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FEITICEIRAS NAS MINAS GERAIS: PRÁTICAS MÁGICAS,

RELIGIOSIDADE E COTIDIANO SOCIAL FEMININO (1713-1808)

Letícia Maia Dias1

RESUMO:

No decorrer de toda a história da colonização nos trópicos, a Igreja com o apoio


da Monarquia portuguesa, buscou moralizar e regular os comportamentos, ações e
costumes dos habitantes coloniais em conformidade com os preceitos e sacramentos da
fé católica. Em vista disso, a Inquisição (1536-1821) e os Bispados consolidaram-se como
instrumentos de enraizamento e vigilância do catolicismo na sociedade colonial,
combatendo os pecados e heresias praticadas nas diversas localidades da América
portuguesa, fato que não foi diferente no que se refere a Minas Gerais.
Mediante às especificidades de sua formação e povoamento, que evidenciava uma
grande heterogeneidade social e cultural, o catolicismo foi essencial na tentativa de
estruturar a religiosidade local e exercer um maior controle social e político da população.
E, embora não tenha havido uma visitação do Santo Ofício na capitania, ele se fez
presente por meio da ação dos comissários, notários e familiares e das visitas eclesiásticas
realizadas pelas autoridades do clero local.
As visitas que se tornaram periódicas a partir das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia de 1707, reconheciam e encaminhavam os delitos de instância
inquisitorial, o que, segundo Caio Boschi (1987, p.154), teria transformado a capitania
mineira em “um dos celeiros mais ricos em réus que contribuíram para a sobrevivência
do Tribunal de Lisboa.” Dessa maneira, Minas Gerais reúne um expressivo volume
documental eclesiástico e inquisitorial, e isto se relaciona a centralidade econômica que
assumiu no Império Ultramarino Português e em toda a extensão do Brasil colônia ao
longo do século XVIII, como uma região de grande exploração de ouro e diamantes que

1
Licenciada em História e Habilitada em Patrimônio (UFJF), Mestra em História Moderna (UÉvora),
aluna da Especialização em Ciência da Religião (UFJF), doutoranda em História (UFMG).
atraiu um expressivo contingente populacional, tornando-se base da economia colonial e
um local propício ao encontro de múltiplas tradições e vivências culturais.
Logo, este trabalho enquanto resultado do meu projeto de pesquisa de doutorado
que ainda se encontra em seus primórdios, se concentra essencialmente no decorrer do
século XVIII e início do XIX, período que nos permite perceber melhor as
particularidades de sua formação histórica, confirmando a concepção de Maria Efigênia
Lage de Resende (2007, p. 13) que, ao pesquisar a história mineira, considera “o
setecentismo mais que um século, uma época”, que só se encerra com a chegada da
família real em 1808. Sendo assim, consoante as balizas temporais cunhadas por Resende
e as referências existentes nas fontes eclesiásticas e inquisitoriais que nos propomos
analisar, escolhemos trabalhar o período compreendido entre 1713 e 1808.
No universo mineiro setecentista, as devoções aos santos e à Virgem Maria, bem
como as festividades e solenidades religiosas eram manifestações recorrentes, e, devido
ao crescente fluxo migratório de indivíduos de distintas origens e a chegada maciça de
escravos africanos, a religiosidade popular absorveu também influências africanas que se
vincularam às indígenas e europeias.
Aliás, cabe enfatizar que já no início do Setecentos, Portugal proibiu o
estabelecimento de mosteiros e conventos das ordens regulares na capitania, pois
desconfiava que religiosos especialmente os frades, estariam extraviando ouro. Desse
modo, coube à própria população com o auxílio das irmandades, confrarias e ordens
terceiras, organizar e efetivar a vida religiosa, nos centros urbanos, arraiais e freguesias
que foram se desenvolvendo, quanto nos mais distantes recantos da capitania.
Outrossim, o discurso idealizado, pregado e institucionalizado pela Igreja acabou
por esbarrar nos limites impostos pelas demandas e pelos diversos contatos culturais que
os colonos desenvolveram no dia a dia, transformando algumas ações frequentes em
pecados e heresias julgados pela jurisdição episcopal e inquisitorial, como a feitiçaria.
Como objeto central de investigação histórica, abordaremos as mulheres acusadas de
desenvolver práticas mágicas ligadas à adivinhação, cura, proteção, sortilégios, pacto
diabólico, e a esfera das afetividades.
Portanto, ao considerarmos a feitiçaria como um fenômeno que adquire os
contornos específicos da sociedade na qual se apresenta, a incidência das mulheres neste
delito constitui um importante parâmetro de análise da religiosidade e do cotidiano
sociocultural feminino nas Minas setecentistas. Destarte, por meio da análise histórica da
documentação diocesana (livros das Devassas Eclesiásticas localizadas no Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana) e da documentação do Tribunal do Santo Ofício
(denúncias dos Cadernos do Promotor e da Documentação Dispersa e processos
inquisitoriais presentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo), buscamos dar voz a
personagens que durante muito tempo estiveram anônimas, mulheres reais, que ao serem
denunciadas por feitiçaria tiveram aspectos de suas vidas evidenciados.

PALAVRAS- CHAVE: feiticeiras, religiosidade, cotidiano social feminino, Minas Gerais.

EXPLICITAÇÃO DO PROBLEMA:

Ao longo da Época Moderna, a interpretação misógina da Bíblia que concebia as


mulheres como herdeiras do pecado original de Eva e enaltecia a fragilidade de suas ações
e pensamentos, a predominância do instinto sobre a razão e da simplicidade sobre a
inteligência, ajudou a moldar e disseminar a imagem tradicional e simbólica da feitiçaria
como uma prática basicamente feminina, visto que essas características tornariam as
mulheres “presas fáceis do demônio” (BETHENCOURT, 2004, p. 206).
Logo, as feiticeiras ocupavam um lugar duplamente marginal: por serem mulheres
e por incorrerem num delito que subvertia concomitantemente a moral cristã e as
normativas da ordem social, pois ao manifestarem estas práticas, demonstravam dominar
não apenas os conhecimentos mágicos, mas as redes de estratégia, sociabilidade,
resistência e poder que mobilizavam, ultrapassando as fronteiras de sua posição social.
Portanto, contrapomos o lugar de sujeição e passividade facultado as mulheres pela
historiografia tradicional, sublinhando sua agência histórica.
É nesse cenário que inserimos as questões históricas que serão problematizadas,
de modo a compreender as singularidades da religiosidade e do cotidiano sociocultural
feminino por meio da trajetória das mulheres acusadas de feitiçaria em Minas Gerais entre
1713 e 1808. Além disso, consideramos a feitiçaria feminina um fenômeno histórico
construído social e culturalmente por mulheres que se relacionavam diretamente ao
contexto da escravidão e das dinâmicas de mestiçagens, dado que a maior parte delas
eram negras e pertencentes às camadas que Eduardo França Paiva denomina como
“mestiçadas”, tais como mestiças, mamelucas, bastardas, mulatas, pardas, caboclas,
cabras, curibocas, cafuzas, entre outras (PAIVA, 2019, p.140) .
A feitiçaria configurava-se como um delito Mixti Fori, que transgredia a
jurisdição civil, eclesiástica e inquisitorial. Todavia, visando não comprometer o tempo
de pesquisa, vislumbraremos os documentos referentes a Inquisição e ao Bispado de
Mariana. Essa escolha justifica-se também em função da articulação mútua que
desenvolveram, e ao fato de já ter familiaridade com os arquivos inquisitoriais, que
precisam ser interpretados cuidadosamente perante eventuais deturpações, pois foram
produzidos conforme a linguagem e os interesses dos inquisidores, estando os réus em
seus testemunhos sujeitos à situações de pressão psicológica e física (GINZBURG, 1989,
p. 206).
Como suporte documental, empregamos o Índice que contém a relação dos
denunciados nos Cadernos do Promotor, as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, os Regimentos do Santo Ofício (1640 e 1774) e dois inventários: “Prisioneiros do
Brasil (séculos XVI a XIX)”, de Anita Novinsky, e “Em nome do Santo Ofício:
Cartografia da Inquisição nas Minas Gerais”, de Maria Leônia Chaves de Resende e
Rafael José de Sousa.
A escolha por pesquisar as mulheres indiciadas por feitiçaria se deu no decorrer
mestrado, momento em que tive um contato maior com as fontes inquisitoriais do Arquivo
Nacional da Torre do Tombo e pude notar a expressiva presença das mulheres nas
mesmas, além da existência de algumas lacunas historiográficas sobre a temática. Diante
disso, acreditamos que no desenrolar deste estudo será possível conhecer mais
profundamente o universo social, religioso e cultural feminino, constituindo um relevante
contributo à historiografia colonial mineira, especialmente, no tocante aos estudos das
dinâmicas de mestiçagens e de gênero.

OBJETIVOS:

Objetivo geral:

A partir da investigação histórica das fontes inquisitoriais e diocesanas,


pretendemos atribuir protagonismo as mulheres acusadas por desenvolver práticas
mágicas nas Minas Gerais entre 1713 e 1808. A pesquisa nos propicia acessar e interpretar
alguns eventos de suas trajetórias individuais e, sobretudo, evidenciar ações,
mentalidades, sentimentos, estratégias, comportamentos, hábitos, poderes e relações, que
expressavam no cotidiano, mostrando que embora individuais estas trajetórias
apresentavam similitudes partilhadas no coletivo.

Objetivos específicos:
1. Entender a posição social e a influência que as mulheres denunciadas por
incorrer no delito de feitiçaria exerciam na religiosidade mineira e se gozavam de
prestígio local.
2. Demonstrar de que forma atuaram na realidade social, delineando as redes de
parentesco, afetividade e sociabilidade que estabeleceram entre si, seus clientes e os
demais indivíduos, identificando o perfil das feiticeiras (condição jurídica, qualidade,
estado civil, idade, local de origem e residência) e as comarcas onde mais atuavam
(explicitando se eram localidades mais rurais ou urbanas).
3. Tendo em vista que a maioria das acusadas pertenciam às camadas sociais
subalternas, isto é, eram negras e, conforme o conceito cunhado por Eduardo França
Paiva, “mestiçadas”, conceber a feitiçaria na conjuntura mineira como resultante da
escravidão e das dinâmicas de mestiçagens produzidas, sendo também uma fonte
alternativa de renda dessas mulheres.
4. Evidenciar a feitiçaria feminina como fenômeno histórico construído social
eculturalmente pelas mulheres, sendo resultante do intenso processo de interpenetração
mútua entre diversas tradições religiosas europeias, africanas e indígenas, já que houve
uma ressignificação do catolicismo imposto a partir de lógicas e demandas próprias do
cotidiano.

METODOLOGIA:
No transcorrer da história do Brasil Colônia, foi facultada à mulher uma posição
marginal no seio da sociedade. Entretanto, desde os fins da década de 1970 e início de
1980, a historiografia colonial, influenciada pela Nova História e pela História Social
Inglesa, vem ampliando seus horizontes até então presos às interpretações e fontes de
cunho econômico e político, possibilitando a evolução de estudos que privilegiavam a
redução da escala de análise e o diálogo com a antropologia, ressaltando as noções de
experiência e cultura como matrizes explicativas das ações sociais protagonizadas
sobretudo pelos grupos “subalternos” (CASTRO, 1997, p. 51).
Michel Foucault (1976) já anunciava a necessidade de desconstruir uma história
cujo sujeito universal era o homem branco, ocidental, cristão e burguês, estendendo sua
crítica aos historiadores que escreviam como se ele o fosse, pois estariam excluindo os
demais grupos sociais, produzindo uma história hierarquizada e incompleta. Nesse
sentido, tais reivindicações se fizeram cada vez mais presentes na historiografia, fato que,
aliado ao avanço do movimento feminista, cunhou a emergência de novas abordagens
metodológicas que deram visibilidade à questão feminina, conferindo às mulheres a
condição de sujeito e objeto das narrativas históricas.
Esse panorama histórico e historiográfico determinou também a inserção das
mulheres como importantes agentes sociais dos processos históricos que ocorreram nas
diferentes localidades mineiras, permitindo uma “releitura da história das Minas à luz
desua própria especificidade” (FURTADO, 2009, p. 120). Por conseguinte, destacamos
os conceitos de gênero, dinâmicas de mestiçagens, mercados e circularidade cultural
como aportes teóricos fundamentais para a pesquisa que buscamos desenvolver.
O conceito de gênero surge no final década de 1980 mediante o crescimento de
trabalhos relativos à História das Mulheres, mas somente no fim do século XX nota-se
a preocupação teórica de tratá-lo como uma categoria analítica, vinculada as
problemáticas relativas à diferença sexual entre homens e mulheres, tal como as
diferenças de raça, etnia, classe e sexualidade existentes dentro da própria categoria
universal das mulheres: “mulheres de cor, mulheres judias, mulheres lésbicas, mulheres
trabalhadoras pobres, mães solteiras, entre outras” (SCOTT, 1992, p. 87).
Consequentemente, adotamos a definição de gênero defendida por Joan Scott (1995,
pp. 86-88), que o entende como parte constitutiva das relações sociais alicerçadas nas
distinções percebidas entre os sexos, sendo o “campo primário no interior do qual, ou
por meio do qual o poder é articulado ”.
Scott (1995, p. 87) sinaliza que o processo de construção do gênero envolve os
símbolos culturalmente disponíveis, as identidades subjetivas e coletivas e os conceitos
normativos que interpretam os símbolos conforme o antagonismo homem versus
mulher, masculino versus feminino. Porém, contraria a noção de que a representação
binária do gênero seria fixa, uma vez que, ao longo do tempo, vem se transformando
conforme os conflitos sociais, as instituições políticas, a educação, o mercado de
trabalho e os sistemas de parentesco, reforçando, assim, que “as significações de gênero
e de poder se constroem reciprocamente” (SCOTT, 1995, p. 92).
Dessa maneira, o conceito de gênero nos ajuda a compreender a feitiçaria
feminina como uma manifestação informal das relações de poder que foram
construídas e consolidadas historicamente por mulheres que empregavam
diversificadas práticas mágicas no seu cotidiano. Essas feiticeiras conseguiram
participar ativamente da sociedade mineira, criando e recriando representações,
esquemas, significados e símbolos culturais, mesmo em um cenário histórico marcado
pela dominação patriarcale por profundas desigualdades de gênero. Posto isto, o gênero
nos possibilita perceber a complexidade das formas de atuação, interação e legitimação
feminina, trazendo à tona múltiplas identidades que se influenciavam reciprocamente,
e construções socioculturaisque estavam sujeitas a alterações contínuas no tempo e no
espaço.
Quanto à mestiçagem, Serge Gruzinsky (2001, p. 62) trabalha com uma
concepção de que ela não se reduz a um fenômeno biológico ou cultural, se estendendo
a todas as tipologias de misturas que ocorreram em solo americano a partir do século
XVI entre seres humanos, imaginários e formas de vida originárias de vários
continentes, envolvendo também dimensões políticas, econômicas, sociais e todas as
suas consequentes interações.
Gruzinsky acentua a globalização e a ocidentalização como elementos
inerentesà realidade histórica da mestiçagem, sendo determinantes na construção de
discursos e consciências nos diversos atores sociais envolvidos, e assim, a mestiçagem
se concretizano continente americano como um processo contínuo do período colonial
até a contemporaneidade. Já Eduardo França Paiva (2015, p. 42) amplia a
designação às dinâmicas de mestiçagens, que são percebidas por ele como “as práticas
históricas que desde o início da colonização moldaram o cotidiano das relações sociais,
fomentando o aparecimento de seres híbridos e sociedades profunda e indelevelmente
mestiçadas”, fato que explica a grande multiplicidade que a religiosidade assumiu
mediante a presença de referenciais culturais e populações heterogêneas.
Paiva realça que as mestiçagens foram responsáveis pelo desenvolvimento e
pela consolidação dos mercados na Ibero América, especialmente em Minas Gerais.
Outrossim, apresenta uma perspectiva de mercado que não se restringe as ações
monetárias e mercantis, sendo, portanto, “um espaço sem fronteiras fixas, constituído
pelo trânsito e pela mobilidade – física, cultural, técnica e política” e que se
desenvolveu sob a égide das mestiçagens (PAIVA, 2015, p. 35).
Logo, a articulação desses conceitos nos possibilita compreender a feitiçaria
feminina por meio das dinâmicas de mestiçagens e mercados existentes, situando-a
num contexto sociocultural mais amplo, marcado por transformações, adaptações,
assimilações, bem como hierarquizações desenvolvidas a partir das mestiçagens e do
gênero. Dessa maneira, consideramos as feiticeiras negras e “mestiçadas” importantes
agentes de dinâmicas que tão profundamente moldaram a formação e o
desenvolvimento da sociedade mineira setecentista.
Ginzburg (2006, p. 10) elucida a noção de “circularidade cultural” pautado em
Mikhail Bakhtin, definindo-o como o relacionamento circular feito de influências
recíprocas entre as culturas subalternas e a hegemônica, e que se verificou de modo
acentuado na sociedade europeia pré-industrial. Em diálogo com ela, a noção de
“universo cultural” desenvolvida por França Paiva (2001, p. 32), como espaço
construído “a partir de intervenções de vários grupos sociais, que se influenciam
continuamente, mesmo que um ou alguns entre eles imponham mais frequentemente
seu poderio sobre os outros”. Tal noção nos ajuda a problematizar nossa temática, posto
queas práticas mágicas e a trajetória das mulheres acusadas de feitiçaria em Minas
materializam o intenso processo de trocas entre africanos, indígenas e europeus em
curso nesse território, ressaltando a complexidade das manifestações culturais, que
conformavam um mundo marcado simultaneamente pela pluralidade e pelas distinções
sociais e de gênero.
Por isso, ao analisarmos trajetória das mulheres denunciadas por feitiçaria,
adotaremos uma abordagem sociocultural que, pautada na História Social das
Mulheres, dialoga simultaneamente com as concepções da História Conectada e da
Micro-História.
Segundo Sanjay Subrahmanyam (2017, p. 223), a história se configura como
uma narrativa autocentrada, em que o “auto” pode se referir a família, ao clã, ao grupo
étnico, a cidade, a pátria, a região de origem, ou a partir do final do século XVIII ao
Estado Nação. E, para compreender a sociedade mineira e a notoriedade que adquiriu
noseio da colônia e do Império Português nessa época, tomamos como ponto de partida
a observação feita por Eduardo França Paiva (2009, pp. 26-27), que reforça a
necessidade de perceber que aquela sociedade em formação integrava uma sociedade
de dimensão territorial mais extensa. Consequentemente, lançaremos mão de um fazer
histórico que esteja conectado a história da América portuguesa, do Reino e do Santo
Ofício, de acordo com a concepção das “Connected histories”:
[...] expressão proposta por Sanjay Subrahmanyam, implica que as histórias
só podem ser múltiplas — ao invés de falar de uma história única e unificada
com “h” maiúsculo. Esta perspectiva significa que estas histórias estão
ligadas, conectadas, e que se comunicam entre si. Diante de realidades que
convém estudar a partir de múltiplas escalas, o historiador tem de converter
se em uma espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões
internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais
desligaram ou esconderam, bloqueando as suas respectivas fronteiras [...]
(GRUZINSKI, 2001, p. 176).

Ademais, a adoção do enfoque micro-histórico nos permite acessar


características da vida das mulheres acusadas, articulando suas trajetórias,
desvelando mentalidades, estratégias, sentimentos, comportamentos e relações comuns
“iluminandodinâmicas e processos da história geral, que muitas vezes escapam ao olhar
macro- histórico das sociedades” (VAINFAS, 2002, p. 119).
A metodologia aplicada consiste, então, no levantamento e análise histórica das
fontes inquisitoriais e episcopais de forma a responder as colocações delineadas como
objetivos deste estudo. Enfim, mediante a tentativa de entender mais profundamente as
práticas mágicas, a religiosidade e a vivência social feminina que se conformaram no
universo cultural mineiro entre 1713 e 1808, percebendo-o por meio das mulheres
denunciadas de feitiçaria, destacamos a agência histórica feminina na sociedade
mineira setecentista, que embora marcada pelos discursos misóginos e pela imposição
da moral cristã, adquiriu contornos ambíguos e diversificados a partir da escravidão e
das dinâmicas de mestiçagens – fato que justifica minha inserção na linha da História
Social da Cultura.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA:
Desde o século XVI, a interpenetração de culturas, religiosidades e modos de
vida, permitiu à feitiçaria adentrar a religiosidade popular como especificidade
histórica da própria realidade colonial. Por isso, no debate historiográfico que circunda
nossa temática, é de suma importância problematizar as influências que moldaram a
feitiçaria colonial, tornando inteligível as dinâmicas de mestiçagens e a diversidade de
práticas realizadas pelas feiticeiras acusadas nas Minas setecentistas.
De forma a entender melhor a influência indígena na religiosidade colonial,
destacamos “A Heresia dos Índios” (1995), obra em que Ronaldo Vainfas se dedica a
pesquisar a “Santidade de Jaguaripe”, movimento religioso que eclodiu na Bahia por
volta de 1580 e tinha como finalidade estabelecer uma rebelião armada contra a
exploração colonial e as práticas catequéticas. A partir daí são apresentadas as
peculiaridades da religiosidade tupinambá, marcada pela crença no retorno às origens,
a busca contínua pelo espaço da eternidade sagrada onde encontrariam os ancestrais, o
rito caraimonhaga (que transformava homens em deuses) e o mito escatológico do
tempo (tempo é cíclico e sempre se renova).
A presença de índios, escravos da Guiné e brancos (pobres e proprietários de
terra) no movimento, revelou que as mestiçagens culturais já estavam em curso no
universo colonial quinhentista, fato que se comprova na ocorrência de cerimônias nas
quais se rezavam rosários, adoravam cruzes e ídolos indígenas aos sons dos maracás.
Já Maria Leônia Resende (2019), ao investigar os índios e seus descendentes delatados
pela Inquisição entre os séculos XVI e XVIII, demonstra que as múltiplas matrizes
culturais “gentílicas” passaram por intensas trocas e apropriações, tornando a feitiçaria
odelito mais contumaz praticado por estas populações. A feitiçaria indígena conforme
a autora, envolvia rituais com danças, toques de maracás, beberragens e defumação de
tabaco, pactos com o diabo, comunicação com os espíritos ancestrais, adivinhação do
futuro, cura com ervas, e orações que, mediante o convívio social, se assimilaram as
práticas religiosas europeias e africanas.
No que diz respeito à influência europeia, “História Noturna” (2012), de Carlo
Ginzburg, nos mostra a historicidade e a simbologia acerca do mito do sabá cristalizado
na Europa entre os séculos XV e XVII, evidenciando que os cultos extáticos, as
reuniões noturnas, as metamorfoses animalescas, os voos rumo ao além, as orgias
sexuais, as procissões de mortos e a reverência ao demônio em forma de animal, eram
seus elementos principais.
Esses elementos, que se interiorizaram em Portugal, foram trabalhados por
Francisco Bethencourth em “Imaginário da magia” (2004) e José Pedro Paiva em
“Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas” (1997). E, mesmo abordando
cronologias diferentes – o primeiro, século XVI, e o segundo, século XVII até a metade
do XVIII –, ambos enfatizam que o mito do pacto diabólico foi central na
caracterização da feitiçaria como heresia, sendo seus agentes, interpretados como
mediadores das forças ocultas do mal.
Paiva (1997), mostra que, embora fossem conhecidos os aspectos do sabá
europeu, a inexistência de um movimento de “caça as bruxas” – ao contrário do que
ocorreu em outros países europeus – relaciona-se ao modelo de pensamento adotado
pela elite letrada laica (teólogos, juristas, médicos) e religiosa (autoridades
eclesiásticase inquisidores) portuguesa até 1750, pautado no discurso cético e na ênfase
da feitiçaria como heresia derivada da aliança demoníaco. No entanto, com o avanço
do pensamento ilustrado nas elites portuguesas e o Regimento de 1774, seus praticantes
foram concebidos como impostores que perpetuavam superstições.
Além disso, destacamos que num cenário de expansão ultramarina, as culturas,
os sistemas simbólicos, as representações e os meios sociais tornaram-se plurais. Nessa
conjuntura, diante da capacidade de adaptação da elite eclesiástica às diferentes
realidades, o modelo de cristianização adotado pela Igreja lusa revelou o que
Bethencourt (2004) denomina de “relativa benevolência” acerca das práticas mágicas
ilícitas, se comparadas à repressão promovida aos judeus.
Não obstante, apesar dessa “relativa benevolência”, Laura de Mello e Souza,
em “Inferno Atlântico” (1993), ressalta que a demonologia europeia se fortaleceu desde
o século XVI. Isso se deu a partir da alteridade americana que, ajustada ao imaginário
católico, interpretava as práticas mágico-religiosas dos ameríndios e dos escravos
africanos como idolatrias diabólicas que precisavam ser extirpadas.
O degredo como última fase do purgatório, teria funcionado como transmissor
cultural, uma vez que foi responsável por enviar à colônia brasileira, notadamente
no século XVII, uma significativa quantidade de mulheres portuguesas sentenciadas
por feitiçaria pela Inquisição, o que ajudou a enraizar as práticas mágicas de origem
europeia na sociedade colonial. Todavia, tal como em Portugal, Mello e Souza (1993,
p.53) afirma que aqui não se detectou a feitiçaria propriamente sabática, mas alguns
traços isolados vinculados às tradições populares.
Nesse sentido, constatamos que a demonização se fez presente durante todo o
período colonial, estendendo-se da religiosidade indígena para a dos africanos e,
depois, aos seus descendentes e demais colonos que absorviam e perpetuavam tais
práticas.
A mesma historiadora em “O Diabo e a Terra de Santa Cruz” (1986), inaugura
os estudos da feitiçaria no Brasil colonial, sinalizando que se relacionava especialmente
às necessidades que os habitantes tinham em seu cotidiano e que careciam de uma
resolução mais concreta, como adivinhar o futuro, encontrar objetos e pessoas, curar
doenças, obter proteção e controlar sentimentos amorosos. Contudo, pondera que não
sepreocupou em diferenciar os termos “bruxaria” e “feitiçaria”, pois ambos se referem
a práticas idênticas.
A frequência de situações de tensão social entre escravos e senhores, inimizades
pessoais e conflitos entre vizinhos, fez com que as práticas mágicas exercidas na
América Portuguesa adquirissem uma dupla função: defensiva (visando a proteção,
como as benzeduras) e ofensiva (visando agredir eventuais inimigos, como os feitiços
voltados a provocar malefícios) e, assim, indivíduos de “todas as camadas sociais se
viam às voltas com estes tipos de práticas, sendo sujeito ou objeto” (SOUZA, 1986,
p.194).
Porém, no que tange à sociedade lusa, José Pedro Paiva (1997, p.311)
argumentaque, como era comum a ocorrência de acidentes, infortúnios e mortes sem
explicação, a crença na feitiçaria, desempenhava a função de preservar a coesão e o
equilíbrio, explicando “comportamentos e sentimentos estranhos e inadmissíveis do
ponto de vista das regras morais e sociais estabelecidas”. Desse modo, a acusação e a
consequente expulsão da fonte causadora dos fatos, que em sua maioria eram mulheres,
era também um meio de controlar comportamentos considerados inadequados
socialmente.
Destarte, Bethencourt (2004, p.296) considera que o processo de colonização
acentuou na sociedade portuguesa o imaginário da magia e a “vivência morna e
ritualizada da religião”. Tais características se transmutaram e se potencializaram no
Brasil, onde diversas religiosidades se mesclaram, adquirindo novos sentidos,
consolidando a feitiçaria colonial como um poder informal resultante de
entroncamentosculturais mútuos .
Por conseguinte, a capitania mineira, como a mais urbanizada e com maior
contingente populacional de escravos do século XVIII, aparece nesse período como o
local da colônia onde mais se vicejou a adoção de rituais ancestrais africanos que foram
designados de “calundus”, comportando também a maioria dos acusados de outras
práticas como as benzeduras e o pacto diabólico. À vista disso, nota-se que, na primeira
metade setecentista, as acusadas eram predominantemente negras e, nas últimas
décadas, “mestiçadas”, salientando “o processo de aculturação que acabaria por fundir
sabás, missas e calundus” (SOUZA, 1986, p. 378).
Alexandre Marcussi, em “Cativeiro e Cura” (2015), concebe os calundus em
consonância com o pensamento das culturas africanas centro- ocidentais, que
concebiam os eventos de morte, doenças ou calamidade, principalmente os súbitos,
como decorrentes de feitiços malignos, que desestabilizavam a ordem natural social e
cosmológica. Os calundus coloniais, embora heterogêneos, eram cerimônias que
apresentavam e associavam na maioria das vezes, cura e adivinhação, ou seja, as
entidades espirituais, geralmente invocadas através de possessão espiritual,
indicavam aos calunduzeiros a origem, as causas e os remédios necessários para curar
os malefícios e enfermidades, o que permitia também a regeneração ou reversão
cosmológica e social.
Nesse aspecto, os escravos africanos partilhavam uma noção que os
possibilitaria reverter, enfrentar à condição de escravidão, considerada terrível e
abominável porque “destruía os laços entre pessoas e dissolvia a trama das
reciprocidades espirituais que fundamentava as comunidades” (MARCUSSI, 2015,
p.431). Entretanto, o historiador enfatiza que os calundus eram frequentados por
africanos, afrodescendentes e brancos, e que por isso, seriam a expressão de uma
mediação intercultural específica do mundo escravista atlântico português, sendo
possível identificar a presença de traços simbólicos comuns a ritualística tupinambá
(comunicação com espíritos, a noção de regeneração, as danças e músicas) e ao
catolicismo popular lusitano (curas mágicas, ritos de devoção realizados para desvelar
informações específicas e adivinhações feitas a partir do contato com entidades
sobrenaturais) .
No âmbito da feitiçaria mineira, João Antônio Moreira (2016) ressalta que a
“população de cor” constitui a maioria dos agentes e clientes que procuravam e
realizavam procedimentos mágicos, buscando alcançar alívio para sofrimentos do
corpo, da alma ou do coração, sendo sobretudo um mecanismo de resistência à
escravidão. Todavia, consideramos a feitiçaria também como uma expressão da
atuação e da inserção social desses grupos e que, de acordo com Giulliano Sousa
(2018), tornaram as Minas setecentistas palco privilegiado de uma magia propriamente
negra, arquitetada engenhosamente por africanos e seus descendentes.
Também as reflexões de Gruzinski em “Pensamento mestiço” (2001), apesar de
pautadas em fontes do Novo México no século XVI, nos oportunizam fazer um
paralelo com relação a feitiçaria colonial. Assim, percebemos que o esforço em
catequizar os nativos e os escravos africanos era concomitantemente fácil e impossível:
a facilidade sedava porque eles enalteciam o aspecto sobrenatural, concebendo-o como
primordial ao ordenamento das coisas, porém, impossível devido à forma distinta como
concebiam, comunicavam e representavam esse sobrenatural, desencadeando a
formação de um pensamento religioso mestiço, no qual as noções do sagrado
ameríndio, africano e europeu se assimilaram.
Como exemplo dessa assimilação, citamos as bolsas de mandinga, amuletos em
formato de bolsinha, que tinham ação protetiva contra acidentes, enfermidades e outros
infortúnios, contendo em seu interior elementos como hóstias consagradas, ossos de
defuntos e orações devotivas. As peças são pesquisadas por Daniela Calainho (2008),
que as apresentam como manifestações da religiosidade africana difundidas a partir da
Metrópole e das rotas do tráfico escravo atlântico e que, segundo Vanicléia Santos
(2008), na América portuguesa são recriadas pelos africanos mediante a incorporação
desímbolos do catolicismo que visavam garantir sua eficácia. Entre o final do século
XVII e o início do XVIII, passam a ser comumente produzidas, usadas e vendidas
tambémpor indígenas e brancos.
Além disso, a sociedade colonial, como espaço de contínuos processos de
mestiçagens, também revelava a multiplicidade existente dentro da categoria feminina.
No que concerne à nossa pesquisa, notamos que feiticeiras denunciadas, principalmente
as indígenas e advindas da África, projetaram sobre o catolicismo suas próprias
crenças,determinando novas significações às práticas mágicas, que foram transmitidas
para as gerações posteriores de “mestiçadas”, revelando, por meio da feitiçaria, as
nuances da realidade social, religiosa e cultural feminina mineira entre 1713 e 1808.
Em “Trópico dos Pecados”, Ronaldo Vainfas (1989, pp.119-120) mostra que
a misoginia presente em Portugal desde o século XVI foi resultante de um complexo
processo de interação entre a cultura erudita (na qual os letrados reproduziam no
cenário europeu antigos costumes misóginos) e o discurso de cunho antifeminino
(herdeiro da tradição da teologia moral cristã e disseminado pelos religiosos desde o
fim da Idade Média). Esse discurso relativo à mulher influenciou as normativas
oficiais da Coroa e da Igreja (amparada pelo discurso tridentino) bem como a
mentalidade e a cultura popular, que incorporaram o preconceito de gênero no cotidiano
e em várias esferas da vida social.
A hostilidade à feminilidade se enraizou profundamente no Brasil Colônia,
transformando-o em um “verdadeiro e completo inferno para as mulheres” (VAINFAS,
1989, p.122), que tiveram responsabilidades, condutas, qualidades e até defeitos
delineados e legitimados pelo patriarcalismo no tocante à família, ao matrimônio, a
sexualidade, a religiosidade e as emoções no geral. Nesse contexto, Mary Del Priore
(1994; 2013) explica que a figura feminina brasileira foi formada a partir da negação
de papéis históricos de segmentos subalternos racializados, sendo as mulheres das
camadas mais pobres, em sua maioria, negras e miscigenadas, sempre vinculadas à
condição de promiscuidade e mais propícias à exploração sexual e laboral. Já as índias,
“negras da terra” e eróticas por natureza, eram vistas como desafiadoras da
catequização e das imposições civilizacionais; e as mulheres brancas, associadas à
maternidade, ao zelo do lar e da família e a devoção cristã.
No entanto, acreditamos que as relações e as vivências femininas na colônia
eram intricadas e para além da sujeição masculina paterna, marital e dos seus senhores,
as mulheres por diversas vezes se envolviam em conflitos, incorrendo em situações de
resistência e negociação, em que fabricavam, articulavam e se inseriam continuamente
na sociedade.
Nessa perspectiva, Luciano Figueiredo (2004, pp. 143-144), ao trabalhar as
mulheres no mundo laboral mineiro do século XVIII, revela que mesmo inseridas num
contexto de dominação masculina, elas estiveram presentes na extração mineral, em
alguns ofícios (como parteiras, lavadeiras e costureiras), na área rural (como roceiras,
criadoras de gado e aves, agricultoras de importantes gêneros alimentícios) e,
principalmente, como ajudantes no pequeno comércio (destacam-se as alforriadas e as
“negras de tabuleiro”). As mulheres constituíram então, uma importante mão de obra
que deu vitalidade ao precário abastecimento interno, especialmente na crise da
mineração já no fim da centúria.
A participação feminina nas vendas e demais localidades comerciais (fixas e
móveis) teria despertado a preocupação das autoridades locais mineiras, posto que, o
contato direto com a população pobre e escrava, transformava essas mulheres em um
perigo social, pois constantemente perpetravam atos ilícitos, como extravio e
contrabando de pedras preciosas, prostituição, fugas de escravos, práticas mágicas e
abastecimento de quilombos (FIGUEIREDO, 2004, pp. 146-147).
Mediante tal conjuntura, entendemos que a feitiçaria consolidou um universo
feminino por excelência, visto que, por meio das práticas mágicas, muitas mulheres
demonstraram saberes e linguagens diversos, dominando códigos e unindo-se quase
em confraria para enfrentar as mazelas do dia a dia. São os casos de Caterina, negra de
Luanda, que em 1720 foi acusada de realizar feitiços amorosos ensinados pelo seu
concubino para acalmar o coração de seu marido2; de Timótia Nogueira, parda forra
queem 1777 foi denunciada e presa por fazer feitiços amorosos, pactuar com o demônio
e usar seu conhecimento acerca das ervas medicinais para curar várias doenças e

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ANTT/TSO-IL/030/0284 – m0081 a m0086 – f.37 a f.38 v.
também provocar mortes e malefícios3; de Luzia Soares, escrava mulata que foi
presa durante uma visita pastoral 1742 e enviada à Inquisição por provocar, com o
auxílio do demônio, malefícios a sua senhora que, quando tentava castigá-la, sentia
dores fortes nos braços e na cabeça4.
O caso mais conhecido de feitiçaria em Minas Gerais é o da forra Luzia Pinta5,
natural de Angola, que por realizar calundus, adivinhações e curas em Sabará e nos
arredores, foi presa em 1742, torturada e sentenciada ao degredo pelo Tribunal de
Lisboa por feitiçaria e pacto diabólico. Portanto, no decorrer desta pesquisa,
revelaremos que, assim como Luzia Pinta, muitas outras mulheres denunciadas por
feitiçaria conseguiram preservar cerimônias, rituais e hábitos espirituais ancestrais,
articulando-os e ressignificando-os segundo o catolicismo imposto, favorecendo a
recriação de novos laços identitários, religiosos e culturais.
Outrossim, percebemos que a feitiçaria mineira era profundamente sexualizada
em virtude do estereótipo do crime associado às mulheres e da presença significativa
delas nas fontes, e estratificada, pois a maior parte dessas feiticeiras eram negras e
“mestiçadas”. Por fim, reforçamos que a sociedade colonial – em especial, a mineira –
,embora revelasse um espaço formal de vigilância e rigor patriarcal, por outro lado,
perante particularidades relacionadas à escravidão, as dinâmicas de mestiçagens e a
circularidade cultural oportunizaram as mulheres arquitetar, resistir, subverter e
consolidar um cenário alternativo, no qual criaram e articularam relações de
sociabilidade, religiosidade e poder próprias, manifestando sua agência histórica.

3
AEAM. Devassas. Livro de Testemunhas, jan.-mar. de 1767-1778, f. 67v - 71 v.
4
ANTT/TSO-IL/028/11163– m0010 a m0146 – f.1 a f.97 v.
5
ANTT/TSO-IL/028/00252 – m0009 a m0095 – f. 1 a f.85 v.
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(Processos) e 030 (Cadernos do Promotor 1541-1802).

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Portugal (1640).
ANTT/TSO-IL /028/00252 – m0009 a m0095 – f. 1 a f.85 v.
ANTT/TSO-IL/028/11163– m0010 a m0146 – f.1 a f.97 v .
ANTT/TSO-IL/030/0284 – m0081 a m0086 – f.37 a f.38 v .
ANTT-TSO-IL/030/0328. Índice do Promotor. 275f.
ARQUIVO ECLESIÁSTICO DE MARIANA (AEAM). 1767-1778. Devassas, Livro de
Testemunhas, jan.-mar., f. 67v - 71 v.

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propostas e aceitas em o sínodo diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junhode
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