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VALTER DA ROSA BORGES

RUMO AO SEM FIM

Extraído do Livro OS CINCO DEDOS.

Recife, 1981
Como seres finitos, só podemos conhecer finitamente a realidade. O real, para
nós, é, portanto, o relativo.

No relativo tudo se transforma, tudo é sucessivo.


A unidade, no relativo, é funcional ou conceitual. Não há sistemas fechados no
relativo, porque tudo é interdependente.

No relativo tudo são relações: não há atributos ou propriedades. Cada coisa ê o


que se relaciona com as outras. Existir, pois, é estar em relação com. Não há existir
em si.

Nada há isolado no relativo. Tudo é antecedente ou consequente de conformidade


com os nossos pontos de vista ou referenciais. Não há começar, nem acabar, senão
em relação a uma perspectiva, a um sistema convencional.

No relativo é que existem as noções de dentro e de fora. Vazio e matéria, espaço e


tempo só existem em relação ao observador.

Como no relativo não há sistemas fechados, a individualidade e a indivisibilidade


nada mais são do que meros conceitos pragmáticos. Todo e parte constituem recursos
dialéticos ou funcionais, dependendo da perspectiva em que são observados.

***
O sistema é uma individualização estrutural e funcional da realidade. É um
conjunto de coisas que se comporta de maneira especifica em situações
determinadas. Não é a soma das partes, mas sua identidade. Assim, para o sistema,
não importa a mudança das partes, pois seu comportamento específico é o que
identifica.

A escola psicológica de Gestalt declara que o todo é uma realidade primária, que
domina e dá sentido as partes. Lashley, conquanto reconheça que certas funções têm
localização anatômica exata, observou que o córtex cerebral age como um todo. É o
que denominou de hipótese da equipotencialidade, demonstrando que uma dada
porção do córtex não está invariavelmente associada a um determinado ato.

Por outro lado, a Biologia demonstra que uma célula, em si, não é especializada,
mas se especializa segundo a sua localização orgânica. Porem, em certa fase do seu
desenvolvimento, a célula não mudará o seu programa, ainda que transplantada para
uma região anatômica diferente.

Todos os sistemas se relacionam em estruturas hierárquicas, numa escala infinita,


e não se sabe qual o sistema que coordena e subordina todos os sistemas.

Cada sistema funciona segundo uma estrutura que lhe é própria: é a sua
realidade. E a realidade é também para ele o modo de relacionar-se com os demais
sistemas.

***

Todo sistema é uma prisão. Mas, uma prisão necessária.

Porque somos limitados, temos de limitar nossa experiência. Limitar é organizar a


experiência. Prender para compreender. Relacionar para amarrar. O que importa é
que, limitando a experiência, não fiquemos a ela limitados. Ou seja: saibamos que o
que organizamos e convencional. Ê realidade para nós, mas não é o padrão da
realidade. E é realidade sob condição operacional e de natureza transitória.

A teia é a realidade da aranha. É parte biológica da aranha. Nela a aranha vive,


como se a aranha e a teia fossem um só organismo. Mas a teia não prende a aranha.
Tal é a lição.

A teia do homem é o sistema. O homem sistematiza seu viver: sistemas físicos,


sociais, psicológicos, espirituais. O homem se locomove dentro do sistema. Torna-se
rotina do sistema. Depois, passa a acreditar que os sistemas são realidades. O erro
não está no sistema, mas no homem que se deixou usar pelo sistema que ele próprio
criou.

O sistema não existe em si: é uma convenção, uma necessidade prática.

A lógica é a harmonia interna de um dado sistema, o seu conjunto de ferramentas


conceituais. Tais ferramentas só podem produzir o trabalho para o qual foram
construídas. O seu trabalho, pois, a limita. E o trabalho planejado e executado ê o
limite do homem. A lógica não pode, assim, ir além da capacidade do homem: ela é a
sua teia.

Agir racionalmente é comportar-se segundo as exigências da lógica de um


sistema.

A realidade não tem lógica nem sistema. Aprisionar a água em garrafas não é
compreender o mar. A agua aprisionada não é o mar; é uma realidade diversa
segundo o recipiente que a encerra.

Não se pode aplicar a lógica de um sistema para compreender outro sistema.

A lógica não é o metro da realidade. É uma atividade pragmática do espírito e


limitada a uma determinada área operacional.

A lógica não apreende o real. Não está nas coisas, pois se constitui em mera
atividade do espírito. Nem prova o real, embora demonstre que certos fatos
aparentemente se comportam segundo seu modelo. Por isso, somos inclinados a
admitir que os fatos que acontecem segundo a nossa lógica são reais e os que assim
não se comportam são ilusões.

A lógica, por outro lado, tem uma função psicológica: dá ao homem o sentimento
de controle sobre os fatos. Daí o seu apego a tudo o que é lógico, pois a lógica
lhe dá uma sensação de segurança e poder. A lei da causalidade se torna, assim, de
importância fundamental para o homem: é a certeza de sua capacidade de controle
sobre as coisas. Explicar é uma tentativa que lhe proporciona um sentimento vicário
de dominar situações. Por isso, o homem ê tentado a explicar tudo para se sentir
senhor dos fatos.

Dizemos que um fato é verdadeiro, quando ele é coerente. Mas coerente em


relação a um modelo que se admite a priori como verdadeiro.

Acontece, porém, que os próprios dados que manipulamos, na atividade heurística


de criar novos modelos, já estão culturalmente comprometidos e com significações
viciadas. Aliás, a própria escolha desses dados já está submetida a um processo
arbitrário de seleção.
Ordem e desordem são conceitos funcionais. Caos, para o homem, é tudo aquilo
que não se ajusta aos seus padrões de ordem, a esquemas perceptuais inatos ou
adquiridos.
O caos não existe em si, mas referenciado a um dado sistema. Pensamos que a
natureza é paradoxal, porque acreditamos na repetibilidade absoluta das coisas.
Pensamos que só é verdadeiro aquilo que se repete.
Se o homem permanecer durante algum tempo naquilo que ele denomina de caos,
em breve descobrira uma ordem no caos.
A ordem é habito.

***

Real é o que existe em relação a nós. Isto não importa negar o real com o qual não
nos relacionamos.

O real objetivo é o real compartilhado, o chamado mundo das relações.

O real subjetivo é o real privado, com as suas peculiaridades, mas possuindo,


também, conteúdos do real compartilhado.

O real é o físico e o psíquico, mesmo que este não se converta naquele.

A realidade, como significado, é uma convenção. É possível que a realidade tenha


um significado, mas não o conhecemos. Por isso, criamos modelos significativos para
a realidade. O convencional, porém, só é real como forma de relações humanas. O
mundo social é realidade criada pelo homem e este pode modificar o mundo que criou.

Há um real independente de nós. Há um real criado para nós: é o nosso modo


peculiar de perceber o real.

Tudo nos leva a crer que há infinitos níveis e formas da realidade.

Tem razão Pietro Ubaldi: "Todo mundo é real no seu nível, e ilusão se visto de
outros planos". (1).

Existimos de modos diferentes para cada percebedor. O modo é uma face do real:
é cer to como tal e não podemos cotejá-lo com outros modos do mesmo objeto
observado. Tomar o modo como padrão do todo é que suscita toda confusão
conceituai. O modo é a forma peculiar de um sujeito relacionar-se com determinado
objeto. O objeto não é este modo e o modo só é real como relação entre aquele objeto
e determinado sujeito. Logo, o real, sob o ponto de vista do sujeito, é modal. O objeto
é real em si mesmo: não é criação do sujeito ou mero solipsismo. Porém, o objeto
pode ser percebido por infinitos modos, segundo a infinidade dos sujeitos. Modos,
pois, são realidades derivadas das relações entre sujeitos e objetos.

A primeira impressão que temos das coisas fixa em nós os seus modelos. Depois,
temos a tendência de continuar vendo essas coisas segundo os modelos originais
impressos em nós, por mais que as coisas mudem ou que mudem as circunstancias
em que elas se encontram. É o mecanismo psicologico da constância, apesar de todas
as inconstâncias que nos cercam. Este mecanismo é o que a filosofia oriental chama
de Maya e que aprisiona o homem num conjunto de visões e padrões estáticos do
universo.

O real nos parece um fluxo e no fluxo não há modelos. Daí, a eterna controvérsia
dos que admitem, como Heráclito, que o fluxo ou devir é a realidade e dos que
entendem, como Parmênides, que o real é imutável e o devir é aparência. Os
modelos, portanto, são nossas formas perceptuais e transitórias de apreender, a cada
momento, o fluxo. Assim, cada forma perceptual do fluxo só é real em relação ao
percebedor no momento da percepção e só se torna aparência ou Maya se prossegue
alem da percepção.

O real é o agora. O agora é sempre inédito. Quem vê, não precisa de palavras,
pois só se fala para aqueles que não viram. E o que se diz, já não é: o presente é mais
rápido do que o laço da palavra. Por isso, quem fala, não vê, porque, se fala, fala do
que já não vê. O eu não existe no presente: surge, quando a experiência já terminou.
O eu é o passado.

Cada percepção do real e única e irrepetível. Jamais saberemos o que perdemos,


jamais repetiremos o que experimentamos. A riqueza do viver não consiste na
acumulação do vivido, mas na capacidade de viver plenamente o momento que passa.
Nenhuma experiência deve deixar restos ou saldos, pois eles deformam as novas
percepções da realidade.

A experiência é pessoal e intransferível. O que se diz sobre a experiência, não é a


experiência. A experiência que se repete não é ela mesma: é ação da memória.
Quem morre a cada momento, é sempre um homem novo, vivendo uma vida
sempre nova, na imortalidade de suas transitoriedades.

Bergson concebia a realidade como um processo de perene criação, sem princípio


nem fim, que não tem duas vezes a mesma fisionomia, mas assume, a cada instante,
um aspecto original e imprevisível. É o rio heracliano do devir onde ninguém se banha
duas vezes. Eu diria mais: nem o banhista é o mesmo. Há sempre um rio novo e um
banhista novo.

Tudo no relativo é em relação a. Nada há em si — a não ser o Absoluto — , pois o


em si é um conceito. E o conceito é a presunção de se ter aprisionado o fluxo. O
atributo deriva, assim, de uma relação entre duas coisas, uma delas como ponto de
referência. Conceituamos algo e nos conceituamos em relação a ele.

O existir em si é o silêncio. E o homem comum vive no e do bulício. Porque no


relativo tudo existe para.

A realidade, para nós, é aquilo que percebemos ou que organizamos. As palavras


e as ideias são tijolos e cimento de muitas das nossas realidades. Em verdade, o
verbo se fez mundo. E, sob esse enfoque, nos somos o pai do verbo. Porque só
conhecemos o relativo, jamais poderemos livrar-nos, totalmente, do antropomorfismo e
do antropocentrismo.

***

Todo sistema, como tal, é um fim em si mesmo. Em relação com outros sistemas é
um fim para um sistema superior aos sistemas associados.

Todo sistema, por ser relativo, tem é uma finalidade.

Wiliam James chamou a atenção para o aspecto multívoco da finalidade. Cada


coisa pode ter uma definição diferente, segundo os objetivos que se lhe dão. Define-se
uma coisa pela sua finalidade e, como pode haver várias finalidades para essa coisa,
o seu conceito varia segundo cada finalidade.
A vida, para nós, se exprime através de sistemas, conquanto não possa ser
redutível a eles ou entendida por seu intermédio. O sentido da vida é a própria forma
em que se manifesta e, em cada forma, ela tem um sentido peculiar. Cada forma,
assim, é um sentido, um significado da vida.

Tudo parece indicar que a tendência do universo não e a manutenção do


nomadismo do elétron, mas do seu aproveitamento no sistema operativo do átomo. A
rigor, talvez, não existam elétrons livres na natureza, porém em trânsito de um sistema
atômico para outro, na conformidade das leis de atração, que regem o microcosmo. O
associacionismo parece ser a impulsão teleológica do universo. A unidade, a sua
permanente meta. Uma unidade cada vez mais rica operacionalmente. Por isso, o
elétron que, como unidade, tem um campo diminuto, sente-se atraído a participar da
unidade maior do átomo. Por sua vez, os átomos procuram associar-se a outros
átomos, segundo as suas estruturas eletromagnéticas e afinidades químicas e, assim,
sucessivamente, do átomo à molécula, da molécula à célula, numa escala cada vez
mais complexa de associações, na síntese de individualidades cada vez mais está-
veis, até atingir o fenômeno humano e — o que nos parece lógico — prosseguir além
dele.

***

A evolução é a atualização das potencialidades de um dado sistema, ou de um


conjunto de sistemas relacionados entre si.

A abissal diferença entre o homem e os demais seres da natureza é que ele


constitui um sistema biológico que, por um processo ainda desconhecido, atingiu um
nível operacional que o tornou consciente de si mesmo como um sistema autônomo e
capaz de, pela progressiva conscientização de seu próprio funcionamento, intervir nas
suas estruturas funcionais e até modifica-las. Ou seja: o homem tornou-se capaz de se
libertar de sua estrutura biológica original e não ser apenas uma realidade, mas se
fazer uma realidade.

O homem deixou de ser somente corpo para ter corpo, fixando a essência de sua
realidade em outro nível a que deu o nome de consciência. Esta consciência se tornou
uma espécie de supercomando, acoplado ao comando biológico.

Esta emergência de um novo comando, como era natural, ensejou as mais


variadas formas de conflito com o comando anterior. O supercomando não se
conformava em, biologicamente, ser um sistema animal como qualquer outro. Algo,
assim, nasceu no sistema contra o próprio sistema. Mesmo acoplado numa estrutura
que lhe era antagônica, o supercomando desenvolveu novas formas de
relacionamento com a realidade exterior, criando um novo sistema de conhecimento
diferente do inato conhecimento biológico e ate contrario a este. O centauro é bem o
símbolo do homem, com a locomoção e o sexo ainda dependentes de sua parte
animal. O homem não quer apenas a sabedoria biológica, mas a sabedoria universal.
Por isso, a consciência borboleteia em todas as formas da natureza, procurando
devassar-lhe a intimidade e conhecer o funcionamento de cada sistema, biológico ou
não, diferente do seu.

O nível consciente da mente pouco sabe, porque é recente e ainda se está


estruturando no seu relacionamento com o sistema do qual emergiu, como
notadamente em relação a outros sistemas, talvez no intuito de em futuro, ainda que
remoto, libertar-se, em definitivo, do sistema onde opera e se realizar como um novo
sistema, superior a tudo o que já se viu neste planeta.
Tem razão Teilhard de Chardin: a evolução "é uma ascensão para a consciência"
(2) e o propósito da vida na evolução é um "poder mais para agir mais" e um "agir
mais para ser mais" (3)

***

No existir tudo é vir-a-ser. Tudo o que existe se transforma, é provisório: só o


processo transformista é eterno.
O fundamento do existir é, assim, a contradição.

Tudo o que existe, resiste. A resistência é o princípio informador da


individualidade. O corpo é um conjunto de resistências. Ele se estrutura dentro de um
campo de pressões específicas: cessadas ou alteradas essas pressões, o corpo pode
ser profundamente afetado e até destruído. A existência é, assim, um complexo de
resistências.

Todo existir é um opor-se. A vida, ao nível da realidade em que vivemos, é


contradição, oposição, contraste. Um oposto valoriza o outro. A cada ação
corresponde uma reação contraria em intensidade e extensão. Tudo tem em si o seu
contrário e se equilibra em fluir dialético.

A individualidade não é uma realidade física, mas psicológica. Não é o conjunto de


elementos que informa o indivíduo, como pessoa humana, mas a autoconsciência
deste conjunto, como expressão autônoma da vida.

Conquanto a consciência seja o resulta do da oposição — o homem se sente


como uma realidade separada ou distinta do Todo — o opor-se ao mundo não
produz, necessariamente, a autoconsciência. O homem só se conhece por reflexão,
ou seja, por oposição a si mesmo. A oposição ao mundo, ao não-eu, é insuficiente,
portanto, para produzir a consciência do eu, embora proporcione uma noção vaga e
instintiva do mesmo. A consciência, assim, ê uma fragmentação da realidade, uma
especialização perceptual. Quem vê o conjunto, obscurece o detalhe e o individual é
um detalhe da realidade. Por isso, quanto mais o homem se vê a si mesmo, menos
enxerga a realidade e vice-versa.

Só nos é dado, porém, conhecer o existir, não o ser. O existir é o objeto imediato
da nossa consciência, da nossa percepção. Conhecemo-nos como fenômeno, como
existência individualizada e desta percepção fenomenológica pressupomos o ser, a
essencia, a causa e o conteúdo do existir.

Sentimo-nos como existência e permanente devir.

Percebemos, porém, que algo em nós náo muda: a consciência de que mudamos,
o eu que se assiste e prossegue em todas suas transformações. Existir é transformar-
se. Mas, há um elo nesse transformar-se, que dá continuidade ao transformismo,
catalisando todo o existir. A esse catalisador damos o nome de espírito: indutor das
reações da existência, sem ser afetado, ao menos substancialmente, por elas.

Se fossemos puro existir, seríamos radicalmente outro em cada transformação.


Mas nunca somos totalmente outro em cada transformação, por mais radical que ela
seja e, sim, a consciência unitária, unificadora e seletiva de todas as transformaçoes.

O espírito, assim, é a hereditariedade psíquica de todas as nossas transformações


e experiências. O existir puro é sem continuidade e sem memória. Se, porém, há
continuidade e há memória, não hã o existir puro, mas o substrato metafísico, que liga
os elos de cada momento do existir.

Não sabemos o que somos, mas conhecêmo-nos no existir e como existência. O


homem é essa consciência do existir e se descobre no próprio existir.

***

Como seres mutáveis, só conhecemos mudanças. No entanto, não perdemos a


noção de nossa individualidade, de nossa identidade, apesar de todas as mudanças.

Entende Locke que a identidade da pessoa nao é uma substancia permanente por
baixo do devir, mas a continuidade da consciência.

O homem é o que muda. É a sua fidelidade ao presente. Se eu penso sobre o que


sou, deixo de ser o que sou no instante mesmo em que o penso.

O compromisso da vida é mudar: ser o que é, enquanto é. A lealdade é o hoje: ser


o que é, enquanto é. Quem se compromete com o ontem, trai o hoje: é adúltero da
Vida.

Ninguém é obrigado a mudar. A mudança nem é um direito: é um fato. Posso fingir


não ter mudado. E, se assim procedo, torno-me um estranho a mim mesmo.

A identidade do eu, portanto, está na sua própria transformação, na consciência


dessa transformação.

O eu não é estático: é o que se transforma. Não é mera continuidade: é


transformação.

O eu não tem definição: ele se define a cada instante.

O homem, como tudo o que é relativo, é um processo. Não é o conjunto de suas


vivências, mas o resultado dinâmico das mesmas. Não é memória, mas a resultante
dos processos mnemônicos, selecionando e transformando, psicologicamente, os
fatos do seu existir.

Emocionalmente, queremos admitir que nosso eu, o núcleo do nosso existir, é o


conjunto integrado e eterno de nossas vivências e que somos, por conseguinte,
memória. Mas a experiência psicológica constantemente nos demonstra que nossa
memória, além de seletiva, está, de maneira permanente, a adaptar seus conteúdos
aos interesses imediatos do presente. Talvez o conteúdo dinâmico da nossa memória
resulte da fixação de tendências e não dos fatos do existir. Eis por que, julgando-se
memória estática, o homem teme, instintivamente, a morte.

O eu não é apenas o sentimento possessório do seu território orgânico, mas das


coisas e valores do mundo que o cerca. O eu não e, assim, um núcleo físico e
estático: é um processo dinâmico, realizando-se, a cada instante, na substancia onde
atua e na qual se reveste.

Não há que separar o eu da noção do corpo e da necessidade de sua identificação


interior e exterior. O eu tem muitas superfícies e estas são modos de sua identidade
nos mais di versos níveis existenciais ou patamares ônticos. Não há, pois, que se
cogitar do núcleo do eu. Ele é o que se manifesta na polimorfia do seu próprio
contexto. O eu é o momento em que é apreendido: não é seu rastro ou sua direção,
mas o ponto onde se manifesta. Ê o seu situar no mundo no instante de sua
apreensão.

O mundo é o espaço do eu no qual se desloca e ele é a sua própria perspectiva


em cada momento do seu deslocar no mundo e segundo as coordenadas a que foi
referido.

A vida não conhece fidelidades. Assim, a identidade do eu, no trânsito existencial,


é o seu agora e, acidentalmente, o seu pretérito. Por mais que resista ás mudanças,
ele se transforma, mais cedo ou mais tarde, voluntária ou involuntariamente,
conscientemente ou não. Porque, como não ha dois indivíduos iguais, o próprio eu
jamais se repete e jamais é duas vezes no perpetuo transformismo do seu existir.

O homem não se repete e seu erro consiste em querer repetir-se para ser coerente
ao ontem. A vida não tem fidelidade, pois ela ê sempre nova e sempre outra a cada
instante.
Infidelidade é manter-se fiel ao que já não é
.
Fidelidade é permanente atualidade: é ser-se integralmente o que se é a cada
instante. Ê mudar com a mudança, sem apego ao que já não é. Fidelidade é coerência
e coerência é mudar com a mudança de acordo com o que mudamos. Se a coerência
fosse jamais mudar, nem sequer as pedras seriam coerentes.

Pecar é ser infiel a si mesmo. Ê viver o que já não se é. Morto é aquele que não
morre na mudança, pois a continuidade da vida reside na permanente renovação pela
morte. Pecar, também, é não descobrir o que somos. É permitir que os outros nos
impeçam de ser o que somos e impedir que os outros sejam o que são.

A vida não é um problema. O problema existe quando resistimos à ação


renovadora da Vida. A morte é a Vida mudando.

Fidelidade e, também, pureza. A pureza é a fidelidade a si mesmo. Agir com


pureza é agir tal qual se é. Puro é o que está totalmente em si mesmo em todos os
instantes. Pureza é a completa nudez do ser.

Perfeição é fidelidade. Não é um modelo: é a coerência do ser consigo mesmo a


cada instante. Assim, o homem não conquista a perfeição, porque ela não é estática.
Só se conquista o que não muda.

O homem vive a perfeição a cada instante em que age em plena harmonia consigo
mesmo. Ninguém, pois, é perfeito em relação a algo fora de si mesmo, mas sempre
que age segundo ele é.

***

A mente se faz no tempo ou o tempo revela a mente?

Se a mente se faz no tempo, todo processo mnemónico é impressão de fatos.

Mas, se o tempo revela a mente, a mente sempre é, sendo aparentes e práticas as


noções de passado, presente e futuro. Então, o que denominamos de memória nada
mais é do que a realização objetiva, fatual, dos conteúdos programáticos da mente,
seja ela individual ou coletiva. O fato material, assim, não se imprime na mente, mas
ela exprime seus conteúdos dos quais os fatos são as suas vestimentas.
Não se pode compreender a mente pela mente. O olho não se vê a si mesmo: vê o
seu aspecto externo, por reflexo, no espelho. Tudo o que sabemos de nós ê aquilo
que os outros nos refletem.

O que chamamos de real ê o nosso relacionamento com os outros, a experiência


comum, a vida partilhada. A essa fase de nossa mente denominamos de consciência.

O sonho é, também, um tipo de consciência que não resulta inteiramente das


nossas relações com o mundo exterior.

A consciência vigílica nos dá o ser social. A consciência onírica nos dá um ser


inapreensível pelos padrões da consciência vígil.

O que é a alucinação, senão um conteúdo onírico objetivado? O sonho não é


apenas a explicação simbólica dos nossos recalques: é uma atividade autônoma da
mente.

Não será a loucura um sonho de que não se acorda? Um sonho com a aparência
de vigília? Os hipnotizados também dão a impressão de que estão conscientes das
coisas que os rodeiam.

Vigília é a vida psíquica seletiva. O sonho, parece-nos, é vida psíquica total. O


fluxo psíquico entre as mentes parece incessante e a vigília nada mais é do que uma
interrupção desse fluxo. O nosso eu e uma perturbação desse processo psíquico total.

Observou-se que o estado de plena vigília não dura mais que um minuto ou dois
por hora. Assim, as nossas distrações ou "fugas" da realidade externa são mais
frequentes do que pensamos. Há pessoas que, por deficiência da censura ou controle
do ego, permanece, por tempo muito longo, no mundo do sonho. A sua vida vigílica se
torna, assim, um hiato no seu universo onírico.

Há um universo psíquico paralelo ao universo físico. Uma forma de percepção que


não recolhe seu material do mundo físico, embora manipule com os dados desse
universo. Contudo, as experiências do mundo psíquico nem sempre coincidem com as
do mundo físico. Há outro eu, movimentando situações e pessoas que não as
conhecemos na vida vigílica.

Cada vez mais se constata que a atividade psíquica não é um produto


exclusivamente fisiológico. Sabe-se, experimentalmente, que a ausência da atividade
onírica provoca estados psicóticos, os quais, inclusive, podem levar à morte, caso
persistam por muito tempo. A importância da vida mental para o organismo ficou
comprovada nesses experimentos.

O homem, quando dorme, apenas muda o nível de sua atividade psíquica. Se o


que ele percebe, em estado de vigília, é real, por que real seria o que ele percebe
oniricamente?

Qual, na verdade, a diferença entre o que passou e o sonho? A memória não


prova o que aconteceu, pois o presente, agindo sobre o passado, o modifica. Só o
presente, então, parece real. Mas, o presente é instantâneo e está influenciado pela
memória e pelas expectativas do futuro.

O sonho e o que não se tornou fato e o passado é o fato que se tornou sonho, pois
a memória tem a mesma estrutura do sonho.
***

O corpo é, para nós, o aspecto sólido e geométrico da nossa consciência. Ê forma


e limite do nosso eu.
Todo ser pressupõe um corpo, que é o seu modo de existir e de significar-se no
mundo.
O mundo é uma prorrogação do nosso corpo. Não é o mundo que se impoe como
interpretação ao nosso corpo, mas é esse que interpreta o mundo na conformidade de
sua estrutura peculiar.
Feliz a definição de Vivekananda: "o corpo é o nome de uma série de mudanças"
(4).
O corpo físico é a expressão transitória de algo permanente. É aparentemente
estável, sob o ponto de vista morfológico, mas não ao nível de seus elementos
atómicos, moleculares, celulares.
Dizer que o homem é o seu corpo físico é negar-lhe a própria identidade. O corpo
é uma atividade operacional do seu agora. Se o homem fosse apenas corpo físico
seria um novo homem a cada mudança total do seu corpo.
Paradoxalmente, somos o que se transforma e o que permanece estável.

***

A verdadeira percepção não tem sujeito: é vivência integral do presente. Se a


percepção é afetada pela lembrança do passado e pela expectativa em relação ao
futuro, ela apreende distorcidamente a realidade.

Vivemos uma realidade específica e sabemos que essa realidade não é toda a
realidade e nem se constitui o padrão universal da mesma. Ora, como não podemos
viver e compreender outro tipo de realidade, somos, naturalmente, inclinados a negar
qualquer outra realidade além ou diferente da nossa. Isso porque a percepção é a
medida existencial de cada ser.

Percepção é sintonia, seletividade. O nosso organismo é um conjunto de vibrações


in tegradas e cada indivíduo só percebe aquilo que vibre em consonância com o seu
organismo. Cada órgão, cada sentido funciona dentro de uma gama específica de
vibrações que, perceptualmente, traduzimos por som, luz, cor, calor, frio, forma, odor,
gosto, etc. São nossas formas de codificar a nossa própria realidade dentro do con-
junto de vibrações em que vivemos.

Percepção não é apenas apreensão, mas também interpretação de tudo o que nos
afeta. O universo do indivíduo é, portanto, aquilo que ele percebe. Se pudesse mudar,
definitivamente, a estrutura sensorial do seu organismo, passaria a viver uma nova
realidade perceptual. Aliás, as experiências com drogas alucinógenas parecem
confirmar essa suposição. O que não sabemos, todavia, ê até onde o homem pode
perceber.

Se as nossas percepções não correspondessem a uma realidade objetiva,


conquanto filtrada segundo o nosso modo peculiar de ser, viveríamos num mundo de
ilusões. Se, por outro lado, elas correspondessem a um padrão único da realidade,
então esta seria um amontoado de contradições, dada a diversidade perceptual de ca-
da indivíduo.

De um modo geral, vemos o mundo exterior, ao menos aparentemente, do mesmo


modo. Porém, cada um de nós possui sempre uma perspectiva pessoal e original do
mesmo, em maior ou menor grau. Assim, dentro de um universo comum, cada
homem, na sua subjetividade, algumas vezes exagerada e conflitante, habita, sozinho,
o seu próprio universo, desde as formas mais simples da introspecção ao extremado
alheamento da esquizofrenia.

***

Liberdade é autenticidade, fidelidade a si mesmo a cada instante.

A verdadeira liberdade á a interior, onde o homem é o pleno exercício de si


mesmo. A liberdade exterior não depende do homem, mas das circunstâncias
históricas e culturais onde vive. O corpo pode ser escravo: importa que a alma não o
seja. Se a nada nos obrigarmos interiormente, nenhuma obrigação externa será capaz
de escravizar-nos.

Na verdade, o mais difícil é o homem saber o que ele é. Ele está soterrado numa
con fusão de normas e condicionamentos, que o tornam um autômato do mecanismo
social. A sua luta consiste em descobrir o que ele é para ser livremente o que é. O
homem não é livre para ser algo, mas, por ser algo, luta para ser o que é.

O homem não escolhe as suas necessidades. Ele é as suas necessidades. Não


pode mudar as suas necessidades, mas impedir sua manifestação ou realizã-las
vicariamente. Assim procedendo, ele limita sua liberdade, que nada mais e do que a
livre expressão de suas necessidades.

O fato de o homem ser consciente de suas necessidades não o torna livre. Pelo
contrário: ele sente mais profundamente o tolhimento desta liberdade, seja por sua
iniciativa, seja por motivos alheios â sua vontade.

Liberdade nada mais é do que a consciência das limitações impostas às


necessidades. Ela é como a saúde: só a ela nos referimos, quando a perdemos. Não
queremos ser livres das necessidades, mas livres para elas. Por isso, só sentimos
desejo de liberdade, quando as nossas necessidades não são satisfeitas.

O homem que se liberta, interiormente, dos condicionamentos de sua cultura, com


vista àqueles padrões, ele nao é livre. Liberdade é ação com conhecimento de causa:
é plena consciência de si mesmo.

Lucidamente, adverte Krishnamurti: "O que interessa, portanto, não é escolhermos


tal ou qual norma de ação, sim, compreendermos como a mente está condicionada"
(5). E ainda Krishnamurti: "O primeiro passo para a libertação a compreensão do
cativeiro" (6).

Liberdade é auto compreensão de si mesmo a cada momento do existir. É


permanente fidelidade a si mesmo. Por isso, quem é livre não se prende nem se deixa
prender.

Liberdade não é comportamento imprevisível, mas ação consciente de seus


próprios motivos. Ela é como o espelho que não guarda a imagem que refletiu e, por
isso, sempre reflete, plenamente, as coisas que nele se projetam. A memória deturpa
a percepção do presente.

Observa Leibniz: "Si la libertad consistiera em sacudir el yugo de la razón, los


locos y los insensatos seriam los unicos seres libres". (7).

***
A dúvida é a ginástica da inteligência.

Duvidar não é apenas negar o que existe, mas negar que o que existe seja a única
coisa que existe. Negar, assim, é ampliar a visão da realidade. A dúvida que apenas
nega é destrutiva.

Diz Louis Pauwels:"O amadurecimento é a ampliação das dúvidas, uma vigília do


espírito para manter o conhecimento no seu mais alto grau de incerteza" (8).

O dogma é o cansaço da razão.

O homem que não duvida, cansou de crescer.

A dúvida é a saúde do espírito. Duvida-se, porque se quer mais. Porque se sabe


que o que se sabe é provisoriamente necessário e necessariamente provisorio.
Porque o saber nao tem fim. E o provisório nao é irreal, enquanto provisório.

A dúvida é a fé de que há algo mais além do que se crê e a fé é a dúvida de que


todo real é só o que conhecemos.

***

Impossível é ao homem viver sem convenções, pois lhe ê natural o sentido da


orienta- ção, de organização de sua própria realidade. Ele gosta de criar regras e de a
elas se submeter. De elaborar um mundo lógico para se sentir seguro nas certezas
que inventou.

O homem é um geógrafo por natureza. O seu viver é um mapeamento, onde todas


as coisas estão devidamente catalogadas e onde o próprio desconhecido possui,
também, algumas referências. Para esse geógrafo, a fé é um mapa que, mesmo
provisório, nem por isso evita discussões acirradas sobre essa fantástica região e seus
acidentes.

Se é lícito ao homem organizar, assim, o seu próprio mundo, tambem, de igual


modo, lhe é facultado desorganizá-lo, a fim de lhe conferir nova estrutura funcional.

A vida social é um ritual e a sua observância nos mantém permanentemente


orientados em nossa vida de relação. A cultura, assim, não é apenas uma realidade
material, mas psicológica. Ela impõe aos indivíduos orientações padronizadas,
fornecendo, conforme assevera Kluckhohn, "soluções prontas aos nossos problemas,
ajudando-nos a prever o comportamento dos outros e permitindo que os outros saibam
que o esperar de nós" (9). O homem é uma programação cultural, o que confirma a
afirmação freudiana de que uma pessoa socializada conduz, em seu superego, o
sistema de valores de sua sociedade. Através dos mais diversos processos
educacionais — a família, escola, etc —, ela introjeta no indivíduo, observada sua
condição social, um programa existencial a longo prazo, programa esse a que, in-
conscientemente, obedece, cuidando tratar-se de um legitimo impulso do seu próprio
eu. A sociedade impõe as premissas, viciando o raciocínio e afetando até a percepção
da realidade. E o homem, assim condicionado, só percebe o que, no seu universo
cultural, foi selecionado e interpretado.

O preço do ajustamento social é a mutilação emocional e psíquica do homem.


Educar é condicionar a um padrão, habilitando os indivíduos a conduzir-se
adequadamente na vida societária. Assim, todo ajustamento, no processo de
socialização, só é conseguido a custas de amputações e podamentos na
individualidade.

Tinha razão Nietzsche, quando asseverou que. "a sociedade humana é uma
tentativa". (10). Sempre é extremamente difícil estabelecer um processo simbiótico
desejável entre o individual e o social. Não há, porém, outra estratégia para garantir,
não apenas a sobrevivência, mas a própria evolução da Humanidade.

BIBLIOGRAFIA

1) Pietro Ubaldi. Problemas do Futuro, pag. 343 Edição Lake. 2ª edição.


2) Pierre Teilhard de Chardin. O Fenômeno Humano, pag. 283. Editora Herder. 2ª
edição. 1966
3) Pierre Teilhard de Chardin. O Fenômeno Humano, pág. 272. Editora Herder. 2ª
edição. 1966
4) Vivekananda. Raja Yoga, pág. 47. Editora Vedanta.
5) Jiddu Krishnamurti. Da Solidão à Plenitude Humana, pag. 186. Instituição Cultural
Krishnamurti.
6) Jiddu Krishnamurti. Reflexões sobre a Vida, pag. 258. Editora Cultrix.
7) Leibniz. Nuevo Tratado sobre el Entendimiento Humano, II vol, pag. 162. Aguilar.
8) Louis Pauwels. Crenças e Dúvidas, pag. 128. Ed. Civilização Brasileira, 1975.
9) Clyde Kluckhohn. Antropologia. Um Espelho para o Homem, pag. 37. Editora
Itatiaia Ltda. 1963.
10) Nietzsche. Assim falava Zaratustra, pag. 196. Edições Ouro.

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