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Rebobina, Brasil - ‘O Padre e a Moça' (1965): a metamorfose simbólica em mula-sem-cabeça

como forma de transcendência


por: Pedro A. Almeida

Joaquim Pedro de Andrade é um dos nomes mais interessantes do cinema brasileiro. Tanto
pela vasta gama de referências literárias em sua acanhada filmografia — o diretor realizou apenas 8
curtas e 6 longas em mais de 20 anos de carreira — quanto pelo profundo entendimento e apreço que
tinha pela diversidade cultural do próprio Brasil. Antes de O Padre e a Moça, havia dirigido dois curtas
documentais a respeito de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira: uma pequena obra-prima chamada
Couro de Gato — curta-metragem de ficção que se notabilizou por ganhar prêmios em festivais
internacionais e por ser incluído, posteriormente, no filme de antologia Cinco Vezes Favela — ; e um
longa de cinema-verdade sobre a carreira de Mané Garrincha e a relação sociológica do fenômeno
futebolístico com o povo brasileiro.
Diferentemente de seus colegas cinemanovistas, a carga política dos filmes de Joaquim Pedro
é mais indireta, pois o diretor abordava temáticas espirituais. A filmagem intimista de O Poeta do
Castelo mostra brevemente a relação afetiva de Manuel Bandeira com seu local de trabalho e a cidade
onde vive em consonância com sua poesia. Na pequena saga urbana retratada em Couro de Gato,
embora ilustre uma perspectiva definida sobre uma temática social ao dar enfoque aos meninos da
favela correndo pela cidade em busca de gatos, ainda assim particulariza os dramas sociais de forma
bem menos teórica do que o resto dos segmentos do filme no qual está inserido.
Livremente inspirado no poema “O Padre, A Moça” de Carlos Drummond de Andrade, o
primeiro longa-metragem de ficção do diretor segue um estilo espiritualista e acaba consolidando
uma estética bem alternativa ao que vinha até então sendo produzido no Cinema Novo. Logo de
cara, exibindo o impressionante rigor estético da fotografia de Mário Carneiro, os planos iniciais de
Paulo José chegando a uma pequena cidade mineira, vestindo a batina preta de padre contrastada
com o branco insosso e desgastado das casinhas decadentes, já dão certo ar de ascetismo poético ao
filme.
Na primeira fase de sua carreira Joaquim Pedro privilegiava uma espécie de purismo na
imagem e na poesia cinematográfica, um efeito que as suspensões espaço-temporais e os tempos
mortos nas ações dramáticas causam. Por este motivo, acabava conscientemente reduzindo o impacto
narrativo de determinadas cenas ou discurso ideológico mais direto (como era costumeiro no Cinema
Novo). Mesmo que o filme tenha uma camada de crítica política, esta fica em segundo plano em
relação às imagens lentas e atmosféricas, um tanto inspiradas no lirismo do cinema europeu
modernista da época — principalmente em Dreyer, Bergman e Bresson.
A narrativa é bem simples: um padre chega a um pequeno vilarejo mineiro, um antigo centro
de garimpo de diamantes — atualmente, estagnado e em franco declínio —, para dar extrema-unção a
um sacerdote à beira da morte. Lá conhece Mariana, uma jovem moça desejada por todos os homens
da cidade e presa a Fortunato, negociante que explora os trabalhadores locais. Assim como no poema
de Drummond de Andrade, o aspecto sensorial da narrativa importa mais do que os desdobramentos
e resoluções dramáticas. O longa é impregnado por um forte sentimento de degradação e falta de
perspectiva de vida, mas tal união de sensações negativas não retira o aspecto espiritual da esperança
de transcendência pelo erotismo e o amor metafísico unido ao folclore. É notável que a iconografia
católica tradicional seja tão pouco importante para a temática principal da obra, e que mesmo
focalizando um padre, a espiritualidade surja fora dos domínios da igreja.
A atriz Helena Ignez, ao interpretar Mariana, foge por completo ao famigerado estilo
histérico de atuação que ficou conhecido no Cinema Marginal; sob a direção de Andrade está
totalmente seca e silenciosa. Sua presença cria uma aura fantasmagórica de folclore popular: é a única
jovem do vilarejo, guardada a sete-chaves por um velho perverso. Ao se apaixonar pelo padre e
consumar uma relação sexual com ele, acaba se tornando, metaforicamente, a mula-sem-cabeça.
Quando a vemos na introdução do filme, em um plano geral da cidade, observando o padre à cavalo
através da janela da casa de Fortunato, percebemos que é uma personagem simbólica, objeto do
lirismo da obra. Ironicamente, Mariana é a fonte da ascese pessoal do padre, que só após renunciar
ao celibato consegue atinar para si como indivíduo emotivo. Ela encarna a peça fundamental para o
desenrolar do longa, que é populado por estátuas. Os moradores, assim como a cidade em que vivem,
estão parados no tempo. É a moça que desencadeia toda a ação dramática e a progressão simbólica da
poesia cinematográfica.
Joaquim Pedro de Andrade nega a ideia cristã de que os desejos corporais são ligados ao
pecado, mas simultâneamente mostra como o erotismo sem sustentação em laços afetivos pode gerar
prisão emocional e ruína espiritual. Tal é o caso dos homens que apenas desejam o corpo jovem de
Mariana, e se acorrentam a esse desejo carnal — além de restringirem todas as interações com a moça
a uma forma de escambo sexual, sem qualquer estabelecimento de vínculo emocional. Deste modo, a
única relação sexual ‘saudável’ apresentada vem com o sentimento romântico genuíno — não
obstante pecaminoso — entre o padre e a moça. Ou seja, o longa desconstrói e ressignifica um dos
principais tabus da Igreja Católica.
Além da figuração dos moradores reais de São Gonçalo do Rio das Pedras, o elenco do filme
conta com apenas quatro personagens: Paulo José e Helena Ignez, respectivamente interpretando o
padre e a moça, Mário Lago, no papel de Fortunato, e Fauzi Arap, atuando como Vitorino, o
bêbado da cidade que também cobiça Mariana. Por meio do relacionamento árido entre esses quatro,
o diretor efetiva um microcosmo de vilarejo interiorano estático e fabrica uma sensação de
esvaziamento dramatúrgico. O longa conta com vários momentos silenciosos, quase contagiosos, e
valoriza as trocas de olhares, gerando importantes movimentos para a trama através do poder da
sugestão.
As filmagens de O Padre e a Moça foram um tanto penosas. Joaquim Pedro e sua equipe
passaram por diversos problemas devido à precariedade do local, sem luz elétrica e água encanada.
Analogamente à personagem, Helena Ignez era a única moça entre quinze homens, e tal isolamento
de sua feminilidade certamente transparece no resultado do filme: a atriz está visivelmente retraída,
fruto do desconforto inerente às condições de filmagem, o que acaba trazendo bastante honestidade
ao seu modo de atuação. Mariana quer deixar o vilarejo e ir viver com o padre, pois não vê futuro
casada com Fortunato em um lugar pouco a pouco devorado por um câncer social. As múltiplas
dívidas que os habitantes contraem com o negociante nunca serão sanadas, e assim a cidade nunca
sairá do descaimento corrosivo, ficando eternamente à sombra do passado colonial.
O diretor prezou pela improvisação e coletivização do método de trabalho, escolhendo os
enquadramentos junto a seu diretor de fotografia e deixando para trás o roteiro técnico desenvolvido
antes de sua chegada em São Gonçalo dos Rio das Pedras. Os diálogos também foram flexibilizados,
e os atores tiveram liberdade para construir atuações sobre os temas das cenas. Tal forma fluida e
colaborativa de filmagem provoca uma fascinante beleza plástica e o filme parece ser desenvolvido ao
lado de seus personagens.
Aproveitando o tema gregoriano ‘Dies Irae’, utilizado por Carl Theodor Dreyer em Dias de
Ira, e posteriormente, por Stanley Kubrick em O Iluminado, Carlos Lyra compõe uma trilha sonora
macabra e com especial atenção para as melodias folclóricas. Quando é posicionada ao final do filme,
produz um efeito assustador, mas ainda assim ressalta o espiritualismo ascético do romance
malfadado entre o padre e a moça.
Após um silencioso clímax erótico, isolado no meio do sertão mineiro, a metamorfose
metafórica de Mariana em mula-sem-cabeça acaba ensejando uma transcendência espiritual
momentânea para a personagem, e a consequência desta transformação aproxima o longa de uma
história trágica e folclórica de horror. O filme inteiro carrega um clima niilista de degeneração
espiritual e material; somente na cena final, restrita a uma gruta incendiada, chega a infundir algum
tipo de conforto físico e emocional, extravasando a relação erótica e profana entre o padre e a moça.
É um amor impossível, que se torna possível apenas alguns segundos antes da morte. E então, fecha
com uma cartela branca (que rapidamente se dissolve para preto e inverte a cor do texto, tal qual a
batina do padre sobre o alvo corpo nu de Mariana, durante a cena de amor no isolamento) mostrando
uma das primeiras frases do poema de Drummond de Andrade. A passagem sintetiza tudo que foi
mostrado em tela, em uma fortíssima reiteração temática: “Ninguém prende aqueles dois / Aquele
um / negro amor de rendas brancas”.

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