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Baczko, Bronislaw. "A imaginacéo social” In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, IMAGINAGAO SOCIAL Esté na moda associar a imaginac3o e a politica, 0 imaginario e o social. Estas associagdes ¢ os problemas que elas traduzem tem feito uma carreira rapida e brihante, quer nos discursos politicos e ideolgicos, quer-nos das cineias humanas, Qual é 0 partido que nao se reclama hoje da imaginagao politica e social de que da provas? A imaginacdo propria ¢ exaltada, enquanto é denuaciada asia auséncia ou a sua medioeridade nos adversirios. Os meios de conuicagio de massa contribuiram de maneira particular para a inflagao destes termos. Néo param de repetir que € preciso imaginagdo social para controlar o futuro, para enffentar problemas e conflites inéditos, para se adaptar ao “choque do futuro", etc. Os actores politicos, em especial os “chefes”, sto julgados nfo s6 pelas suas competéncias, mas também ‘pela Jmaginaodo politica e social que Ihes ¢ atribuida ou recusada, discurso contestatério do ano de J968 é um exemplo flagrante desta deslocacio da imaginagdo no campo discursive. Lembramo-nos ainda das inscrigBes que ormavam as paredes de Paris: “A imaginagdo no podem: “Sejamos realistas, exijamos 0 impossivel”. Aquilo que chama a atengo nestes slogans no ¢ apenas um destize seméntico, que nfo nos deve admirar se tivermos em conta a historia desta palavra cuja polissemia é notéria, ‘A associagdo entre imaginacao « poder continha algo de paradoxal, ou mesmo de provocatério, na medida em que um fermo, cuja acepcdo corrente designava uma faculdade pprodutara de ilusdes, sonhos e simbolos, e que pertencia sobretudo a0 dominio das artes, irrompia agora num terreno reservado as coisas “sérias” e “reais”. Do mesmo passo, estes slogans elevavam a pripria imaginacdo ao nivel de um simbolo. Em 1968, 0 termo funciona como elemento importante de um dispositive simbolico, através do qual um certo movimento de massas procura dar-se a si proprio identidade e coeténcia, permitindo reconhecer e designar as suas recusas bem como as suas expectativas Mais surpreendente é que as referencias a imaginaggo ocupem lugar tio importante na mitologia produzida pelos acontecimentos de Maio de 1968. Nos testermunhos e memérias, Maio de 68 & frequentemente evocado como um tempo' de explosio do imaginario, como irrupedo da imaginagio na praga pibliea. Poueo importa saber se Maio de 03 foi realmente ‘muito “imaginativo”: nas mentalidades, a mitologia que nasce a partir de determinado acontecimento sobreleva em importiacia o préprio acontecimento, A mitologia de Maio de (68, sobretudo quando vivida de modo nostélgico, amplifica ainda mais 0 simbolismo de que 2 imaginacao toi carregada, Este simbolismo concentra numa totalidade a recordagio de ter vivido um sentimento de libertacio relativamente a pesados constrangimentos quotidianos, 2 IMAGINAGAO SOCIAL, ‘bem como as expectativas, muitas vezes latentes e imprecisas, de que essa ruptura se perpetuasce em sitvagdo “normal, “aao-imaginativa”. Se nos virarmos para a: ciéncias humanas, é facil verificar que a Jmaginagao, acompanhada pelos adjectives “social” ou “colectiva™, ennhon também terreno no respectivo campo discursivo ¢ que o estudo dos imaginarios sociais se tomou tum tema na moda. Av cigncas himanas mostrvam porém que, contrriamente fos slogans que pediam “a imaginagao 20 poder”, esta sempre tinha estado no ‘poder. © paradoxo apenas aparente. Os slogans exaltavam someate as fungdes Criadoras ‘da imaginagdo e, a0 investirem o termo com fungles simbdlicas, concentravam nele as aspiragdes a uma vida social diferente, oura. Os antropélogos e ‘0s s0cidlogos, os histriadores © 05 psicalogos comegaram a reconiecer, sena0.a Glescobrir. as funges miliplas © complexas que conpetem a0 imagindrio na vida coletiva e, em especial, no exercicio do poder. As ciéneias humanas punham fem destaque 0 facto de qualquer poder, designadamente © poder politico, se rodear de represeatacbes colectivas. Para tal poder, 0 demisio do imazinario ¢ do simbdlico éumimportanteIngaretratégico, Coanido, nfo era possivelinsistir nas miliplas nes do imaginiro na vida social sem por em causa uma certa tradi¢&o intelectual. Foi sobretudo na segunda metade do século xix que se afirmaram correntes do pensamento que aceitavam omo evidencins afirmagdes do gencro: “Nao sfo a0 idvine que fazem histo A histri verdadeira e real doc homens extéparaalém doe cepveceatagdes que eres tém de si proprios e para além das suas crengas, mitos e ilusdes™. Tratava-se, pois, de uma tendéncia cientista ¢ “realista” que pretendia separar na trama histérica,-nas acgdes e comportamentos dos agentes sociais, o “verdadeiro” e o “real” daquilo que em “ilério” © "quimérieo”. A operacho.cientifica era assim concebida como uma operagio de “vesvendamenta” © de “desmisificacao” ‘Retrospectivamente, hé dois clementos préprios a esta abordagem que chamam em especial a nossa atencéio. Em primeiro lugar, a confusio entre a operag3o cientifia propriamente dita e 0 objecto que ela inconscientemente constroi, E certo que £6 hd ciéncia daquilo que esta escondlido e, neste sentido, toda a ciencia & -desvendante™. Todavia, na dptica cientsta, a parte “eseondida do imaginéri <0 no se encontrava nas estruturas que 0 organizam, nem nos seus modos de fancionamento expecifices. Por detris dos imaginirios, procura-vany-e os agentes sociis, por asim dizer, no seu estado de mudez, despojados das suas miscaras, des Sts roupagens, dos seus sonhos e representagBes, ef Ora a abordagem cientista n80 observava realmente esses agentes sociais “desnudados”: era ela que os construia, Existiriam eles, alids, fora da finalidade que se propunha « propria abordagem cieatista?E singulas, também, que a tendéacia para recur 0 imaginério a tum real deformado ce impusesse a0 espirto mma época em que a produgio de ‘ideologias e mitos politicos modernos se tornava particularmente intensa, implicando desse modo a renovagao do imaginario colectivo tradicional, bem como os seus modos: de difisto, A construcao de objectos como o “homiem real” e oo “erupos sovins verdadciros’, isto &, despojados do seu imaginario, conjuga-va-se perfeitamente com 0 sonio colectivo de uma sociedade ede uma historia finalmente transparentes para os homens que as constituem, Esta conjungao, que sé @ primeira vista pode parecer paradoxal,é paticularmente nitida no caso do marxismo, a0 dal teremos oportinidade de voltaradiaste IMAGINAGAO SOCIAL ae Quanto mais no seja pela sua repeticdo, os Iugares-conmns impoem-se como coutras tantas evidencias. A carreira recente dos termos que nos interessarm aqui esté sem diva ligada a0 facto de terom sido postas em causa certas“evidencias “Sera que a ‘moda vai durar muito tempo? Treiarse-i apenas de uma moda? E demasiado arriscado avangar un progndstico. Qualquer moda é, por definicdo, um fendmeno passageiro. Pode muito bem acontecer que a promogdo simultinea da “imaginacio social” - isto €, 4a palavia e das idéias muito diferentes que evoca em virios eampos discursivos resulta apenas de um coucurso de circuastancias. E certo que nao ba impermeabilidede entre saber ¢ mentalidades. Contudo, cada um dos dominios evolui segundo seu ritmo priprio, sendo cada um deles tmabalhado pelas suas forgas e tendéncias. Aquilo que consttui actualmente um lugar de encontzo pode amanha ‘ransformar-se numa encruzilhada de que partem camniahos divergentes. Mas também pode acontecer gue uma modalidade terminologica corresponda a um indice revelador de alteragdes profundas que se esto a operar no campo do saber e/ou das mentalidades. A histona das palavras tem conbecido époeas em que elas sofrem viragens, mudando de significados e deslocando-se da “>periferia” para o “centro” de um campo discursive. Nao esté pois excluido que seja este 0 caso da “imaginagao” do “imaginario", no discurso actual das ciéncias lmmanas. Com efeito, ¢ de sublinbar que, naquele discurso, 0 “imaginério” se dissocia cada vez mais de significados tradicionais, tas como ‘ilus6ro’ ou 'quimeérico’. E também de assinalar que os termos ‘imaginagio’ e ‘imaginério' sejam cada vez mais utilizados fora do dominio a que tradicionalmente o seu uso se limitava, como seja 0 das belas-artes Seja qual for o futuro prometido ao conjunto semantico da “imaginacao", a sua historia recente revela uma problemsitica que se procure define para Lé das flutwagbes e ambigtidades semanticas. O imaginario social é cada vez menos considerado como uma espécie de omamento de uma vida material considerada como a tnica “real”. Fm contrapartda, as cigncias humanas tendem cada vez mais a considerar que 03 sistemas de imaginérios sociais 6 s2o “ireais” quando, precisameate, colocados ene aspas. E banal, por exemplo, verificar que os percursos imaginados pelos agentes socials para si prdprios e para os seus adversirios 56 raramente se cumprem. 4 posteriori, os proprios agentes ficam muitas vezes surpreeadidos com 0s resultados das suas accdes. Este desfasamento nada tra, porém, as fungdes reais desses percursos imagindrios. Pelo contrdro, apenas as pe em realee {aio discutire-mos aqui nem os limites nem as deficigneias da previsio:trata-se de outro problema). Em qualquer conflito social grave-uma guerra, uma revolugio - no serio 4s imagens exaltantes e magnificentes dos objectives @ ating e dos frutos da vitoria procurada uma condigao de possibilidade da propria acgdo das forcas em presenga? ‘Como é que se posiem separar, neste tipo de conftos, os agentes e 03 seus actos das imagens que aqueles tem de si proprios e dos inimigos,sejam estes inimigos de classe, selisio, 1a, nacionalidade, etc.? Nao s20 as acgBes efectivamente guiadas por estas representagdes; nfo. modelam elas os comportamentos; no mobilizam elas as energias; nfo legitimam elas as violéncias? Evoquemos sumariamente outro exemple, Nio seri que o imagindrio colectivo intervém em qualquer exercicio do poder e, designadamente, do poder politico? Exercer um poder simbolieo nfo eonsiste 239 IMAGINAGAO SOCIAL ‘meramente em acrescentaro ilusrio a uma potencia “real”, mas sim em duplicar ¢ reforgar a dominagdo efetiva pela apropriagio dos simbolos 'e garantir a obediéncia pela conjugaco das relagdes de sentido e poderio. Os bens simbélicos, que qualquer sociedade fabrica, nada tem de irris6rio ¢ nfo existem, efectivamente, em quantidade ilimitada. Alguns deles sto particularmente raros e preciosos. A prova disso & que constituem objecto de lutas e conflitos encarnigados ¢ que qualquer poder impoe ‘uma hierarquia entre eles, procurando monopolizar certas categorias de simbolos & controlar as outras. Os dispositivas de repressao que os poderes constituidas poem de pé, a fim de preservarem o lugar privilegiado que a si proprios se atribuem no campo simbélico, provam, se necessirio fosse, 0 caricter decerto imaginério, mas de modo algum ilusério, dos bens assim protegidos, tais como os emblemas do poder, os monumentos erigidos em sua gloria, o carisma do chefe, ete. Limitamo- nos a lembrar alguns exemplos de uma problemitica. Antes, porém, de a abordar de ‘modo mais sistemtico, nao ¢ talvez initil que nos interroguemos sobre a sua historia, 1. Blementos praauma historia ‘Tratar-se-d de uma problematica verdadeiramente nova ou, antes, da renovagao de problemas bastante antigos? A resposta nfo pode deixar de ser matizada. Ao instalar-se, qualquer nove campo de pesquisas constitui, do mesmo asso, a sua propria tradigao. A atengao que hoje é dedicada a certos problemas e fen6menos induz a busca, no passado, das observagdes, intuigdes e interrogacées que eles suscitaram anteriormente. A existéncia e as mniltiplas fungdes dos imaginarios sociais nao deixaram de ser observadas por todos aqueles que se interrogavam acerca dos mecanismos e estruturas da vida social e, nomeadamente, por aqueles que verificavam a intervengio efetiva e eficaz das representagdes © simbolos nas priticas colectivas, bem como na sua direcedo « orientacto. A historia destas, observacdes, intuigdes e esbogos de teoria esti ainda por fazer a partir de uma roleitura de textos muito diversos: filosofia e moral, retérica ¢ antropologia, ete. Com efeito, foi muitas vezes nos confins de discursos tradicionalmente isolados ‘uns dos outros que surgiram os problemas mais interessantes do nosso poto de vista. Releitura de textos, pois, mas também interpelagdes de um certo savoir fire passado. © savoir faire, a elaboragio e aprendizagem das priticas © téenicas de ‘manejamento dos imaginarios sociais, tem prioridade sobre qualquer reflexio teérica. ‘Malinowski reconhece, em cada corpus de mitos, o equivalente a um verdadeiro ‘mapa social que representa ¢ legitima eficazmente a formagdo existente, com 0 seu sistema de distribuigo do poder, dos privilézios, do prestigio © da propriedade [cf. ‘Malinowski 1936; Balandier 1976]. Ora, a0 produzir um sistema de reprecentagdes que simultaneamente traduz e legitima a sua ordem, qualquer sociedade instala também “guardides” do sistema que dispdem de uma cera técnica de manejo das representagdes ¢ simbolos. E certo que devemos ter cuidado ao aplicar um vocabulitio moderno as sociedades “primitivas”, designadamente as que no conhecem wm poder estatal. Nestes casos, tanto o imaginario social como as técnicas do seu uso S40 produzidos espontaneamente, confundindo-se com os mitos © 0s rits. IMAGINAGAO SOCIAL 200 Do mesmo modo, os guardides do imaginério social so, simultaneamente, guardies do sagrado. A margem de liberdade ¢ inovagdo na produgdo de todas as representagdes colectivas, em especial na dos imaginarios sociais, € particularmente restrita. O simbolismo da ordem social, da dominardo e submisso, das hieranquias e privilégios, etc., é quantitativamente limitado, ao mesmo tempo que se caracteriza por uma fixidez notivel. Por fim, também as téenicas de manejo destes simbolos se confunclem com a pritica de ritos que reproduzem o fundo mitico, tratando-se tanto de técnicas corporais como da arte e da lingua (ef, por exemplo, Mauss 1934; Heusch 1968]. So com a instalacao do poder astatal, nomeadamente o poder centralizado, cont a relativa autonomia a que acede o dominio politica, ¢ que as téenicas de manejo dos imaginarios socisis se desritvalizam, ganhando em autonomia e diferenciago. No decurso do longo caminho histérico que conduz dos mitos com implicagSes ideol6gicas as ideologias que escondiam uma parte dos mitos seculares, formou-se progressivamente uma atitude instrumental e utilitéria perante os imaginarios sociais, As sitagdes conflituas entre poderes concorrentes estimulavam a invengao de novas técnicas de combate no dominio do imaginario, Por um lado, estas Visavam a constituicdo de uma imagem desvalorizada do adversario, procurando em especial invalidar a sua legitimidade; por outro Indo, exaltavam através de representagdes engrandecedoras o poder cuja causa defendiam e para o qual pretendiam obter © maior nimero de adesdes (assim sucedeu, por exemplo, 10 conflito entre a realeza e © papado [cf Bloch 1924; Lagarde 1934]). A Invencdo de novas téenicas, bem como o seu refinamento e diferenciagao, implicavam a passagem de um simples manejo dos imaginarios sociais 2 sua manipnlagdo cada vez ‘mais sofisticada ¢ especializada, A partir desse momento, a historia do savowr-faure no dominio dos imaginatios sociais confunde-se em grande parte com a /ustoria oa ‘propaganda, isto é, 2 evolugio das suas téenicas ¢ instimigbes, a formagdo do seu pessoal, etc., campo este que continua ainda mal estudado [cf. Ellul 1967]. O desabrochar das técnicas de propaganda nos tempos modemos e a importancia cada vez maior que esta ganbava no conjunto da vida pablica estinmularam consideravelmente a reflexio teérica e sistemitica. Todavia, s6 no decurso do iltime meio século & que o savoir faire e as tecnicas mais ou menos artesanais da propaganda acederam ao nivel da “cientificidade”, problema a0 qual teremos oportunidade de voltar mais adiante. Evoquemos, antes disso, alguns pontos de referencia que marcam as rupturas mais significativas na historia dos discursos de algum modo “sistematizados” sobre 0 imaginatio social [ef Ansart 1977] Platdo e Aristoteles traduzem, cada um a sua maneira, a experiéncia, adguirida na polir ateniense, de um universo de debates, de inversdes de atitude provocadas pelo poder do verbo e pela sua capacidade de influenciar as decisbes © priticas colectivas. Com o advento da democracia, a assembléia deixa de ser wm lugar onde se exercem os ritos e onde so reproduzidos os mitos, para se tomar num lugar de deliberacdo e confronto de rivais que visam tanto 0 poder efectivo como 0 controlo dos simbolos. Platdo, se bem que denunciando estas novas formas de vida colectiva, pde em realce as fungdes dos imaginarios sociais veiculados pelo mito. Este tiltimo, embora no seja mais do que uma ilusio, assegura a coesto social 20 legitimar em especial as hierarquias sociais rigorosamente definidas. Quanto a Aristételes, passa sistematicamente em revista as téenicas de argumentagio © perstasio aot TMAGINAGAO SOCIAL (Retérica), realgando a influencia exercida pelo discurso sobre as “almas” e, nomeadamente, sobre a imaginagao e os juizos de valor [cf. Finley 1965]. Magquiavel [1513; 1513-19], conquanto inspirando-se na tradigao antiga, retoma amplameite a expetidncia da propaganda real contra 0 poder eclesiéstico (especialmente o dos legistas) e dai elabora a sua teoria. A famosa frase: “Governar é fazer crer” poe em destaque as relagdes intimas entre 0 poder e 0 imagindrio, no mesmo tempo que resume uma atiude téenico-iastrumental perante as crengas © 0 seu simbolismo, em especial perante a religito. Encontramos em Maquiavel toda uma teoria das aparéncias de que o poder se rodeia e que correspondem a outros tantos instrumentos de dominagao simbélica. As “apavéncias” fixam as experangas do povo uo Principe, pemmitindo mobilizar © aumestar a energia daquele, fazer medo aos adversitios, ete. O Priacipe, rodeando-se dos sinais do seu proprio prestigio e manipulando habilmente toda a espécie de ilusdes (simbolos, festas, ete), pode desviar em seu proveito as crengas religiosas ¢ impor aos seus sabditos o dispositivo simbélico de que retia o prestigio da sa propria imagem. ‘Quando as antigas legtimidades foram postas em causa e dessacalizadas no século xvin, cliow-se a nevessidade de pensar e imaginar novos objectives legitimos, assim como os meios de os inculcar nas mentalidades. A atitude técnico-instrumental perante os imagindrios sociais alimentava-se muito da critica ‘acionaista contra a Tgreja Esta apenas teria conseguido implattar os “‘preconceitos” 0 “fanatismo” nos esplritos gragas a fraude ea manipulagio particularmente habil das palaveas, signos, cerimOnias, ete. Esta critica aplicava-se também, ¢ cada vez mais, so poder monarquico absolute, bem comi0 a0 universe simbélico que 0 rodeava, Simultaneamente, o pensamento politico f social das Luzes interrogava-se acerca do problemia ‘mais geral do papel do imagindtio na vida coleetiva. A atiide téenico-instrumental prolonga-se através de teorias que concebem o imagindrio como um artificio arbitrariamente fabricado e manipulivel até a0 infinito. Dai a idsia de colocar o imaginizio a0 servigo da razio manipvladora, Dai, também, a idéia de dar batalha 20: “preconceitos” e ao “despotismo” no terreno que eles haviam agambarcado, Pensa- se entéo em fabricar um contra-imagindrio, arma de combate, mas também instrumento de educagao destinado a inculcar no espirito do povo novos valores ¢ novos modelos formadores. F assim, por exemplo, que Rousseau [1762] procede a uma reflexio sistematica sobre a “linguagem dos signos", que “falariam mostrando” e que teriam, deste modo, uma influencia muito especial sobre a imaginagao, Ora, é proprio desta Ultima transportar o homem para fora de si proprio, Nenhuma relagao social e, por maioria de razio, nenhuma instituigio politica so possiveis sem que o homiem prolongue a sua existéncia através das imagens que tem de si proprio e de outer. O principio que leva o homem a agie € 0 “coragaio”, so as suas paixdes e os seus desejos. A imaginagao é a faculdade specifica em cujo lume as paixdes se acendem, sendo a ela, precisamente, {que se diige a linguagera “enérgica” dos simbolos e dos emblems. Rousseau esboga lima teoria da ulilizaglo desta linguagem no ambito de um sistema de educagio plblica cujapedra angular € constituida pelos tos e pela fstaseivieas.E desse modo ‘que se propée iastalar, ao coragdo da vida coletiva, um imagiairio especifieamente politice, que traduztia os prinipios egitimadores do poder justo do pave soberazo © 60s modelos formadores do cidadto virtuoso [cE Baczko 1964]. IMAGINAGAO SOCIAL Durante a Revolugo Francesa, 0 combate pelo dominio simbélico traduziu-se, entre outros factos, pela batalba eneamigada contra os simbolos do Ancien Régime Ui ensaio de teorizagdo acompanion essas prices as quais volinremos adinate, Mirabeaw foi um dos primeiros, com a ova habitual inmigio politic, a captar a novidade do problema, concebendo o objective segundo uma formula que chama a atengao pela sua inovagao. Apoiando-se cm toda uma antropologia politica ¢ filosofica, ele exige que 0 novo poder “se apodere da imaginacio". O hiomem, za sua qualidade de ser sensivel, © muito menos guiado por prinipios generosos do que por “objecios imponentes, imagens chamativas, grandes especticilos, emogdes fortes”. Sendo esta “nova consideragao” rigorosamente aplicdvel aos individuos, é - 0 ainda mais “as nagdes encaradas no seu conjunto”. Assim, 0 poder dave apoderarse do controlo’ dos meios que formam © gviam a imaginacao colectiva A fim de impregnar as mentalidades com novos Valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de instincionalizar um simbelismo © um rittal novos [Mirabeau 1791]. As experiéncias revolucionarias fencontram os seus prolongamentos, por um lado, nas téenias da propaganda ‘napolebnia e, por outro, nas reflexdes dos idedlogos (Desturt de Tracy, Cabanis), ‘que se propdem explorar sistematicamente 0 universo simbélico © por em evidencia asl" qveoregem. ‘A primeira metade do. século sax abunda em idéins e sugestdes sobre @ imagiaagdo em geral ¢ az evas funcde: sociais em particular. A. reformulagdéo da problematica impunha-se sob o impacto dos factos revolucionarios ¢ da mitologia colectiva que aqueles haviam produzido, bem como da evidenciagao da luta entre as classes sociais, cuja presenga se faz sentir nos {andes enfreatameatos politico, © ainda s0b o impacto da produgd0 acelrada Ge ideologis que caractriza 0 periodo em questio. As ideas © as pratcasorientam-e nas direegdes mais diversas, sendo opostas, contribuindo em conjunto para alargar ‘© campo das interrogagdes e das reflexdes. Podemos extrair algumas tendéncias gerais, correndo naturalmente os riscos inevitéveis de uma esquematizagio 'Nos conflios sociais e polticos da época, uma responsabildade cada vez maior ven a caber a intervencao activa de grandes formagées ideolégicas modernas (lberslismo, democracia, socialismo, etc). proprio termo ‘ideologia. de orizem recentissima, adquire 0 seu sentido contemporiace por volta de 1850. Os debates Toldgios, incidindo’ designadamente sobre a. lepitimidade “da ordem social tstabelecida, a qual se opGem outras ordens possivels © imagindveis, poem em destaque as relagdes tao intimas quanto complexas que ligam os imaginarios 408 interessese reivindicagdes de grupos sociais antagonists. O desabrochar dae wtopias de teudéacia cocialista (0 saint-simonismo, o foutierismo, 0 proudhonismo) levanta o problema das relacdes entre a aparigdo de uma nova classe a produgo de imagindrios colectivos. Os novos sonhos sociais sao onsiderados, por uns, como outras fantaz antecipagdes do futuro, inseritas uma evoluclo histérica inexoravel, e por outros, em costrapartda, como representagdes globais da vida social, dos seus agentes, instincias ¢ mutoridadess as imagens dos chefes, ete. Em e mediante 0 propaganda modema, a informagio estimnla a imaginagdo social e os imagindrios stimula @ informagio, contaminando-se uss 0s outros numa amalgams extremamente activa, através da qual se exerce 0 poder simbslico [ef. Ellol 1962; Domenach 1954; Schramm e Roberts 1963]. Daremos wm exemplo apenas: ao longo da historia, 0 poder carismiético assenta em imaginérios sociais ‘que 0 grupo social projectava sobre o chefe carismé este Ultimo amplificava-os e fedistibvia-os,oferevendo ao grupo ‘uma certaidestidade coletia, orientando © canalizando as sins esperaneas © angst, ete. Om a propaganda inodema gova de possibildades téenicas, clara e poltcas que permitem fabricar e manipalar as emogdes © imagindrios colectivos em que assenta o carisma. Em certas condigées, a propaganda consegue fazer subir as angustias e esperangas ‘olectivas,levando-as « histerin, ao mesmo tempo que projecta constantemente, sobre 0 chefe, os imaginarios que se confundem na tepresentagio lobal do salvador supremo, instrument eleito pela Nagio e a Historia, ete. Nesta éptica, poderiamos definir os sistemas totalitérios como sendo aqueles onde o Estado, gigas ao monopolio dos meios de comunicacao, exerce uma censura rigorosa sobre © conjunto das informagdes © a coujuga com a confaminacdo e manjpulagdo das informagies admitidas a cireulagdo pela propaganda politica e ideologien fomnipresente. O objective visado seria 0 de garantir ao Estado 0 controlo total Sobre as mentalidades e, desiznada-mente, sobre @ imaginacio social; por otras palavras, tratar-seia de bloquear eficazmente qualquer sctividade espontines, nito-controlada, da imaginagio social. Conjugando 0 monopslio do podero edo sentido, ito €, da violencia fisieae da violencia simbalic, 0 Estado totalitério procura suprimir a propria lembranga de qualquer imagindrio social, de «qualquer reprezeatacto do paceado, presente e fro colecvo, difeeates daqueles {ne confimam a sia legitimidade © poderio, eavcionando o seu controlo sabre 0 conjunto da vida social e glorificando tanto os seus fins como os seus meios. 2 “Casestudies” Insistamos mais uma vez nas reservas jé formuladas: no esta nas nossas intengdes mais do que colocar alguns marcos para uma problenitica que se pprocura a si propria na encruzilhada de diversas disciplinas e de diversas abordagens metodologicas. Dai o caricter demasiado lacunar e abstracto da anterior exposigao. Em vez de fazer 0 inventario dessas lacunas, pareceu-nos ‘mais, frutifero apresentar alguns exemplos que coneretizam 0 nosso modo de abordara questi. Esta apresentacdo tem, pois, de ser sucinta. Pirose ss excrvagao soctaL apenas iluminar, através de determinadas situagbes historicas, alguns caracteres € modos de funcionamento dos imaginirios sociais que acabamos de evocar de smaneira global. 3... Imaginzrios sociaise violencias nas revoltas camponesas do século xvi & durante 0 “Grande Medo” de 1789 As revoltas camponesas que a Franga conhecera no decurso do séeulo xvit € no fim do Ancien Régime sio exemplos flagrantes, a diversos titules, do papel desempenhado pelos imaginsrios sociais nas mentalidades e priticas colectivas. Por um lado, elas pdem em relevo a intervenc#o activa desses imaginarios na cristalizacao das recusas e das esperangas que as grandes crises de violencia popular alimeniam. Por outro lado, manifesta-se na sucessio destas crises uma notavel resisténcia desse imsginario, reproduzindo no longo prazo a solidariedade entre tais imaginarios colectivos e um modo de vida, uma cultura e um dispositive simbélico determinados. Recordemos, rapidamente, a cronologia das revoltas do século xv. Entre ‘1624 e 1675, a Franca assistiu periodieamente a vagas de levantamentos populares , em especial, levantamentos camponeses; esta vaga far-se-d ainda sentir na ‘iltima grande revolta da “série”, isto é a de Maio Juaho de 1707. Depois desta tltima data, as vagas de revoltas camponesas desaparecem durante mais, de trés quartos de século. Isto nao significa, bem entendido, que 0 século xvii esteja isento de outras formas de violéncia popular, mas t¥o-s6 que a tradicio dos Ievantamentos camponeses foi extirpada, durante algum tempo, pela represséo terorista e sistematica, As grandes vagas de revoltas do século xvit sfo aquelas ue conhecemos sob 0 nome dos croquants (Quercy, Primavera de 1624: Guyenne, Maio Junho de 1635, Sain-tonge, Abril Junho de 1696, Gasconlia, 1698-1645, Périgord, 1637), dos’ nus-pieds (Normandia, julho-Novembro de 1639), dos sabetiers (Sologne, Agosto de 1658); dos ustuerx (Boulonnais, Maio Julho de 11652), dos bénnets-réuges (Bretanla, 1675); dos tard avisés (Quercy, Maio Junho de 1707). Os maiores destes levantamentos, no auge da vaga, chegaram a reunir algumas dezenas de milhar de camponeses. Na maioria dos casos, 0s amotinados agrupavam-se em bandos que variavam entre algumas dezenas e alguas milhares de homens juntos, sob © comando de “capities” escolhides geralmente no seio dos camponeses, mas as vezes também na nobreza. Os Camponeses raramente dispunhiam de armas de fogo, estando sobretudo munidos das suas armas tradicionais -facas, forquilhas, machados e chucos. Podem-se distinguir quatro tipos de motins, bem como outros tantos tipos de violencia colectiva: contra a carestia do pio,. contra os aquartelamentos, contra a cobranga dos impostos e contra a cobranga das rendas. As interpretagBes sobre as causas e a natureza social destas revoltas deram origem a prolongadas discusses, que se arrastavam no beco sem saida de um debate, simmultaneamente metodolégico @ ideolégico, acerea dos caracteres do Ancien Régime (enquanto sociedade de classes ou de ordens). Os estudos mais recentes, designadamente 0s de Bereé [1974a ¢ b), em cujos resultados nos apoiamos aqui, fizeram ressaltar o caricter Cconmunitério das revoltas enquanto reaccdo colectiva contra a progressio do Estado modemo, burocratico e ceatralizada, ocupado em especial no século xvtt em desenvolver uma mMAGINAgAO SociAL ste nova organizagdo fiscal. A fim de atingir todos os sibditos, a expanse do fisco foi ‘obrigada a por em causa os privilégios, costumes e solidariedades comunitérias que se erguiam entre o Estado e 0 individuo. Deste modo, a pressio fiscal era sofrida e sentida pela comunidade como uma agressio exterior a qual reagia violentamente. Conflito social, portanto, mas que tem de ser dissociado do par miséria-revolta afirmado pela historiografia do século xix. A tolerincia fiscal dos camponeses é, em ‘certos eas0s limite, relativa. Varia no s6 consoante a realidade da contribuigéo, mas também, e sobretudo, consoante a idéia que dela tem os contribuintes, Nao hé uma relagio linear entre a economia e a revolta, Esta tiltima, © especialmente as ‘modalidades segundo as quais rebenta e se desenrola, so também factos culturais 10s quais se confundem a condicio social, 0 quadro e estilo de vida, o dispositivo simbélico, ete. Daf um certo riwal da violéncia, certos tragos ritualizados e repetitives, que se encoutram ao loago de centenas de eas0s. Os imaginsrios sociais, veiculados tanto pela linguazem dos gestos © dos objectos como pela palavra vi neste meio dominado pela cultura nfo-escrita, so solidirios com o ritual da violencia. Sto aliés raros os casos em que os insurreetos formulam as suas aspiragdes 08 objectivos da revolta através de panfletos, E, pois, ainda mais significativo que ‘05 mesmos imaginirios socials se reproduzam, com pequenas diferengas, em centenas de casos, (Os imaginirios sociais intervem contiauamente a0 longo dos motins ¢ a diversos niveis. As suas fungdes sio miltiplas: designar © inimigo no plano simbélico; mobilizar as energias e representar as solidariedades; cristalizar e ampliar ‘5 temores esperangas difusos. Todos convergem para a legitimagio da violéncia popular ‘A fim de eselarecer estas funges, apenas nos referiremos a um esquema geral do ritual das revoltas, o qual esta naturalmente submetido a algumas situagdes-tipo ‘que no nos € possivel analisar aqui em pormenor. As revoltas so precedidas de boatos sobre os novos impostos ou sobre a chegada dos cobradores, ou ainda sobre 0 aquartelamento de soldados na aldeia, ete. As tabernas, as feiras e as fastas, bem ‘como os encontros a saida da missa, so outros tantes lugares de reunido a partir dos quais se propagam as informagdes e boatos. E através destes que se articula a antinomia entre “aés" e “eles”, isto é, duas representagdes que taduzem e ‘esquematizam, simultaneamente, as recusas, 08 contflitos e os ressentimentos: “eles quesem matar-nés a fome"; “eles querem roubar-nés”; “eles vem instalar-se em nossa cada para nds tirar 0 lar”, “Eles” significa os estranhos ¢ 0s trai-dores a ‘conmnidade: “nés” designa os membros da comunidade por nasce-mento, residéncia @ destino. Pela mesma operagao, estas representagdes globalizantes e unificadoras definem 0 motim como defensive, como uma resposta armada contra a chegada de ‘um invasor armado, contra uma agressio caracterizada, E significativo que, no desencadeamento do motim, inter-venha frequentemente 0 boato (espalhado sobretudo pela mulheres) acerea da introdugdo de um imposto imagindrio, como por ‘exemplo um imposto sobre a vida, sobre os nascimentos, 0s casamentos ¢ as mortes, ‘gue seria preciso pagar sempre que nascesse uma criaaga. A representagao deste imposto tdo escandaloso quanto fantastico resume toda a iniquidade com que é visto © fisco, designando-o como um perigo mortal para a commnidade e legitimando, antecipadamente, a violéncia enquanto autodefesa contra a a BMAGINAGAO SOCIAL, liltima ameaca. Os cobradores de impostos sfo, por conseguinte, assimilados simbolicamente as forgas impias e diabélicas que atacam a vida de cada um e de todos, sendo antecipadamente apontados como os bodes expiatdrios de todos os sales da comunidade, ‘Quanto a0 motim propriamente dito, comega com o rebate dos sinos, cujo toque alarmante & ao mesmo tempo, meio de informacdo, convocacaio ¢ mobilizacio. O toque ‘a rebate simboliza, por um lado, a solidariedade da comunidade e, por outro, identifica a simagdo como a de um perigo extremo. Assim inscreve a violéncia futura no campo das violéncias legitimas, admitidas pelo direito costumeiro, como por exemplo 2 ddefensa contra os salteadores. ‘A imagem provocatéria do imposto sobre @ vida liga-se a outros elementos da mitologia dos revoltosos que consolidam 0 movimento. Contrariamente 0s ‘movimentos milenaristas, a dimensio sagrada 2 apocaliptica esti auseate da imaginacao social dos amotinados. Esta ¢ comandada por representagdes ligadas a imagem do rei justo e do fim dos impostos. Imagina-se que o rei foi enganado por maus conselheiros; que ignora a infelicidade do seu povo; que foi roubado por finaneeiros {que pilham o tesouro real do mesmo modo que arnuinam os sibditos do rei. A violéncia ‘camponesa é assim representada de uma maneira tanto mais legitima quanto se identifies com o principe real, esse principe que ela procura também libertar. A imagem do bom principe aliava-se aos sonhos do imposto adiado, senio mesmo do Estado sem impostos, sonhos esses que ofereciam aos revoltosos uma representacao ppositiva da sua recusa, Remete-se também para um pasado imaginério no qual se busca o modelo do rei, personificado frequentemente por Henrique IV, que respeitava os antigos costumes, aliviava os sibditos sobrecarregados de impostos e garantia ao bom povo a tranqiilidade, a justica elementar e a dignidade. Este mito prolongava-se por vezes através de uma utopia, incipientemente esbocada, que ‘concebia uma sociedade diferente cuja idéia e imagem chaves uniam o Estado sem impostos a “liberdade publica”. Assim sueede no poema que circulava durante a revolta dos nus-pleds, quando Jean Nu-Pieds, “general do exéreito do softimento” & personagem imagindria que incama as esperangas dos revoltosos, é apreseatado deste modo: Joao Pé-Descalg @ o vosso apoio. He vngara a vossa disputa [Litetando-vos do imposto, Fareado eva aogadaE ivrando-vos de toda essa geate Que eaiquece acuta Dos vesaes bens da pits. Foi le que Deus mandou Para impor na Normans Una prfeta liberdade Todos estes mitos, articulando-se entre si, traduzem no plano imagindrio a grande ‘mola impulsionadora da dindmica dos revoltosos, isto &, a esperanga, seniio mesmo ccerteza, de uma vitoria proxima e fil. IMAGINAGAO SOCIAL ae ‘Convém ainda aludir, por ultimo, a alguns elementos do ritual das revoltas, particularmente reveladores quanto imaginagio social em acqlo © quanto a0 Gispositi simbélico wilizado. Falamos ja dos sinos que tocam a rebate © do ajitamento das pessoas, anunciando e traduzindo, ao mesmo tempo, tim trajecto com o qual a comunidade se identifica. Quando os revoltosos conseguem aprisionar os culpados, como por exemplo os cobradores de impostos, a muultidio procede a “condugio do cobrador da gabela”. Trata-se de uma ceriménia punitiva, trigica ou cémica, humilhante ou sangrenta, em que a vitima simboliza todas as forgas amaldigoadas agzessivas. O cobradar de impostor, nu ou em tajos menores,€ obrigndo a correr pela aldeia fora; é atirado a lama ov a0 estrume: langam-the pedras e dao-lhe pauladas. A “conducdo” termina com a morte, mas por vezes @ ‘tlio conteat-se com wn azcssinio ritual ea expulso da lea, ‘Quando os rebeldes atacam uma repartigdo de finangas ou um eartério de notério, estes sio entregues a pilhagem, ao mesmo tempo que se abrem os tontis de vinho e a multidao se embriaga, destruindo méveis, estébulos e jardins, A anit atibui tm interesee especial os papéis que apanha e dé ler ema voz alt, ema geral, um padre. Seguidamente, a papelada ¢ queimada a grnel ea anltidio danea, Por vezes, em tomo deste fogo purifica-dor e aniquilador. A revolta vem assim prender-se aos ritos da festa, tomando-se ela propria um ilhéu utépico em ruptura com a vida quotidiana. Do mesmo modo, o facto de os revoltosos as vezes se disfarcarem e nascararem revela todo ttm jogo imaginario que aprocima a festa © a revolta, desde que, nauralmente, esta trunfe sobre os inimigos, quanto mais nko seja temporariamente. Através de todos estes ritos e simbolos, que mergulham num fando secular, ¢ representada a faceta normativa da violencia, isto & a idéia de oma ceria justiea popular. ‘Connojindicamos acima, depois das revolias de 1707, a Franga deixon de assist, durante cerea de irs quartos de séoulo, a novos motins camponeses. Foi na véaper da Revolugio e duraate © Verio de 1789 que se manifestou novamente um formidavel levantamento camponés. Enquanto 05 movimentos de revolta do século xv 56 roramente exibiam imagens manifestamente antinobilirquicas, esas mareama em Contrapartida as insureigoes de 1T89. Nao nos compete analisar aqui as eausas deste Ultimo facto, que tem que ver, por um lado, com a implantag&o duradoura do Estado moderao no século x01! ¢, per eutze, com as modificagées do lugar do senhor na conunidade rural, Desta vez, os caselos dos nobres tornam-se 0: alvos directos dos revoltosos. E aos castelos que declaram guerra, pondo em causa o: direitos ilégios senhoriais e recusando o pagamento dos impostos. O movimento inicia-se com uma série de revoltas dispersas. Por volta de julho-Agosto de 1789, generalize de tal maneira que decemboca uo Dloqueamesto completo das trocas Comerciais e provoca a paralisia do Estado. Nesta ampliagao do movimento, 0 papel decisivo @ desempenhado pelo “grande medo”, cujos epicentos, tajecios € dinamismos conhecemos hoje gragas aos trabalhos de Lefebvre [1932]. No contexto que agora nos preocupa, interessa sublinhar certas particularidades desse espectacular Dinico colective que cobrin a maior parte do pais (com excepeao da Bretaha, do Nordeste da Lorena e Alsiia, das Landes, do Languedoque e da Baixa Provenga). Na segunda quinzena de julho e aié finals do més de Agosto, espalhamse peas aldeias boates segundo os quai o pais estaria ser invadido por bandos de soldados e de a9 IMAGINAGAO SOCIAL salteadores. Esses bandos avizinhar-se-iam pilhando pelo caminho todas as aldeias e ‘massacrando a populagfo. E uma “conspiragdo infernal”; “querem destruir 0 povo inteiro”. Mas que bandos? E que conspiragdo? A imaginagdo, como em todos os movimentos de panico colectivo, parece estar marcada pela patologia e no é capaz de produzir senio fantasmas e efabulagoes. Fala-se sobretudo de “salteadores”, pois nnaquela época de crise econémica e de falta de géneros, os mendigos e vagabundos abundavam, sendo a sua presenga pelos caminhos apontada como prova tangivel dos boatos. Fala-se de milhares, de dezenas e mesmo centenas de milhares de salteadores vvindos das cidades, especialmente de Paris. Noutros locais, fala-se de estrangciros, de exércitos inimigos, particularmente aqueles de que havia recordagdes: 0: Ingleses teriam desembareado em Brest, os Piemonteses teriam invadido os Alpes. Noutros locais ainda, o inimigo ¢ imaginado sob a sua forma mais mitica: 0 perigo que ele representa é tanto maior quanto o seu nome designa apenas o desconhecido, o munca visto. E assim que se teme a invasio dos Polacos vindos por mar, dos Panduros, dos ‘Mouros, dos Suecos... Outras imagens e rumores misturam-se aqueles. Todas estas ‘topas, quer 0s salteadores quer os Polacos, esto ao servigo dos aristocratas e levam ‘a cabo uma conspiragio diabélica contra o povo que tem por miso punir, sento mecmo exterminar. Encontram-se nestes boatos ecos deformados da tomada da Bastilha e dos rumores que corriam em Paris acerea da “eonspizagio da fome”. Frente a estes perigos imagindrios, as aldeias paem em acco o dispositive ‘material e simbélico de que falamos acima, Toca-se a rebate e desencadeia-se una ‘acgao comum: os camponeses armados vo 20 encontro do “inimigo” ou em socorro de uma aldeia vizinhs. Estas invulgares movimentagdes de homens armados n8o faziam mais do que amplificar o panico. Poder-se-ia pensar que os ajuntamentos se dispersariam quando se verificasse a auséacia de qualquer “inimigo", mas isso raramente sueedia, Pelo contririo, 0 movimento entrava ento numa segunda fase. Qs aldedos no depdem as armas; as guardas nacionais das vilas e aldeias nascem freqiientemente deste panico, Além disso, em vez de regressarem a casa, as tropas ‘camponesas dirigiam-se ao castelo mais préximo, pedindo que Ihes entregassem os ~papéis”, 0s arquivos, as cartas fundisrias, os titulos dos privilégios e das contribuigdes fiseais. Estes eram obtidos pela ameaca ou, em caso de recusa, pelo ataque ao castelo. Seguidamente, queimavam-se os papéis numa grande fogueira que reproduzia um cenério de violéneia vizinho da festa, Frequeatemente, esta “guerra ‘contra os papéis” era acompanhada por pilhagens ¢ nAo s4o raros os catos de ccastelos incendiados, sobretudo se havia resistencia as exigéncias eamponesas. Por vvezes, 0 castelo era assaltado, mas se é certo que houve algumas vitimas, 0 ‘movimento foi em gersl pouco sangrento. Foi assim que 0 panico inicial se prolongou através de uma acgio revoluciondria antifeudal. Com o “grande medo”, a Revolugio instalou-se na aldeia. (Os mecanismos de passagem do panico Revolugdo nem sempre sto muito claros. Em certos casos, os mimores iniciais combinavam-se com boa-tos segundo os quais © rei teria permitido, ele proprio, que se atacassem os castelos e queimassem os ~papéis” a fim de evitar uma conspiragdo aristocrética. Tais boatos materializavam- se mesmo em falsos manifestos reais, escritos a mio, em que se proclama que 0 rei apela para os seus camponeses se dirigirem aos castelos, fixando mesmo um prazo, ‘geralmente até finais de Buacmvacac soctaL 320 Agosto, durante o qual é penmitide desembaragar-se dos “papéis". A partir de certa etapa do panico, o exemplo funciona por si proprio: 0 boato acerea dos salteadores omnipresentes surge contaminado, desde 0 principio, pela noticia de que os castelos esto a arder nas redondezas. Todos estes rumores © simbolos combinados levam ao mubro a imaginagdo popular, Os fantasmas revelam-se particularmente eficazes e “funcionais". Correspondem a outras tantas telas de projecgio para um mal-estar rural generalizado que assim se vé dramatizado © ampliado. Servem de trampotins simbdlicos através dos quais se opera a progress conjunta dos medos, édios e esperancas. Expressdo da crise, eles tornam-se depois um factor determinante da dinamica da propria crise. A. tomada de armas e a presenca material de tropas populares armadas tornam-se, por sua vez, 0 simbolo da unidade e da forga aldea. O inimigo fantomstico, contra 0 qual a aldeia se erguew, reine numa s6 representagao colectiva, sinultaneaments provecatéria e mobilizadora, todos os agressores potenciais e reais. Os fantasmas combinam-se num jogo complexo com outros imagindrios sociais e designam, no fim de contas, 0 adversdrio real, ransferindo para ele medos e esperancas difusos. ‘Ao mesmo tempo, 2 acgio colectiva e 0s seus efeitos-os papéis, senio os castelos, que ardem-comportam eles proprios uma forte carga simbélica, Representam, por um lado, o fim de uma ordem social opressiva e ultrapassada ©, por outro, o advento da Nagao unida para defender a sua liberdade, 32. Iimagintios sociaise simbolismo revolucionério ‘A Revolugfo Francesa foi, como todas as crises revoluciondrias, um “periodo quente” na produgio de imaginarios sociais. Uma vez desencadeado, o facto revolucionério da um impeto especial a imaginagao social. A propria dinémica da revolugdo, a transformagio das estruturas politicas e sociais, bem como dos modos de pensar e dos sistemas de valores, e ainda os conflites politicos e sociais mareadlos pela presenca das massas, em especial as mmultiddes revolucionarias- todos estes Factores estimulam 2 produgdo acelerada dos sentidos que se procura atribuir a precipitagio de acontecimentos cujos efeitos muitas vezes surpreendem os actores politicos e sociais. Os protagonisias, quer aqueles que pretendem radicalizar revolugto, quer os que desejam deté-la em determinado estidio, veem-se obrigados & esconjurar um destino incerto por meio de programas, senio mesmo visdes do futuro: tem de imaginar situagdes futuras para si e para os adversérios; tem de legitimar ou denunciar a violéncia revolucionais e a nova redistribuicio dos papéis sociais: por fim, tem de mobilizar ou canalizar as energias e esperangas das massas, etc. O clima afectivo gerado pelos factos revolucionarios, bem como os avangos e recuos do medio e da esperanga, animam necessariamente a produgo dos imaginarios sociais. ‘No comego, a revolugdo é, para muitos, essa sensacdo brutal, vaga e exaltante a0 mesmo tempo, de estar a viver um momento excepcional durante o qual, para ‘empregar as palavras de Michelet, “tudo se tornou possivel”. Subitamente, & como se se adquirisse a esperanca, e até mesmo a certeza, de que acabaram de vez os constrangimentos sociais habituais. Esté por construir um mundo novo que garanta a liberdade © a folicidade (“idéia nova na Europa”, como dizia Saint Just), isso s0 podera ser feito pela negacdo desse regime rapidamente valorizado a IMAGINACAO SocTAL como “antigo”, inclusivamente nos pormenores quotidianos. O futuro abre-se, assim, como um enorme estaleiro de sonhos sociais de todas os géneras e em todos os dominios da vida colectiva. As imagens, glorificantes ou acusadoras, dos acontecimentos e das forgas em presenga combinam-se com 0s conflites e as estratégias, iluminando-os e ocultando-os simmltaneamente. As realidades e as experiencias revolucionarias s40, muitas vezes, inseparaveis do modo mitologieo como silo vividas, A. geragio dos simbolos e rritos revolucionirios & uma das facetas mis significativas da produglo intensa de imaginarios sociais. Recordamos ja as paginas fem que Marx opde 2 Revolucto Francesa, que disfarcava os seus actores com trajos antigos, a sua visio da revolueio proletéria, cujos actores dispensariam qualquer méseara. Porém, em nenhum caminho da sua historia, nem mesmo ccaminhos da revolugdo, seja ela “burguesa” ou outra, os homens passeiam nus. Precisam de “fatos", de signos e imagens, de gestos e figuras, a fim de comuniearem entre si e se recouhecerem ao longa do caminko. Os sonhos ¢ as cesperangas sociais, frequentemente vagos e contraditérios, procuram cristalizar-se andam em busca de uma linguagem e de modos de expresso que 0s tomem conmniciveis. Os principios ¢ conceites abstractos s6 se ttansformam em ideias- forca quando so capazes de se coustituir como poios em torno dos quais a imaginagto colectiva se organiza. A extensto das suas auréolas imaginérias faz~ Ihes ganhar amplitude emotiva. Enganar-nos-iamos sobre 0 alcance do simbolismo revoluciontio se no vissemos nele mais do que um cenério em que se pretende simar qualquer Revolugao, como se esta se tratasse de um ente tao puro como transparente. A invencZo ¢ a difuste do repertério simbélico revolucionério, implantagao destes novos simbolos e a guerra aos antigos, correspondem a ‘outros tantos “factos” revolucionzrios. Aquilo que estava essencialmente em causa nesta guerra, sobre a qual 03 contemporineos aio tinham qualquer ilusio, era um poder real que se exercia no e através do dominio simbolico. O fendmeno complexo. Recordaremos apenas alguas exemplos tirados dos primeiros anos da Revolugéo e que mostram duas tendéncias. Por um lado, trata-se da geracio cespontiea do simbolismo e do ritual revolucionarios; por outro, trata-se da sua transformagio em emblemas e instituigdes que rodeiam 0 novo poder, glorifieando-o e atestando a sua legitimidade. E obvio que estas duas tendéncias nao se manifestam de modo isolado em relago uma a outra; pelo contrario, combinam-se e entrecruzam-se. (© primeiro exemplo constitui, senfo 0 inicio, pelo menos aquilo que se tomou o simbolo por exceléncia da Revolugdo. O clima de tens4o entre o poder real a Assembléia Nacional, recentemente proclamada, bem como 0 medo ¢ a eélera provocados pelos rumores acerca da conspiragio da fome ¢ da concentragao de tropas que se preparariam para tomar Paris de ascalto, formam o coatexto emotivo fem que se inscreve a positividade de um acontecimento: uma fortaleza mal defendida e a multidto que a ataca, O acontecimeato “bruto” do dia 14 de julho ‘ransforma-se imediatamente no signo de uma coisa diferente do acontecimento em si mesmo, A tomada da Bastilla torna-se obrigatoriamente o objecto de um olhar e de um discurso que procuram atribuir um sentido totalizante a sucessdo dos acontecimentos © aos seus miltiplos actores. A multidio revolucionéria, fenquanto fenémeno novo pressupSe ndo 86 uma presenga colectiva e um principio de estruturago, mas também uma comeidade ce tmaginacdo. Foi assim que a velba IMAGINAGAD SOCIAL fortaleza, jd sodeada de rancores ¢ mitos, se tomou 0 simbolo por exceléacia do arbitrario © de tudo quanto © Ancien Régime tinha de arcaico, ultrapassado & injusto. A multid’o dotou-se de uma identidade ao projectar diante de si qwma imagem ideal, isto é, a da Nagdo que se ergue contra a tirania e a violéncia incamadas naqueles nuros Vetustos e not seus defensores. (Como se sabe, gragas a analise pormenorizada daqueles que tiveram direito 20 tinule de “vencedores da Bastilha”, 0 grupo que tomou a fortaleza nada tinka de sociologicamente homozénco: ‘um sexto'de burgueses, cinco sextos de “arraia-mitida", ou seja, artesios, mestres, compankeiros). O dia’ 14 de Julho acabou, aliés, mais num clima de temor ¢ incerteza do que de alegria. Fle oferece-se as imaginacdes como, precisamente, 0 dia em que “tudo se tormou possivel”, como o simbolo Drivilegiado de uma ruptura temporal, momento tinico em que inicio e realizagio coincicem num s6 tempo. O mito traduz, segundo as suas préprias modalidades, ‘uma experigneia pasticularmente rica em emocdes intensas que se confundem com as ‘expectativas e as esperangas de que esti rodeada. Experiéncia colectiva por exceléacia: vivida com uns « conta of outros no calor humano de uma multido que se esté a descobrir a si propria como uma realidade, O individuo sente-se apoiado ‘wansformado pelas emogdes e foreas colectivas que o ultrapassam. As iniimeras narratives, gravuras, ceriménias comemorativas, ete., ampliam e consolidam ulterior- mente esta mitologia. O 14 de julho torna-se assim a “matriz” de ‘uma jomada revolucionéria, do mesmo modo que a Bastilha se tornou 0 simbolo de todas as outa bastilhas que a liberdade tem constantemente que tomar de assalto. A partir do dia seguinte ao memorivel empreendimento, o lugar foi investido de uma carga simbolica extraordindria, A 14 de julho, a Bastilha fora apenas tomada: muito rpidamente, decidese demol-la, rude labor que exigia muito mais do que um dia (Um empreiteiro habil havia de fazer fortuna com estas obras de demoligio, vvendendo as “pedras da Bastilha”, Este comércio era extremamente préspero © 0 ‘enorme edificio forecia pedras que chegavam para satisfazer a procura de reliquias por parte de varias geragbes, e mesino assim ainda houve quem vendesse pedras falas.) Quanto a praga, uma vez vazis, tomou-se um lugar privilegiado do espaco imaginério projectado sobre a cidade real. Integrando-se no ritual das festas revolucionatias e simbolo do comeco, ainda hoje ela é de preferéncia escolhida como ponto de formagio partida dos cortejos festivos que atravessam a cidade. Afirmar e consolidar as conquistas da revolugdo era uma nevessidade particularmente viva e muito cedo sentida. A linguagem dos simboles prestava-se admiravelmente a exprimir a parte de sonho e de esperanga veiculada pela Revolugdo,, parte esta que constiui uma dimensfo essencial das suas realidades. Foi assim que, desde © inicio da Revolugde, no Verio-Outono de 1789, se assistiu a zgerago espontinea de um repertério simbélico nove, acompanhado por uma vverdadeira guera aos simbolos, com as suas estratégias proprias. No dia a seguir a 14 de julho, era arvorada a insignia (aécarde) nacional, composta pelas cores de Paris (0 azul ¢ vermelho) a cor do rei (9 branco). A 17 de Julho, Luis XVI, que ‘Veio a Pati para se reconciliar com & sua “boa cidade", arvorava a mesma céca’de, gesto ‘que foi acolhido entusiasticamente pela multidao que a havia imposto e a sentia como uma vitéria. A parti de Paris, « ade inicion una marcha tiunfal atavés da Franga. Emblema distntivo da nagio, ea a0 mesmo tempo combatido pelos an MUAGINAGAO SOCIAL aristocratas; dai uma guerra incessante em tomo das insignias. O boato, verdadeiro ou falso, de que os oficiais da rainba tinham espezinhado a insignia tricolor em Versalles, para depois arvorarem a insignia branca, foi um dos factores que mobilizou a multid2o nas jomadas revolucionarias de 5-6 de Outubro. A partir dai, assiate-se a uma exealada de deeretos que tomnam o uso da insignia obrigatério: a 29 de Maio de 1790 ¢ proibido arvorar qualquer outra insignia que ndo fosse a tricolor; a 4 de Julho de 1791, 0 uso foi declarado obrigatorio para todos os homens; @ 26 de Setembro, em pleno Terror, a obrigatoriedade foi extensiva as mulheres. (Desta vez manifesta-se uma certa resist@ncia a esta imposicdo, designadamente nos meios populares), Do mesmo modo, ndo usar. a insignia tornava-se um sinal distintivo os inimizos da Repiblica, Recordemos ainda, muito sucintamente, alguns outros elementos deste novo repertério simbélico. No Outono de 1789, durante as FederagSes, foram construidos ‘um pouco por toda a parte “altares da patria”. Ai eram depostos germes de trigo, por vezes coroados de chugos encabegados pelo barrete frigio da Liberdade, O primeiro baptismo civil é celebrado num altar da patria em junho de 1790. A 26 de Jjunho de 1791, a Assembleia Legislativa decreta que devera ser erguido em todas as, ‘comunas um altar da patria, no qual devera ser gravada a Declaracao dbs direitos dé omem e dé cidadao, bem como a inseriga0: “O cidadio nasce, vive e morre pela Liberdade”. (Estas altares, em ruinas, sobreviverdo até ao Império). Foi também no Outouo-laverno de 1789 que se instalou outro simbolo: a arvore da liberdade, 0 nico, talvez, que retoma uma tradiedo popular, a saber, a das drvores de Maio. ‘Nos anos seguintes, era nestas érvores que se penduravam simbolos da “feudalidade”, tais como erivos, medidas, “papéis” com titules e privilégios, cataventos (reservados aos castelies), etc. A plantagdo das érvores da liberdade seri, por sua vez, tomada obrigatria em todas as commaas. Lembremos outros simboles: o barrete frigio vermelho, 0 olho da vigilincia e nivel (ambos de origem magénica), 0 chugo enquanto arma e emblema ao mesmo tempo, ete. Os meios dos sans-culdzies claboraram o seu proprio simbolismo, através de um vasto conjunto de signos distintivos relativos a0 vestuério, ao comportamento, a maneira de falar (por exemplo, o trata-mento por tu obrigatério), etc. A guerra aos simbolos atingiu 0 au; durante 0 Terror ¢ a descristianizagio, com a destrui¢do dos “signos da feudalidad: a retirada dos sinos, a desfiguragio das estituas, etc. ‘Na grande maioria dos casos, verifica-se a mesma tendéncia: os simbolos esponténeos tomaram-se obrigatérios, impostos. As minorias militantes, para nio dizer 0 proprio poder, fazem deles um instrumento efectivo a fim de implaatar novos valores, transformar as almas e ligé-las a nova ordem politica e social. Havia, alias, uma tendéncia para acreditar na eficacia quase ilimitada deste instrumento, donde uma pletora de linguagens simbélicas. Nao se tratava, contudo, de simbolos isolados, mas de um sistema global de representagdes que tinka de impregnar nfo s6 a vida pablica, como também, e sobretudo, constituir o quadro da vida quotidiana de todos os cidadios. O exemplo mais flagrante deste empreendimento ¢, sem divida, a introdugi do calendario revolucionétio. Siniando © nove ponto-zero a partir do qual comaea a nova era (22 de Setembro de 1792, data da proclamagio da Repablica), suprimindo o domingo, estruturando de modo “racional” o tempo quotidiano (més de trinta dias dividido em wés décadas), introduzindo maaciNagao soclaL a um sistema de festas eivieas, ete., 0 nove calendario correspondia, nas intengdes dos seus promotores, a idéia de representar permanentemente 0s novos valores que a Repiblica tinha por missdo instalar para toda a eternidade. Lembremos, por fim, que a geraco esponténea do novo simbolismo esta solidariamente associada a0 naseimento de um novo ritual, © qual evolu também da festa esporddica e espontinea ara um sistema institucionalizado de festas. Um dos objectives que se pretendia alingir com estas festas, nomeadamente as do Ano II, era o de incarnar em imagens 20 de dar vida, quanto mais nio fosse por um instante, a utopia revolucionstia, isto é, a promessa de uma comunidade fraterna de homens iguais. A linguagem simbélica presta-se particularmente bem, seno a corporizar, pelo menos a apresentar a imagem daquilo que poderia ser o triunfo sonhado da Liberdade e da Virtude, da Tgualdade © dda Nagdo, da Fratemidade e da Felicidade, Albert Mathiez [1904], na sua perspectiva propria e que exalta as componentes religiosas, quase messidnicas, das mentalidades revolucionarias, pos admiravelmente em destaque essas expectativas e esperangas que encontram um modo privilegiado de expressio no simbolismo © ritual revolucionsrios. ‘Onascimento ea difiso dos signos imaginados e dos rites colectivos traduzem a necessidade de encontrar uma linguagem e um modo de expresso que correspondam a uma comunidade de imaginagio social, garantindo as massas, que procuram reconhecer-se e afirmar-se nas suas acgées, um modo de comunicacio. Por ‘outro lado, contudo, esse simbolismo e esse ritual fornecem um cenério e wm suporte para os poderes que sucessivamente se instalam, tentando estabilizar-se Com efeito, & significative que as elites politicas se déem rapidamente conta do facto de o dispositive simbolico ser um instrumento eficaz para influenciar rieutar a seusibilidade colectiva, em suma, para impressionar e eventualmente ‘manipular as nmultidées. Ja aludimos a elaboracio, durante 0 periodo revolucionério, ddas teorias que valorizam a importineia da imaginagfo colectiva. Do mesmo passo, sto também elaboradas as suas téenicas de manejo. Recorde-se a formula de ‘Mirabeau, que resume essa dupla tendéncia: nfo basta “mostrar ao homem a verdade a questo capital é leva-lo a apaixonar-se por ela; ndo basta servi-lo nat suas exigéncias primérias, se ndo nos apoderarmos da sua imaginagio”. A fim de “cumprir este objective politico e moral”, € necessério instituir um sistema de “edueagio piblica” distinto da instrugao. Esta limita-se a dispensar um saber; a outra tem por objectivo formar as almas. Esta idéia, que entio se toma um lugar- commm, fundamenta e justifiea o laneamento da propaganda instimida. Esta é concebida como um empreendimento global que diz respeito a todos os cidadios, formando o seu espirito, orientando as suas paixdes, inculeando modelos formadores positives ¢ apontando os inimigos a derrotar. Trata-se, como dizia Rabaut-Saint-Ftienne em 1792, de encontrar um meio infalivel de comunicar incessantemente, em pouco tempo, com todos os Franceses simultaneamente, impressdes uniformes e comuns cujo efeito os tomnard, a todos, dignos da Revoluedo. Para além das formulas grandiloguentes, encontramos também a expressio de problemas precisos numa linguagem quase tecnolégica, como por exemplo nas palavras formidiveis da Anacharsis Cloots, quando pedia que a Republica garantisse 0 comérvio exelusivo das matérias-primas com que se fabrica a opinigo publica. A 18 de Agosto foi institufda, alids por pouco tempo, uma seceiio do ministério do Interior encarregada da propaganda, cuja designagio traduz, preci- ms IMAGIVAGAO SoctAL samente, a assimilagio do poder central ao supremo ordenador da imaginagio colectiva: chamava-se, com efeito, “Bureau dEspnt”, Seria demasiado longo diseutir aqui a eficdeia desta propaganda e o éxito deste ‘empreendimento que visava

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