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PRÁTICAS DE LEITURA NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA APLICADA:


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOCIODISCURSIVAS

Article · May 2014

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Fabio Delano Vidal Carneiro


Centro Universitário 7 de Setembro
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PRÁTICAS DE LEITURA NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA
APLICADA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOCIODISCURSIVAS

Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin ∗

Fábio Delano Vidal Carneiro ∗∗

RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir acerca das práticas de ensino e


aprendizagem da leitura. Essas práticas ainda revelam a convivência de paradigmas
díspares na sua concepção de linguagem e de discurso. A fim de contribuir para a
superação dessa realidade, discutimos as propostas de trabalho com a leitura
fundamentada no paradigma Sociointeracionista (CICUREL, 1991) e Sociodiscursivo
(BRONCKART, 2004, LEURQUIN, 2001). Concluímos apresentando princípios para
uma transposição didática da leitura capaz de integrar leitura e escrita no trabalho
criativo com os textos/discursos.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura.Interação. Transposição didática. Textos/discursos.

ABSTRACT:Our goal is to reflect upon the teaching-learning practices for reading.


These practices still reveal the coexistence of opposing paradigms on the nature of
language and discourse. In order to contribute to the overcoming of this reality we
discuss the approach on reading based upon Sociointeractionist (CICUREL, 1991) and
Sociodiscoursive (BRONCKART, 1999, LEURQUIN, 2001) theories. In conclusion,
we present principles for a didactic transposition of reading that would be able to
integrate reading and writing in a creative work with texts/discourses.
KEY-WORDS: Reading. Interaction.Didactic transposition.Texts/discourses.

Algumas considerações a fazer

A leitura é um tema bastante estudado no Brasil. Muito já se disse sobre ela, mas
parece que ainda temos muito a dizer. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante
PCNs) apontam-na como um dos eixos para o ensino e a aprendizagem de línguas e ao
mesmo tempo apresentam a denúncia de que “a escola vem produzindo grande
quantidade de ‘leitores’ capazes de decodificar qualquer texto, mas com enormes
dificuldades para compreender o que tentam ler.” (PCNs, 1998, p.55). Nossa prática ao
longo da disciplina Estágio em ensino de leitura e nossas pesquisas mostram que ainda
não temos um espaço de leitura definido na realidade da sala de aula de forma a formar
o cidadão leitor crítico como esperamos e como orientam os PCNs. Por tudo isso, para
nós, a leitura na escola ganha um status especial, de urgência, levando-nos a pensá-la
ainda hoje como um desafio particularmente interessante e necessário a ser considerado.
É muito provável que tal constatação decorra do fato de que o agir didático-
pedagógico, no contexto da aula de leitura, ainda esteja calcado em práticas de análise
                                                                                                                       

Professora da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Doutora em Educação e líder do
Professor da Faculdade 7 de Setembro, Fortaleza, Doutor em Linguística e pesquisador do
∗∗

GEPLA/CNPq.  
ascendente (do fonema para a palavra, da palavra para a frase e assim por diante),
dificultando a compreensãodo texto e minimizando a prática de leitura em situação de
ensino e aprendizagem (FIJALKOW, 1995). Entretanto, também sabemos que o
professor encontra dificuldade na realização da transposição didática dos saberes a
ensinar por muitas ordens e, por essa razão, a opção sempre é a de não mudar seu agir
professoral.
Estudos (ALMEIDA, 2013, DURAN, 2009, SCHOLZE, 2004, BRIGMANN,
2000) vêm mostrando que estratégias ascendentes tanto são observadas em práticas de
professores experientes quanto em práticas de professores em formação inicial, apesar
da virada teórica pela qual vem passando o ensino e a aprendizagem de línguas no país,
a partir da década de 1990, com as orientações divulgadas nos PCNs. Nesse contexto,
reafirmamos a necessidade de pensar nos dois entraves: o de superar a decisão de
realizar uma aula de leitura e o de realizá-la de maneira significativa (LEURQUIN,
2009, LEURQUIN e BARROS, 2007).
Nossas pesquisas mostram que, no contexto da disciplina Estágio em ensino de
leitura, como na maioria das vezes não há aula de leitura, o estagiário de Letras solicita
ao professor-regente ministrá-la para que ele assegure a conclusão do Curso. Tal
constatação vem sendo corrente nos relatórios entregues ao final da referida disciplina.
Quando a aula de leitura ocorre, é possível perceber a dificuldade que tem o professor
de realizá-la de forma produtiva.
Dados recentes, provenientes da pesquisa em andamento “O estágio como
espaço de transformação do professor de língua portuguesa” 1, mostram justamente
essa dificuldade do estagiário em observar uma aula de leitura porque o professor
informa que não tem o hábito de realizar aula de leitura (LEURQUIN, no prelo).
Quando o estagiário consegue realizar a sua observação, em 98% dos relatórios
analisados (no universo de trezentos relatórios coletados de 2010 a 2014) a avaliação
feita é negativa, revelando a dificuldade do professor em realizar uma aula interativa,
comunicativa de leitura. Razões para isso são muitas (o conteúdo não pode ser atrasado,
o aluno não gosta da aula de leitura, o professor não tem segurança de realizar uma aula
dinâmica de leitura, há um problema a resolver entre os conhecimentos a ensinar e os
conhecimentos para o ensino, entre outros). Este último impasse citado diz respeito à
transposição didática problemática que sendo realizada em sala de aula de leitura. Tal
resultado fora constatado pela mesma autora em 2001 nas conclusões de sua tese e
pouco vem mudando nos últimos quinze anos, apesar de neste período o país estar
vivenciando um nível maior de pesquisas, publicações e eventos na área da Linguística
Aplicada e do Ensino de Leitura.
Nosso objetivo maior com este artigo é contribuir nas reflexões sobre o espaço
da leitura em sala de aula de língua portuguesa, pois seguramente e de forma paradoxal
ele vem perdendo espaço. Os dados analisados são resultados de pesquisas realizadas no
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará, dentro do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Linguística Aplicada – GEPLA. No nosso percurso discursivo,
trataremos de três pontos: transposição didática, relação leitura e produção de texto e
proposta de uma aula de leitura.
                                                                                                                       
1
A pesquisa conta com a participação de dois bolsistas, um de Iniciação Científica e um monitor da
disciplina de Estágio em Ensino de leitura, Victor e Marcelo, o primeiro do CNPq e o segundo voluntário.
A pesquisa está na primeira etapa de realização. Foi aplicado um questionário cujo objetivo maior foi
construir o perfil dos estagiários, futuros professores de língua portuguesa do Estado do Ceará. Também
está sendo realizado um grupo focal na turma de estágio de leitura e a gravação das oficinas de leitura
realizadas pelos alunos da referida disciplina.
Da reflexão sobre a transposição didática à reflexão sobre a leitura e a escrita em
sala de aula de línguas: por uma engenharia didática integradora

O "discurso fundador" da transposição didática nos chega através de Chevallard


na sua obra "A transposição didática" (1985). Essa teoria coloca como central a
problemática do estatuto dos saberes de origem, assim chamados de "savoirs savants"2,
oriundos de uma produção científica. No entanto, como colocam Chevallard (1985) e
Bronckart (1989), a legitimidade desses saberes não se dá pela qualidade da sua
produção, mas por um processo de valorização sócio histórico e cultural.
Colocamos como chave de leitura dessa conceituação o fato da sociedade ter se
dado conta de que o saber científico e instrumental (no sentido de Habermas) não dá
conta da preparação necessária que os aprendizes devem receber para, ao término do seu
percurso escolar, se inserir nas práticas sociais. A ampliação dos saberes escolares se dá
não por um aprofundamento nos chamados conceitos científicos, mas por uma expansão
dos saberes escolares para o campo da prática, das relações e das situações-problema
que são abordadas a partir de uma perspectiva hermenêutica e social.
Chevallard (1985) defende que as reformas advêm da obsolescência dos
conteúdos a ensinar, a partir da evolução dos saberes científicos que lhes dão origem e
mais ainda, da mudança do estatuto praxiológico desses saberes, isto é, de como eles
são utilizados pela sociedade e do quanto e como são valorizados. Entretanto, a
realidade das tradições escolares (Schneuwly, 2010) nos mostra que, a exemplo do
ensino de línguas, práticas de ensino seculares se perpetuam, apesar das descobertas
científicas.
Dessa forma, não é apenas o afastamento dos saberes a ensinar dos seus
correlatos científicos que geram a mudança ou a necessidade de renovação dos
processos de transposição. São necessárias condições políticas, ideológicas e
metodológicas. A premência de uma transformação na utilização do conhecimento para
a inserção do aprendiz nas diversas práticas sociais promove, de forma muitas vezes
mais influente, a transformação das configurações dos diversos saberes a ensinar.
A partir disso, analisa-se a complexa tessitura de uma convivência de finalidades
da transposição didática. Ao tomarmos o ensino de línguas como foco, percebemos que,
notadamente, as descobertas advindas das pesquisas sobre a aquisição das capacidades
linguístico-discursivas foram muitas vezes "cooptadas" pelas práticas tradicionais
deensino e reduzidas na sua efetiva utilização.

                                                                                                                       
2
 “Saberes  científicos”  em  uma  tradução  literal.  
Diagrama 3: Dinâmica das transposições didáticas adaptada de Chevallard (1985).

Na situação da disciplina Estágio em ensino de leitura, são mobilizados, pelos


futuros professores, saberes a ensinar e saberes para o ensino – de cunho científico e de
cunho empírico – adquiridos na sala de aula e fora ela. A dificuldade parece ser
justamente realizar a transposição didática de forma a ter um resultado mais produtivo e
isso envolve diversas capacidades do professor. No processo da transposição didática
são sobrepostas camadas de outras transposições nas quais as instruções dos textos
formativos e/ou prescritivos são transformadas e adaptadas a partir do seu manuseio por
professores e alunos, no chão histórico das escolas e de suas redes, assim como das
salas de aula.
Ao reconhecer o papel do repertório do professor, podemos dizer que ele e
demais componentes do corpo docente de uma escola específica não recebem o
currículo de forma passiva. Eles carregam a sua própria história de aprendizado e de
construção de uma tradição escolar. Além disso, as condições específicas de cada
escola, da cada grupo de alunos e de cada aprendiz influenciam as decisões dos
professores enquanto realizam camadas sobre camadas de adaptações, transformações e,
por assim dizer, transposições entre saberes. Os critérios utilizados se legitimam, nesse
momento, a partir das representações de cada professor em relação ao objeto de
conhecimento, ao que ele ou ela julgam essenciais que o aluno aprenda.
A partir dos questionários aplicados e da observação feita em sala de aula,
constatamos que se a visão de linguagem de um professor está calcada na norma
gramatical, se para ele o objeto de estudo central da língua continua sendo a palavra e a
frase, ele dificilmente partirá do texto ou do discurso como elementos centrais. Mesmo
que esse professor passe por uma formação e uma atualização perante os saberes
científicos da linguagem, passando a legitimar uma visão diferente da que tinha antes,
ainda assim, tenderá a um sincretismo entre as suas representações consolidadas e as
novas significações para o qual tiver sido sensibilizado. Tais reflexões ratificam a
complexidade da situação porque trazem em evidência outras questões, como por
exemplo, a escolha dos livros didáticos e também a utilização dele. Neste material, a
aproximação de saberes continua sendo determinada e adaptada ao tempo e espaço
escolares. Ela se apresenta e se representa no discurso do professor e nos gêneros que
ele produz no seu trabalho didático: o gesto didático, as institucionalizações, as
reformulações, as consignas e comandos, as tarefas e exercícios propostos, cada um
desses gêneros é a construção de uma prática e de um nível determinado de
transposição, o nível dos saberes efetivamente ensinados.
Professores de uma mesma escola constroem visões diferentes, representações
diversas dos objetos de saberes a ensinar. Adotam significados distintos atribuindo
importância maior ou menor a aspectos díspares de um mesmo elemento como a leitura
ou a produção de textos. Assim, o ensino de determinado tópico textual, estrutural ou
discursivo passa a depender do que o professor acha relevante enquanto sua própria
compreensão acerca do seu objeto de ensino. Ainda dentro dessa reflexão, entra em
evidência o dever-fazer, a esfera de legitimação que o professor cria em torno dos
saberes e dos seus elementos, ditando as suas escolhas didáticas. Além dele, há o poder-
fazer, aspecto prático,as restrições de tempo, espaço e de condições de realização do
trabalho escolar, os impedimentos em confronto com as intenções e o querer- fazer
(LEURQUIN: 2013), modalizando o agir professoral. Cada aumento ou diminuição na
pressão exercida por essas restrições leva o professor a opções diferentes e heterogêneas
em relação aos objetos de saber.
Todos esses desafios trazidos pela questão da transposição didática nos fazem
acreditar que é preciso estabelecer critérios e práticas de referência para que os
professores organizem de forma mais efetiva o ensino e a aprendizagem de leitura e da
escritura enquanto processos inter-relacionados de aproximações sucessivas à língua em
uso e ao uso da língua.
Fazer a devida conexão entre a atividade de linguagem, ligada às práticas sociais
reais e a atividade pedagógica é algo essencial. Na verdade, somente abordando a
linguagem como ação humana, histórica e situada (BRONCKART, 2007) temos a
possibilidade de fazer com que os alunos sejam actanteslinguageiros. Isto significa,
necessariamente, fazê-los perceber que é preciso produzir textos para conseguir
mover as pessoas e o mundo (CARNEIRO, 2011). Além disso, é necessário que
aprendam a usar seus textos para agir em todas as dimensões da vida. Entretanto, para
alcançar essa proposta, há muito o que se transformar no agir escolar.
Partindo do princípio de que devemos promover o desenvolvimento da
competência discursiva do aluno (PCNs, 1998), levando em consideração, ao mesmo
tempo, as situações de produção, o uso social da linguagem e a estrutura dos textos que
circulam socialmente, percebe-se a necessidade da escolha de um conceito unificador.
Na perspectiva sociodiscursiva, a categoria de gêneros textuais tem essa condição de
servir como ponto de referência para a articulação didática. Segundo Schneuwly e Dolz
(2004, p.172), “Se os textos constituem, em nosso procedimento, os objetos concretos,
empíricos, sobre os quais os alunos trabalham em sala de aula, o gênero de texto define
a unidade de trabalho que articula esses objetos em um todo coerente.”
Fica, portanto, caracterizada a centralidade dos gêneros textuais para o ensino-
aprendizagem de língua materna, objetivando um ensino mais produtivo e que
realmente forneça as bases para o exercício da cidadania aos usuários da língua. A
criticidade defendida pelos PCN’s não se incorpora somente perante as situações
sociais, mas ante a própria língua, introduzindo conceitos sociolinguísticos, como o de
variação, e chamando atenção para a pluralidade de usos.
Os gêneros são, portanto construtos medianeiros entre os enunciados estáveis e
indexados socialmente e os textos empíricos singulares. Sua centralidade no ensino de
língua materna justifica-se por permitirem a transposição entre o mundo da vida e o agir
escolar. Cristovão e Nascimento (2005, p. 47), ressaltam:

O domínio dos gêneros se constitui como instrumento que possibilita


aos agentes produtores e leitores uma melhor relação com os textos,
pois, ao compreender como utilizar um texto pertencente a um
determinado gênero, pressupõe-se que esses agentes poderão agir com
a linguagem de forma mais eficaz.

A linguagem tem caráter de megainstrumento, pois não medeia apenas a


comunicação humana, mas permite a organização do pensamento, e a complexificação
dos construtos e processos sociais. Na perspectiva Interacionista, a atividade é mediada
por objetos específicos, socialmente elaborados (instrumentos), frutos das experiências
das gerações precedentes, por meio das quais se transmitem e se alargam as
experiências possíveis.
Os instrumentos encontram-se entre o indivíduo que age e o objeto sobre o qual
ou a situação na qual ele age. A intervenção do instrumento nessa estrutura diferenciada
dá à atividade uma certa forma; a transformação do instrumento transforma as maneiras
de nos comportar numa situação (SCHNEUWLY E DOLZ, 2009).
O instrumento, para se tornar mediador, precisa ser apropriado pelo sujeito; ele
não é eficaz senão à medida que se elaboram, por parte do sujeito, os esquemas de sua
utilização. Esses esquemas de uso são plurifuncionais: por meio deles, o instrumento faz
ver o mundo de uma certa maneira e permite conhecimentos particulares do mundo.
Enfim, o instrumento serve para realizar determinadas ações, mas ao mesmo tempo
orienta, define, limita e expande estas ações.
Dessa forma, não se pode separar o desenvolvimento linguístico do discursivo.
A esse aprimoramento das habilidades humanas, na e pela linguagem, chamamos de
desenvolvimento linguageiro, pois é sempre situado no aqui agora das relações. Tal
perspectiva justifica-se não somente por uma tomada de posição epistemológica
específica, mas pelo próprio estatuto duplo da linguagem: ao mesmo tempo em que é
produto da ação humana, a linguagem organiza e orienta as interações, pois codifica os
pré-construtos históricos que permitem a ação comunicativa. Citamos Bronckart (2004,
p. 29):

[...] o ensino de línguas deve formar o aluno para a maestria em


relação aos modelos pré-existentes, mas também deve,
progressivamente, e explorando a reflexividade dos alunos,
desenvolver suas capacidades de deslocamento, de transformação dos
modelos adquiridos.

A proposta dos PCNs para o ensino da Língua Portuguesa baseia-se também na


tríade a seguir: leitura/escuta de textos escritos e orais; produção de textos e análise
linguística por meio dos textos produzidos pelos alunos (SANTOS, 2005). O objetivo é
promover no aluno a reflexão contínua sobre o uso da língua. Por conseguinte, parte
importante dos PCN’s, demanda um trabalho com o texto dos próprios alunos, a fim de
que eles percebam não somente que a língua não acontece em termos abstratos, mas
num estado de produção comunicativa e complexa.

E sobre a estreita relação leitura e produção e as funcionalidades da leitura, o quê


ainda podemos dizer?

No momento da leitura, observamos o contexto de produção e também os níveis


do tipo composicional, do tipo enunciativo e do tipo semântico representados pelo autor
em seu texto. Lemos por muitas razões, em lugares diversos, sozinhos ou
acompanhados, com objetivos conscientes e determinados ou não. Lemos por prazer ou
obrigação. O tempo e o lugar da produção do texto lido e da sua circulação, seus
emissores e suportes físicos são analisados, em se tratando da leitura em situação de
ensino e aprendizagem, a fim de criar um espaço praxiológico, ou seja, um espaço de
reflexão das práticas sociais. Essa reflexão complementa-se a partir da análise e do
confronto das representações sociossubjetivas do autor do texto lido e dos leitores que
as resignificam com suas visões de mundo, de pessoa humana e de valores e normas
sociais que servem de porta para entrar e ir além do texto. Nesse jogo interativo, o
humano se humaniza a partir do contato com obras culturais (DURKHEIM,
2006[1898])e com as avaliações e ressignificações que são feitas dessas obras culturais.
Entendemos que o texto lido foi antes gestado em um contexto específico,
conectado a uma ou a várias práticas sociais. Portanto, ele faz parte de uma rede
discursiva em construção. Acessar essas práticas é a chave de leitura proposta pelo
interacionismo. Entretanto, esse acesso deve gerar de forma imediata e simultânea uma
reflexão sobre a obra cultural (texto) e sobre a(s) prática(s) que nela se refletem. Nisso
consiste, o cerne da leitura crítica: deixar aberta a possibilidade de concordância ou não,
de (re) avaliação ou mesmo de (re) construção das práticas e representações sociais
trazidas no texto.
Portanto, entender uma aula de leitura interativa, nessa perspectiva, além de
considerar os níveis já citados, também há necessidade de permitir a “colocação em
cena” de atividades formativas genuínas e, no caso deste trabalho, de práticas de leitura
em sala de aula que exerçam de maneira sistemática e aberta a função de preparar
actantes linguageiros, isto é, pessoas capazes de perceber a língua não apenas como
conjunto idealizado de normas, mas que a utilizem pragmática e conscientemente,
na medida do possível, para entrarem e participarem do fluxo comunicativo
humano (CARNEIRO, 2011). É possível observar esse desdobramento da leitura em
situações específicas da produção. No texto que segue, escrito por um aluno de seis
anos, constatamos a valorização feita da leitura de textos da internet, a presença assim
das leituras prévias feitas; de representações sobre esse lugar e da utilização dessas
leituras.

Figura 1. Texto de aluno do 1º ano do Ensino Fundamental.


Apresentamos abaixo a caracterização do contexto de produção
(BRONCKART, 1999) do texto apresentado na figura 1. Logo após refletimos sobre as
representações acerca das funcionalidades da leitura emanadas pelo aluno-autor.
Em relação às coordenadas físicas, temos que o texto foi produzido no dia 14
de setembro de 2011, durante uma aula de produção escrita mediada pela professora
regente em uma escola privada de ensino básico, mais especificamente com um grupo
de alunos do 1º ano do ensino fundamental (tempo/espaço de produção). O produtor
do texto foi uma criança de seis anos no contexto de uma turma de 12 alunos
(emissor/produtor), tendo como potenciais leitores a professora-regente, os demais
alunos da sua turma e da escola, pois o texto foi publicado no mural de textos no pátio
da instituição e finalmente os pais do aluno que receberam uma cópia quando da reunião
de pais e mestres (receptor).
Do ponto de vista das coordenadas sociossubjetivas, trata-se de uma escola
privada em que estudam alunos de classe média de uma cidade de grande porte (espaço
social). A turma de alunos estava em meio a uma campanha de preservação ambiental e
haviam passado o semestre realizando discussões e trabalhos sobre o tema o lixo e a
poluição (momento histórico-social). O aluno-autor é oriundo de uma família de pais
com nível superior e estuda na escola desde um ano de idade, estando familiarizado com
o tema debatido na campanha realizada uma vez por ano (enunciador ou estatuto
social do emissor). A escrita do texto foi motivada pela consigna da professora que em
meio a uma campanha de preservação da natureza, pede aos alunos que criem uma
história a partir de um desenho (ver figura 1) incluindo a temática do lixo e da poluição
(propósito comunicativo). O aluno/autor escreve no intuito de atender a consigna da
professora, endereçando-se a seus pares – partilhadores do mesmo estatuto social-, mas
também para adultos que são referência na sua vida: seus pais e a professora-regente
(destinatário ou estatuto social do receptor). Tendo esclarecido o contexto de
produção do texto, podemos passar à análise de seu conteúdo e das representações nele
contidas.

Muito se pode dizer da relação leitura e produção de textos observando a


produção exposta, mas pontuamos a função da leitura registrada pelo aluno-autor,
quando ele propõe que o protagonista da história utiliza o computador (ou – sub-
repticiamente – a internet) como fonte de leitura, com a função de obter informações,
vejamos:

<< Então ele pensou: Vou pesquisar no computador sobre o fim do mundo. Ele
descobriu que o lixo mata os peixes >>.

No trecho selecionado acima o aluno-autor revela a sua representação acerca das


práticas de leitura e se remete a dois fatores: à fonte da leitura para a referida ação da
personagem e à função da leitura realizada. Fica evidente que o aluno-autor refere-se ao
“ler para saber”, ler para obter informações sobre fatos e conceitos, mas também para
ter acesso a conhecimentos relevantes para compreender um mundo que não é só
ontologicamente dado, mas historicamente construído e gnosiologicamente
representado.A importância dessa função da leitura não está só no repertório de leitor
construído e em construção, mas também na análise das fontes físicas e discursivas
desse saber. Há uma discussão que pode ser feita com relação à “pesquisa” realizada no
computador e não na biblioteca. Podemos presumir que, para o aluno-autor, a internet
não é apenas um lugar físico de leitura, mas é um lugar “legítimo”. Além disso, o “Ler
para saber”, da forma como foi colocado pelo aluno-autor, denota uma reflexão sobre
a natureza e funcionalidade do conhecimento. O saber, não representa apenas um valor
em si, mas um critério para o agir: a análise das consequências de uma prática social.
Caracteriza-se, na sequência o “Ler para decidir”. Os textos e a sua leitura são capazes
de fornecer o arcabouço necessário para decisões que não são meramente lógicas, mas
cuja validade se encontra no consenso ou na força de certos discursos. O saber deve ser
lido como fonte de validação deôntica, ou seja valorativa, deve ser conectado à reflexão
acerca de normas de convivência sociosubjetivas.
No trecho a seguir encontramos duas outras funcionalidades da leitura ilustradas
no discurso do aluno, a saber, ler para discutir e ler para ser:

<< João viu que estava errado e chamou todos para reciclar o lixo do planeta>>

A leitura com a função de “Ler para discutir” é representada como fonte de


argumentos para serem postos em debate. A leitura interativa que propomos busca criar
o espaço de diálogo necessário para a troca de informações e representações coletadas,
surgidas e ressignificadas através dos textos propostos. Revela-se nessa conexão entre
leitura e diálogo o “Ler para ser”. A leitura como processo de inserção no fluxo
comunicativo humano, dos discursos que circulam e revelam práticas, valores e
ideologias. Nesta perspectiva, ela deve ser fonte de reflexão sobre si, sobre os outros e
sobre o mundo, não apenas como uma porta de entrada e de entendimento de como as
“coisas funcionam”, mas de como podem ser transformadas. No quadro que segue,
podemos vislumbrar funções da leitura. Ler para entrar no fluxo linguageiro
humano, de forma a contemplar os papeis representados pelo autor e pelo leitor,
considerando o contexto de produção e os níveis composicional, enunciativo e
semântico, implica em também considerar que a leitura possui funções.

Ler para discutir Ler para entrar no


Ler para decidir fluxolinguageiro humano,
Ler para ser participando de forma ativa do
Ler para saber funcionamento coletivo das
  práticas sociais.
Diagrama 1: Dimensões da leitura no fluxo linguageiro.
 

A percepção da leitura como atividade dialógica só é possível se nos


sustentarmos numa teoria do convívio social na qual o ser social, ou seja, o outro ou os
outros com os quais nos relacionamos sejam reconhecidos como fontes discursivas.
Essa relação com o outro evoca uma relação com o próprio eu. Para Voloshinov
(1934[2007]: 35), “ao tomar consciência de mim mesmo, eu tento olhar para mim pelos
olhos de outra pessoa”.
Ao promover essa mudança no olhar que educador e aluno têm sobre suas
interações verbais, é possível perceber o caráter de novidade em cada enunciação,
inclusive nos textos propostos para leitura. O primeiro passo para o desenvolvimento de
leitores ativos e participativos é reconhecer a necessidade de interagir com o outro –
sejam os fisicamente presentes na sala de aula ou os outros trazidos no texto. Sem essa
tomada de consciência o que lemos não tem sentido.
Ao reconhecer a importância da leitura e ao compreender que quem lê está em
tentativa de comunicação, é possível também compreender que a expansão da leitura
como atividade didático-pedagógica não se relaciona somente com o aprendizado da
língua materna. Ela é ponte para as demais áreas do saber e para os objetos de ensino-
aprendizagem escolhidos como relevantes do ponto de vista curricular.
“A linguagem tem um importante papel no processo de ensino, pois
atravessa todas as áreas do conhecimento, mas o contrario também
vale: as atividades relacionadas às diferentes áreas são, por sua vez,
fundamentais para a realização de aprendizagens de natureza
linguística.” (PCNs,1998: 50)

É papel da escola mostrar que leitura vai além da aula de língua portuguesa. Isso
por si só já mostra a sua amplitude e complexidade. Ela vai além do uso cotidiano e
costumeiro dos alunos. Colocá-lo em contato com a leitura e fazê-lo leitor em contextos
mais amplos e complexos é uma tarefa a realizar. Para isso, a escola tem de promover o
acesso à leitura em práticas ainda não acessíveis aos alunos, mas cujo conhecimento
lhes permitirá participar dos mundos da cultura, do trabalho, do lazer e de tantos outros
que perfazem o conjunto das “obras culturais” (Durkheim, 1898) humanas “Práticas que
partem do uso possível aos alunos e pretendem provê-los de oportunidade de
conquistarem o uso desejável e eficaz”. (PCNs, 1998: 22)
Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer a escola, seus instrumentos (livro
didático, biblioteca) e suas estratégias (clube de leitores, projetos de leitura, formação
de leitores literários) como contexto principal de acesso à escrita mais complexa e às
práticas de valorização da leitura.É crucial, por outro lado, colocar nesse debate sobre o
perfil do aluno-leitor a questão da impossibilidade do “grau zero de letramento”. De
fato, a maioria das práticas sociais atualmente faz uso da linguagem escrita na sua
constituição, execução ou reprodução. Dessa forma, mesmo que o individuo não tenha
tido acesso a escolaridade formal, o fato de estar imerso nessas práticas exige e ao
mesmo tempo proporciona algum grau de letramento.
Essa mesma conjuntura faz com que práticas mais sofisticadas de produção e
circulação de conhecimento e da própria produção econômica e cultural se tornem mais
complexas exigindo um grau maior de letramento e abrindo um “fosso cultural-
linguageiro” entre os participantes mais preparados em relação às capacidades
linguístico discursivas e aqueles que ainda não tiveram aceso ao desenvolvimento
dessas capacidades.
Ao retornar à questão que intitula este item, ratificamos nossa posição sobre a
relação entre a produção e leitura de textos. No tocante à habilidade de produzir,
alinhamos aos PCNs quando afirma que “Produzir linguagem significa produzir
discursos. Significa dizer alguma coisa para alguém, de uma determinada forma, num
determinado contexto histórico.” (PCNs, 1998: 25). No que concerne à leitura, é preciso
que o aluno sinta-se parte dessa interlocução, ciente de seu papel no conjunto de
possíveis destinatários de determinando texto.
Nossa proposta para o ensino-aprendizagem de língua materna em situação de
leitura e de produção de texto passa pelo encaminhamento de alguns pressupostos
teóricos que fazem a junção entre o mundo do currículo escolar e o que tem se
produzido acerca de uma perspectiva interacionista da língua. Além disso, é necessário
organizar o trabalho escolar de modo a garantir essa dimensão dupla do agir formativo
escolar.
O primeiro pressuposto é o da complementaridade entre leitura e escrita. A
leitura e a produção de textos são dimensões complementares da atividade linguageira.
Uma não subsiste sem a outra e, na escola, devem ser trabalhadas de forma conectada,
como as diversas camadas de um folheado, que se sobrepõem e formam um único
objeto. Não existe leitura “passiva” na perspectiva de um mero “recebimento” de uma
mensagem. Da mesma forma, não há escrita que não brote de experiências de uso da
linguagem anteriores, principalmente das atividades em que lemos os textos que
circulam socialmente.
Entretanto, deve-se trabalhar de forma crítica essa relação entre leitura e
produção. Ambas exigem, quando da organização do trabalho pedagógico a ênfase em
diferentes habilidades, relacionadas principalmente aos objetivos distintos que
envolvem as dimensões praxiológicas. Lemos para determinados fins, escrevemos com
outros objetivos, mas tanto lemos quanto escrevemos textos em forma degêneros.
Um terceiro pressuposto é o da obrigatória interface entre as modalidades oral e
escrita da língua e entre as diversas modalidades e canais de textualização verbal e
semiótica. As atividades de leitura e produção textual envolvem a manipulação das
modalidades orais e escritas de uma língua natural, ou seja, o trabalho de ler e produzir
textos orais e escritos. Os aspectos da multimodalidade e multicanalidade também são
essenciais na compreensão da que seja ler e produzir textos. No quadro sinótico abaixo
apresentamos gêneros textuais que na sua produção envolvem o entrelaçamento entre as
modalidades verbal e imagética da produção semiótica, assim como a utilização de
canais múltiplos de propagação e de suporte textual.

Quadro 1: Multimodalidade na produção e leitura de textos

Na impossibilidade de tratar de todas as particularidade, trazemos uma pintura a


do artista americano Norman Rockwell que nos mostra de forma clara a interface texto-
imagem e também uma experiência de leitura. A pintura ganha um novo sentido ao
tomarmos conhecimento do título dado a ela pelo artista: "Ele será mais alto do que o
pai". Enquanto a figura perpassa a semiotização da prática de acompanhar o
desenvolvimento infantil, representada pelas marcas de altura, o título permite a
introdução de um caráter temporal em que vislumbramos uma criança anterior (o pai),
suas marcas de crescimento, e o filho, futuramente talvez, mais alto ou indo mais longe
do que o pai. A relação texto-imagem permite a subsunção de representações sociais,
coletivas, acerca da hereditariedade, relação pai e filho, crescimento etc.

Figura 2: “He’s going to be taller than dad” (Norman Rockwell)


Entretanto, se observarmos o contexto de produção e circulação da imagem-
texto, perceberemos a sua inserção em uma prática social específica. Publicada em um
anúncio de remédios para o crescimento (Uptown John, similar ao brasileiro Biotônico
Fontoura). Esse conhecimento leva a outra série de possíveis significações a serem
reconstruídas na análise do contexto de produção.

Figura 3: Anúncio no qual foi originalmente publicada a pintura citada na figura 2


Finalmente, uma engenharia didática para o ensino e a aprendizagem de língua
materna há de ter os textos/discursos no seu centro, trabalhando o texto a partir da sua
situação de produção (BRONCKART, 1999) e da atividade humana que o engendra. É
fundamental partir das práticas humanas, da vida vivida pelas pessoas, do que os textos
permitem ou não fazer.
A seguir apresentamos um diagrama em que ressaltamos essa centralidade
textual. Ressaltamos a necessidade de contemplar o texto verbal e não verbal, de
respeitar as multimodalidades, mas aqui nos concentramos em questões próprias da
língua. Uma língua não é a coletânea de um sistema lógico, mas a realização em forma
de texto das capacidades humanas de utilização praxiológica da realidade linguística
que em última instância constitui o próprio humano, possibilitando a consciência sobre
o seu próprio agir e ser no mundo.

Diagrama 2: Frentes de trabalho com a língua materna em sala de aula.

Evidentemente que a tarefa é complexa, pois propõe a integração do trabalho


com a linguagem a partir de um objeto concreto: o texto e os sentidos que ele engendra
na cadeia enunciativo-dialógica na qual é gerado também considerando seu contexto de
divulgação. Sem acesso ao contexto, não se tem acesso ao sentido do texto de forma
mais significativa. Porém, é necessário conhecer os limites que cada língua natural
impõe. Os gêneros, esses verdadeiros "moldes instáveis", permitem a troca de
expectativas entre quem produz o texto e seus destinatários. Ao escolher um e-mail e
não uma carta escrita ou um manifesto está se fazendo opções linguísticas que afetam o
próprio sentido e eficácia do que se deseja alcançar com determinada mensagem. Saber
caminhar por essa realidade fluida dos gêneros é que constitui o desenvolvimento de
actantes linguageiros. Tais questões devem ser consideradas na escola.
A leitura e a distopia da tradição escolarizante

Bem sabemos que nós nos comunicamos a partir de textos construídos com base
em propósitos comunicacionais. Portanto, o principal objetivo da aula de língua
portuguesa deveria ser ampliar as competências comunicativas dos alunos. Dessa forma,
estaríamos contribuindo para que eles pudessem interagir nos grupos sociais dos quais
fazem parte de maneira mais significativa, produtiva, de forma a assegurar sua
identidade e poder assumir seus direitos e deveres de cidadão. Essa inserção linguageira
produtiva se dá através de textos. Com base nessa compreensão,ratificamos a
necessidade de um ensino e aprendizagem de línguas a partir de textos(com base em
gêneros textuais) e não de frases.
A reflexão-ação linguageira acerca do texto, tendo em conta o gênero a que ela
pertence, se realiza tanto na sua produção (gênese) quanto na sua leitura de forma a
contemplar diversos níveis de análise. De acordo com Machado e Bronckart (2009),
esses níveis devem abrangero tipo organizacional, o tipo enunciativo e o tipo semântico,
tendo como ponto de partida o propósito comunicativo definido no contexto de
produção3.
O desenho de aula comunicativa aqui proposta visa à promoção de
transformações sociocognitivas no funcionamento psicológico do aluno, a partir do
exercício interativo de reconstrução de sentidos. Para planejar essa aula sugerimos uma
concatenação de abordagens teóricas. Em primeiro lugar a proposta desenhada por
Cicurel (1992) e redefinida por Leurquin (no prelo) para uma aula interativa de leitura, a
qual consideramos coerente com as orientações dos parâmetros curriculares nacionais
para o ensino e a aprendizagem da língua materna, preconizando a interação como meio
de desenvolvimento. Do ponto de vista linguístico-discursivo, baseamo-nos na releitura
feita do quadro teórico e metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo realizada por
Machado e Bronckart (2009)4. Tais perspectivas teórico-metodológicas são clarificadas
a seguir.
Em relação ao arcabouço de uma aula comunicativa de leitura (CICUREL,
1992), apresentamos as seguintes etapas. A primeira etapase caracteriza como o
momento em que o professor deve orientar e ativar os conhecimentos préviosde seus
alunos-leitores, pois isso facilitará a leitura. Para isso o professor pode utilizar
trêstécnicas: 1) fazer questionamentos para ativar seus conhecimentos prévios sobre o
tema tratado no texto; 2) acionar cenários guardados na memóriado aluno-leitor para
que o professor possa dessa maneira estabelecer relações “usando a memória episódica
do aluno” e 3) fazer associações de ideias partindo de palavras-chave. Essa etapa é
considerada de pré-leitura e deve acontecer antes mesmo do professor entregar o texto
aos alunos. Acreditamos que essa etapa tem um papel fundamental para o bom
andamento da aula de leitura porque assumindo o papel de mediador o professor poderá
mobilizar o querer-ler. Na segunda etapa, temos ummomento de observação e
antecipaçãodo conteúdo e da função do texto. O professor deve fazer com que seus
alunos-leitores se familiarizem com o texto; isso pode ser feito a partir de uma rápida
                                                                                                                       
3
O nível do tipo organizacional é constituído pela infraestrutura (tipos do discurso, tipos de sequências e
plano geral do texto) e pelos mecanismos de textualização (coesão nominal e verbal e conexão); o nível
do tipo enunciativo, pelos mecanismos enunciativos (índice de pessoa, modalizações e vozes); e o nível
do tipo semântico, pelas figuras de ação, intenção, pelos motivos, recursos para o agire tipos de agir.
4
Para melhor conhecer a proposta de análise de gênero da escola genebrina, é preciso ter acesso ao livro
Atividade de linguagem, texto e discurso: por um interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 1999).  
leitura. Esse momento ainda é considerado como de mobilização, pois assim como a
primeira etapa está relacionado com os conhecimentos prévios dos alunos-leitores. Ele é
importante para observação e constatação dos elementos contextuais e nos possibilita
entender o gênero textual e os posicionamentos discursivos posteriormente estudados.
Aterceira etapa aponta para o ato de ler com objetivo. Para tanto, é necessário
que façamos uma leitura criteriosa do texto. Nesse momento, o professor deve pedir que
os alunos-leitores observem a comprovaçãoou não das hipóteses levantadas nos
momentos anteriores. Para alcançar esta etapa, Cicurel (1992) sugere seis entradas ao
texto que Leurquin (no prelo) agrupa em três, partindo do contexto de produção. Para
tanto, a autora faz uso do quadro teórico do Interacionismo Sociodiscursivo
(MACHADO E BRONCKART, 2009).
No contexto de produção, são mobilizados os conhecimentos comunicacionais
que definiram a escolha do gênero em questão, o conteúdo da interação e os
posicionamentos do agente sobre esse conteúdo, numa rede discursiva que nem termina
nem tem início na referida produção textual. Por isso, não se limita nela; há um entorno
social que também mobiliza agir linguageiros outros; os mundos representados, ou seja,
o mundo físico – o aqui e o agora, e o mundo sociossubjetivo, que traz em evidência a
maneira como os agentes se representam e representam o outro a partir dos papeis
sociais assumidos.
A entrada pelo nível do tipo organizacional contempla os tipos de sequências,
os tipos de discurso e o plano geral do gênero em questão, isto é a infraestrutura do
texto, e também os mecanismos de textualização (coesão nominal, coesão verbal e
conexão). Essa entrada nos permite observar a heterogeneidade do texto, por meios das
sequências textuais (narrativa, descritiva, dialogal, argumentativa, injuntiva e
explicativa); a relação tempo, espaço e agentividade (observada nos tipos de discurso
mobilizados – teórico, interativo, relato interativo, e narração, dentro do contexto do
mundo do expor ou do mundo do narrar); e conhecer a formação macro dos gêneros
estudados (através do plano geral do texto).Noque diz respeito aos mecanismos de
textualização, ela nos possibilita compreender as relações internas do texto e a sua
progressão temática, a sua coerência.
A entrada pelo nível do tipo enunciativorealiza-se nas vozes (do autor, social e
dos personagens) e nos posicionamentos dos agentes no discurso, por intermédio das
modalizações (lógica, deôntica, pragmática e apreciativa). É na compreensão do
contexto de produção que entendemos como se posicionam os agentes no discurso e
quais as modalizações utilizadas para alcançar o objetivo comunicacional. Essa entrada
é estreitamente relacionada ao papel social e aos objetivos da ação de linguagem, isto é,
ao mundo sociossubjetivo mobilizado no contexto de produção.
A entrada pelo nível do tipo semântico tem eco nas figuras de ação
(responsáveis pela interpretação do agir), nas intenções, nos motivos e nos recursos para
o agir – que remetem às condições de trabalho do professor. Há cinco figuras de ação, a
saber, figura de ação acontecimento passado, experiência, canônica, definição e
ocorrência. Neste momento, acrescentamos à discussão os modalizadores do agir
representados pelo poder fazer, querer fazer e dever fazer, pois devem ser levados em
consideração quando interpretamos os impedimentos no agir professoral.
Finalmente, a quarta etapa é a religação e reação dos conhecimentos e
significados apreendidos no texto ou que emergem da leitura do mesmo. Ela se
caracteriza por uma reflexão profunda partindo do texto, quando o aluno-leitor deve
fazer uma leitura crítica do texto.Nessa fase, é preciso que o professor seja capaz de
aproveitar o conhecimento de mundo do aluno não mais como subsunçor, mas como
critério de validação (ou não) dos discursos, dos posicionamentos e das vozes presentes
no texto.
O conceito de leitura crítica que aqui colocamos está ligado à capacidade de
relacionar, interagir o que é dito (ou não dito, apagado) no texto aos mundos físicos e
sociossubjetivos do grupo social no qual se vive. A leitura se realiza na interação entre o
autor, via texto, e o leitor, acionando e ressignificando os conhecimentos previamente
adquiridos e os conhecimentos em jogo no texto. Além disso, há os objetivos da leitura,
as particularidades do agir comunicativo. Não basta apenas ler, é preciso se posicionar
de forma crítica. O aluno-leitor crítico é instado nessa etapa a comparar, confrontar as
representações colocadas no texto empírico com as suas representações e as de seus
colegas. Comparar modos de ser, de fazer, de sentir, de avaliar a pessoa humana, suas
relações e o mundo social e físico. Acrítica é vista como colocação do discurso em meio
às cadeias enunciativas reveladoras das identidades, principalmente através do conflito,
das diferenças entre critérios e representações (WODAK, R.; MEYER, M., 2009).
Azevedo (2011) ilustra nossa concepção de leitor crítico através da voz emanada
de uma das professoras entrevistadas em sua pesquisa sobre o seu agir professoral em
situação de leitura5:

<<Quando você tá questionando o conto de fadas,


tem criança que surpreende a gente com
perguntas que foi além do que eu esperava,
[pausa] mas ela identifica o fato ali que às
vezes tem a ver com a realidade dela (…) Ééé a
questão d’Os três porquinhos, uma vez contando
sobre moradias, né? E: é é , com isso, era como
seo Palhoça e o Maderola fossem preguiçosos que não
pudesse fazer uma construção de tijolo. É é a
realidade deles, então (…) questionou. (…) Aí ela
foi e disse “ele não é preguiçoso” (…) “nem sempre
é preguiçoso” porque o pai dela não tinha uma casa
de tijolo porque não tinha dinheiro, tava
desempregado, não tinha dinheiro pra fazer uma casa
de tijolo. Foi além da minha expectativa (…)
Pronto, aí essa criança é uma criança leitora? É.
(…) Ela é mais alfabetizada do que uma criança que
escreve tudo direitinho, mas não é capaz de dizer
nada.>>(AZEVEDO, 2011, p. 52)

As entradas anteriormente descritas contribuem sobremaneira para o


planejamento da aula de leitura, dando condições ao professor de, a partir de entradas
possíveis no texto, elaborar uma atividade de leitura. Cada entrada possibilita um leque
de oportunidades de entradas no texto, a depender dos objetivos do professor em sua
turma, das condições de leitura e do planejamento feito. Todavia, é na última etapa da
aula interativa, comunicativa de leitura que podemos observar com maior clareza o
papel do professor enquanto um formador de leitor crítico porque não se trata mais de
                                                                                                                       
5
Pesquisa realizada no âmbito da linha de Análise do discurso do PPGL/UFC, por Jamylle Sales de
Azevedo acerca dos discursos sobre a leitura e orientada pela Professora Izabel Magalhães. Na pesquisa
foram entrevistadas 6 professoras do 3o ano do Ensino Fundamental de 2 escolas de Fortaleza/Ce.
 
uma compreensão leitora do professor nem de cada aluno em questão, mas de uma
compreensão coletivamente construída.
Nessa perspectiva, o professor tem o papel de leitor mais experiente, mediador
na construção dos significados no espaço de formação do aluno leitor crítico. Esta etapa
converge com a proposta de modelo de aula de leitura feita por Braggio (1992). A
autora denomina de modelo psicossociolinguístico de leitura e a prática leitora de novo
evento. Como defendemos, tal modelo focaliza o professor como um formador de leitor
(LEURQUIN 2001), com um papel fundamental na mediação da reconstrução do texto.
A leitura não pode se reduzir ao literário, pois nem todo texto é arte, é
revolucionário ou universal. A pluralidade de textos que circulam socialmente deve ser
objeto do agir pedagógico e com isso incluir as práticas sociais que geram os artigos de
opinião, as notícias, os panfletos e peças publicitárias, as receitas, as regras de jogos, as
cartas. Além disso, o trabalho de formação de leitores que permite o "ler para ser" e
não somente para conhecer precisa ser acionado sistematicamente.
No que diz respeito à produção, é preciso insistir na garantia da funcionalidade
social do que se produz. Ter consciência de que se escreve para alguém, a partir de
determinada posição e com um objetivo específico. Partir do nada é produzir o
nonsense, o descalabro torturante das redações e composições para o professor ler.
É através do ensino vivo da língua materna, que busque refletir sobre os usos
reais dessa língua e da própria constituição humano-coletiva que ela nos permite
construir que podemos dar a nossa contribuição para o agir educativo: formar e instruir
pessoas, seres humanos capazes de gerir seu processo de desenvolvimento, construindo
acordos e interagindo nas práticas sociais. Por mais utópico que seja esse objetivo, ele
continua fazendo parte da essência do educar e das reflexões sobre o currículo e a
didática.

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