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DO PÚBLICO PARA O PRIVADO:

Redefinindo espaços e atividades femininas(1890-1930)

Maria Izilda Santos de Matos*


Resumo

As recentes preocupações da historiografia com a descoberta de


temas, agentes, experiências e temporaridades anteriormente esquecidos
favorecem também a focalização de outros espaços emergente na
memória coletiva e presente nas pedras da cidade. Dentro dessas
preocupações procurar-se-á recuperar a dinâmica entre as
transformações na cidade, a definição do espaço para os gêneros e a
alteração de certas atividades nos domicílios, entre elas a das lavadeiras e
das amas-de-leite.

O PÚBLICO E O PRIVADO:

Numa paulicéia desvairada

A expansão urbana de São Paulo e Santos esteve


vinculada diretamente aos sucessos e/ou dificuldades da
economia cafeeira. Além de determinar o ritmo de crescimento
da cidade, o café também definia o ritmo de vida na cidade: as
épocas do ano eram as da safra, da entressafra e da colheita; o
comércio era movido pelo café e sofria as conseqüências de suas
cotações; a cidade, as pessoas, sua sobrevivência e até o seu
temperamento e conduta dependiam drasticamente da sorte de
um único produto - o "ouro verde".1 Dessa forma, em poucos
anos a capital paulista consolidou-se como o grande centro
capitalista, integrador regional, mercado distribuidor e receptor

* Professora do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências


Sociais PUC-SP.
1 SEVCENKO, Nicolau:. Orfeu Estático na Metrópole. São Paulo, Cia. das Letras, 1992.

cadernos pagu (4) 1995: pp. 97-115.


Do público para o privado

de produtos e serviços, fatores nitidamente vinculados ao


crescimento da produção cafeeira. A política desencadeada pela
cafeicultura paulista, estimulando e promovendo intensamente a
imigração, em proporções bem superiores às possibilidades de
emprego no campo, favoreceu muito o crescimento da população
urbana.2 Assim, em momentos de queda do preço do café, geada
ou pragas, a evasão dos colonos do campo era acentuada,
provocando acúmulo de despossuídos na cidade, gerando um
novo perfil populacional.
O antigo "burgo dos estudantes", onde o ritmo de
transformações era lento e o espaço quase estático, alterava-se
rapidamente com a urbanização acelerada. Nesse processo de
urbanização coexistiam permanências, demolições e construções,
cresciam as obras públicas, espaços passavam a ser definidos
como novas áreas comerciais e financeiras, além da zona do
meretrício. Conjuntamente com a intensificação industrial,
quarteirões e bairros diferenciavam-se segundo a predominância
das atividades ali estabelecidas; ruas, vilas e cortiços povoados
sobretudo por operários, em sua maioria imigrantes, mostravam
a latência de um espaço entre a casa e a rua onde ocorriam trocas
permanentes, estabelecendo relações dinâmicas e criando laços
de solidariedade e estratégias de sobrevivência. Novos lugares
passaram a receber novas marcas dos grupo que ali vinham se
instalar: o bairro dos italianos e o dos japoneses: no Bom Retiro,
os judeus; na Vinte e Cinco de Março, os sírios-libaneses.
Nesse processo, a problemática da cidade foi delineada
enquanto questão - a chamada questão urbana - encontrando-se
atravessada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania,
passando a cidade a ser reconhecida enquanto espaço de tensões.
A primeira via a focalizar a cidade de São Paulo como uma

2 De acordo com o censo do ano de 1872, quando a cidade já sofria conseqüências do surto
cafeeiro, a população de São Paulo era de 19.347 pessoas. No censo seguinte, o de 1890, elevou-se
para 64.934 habitantes, e no início do século XX, em 1908, eram 270.000 moradores, atingindo a
cifra de 579.000 pessoas em 1920.

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Maria I. S. de Matos

"questão" foi a higiênico-sanitarista, conjugando o olhar médico


com a observação/transformação do engenheiro, junto a uma
política de intervenção de um Estado planejador/reformador, que
procurou de todas as formas neutralizar o espaço, dar-lhe uma
qualidade universal e manipulável, através da "racionalidade e
objetividade" da ciência, que tem função-chave na sua luta contra
o "arcaico pela ordem e progresso"3; caminhando conjuntamente
ao desejo já latente e generalizado de "ser moderno", em que a
cidade aparece como sinônimo de progresso em oposição ao
campo. Conjuntamente à questão urbana constroem-se a questão
social com o surgimento da pobreza e a identificação do outro -
o pobre, o imigrante.
A maior parte dos estudos que focalizam as
transformações urbanas em São Paulo reproduz sem muita critica
o discurso característico das fontes oficiais - logo, públicas -, e
mostram-se indicativos mais de um "dever ser" do que de "um
ser", ao apresentar modelos de relações íntimas, procurando
corrigir, extirpar, estigmatizar os comportamentos. Dessa forma,
esses estudos, em geral reproduzem o privado como a imagem
que dele tinha ou pretendia ter o público.
As transformações no espaço urbano vêm atraindo a
atenção de vários historiadores, mas o foco do espaço privado
não vem merecendo a devida análise. A expansão urbana e
capitalista dos finais do século XIX trouxe o aparecimento da
noção de rentabilidade, eficácia do trabalho em todos os
domínios, inclusive no espaço interior, destacando a importância
da limpeza e da higiene para saúde e bem-estar da família. Nesse
foco, a casa aparece como o centro do mundo, a partir do qual a
cidade cresce e se constrói em várias direções: o quintal, o
terreiro, a rua, o bairro, o rio e a várzea (espaço de secar a
roupa, de jogar futebol, de acampar, de pescar lambari com
peneira), sendo difícil aí delimitar o público e o privado.

3 MATOS, Maria I. S. de: Trama e Poder- Um estudo sobre as Indústrias de Sacaria para o
Café (1888-1934). São Paulo, tese de Doutorado, FFLCH-USP, 1991, mimeo.

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Do público para o privado

A arquitetura das casas, com muitas janelas voltadas para


a rua, favorecia o intercâmbio social, não havendo uma
preocupação de isolamento. Na janela, sempre ladeada por
assentos (as conversadeiras), sentavam-se as mulheres, à luz
natural, para costurar, bordar e tricotar, descascar os legumes e
conversar com as vizinhas. As relações de vizinhança
multiplicavam-se, as compras, vendas e as entregas eram ali
realizadas, as crianças buliam com os transeuntes, as moças
flertavam nas soleiras. Assim, através da janela, a casa e a rua, o
público e o privado se interpenetravam através de trocas
permanentes.
O espaço não é só caracterizado e identificado pelas
imagens, ele também é som, e da rua vinham os sons desde as
primeiras horas da manhã até que a última janela se fechasse à
noite4: pregões, cantilenas e serenatas, ainda tão presentes de
forma nostálgica nas lembranças de uma Paulicéia desvairada.
Nessa Paulicéia as tensões urbanas emergem vivenciadas
de forma fragmentada e diversificada por seus habitantes
(nacionais e imigrantes, homens e mulheres, brancos e negros,
em diferentes ocupações: leiteiras, operários, carroceiros,
lavadeiras), o que contrasta com as representações nos estudos
acadêmicos e técnicos e nas fontes oficiais, onde a cidade
apresenta-se como unidade. O conflito se instala na brecha aberta
entre a representação global (porque racional) da cidade e as
memórias, onde emergem as representações fragmentárias do
espaço - o espaço como suporte de memórias diferentes,
contrastadas, múltiplas, convergentes ou não, mas que delineiam
cenários em constante movimento, onde esquecimentos e lacunas
constroem redes simbólicas de formas diferenciadas, discursos
diversos que fazem da cidade lugar para se viver, trabalhar,

4 BOSI, Ecléa: "Memória do trabalho", IN Memória e sociedade - Lembranças de Velhos. São


Paulo, EDUSP, 1987.

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rezar, observar, divertir-se. E onde, o privado ultrapassa os


círculos da moradia ou da família, misturando-se com os laços
comunitários e étnicos, criando espaços de sociabilidade e
reciprocidade, no trabalho e no lazer, em meio às tensões
historicamente verificáveis.
Todavia, a implantação da ação reformadora num quadro
de transformações urbanas mais amplas vai atribuindo novos
significados ao público e ao privado, que sofrem variações tanto
no próprio espaço como no tempo, sendo difícil e problemático
delineá-los em abstrato, sem relacioná-los ao objeto pesquisado.
O público, cada vez mais voraz, estende seus tentáculos
no domínio das intimidades; o privado, posto na defensiva,
fortifica laços particulares de convívio. Os espaços públicos
começam a corresponder às conotações negativas de multidão,
perigo, estranhamento, indiferença, circulação, enquanto o
privado representa o refúgio seguro, o domínio da natureza.5
Assim, torna-se necessário tentar recuperar a dinâmica
entre o público e o privado, sabendo que esses elementos são
social, cultural e historicamente redefinidos, para perceber a não
polaridade entre eles. Note-se que as categorias privado e
público não devem ser usadas aleatoriamente para qualquer
sociedade ou época, podendo dessa forma virem a tornar-se a-
históricas. Os conceitos, sentidos e práticas do público e do
privado, seja quanto a espaço, ação ou propriedade, não são
universais nem estáveis. O processo de construção e de
segmentação do público/privado carrega na sua trajetória inter-
relações desenvolvidas através de um discurso legitimador que
vem atrelado desde a origem a um ocultamento de toda uma
tensão e indefinição entre esses aspectos.
A utilização da polaridade público/privado pode conduzir
com freqüência a ambigüidades ou a impasses que muitas
investigações têm enfrentado. Nesse sentido, o investigador deve

5 SENNET, Richard: O declínio do homem público. São Paulo, Cia. das Letras, 1988.

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Do público para o privado

estar atento no seu contato com as fontes, em particular as fontes


orais, a partir das quais as relações entre o privado e o público
podem aclarar-se e apurar-se, permitindo novas descobertas e
desvendamentos sobre domínios que se supõe conhecidos.
O historiador que tem como preocupação restaurar
tramas de vidas encobertas, procurar no fundo da história figuras
ocultas, recobrar o pulsar do urbano, recuperar sua ambigüidade
e a pluralidade de possíveis vivências e interpretações, desfiar a
teia de relações cotidianas e suas diferentes dimensões de
experiência deve evitar dualismos e polaridades e questionar as
dicotomias. Deve ter como preocupação explícita libertar-se de
conceitos abstratos e universais e ao mesmo tempo resgatar as
experiências de outros protagonistas, restringindo o objeto
analisado e procurando desconstruí-lo no passado, o que permite
a redescoberta de situações inéditas, não no sentido de apontar o
excepcional, mas de descobrir o que até então era inatingível, por
estar submerso.
Procurar historicizar os conceitos e categorias com que
se tem trabalhado, construindo-os durante o próprio processo de
pesquisa, e incorporar as mudanças, aceitando conscientemente a
transitoriedade dos conceitos e do próprio conhecimento, são
preocupações que norteiam esse trabalho.

PORTA ADENTRO

Numa conjuntura de alta rotatividade da mão-de-obra,


como a da cidade de São Paulo na passagem do século, fruto de
um mercado de trabalho com flutuações cíclicas, os serviços
domésticos absorviam um dos maiores contingentes de
trabalhadores, particularmente do sexo feminino e menores.
Mulheres casadas ou solteiras, imigrantes ou nacionais, brancas
ou negras, sós ou acompanhadas com filhos, empregavam-se em

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Maria I. S. de Matos

casas de família para diversos serviços.6


Procurando refletir sobre a singularidade do cotidiano no
domicílio, esta unidade intenta destacar alguns aspectos sobre a
organização do trabalho nesse espaço, resgatando as relações
sociais, de gênero e étnicas, práticas e modos de vida. Pretende-
se, assim, penetrar na organização de tempo e espaço do
universo "porta adentro", onde, ao contrário das transformações
urbanas mais explícitas, as alterações viabilizavam-se de formas
veladas. Dentro da análise das várias ocupações tradicionalmente
conhecidas como "criados de servir", foram selecionadas duas: as
lavadeiras e as amas-de-leite.

Roupa suja se lava em casa

A posição geográfica da capital paulista, cercada pelos


rios Tietê, Tamanduateí, Anhangabaú e Pinheiros, facilitava o
trabalho das lavadeiras, uma das ocupações autônomas mais
procuradas pelas mulheres, tanto imigrantes, quanto nacionais,
prioritariamente as casadas, hábeis no lavar, alvejar, secar, passar
e engomar.
A lavagem de roupa era uma das funções mais essenciais
em qualquer moradia. As famílias de posses usavam grande
quantidade de roupa branca no seu cotidiano, roupas de cama,
mesa e banho, e também as próprias roupas de homens, mulheres
e crianças, que em geral exigiam cuidados especiais no lavar,
passar e engomar.
A maioria das casas não possuía uma fonte direta de

6 Apesar das variações conjunturais, a oferta de mulheres e homens para prestar serviços
domésticos era grande. O rastreamento dos anúncios diários na imprensa, cruzado com as
estatísticas de imigração, permite identificar que após 1914, durante o primeiro conflito mundial, a
queda nas entradas de imigrantes levou a uma diminuição da oferta desses trabalhadores e a um
aumento da procura, gerando uma conseqüente tendência a elevação dos salários dos criados de
servir. Todavia, tem-se que ponderar que a situação de carestia entre 1917-19 reverte em parte essa
tendência, já que uma das vantagens do emprego doméstico era receber casa e comida.

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Do público para o privado

água, e as instalações de água encanada não estavam difundidas


no início do século. Ainda em 1910 encontram-se referências aos
vendedores de água em tonéis, uma vez que persistiam as
dificuldades com o abastecimento.7 Assim, poucas eram as
lavadeiras que tinham um local privado para lavar a roupa.
No período de seca, as lavadeiras iam lavar suas
encomendas no Tamanduateí:

"A várzea do Carmo (hoje parque D. Pedro II) era


alagadiça no tempo das chuvas. Na seca, entre o
Gasômetro e o Carmo, dois braços do Tamanduateí
formavam uma ilha. Um desses é o leito atual e
outro corria paralelo à rua 25 de março, até juntar-
se ao primeiro, ali pela altura do atual mercado. Da
Rua Glicério e de toda a encosta da colina central
da cidade, desciam lavadeiras de tamancos,
trazendo trouxas e tábuas de bater roupa. Á beira
d'água, juntavam a parte traseira à dianteira da
saia, por um nó no apanhado da saia, a qual
tomada aspecto de bombacha. Sungavam-na pela
parte superior, amarravam-na à cintura com
barbante, de modo a encontrá-la até os joelhos ou
pouco acima, tomando agora o aspecto de calção
estofado. Deixavam os tamancos e entravam n'àgua
debruçando-se sobre o rio, sem perigo de serem mal
vistas pelas costas. Terminada a lavagem
recompunham o vestuário, calçavam os tamancos e

7 "O serviço de abastecimento de água à população, prestado pelo chafariz do Rosário, foi dos mais
deficientes (...) os moradores das Ruas de S. Bento, Boa Vista e Imperatriz queixam-se da falta de
água que há neste chafariz, vendo-os obrigados a mandar buscá-la longe ou comprarem aos
carroceiros..." GASPAR, Byron: Fontes e Chafarizes de São Paulo. São Paulo, Conselho Estadual
de Cultura, 1967, p.77.
"Ainda bem que se vendia água nas ruas, em pipas puxadas por pacientes burrinhos, mas era
água, além de pouca, e má, vendida a 40 réis o barril - coisa caríssima". MARQUES, Gabriel: Ruas
e Tradições de São Paulo. São Paulo, Conselho Estadual de SP, s.d., p.57.

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subiam a encosta. Isso durou até que o poder


público resolveu aterrar e ajardinar a Várzea do
Carmo." 8

O trabalho junto ao rio possibilitava o relacionamento


também com canoeiros, pescadores e carroceiros, que se
encantavam com o cantarolar de lavadeiras.9 Costume bastante
difundido, o canto ritmava o trabalho de lavar, esfregar, torcer e
bater, que realizado em grupo possibilitava às mulheres trocar
experiências do dia-a-dia. Num contexto de tagarelice e
camaradagem, informavam-se sobre os problemas da vizinhança,
transmitiam e mantinham as tradições, como receitas, remédios,
histórias, rezas. Assim, o trabalho coletivo revigorava vínculos
de vizinhança que significavam lazer, solidariedade material e
afetiva, mas também controle e regulação das condutas e
procedimentos.
A organização e o ritmo do trabalho de lavagem, em
geral ao ar livre, sofriam interferência das condições climáticas: o
frio, a chuva e a famosa garoa de São Paulo dificultavam a
execução do trabalho e da secagem, além de provocar atrasos
nas entregas.
O crescimento urbano ampliou as dificuldades
habitacionais e sanitárias em São Paulo e Santos, que passaram a
ser atingidos por graves problemas epidêmicos. O setor médico,
aliado aos poderes públicos, desde os finais do século XIX
procurava encaminhar providências para sanar essas dificuldades.
Entre as medidas tomadas, procurou-se organizar a distribuição e
generalização da água encanada, não sem a resistência da
população:

8 AMERICANO, Jorge: São Paulo Naquele Tempo (1895-1915). São Paulo, Saraiva, 1957,
p.146.
9 MOURA, Paulo Cursino de: São Paulo de Outrora. São Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/Itatiaia,
1980, p. 152 e 241.

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Do público para o privado

"Para forçar os moradores de certos bairros a


terem água em suas casas, a Cantareira mandou
então demolir, além dos chafarizes que entregara ao
público onze anos antes, aqueles que havia no largo
do Carmo e no do Rosário (1893). Quando
derrubavam este último, moradores do lugar e
outros populares se opuseram com violência,
resistindo até que a força policial entrasse em ação.
Nesse mesmo ano, como se avolumassem as
manifestações de desagrado da população ao
serviço de águas da Cantareira, o governo do
Estado chamou a si o encargo, criando-se então a
Repartição de Águas e Esgotos..."10

Para conter os protestos populares, particularmente das


lavadeiras do Brás e outros bairros pobres, foram instaladas
torneiras no lugar de antigos chafarizes, na porta de cortiços ou
no final de algumas ruas - uma única torneira para abastecer toda
a população de uma área.
As trabalhadoras externas (lavadeiras, engomadeiras)
enfrentavam, além da faina cotidiana do seu trabalho doméstico,
as obrigações com a freguesia, os prazos para a entrega das
encomendas. Encaravam cotidianamente a sobreposição de
tarefas e obrigações, com um tempo picotado e constantemente
reconstruído, percorrendo grandes distâncias (já que era proibido
utilizar bondes com pacotes de roupas sujas) com pesadas e
volumosas trouxas de roupa suja ou limpa.
Essas mulheres conheciam as técnicas e os segredos de
sua ocupação, estratégias para branquear, engomar e passar a
roupa, além de produzirem elas próprias o sabão e a goma:

10 BRUNO, Ernani Silva: História e Tradições da cidade de São Paulo. São Paulo, Hucitec,
1983, p. 1127.

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"Minha vó era do tempo da escravidão, o serviço


dela era de lavar roupa para fora...minha vó até
fazia sabão em casa, sabão de cinza, né...cozinhava
sebo...a potassa, que era a soda..., não usava
cândida mas uma folha larga que chamava se
pariparoba. Então a gente pegava aquelas folhas e
esfregava com a roupa né, com sabão... ficava nova,
parecia uma neve de tão branca que ficava a roupa.
Então a gente ficava a noite todinha engomando
roupa...fazia também a goma com amido ...às vezes
era cru né, aqueles saiotes que existia naquela
época, é...bem duro, então a goma era
cozida;...camisa de homem, então a gente tinha que
ter uma goma mais fraca, então era uma, então era
crua. E naquela época não tinha esse ferro elétrico,
era ferro a de carvão. Então a gente limpava bem o
ferro, punha o carvão dentro do ferro né, e com
brasa de carvão aí ele esquentava né. Aí a gente
fechava o ferro e começava a passar a
roupa...quando acabava o carvão e já tinha que ir
lá pôr carvão outra vez. De repente, às vezes, o ferro
abria. Tava engomando aquelas camisas limpinhas
né, aí de repente o ferro abria. Ai! Voava carvão
por cima das camisas suja tudo, perdia todo o
trabalho." 11

As imagens deixadas das lavadeiras foram sempre de


mulheres muito dispostas para o trabalho, muitas delas chefes de
família obrigadas a improvisar suas fontes de subsistência,
vivendo precariamente. Além de serem reconhecidas como
mulheres dispostas para o trabalho - executando suas funções

11 BANCO DE MEMÓRIAS DE FAMÍLIAS NEGRAS, Lembranças de D. Ilma Rosa Oliveira,


p. 3.

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Do público para o privado

como mães e esposas e realizando a tarefa da lavagem como


estratégia de sobrevivência na dura situação de carestia desses
anos da passagem do século e inícios do século XX - eram tidas
como "quem não leva desaforo para casa", pois cotidianamente
envolviam-se em brigas e acabavam parando na polícia.
Os conflitos cotidianos envolvendo lavadeiras estão
presentes na imprensa diária e nos relatórios dos chefes de
polícia. Umas brigavam porque passaram à sua frente na
utilização da bica, porque "sujou a minha roupa no quaradouro",
"porque me deu com o tamanco na cabeça", "por ter retirado um
bambu de estender roupa e ter insultado com palavras obscenas",
e muitas foram as disputas por espaço nas cordas de estender
roupa.
Em Santos, a construção do porto e o saneamento da
cidade foram obras interligadas no quadro de transformação
urbana e fizeram parte de um processo através do qual se
reorganizaram o trabalho e a própria face da cidade. No combate
às epidemias, nas desinfecções e no controle sobre cortiços,
cocheiras e lavanderias públicas trabalhavam conjuntamente a
Cia. Docas de Santos e a Comissão Sanitária, que procuravam,
aliadas à Comissão do Saneamento, disciplinar o traçado da rede
de esgotos e das ruas. O movimento intenso do porto, com um
grande número de navios entrando e saindo, em particular nos
momentos de safra cafeeira, criava a necessidade de que as
roupas de bordo fossem lavadas.
Nos anos finais do século XIX, um grande número de
lavadeiras, na maior parte mulheres imigrantes, se encarregava
desse serviço. Essas mulheres agitavam o porto, movimentavam
a cidade, pois em tempo hábil, antes da partida dos navios, as
roupas deveriam retornar a bordo limpas, passadas e engomadas.
Essa atividade se apresentava como uma das
possibilidade de ganho para as mulheres pobres. Todavia, foram
acusadas pela propagação das pestes e epidemias que assolavam
o porto. Alegava-se que a mistura das roupas na lavagem
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Maria I. S. de Matos

possibilitava o contágio, trazendo dos navios as pestes. Além do


mais, a água suja das lavagens que escorria pela cidade também
era considerada grande foco de propagação.12 Procurou-se então
controlar e acabar com esse tipo de ocupação, difundindo-se as
lavanderias a vapor.
Acreditava-se no início do século que os "miasmas"
empestavam o ar e a água, sendo a sujeira veículo de
contaminação. As autoridades higiênicas de Santos e de São
Paulo também alertavam que as mulheres que recolhiam roupa
para lavar em tinas comunitárias nos cortiços (considerados
focos de contaminação) "misturavam as roupas de todas as
gentes" e contaminavam as famílias, reforçando a idéia corrente
de que o pobre contaminava o rico.13 As preocupações com a
água consumida pela população da cidade de São Paulo fizeram
com que as lavadeiras fossem proibidas de realizar seu trabalho
nos rios, pois as águas daí encanadas para uso da população
poderiam ser por elas contaminadas.
Tentava-se de diferentes formas normatizar essa
atividade, que gradativamente, mas não sem resistência, perderia
o seu caráter público e externo, em particular o uso das margens
dos rios e chafarizes, a prática de quarar em espaços públicos e
de secar nas pontes dos rios e praças da cidade. Essa função
passou a ser realizada prioritariamente, embora não
exclusivamente, nos domicílios dos patrões, onde as lavadeiras
passaram a trabalhar como mensalistas e, principalmente,
diaristas. Assim, nos quintais, utilizando-se de grandes bacias de
madeira ou tinas, em "repuxos com tanques" e água encanada,
lavavam, quaravam, estendiam as roupas em cordas sustentadas
por bambus para secar ao sol. Gradativamente incorporada ao

12 SANTOS, Martins Francisco. História de Santos. São Paulo, Empreza Gráphica da "Revista
dos Tribunaes", 1937, vol.2, p.29.
13 No setor médico-sanitarista acreditava-se que febres e epidemias (por exemplo, a febre amarela)
eram transmitidas pela roupa; assim, as lavadeiras, que em seus domicílios e nos rios misturavam as
roupas sujas, eram verdadeiramente perseguidas. Somente em 1903 é que Adolfo Lutz, do Instituto
Bacteriológico de São Paulo, provou que a transmissão desta doença era feita pelo mosquito.

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Do público para o privado

cotidiano, essa prática se corporifica no ditado popular "roupa


suja se lava em casa".

Amas-de-leite

Uma das ocupações femininas que possibilitavam


melhores ganhos era a de ama-de-leite, em virtude da
responsabilidade dessas criadas a quem os patrões confiavam a
vida e os cuidados de seus filhos, e também porque esse serviço
requeria muita paciência, dedicação e cuidados, além de asseio
constante, pois para que a ama pudesse manter a criança e a si
própria limpas tinha que fazer constantes e generalizadas trocas
de roupa, em geral toda vez depois de amamentar. É que os
patrões se preocupavam com a possibilidade de que as amas
infectassem as crianças, principalmente com tuberculose e sífilis.
Nesse sentido, a questão do aleitamento mercenário preocupava
não só os pais, mas também as autoridades médicas. Já deste
1894-95 tentou-se regulamentar essa ocupação, iniciando-se por
organizar o "Serviço de Aluguel", ou contrato de amas-de-leite,
procurando-se regrar obrigações e deveres.

"art. 1 - A Intendência de Justiça, Polícia e


Hygiene organisará o serviço de aluguel ou
contracto de amas de leite, sujeitando estas ao
exame médico do instituto da maternidade, ou como,
convier impondo-lhes obrigações e deveres, bem
como aos patrões, com especial cuidado de evitar o
abandono da amamentação iniciada velando por
tudo quanto seja necessário para o exercício da
profissão conforme a sciencia e o direito..." 14

14 LEIS E RESOLUÇÕES DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1894/95, p. 91.

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Maria I. S. de Matos

Sugeria-se a criação de órgãos médicos que examinassem


o sangue e o leite das amas, bem como fornecessem atestado de
saúde. Além de arregimentar e catalogar as mulheres disponíveis
para essa função, esses órgãos deveriam servir como local de
seleção, mantendo listas das que estivessem qualificadas para
trabalhar, registrando o número de partos que cada mulher tivera
e a data de nascimento de seus filhos.15 Nesse sentido, a
contaminação com a sífilis e outras doenças venéreas colocava
questões mais delicadas, pois deveria ser exigido um exame mais
específico e a maior parte dessas mulheres resistia tenazmente a
se sujeitar a exames de ordem ginecológica. Alegava-se que essas
exigência reduziriam em muito o número de mulheres que se
ofereciam para essas funções16, ampliando a dificuldade de se
encontrar pessoas disponíveis, como lembra a mãe de Jorge
Americano:

"Depois que nasceu não tive leite, e não houve


jeito de arranjar uma ama. Uma, porque o doutor
examinou e disse que não era de boa saúde. Outra,
porque já tinha leite de seis meses, não servia para
uma criança recém-nascida. A terceira, porque o
marido era insuportável. A última tinha bom leite,
mas pouco, não dava para o filho dela e para a
nossa. A menina ficou magrinha." 17

15 A proposta visava proteger as crianças do contágio das amas. Entre as instituições de que temos
conhecimento, uma das que foi mais eficiente, perdurando por longo período, foi a "Gota de Leite"
de Santos, criada na passagem do século, e que posteriormente foi transformada em orfanato.
16 Quanto ao exame, a discussão foi intensa. Alegava-se que o médico deixava sua humanidade
fora do consultório, sendo sua função apenas "ler o corpo da mulher...o colega poderia attestar que
não há donzella por mais púdica, nem mãe de família por mais recatada, que não possa dizer ao
médico: Lê no meu corpo como quem lê num livro aberto deixaste lá fora a tua humanidade... não
és um homem, és um médico... tu não me contemplas com os olhos da carne... confio-me a ti porque
teus lábios estão fechados...". Discursos parlamentares, In Anais da Câmara Municipal de São
Paulo, ano 1914, p.134.
17 AMERICANO, J. op.cit., p. 82.

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Do público para o privado

Embora algumas mães na realidade não pudessem


amamentar, outras não o faziam por costume, vaidade, falta de
paciência e até repugnância - a grande dificuldade não era só o
tempo gasto na amamentação, mas suportar a sujeira da criança.
A alta mortalidade infantil e as preocupações com a
eugenia foram elementos que caracterizaram o discurso médico-
sanitarista do período, que procurava prescrever normas
referentes aos cuidados a serem dados às crianças e introjetar
uma nova imagem da maternidade, questionando as mulheres que
por "desleixo" ou "vaidade" não queriam amamentar os filhos.
Esse discurso procurava reforçar a imagem da mulher voltada
para o lar.
As transformações nesse sentido não se efetuaram sem
contradições. O controle do aleitamento mercenário foi feito
paralelamente à difusão de uma nova noção de maternidade e de
princípios de dietética infantil pela puericultura, encaminhando as
campanhas pelo leite higienizado e pelo leite de vaca integral
(testado contra a tuberculose). A educação referente aos
primeiros meses de vida também se transformou, mas a utilização
de amas continuou pelo menos até 1930, quando nos jornais
ainda havia anúncios de procura e oferta de amas:

"Ama- offerece-se estrangeira com abundante e


saudável leite de 4 mezes, pode dormir na casa dos
patrões..." 18
"Ama offerece-se uma para amamentar 3 vezes por
dia, leite de um mez, sem filho..." 19
"Ama offerece-se uma de cor, com leite de 3
mezes, dorme em casa dos patrões, com criança. O
leite e o sangue já foram examinado..." 20

18 DIÁRIO POPULAR, 2.1.1926.


19 DIÁRIO POPULAR, 4.1.1926.

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Maria I. S. de Matos

Pode-se perceber que eram variadas as candidatas:


brancas e negras, nacionais e estrangeiras de diferentes
nacionalidades, para dormir na casa dos patrões ou "para
amamentar três vezes por dia". Algumas vinham sem os filhos, e
outras se faziam acompanhar pela criança, muitas vezes
sujeitando-se a receber menos por isso. Havia as amas de
primeiro leite e as já de um quarto ou quinto filho, com leite de
um, dois ou até sete meses.
Apesar das campanhas, algumas famílias ainda
mantinham o hábito de que as crianças fossem criadas nas casas
das amas:

"Precisa-se encontra uma senhora que queira


tomar conta de uma criança de 2 mezes, podendo
criar com mamadeira em sua casa " 21
"Ama precisa-se com leite de dias, criar em sua
casa" 22
Essas "amas criadeiras", como eram chamadas, serviam
tanto as mães de família como as instituições públicas. Como não
havia orfanatos suficientes para abrigar crianças abandonadas, a
própria Santa Casa se utilizava de seus serviços:

"Mais de um século - observou o Dr. Vilares -


perdurou o sistema das "amas ou criadeiras, que
eram mulheres de origem modesta, residentes nas
vilas mais pobres dos arredores da capital e que,
recebendo a criança em sua casa, não visavam
senão uma remuneração, por pequena que fosse.
`Quem já não ouviu falar das amas de Santo Amaro
e Itapecirica? Muito ignorantes, pertencentes a
famílias que trabalhavam na lavoura, recebiam da

20 DIÁRIO POPULAR, 6.1.1926.


21 DIÁRIO POPULAR, 2.1.1926.
22 DIÁRIO POPULAR, 4.1.1926.

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Do público para o privado

Santa Casa a propina mensal de quatro cruzeiros'.


Ainda do relatório do dr. Vilares são esta palavras:
'Pudemos verificar como eram assistidas as crianças
entregues às amas. Em geral, abrigadas em casas
primitivas, sem qualquer recurso higiênico, tratadas
por pessoas incultas e paupérrimas, as crianças
viviam na mais completa falta de cuidados os mais
prementes. Daí o seu elevado índice de
mortalidade'." 23
Sucessivamente, tentou-se organizar uma legislação que
regulamentasse essa ocupação, mas o que realmente determinou
a gradativa diminuição da utilização das amas-de-leite foram as
questões de saúde pública e as alterações nas relações familiares,
que passaram a ser delineadas a partir da constituição de um
novo modelo de família, implicando uma nova noção de mulher,
lar, educação e higiene. A designação das mulheres
exclusivamente para o espaço doméstico foi correlativa a uma
transformação no estatuto da infância, difundido pela
puericultura e pela escola e, de certa maneira, tardiamente
corroborado pela legislação. Nesse processo, todo tipo de
comportamento desviante, de relacionamento incontrolável,
ameaçador, impuro, anti-higiênico deveria ser bloqueado.
A partir de diferentes setores, em particular do médico-
sanitarista, propalava-se um modelo imaginário de família
orientado para a intimidade do lar e que conduzia a mulher ao
território da vida doméstica, locus privilegiado para a realização
de seus talentos, procurando-se introjetar-lhe a importância da
missão de mãe. A essa nova mulher - mãe e esposa - caberia
desempenhar um papel fundamental na família: sempre vigilante,
atenta, responsável pela saúde e felicidade das crianças e do

23 BRUNO, Ernani S.: Op.cit., p. 1195.

114
Maria I. S. de Matos

marido, dedicada ao lar e à sua higiene.24


Num momento em que crescia a obsessão contra os
micróbios, a poeira, o lixo e tudo o que facilitava a propagação
de doenças contagiosas, a amamentação mercenária passou a ser
vista como incompatível com essas novas formas. No âmbito das
propostas de higienização do lar, a palavra de ordem era eliminar
os miasmas e germes e qualquer veículo de contaminação.
Assim, a imagem difundida era a de que o pobre contaminava o
rico, e os criados aos patrões. Observar preceitos de higiene
constituía-se, porém, em sinônimo de acabar com o trabalho
mercenário de amamentação. Higienistas e sanitaristas,
preocupados com a "eugenia da raça, com o futuro das crianças
do Brasil", desencadearam uma campanha contra as condições
em que era realizado o trabalho de aleitamento infantil.
Dessa forma, o declínio da utilização das amas-de-leite
deve ser interpretado juntamente com as campanhas sanitárias e
as novas proposições vinculadas às expectativas inovadoras em
relação à mulher e ao lar, bem como com a ampliação de um
quadro de possibilidades de alimentação infantil.
________________________
FROM PUBLIC TO PRIVATE SPACE:
restruturing areas and gender activities

Abstract

The recent concerns about historiography with the discovery of new


themes, agents, experiences and temporalities previously forgotten also
contribute to centralize other sites found in the collective memory and in
the stones of the city.
Within these concerns, this article strives to rescue the relations
between the turne of the city, the definition of the gendre sites and the
alterations of certain activities in the houses, among them those the
washerwomen and the forternurses.

24 RAGO, Margareth: Do Cabaré ao lar: A Utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1985. DEL PRIORI, M.(org.): A História da Criança no Brasil. São
Paulo, Contexto, 1991.

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