agenda de compromisso e um ponto de partida, em
desenvolvimento humano e a agenda de vez de um pré-requisito técnico para ação.
mudança climática se fundam plenamente. Dadas as exigências éticas da solidariedade
O mesmo argumento se aplica no que no combate à mudança climática, grandes
se refere à manutenção de empregos. incertezas permanecem em um mundo
Se os trabalhadores são deixados para cada vez mais dividido. Uma noção de
trás no combate à mudança climática, os solidariedade radicalmente ampliada pode
imperativos éticos da solidariedade são não facilitar a cooperação internacional.
traídos. Claramente, se os empregos forem Contudo, pode ser uma fonte inestimável
perdidos no combate à mudança climática, de inspiração e motivação para nos
então isso significa que não utilizamos
emprenharmos juntos na gigantesca tarefa Linha de frente
de enfrentar a mudança climática.
nossas mentes de forma tão inteligente e do clima
sagaz quanto deveríamos.
Muitos dos mais vulneráveis aos efeitos
da mudança climática – como aqueles
Um debate ético que vivem no Ártico, em pequenas ilhas
ou em altitudes elevadas – não têm
É por essa razão que devemos transferir o
Professor de filosofia na Universidade certeza de que tipo de futuro esperar. É
debate sobre solidariedade do campo dos por isso que a UNESCO, em colaboração
fatos sociopolíticos para o dos princípios Stellenbosch, na África do Sul, Johan
Hattingh (África do Sul) é especialista nas com várias outras organizações, lançou
éticos. Nesse sentido, a Declaração de Princípios o Climate Frontlines (Linhas de Frente
áreas de ética aplicada, ética ambiental e
Éticos em relação à Mudança Climática (2017) do Clima). O fórum mundial permite
ética da mudança climática. Ele serviu dois
da UNESCO é um bom lugar para começar. que essas comunidades se conectem
mandatos como membro da Comissão
A solidariedade apresenta-se na Declaração umas com as outras, e compartilhem
Mundial para a Ética do Conhecimento
como um dos seis princípios éticos que devem conhecimento local e indígena, e
Científico e Tecnológico (World Commission
orientar os tomadores de decisão em suas descobertas de pesquisa científica. O
on the Ethics of Scientific Knowledge and
respostas à mudança climática. fórum contribui para o fortalecimento
Technology – COMEST). Também foi
No contexto de fatos sociais e políticos, presidente do Grupo de Especialistas da solidariedade e ajuda as
o diálogo é geralmente sobre uma falta Ad Hoc convocado pela UNESCO, em comunidades a se sentirem menos
2016, para redigir o primeiro esboço da isoladas diante do risco climático.
de solidariedade, ou a impossibilidade
de alcançá-la – transformando isso em Declaração de Princípios Éticos em relação www.climatefrontlines.org
uma desculpa conveniente para nada à Mudança Climática.

30 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Mudança climática e

educação
Laura Ortiz-Hernández

Ensinar sobre mudança climática


e questões de desenvolvimento
sustentável é uma necessidade.
Na América Latina, há alguns
experimentos promissores sendo
realizados que merecem ser
replicados, tanto na região quanto
em outros continentes. Há alguns
aspectos, no entanto, que estão
sendo negligenciados.
© Tagma / Lorena Presno

Nos últimos anos, a crise ambiental


e a mudança climática destacaram a
necessidade de transformar nossos modos
de pensar e de agir. A Educação para o Crianças brincando na escola primária
Desenvolvimento Sustentável (EDS) é, Mar Chiquita, a primeira escola pública
portanto, um fator essencial na busca por sustentável da Argentina.
métodos alternativos para construir um Estes números são bastante animadores.
tipo diferente de sociedade que seja justa, Contudo, deve ser observado que, no
participativa e aberta à diversidade. setor de educação, a ênfase tem sido
De acordo com o Projeto RISU (2015), que principalmente em aspectos ambientais.
Na América Latina e no Caribe (ALC), a EDS
define os indicadores para a avaliação Os aspectos sociais que complementam os
avançou por meio da aplicação de diferentes
de políticas de sustentabilidade em esforços que estão sendo feitos para alcançar
estratégias, adaptadas às condições de cada
universidades latino-americanas, 70% os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
país. No México, por exemplo, a EDS está
destas instituições têm autoridade (ODS), os quais os 193 países-membros das
sendo implementada em todos os níveis
universitária para aplicar medidas Nações Unidas têm o dever de alcançar até
do sistema escolar: jogos educacionais
ambientais; 86% se envolvem em atividades 2030, ainda não foram incluídos. Esta é a
na educação pré-escolar, atividades e
extracurriculares de comunicação e próxima etapa que deverá ser realizada.
programas de biodiversidade na educação
conscientização sobre questões ambientais
primária ou básica, e a integração de
e de sustentabilidade, e 46% conduzem
estudos de proteção ambiental nos
pesquisas nessas duas áreas.
currículos do ensino secundário. Em países
como Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, O relatório também revela que 46%
Equador, Guatemala e Peru, estratégias das universidades têm um plano de
ad hoc de EDS estão sendo desenvolvidas sustentabilidade energética, e 35% Consultora ambiental e diretora de
para cumprir com os regulamentos conduzem atividades de conscientização pesquisa na Misión Sustentabilidad
estabelecidos, como publicações de livros, sobre conservação de energia. Por fim, México AC, Laura Ortiz-Hernández é
criação de programas de televisão e de 33% dessas universidades monitoram a membro do Comitê de Coordenação da
rádio, visitas a áreas naturais protegidas, e qualidade da água destinada ao consumo Aliança de Redes Ibero-americanas de
treinamento de professores nestas questões. humano, e 61,5% têm uma unidade para Universidades pela Sustentabilidade e
lidar com a gestão de resíduos perigosos. o Ambiente (Alliance of Ibero-American
Além do sistema formal, as organizações da
Metade das universidades possui um University Networks for Sustainability and
sociedade civil também estão trabalhando
sistema de informação e monitoramento the Environment – Ariusa). Foi diretora
para transmitir conhecimento sobre
de resíduos sólidos, classificando-os por da UNESCO para Mudança Climática e
diferentes questões ambientais e para apoiar
tipo e quantidade. Desenvolvimento Sustentável na América
o trabalho dos professores nas escolas.
Latina, 2016-2017.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 31


Coronel:
Devemos agir rapidamente!
Thierry Geoffroy, entrevistado por Niels Boel, jornalista dinamarquês
A Critical Run é
Apática e soporífera. Estas palavras descrevem a situação da opinião
pública e a atitude da mídia em relação à mudança climática, segundo uma metáfora:
o artista conceitual franco-dinamarquês Thierry Geoffroy, também
conhecido por Coronel. Pouco a pouco, seus slogans – que oscilavam corremos para
entre “Antes que seja tarde demais” e “Amanhã é tarde demais” –
reduziram-se a um simples “Tarde demais”. Paradoxalmente, é no salvar, desde
desespero que ele encontra algum consolo.
que não seja
Uma de suas obras mais recentes consiste em
letras neon vermelhas que dizem “Eu desisto”.
ser tratados o mais rapidamente possível. Está
claro que a mudança climática é a prioridade
tarde demais,
O sr. perdeu a esperança de que venceremos a
corrida contra a mudança climática?
de todas as prioridades. Ela é – e será – a
causa de muitas outras emergências: grandes
ou corremos
A resposta é sim. Não sei se é porque estou
envelhecendo ou porque a situação está
deslocamentos de populações, problemas
ecológicos, guerras etc. para nos salvar,
piorando. Nós não vivemos mais no medo,
vivemos no “é tarde demais”. Contudo, não
acredito que isso signifique que estejamos
Então, imaginei um projeto – ou melhor,
um formato – que permita aos artistas porque é tarde
demais.
contemporâneos se expressarem com
desistindo, pois talvez seja precisamente urgência quanto às notícias transmitidas
esse desespero que finalmente despertará pela mídia. Eles estão atentos,
as consciências adormecidas! Quase todos observando o que está acontecendo ao
estão cientes da mudança climática e da seu redor e reagindo quase em tempo
responsabilidade da atividade humana, e, real, ao criar uma obra que exibem no
ainda assim, quase ninguém faz alguma coisa. dia seguinte na Emergency Room, para
O problema não é a ignorância, é a apatia. discuti-la com o público.
Critical Run (Corrida Decisiva), um formato
Tenho a impressão de que vivemos em um artístico iniciado por Coronel, na Itália,
mundo onde os aviões voam cruzando o durante a Bienal de Veneza, em 2011.
céu dia e noite, pulverizando substâncias
indutoras do sono que atrofiam nossa
consciência. A mídia tem muito a ver
com isso – ignoram as reais causas dos
fenômenos meteorológicos extremos a que
estamos testemunhando, de modo que não
questionemos os sistemas de produção
e consumo em que o poder das elites se
baseia. Sabendo que essa mesma mídia faz
parte dessas mesmas elites.
Creio que os artistas têm um papel a
desempenhar na conscientização. Eles
podem detectar o funcionamento da
propaganda midiática. Podem mostrar ao
público a verdadeira face dos problemas.
Este é o propósito do seu projeto Emergency
Room (Sala de Emergência), correto?
De fato, a essência da minha obra sobre
mudança climática é fazer a pergunta: “Qual
© Emergency Rooms

é a emergência?”. Assim como nas alas de


emergência do hospital, não é possível tratar
todas as emergências ao mesmo tempo – é
necessário identificar aqueles que precisam

32 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


© Emergency Rooms

Agora, antes que seja tarde demais. A


instalação Emergency Rooms (Salas
de Emergência), de Thierry Joffroy /
Coronel, em Marrocos, durante a Bienal de
Casablanca, em 2018.
A Critical Run (Corrida Decisiva) é outro Nosso participante sugeriu que teria sido
formato de arte que o sr. criou. O que ela melhor expor um daqueles navios de
Para dar um exemplo, para a primeira implica, e qual é o objetivo? cruzeiro – que, por uma reação em cadeia,
Emergency Room instalada no MoMA PS1, faz com que populações inteiras sejam
em Nova York, o artista dinamarquês, Søren As Critical Runs são, na verdade, conferências condenadas a migrar por razões climáticas –
Dahlgaard, produziu – após tempestades de sobre tópicos atuais, particularmente a em vez disso.
neve muito fortes – cópias falsas dos jornais mudança climática, mas em vez de os
participantes sentarem-se em uma sala A Bienal deveria expor obras que evocam
mais influentes do mundo para chamar
de conferências acolhedora e confortável, as causas dos problemas e nos incentivar a
a atenção do público para a mudança
sonolentos com o calor e o zumbido dos tentar resolvê-los a tempo, não obras que
climática. As manchetes anunciavam
projetores, eles são convidados a debater ironicamente personificam nossas atitudes de
desastres em todos os lugares.
enquanto correm! que é “tarde demais” e de nós dando as costas.
Isso foi em 2007, e o público ficou
realmente abalado. Atualmente, ninguém A Critical Run é uma metáfora: corremos para
piscaria um olho ao ver manchetes tão salvar, desde que não seja tarde demais, ou
atuais! Contudo, como estava dizendo, não corremos para nos salvar, porque é tarde
significa que devemos desistir. Continuo demais. Se realmente for tarde demais, não
a montar Emergency Rooms em todo vamos nos sentar em cadeiras e folhear a Filho de um soldado, o artista franco-
o mundo. Estou contando com o fato história da arte. dinamarquês Thierry Geoffroy assumiu
de que os debates que lá ocorrem irão Em maio de 2019, o sr. organizou uma seu nome de guerra, Coronel, para indicar
eventualmente conquistar e aumentar a que está travando uma batalha: sensibilizar
Critical Run na Bienal de Veneza para
conscientização entre novos públicos. a opinião pública sobre a mudança
refletir sobre o título da 58ª edição dessa
O sr. usa materiais recicláveis para suas obras. importante mostra internacional de arte: climática. Como fotógrafo, Geoffroy tem
Essa é uma escolha deliberada? May You Live in Interesting Times (Que excursionado por feiras de arte, galerias
você viva em tempos interessantes). e museus em muitos países por mais
É o fato de trabalhar no presente que de uma década. Ele se convida, mesmo
impõe essa escolha. Vou à procura de Sim. E algumas boas perguntas foram quando não é convidado, a transmitir
uma caixa na rua e escreverei nela. Passo feitas durante essa corrida-debate. Um dos suas mensagens. Autor de vários livros e
mais tempo tentando entender o que está participantes discutiu a obra principal da manifestos, ele produziu mais de 20 filmes
acontecendo e me comunicando com Bienal deste ano, Barca Nostra (Nosso barco), para a televisão dinamarquesa e muitas
o público do que aperfeiçoando minha de Christoph Büchel. Esse artista islandês- mostras individuais em museus.
obra sozinho em minha oficina ou estúdio. suíço exibe o naufrágio de uma embarcação
Não há tempo para aperfeiçoamento. Nós de pesca que afundou no Mediterrâneo
devemos agir rapidamente. em 2015, matando cerca de mil migrantes.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 33


Arshak Makichyan:

o manifestante solitário
Entrevista por Jasmina Šopova

Todas as sextas-feiras, desde março de 2019, Arshak Makichyan


protesta sozinho na Praça Pushkin, em Moscou. Seu cartaz exibe
slogans como “O aquecimento global é igual à fome, à guerra e à morte”.
Este jovem violinista lidera na capital russa uma luta solitária e tenaz
em favor de todo o planeta.

Como o sr. acabou protestando Segundo algumas fontes, a primeira Greve de conseguir o direito para que estudantes
sozinho na rua? Mundial em Defesa do Clima, em 15 de março e jovens com menos de 18 anos possam
de 2019, mobilizou cerca de 1,8 milhão de lutar por seu futuro. Fotografias de jovens
Tenho me interessado por questões
pessoas em todo o mundo. Porque apenas 70 segurando cartazes dizendo: “Permita que
ambientais há muito tempo. Contudo, foi
pessoas compareceram à marcha em Moscou? a Rússia faça greve pelo Clima” (meu slogan
apenas por volta do final de 2018 que fiquei
de mobilização relâmpago) em diferentes
realmente impressionado com o problema Isto não foi, de modo algum, surpreendente.
países foram enviadas a mim. Como a de uma
do aquecimento global, quando descobri, Uma grande parte da população na Rússia
menina de 9 anos protestando em Nova York.
por meio do Greenpeace International, o não compreende o que é o aquecimento
A Greta tem 16 anos e pode protestar nas
que Greta Thunberg está fazendo. Na época, global. Muitas pessoas acreditam que
ruas sem medo de quaisquer consequências.
a ideia de protestar nas ruas, como essa o clima se tornará mais ameno, que os
Ela também respondeu à minha mobilização
jovem estudante sueca, ainda não havia invernos serão menos severos. As pessoas
relâmpago e me segue no Twitter, onde
passado por minha cabeça, porque não não têm onde buscar informações.
escrevo em inglês. Isso me deixou tão feliz.
temos uma cultura de protestos aqui.
Não temos sequer uma figura política É realmente gratificante quando alguém
Então, em fevereiro de 2019, participei de conhecida que fale sobre catástrofes como Greta Thunberg, que fez tantas coisas
uma manifestação pela primeira vez – a ecológicas e aquecimento global, e a positivas pelo mundo, se interessa pelo que
marcha em memória de Boris Nemtsov, mídia não reporta sobre essas questões. você está fazendo.
o ex-ministro e deputado russo, que foi Alguns acreditam que o público não está
E isso é ainda mais importante porque,
assassinado em 2015. Essa experiência me interessado na mudança climática; outros
pelo que sei, havia apenas três de nós
fez perceber que eu era um adulto capaz de evitam o assunto para não ofender as
realizando protestos solitários antes da
fazer, eu mesmo, algo semelhante. empresas de petróleo e gás que detêm as
Segunda Greve Mundial em Defesa do
rédeas do poder econômico neste país –
Quando descobri – por acaso, na verdade Clima, em 24 de maio de 2019 – uma
que é um dos maiores produtores mundiais
– que uma manifestação estava sendo menina em Yaroslavl, na região central da
desses produtos. Como resultado, nos
organizada em Moscou, em 15 de março, Rússia, e uma outra em Saratov, a cerca de
silenciamos quanto a falta de ação da Rússia
como parte da Greve Mundial em Defesa 850 quilômetros de Moscou.
em implementar o Acordo de Paris (COP21)
do Clima, eu participei. Estava sendo
de 2015, do qual foi signatário, mas ainda E o que o sr. fez por esta segunda greve?
realizada no “Hyde Park”, um espaço no
não ratificou. Em minha opinião, o silêncio Relata-se ter mobilizado mais de 1 milhão de
Parque Sokolniki especialmente designado
sobre o clima não é diferente do silêncio pessoas em todo o mundo, e ter até mesmo
pelas autoridades como área para liberdade
sobre o desastre de Chernobyl. influenciado as eleições do Parlamento
de expressão e protestos. Havia cerca de
Europeu em 26 de maio, colocando os
70 participantes, contudo, como a área é Até mesmo na internet a greve de 15 de
partidos verdes na liderança em vários países.
rodeada por uma cerca e quase ninguém vai março passou quase despercebida, o que
até lá, ninguém realmente nos notou. pôde ser visto, por exemplo, pelo fato de Juntamente com o sindicato dos estudantes
as pessoas terem medo de mencionar de Uchenik, solicitamos autorização para
Foi quando decidi agir. Já que manifestações
manifestações de jovens. Aqui, as pessoas realizar um encontro de 500 pessoas no
solitárias ou protestos unipessoais são
não têm permissão para organizar Parque Muzeon, no centro da cidade.
permitidos na Rússia, pensei em me
manifestações ou realizar um protesto Contudo, a permissão nos foi recusada sob
manifestar, sozinho, todas as sextas-feiras,
solitário se tiverem menos de 18 anos de a alegação de que o espaço não era grande
para mostrar meu apoio ao movimento
idade – envolver menores em tais ações é o suficiente – muito embora, segundo o
Fridays for Future (Sextas-Feiras pelo
uma infração punível. sindicato, o parque pudesse acomodar
Futuro), lançado por Greta. Eu escolhi a
até 850 pessoas. Após várias negociações
Praça Pushkin por estar sempre repleta No entanto, em todo o mundo, são
malsucedidas, cerca de dez protestos
de pessoas. majoritariamente os jovens que estão se
unipessoais ocorreram em Moscou. Durante
mobilizando contra a mudança climática.
o dia, eu realizei um protesto solitário em
Sim, e é justamente por esta razão que eu frente à estátua de Pushkin e, à noite, os
organizei uma mobilização relâmpago na membros do sindicato assumiram.
internet em maio passado – com a ideia

34 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Naquele dia, o Greenpeace International
me deixou utilizar sua conta do Twitter. Por
uma hora, eu reportei sobre as várias ações
Como minhas ações parecem estar
encontrando alguma ressonância na
sociedade, decidi continuar a sair na rua todas
Percebi que
que estavam acontecendo na Rússia. Então,
pelo resto do dia, escrevi os tweets para sua
as sextas-feiras. Estou em contato com pessoas
que compartilham as mesmas preocupações
meu protesto
seção em russo. Houve manifestações em
cerca de dez cidades no total, mas eram
sempre bem pequenas.
que eu, e planejamos nos reunir para discutir
como devemos desenvolver nossos projetos.
Eu acredito que faremos uma diferença. Se,
solitário
De onde o sr. tira a inspiração para os
slogans em seus cartazes?
até 15 de março de 2019, o problema do
aquecimento global havia sido ignorado, tudo
está começando a mudar agora.
era mais
Para o primeiro, me referi ao Acordo de
Paris, mas logo percebi que as pessoas não
importante
sabiam o que era aquilo. Então, comecei a
escrever sobre coisas mais simples – sobre
separar o lixo [para reciclagem], por exemplo,
do que meu
o que ainda não é feito em Moscou, e
contra o sistema oligárquico da gestão de
Ativista ambiental e violinista russo de
origem armênia, Arshak Makichyan,
arco de
violino.
resíduos. Nós pagamos pela coleta do lixo,
25 anos, recentemente se formou pelo
mas não há infraestrutura instalada. É claro
Conservatório Tchaikovsky de Moscou.
que há algumas lixeiras de triagem, mas o
lixo é misturado assim que é carregado no
caminhão de lixo e chega desordenado no
aterro – sob o pretexto de que poucas pessoas
separam seu lixo e de que não vale o esforço!
E como os transeuntes
reagem aos seus slogans?
Eu geralmente fico em frente à estátua
de Pushkin, e permaneço lá por cerca de
duas horas. Neste período, comumente
sou fotografado com aprovação e apoiado
por cerca de dez pessoas. Muitos outros
vêm até mim e fazem perguntas estranhas,
referindo-se a mentiras inventadas pelos
inimigos da Rússia ou teorias de conspiração
internacionais. Eu não discuto com eles.
Também já fui abordado por policiais que
fotografaram meu passaporte e disseram
que me denunciariam aos seus superiores.
Quanto aos outros transeuntes que não
demonstram qualquer interesse particular,
não tenho ideia do efeito sobre eles. Eles
leem o que está escrito em meu cartaz, e
isso provavelmente os faz pensar.
O sr. já pensou sobre o que fazer em seguida
em sua luta contra a mudança climática?
Antes de começar todas essas ações, eu
planejava continuar meus estudos de
música na Alemanha. Mas em maio passado,
decidi permanecer em Moscou. Percebi que
meu protesto solitário era mais importante
do que meu arco de violino. Visto que, qual
é o sentido de ter uma educação e começar
uma carreira se você não tem futuro?
© Anna Antanaytite / Greenpeace

“O aquecimento global é igual à fome, à guerra


e à morte”. Arshak Makichyan tem protestado
sozinho todas as sextas-feiras, desde 15 de
março de 2019, na Praça Pushkin, em Moscou.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 35


Zoom
Zoom

Juventude árabe,
arquitetos de seu futuro
Fotos: Yan Bighetti de Flogny (Projeto Al Safar) / Instituto de Arte MiSK
Texto: Katerina Markelova

36 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


O velho e o novo,
Beirute, Líbano, 2018.

O fotógrafo francês Yan Bighetti de Flogny quilômetros e visitaria todos os países de suas viagens é uma fonte da primeira
estava no Paquistão quando, durante uma muçulmanos. No decorrer dessa grande importância para a história do mundo
conversa com um dono de hotel, soube jornada, comparável apenas àquela de Marco muçulmano de sua época, especialmente
da existência de Ibn Battuta, o explorador Polo, ele visitou Meca quatro vezes, tornou-se para a história da Índia, da Ásia Menor e da
marroquino do século XIV. Injustamente juiz em Déli e nas Ilhas Maldivas, acompanhou África Ocidental”.
pouco conhecido, Ibn Battuta é, talvez, o uma princesa grega até Constantinopla,
A história inspirou nosso fotógrafo, cujo
maior viajante que já viveu”, como nos conta navegou para Sumatra e Java, e viajou à
projeto de reportagem sobre a luta contra os
um artigo de O Correio da UNESCO de China como embaixador do Sultão da Índia.
preconceitos culturais vinha amadurecendo
agosto-setembro de 1981. Então, em 1349, ele retornou brevemente ao
há anos. Contudo, faltava um ponto em
seu próprio país (“a melhor terra do mundo”)
“Aos 21 anos, ele começou suas viagens comum, que ele agora havia encontrado:
antes de partir imediatamente para o reino
fazendo uma peregrinação à Meca. Esse foi Yan decidiu que embarcaria em uma longa
de Granada e, depois disso, para uma jornada
o início de 30 anos de andanças, durante jornada, seguindo os passos de Ibn Battuta! O
pela África rumo à bacia do Níger. O diário que
os quais ele percorreria quase 120 mil projeto foi lançado em março de 2018, levará
Ibn Battuta ditou à um escriba no decorrer

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 37


Jogo de futebol no coração da cidade história de Jidá, na Arábia
Saudita (2019), inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO.

38 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


três anos, e abrangerá mais de 20 países, do que os mais velhos ficaram presos em certos
Marrocos à China, seguindo um itinerário desentendimentos que os jovens apenas
similar àquele empreendido pelo explorador querem esquecer”.
marroquino sete séculos antes.
Diante da maior taxa de desemprego entre
Atualmente, Yan e sua equipe estão na os jovens do mundo, 49% para as mulheres
metade do caminho, tentando “restaurar e 27% para os homens, os jovens da região
alguma precisão e um pouco de cor para não estão desistindo. “Não senti qualquer
o mundo muçulmano erroneamente negatividade ou falta de esperança”, diz
menosprezado pelo Ocidente”. Todas as vezes o fotógrafo. “O problema do desemprego
que chega em casa, fica perturbado pela é preocupante, mas muitos dos outros
lacuna entre o modo como as pessoas ao seu desafios enfrentados pela região até 20 anos
redor olham para esse mundo desconhecido atrás – como o acesso à educação, à água
e a realidade que ele testemunha durante potável e ao saneamento – são menos
suas viagens: “o calor, a hospitalidade, a predominantes atualmente”.
profunda generosidade e, especialmente,
De acordo com o Banco Mundial, duas em
as pessoas que têm os mesmos sonhos e as
cada três pessoas na região do MENA têm
mesmas tristezas que nós temos”.
menos de 24 anos. O peso demográfico
da juventude árabe faz deles uma força
O fervor da juventude viva e lhes concede um lugar central nas
sociedades árabes de amanhã. “A centelha
A juventude árabe, com sua determinação foi acesa”, diz Yan. “Eles não desistirão,
inabalável de escolher seu próprio destino, sabem o que querem e, em minha opinião,
emergiu como um dos pilares do projeto. tomaram o caminho certo para chegar lá”.
É para eles que O Correio dedica esta
fotorreportagem, publicada por ocasião
do Dia Internacional da Juventude, Produzido pela plataforma cultural
12 de agosto. internacional Al Safar (“viagem” em
árabe), o projeto In the footsteps of Ibn
O desejo de viver e mudar suas vidas é o que Battuta (Nos passos de Ibn Battuta)
une os jovens do Oriente Médio e da África está em andamento em parceria com
Pôr do sol sobre a Mesquita Hassan II, do Norte (MENA, sigla na língua inglesa). a UNESCO, a edição digital francesa da
em Casablanca, no Marrocos, em “Onde quer que você esteja, você realmente National Geographic e o Instituto de Arte
2018. Em primeiro plano estão os sente uma energia comum. Encontrei muitas MiSK. Visite o site: www.alsafarproject.org
dançarinos do grupo de hip-hop Lhiba semelhanças em seu modo de vida, em sua
Kingzoo, formado na cidade em 2005. visão do futuro”, explica Yan. “Às vezes, acho

Jana, 16 anos, alpinista campeão, frequentemente escala as rochas altas de Wadi Rum,
na Jordânia, 2018. A área protegida está na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 39


Um jogo de reflexos no Palácio El Mechouar, em Tlemcen,
na Argélia, que data da Idade Média (2018).

Uma tarde na praia,


Aqaba, Jordânia, 2018.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 41


O grafiteiro Ed One em ação, Casablanca, 2018. Os antigos abatedouros da cidade marroquina
foram agora convertidos em um espaço cultural dedicado às artes urbanas e contemporâneas.

Três jovens mulheres captadas em um momento suspenso em meio


às perpétuas idas e vindas dos bondes em Alexandria, Egito, 2019.

42 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


O dançarino Rochdi Belgasmi, sob a Pont de la Républic (Ponte da República), em Túnis, na Tunísia, em 2018.
Embora a dança não seja reconhecida como uma profissão em seu país, Belgasmi consegue ganhar
a vida ela. Ao revisitar as coreografias populares do passado, ele graciosamente as insere no presente.

Uma noite tranquila no corniche, em Trípoli, no Líbano, em 2018. Um admirador das grandes pinturas orientalistas, o
fotógrafo compõe suas fotografias em vários níveis. A primeira visualização, à distância, permite que sejam observadas
a preparação e as cores. À medida que o espectador se aproxima, mais detalhes podem ser examinados.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 43


Ideias

A Question of Ethics: AI and the


Human Race (Uma Questão de Ética:
IA e a Raça Humana), do artista
australiano Pete Kreiner.
© Pete Kreiner / Cartoon Movement

44 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Um conto
de dois futuros

© Alex Falco Chang / Cartoon Movement


Robotics conception (A concepção
da robótica), do artista cubano Falco.
Sandrine Cathelat e Mathilde Hervieu

A inteligência artificial (IA)


está prestes a se tornar
completamente autônoma? A
resposta dependerá apenas de
nós. Cabe a nós definir o futuro
vez mais responsabilidades gerenciais: Estamos na encruzilhada das civilizações, e
da humanidade em harmonia otimização de compras, logística, segurança um grande desafio está surgindo: qual é o
com essa ferramenta tecnológica de instalações e bancos de dados, seleção e status, o lugar, a utilidade do homo sapiens
que, por vezes, consideramos ser recrutamento, distribuição de ferramentas nesse ecossistema digitalizado (híbrido na
um monstro aterrorizante. e recursos humanos – tudo isso em tempo melhor das hipóteses) do século XXI? Será
real, com a máxima flexibilidade. que estamos vivenciando a oportunidade
de redefinir os seres humanos e sua
Como temos visto, já por muitos anos, Porém, será que vale a pena aceitar tudo
humanidade a fim de melhor encarar a vida
os desenvolvimentos tecnológicos mais que há nas capacidades desses algoritmos?
com a IA e suas múltiplas encarnações?
recentes estão criando um ecossistema Qualquer coisa, a qualquer preço, em
Que cenários do futuro devemos considerar
baseado em serviços que é cada vez mais nome da eficiência e da rentabilidade?
e escrever (uma vez que ainda é nossa
fácil de usar. E a IA é que está conduzindo Devemos nos manter alertas diante do
responsabilidade empunhar a caneta)?
esse ecossistema conveniente! Para o ritmo vertiginoso das sucessivas inovações
Certamente é hora de refletir e escolher qual
indivíduo, o cidadão ou o consumidor, e interrupções, e da crescente concentração
estratégia adotar frente ao empoderamento
significa uma gama cada vez mais ampla de centros de inovação nas mãos de poucos.
digital: proibir ou regular, reverter o curso da
de serviços fáceis de usar e disponíveis Especialmente porque essa tendência para
inovação ou ao menos retardá-la? Devemos
para simplificar suas vidas e fazer escolhas a delegação de responsabilidades apenas
apostar em um novo tipo de espécie
otimizadas. Para o trabalhador, o autônomo aumentará quando a IA se desenvolver e
humana ciborgue para animar a competição
ou o assalariado, a IA oferece vantagens tornar-se mais generalizada. Essa tecnologia
entre homem e máquina, no próprio
como avaliação mais objetiva, acesso mais já está preparando o terreno para isso,
campo de atuação das máquinas? Ou
imediato ao conhecimento e a especialistas, estendendo sua rede de conectividade
devemos demonstrar plasticidade criativa
assistência digital em todos os momentos para todo nosso ambiente real, em uma
ao imaginar uma sociedade de colaborações
para estar pronto para realizar qualquer tendência tecnológica na qual as interfaces
complementares entre capacidades
tarefa. Para organizações e seus gestores, é estão se tornando mais invisíveis e intuitivas.
humanas e digitais?
uma oportunidade para atribuir à IA cada

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 45


A IA é a
ferramenta de
um projeto,
de uma visão,
de uma narrativa.
E, atualmente,
a narrativa
dominante é a
da eficiência.
© Rafael Lozano-Hemmer / foto: Antimodular Research

O tempo da
metamorfose
A IA é um assunto atual. Catalisa todas as
nossas ansiedades. Alguns ainda dizem que é Blow-Up, Shadow Box 4, 2007. Criado
“fraca”, mas quando será que a veremos como pelo artista de multimídia mexicano-
“forte”? Quem será sua dona? Quem terá o -canadense, Rafael Lozano-Hemmer. Esta
direito de usá-la? Para fazer o que? E, acima tela interativa de alta definição foi projetada
de tudo, que aparência terá? Será humana ou para fragmentar a visão de uma câmera de
humanoide? Terá todas as nossas qualidades vigilância em 2,4 mil câmeras virtuais que se operar em rede e modificar as narrativas das
e defeitos? Terá uma moralidade e uma aproximam do espaço da exposição. pessoas, quer seja para o bem ou para o mal.
intenção? Evocá-la dessa maneira faz dela
Dada essa metamorfose lógica e antecipada
um monstro aterrorizante. Contudo, se a IA é
(que não podemos negar se mantivermos
monstruosa, é mais um monstro de eficiência No entanto, a IA não é uma ferramenta esse momentum tecnológico), somos
do que um Frankenstein! Porque a IA é uma como qualquer outra. No princípio, era um tentados a temer a IA, embora ainda
ferramenta, assim como um martelo, que é software tático inteiramente patrocinado tenhamos o controle das rédeas. Contudo,
conduzida por uma vontade externa. e programado por seres humanos, temos de enfrentar grandes desafios, tais
No entanto, essa vontade é organizacional atualmente, ela está entrando em uma como: a transparência de algoritmos e
e não humana. A IA é uma ferramenta que, segunda fase em que gradualmente está bancos de dados; os limites e as restrições a
desde que surgiu há algumas décadas, tem ganhando autonomia – tornando-se capaz serem definidos para as máquinas e para os
atendido aos objetivos de rentabilidade de escolher, por si só, o método que lhe serviços que elas podem oferecer; o registro
e funcionalidade de uma organização. permitirá atingir um objetivo. O objetivo de uma narrativa de que a IA pode atuar do
É, portanto, fundamentalmente, a ainda é definido por um ser humano. mesmo modo que podemos. A questão é
ferramenta de um projeto, de uma visão, Amanhã, o software de ontem se tornará a IA provavelmente menos tecnológica do que
de uma narrativa. E, atualmente, a narrativa autônoma em todos os aspectos, capaz de ética, moral e política: qual é nosso futuro
dominante é a da eficiência. estabelecer seus próprios objetivos e meios, com a IA, que narrativa vamos registrar?

46 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Será que vale a pena aceitar tudo
que há nas capacidades desses
algoritmos? Qualquer coisa, a
qualquer preço, em nome da
eficiência e da rentabilidade?
A solução ciborgue
Um primeiro cenário é a extensão natural
da narrativa atual. Nesse conto de eficiência,
crescimento e liberalismo, os seres humanos
não têm escolha senão se desenvolverem
– não para competir, mas para cooperar
com a máquina. Uma vez que o surgimento
Uma nova falando de outra narrativa, que usará a IA,
mas para outros fins, com outras restrições
da IA suscita a questão do trabalho e das narrativa humana e regras de uso. Estamos falando de uma
habilidades humanas versus habilidades estratégia que privilegia o que nos faz
digitais. Em um modelo de rentabilidade, é Essas questões são ainda mais importantes
humanos. E sem colocar o humano contra a
muito provável que a grande maioria dos porque, se a IA ainda está em meio a uma
máquina, devemos reconhecer que, nessa
trabalhos seja atribuída às máquinas. A fim metamorfose, este também é o caso da
estratégia, o que era para o ciborgue uma
de defender sua posição, os seres humanos humanidade. A solução ciborgue faz parte
fraqueza torna-se um ponto forte.
aumentarão o número de suas ajudas digitais da narrativa do liberalismo capitalista.
e adquirirão capacidades maiores do que Contudo, seria essa narrativa capaz de Não estamos falando de padronização, nem
aquelas conferidas a eles pela natureza. responder aos desafios que enfrentamos, estamos falando de lógica racional. Também
Graças à osmose entre o humano e o digital, mesmo quando o planeta e seus recursos não estamos falando de causalidade,
os seres humanos se tornarão mais eficientes, estão sendo exauridos? Não estaríamos previsão e processo, nem estamos falando de
pois irão entender, decidir e agir de maneira sendo obrigados a inventar uma nova um modelo estereotipado de eficiência. Não
mais rápida. Esses dons de hiperdespertar narrativa? Especialmente porque com essa poderemos deixar este novo cenário para
e hiperconsciência são consistentes com a ferramenta poderosa, a IA, certamente as máquinas. Seus algoritmos dominantes
narrativa de eficiência da atualidade. teríamos os meios para implementá-la. não têm fé nem convicção; não têm espírito
anarquista ou transgressivo, e nenhum forte
Os ciborgues – muito leves, muito ágeis e A IA é uma ferramenta poderosa capaz
desejo de sobreviver e ver seus filhos mais
muito semelhantes a camaleões – estarão de desenvolver com sucesso um modelo
felizes que eles mesmos! A colaboração com
prontos para cooperar de forma ativa e em existente, mas não está em seu DNA
a máquina pode ser benéfica, sem dúvidas,
um patamar de igualdade com a máquina, perturbar a ordem estabelecida. Além disso,
mas deve ser melhor supervisionada, melhor
desde que se aproximem dela. Eles serão nossos atuais esforços de transformação
controlada e melhor compreendida. Tudo
incrementados pelos recursos ilimitados digital também não inventam nada, nem
isso será possível se todos concordarem
da rede de inteligência digital, mas, ao alteram a narrativa de forma alguma. Nosso
sobre a narrativa a que deve servir. Vamos
mesmo tempo, sua cota de humanidade será bordão poderia então ser resumido assim:
pegar nossas canetas hoje!
reduzida. Assim como a IA, o ciborgue então vamos parar de inovar e começar a inventar!
se tornará um monstro de eficiência e ambos Porque é nos humanos que podemos
farão parte da mesma rede que conectará os confiar (mais uma vez) para inventar. E suas
seres humanos e as máquinas sem distinção. convicções e motivação são fontes múltiplas
Essa osmose com a inteligência artificial que alimentam esforços para resistir ao
possui muitos benefícios, principalmente a modelo atual. Inventar é falar de uma fé, um
desejo, uma intenção fixada ao corpo, uma Sandrine Cathelat (França) é sócia e
garantia funcional e a eficiência operacional. diretora de pesquisa do Observatório
Contudo, suscita questões importantes. O que certeza. Significa falar sobre o significado
antes de falar em conquista tecnológica ou Netexplo, e Mathilde Hervieu (França) é
acontecerá se a energia “for cortada”? Quem gerente de projeto editorial. Estabelecido
terá acesso à nuvem? Teremos de concordar objetivo financeiro. A inventividade muitas
vezes se origina de um espírito singular, em 2007 por Martine Bidegain e Thierry
em ser transparentes para ter acesso a ela? Happe, sob o patrocínio do Senado francês
Teremos de pagar por isso? Haverá uma única único – na mente de uma mulher ou de um
homem, de sua história, suas feridas ou seus e do Ministério para o Setor Digital da
nuvem para todos? Ou será uma variedade (Ministério de Economia e Finanças), da
de nuvens, mas de qualidade variável? O pontos fortes, desejos ou necessidades. Não
nos esqueçamos de que os grandes gênios França, o Observatório Netexplo estuda o
ciborgue será sinônimo de igualdade, ou impacto mundial de novos usos digitais na
significará uma divisão socioeconômica? da humanidade tiraram de suas fraquezas
mais profundas (as quais buscavam superar, sociedade e nos negócios.
Uma coisa é certa: uma vez que os ciborgues
tenham se conectado totalmente, eles principalmente) a obstinação necessária
não possuirão mais nada, especialmente para seu sucesso.
suas habilidades, pois se tornarão usuários, Estamos falando aqui de um cenário que
meros guardiões temporários de serviços não tem mais nada a ver com ciborgues, e
disponíveis. O que acontecerá então se seus onde também não há menção de rejeitar a
direitos forem eliminados? tecnologia como uma ferramenta. Estamos

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 47


Inovações em IA para enfrentar os

desafios sociais
Entrevistas por Shiraz Sidhva

A inteligência artificial (IA) está sendo aproveitada para enfrentar dois


dos mais desafiadores problemas da atualidade – a flagrante proliferação
de notícias falsas e a crescente invasão da privacidade individual.
Dhruv Ghulati: A Factmata, que usa IA para combater a desinformação, e a D-ID, que
Combatendo as protege identidades contra sistemas de reconhecimento facial com o
notícias falsas uso de IA, foram dois dos dez vencedores dos Prêmios Netexplo 2019,
O que fez o sr. criar uma startup de IA para apresentados na Sede da UNESCO em abril.
combater notícias falsas? Não é uma tarefa
difícil, como lutar contra a corrupção? Dhruy Ghulati, CEO e cofundador da Factmata, empresa com sede em
É sim. Se quisermos mudar o mundo, Londres, e Gil Perry, cofundador e CEO da D-ID, com sedes em Tel Aviv
em vez de simplesmente estabelecer (Israel) e em Palo Alto (Estados Unidos), conversaram com O Correio da
uma empresa, precisamos pensar em
UNESCO sobre suas inovações.
desenvolver tecnologias com esse
objetivo e, se isso funcionar, o impacto
potencial em todas as pessoas, em todos
os lugares, seria astronômico. Ao combinar Qual é a diferença entre a Factmata e os processados em vários hardwares são
a IA e a comunidade humana, a Factmata outros softwares disponíveis – do tipo que o capazes de esquadrinhar milhões de itens de
desenvolve algoritmos explicáveis para Facebook usa, por exemplo? conteúdo por segundo para sinalizá-los como
solucionar o problema da desinformação notícias falsas, mas não é fácil aumentar a
Nossa tecnologia tem o potencial de ser mais
online e construir um ecossistema de mídia quantidade de pessoas que filtram volumes
precisa, devido à forma proprietária com que
de melhor qualidade. tão grandes de conteúdo antes que elas se
usamos as comunidades de especialistas para
cansem. Além disso, apenas alguns seres
O sistema de classificação da Factmata ajudar a criar nosso software e nos fornece
humanos são mais eficazes do que outros
é capaz de digerir cada fragmento de dados de treinamento exclusivos – o que tem
seres humanos. Portanto, a chave é combinar
conteúdo online, lê-lo de forma inteligente e uma manutenção muito difícil e demorada
as pessoas certas com a IA certa.
classificá-lo em nove marcadores – incluindo –, em vez de usar as séries de dados abertos
discurso de ódio, viés político e sexismo que existem por aí, às quais todos têm acesso. Os hackers e os propagadores de notícias
– para proporcionar aos usuários uma Nós pensamos uma maneira de obter esses falsas podem enganar a IA?
compreensão profunda sobre a qualidade, dados a um custo mais baixo e com mais
Sim, eles tentarão fazer isso. Contudo, o
a segurança e a credibilidade de qualquer eficiência do que outros, fazendo com que os
que é positivo para nós é que, a cada vez
fragmento de conteúdo na internet. Ele usuários sintam que fazem parte do processo.
que a enganam, isso se torna mais e mais
constrói essas classificações de uma maneira Quem são seus principais usuários? difícil. Em breve, o número de impostores
justa e explicável, implantando uma rede bons o suficiente para vencer o sistema será
proprietária de especialistas que são mais Nossos principais usuários são membros
superado pela qualidade do próprio sistema.
bem preparados para avaliar qualquer do público que gostam de desafiar seu
É assim que lidamos com o spam de e-mail
conteúdo em questão. pensamento crítico por meio de nossas
e, na verdade, com a maioria dos spams,
ferramentas; em seguida, marcas e governos
Nosso objetivo é desenvolver um novo fraudes e segurança cibernética.
que tentam garantir que são capazes
sistema de classificação universal para de monitorar as pessoas que espalham O essencial para nós é conseguir sobreviver
a qualidade do conteúdo online, a ser rumores realmente prejudiciais para a tempo suficiente com financiamento
implantado em intercâmbios publicitários saúde da sociedade, ou que disseminam suficiente para desenvolver a nossa
[um mercado digital que facilita a compra desinformação que pode inviabilizar o tecnologia principal, tendo clientes que
e a venda de inventário de publicidade lançamento de um produto ou campanha. possam nos manter, para poder olhar para o
midiática a partir de várias redes publicitárias, futuro. Eu acredito que, com trabalho árduo e
geralmente por meio de leilões em tempo No que se refere à eliminação de notícias
tempo suficientes, combateremos as notícias
real], navegadores, mecanismos de busca falsas, o sr. diria que a IA é mais eficaz do
falsas enquanto a maioria pode desistir.
e redes sociais, entre outros. Isso garantirá que um ser humano?
que o jornalismo de boa qualidade seja mais Não. Os seres humanos são muito melhores.
bem classificado e mais monetizado, e que o Contudo, os seres humanos não conseguem
conteúdo de baixa credibilidade, não seguro, trabalhar em escala. Algoritmos sendo
seja desmonetizado.

48 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Obra criada em Copenhagen, na
Dinamarca, parte da série Controlled Lives
(Vidas controladas), do artista italiano
Fabian Albertini.
© Fabian Albertini

reconhecimento facial que está se tornando


mais preciso e de fácil obtenção – cria uma
situação em que qualquer um pode nos
identificar, rastrear e roubar nossa identidade.
A tecnologia de reconhecimento facial pode
ser usada para classificar o comportamento
dos cidadãos ou para dizer quem a seu
redor tem uma dívida com o banco. Em
alguns países, pode-se tirar uma foto de
uma pessoa aleatoriamente na rua e usar
o reconhecimento fácil para descobrir
todos os detalhes sobre ela. Sabe-se que
esses aplicativos são usados para perseguir
minorias e manifestantes. Nos Estados Unidos
e em outros lugares, o reconhecimento facial
é usado para saber mais sobre a idade, o
gênero e a etnia do cliente, nossa satisfação
quando fazemos compras, e muito mais.
Em suma, creio que todos devemos nos
preocupar com a nossa privacidade.
Felizmente, a D-ID está aqui para ajudar.
O algoritmo proprietário da D-ID combina o
mais avançado processamento de imagem
e técnicas de aprendizagem profunda [que
permitem que uma máquina reconheça,
por conta própria, conceitos complexos
como rostos, corpos etc.] para ressintetizar
qualquer foto em uma versão protegida.
Isso é extremamente difícil de se fazer, e
nós acreditamos que, atualmente, somos os
Gil Perry: Tornando Nossos rostos são agora nossas senhas, porém,
diferentemente das senhas, não podemos
únicos capazes de fornecer tal tecnologia.

rostos ilegíveis alterá-los e, por isso, eles precisam ser


O sr. prevê enfrentar algum problema com
agências governamentais, que usam muita
protegidos. Desenvolvemos uma tecnologia tecnologia de reconhecimento facial?
O sr. foi um veterano da unidade de elite de IA que torna as imagens irreconhecíveis
8200 do Órgão de Inteligência das Forças para algoritmos de reconhecimento facial, Não. Na verdade, os governos e os
de Defesa de Israel. O que o motivou a ao mesmo tempo em que não há diferenças legisladores locais estão pressionando por
criar um software que protege identidades perceptíveis para o olho humano. Isso permite mais regulamentação da privacidade, o que
contra sistemas de reconhecimento facial? que as pessoas armazenem, compartilhem e é coerente com a nossa visão.
utilizem imagens e vídeos sem que precisem Quem são os seus principais clientes?
Alguns de nós tivemos essa ideia durante o
se preocupar com que seus rostos sejam São indivíduos que querem proteger
serviço militar. Naquela época, estávamos
captados, identificados e utilizados de forma suas identidades?
muito conscientes dos riscos que as
indevida por ferramentas automatizadas de
tecnologias de reconhecimento facial Atualmente, nós prestamos serviços
reconhecimento facial.
podem representar para a privacidade principalmente para empresas. Nossos clientes
e a proteção da identidade. Não éramos Quão importante é se proteger do usam a nossa tecnologia para proteger as
autorizados a publicar nossas próprias reconhecimento facial, e quais são os imagens de sua administração e de seus
fotografias em redes sociais por essa perigos associados ao não uso de um funcionários, bem como para proteger os
razão. Após deixar o exército, decidi me software para mascarar fotos? bancos de dados de imagem dos seus clientes.
aprofundar no assunto. Estudei visão
Em primeiro lugar, o reconhecimento facial Também queremos atuar em escolas, para
computacional e processamento de
está em todos lugares, e o mercado está ajudar professores e estudantes a publicar e
imagens, e trabalhei na área por muitos
em expansão. Em segundo lugar, estamos compartilhar imagens que têm a privacidade
anos. Então, há cerca de dois anos e meio,
cercados por câmeras. Existem circuitos protegida. À medida que avançamos com
fiz uma parceria com Sella Blondheim
fechados de TV em por todos os lados – nas nossa tecnologia, queremos poder oferecer
e Eliran Kota, os cofundadores da D-ID.
ruas, nas lojas, nos trens. E depois, todos a D-ID a todos com soluções no dispositivo
Juntos, começamos a elaborar um dos mais
nós temos smartphones e os usamos para para smartphones e câmeras, para que todas
complicados e inovadores algoritmos para
fotografar e gravar vídeos. Por fim, nossas fotos as fotos que tiramos sejam desidentificadas
proteger fotografias contra tecnologias de
estão por toda parte, nas redes sociais, nos em sua criação.
reconhecimento facial. Esse algoritmo é
servidores de nossas empresas, nos bancos de
agora o alicerce da D-ID.
dados governamentais etc. Essa combinação
– câmeras de vigilância por toda parte e

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 49


Nosso convidado

O espírito de competição
e compreensão estão no
centro do ecletismo da
arquitetura de Baku.
© Will Van Overbeek
Baku:

cidade multicultural
Fouad Akhoundov,
entrevistado por Mila Ibrahimova

Com vários milênios de idade,


a cidade fortificada de Baku, a
capital do Azerbaijão, mantém

© Thomas Marsden
vestígios da presença dos povos
zoroastriano, sassânida, árabe,
persa, shirvani, otomano e russo.
A cidade moderna, nascida do
primeiro boom do petróleo no Fuad Akhundov em Baku.
final do século XIX e início do
século XX, possui um patrimônio
Quando Baku se tornou uma cidade moderna? milionários locais, que investiram em
cultural igualmente eclético. projetos de arquitetos europeus. Isso
Múltiplas correntes étnicas Baku começou a se tornar uma cidade
transformou a cidade em uma verdadeira
moderna em 1872, quando o poder czarista
sempre cruzaram a cidade russo estabeleceu o que hoje é chamado
miscelânea de culturas.
devido à sua baía e pelo fato de de uma concessão para o desenvolvimento Os magnatas do petróleo de Baku estavam
rotas de caravanas passarem de campos petrolíferos. A partir daquele ansiosos para se aproximar da Europa, e este
momento, conhecido historicamente como desejo também se refletiu na arquitetura.
próximo a ela. O resultado é
o primeiro boom do petróleo, a cidade Eles convidaram arquitetos de renome
uma extraordinária diversidade vivenciou um rápido desenvolvimento que para a cidade, que eram em sua maioria
harmoniosa, refletida tanto em resultou no crescimento extraordinário de de descendência polonesa, entre os quais
sua arquitetura quanto em seu sua população, aumentando dez vezes mais estavam Kazimir Skurevich, Konstantin
nos primeiros 25 anos e, então, dobrando a Borisoglebski, Eugene Skibinski, Jozef
espírito cosmopolita. cada sete ou oito anos. Goslawski e Jozef Ploszko.
Enquanto em 1872, Baku tinha apenas Essa nova cidade tornou-se tão suntuosa
Este artigo é publicado para marcar a 14,5 mil habitantes, no início da Primeira que viria a ser chamada de “Paris do Cáucaso”.
ocasião da 43ª sessão do Comitê do Guerra Mundial, a cidade tinha uma
Voltar-se para o Ocidente
Patrimônio Mundial, realizada em Baku, população de 215 mil. Certamente,
significou afastar-se do passado?
no Azerbaijão, de 30 de junho a 10 de nenhuma cidade pode crescer em
julho de 2019. tal velocidade de forma natural. Esse De modo algum os magnatas locais do
crescimento demográfico se deve, petróleo estavam tentando apagar seu
sobretudo, à imigração, que foi atraída pela passado! Simplesmente, foram receptivos
riqueza do país. Não se deve esquecer que, às influências culturais externas, tal como o
no início do século XX, Baku fornecia mais espírito europeu que chegou a eles por meio
de 50% do petróleo cru de todo o mundo. da Rússia. Contudo, isso não significou que
eles perderam suas particularidades culturais.
Foi quando uma nova cidade começou
a tomar forma ao redor da antiga cidade Assim, por exemplo, a grande maioria dos
fortificada, que tinha vários milênios (sítio afrescos que tive oportunidade de ver em
do Patrimônio Mundial desde 2000). Foi minha vida, encontrei em antigas casas
planejada na época da administração azeri – embora, tradicionalmente, fossem
imperial russa e construída graças aos proibidos pela religião islâmica.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 51


© Cortesia do Arquivo Nacional de Documentos Fotográficos e Cinematográficos,
República do Azerbaijão e arquivo pessoal de Fuad Akhundov
O palácio de Dmitri Mitrofanov, em Baku,
evoca a aparência imponente de seu dono.

de Mukhtarov, a mesma abóbada de sua população, desde o primeiro boom do


Dadachev, e a mesma janela de, digamos, petróleo até hoje.
Meitrofanov, e algo mais de minha própria
Qual era a composição étnica
Uma interpenetração extraordinária de inspiração!”. Dessa competição entre
da cidade naquela época?
culturas ocorreu em Baku, em todos os milionários, que queriam impressionar seus
aspectos, incluindo arquitetônico e artístico. competidores, surgiu o estilo incomum No início da Primeira Guerra Mundial, a maioria
Por exemplo, Murtuza Mukhtarov, um famoso da arquitetura de Baku do final do século dos grupos étnicos representava cerca de um
especialista em perfuração de petróleo, XIX e início do século XX – impossível de terço da população: 36% russos e 34% azeris,
construiu mesquitas em seu subúrbio natal classificá-la em qualquer um dos gêneros da qual cerca de um terço veio do Irã. Havia
de Amirajanin, em Baku, e em Vladikavkaz conhecidos da arquitetura ocidental. também uma comunidade armênia rica e
(Rússia), a cidade natal de sua esposa. Mais próspera em Baku, que representava 19% da
tarde, ele construiu um fascinante palácio Mas quem estava realmente
população. Cerca de 4,5% deles eram judeus,
gótico francês para ela, que ainda enfeita o fazendo o trabalho?
seguidos por alemães, poloneses, georgianos,
centro da cidade de Baku. Os artesãos locais, é claro. Os arquitetos gregos, tártaros etc.
Um detalhe merece atenção: a forma conseguiram aproveitar ao máximo os
A comunidade judaica desfrutava de um
imponente desse palácio lembra a pedidos ambiciosos dos milionários azeri,
ambiente tolerante em Baku e não temia a
imagem de seu dono! Bem como o palácio detentores de recursos ilimitados, para
perseguição. Os judeus forneciam à cidade
neorrenascentista construído por Dmitri aumentar o valor da pedra – o único
cerca de 40% dos médicos e mais de 30%
Mitrofanov que reflete a aparência vigorosa material de construção disponível nessa
dos advogados. As famílias Rothschild,
desse outro novo rico, que veio da província região desértica.
Landau, Cohen e Itskovich estavam entre
de Perm para fazer sua fortuna na indústria Os pedreiros de Baku desfrutavam de uma eles. Juntamente aos poloneses e alemães,
petrolífera. O mesmo se aplica ao palácio de ótima reputação naquela época. Dizia-se eles constituíam a classe média-alta de Baku.
Isa Bey Hadjinski, construído em seis níveis e que nasciam com cinzéis em suas mãos!
que mistura uma variedade de estilos: desde Os azeris, por sua vez, eram o núcleo da
Contudo, eles não tinham conhecimento
o neobarroco ao neogótico e ao moderno. classe média. Eram proprietários de 81%
da arte figurativa que, segundo algumas
dos imóveis durante o boom do petróleo
Essas similaridades são tão impressionantes interpretações, é proibida pelo islã. Um
de Baku. O bilionário Moussa Naghiyev,
que inspiraram este verso do poeta russo, escultor italiano, Antonio Franzi, foi trazido
por exemplo, que começou como um
Alexander Gorodinsky: “Eu estou lá, sem para ensinar-lhes essa especialidade.
trabalhador do campo e acabou se tornando
saber para onde ir, / de pé, no vento Embora os arquitetos tenham usado temas o mais rico barão do petróleo azeri,
matinal de Baku, / em meio a suas casas tão
de diversas culturas, a abordagem deles também era um dos magnatas imobiliários
semelhantes a seus mestres, / do lado de
era de nunca “copiar e colar” uma obra. locais. Muitos deles enriqueceram muito
fora, assim como de dentro”.
Percebeu-se isso por meio de tradições rapidamente, sem ter tido tempo de obter
Até certo ponto, essa individualidade locais profundamente enraizadas e educação formal. Muitas vezes, essa primeira
desafiadora foi o resultado do desejo da executadas em arenito local fino de maneira geração de magnatas industriais mal
elite de novos ricos de Baku de superar uns impecável. As diversas influências coexistem sabia ler ou escrever. Um desses barões do
aos outros. Os pedidos que faziam eram lado a lado, por assim dizer. Isso dá um petróleo analfabetos foi Hadji Zeynalabdin
mais ou menos assim: “Eu quero a mesma prestígio especial à arquitetura de Baku, Taghuyev, que, no entanto, fundou a
entrada de Taguyev, a mesma varanda que reflete a dimensão multicultural de primeira escola secular para as meninas

52 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


muçulmanas em 1901 e o primeiro teatro corações da população local ao voltar ao que se deve, por um lado, à tradições locais
europeu de Baku. seu passado arquitetônico. Essa tendência profundamente enraizadas e, por outro, ao
levou ao construtivismo dos anos de espírito de competição e de abertura. E é
Como essas comunidades se relacionavam
1930, que introduziu edifícios modernos essa abertura de espírito que explica, por
umas com as outras?
com formas cúbicas e telhados planos exemplo, a estranha semelhança entre os
Os azeris, em geral, não tinham uma visão na paisagem de Baku. Muitos acharam extravagantes palácios góticos venezianos
negativa dos estrangeiros que vieram que essa arquitetura era uma adição Ca’ d’Oro e o suntuoso palácio Ismailiyya,
se estabelecer na cidade. Isso tornou harmoniosa à arquitetura tradicional, da que Moussa Naghiyev doou à Sociedade
possível que diferentes comunidades qual o telhado plano era uma das principais de Caridade Muçulmana de Baku, para
vivessem juntas em paz e, até mesmo, em características. Assim, Baku facilmente homenagear a memória de seu filho Ismail.
solidariedade. Os milionários muçulmanos assimilou essa novidade, como havia feito
A “cidade dos ventos” bem merece seu
locais frequentemente faziam doações com tantas outras em décadas anteriores.
apelido no sentido literal, mas também no
para os santuários de outras religiões. Por O estilo do Império Stalinista dos anos de sentido figurado da expressão – varrida
exemplo, para a consagração da Catedral de 1940 e 1950 foi fortemente impactado como foi por esses ventos que vieram de
Alexander Nevsky em Baku – a maior igreja pela infinidade de arquitetos formados na outro lugar, mas sem nunca perder a sua
ortodoxa do Cáucaso do Sul (demolida pelos escola soviética, como Mikhail Useinov, identidade única e cosmopolita.
comunistas na década de 1930) – Hadji Sadik Dadachev, Konstantin Sentshikhin,
Taguyev doou 10 mil rublos. Elbay Gasimzade e outros. Eles conseguiram
O processo de integração do Azerbaijão à adornar esse estilo muito pesado e
União Soviética começou no início dos anos de pomposo com detalhes elaborados
1920. Quais mudanças isso trouxe para Baku? caracterizando o legado oriental, e assim
tornaram a arquitetura da era stalinista Um grande amante de Baku, Fuad
Em termos arquitetônicos, a influência muito específica da paisagem de Baku, Akhundov é conhecido por seus passeios
soviética foi sentida pela primeira vez por interpretando-a através de um prisma local. incomuns pela cidade, durante os quais
meio de um conjunto de marcos com forte ele apresenta cada local ao justapor suas
Se o sr. tivesse que resumir a principal
influência oriental na década de 1920. fotografias de ontem e de hoje, usando as
característica do patrimônio arquitetônico
A estação de trem Sabunchi, em Baku, é centenas de fotos de arquivo que carrega
de Baku em uma palavra, o que diria?
uma prova vívida desse estilo Romântico em seu imenso portfólio. Akhundov é autor
Nacional, transmitindo o desejo da nova Ecletismo! E acrescentaria imediatamente: de artigos, filmes e programas de televisão,
administração soviética de conquistar os um ecletismo muito específico do local, incluindo Os segredos de Baku.

Isa Bey Hadjinsky e seu palácio em Baku.

© Cortesia do Arquivo Nacional de Documentos Fotográficos e Cinematográficos,


República do Azerbaijão e arquivo pessoal de Fuad Akhundov

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 | 53


Assuntos atuais

Centro da Cidade de Johanesburgo,


2013, parte de uma série do fotógrafo
sul-africano Graeme Williams, que
destaca a polarização social do país.
© Graeme Williams / Agence VU

54 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


A África do Sul de Mandela:

sonho ou realidade?
Jody Kollapen, entrevistado por Edwin Naidu, jornalista sul-africano

Vinte e cinco anos depois de alcançar a democracia, a África do Sul deu passos
gigantescos rumo à formação de uma nação unida. No entanto, superar o
racismo e concretizar a visão de Nelson Mandela de uma nação que pertença
a todos que nela vivem continuam a ser ideais maravilhosos, mas que ainda
requerem muito trabalho, segundo o juiz Jody Kollapen. Tanto árbitro
quanto vítima de casos de racismo – foi-lhe recusado um corte de cabelo
recentemente, em outubro de 2003! –, esse defensor dos direitos humanos
afirma que há boa vontade suficiente para construir a visão de Mandela.

Vinte e cinco anos após a liberdade a lei para lidar com os casos extremos –
Nelson Mandela deixou sua marca duramente conquistada pela África do Sul, o espera-se que ela seja usada com moderação.
no século XX. Mais que isso, deu país progrediu na luta contra o racismo?
significado a ele. Humano, mas não Os analistas se referem ao racismo como um
demasiado humano, e obsessivo em Acredito que a resposta para isso deva ser problema não resolvido, herdado do passado,
seu respeito pela lei e pela justiça, sim, simplesmente porque as divisões raciais que a nação não conseguiu abordar de forma
Mandela conseguiu ser um indivíduo que caracterizaram a África do Sul durante adequada. Qual é sua opinião a respeito?
único, mas também um símbolo de o apartheid eram muito fortes, as suspeitas
Concordo que a Comissão Verdade e
em razão de raça eram profundas, e os
um povo que se reconheceu nele antes Reconciliação (Truth and Reconciliation
casos de violência gratuita contra os negros
mesmo de o terem escolhido por meios Commission – TRC) nunca abordou o
havia quase atingido um nível de aceitação
democráticos, nas urnas. Na África e em problema do racismo. Lidou com os crimes
social. Tudo mudou dramaticamente desde
outros lugares, na memória daqueles do apartheid, mas não o apartheid como um
então. No entanto, isso não significa que não
que sofrem, aqueles cujas vozes ainda crime. A ampla maioria dos sul-africanos que
existam casos sérios de racismo. A diferença
carregam o eco de uma ferida que nunca foram vítimas e autores nunca compareceu
é que, quando ocorrem, um grande número
se curou, as vozes daqueles jogados perante a TRC para falar sobre o racismo
de sul-africanos, negros e brancos, se
em sepulturas coletivas de massacres durante o apartheid. Infelizmente, a TRC pode
sentem indignados. Além disso, existe um
comuns ou sufocados em um saco ter se deixado levar pela noção romântica
marco legal para lidar com o racismo.
de juta atirado de um trem expresso. de reconciliação, sem abordar o apartheid,
Mandela exemplifica uma determinação As medidas legislativas propostas na a discriminação – e o fato de que não pode
que nada pode destruir, uma paixão que nova lei para criminalizar atos de haver reconciliação sem transformação social
nada pode desencorajar. racismo são necessárias para promover e econômica. Foi uma oportunidade perdida.
uma África do Sul unida? No entanto, eu não acredito que isso possa
A prisão, a humilhação, o assédio ser resolvido por meios legislativos.
mesquinho e as tentativas de minar Idealmente, nós gostaríamos de combater o
sua moral não conseguiram abalar racismo por meio de iniciativas voluntárias, O que deve ser feito para garantir que
sua convicção de que a liberdade não apelando ao melhor senso das pessoas. um sentido de unidade prevaleça na
poderia ser alcançada sem luta. E ele Historicamente, a maioria dos sul-africanos África do Sul?
tinha em mente um tipo particular de concordaria que, na ausência de sanções
Enquanto a África do Sul continuar sendo
liberdade, não aquela enganosamente criminais, as novas leis poderiam ser
a sociedade mais desigual do mundo, e
embalada para parecer atraente, mas importantes, ao autorizar que se aja
enquanto remontarmos isso como tendo
que na verdade é cheia de ilusões. fortemente contra aqueles que acham que
raízes no colonialismo e no apartheid, nós
A seus olhos, a liberdade é um valor podem se livrar com o pagamento de uma
não vamos alcançar esse sentido de unidade.
inegociável, inseparável da dignidade multa, uma vez que nenhum processo atual
Mesmo que não sejamos capazes de criar a
e repleto de responsabilidade. prevê uma ação criminal.
sociedade igualitária que alguns desejam,
Tahar Ben Jelloun, Com base em um marco legal e certamente podemos alcançar uma sociedade
O Correio da UNESCO, constitucional no qual estamos dispostos mais igualitária. Porém, para que isso ocorra,
novembro de 1995. a mandar alguém para a prisão por roubar precisamos ser maduros nos debates sobre
um pedaço de pão, por que, considerando questões como recursos, ação afirmativa,
a hierarquia de seriedade dos atos, não acesso à terra, e não podemos ser defensivos.
mandamos alguém para a prisão por Se não transformarmos a sociedade de uma
comportamento racista? Não se pode ser maneira significativa, esse sentido de unidade
racista e pagar para se livrar. A ideia é usar pode nos escapar.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 55


Atteridgeville, uma obra integrante de The
Stone, the Gun and the Plate (A pedra, a
arma e o prato), o primeiro de uma série de
projetos colaborativos do fotógrafo sul-
africano Gideon Mendel – que tirou fotos de Espero que alcancemos um nível de Segundo a Carta da Liberdade, a África do
protestos em seu país em 1985-1986 – e do maturidade para lidar com isso. O dano Sul pertence a todos que nela vivem. Mas
artista argentino Marcelo Brodsky, que hoje de longo prazo causado pelo uso da raça esse continua a ser um ideal maravilhoso,
as está atualizando com cores e palavras como uma ferramenta de campanha pode e nós permanecemos longe de alcançá-lo.
para narrar a história e transmitir seu não ser quantificável, mas serve para dividir Sim, em alguns aspectos, tivemos
significado às novas gerações. e contradiz o argumento da nação unida progressos. Certamente, somos uma
© Marcelo Brodsky e Gideon Mendel / ARTCO que buscamos. sociedade melhor atualmente, devemos
nos consolar com isso, não somos uma
Em seu discurso de posse, em 10 de maio
sociedade em guerra uns com os outros,
de 1994, Nelson Mandela clamou pela
e ainda há boa vontade suficiente para
reconciliação e pelo fim do racismo. Tivemos
Nas eleições de 8 de maio de 2019, alguns construir a visão que Mandela nos deixou.
algum progresso quanto a alcançar a visão
políticos usaram a raça como ferramenta
dele para a África do Sul?
eleitoral. Qual é a opinião do sr. sobre a
conduta deles? Realizamos um progresso considerável.
Atos simples de racismo ainda ocorrem,
Infelizmente, a raça continua a definir
mas não são a regra e atraem a condenação
nossa ordem social e econômica e, assim Juiz em exercício do Tribunal
universal, o que é muito bom. No entanto, eu
sendo, também define a ordem política. Constitucional da África do Sul desde
vejo um problema real no fato de não haver
É fácil usar a noção de raça para provocar julho de 2017, Jody Kollapen atua como
campanhas contra o racismo nas escolas,
ansiedade. Isso não é exclusivo da África do juiz do Supremo Tribunal da África do Sul,
públicas ou privadas. Nós temos programas
Sul – já vimos isso na Europa e também nos em Pretória, desde 2011. Ele é também
para lidar com a violência baseada em gênero,
Estados Unidos. No entanto, considerando o presidente da Comissão de Reforma
a xenofobia etc., mas não tenho conhecimento
a nossa história, é fácil evocar o sentimento Legislativa da África do Sul. De 2001 a
de quaisquer campanhas contra o racismo –
de insegurança entre as pessoas. Quando 2009, antes de sua nomeação como juiz,
certamente precisamos delas.
as pessoas têm esses sentimentos, eu não Kollapen atuou como chefe da Comissão
tenho certeza de que são capazes de fazer de Direitos Humanos da África do Sul.
as escolhas eleitorais corretas.

56 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Dmitry Mendeleev:
ensinamentos de um profeta

Natalia Tarasova e Dmitry Mustafin

O dia 1º de março de 1869 é a


data de uma descoberta que
mudou o curso da ciência no
mundo. Naquele dia, Dmitry
Mendeleev finalizou seu trabalho
sobre a tabela periódica dos
elementos, que desempenharia
um papel fundamental no futuro
da química, e também na física,
na biologia, na astronomia e
na geoquímica. Ainda mais,
ele revolucionou as ideias do
que atualmente é chamado de
desenvolvimento sustentável.

As Nações Unidas proclamaram 2019


como o Ano Internacional da Tabela
© Yuri Konev / The Museum of Nature and Man.

Periódica dos Elementos Químicos, para


marcar o 150° aniversário da publicação
do primeiro modelo da tabela periódica
na Revista da Sociedade de Química da
Rússia pelo ilustre cientista russo Dmitry
Mendeleev, considerado um dos pais da
química moderna. Naquela época, quando
o conhecimento da estrutura do átomo
era altamente impreciso, a lei periódica
somente poderia ser formulada por um
homem dotado de um poder preditivo
extraordinário, a intuição de um gênio. Um retrato de Dmitri Mendeleev, por
Yuri Konev, um pintor russo da segunda
No entanto, na bibliografia de Mendeleev, metade do século XX.
menos de um décimo de sua pesquisa
é dedicado à química. A imensa maioria
do seu trabalho diz respeito a outros
campos científicos, incluindo aeronáutica,
meteorologia, exploração do Ártico,
concepção do quebra-gelo, educação existissem na época, o cientista percebeu a Mendeleev criticou ferozmente o que hoje
popular, a denúncia do espiritualismo, necessidade de evitar a exploração excessiva chamamos de oligarquia e corrupção. Ele
competências jurídicas e economia – para dos recursos naturais – para informar as acreditava que qualquer possibilidade de
citar algumas das questões pelas quais essa pessoas sobre a exaustão dos minerais e um monopólio dos recursos naturais deveria
mente enciclopédica se interessava. para reivindicar o consumo parcimonioso do ser eliminada. Contudo, essas advertências
petróleo, da água e do carvão. Mendeleev não foram ouvidas na época, nem no
Grande parte de sua pesquisa se dedicou enfatizou a necessidade de se dar atenção século XX, quando a Rússia privatizou seus
ao que atualmente denominamos à gaseificação do carvão e à mudança depósitos de petróleo e de mineração.
desenvolvimento sustentável, a gestão nos métodos de extração e transporte do No século XIX, a poderosa oligarquia do
racional dos recursos naturais e ecologia. petróleo. Ele defendeu o uso respeitoso do petróleo e do carvão travou uma implacável
Embora, obviamente, esses campos de solo, a fim de melhorar sua fertilidade. Ele e vitoriosa batalha contra Mendeleev, para
conhecimento e disciplinas acadêmicas não refletiu sobre a modernização da Rússia. provar que ele não era um grande cientista.

O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019 57


Até mesmo os membros da Academia
de Ciências de São Petersburgo, quando
tiveram de eleger um novo colaborador
Um pouco de história
para a instituição, acabaram por escolher
Trechos de “That chart on the laboratory wall” (Aquela tabela na parede do laboratório,
Fedor Beilstein – de quem apenas alguns
em tradução livre), um artigo publicado n’O Correio da UNESCO em junho de 1971.
especialistas se lembram atualmente – em
detrimento de Mendeleev. Para se justificar,
eles mencionaram a modesta quantidade A concepção da lei periódica marcou Mesmo quando o químico inglês John
de pesquisas realizadas por Mendeleev no a passagem do estudo da química dos Newlands, ao apresentar um artigo sobre
campo da química. métodos de tentativa-e-erro quase sua “lei das oitavas” diante da prestigiosa
Ninguém é um profeta em sua própria medievais para uma ciência moderna capaz Sociedade de Química da Grã-Bretanha,
terra! Mendeleev não é exceção. de prever elementos ainda não vistos, perguntaram-lhe, ironicamente, se
Mesmo assim, suas profecias sobre a ouvidos, tocados ou cheirados pelo homem. não seria possível obter os mesmos
gestão dos recursos naturais – e sobre o A coerente disposição dos elementos por resultados se ordenasse os elementos
desenvolvimento sustentável em geral – Dmitri Mendeleev coroou os esforços dos em sua ordem alfabética!
são tão importantes quanto a lei periódica homens da ciência em muitos países para
e a tabela periódica dos elementos, que descobrir um sistema significativo nas
propriedades dessas substâncias básicas.
A contribuição
elevaram seu nome à categoria dos mais
famosos estudiosos russos. A ideia de Mendeleev deveria ser
de Mendeleev
O Ano Internacional de 2019 e o virtualmente um salto quântico da simples Sobre o que, então, se tratava a teoria de
reconhecimento mundial da tabela tabela, estabelecida no século XVIII pelo Mendeleev? Resumidamente, ele propôs
periódica dos elementos destacam químico francês Antoine Lavoisier, que havia organizar os elementos em linhas e colunas
mais uma vez a necessidade de se incluído, além de elementos físicos, o que (também chamadas de “períodos” e “grupos”)
desenvolver sistemas em nosso mundo ele chamava de “fluídos imponderáveis”, tal dentro de um retângulo, com seus pesos
caótico. Afinal, são os sistemas que como a luz ou a energia derivada do calor. atômicos crescendo em número da esquerda
nos permitem compreender a ideia de para a direita ao longo da mesma linha, e
Embora muito diferente da abordagem
regularidade e nos fornecem a capacidade uma linha seguindo a outra pela página.
rigorosamente lógica de Mendeleev,
preditiva para responder aos desafios do Lavoisier triunfou em seu esforço para As colunas foram determinadas por elementos
desenvolvimento sustentável. condicionar outros cientistas a rejeitar com propriedades análogas, do mesmo modo,
a teoria do flogisto. Este era o antigo por exemplo, em que o óxido foi constituído.
conceito químico da época da civilização O menor número de átomos de um elemento
grega que afirmava que o fogo em suas (R) combinado com o menor número de
várias formas era um componente físico oxigênio (O) apareceria na primeira coluna,
ou um material da natureza. aumentando em combinações de proporções
Copresidente do Comitê de Gestão em direção à sétima coluna.
A análise de Lavoisier foi aprimorada
Intersindical do Ano Internacional da Tabela em 1803 pelo químico britânico John Mendeleev sabia, desde o início, que havia
Periódica dos Elementos, a cientista russa Dalton e sua teoria atômica, que atribuiu desenvolvido um dispositivo científico
Natalia Tarasova é diretora do Instituto de um “peso” atômico particular a cada um para expor os elementos químicos em um
Química e Problemas de Desenvolvimento dos 23 elementos reconhecidos por sistema conveniente. Mais do que isso,
Sustentável na Universidade D. Mendeleev Lavoisier. Características como esta, e o ele percebeu que havia descoberto uma
de Tecnologia Química da Rússia. Ela é conceito de “peso equivalente” de outro lei objetiva, natural. No entanto, assim
uma das pioneiras da pesquisa sobre cientista britânico, William Wollaston, como dito popularmente que Newton
desenvolvimento sustentável na Rússia. abriram o caminho para outros químicos compreendeu a gravitação universal quando
Químico e professor na Universidade D. que, subsequentemente, puderam atingido na cabeça por uma maçã que caiu,
Mendeleev de Tecnologia Química da perceber uma ordem coesa entre todos os ou que Watt percebeu que uma chaleira em
Rússia, o russo Dmitry Mustafin é autor, elementos encontrados na natureza. ebulição poderia ser transformada em uma
apresentador, editor científico e especialista máquina a vapor, ainda havia aqueles que
Contudo, até a época de Mendeleev,
convidado em vários programas de pensavam que Mendeleev havia chegado à
mesmo as noções sobre o que constituía
televisão e filmes para o público em geral. lei periódica como resultado de um sonho.
um elemento eram vagas e sujeitas à
interpretação individual. Embora a verdade científica possa atingir
a mente de um homem de maneira súbita
Em 1850, outros 30 elementos haviam
como um relâmpago, o homem tende a
sido reconhecidos, elevando o total
ignorar que este mesmo cientista possa
de conhecidos para um pouco mais
ter passado anos de pesquisa árdua
de 60, e novas formas de classificar os
sobre seu tema. De fato, foi Pasteur que
elementos foram propostas, as quais
posteriormente comentou que “a sorte
foram todas passos na direção certa.
favorece apenas a mente preparada”. Se
Contudo, alguns homens de saber as
observarmos as atividades de Mendeleev
consideravam pouco melhores do que
antes de 1869, torna-se bastante claro que o
jogos mentais, e viam a correlação das
surgimento da tabela periódica não foi um
propriedades dos elementos agrupados
mero acidente.
em tríades, oitavas ou ao longo de uma
espiral telúrica como nada mais que uma Guenrij Teterin (Ucrânia) e Claire Terlon
casualidade – e, portanto, pouco melhor (França), especialistas em física e autores de
que uma analogia superficial. vários artigos científicos populares.

58 | O Correio da UNESCO • julho-setembro 2019


Edições UNESCO
www.unesco.org/publishing
publishing.promotion@unesco.org

Desequilíbrios entre oferta


e demanda de educação
ODS e Cidades
profissional técnica de
nível médio Mobilidade humana internacional
Guia prático para governos locais
da América Latina e Caribe

JORNALISMO,
FAKE NEWS &
DESINFORMAÇÃO
Manual para Educação e Treinamento em Jornalismo
Série UNESCO sobre Educação em Jornalismo
-1-

Desequilíbrios entre oferta Jornalismo, fake ODS e cidades:


e demanda de educação news & desinformação: mobilidade humana internacional;
profissional técnica de nível manual para educação e treinamento guia prático para governos locais da
América Latina e Caribe
médio no Brasil em jornalismo
Escrito por especialistas na luta contra a O presente Guia dirige-se aos governos das
O presente estudo tem como objetivo analisar
desinformação, este manual explora a própria cidades da América Latina e do Caribe como uma
a lacuna existente entre a formação profissional
natureza do jornalismo com módulos sobre: ferramenta para apoiar a criação e implementação
e o mundo do trabalho no Brasil, com foco no
razões pela qual a confiança é importante; de políticas públicas locais em matéria de
ensino médio. Além disso, pretende estabelecer pensamento crítico a respeito de como a mobilidade humana internacional a partir de uma
correspondências entre cursos e ocupações. tecnologia digital e as plataformas sociais são perspectiva dos direitos em consonância com
Nesse contexto, o presente estudo propõe condutoras da desordem informacional; combate Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável.
definir um conjunto de indicadores de demanda à desinformação e à informação incorreta por
Espera-se que enriqueça e promova o intercâmbio
a serem utilizados para parametrizar a oferta de meio da alfabetização midiática e informacional;
verificação de fatos (fact-checking 101); verificação de experiências e boas práticas em matéria de
educação profissional no Brasil.
de mídia social e combate ao abuso online. mobilidade humana internacional nas cidades da
Autor: Luiz Antonio Cruz Caruso América Latina e no Caribe.
Autores: Cherilyn Ireton e Julie Posetti
Brasília: UNESCO, 2019. 70 p. Título original: ODS y ciudades movilidad
ISBN: 978-85-7652-242-3 Título original: Journalism, fake news & humana internacional: guía práctica para
disinformation: handbook for journalism gobiernos locales de América Latina y el Caribe
education and training
Brasilia: UNESCO, 2019. 55 p.
Brasília: UNESCO, 2019. 129 p.
ISBN: 978-85-7652-243-0
ISBN: 978-85-7652-240-9

Um mundo, 2019. 4-6


O Correio dá as boas-vindas
muitas vozes à língua coreana!
유네스코 꾸리에 Com Reinventando Cidades, seu número de
abril-junho de 2019, O Correio da UNESCO foi
재창조되는 enriquecido com uma nova língua: o coreano.
도시들 Lançada oficialmente em 4 de março de 2019

rrier 알랭 마방쿠
nos escritórios da Comissão Nacional Coreana
para a UNESCO, em Seul, esta é uma publicação

Cou
호르헤 마푸드
2019
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conjunta com a Ramdom House Korea. O Correio


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havia sido anteriormente publicado em coreano,
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de agosto de 1978 a dezembro de 1996, quando
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a revista era mensal. Relançado em abril de


2017, O Correio agora é trimestral, publicado
apenas online e em formato PDF, e com um
número limitado de cópias impressas. O coreano
값 10,000원

édit
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Idée W. H. A
de tornou-se a décima língua em que O Correio é
The UNESCO Courier • 2019. 4-6 |1
agora publicado.

Descubra O Correio em árabe, chinês, coreano, espanhol, esperanto, francês, inglês,


português, russo e siciliano em nossa página de internet: https://pt.unesco.org/courier
Composição, de Victor Vasarely, o artista
húngaro-francês que é amplamente conhecido
como o pai do movimento Op Art (Arte Óptica).
Essa serigrafia integra a Coleção de Obras de Arte
da UNESCO desde 1985.
© Succession Vasarely / foto: UNESCO

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