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Rumo Ao Sem Fim
Rumo Ao Sem Fim
Recife, 1981
Como seres finitos, só podemos conhecer finitamente a realidade. O real, para
nós, é, portanto, o relativo.
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O sistema é uma individualização estrutural e funcional da realidade. É um
conjunto de coisas que se comporta de maneira especifica em situações
determinadas. Não é a soma das partes, mas sua identidade. Assim, para o sistema,
não importa a mudança das partes, pois seu comportamento específico é o que
identifica.
A escola psicológica de Gestalt declara que o todo é uma realidade primária, que
domina e dá sentido as partes. Lashley, conquanto reconheça que certas funções têm
localização anatômica exata, observou que o córtex cerebral age como um todo. É o
que denominou de hipótese da equipotencialidade, demonstrando que uma dada
porção do córtex não está invariavelmente associada a um determinado ato.
Por outro lado, a Biologia demonstra que uma célula, em si, não é especializada,
mas se especializa segundo a sua localização orgânica. Porem, em certa fase do seu
desenvolvimento, a célula não mudará o seu programa, ainda que transplantada para
uma região anatômica diferente.
Cada sistema funciona segundo uma estrutura que lhe é própria: é a sua
realidade. E a realidade é também para ele o modo de relacionar-se com os demais
sistemas.
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A realidade não tem lógica nem sistema. Aprisionar a água em garrafas não é
compreender o mar. A agua aprisionada não é o mar; é uma realidade diversa
segundo o recipiente que a encerra.
A lógica não apreende o real. Não está nas coisas, pois se constitui em mera
atividade do espírito. Nem prova o real, embora demonstre que certos fatos
aparentemente se comportam segundo seu modelo. Por isso, somos inclinados a
admitir que os fatos que acontecem segundo a nossa lógica são reais e os que assim
não se comportam são ilusões.
A lógica, por outro lado, tem uma função psicológica: dá ao homem o sentimento
de controle sobre os fatos. Daí o seu apego a tudo o que é lógico, pois a lógica
lhe dá uma sensação de segurança e poder. A lei da causalidade se torna, assim, de
importância fundamental para o homem: é a certeza de sua capacidade de controle
sobre as coisas. Explicar é uma tentativa que lhe proporciona um sentimento vicário
de dominar situações. Por isso, o homem ê tentado a explicar tudo para se sentir
senhor dos fatos.
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Real é o que existe em relação a nós. Isto não importa negar o real com o qual não
nos relacionamos.
Tem razão Pietro Ubaldi: "Todo mundo é real no seu nível, e ilusão se visto de
outros planos". (1).
Existimos de modos diferentes para cada percebedor. O modo é uma face do real:
é cer to como tal e não podemos cotejá-lo com outros modos do mesmo objeto
observado. Tomar o modo como padrão do todo é que suscita toda confusão
conceituai. O modo é a forma peculiar de um sujeito relacionar-se com determinado
objeto. O objeto não é este modo e o modo só é real como relação entre aquele objeto
e determinado sujeito. Logo, o real, sob o ponto de vista do sujeito, é modal. O objeto
é real em si mesmo: não é criação do sujeito ou mero solipsismo. Porém, o objeto
pode ser percebido por infinitos modos, segundo a infinidade dos sujeitos. Modos,
pois, são realidades derivadas das relações entre sujeitos e objetos.
A primeira impressão que temos das coisas fixa em nós os seus modelos. Depois,
temos a tendência de continuar vendo essas coisas segundo os modelos originais
impressos em nós, por mais que as coisas mudem ou que mudem as circunstancias
em que elas se encontram. É o mecanismo psicologico da constância, apesar de todas
as inconstâncias que nos cercam. Este mecanismo é o que a filosofia oriental chama
de Maya e que aprisiona o homem num conjunto de visões e padrões estáticos do
universo.
O real nos parece um fluxo e no fluxo não há modelos. Daí, a eterna controvérsia
dos que admitem, como Heráclito, que o fluxo ou devir é a realidade e dos que
entendem, como Parmênides, que o real é imutável e o devir é aparência. Os
modelos, portanto, são nossas formas perceptuais e transitórias de apreender, a cada
momento, o fluxo. Assim, cada forma perceptual do fluxo só é real em relação ao
percebedor no momento da percepção e só se torna aparência ou Maya se prossegue
alem da percepção.
O real é o agora. O agora é sempre inédito. Quem vê, não precisa de palavras,
pois só se fala para aqueles que não viram. E o que se diz, já não é: o presente é mais
rápido do que o laço da palavra. Por isso, quem fala, não vê, porque, se fala, fala do
que já não vê. O eu não existe no presente: surge, quando a experiência já terminou.
O eu é o passado.
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Todo sistema, como tal, é um fim em si mesmo. Em relação com outros sistemas é
um fim para um sistema superior aos sistemas associados.
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O homem deixou de ser somente corpo para ter corpo, fixando a essência de sua
realidade em outro nível a que deu o nome de consciência. Esta consciência se tornou
uma espécie de supercomando, acoplado ao comando biológico.
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Só nos é dado, porém, conhecer o existir, não o ser. O existir é o objeto imediato
da nossa consciência, da nossa percepção. Conhecemo-nos como fenômeno, como
existência individualizada e desta percepção fenomenológica pressupomos o ser, a
essencia, a causa e o conteúdo do existir.
Percebemos, porém, que algo em nós náo muda: a consciência de que mudamos,
o eu que se assiste e prossegue em todas suas transformações. Existir é transformar-
se. Mas, há um elo nesse transformar-se, que dá continuidade ao transformismo,
catalisando todo o existir. A esse catalisador damos o nome de espírito: indutor das
reações da existência, sem ser afetado, ao menos substancialmente, por elas.
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Entende Locke que a identidade da pessoa nao é uma substancia permanente por
baixo do devir, mas a continuidade da consciência.
O homem não se repete e seu erro consiste em querer repetir-se para ser coerente
ao ontem. A vida não tem fidelidade, pois ela ê sempre nova e sempre outra a cada
instante.
Infidelidade é manter-se fiel ao que já não é
.
Fidelidade é permanente atualidade: é ser-se integralmente o que se é a cada
instante. Ê mudar com a mudança, sem apego ao que já não é. Fidelidade é coerência
e coerência é mudar com a mudança de acordo com o que mudamos. Se a coerência
fosse jamais mudar, nem sequer as pedras seriam coerentes.
Pecar é ser infiel a si mesmo. Ê viver o que já não se é. Morto é aquele que não
morre na mudança, pois a continuidade da vida reside na permanente renovação pela
morte. Pecar, também, é não descobrir o que somos. É permitir que os outros nos
impeçam de ser o que somos e impedir que os outros sejam o que são.
O homem vive a perfeição a cada instante em que age em plena harmonia consigo
mesmo. Ninguém, pois, é perfeito em relação a algo fora de si mesmo, mas sempre
que age segundo ele é.
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Não será a loucura um sonho de que não se acorda? Um sonho com a aparência
de vigília? Os hipnotizados também dão a impressão de que estão conscientes das
coisas que os rodeiam.
Observou-se que o estado de plena vigília não dura mais que um minuto ou dois
por hora. Assim, as nossas distrações ou "fugas" da realidade externa são mais
frequentes do que pensamos. Há pessoas que, por deficiência da censura ou controle
do ego, permanece, por tempo muito longo, no mundo do sonho. A sua vida vigílica se
torna, assim, um hiato no seu universo onírico.
O sonho e o que não se tornou fato e o passado é o fato que se tornou sonho, pois
a memória tem a mesma estrutura do sonho.
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Vivemos uma realidade específica e sabemos que essa realidade não é toda a
realidade e nem se constitui o padrão universal da mesma. Ora, como não podemos
viver e compreender outro tipo de realidade, somos, naturalmente, inclinados a negar
qualquer outra realidade além ou diferente da nossa. Isso porque a percepção é a
medida existencial de cada ser.
Percepção não é apenas apreensão, mas também interpretação de tudo o que nos
afeta. O universo do indivíduo é, portanto, aquilo que ele percebe. Se pudesse mudar,
definitivamente, a estrutura sensorial do seu organismo, passaria a viver uma nova
realidade perceptual. Aliás, as experiências com drogas alucinógenas parecem
confirmar essa suposição. O que não sabemos, todavia, ê até onde o homem pode
perceber.
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Na verdade, o mais difícil é o homem saber o que ele é. Ele está soterrado numa
con fusão de normas e condicionamentos, que o tornam um autômato do mecanismo
social. A sua luta consiste em descobrir o que ele é para ser livremente o que é. O
homem não é livre para ser algo, mas, por ser algo, luta para ser o que é.
O fato de o homem ser consciente de suas necessidades não o torna livre. Pelo
contrário: ele sente mais profundamente o tolhimento desta liberdade, seja por sua
iniciativa, seja por motivos alheios â sua vontade.
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A dúvida é a ginástica da inteligência.
Duvidar não é apenas negar o que existe, mas negar que o que existe seja a única
coisa que existe. Negar, assim, é ampliar a visão da realidade. A dúvida que apenas
nega é destrutiva.
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Tinha razão Nietzsche, quando asseverou que. "a sociedade humana é uma
tentativa". (10). Sempre é extremamente difícil estabelecer um processo simbiótico
desejável entre o individual e o social. Não há, porém, outra estratégia para garantir,
não apenas a sobrevivência, mas a própria evolução da Humanidade.
BIBLIOGRAFIA