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A partir da percepgo de limitages nas pesquisas disciplinares na area da gerontologia, comecam surgir novos conceitos teéricos, no caso, a competéncia no cotidiano, que pode integrar diferentes reas cientificas. A respeito disso, sugerimos a leitura individual e a discussio em grupo do seguinte texto: Wahl, Hans-Werner. 1999. “A competéncia no cotidiano: um constructo buscando uma identidade”. Estudos interdisciplinares sobre o envelhec!- ‘mento, v .2, p. 103-120. Estas perguntas, podem ajudar na discusséo: 1. Quais so as dificuldades nas pesquisas atuais e na aplicacéo dos resultados? f 2. 0 autor aponta seis tradicées de pesquisa que contribuem para este novo concelte da competéncia no cotidiano. Vocé conse gue descobrir quais so as disciplinas cientificas quer deram origem a essas tradigbes de pesquisa?” 3. No final do texto, o autor apresenta e discute dois modelos tedricos da competéncia do cotidiano, Tente aplicar esses mo delos a situagdes concretas de pessoas idosas. c) A pratica da intervencao gerontolégica como elemento integra- dor. A situagao de pessoas idosas nao é somente marcada por perdas. Porém, so geralmente acontecimentos negativos que le- vam & intervenc&o gerontolégica. Mesmo assim, essas situacbes de crise oferecem também possibilidades de ganhos.e de novas descobertas. As seguintes situagées encontram-se mais freqien- temente entre pessoas idosas: saida dos filhos de casa, entrada ha aposentadoria, perda do parceiro, dependéncia prépria ou do Parceiro, mudanga para uma instituicéo de longa permanéncia. Tarefa Escolha uma das situaces que podem acontecer na velhice € discuta, com a orientagéo de um professor, com um colega ou com Profissionais de diferentes areas, as contribuicdes que as diferen- tes ciéncias podem dar para melhorar a situacao. Debata também 0s resultados possiveis e as chances que essa situaco pode ofere- cer 8s pessoas idosas. Capirulo 5 ENVELHECIMENTO — SUBJETIVIDADE gio Py Introdugao O envelhecimento e a morte so preocupagées que tém a idade da Humanidade. Pensando a vida como um percurso até a morte, tornar-se velho é alcangar uma forma de adiar o fim da vida. A finitude esta fixada no corpo fisico e a Infinitude é obra do imag nario, no transito do desejo. Alcancar a infinitude é obra do dese jo, que se inscreve na finitude do corpo. A busca da eterna juven- tude é uma busca da eternidade, que esbarra na irreversibilidade da velhice e na inexorabilidade da morte (Py e Trein, 2006). Na época atual, 0 aumento da longevidade nos surpreende, transgredindo 0 padrao da cronologia das idades e empurrando a velhice para adiante. As pesquisas demograficas claramente de- monstram isso, como aprendemos no primeiro capitulo deste li- vro, Assim, se queremos viver muito, podemos dizer, inspirados na poesia lusitana, que envelhecer & preciso e morrer (n&o € pre- ciso?) continua obrigatério. ‘O ser humano, como um ser distinto e tinico, é semelhante aos outros seres humanos e o seu percurso vital transcorre sobre um mesmo pano de fundo, comum a todos. Ou seja, vivemos e enve- Ihecemos com os outros e, quem sabe, possamos ter o privilégio de ndo morrer sozinhos. Neste capitulo, vamos tratar das transformagées vitais a que todos os humanos esto determinados, na imbricacio dos proces- 50s psiquicos que regem o seu desenvolvimento. O ser humano, na velhice, prossegue envelhecendo, fazendo a experiéncia das perdas e das aquisicées que marcam a sua biologia e a sua vida psiquica, no meio social onde esta inserido, Vamos nos concentrar nas identificages que se sucedem con- tinuamente, confrontando a Imagem que fol idealizada pelo ser que envelhece e a realidade da sua condicao de velho. Para isso, 98 _ Toren de Eraser nos valemos da experiéncia do desamparo e do trabalho de luto, que podem viabilizar um outro destino para as subjetividades: excluindo a exclusdo dos velhos, podemos celebrar o sujeito e 0 desejo, proclamando o seu direito de existir, com sofrimento e prazer, até o momento do triunfo da morte sobre a vida, quando, enfim, deveré entregar-se como histéria e legado aos que perma. necem vivos. © corpo: biologia e subjetividade © meu corpo, que afinal néo se alheia. E meu sim, minha praga do prazer, com suas dores, seus limites novos, seu modus operandi, seu modus vivendi. (Daniel, 1991:5) © processo de envelhecimento do corpo peculiar & individua- lidade de cada ser e acontece pela agéo do tempo. A matéria hu- mana vive 0 seu préprio tempo fisico, desde 0 nascimento até a morte, experimentando transformagées continuas na organicida- de dos seus ritmos biolégicos. Para além do que somos capazes de aprender do corpo fisico, fazemos uma construc&o imagindria desse corpo, 0 que funda- menta 0 processo continuo das identificacdes a0 fongo da nossa vida, quando séo confrontadas as transformacdes provocadas pela aco de um tempo que passa alheio aos nossos desejos. © corpo humano é a presenca viva do ser, como proposta de aco sobre si mesmo e sobre o mundo, na expansio das capacida- des, percorrendo 0 processo de envelhecer. Corpo objetivado na biologia que o afirma na pura e crua mortalidade: “Morre-se quan- do'se termina de viver.” (Dolto apud Mannoni, 1995: 11). Corpo subjetivado nas insténcias do imaginério que 0 faz eterno, como os ensina Seminerio (1999: 22): és no vivemos na realidade. [...] Ns vivemos constantemente esse fluxo inesgotdvel: o fluxo do imaginario. A nossa vida nao € uma seqligncia de fatos que acontecem: , antes, 0 encadea- mento das significagdes com que os recobrimos. [...] essa se- qiiéncia, no de acontecimentos, mas de significagses, expres- sa uma tentativa de transcender a nossa finitude. Tory ds Enotner 99° Na dimensio biolégica, o avango na idade, como dado isolado, néo é sinénimo de adoecimento nem de chegada da morte. E sem- pre bom lembrarmos de que doenca e morte so condigées prépri- as dos seres humanos, em qualquer idade. Entretanto, existe evidéncias de que o envelhecimento celu- jar humano torna o organismo mais suscetivel a doengas, com repercussées também evidentes no sistema de sade, pelo au- mento da demanda exercida pela populacdo idosa (Jeckel-Neto, 2000). ‘A questo do adoecer no envelhecimento esté especialmente contemplada nos capitulos 1, 11 € 12 deste livro. Por ora, apenas ressaltamos a posicéo concordante de alguns pesquisadores da rea biolégica, como Gravenstein, Fillit e Ershler (2003), afirman- do uma suscetibilidade maior ao adoecimento na velhice, resguar- dadas as condicées peculiares @ individualidade de cada ser hu- mano que envelhece. Podem ser verificadas caracteristicas de in- suficiéncia para a manutencao da homeostase no organismo en- velhecido, em funcéo de condigdes de estresse fisiolégico, que as* socia o rebaixamento da viabilidade organica 8 conseqiiente ele- vacdo do grau de vulnerabilidade do individuo que cursa esse pro- cesso. 7 ‘A tecnologia biomédica, quando se volta exclusivamente para © tratamento das afeccdes de um corpo biolégico, desconsidera a subjetividade da vida humana e, assim, violenta 0 ser humano na sua trajetéria do envelhecer, ‘Um produto dessa situacao é a resposta depressiva que obser- vamos em muitos idosos. Manifesta-se, na realidade externa, pela desisténcia a que o idoso procede, de tudo e de todos. Em termos de realidade interna, o idoso mostra 0 abandono de si aos cuida- dos que espera ter do outro. Regredido, procura satisfazer exigén- cias, submetendo-se, na esperanca de assegurar esses cuidados (Sathler, 1994) ‘Avvelhice, com as fragilidades que a acompanham, nos aponta, pelo menos, duas possibilidades. Numa primeira mirada, pode desmerecer a existéncia humana: ~ Para que viver muito se vou envelhecer, adoecer e morrer? Ou, ao contrério, pode Impulsionar ‘© ser humano para a descoberta de novas possibilidades, no fluxo 100. 2 Eonar incessante do vir a ser: ~ Para que sair de cena, se posso, sempre, transformar meu personagem? Se uma pessoa, ao sentir que esté envelhecendo, dé uma co- notagdo ameacadora a esse processo, pode acionar contetidos per- secutérios que, vinculando a progressao do envelhecimento & do- enca, vao colocé-la, sem mediaco, frente 4 morte biolégica. Ou seja, frente ao hediondo, ali onde sucumbem as suas possibilida- des de investimento na vida. Desse modo, no serd mesmo possi- vel, para ela, construir alguma forma de lidar com as perdas sen- tidas no processo de envelhecimento e com a prépria finitude, fechando suas perspectivas de projetos para o futuro (Birman, 1995). ; Num outro estudo, Birman (1999: 102) faz uma apreciagéo critica destes tempos e alerta para a atualidade da vida humana entregue ao consumo e ao descartavel, chamando a nossa aten- So: “As diferentes instancias das ordens politica e social no ofe- Tecem protecao as subjetividades, que ficam entregues a sua pré- pria sorte.” E no campo da pesquisa gerontolégica brasileira, Neri (1993) trabalha a instalago de doencas, as perdas de papéis ocupacio- nais e as perdas afetivas, comumente presentes na velhice, como situagées passiveis de provocar a elevacdo do grau de ansiedade dos idosos. A mediac&o da subjetividade na constituicéo do pro- cesso de envelhecimento esté remetida ao sistema’ peculiar de valores, que marca um tempo histérico de um determinado siste- ma social. A autora nos lembra ainda que a satide das pessoas idosas, nos dias atuais, é uma questo de satide ptiblica e, como tal, a expec- tativa de vida de uma populagdo, enquanto uma positividade soci- al, se inscreve na minimizaco da morbidade fisica, psicolégica e social dessa populac&o (Neri, 1993: 36): Essas questdes no podem ser vistas como de responsabilidade individual. Antes, demandam, pollticas sociais que devern im- pactar os sistemas de sade e educacéo, 0 planejamento dos ambientes de trabalho e dos espagos urbanos, 0 sistema de seguridade social e também o préprio modelo de formacdo € atuaco dos profissionais que culdam de tais assuntos, Terve de Evatec 101 ‘Tratando, agora, da dimensdo subjetiva do corpo humano, en- tendemos que, nessa dimenséo, se revela 0 sujeito que se apre- senta, que fala de si e que se representa na sua histéria. Essa téria se constitul de um processo que articula os elos associati vos dos acontecimentos da sua vida, conferindo um sentido sua existéncia. A histéria de cada sujeito é também uma criagéo social e se inclui na histéria da humanidade. No caso das pessoas que esto chegando & velhice, essa historia prossegue a sua escrita através desses corpos envelhecidos, que continuam seguindo 0 seu préprio caminhc' de envelhecer, onde apreendem as significa~ es negativas que marcam a velhice (Sather apud Py e Scharfs- tein, 2001). E, desse modo, que estamos falando, aqui, do corpo de um ser humano idoso que, sentindo o afastamento progressivo do padréo jovem socialmente instituido, se vé ameacado da exclusdo, por no mais atender as exigéncias do culto & juventude. No entanto, se reconhecemos as transformacées dessé corpo envelhecendo ~ corpo que é a prépria presenga de uma mulher ou de um homem no mundo ~ podemos destituf-lo de conotacdes negativas e inclu lo no registro da diferenga, para entao, recoloca-lo num lugar de valor que o faca permanecer no circuito do desejo. Torna-se, as~ sim, possivel reintegré-lo & vida, na dimensao da sua temporali- dade, quando, incentivado a visitar 0 pasado, alcanga uma re- significac&o no presente para relancar-se 4 aventura de projetos futuros (Birman, 1995). Identificagées A identidade no é um estado, uma busca do Eu que s6 pode receber sua resposta reflexiva, através do objeto e da realidade que a refletem. (Green, 1998: 45) 0 sujeito se constitui na trajetéria das identificagbes. Ou seja, vivendo os processos psicolégicos responsdvels pela assimilacéo de aspectos e atributos do Outro, capazes de produzir, nele, conti- nuamente, transformacdes em diferentes graus de intensidade, segundo aquele que foi o modelo (Laplanche e Pontalis, 2001). A gestacdo e 0 nascimento de uma crianga trazem expectati- vas, promessas e metas de conquista. Os pais idealizam o futuro dos filhos, no embalo dos seus préprios desejos que, entretanto, se mostram para sempre insatisfeitos. Fundamentada na teoria freudiana, Sathler (1994: 42) nos ensin: Reconhecer os préprios desejos, para poder buscar meios de satisfago, requer um longo e laborioso trabalho de discrimina- 0 entre o que sou e desejo e 0 que querem que eu sejae deseje. E esse o percurso das identificages que, ao longo da existén- cla, 0 ser humano atravessa, reconhecendo-sé ao mesmo tempo em que reconhece 0 outro 8 medida que é também reconhecido Por esse outro. Podemos, assim, dizer que, nesse percurso, trans corre o trabalho psiquico de reconhecer-se nos seus préprios de- sejos, discriminando 0 que é seu e 0 que é do outro e, ainda, buscando meios de satisfaco, embora jamais va alcancé-la ple~ namente. Trata-se, aqui, da elaboragdo das perdas e das aquisi- ges, que teve infcio Ia na infancia: na perda da crenga na onipo- téncia do outro € na aquisico da capacidade de escolha propria, ou seja, da sua autonomia. a No curso do envelhecimento, o ser humano é Impelido a con- frontar a desqualificacao do corpo envelhecido que é marcado no social pelos estigmas da decadéncia, feidra, doenca e aproxima- cdo da morte. E quando tem que proceder ao confronto da estru- tura narcisica que se fixou na construc&o do seu corpo ideal, com a verificacao realista dos limites inexordvels que marcam 0 pro- cesso de envelhecimento (Sathler, 1994; Messy, 1999). A partir do século XX, essa tarefa identificatéria dos mais ve- Ihos-se dificulta. A exaltacdo da juventude se inscreve no registro social da produco, reproduc&o, acumulacao de riquezas e do con- sumo. Hd uma légica af engendrada, de onde nascem os determi- nantes de formas de discriminago que descartam e excluem aquele que é velho e, por conseguinte, considerado improdutivo, decaido, feio e doente, nao mais capacitado para atender as especificacbes eagles aos jovens produttivos, vigorosos, belos e sadios (Birman, De acordo com Messy (1999), na velhice, se desenvolve um processo de demolicao do ideal do ego. Essa é uma nocao da teo- ria freudiana que se refere & instancia da personalidade que é resultante da convergéncia da idealizacdo do ego e das identifica- des com os pals, Com os seus substitutos e também com os ideais coletivos. ‘A expresso “ego feltra”, criada por Messy (1999), designa, justamente, esse ataque ao ideal do ego. Na incursao de Pacheco (2005: 29) a esse discurso, encontramos: “Assim, na velhice, se~ ria como se Narcisd no conseguisse mais ver sua bela imagem refletida no lago, posto que, se congelado, nao refletiria, ou dis- torceria a imagem desejada.” ‘Atravessando um exaustivo proceso de mudangas, o ser hu- mano chegado a velhice se percebe no conjunto das perdas de capacidades e na sua atualidade psicossocial de tornar-se idoso. Desse modo, ele préprio pode descuidar das suas possibilidades de autonomia, bem como pode desestimular-se para investimen- tos novos, assimilando, na auto-imagem, os esterestipos socials que abominam os mais velhos (Sather apud Py e Scharfstein, 2001). ‘Observamos que, na complexidade e sofisticacéo do mundo atual, a concretizagio do alongamento da vida se contrapée & ca~ réncia das condicées de qualidade de vida e da valorizacao simb6- lica da velhice (Jeckel-Neto, 2000). Temos ai um contexto facilita- dor da resposta defensiva do ser humano, expressa numa recusa a identificar-se e reconhecer-se na sua atualidade de mulher velha ou de homem velho. Essa situacao revela o medo da velhice fundi- do no medo da morte. Medo forjado no horror e na repulsa, que so instrumentos do meio social, produtores de uma representa- 0 negativa da velhice. Referindo-se ao texto de Freud Nossa atitude para com a mor- te, Mannoni (1995: 8) nos lembra de que nao temos a representa~ do da morte no inconsciente: “La onde habita 0 desejo, o sujeito se cré imortal.” Também no conhecemos a velhice, antes de envelhecer. Ve~ Ihice e morte, no entanto, se fazem presentes na ferida narcisica provocada pela frustracdo das ilusdes de eternidade da beleza, de poténcia e da prépria vida. Particularmente no decorrer do envelhecimento, essas desilu- ses causam profundo sofrimento, porquanto o individuo se vé 104 Tiny da diante da irreversibilidade do seu processo de desenvolvimento. Porém, so justamente essas desilusées que prescrevem, para ele, possibilidades mais realistas de concretizacdo, que podem manté- lo em aco, prosseguindo no seu projeto de vida, & procura do lugar de senhor das pr6prias decisdes (Seminerio, 1999). Contudo, viver uma ilusao é imprescindivel para o ser humano, tanto quanto viver a desiluséo, na perda que frustra e provoca sofrimento. Todo esse proceso ¢ vital e.assegura a existéncia do ser que envelhece, pautada em ganhar e perder, sofrer e gozar. Hé, ainda, uma situacao profundamente perturbadora que € 0 caso do idoso com doenca incapacitante. Nao estamos tratando, aqui, das doencas que afetam a cognicéio dos, idosos, particular- mente as deméncias. Um estudo dessa naturéza encontra-se no capitulo 12 deste livro. Um idoso lticido e orientado, com uma doenca incapacitante, parece ter uma dupla dificuldade identificatéria: uma trazida pelo avanco nos anos, que o consagra velo; e outra que requer a inte~ gragao da doenga, muitas vezes instaurando a dependéncia. Am- bas 0 afetam, na construcao continua do ideal do ego. Anteriormente 20 adoecimento, é provavel que esse Idoso jé sofresse os efeitos de uma velhice confundida com doenca e defor- midade, pela marca social negativa que assinala os velhos. Agora, a doenca e a dependéncia vém radicalizar os sentimentos de agra~ Vo ao ideal do ego, pela forca com que acentua 0 que-é considera- do negativo no corpo envelhecido: incapacidades e felira da velhi- ce. Um Idoso assim adoecido pode sentir-se como uma caricatura de si mesmo. Ent&o, 0 mais grave no sofrido proceso identificaté- ro € vinculagéo velhice-doenca, que maltrata, deforma e incapa- ita, Desamparo © reconhecimento e a assungao radical do seu desamparo é a Gnica possibilidade pela qual o sujeito pode aparecer, como singularidade e heterogeneidade, na cena do mundo civilizado [...] ‘© desamparo seria aquilo que pode permitir-nos trabalhar, amar e criar [...] aquilo que deveriam ser as melhores pretensdes da subjetividade. (Birman, 1999: 103-104) to de Emalner 105 A construgio teérica da experiéncia do desamparo fol sendo a ob ‘eud desde a primeira publica- 0, de 1985, Projeto para uma psicologia cientifica, onde jé apa- Tecé a observacao da radical incapacidade psicomotora do recém- nascido, que vai fundar a nocao de desamparo na condicéo biolé- gica, Tem inicio af a experiéncia de satisfacdo do ser humano, cujo disparador é a necessidade basica de alimentar-se. © recém-nascido precisa ser cuidado, se no ele morre. No [nibicBes, sintomas e ansiedade (1980: 179), Freud nos fala da prematuracdo do ser humano ao nascer que, diferente da maioria dos animais, chega ao mundo com a necessi- dade radical de ser culdado: “o fator biolégico, entéo, estabelece as primeiras situagdes de perigo e cria a necessidade de ser ama- do que acompanharé a crianga durante o resto de sua vida.” Assim, podemos dizer com Sathler (1994) que, para os huma- nos nessa condig&o, cuidar e amar tém a mesma significacéo. ‘Absolutamente incapaz de realizar por si mesmo a tarefa de prover a prépria sobrevivéncia, o recém-nascido encontra, na mae, 0 cuidado, o refiigio e também a protecao para os perigos que se intensificam diante da vulnerabilidade extrema da sua condi¢éo. Como nos diz Pellegrino.(1989: 317): “Nascimento é exilio amar- go, crispaco de anatistia no corpo, auge de um despedacamento que vulnera a carnalidade mais intima do infante.” Evidencia-se, assim, a dependéncia extrema do outro para a sua sobrevivéncia, perante ndo s6 aos perigos reais da vida, como também j se esboca essa dependéncia perante & propria vida psiquica do indi- iduo. Entao, esse estado primordial de desamparo desempenha um papel decisivo na estruturacao do psiquismo que se constitu fundamentalmente na relacao com 0 outro. Ou seja, o ser humano s6 sobrevive porque 0 outro o deseja. Essa é a origem da necessi. dade de ser amado e cuidado, perpetuada no ser humano, até a sua morte. Encontramos, em Goncalves e Alvarez (2006), a humanidade, desde os primérdios da sua existéncia, assegurando a preservasao da espécie e da vida do grupo, pela aco do cuidado, esse “tomar conta” do sustento alimentar, da procriaco e criac&o da prole, da protecdo e defesa da habitaco e do territério. Nesse sentido, no texto, de 1927, O futuro de uma iluséo, Freud pensa a civilizagdo como o resultado da reunido dos seres huma~ 106 Tires Je Enshover nos, n&o sé no sentido de irem adiante com aquisicées novas, mas, basicamente, para se defenderem dos perigos das forcas da natureza, Ai se revela o desamparo da humanidade, revivido por todos os seres humanos, desde o nascimento. A experiéncia do desamparo se faz presente na vida cotidiana em todos os tempos da Historia, tanto nas situagdes de perigo que os humanos enfren- tam diante das forcas da natureza e de qualquer outra ordem, como diante da morte. Pensamos, aqui, nos perigos e nas ameagas vividas em face da velhice, nos dias atuais, quando se estende, nas sociedades, uma conotacao negativa da velhice, com perspectivas de excluso. A dimensdo do perigo é dada por aquilo que é viyido na angistia da ameaca & imagem narcisica idealizada que cada individuo cria para si mesmo. Nesse sentido, 0 perigo que remete o homem ao de- samparo primordial esta para além da ordem da autoconservacao, inscrevendo-se nos dominios pulsionais. De acordo com as inves- tigacées de Pereira (1999: 144), 0 desamparo “tende mais e mais a apresentar-se como 0 horizonte ultimo da existéncia e do pré- prio funcionamento psiquico.” ‘Ao longo da vida, a cada vez que o ser humano se depara com uma situac&o de perigo, Ihe sobrevém 0 desamparo, demandando. um pedido de ajuda. Nas palavras de Pellegrino (1989: 310), “unr néufrago, num mar proceloso, se aferrard a sua tébua de salvagao na proporcdo direta do tamanho das ondas que o-ameacam.” No.curso dessas reflexdes, cremos ser possivel dizer que enve- Ihecemos embalados pelo desamparo sofrido desdé o nasci traduzido na expresso das perdas sucessivas que aco hi cada existéncia. Perdas que acarretam sofrimento e exigencia de um trabalho de luto. envelhecimento, ao se traduzir no contexto social como ne- gatividade, agrava 0 que é sentido como perda e, assim, fragiliza 05 recursos internos do individuo idoso, construfdos ao longo de toda a vida. Na presenga de uma doenga incapacitante, como ja falamos acima quando tratamos das identificacdes, 0 caso é mais compro- metedor ainda, podendo desenhar-se um cendtio de estado extre- mo de desamparo. O sentimento das perdas pode chegar a trans formar-se em fantasias jamais decifraveis, elevando a tensao do idoso diante dos limites ameacadores que se impdem. Desse modo, Tene Evatner 107 © idoso doente pode chegar a um lugar subjetivo, onde no mais consiga dominar as tensées e, entdo, nelas se encontrar submerso (Laplanche e Pontalis, 2001). © conceito de desamparo é também trabalhado por Birman (1999) no contexto da barbarie, onipresente na realidade atual. Essa presenca e essa forca nao sao, apenas, lembrancas das agées de violéncia e dos exterminios que se inscrevem na Histéria da humanidade. Séo, também e principalmente, a realizacdio do har- ror na nossa existéncia cotidiana, marcada por diferentes figura- Ges da barbarie que transgridem os mais fundamentais direitos do homem contemporaneo. Nesse sentido, pensamos em algumas situacdes em que os ido- sos se encontram, quando 0 outro assoma, poderoso, numa pre- tensa protegao e, ao invés disso, esté mesmo é a servico do subju- go que resulta na “servido humilhante” dos mais velhos, expres- sdo da “materializacao bruta da barbarie” que acontece como ra- dicalizagao da desigualdade e da opressdo (Birman, 1999). E o caso, por exemplo, da recusa obstinada do reconhecimento do idoso como pessoa, como ser humano com “existéncia real”, como nos diz Oliveira (1999), quando fala dessa tao comum figuragao da barbarie no universo da pobreza, da infancia e da velhice. A teorla freudiana afirma que nao existe qualquer forma de superagio do desamparo. Decisivamente, 0 ser humano percorre a existéncia, cunhado pela precariedade e pelo inacabamento. Nas suas interpelaces mais solitérias e tensas, ‘carrega a marca da busca, na iluso de que é capaz de dominar-se e dominar os peri- gos, construindo tentativas mdgicas de protecéo. Frustrando-se, porém, se surpreende, @ cada vez, em estado de desamparo que, nessas circunstancias, prescreve uma acdo do sujeito, no sentido de redirecionar-se para a invengo de novas formas de existir, novos destinos, que the possibilitem viver e, nesse mister, obter prazer (Py e Trein, 2006). 0 trabalho de luto como projeto Amar 0 perdido Deixa confundido este coracio (Andrade, 1976: 169) 108 Tenge bo Estamos familiarizados com a vinculac&o do envelhecimento & idéia de perda. No entanto, a leitura de Messy (1999:18) nos re- mete & nogio de envelhecimento como aquisic&o, “pelo simples fato de que s6 perdemos aquilo que possuimos”. Assim recoloca~ do, 0 envelhecimento nao é uma sucessdio de perdas, simples- mente; é, sim, um proceso feito de perdas e aquisicées. © autor trabalha o principio da aquisico no decurso da vida, centrando-se nos investimentos que fazemos nas pessoas queri- das. S80 esses investimentos que véo configurar a instdncia ima- gindria do ego, assegurando af as nossas aquisigies, 0 que quer dizer que nos moldamos & imagem do outro a quem nos afeicoa- mos, Desse modo, as aquisigdes se verificam na relaco com 0 outro. Ou seja, estamos falando de identificagdes na perspectiva psicanalitica, como j4 discorremos acima. © ser humano passa por um luto por qualquer perda que the aconteca. No texto de 1917[1915] Luto e melancolia, Freud trata do luto como um proceso psiquico que o individuo percorre, com sofrimento, quando perde um objeto de sua afeicdo e vai, progres- sivamente se desapegando dele. Na elaboracdo do luto, 0 sujeito est desenvolvendo uma intensa atividade psiquica pela qual se da um corte do vinculo libidinal que o ligava a esse objeto, sendo a libido transferida para outro objeto. Encontramos, em Laplanche € Pontalis (2001: 266), uma sintese da nogo de libido descrita na teoria freudiana Libido é uma expresséo tirada da teoria da afetividade. Chama- mos assim a energia considerada como uma grandeza quantita- tiva - embora nao seja efetivamente mensuravel ~ , das pul- ses que se referem a tudo 0 que podemos incluir sob o nome de amor. No envelhecimento, o trabalho de luto se constitui no penoso proceso psiquico que 0 idoso percorre, implicando na necessida- de de elaboracao do vinculo afetivo com aquilo que sente perdido @ que o social soberanamente glorifica: * 0 corpo com vigor, beleza jovem e capacidades maximizadas; * 0 poder e o status do trabalho; * pessoas do seu convivio que *comegam a morrer em série, uma a uma indo embora, até chegar a minha vez", para usar- Tengo de Enaherr 109 mos a expresso de uma idosa usudria de um grupo de con- vivéncia. A elaboragao dessas perdas deve resultar numa abertura de perspectivas para um re-direcionamento dos afetos depositados nesses vinculos, no sentido de 0 idoso se entender com a inexora- bilidade das marcas da passagem do tempo que Ihe revelam: * um outro corpo ~.agora envelhecido e continuando a envelhecer, apresentando uma outra necessidade: a de adequacdo a nova condicao ditada pelas limitacoes das capacidades fisicas; * outras atividades, diferentes da antiga dedicacdo ao trabalho; © outras pessoas, que sejam do seu genuino interesse e que Ihe despertem afeicao e a * entrega a reflexdo constante sobre a sua prépria existéncia, des- tinando-se a reacender os re-arranjos psiquicos que sempre pu- deram ~ e ainda podem - assegurar-Ihe perspectivas futuras. Essas aquisices nfo séo “coisas novas” na vida do sujeito. Durante todo o tempo, no interjogo de perdas e ganhos, vém en- trando na pauta da sua vida. Entretanto, como diz Messy (1999:22), “aquisic&io no é o reverso da perda, pois a noc&o de Irreversibili- dade separa-as. O que é perdido, o é para sempre, nenhuma aqui- sigo substitui a perda.” ser humano sofre perdas desde 0 nascimento, a comecar pela perda do “paraiso uterino’. Perdas vividas na infancia, na ju- ventude e na maturidade sempre dinamizaram o seu campo de possibilidades de aquisicées novas, segundo uma trajetoria de ela- boracdo psiquica a partir do que foi perdido. Isso quer dizer que as perdas, apesar de irreversiveis, nao significam, necessariamente, um término, uma vez que podem sempre estar gerando aquisi- Goes. © processo psiquico de elaboracao dos lutos é uma experién singular de cada sujeito, dentro das circunstancias em que esté inserido. Nos seus estudos sobre 0 luto, Doll (2006) nos chama a atenc&o para a diversidade e a transitoriedade das condices socioculturais que configuram os cendrios onde acontecem o en- velhecimento € 0 luto. As grandes transformacées sociais das ulti- mas décadas, aliadas 85 mudangas acentuadas nas relacées inter- pessoais e familiares com tendéncia a uma aceleracao cada vez HO Tengo de Enaheser maior, néo garantem a permanéncia das formas de envelhecer e de sentir as perdas, nas préximas geracoes. ‘As quatro fases do luto desenvoividas por Bowlby (1997) podem ser pensadas, associando-as as perdas do envelhecimento endo, apenas, a de um ente querido: * aturdimento * busca do objeto perdido * desorganizacao e desespero * reorganizacéo psiquica em maior ou menor grau Um outro pesquisador, Worden (1998), pautado nas fases de Bowlby, propée quatro tarefas que devem ser cumpridas pela pes- soa enlutada: * aceitar a realidade da perda * elaborar a dor da perda * ajustar-se & nova circunstancia provocada pela perda + reposicionar-se emocionalmente e continuar a vida Neste momento, lembramos de alguns episédios de experién- cia pessoal, contados por quem viveu a surpresa de se saber velha e de ficar doente; a partir dai, essas pessoas se pdem, com grande contrariedade, a um trabalho de luto pelo corpo e pela satide que Ja perderam. Pautando-nos na ilus&o de que “velho ou doente é o outro, jamais eu”, trazemos, aqui, falas de pessoas freqiientado- ras de um grupo de convivéncia, porta-vozes de experiéncias nos- sas de cada di Eu 56 vi que estava velha naquele dia que eu fui 8 médica do Posto e uma velha que vinha chegando, apressou 0 passo pra falar comigo e me disse assim: ~Assenhora esté indo para o grupo dos idosos e eu tenho que Ir pra I, que a Doutora mandou, mas eu néo sei onde &. Que sorte! Eu encontrei a senhora, assim eu vou junto com a senho- ra, Bem que a Doutora disse que.era sé eu acompanhar um idoso que estava indo pra ld Eu fiquei t80 passada! Quem era idosa, eu? Eu, no! Eu néo estava indo pro grupo dos idosos, eu nem sabia disso, nem sa- bia onde era! Eu, no! Ful até bruta com aquela mulher. Ela, Tenge de Ghee It coltada, ficou téo sem graca e eu sai dali, fuzilando, Mas aquilo néo safa da minha cabeca. Ai, de nolte, ful na casa da minha filha ver a novela e conte! pra ela. Ela riu que se acabava, Ela ria © eu chorava de me amargar por dentro, porque eu no queria ser velha. Ai é qug eu vi qué todo mundo sabia que eu }é era velha, menos eu. E igual a marido traido, o ditimo a saber. (Mulhier de 67 anos, vidva, morando sozinha.) Vocé sabe, eu nao pensei que eu fosse ficar velho e doente, Eu era muito forte e a gente quando é moco e esté com satide, nem pensa, nem sabe que pode chegar a ficar velho e que @ doenca vem também. Pra mim, velho e doente era coisa dos ‘outros, do pobre do Joo e da Dona Mariazinha, coitada! Eu nem pensei que podia acontecer comigo. Ficar velho j € um enguico, agora, velho e doente, hum! E 0 pior é que nao morre assim, no! Morrer nao é facil como parece. Eu no sei mais do meu brago e dessa minha perna. Parece que nao so meus, que nem € deste meu corpo. Nao sei como ¢ ficar assim. Vou ter que aprender [...] E fico $6 lembrando da minha sade, de quando eu era forte, tinha satide, era moco, até agora hd pouco tempo [ia tendo idade, mas eu era mogo, eu era forte, andava, me mexia, eu era homem pra ser marido dela, tinha forca pras coi- (Homem de 72 anos, casado, morando com a mulher e uma filha, com sequlelas de um acidente vascular cerebral.) Como esta evidenciado no capitulo 9 deste livro, que trata do trabalho e da aposentadoria, as elaboracées psiquicas na velhi- ce s6 fazem sentido se apreendidas no decurso da vida do sujeito “Envelhecemos como vivemos’, nos diz Messy (1999:17). Entéo, na histéria inteira de cada um que so engendrados os contetidos, apavorantes ou trangilllizadores, presentes no envelhecimento. J4 nos referimos ao fato de que a velhice ~ assim como a morte = nao habita o nosso inconsciente. E algo estranho a nés, é sem- pre do outro, como demonstram as falas das pessoas que trouxe- mos. Nas investigagées de Messy (1999: 14) sobre a velhice, encontramos Freud, em O estranho, de 1919, no tratamento dado & imagem da velhice, produzindo em nés “uma impressao de In- quietante estranheza [...] quando 0 apavorante se liga ao familia.” ‘Complementando essa leitura com os estudos de Castelo Bran- co (1995: 49-50), encontramos esse sentimento como uma forca TE Tengo de Ever que vive em nés, “esquisitamente familiar”, algo da ordem do ino minavel, do incognoscfvel, do inassimilavel, que € reconhecido no outro, mas, em nés, é apenas pressentido: “advém da existéncia ¢ da presenga de algo que pode se revelar @ qualquer momento [...] trazendo um sentido inesperado e uma emocéo imprevista.” Assim pode acontecer a revelagao da velhice. Para esta época, envelhecer é, basicamente, perder. E algo estranho ao sujeito que deseja a eternidade, perpetuando-se em vigor e beleza, pode- rosos atributos glorificados pelo social. 0 ser humano, entao, funda 0 seu desejo em viver muito e prazerosamente, porquanto abomina a incapacidade e a morte, que o leva a “recusar-se” a envelhecer. . Nessa conturbada dinmica psiquica, deve transcorrer 0 traba- Iho de luto por aquilo que é perdido na velhice, evocando aquisi Bes que, se jamais reconstituem as perdas, mantém, contudo, 0 idoso na condic&o desejante, projetado ao futuro, aproximando as suas possibilidades inimaginavels de criacSo. Consideragées finais Na velhice, 0 ser humano prossegue envelhecendo, no proces- so de transformacées vitais a que todo o ser vivo est determina- do. Como sujeito, ele se constitui na relacéo identificatéria com o outro e essas transformagées tém a ver com a possibilidade de ser reconhecido na sua diferenga, em que, se hd lugar para um julzo de valor, esse é 0 lugar da valorizacdo da singularidade do ser humano| As transformaces do corpo que envelhece nos revelam ao ou- tro, antes que tenhamos percebido o que esta nos acontecendo. Admiti-las ¢ obra dos nossos caminhos na realidade e, também, das nossas possibilidades de provocar uma outra transformacio, para aquém da pele, no intimo mais profundo de nés mesmos, onde subjetivamos a nossa existéncia. Ali onde ndo hd cronologia, onde reina o desejo que nos move & criacdo, sempre inacabada e, por isso mesmo, sempre renovavel, © envelhecimento, percebido como atemorizante, aciona con- tetidos persecutorios a sua progressao, nessa circunsténcia, con- duz 0 idoso a aproximacao da morte biolégica, onde ele se depara com 0 hediondo, vendo sucumbir as suas possibilidades de inves- timento na vida como projeto que Ihe aponta o futuro. Num estado de desamparo que chega ao extremo, jé nao Ihe possivel desen- volver a construcéo de modos mais integrados para lidar com os seus limites que, aliés, véo se tornando cada vez mais densos Afetado pelo medo e pela ameaca, vivencia a fatalidade, onde ine- te qualquer investimento libidinal (Birman, 1995). No entanto, a vida é projeto permanente de cada sujeito que se articula, incessantemente, com 0 conjunto de projetos da cole~ tividade humana. No contexto atual de soberania da longevidade aumentada, que adia a'velhice e a morte, todos nés estamos con- vocados a compartihar idéias e sentimentos que constituem 0 nosso projeto pessoal. Quem sabe, invés de aceitarmos a marca de hor- ror da velhice e confrontarmos @ morte, possamos estar diante da nossa prépria finitude e da finitude dos objetos da nossa afeicao. Essa consciéncia de que tudo termina reacende em nds o desam- paro, prescrevendo uma acéo sobre o mundo e sobre nds mesmos e, por isso, nos € revelado um sentido para viver o sofrimento (Birman, 1995; Pessini, 2001). Estamos pensando no sofrimento daqueles que estéo relega- dos pelo social - velhos ou ainda nao - e também na responsabi- lidade daqueles que se destinam a pensar e agir no campo do envelhecimento. Por isso, trazemos a mensagem de Oliveira (1999: 43), extraida da sua experiéncia de pesquisa com avés e netos, esquecidos pelas farturas do mercado de consumo, capazes, con~ tudo, de subjetivar a sua exist€ncia com bases fincadas na Shuma- nizagéo do humano”: [...] s80 pessoas que, “juntas”, podem olhar o hoje e o amanha [2] Em meio a discriminacao que thes é impingida, estas mes- mas figuras, relegadas, se reconhecem como gente e passam a partilhar e viver uma humanizacdo que nao se vende e néo se compra [...] £ um universo pontuado pela tense que se move As vezes no terreno do ambiguo, mas que parece guiado por uma baliza: humanizar o humano ~ trabalho que tem um norte e, no entanto, no tem fim. ‘As questes do envelhecimento suscitam grandes dividas, per- plexidades, discussGes. Interessam a todos nés, seres humanos envelhecendo. Interessam aos que jé esto velhos e, também, aos adultos, aos jovens, as criancas que esto cursando esse proces- so. Nesse percurso, seguimos todos envelhecendo, com a tarefa humane de criar significagdes para os fatos que marcam a nossa existéncia. Que a perspectiva seja do trabalho de luto pelas nos- sas perdas, na busca das aquisiches que nos transformam, lan- ando-nos ao futuro como projeto vivo de liberdade individual que se realizaré, enfim, engendrada na solidariedade coletiva. Referéncias bibliograficas Andrade, Carlos Drummond de. 1976. "Meméria’, In: - Antologia postica. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympic. Birman, Joel. 1995. “Futuro de todos nbs: temporalidade, meméria e terceira idade na psicanlise’. In: Veras, Renato Pelxoto (org.). Terceira idade: um envelhecimento digno para 0 cidadgo do futuro. Rio de Janeiro: Relume-Du- maré / UNATI-UERI, p. 29-48, Birman, Joel 1999, “Pscandlis, regatividade e heterogéneo: como a pscandlise pode ser obstéculo para a barbarie?” Cadernos de peleandiise, Sociedade de Psicandlise do Rio de Janeiro, v. 15, n° 18, p. 89-107, Bowlby, John. 1897. Farmaco e rompimento dos lacos afetivos, So Paulo: Mar~ tins Fontes, Castelo Branco, Guilherme, 1985. 0 olhar e 0 amor: @ ontologia de Jacques La- can. Paulo de Frontin (R3): NAU, Daniel, Hebert. 1993. “Anotacdes & margem do viver com aids". 1 Antonio (org.). Sade e loucura 3. So Paulo: HUCITEC, p. 3-20. Doll, Johannes. 2006, “Luta viuvez na velhice”, In: Freltas, Eizabete Viana et al (org.). Tratado de gerlatria e gerontologla, 2. ed, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. Freud, Sigmund. 1980, *Projeto para uma psicologia cientifica” (1895), In: Obras psicoldgicas completas de Sigmund Freud. Standard Brasileira, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, p. 421-424. Freud, Sigmund. 1980. *Nossa aitude para com a morte” (1915). [segunda parte de *ReflexGes para os tempos de guerra @ marte"]. in: Obras Psicolégicas Completas de Sigmund Freud. Standard Brasileira, vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, p.327-339. Freud, Sigmund, 1980. *Luto ¢ melancolia" (1917[1915}). In: Obras psicolégicas ‘completas de Sigmund Freud. Standard Brasileira, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, p. 275-291, Freud, Sigmund. 1980. "*O estranho" (1919). In: Obras psicolégicas completas de ‘Sigmund Freud. Standard Brasileira, v. XVii, Rio de Janeiro: Imago, p. 275-314. Freud, Sigmund. 1980. "Inlbicdes, sintomas e ansledade” (1926(1925]}. In: Obras Psicoldgicas Completas de Sigmiund Freud. Standard Braslielra, v. XX. Rio de Janeiro: Imago, p. 107-198, Freud, Sigmund, 1980. °O futuro de uma ilusdo" (1927). In; Obras psicolégicas completas de Sigmund Freud. Standard Brasiieira, v. XX, Rio de Janeiro: Imago, p. 15-80, Gongalves, Lucia Hisako Takase e Alvarez, Angela Maria, 2006. "0 culdado na tenfermagem gerontogeriatrica: conceito e pratica’. In: Freltas, Elizabete Via~ Lancetti, m5 Pellegrino, Helio. 1987. “édipo e a Paixéo”. In: Cardoso, Sergio et al. (org.). Os vel © 0 inomindvel: a Uitims palavra da vida. Rio TE Torys de FRAGMENTO DE TEXTO Freud, Sigmund. 1980. "Sobre a transitoriedade” (1916[1915}). In: Obras psicolégicas completas de Sigmund Freud. Standard Brasi leira, v. XIV, Rio de Janeiro: Imago, p. 345-348, privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensida~ Ge ainda maior a0 que nos sobrou, [...] nossa afeicdo pelos que se acham mais préximos de nés e nosso orgulho pelo que nos & comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, sera que aqueles outros bens que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nés, por se revelarem tao perecivels e t30 | sem resisténcia? [...] Creio que aqueles que pensam assim e pare- em prontes a aceitar uma renuncia permanente porque o que era | Precioso revelou nao ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu ___ O lute pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura ‘80 natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para 05 psicblogos, porém, o luto constitul-um grande enigma, um daque- les fendmenos que por si s6s no podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuimos, se- gundo parece, certa dose de capacidade para o amor ~ que denomi- amos de libido ~ que nas etapas iniciais do desenvolvimento é-diri- gido no sentido de nosso préprio ego. Depois, embora ainda numa poca muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que | oe Sa a Ge Sa eades paces Ser ote | | * N&o pode surpreender-nos 0 fato de que nossa libido, assim | tos forem destruidos ou se ficarem perdidos para nés, nossa capaci dade para o amor (nossa libido) seré mais uma ver liberada e poder, entio, ou substitui-los por outros objetos, ou retornar temporaria~ mente a0 ego. Mas permanece um mistério para nds, 0 motivo pelo qual esse destigamento da libido de seus objetos deve constitulr um rocesso t80 penoso é,-até agora, ndo fomos capazes de formular qualquer hipétese para explicé-lo, Verios apenas que a libido se ape- ga a seus objetos ¢ nao renuncia aqueles que se perderam, mes- ‘mo quando um substituto se acha bem & mao. Assim é 0 luto.” Tenge de Erabecr 117 LEITURAS RECOMENDADAS Doll, Johannes. 2006. “Luto e viuvez na velhice”. In: Freitas, Elizabete Viana et al. (orgs.). Tratado de geriatria e gerontologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. A leitura desse capitulo do Tratado de geriatria e gerontologia, agora, na segunda edicao, revista e atualizada, é altamente eluci- dativa, porquanto o autor, ao tratar do tema da viuvez, nos apre- senta uma reviséo tematica do luto, fazendo-nos conhecer dife- rentes abordagens teéricas, de forma clara, sintética e, especial- mente, critica, uma rara oportunidade que temos em textos na lingua portuguesa. O tema da viuvez na velhice é trazido de forma igualmente densa, percorrendo caminhos da Histéria e destacan- do a condic&o da mulher vitiva que, particularmente na velhice, se apresenta como um problema de significativa relevancia no cend- rio atual do envelhecimento. Os dados demogréficos e epidemiolé- gicos apontam para as diferencas quantitativas entre as popula- ges de homens e mulheres acima de 60 anos, onde se destacam as mulheres. Vernos, no texto de Doll, as preocupacées, com as demandas peculiares a cada um desses grupos, em particular nas reas social e da sade. Messy, Jack, 1999. A pessoa idosa nio existe: uma abordagem psicana- Titica da velhice. 2. ed. S80 Paulo: Aleph. © autor apresenta, primeiramente, uma discusséo da dindmica dos processos do envelhecimento, abrindo uma nova perspectiva para se pensar essas questdes, a partir do conceito de narcisismo. Acentua, provocadoramente, as aquisicées, tratando das perdas ‘como concernentes a todas as etapas da vida e nao 6 & velhice. Na segunda parte do livro, trata da Doenca de Alzheimer, iniciando pelo relato completo de uma relaco terapéutica, onde faz um questionamento da teoria a partir da clinica. Lembra aos estudio- Sos que 0 conhecimento no campo da gerontologia s6 alcancaré suas finalidades se reintegrar a velhice na histéria da vida inteira do sujeito, 0 titulo desse livro é instigante, porém o autor chama a atencao dos leitores para a coeréncia da sua escolha, centrada no enfoque psicanalista de que a idade no interfere na psique, WE Tenge de Erato Mannoni, Maud et al. (orgs.). 1994. As identificagées na clinica psicanali- tica. Rio de Janeiro: Relume-Dumaré. © livro apresenta 0 produto de uma série de debates sobre o tema, acontecidos em Paris, quando as identificagdes foram trata- das com uma elaborac&o conceitual rigorosa, que se abre a critica. Recomendamos, especialmente, o texto de Jean Florence, “As iden- tificagées”, (p.113-170) que apresenta o desenvolvimento dessa nogao na obra de Freud, com as reformulagées pelas quais foi passando ao longo da produgao freudiana. Como se trata do resul- tado de debates, os textos séo antecedidos de uma apresentacio € seguidos da transcricao das discussées, 0 que enriquece sobre- modo o tema abordado. Ai se destacam contfibuicdes de renoma- dos psicanalistas, com interpelaces e acréscimos que tém o valor de uma outra abordagem que se interliga ao texto principal. Fina- lizando, ha a conclusdo dos debates, um presente para o leitor, com a sintese dos trabalhos. PROPOSTA DE APLICACAO Propomos a organizacéo de um semindrio para aprofundamen- to da nocao de desamparo, aplicada ao campo do envelhecimento. Partindo da idéia de que o ser humano carece de protecio, desde © nascimento até a morte e essa proteco se confunde com.a sua necessidade de amor, a experiéncia do desamparo no comporta qualquer apagamento na vida do sujeito, Ao contrdrio, é uma mola acionada na direcao da busca de satisfacao. Na obra de Freud, a nogdo de ‘desamparo aparece em diversos textos. Apresentamos, aqui, seis desses textos, que devem subsi- diar 0 seminario que estamos propondo: 1. Projeto para uma psicologia cientifica (1895); a experiéncia de satisfacao. 2. As transformag6es da puberdade (1905): a angistia infantil é apresentada na expresso da falta da pessoa amada, quando a crianga se encontra na presenca de estranhos ou no escuro. Tange de Enotes 09 3. Totem e tabu (1913): 0 desamparo infantil € algo “especial”, suscita desejos proibidos e desperta conflitos. 4, 0 estranho (1919): as situagées vividas com estranheza, “és- quisitamente familiares”, s8o oriundas de sensacées repetiti- vas que remetem 0 sujeito a algo ameacador e terrificante, Inibicées, sintomas e ansiedade (1926[1925]): 0 desamparo no € sé biolégico; a angustia esté relacionada a situagées de perigo; a dependéncia do outro é vital para a sobrevivéncia, em face dos perigos reais da vida e da prépria vida psiquica do sujeito. 6. O futuro de uma ilusdo (1927): nos primérdios da humanidade, o desamparo se fez presente em situacées de adversidade e perigo diante das intempéries da natureza. Etapas para o desenvolvimento do seminério: Formulago do problema Considerar.o envelhecimento no decurso de toda a existéncia hu- mana e nao, apenas, a partir da entrada da velhice. objetivo : Considerar 0 desenvolvimento do trabalho Inserido na técnica de seminério, visando identificar e aprofundar os diversos aspectos do tema proposto e a posterior sistematizacgo do produto alcan- gado. Definicéo dos participantes Arranjo dos alunos em sels grupos e um professor coordenador. Preparacao das atividades © coordenador deve orientar a distribuicéo dos seis textos que estamos propondo, definindo a tarefa de estudo; dispor de um horario para esclarecimento das possiveis diividas no decorrer do estudo e definir 0 prazo para a apresentacao. 120 Terps de Coshser Desenvolvimento do estudo Cada aluno individualmente deve fazer uma primeira leitura d texto proposto ao seu grupo e levantar as suas préprias questdes essas serdo levadas discussao no grupo para os encaminhamer tos de respostas ou novos questionamentos que representem pensamento do grupo. Apresentacao dos resultados Cada grupo apresenta 0 resultado do seu estudo, que deve se registrado por, todos os participantes de todos os grupos, para « encaminhamento das conclusées. , Conclusso © coordenador deve moderar a discussdo desses resultados com todos os participantes, para a elaboracao da sintese, de modo ¢ atender & proposta do semindrio.

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