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TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 TEMPO E OS HOMENS: DOM, SERVIDOR E SENHOR' Raquel Glezer Depto. de Histéria = TEA/USP A proposta de discutir a relagdo “Tempo e Poder” como atividade do Grupo de Estudos sobre o Tempo do IEA/USP em uma sesso de comunicago coordenada no XVI Simpésio Nacional da ANPUH, para e com historiadores, apresentou-se como muito atraente. Entretanto, mais do que a bibliografia disponivel, as possiveis questies a serem exploradas e 0 tempo de exposigao previsto forgaram a uma selecao restritiva. Em fungo das limitagdes concretas escolhi, na perspectiva de historiador, apoiada em historiadores, apenas um dos miltiplos enfoques possiveis, o que discute a transformagdo das relagbes dos homens com o Tempo, de maneira generalizada, valorizando-as como indicadores de poder. Para a formulago do texto foram utilizados apenas algumas obras de alguns historiadores, relacionados nas notas finais, selecionados tanto em fungo do tema como do enfoque. Pretendo explorar sumariamente a relagio que os homens desenvolveram com 0 ‘Tempo, na perspectiva da civilizagdo ocidental Na tradigdo ocidental cristd, ou na européia ocidental, a percepgdo do Tempo esté ‘mais relacionada & tradigdo judaico-cristd do que helénica, Para os gregos, 0 Tempo dos homens, quer entendido como ciclico, de eterno retomo, quer como sub-lunar, degradado, sujeito a destrui¢ao, foi percebido, concebido ¢ trabalhado por seus historiadores como um tempo nio linear, presentificado, limitado em alcance pela vida e memoria humanas.” 1, O TEMPO COMO DOM Na tradigdo judaico-eristd, Tempo é elemento fundamental, articulador da hist6ria, da vida dos homens ~ eixo linear progressivo e explicativo: 0 Tempo possui um fim em si mesmo, “telos”, que embora pudesse ser confundido com a Etemidade, imaginada como estitica, nio 0 6.° Para o Cristianismo, em seu desenvolvimento, Tempo, elemento explicativo acabou sendo um processo de raciocinio e formulagao de razdes A concepeao de Tempo na Biblia e no cristianismo primitive era a de tempo teolégico, iniciado por Deus € dominado por ele, pois Tempo era condicao necesséria e natural de todos os atos divinos. A Fternidade surgia como a dilatagio do tempo até 0 Infinito, permitindo a percepgao de que entre ambos havia diferenga quantitativa. s textos do Novo Testamento introduziram uma questio diferenciada, nova: o ‘Tempo como dimensio histérica, pois passou a haver um centro, Cristo, e uma finalidade, a Salvagio: “desde a Criagdo até Cristo, toda a histéria do passado, tal como é relatada no Antigo Testamento, passou a fazer parte da histéria da Salvacao”. Surgiu entio uma ambiguidade, pois os pensadores cristdos, diversamente dos judeus, que concebiam 0 Futuro de forma escatolégica e coletiva, a Encamacdo passou a " Texto apresentado na sessio de Comunicasdo Coordenada Tempo e Poder, ealizada no XVI Simpésio "Nacional Memsria, Histéria e Histoiografia, da Associasio Nacional dos Professores Univesitios de Hisria - ANPUH, no campus da Universidade Estadual do Ro de Janeiro ~ UERJ, em 23 de julho de 1991 2 Vide O Tempo na Filosofia e na Histria, waa, Sio Paulo: IEATUSP, fev.1991 (Colegio Documentos, Série Estudos sobre 0 Tempo, 2). * Vide LE GOFF, Jacques. Para um novo conecito de Idade Mé Lisboa: Estampa, 1980 ‘Tempo, trabalho e cultura no Ocidente, TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 dar sentido ao Tempo, pois com a certeza da possibilidade de Salvagao, trazida pelo Cristo, a realizagao dela foi transferida para a historia coletiva ou para a individual. Santo Agostinho, em suas reflexdes, explicou a ambivaléncia pelo fato de que no Ambito da Eternidade, os homens, subordinados & Providéncia, dominam seu proprio e o da Humanidade simultaneamente Nos séculos seguintes, do VI ao XI, a sociedade medieval praticamente congelou a reflexdo histérica, retirando 0 Tempo da Historia ao assimilé-la & Historia da Igreja, renegando a Historia, preferindo como géneros a epopéia © a cangdo de gesta, provocando © esvaimento da historicidade, resultante da atuagao dos pensadotes politicos ligados a0 agostinianismo. ‘A questo do Tempo s6 foi retomada posteriormente, quando o tema do “final dos tempos”, que ressurgira nas heresias escatolégicas € no milenarismo dos grupos oprimidos ce esforneados, aos quais © Apocalipse surgira como esperanga ¢ alimento, se esgotara em si Sem o contrapeso do milenarismo, no século XII, 0 Tempo apareceu instalado na Fiemidade, isto é, como Tempo linear, com sentido, direcdo, caminhando para Deus, € as transformagdes econémicas propiciaram a retomada da reflexéo sobre a Historia, principalmente a partir do desaparecimento do Império Romano, da barbarizagio do Ocidente, da restauragdo carolingea e da restauragdo otoniana. O cristianismo, inserido na evolugao histérica, dominada esta pela Providéncia, e ordenada pela Salvacdo, precisava esclarecer as causas segundas, estruturais ou contingentes, Havia a necessidade de ultrapassar um duplo obstéculo: a visio judaica da Eternidade estética e 0 simbolismo medieval, que nao permitiam a investigagao e a sistematizagio da realidade concreta do tempo da Historia, para se obter uma concepedo de tempo maledvel. Hugues de Saint-Victor, segundo Le Goff na obra citada, recuperou a historia: “historia est rerum gestarum narratio”, uma narragdo seriada, com sucessio organizada, continuidade, articulagao, clos de um sentido — iniciativas de Deus, fatos de Salvagdo. Esta Histéria retomou uma das vias que ja fora outrora trilhada: a teoria das idades, dos clissicos gregos, que entio passou a ser semelhante aos Dias da Criago da Biblia, Historia, que desde entio passou a usar a nogdo de transferéncia, “translagdes”, a historia das civilizagdes percebida como uma histéria de transferéncias, tanto no campo intelectual — 0 conhecimento se transferiu de Atenas para Roma, de Roma para Paris, como no campo politico, onde o Império fizera também uma transferéncia. A ligagdo entre sentido do tempo ¢ sentido do espago aparece como uma novidade revolucionéria, a qual se soma a concepgao organicista do Estado de Jodo de Salisbury. Mas, até entdo, Tempo era percebido como Dom, isto é, doagdo de Deus para uusufruto dos homens, da mesma forma que ele doara o usufruto de outros elementos da natureza, como o sol ¢ 2 égua. Claramente, 0 Tempo como Dom nao poderia ser submetido 0 controle dos homens, nao poderia ser utilizado de forma a permitir ganho material aos homens, pois tal fato significaria a exploragao de algo que nao pertencia aos homens. De maneira quase imperceptivel, 0 desenvolvimento econdmico dos séculos XI € XII, © proceso de acelerago econdmica ¢ as transformagdes das condigdes mentais, introduziram uma nova percepgao de Tempo. 2. O TEMPO COMO SERVIDOR Nos textos etuditos se elaborava lentamente uma nova percepgaio do Tempo, mas na vida concreta também uma nova realidade estava sendo criada e concebida. TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 © mercador do Ocidente europeu, que vagarosamente delineara suas atividades, numa organizagao politica-militar-teligiosa na qual no encontrava muito espago de atuagdo, foi um elemento basico para a ruptura da concepedo de Tempo como Dom, ‘O mercador, que atuava no espago do Mediterrineo Ocidental © no espago hansedtico, estava submetido ao tempo natural, dia € noite; metereoldgico, ciclo das estagdes, acidentes naturais como tempestades, desastres maritimos ¢ terrestres. Diante de es nada podia ele fazer, a ndo ser se submeter humildemente as contingéncias naturais Entretanto, no processo de alargamento do mundo conhecido, o problema do tempo de viagem nao ficou restrito as preocupagdes dos mercadores. © Estado, principalmente os que realizaram a proeza do alargamento do mundo, ficou com problema semelhante. Segundo Vitorino Magalhdes Godinho: “Em 1512 afonso de Albuquerque escreve a D.Manuel: “olhe bem Vossa Alteza o que assina pera a India, que & muito loge”... ¢ D.Joaio de Castro, em 1546, parece fazer-Ihe eco: ‘primeiro que hajamos respostas de nossas cartas € Vossa Alteza queira socorrer as nossas necessidades, dé 0 sol muitas voltas, e que acaba de fazer duas inteiras revolucées.'"™* ‘Questdes novas para mercadores e para Estados: distincias a serem calculadas em tempo, outra forma de organizago comercial, questdes de armazenagem de mercadorias, questBes de empate de capital Distincias, demoras, dificuldades do meio fisico, dificuldade de comunicagdx “Para a india as naus do reino tem de desaferrar de Lisboa em Margo ou primeiras semanas de Abril, para lé chegarem em Setembro; de Cochim e Goa levantam ancora em dezembro, para ancorarem no Tejo na segunda quinzena de Junko até a primeira de Setembro ... As ithas de Cabo Verde esti a umas duas semanas de Lisboa, Sao Jorge da ‘Mina a uns quarenta e cinco dias de navegagio. Entre a capital portuguesa e La Rochelle ‘gastam-se sete a oito dias, até 0 porto de Antuérpia ou a Amsterdao uns doze ou quinze ‘os navios que vem carregar sal a Setubal contem com um més de viagem: entre 0 Tejo Livorno hé que contar com umas trés semanas...” Da mesma forma que 0 espaco se torava objeto de contagem e medida, também 0 tempo, porque tinha que ser levado em considerago na viagem, na organizagao das redes comerciais, nos precos dos produtos e mesmo na duragao do trabalho artesanal. ‘A necessidade de regulamentar o tempo foi se impondo, pois estava recomegando a cunhagem de moedas de ouro; a diversificagio das moedas reais; 0 bimetalimo comegava a se impor ¢ as flutuagdes de valor comecavam a se fazer sentir: 0 cdmbio se organizava, a Bolsa estava em germinagao. A questi da justa medida do tempo aparecia também de um outro angulo, além do comercial, que exigia contabilidade, relagdes de viagem, praticas comerciais consensuais, letras de cémbio, naquele das corporagdes de oficio, com seus estatutos, © Tempo que surgia era um tempo novo, mensurivel, orientado, previsivel, sobreposto ao Tempo eternamente recomegado ¢ imprevisivel do meio natural. ‘Apareceram os primeiros rel6gios comunais que marcavam as horas das transages comerciais € as horas de trabalho dos artesdos, operdrios téxteis — os mercadores da comuna instalavam o instrumento, que assinalava o seu dominio sobre 0 Tempo do trabalho, Ocorreu a transformagio do Tempo, que passou a ser racionalizado, laicizado, ‘mensuravel, mecanizado, com valor. Ao Tempo da Igreja, marcado por sinos, por oficios religiosos, pelos quadrantes solares ou pelas clepsidras — tempo concreto, se ops o Tempo dos mercadores: tempo do relégio, que marcava as tarefas laicas e profanas, o tempo * Vide GODINHO, Vitorino Magalhdes. Os descobrimentos ea economia mundial. Lisboa: Arcidia, 1963. TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 urbano do trabalho e das transagdes, medido como o espago, pela duragio de um trajeto, pela maleabilidade de outros caminhos. Le Goff exemplificou a profunda alteragao que a nova relagio Tempo e Espago trouxe pela introdugdo da perspectiva ‘As transformagSes trazidas pela introdugo da vida urbana, pela formagdo de uma sociedade urbana, provocaram a divisio do Tempo em trés esferas, 0 que acabou contribuindo para transformar a relago dos homem com ele. 2.1.0 TEMPO DO TRABALHO No Ocidente europeu medieval o dia de trabalho era definido pelas condigées naturais, 0 levantar e por do sol: uma unidade tnica para medir o dia de trabalho no campo 0 trabalho urbano, cujas divisdes cram as horas religiosas, reminiscéncias da Antiguidade romana. A atividade humana, dizendo melhor, o trabalho era demarcado pela luminosidade: ‘© tempo de trabalho era o de uma economia determinada pelos ritmos agrarios, sem pressa, sem preocupagio com exatidio, sem inquictudes sobre produtividade. Segundo Le Goff, tal descrigdo corresponde a de uma sociedade s6bria e pudica, sem grandes apetites, pouco exigente, pouco capaz de esforgos quantitativos. Podemos considerar, da mesma forma que o autor citado, 0 marco da transformago 2 introdugdo do trabalho notumo: heresia urbana, interditada e punida com pesadas multas. Mas, a diviso interna do dia de trabalho lentamente estava sendo alterada, em evolucio pouco notada: a hora “none” que corresponderia as 14h foi recuada para as 12h, introduzindo a pausa para uma refeigdo na oficina, iniciando um processo de subdivisdo do dia de trabalho. No final do século XIII o conflito pelo horério de trabalho ja estava firmemente estabelecido, com o avango do trabalho notumo, iniciando-se 0 questionamento da nogdo se do século XIV a definigdo de “dia laboral” tomou-se mais eficiente: inicialmente os operérios solicitaram sua ampliagio, depois solicitaram aumento salarial, ‘com 0 argumento que haviam aumentado os pesos e as dimensdes dos tecidos. Le Goff considera tais argumentagdes como expediente dos trabalhadores téxteis para aliviar a crise, com a deterioragdo dos salérios reais ¢ a alta dos pregos. ‘A autorizago do trabalho noturno foi dada por Felipe, o Belo. Por sua vez, os patrdes procuraram regulamentar rigorosamente 0 dia de trabalho, instituindo os “sinos de trabalho”, torres com sinos especiais que regulavam o trabalho nas cidades téxteis, delimitando 0 tempo dos tecelBes, que era também o tempo dos novos ‘mestres em uma conjuntura de crise e ascengao social se tornara possivel A introdugdo dos “sinos de trabalho” no ocorreu de forma pacifica. Em diversas localidades, os trabalhadores se revoltaram contra eles. Entre 0 século XIV e inicio do século XV a questo entre patrdes © operirios esteve centrada na duragdo do dia de trabalho, incorrendo em pesadas multas aqueles que desobedecessem aos hordrios. A reducdo do dia de trabalho foi motivo, da mesma forma que a criago da diferenga entre dia e dia laboral; a insergdo do tempo de descanso no decorrer do dia laboral, a admisséo do tempo para o trabalho pessoal. Devemos considerar que nas comunas o tempo marcado pelo “sino do trabalho”, pelo “sino do mercado”, que assinalava 0 tempo urbano, diverso do tempo religioso, servia simultaneamente para as atividades de defesa, administragdo, convocagao de reunido de conselho ¢ juramentos TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 A vida urbana comegava a ser lentamente aprisionada pelo sistema cronolégico — tempo do quotidiano, tempo de horas certas, tempo do trabalho medido, As igrejas perderam 0 monopélio do controle do tempo, sinal importante do inicio do processo de laicizagao, Le Goff destaca com atengdo especial 0 fato de que os “sinas de trabalho” na realidade no traziam consigo qualquer inovagdo tecnolégica ¢, significavam uma nova relagio com 0 Tempo, pois a separago entre tempo natural, tempo profissional ¢ tempo sobrenatural acabou desenvolvendo novas formas de pensamento, especialmente @ que possibilitou a separagao da profissao da Salvacao. 2.2.0 TEMPO DO ESTADO E DA IGREJA Indicador preciso do grau profundo das transformagies que estavam ocorrendo no Ocidente medieval europeu, © novo Tempo, originério das necessidades. burguesas, rapidamente passou a ser expresso do poder real: os sinos de Paris, desde 1370, com Carlos V, deveriam ser regulados pelo relgio real. © Estado, ainda que na figura de um soberano, passou a ser o indicador do tempo racionalizado, transformando 0 novo tempo em Tempo do Estado. No interior da Igreja surgiu também uma outra conceituagio de Tempo. No debate centre essencialistas ¢ nominalistas a questio do Tempo como o campo das de imprevisiveis de Deus onipotente foi sendo formulada. No discurso dos misticos, Tempo assumiu também uma nova visio, uma nova dimensdo temporal: na primeira metade do século XIV, a perda de tempo transformou-se em pecado, um escdndalo espiritual. Na busca da unificago das consciéncias, rompida pelas novas formulagdes do Tempo, a Igreja recorreu a evolugdo da confissdo, introduzindo manuais de confissio: a questio da coeréncia de comportamento tornou-se importante, ¢ nela, os que rompiam com, a relagdo natural do tempo, podiam, por obras beneficentes, recuperar a relago com a religido, ou methor ainda, no final da vida, doar seus bens e retirar-se para um mosteiro. Houve também o desenvolvimento da legislago candnica, e o surgimento de uma reflexo ‘moral sobre a usura, No Renascimento reapareceu o sentido helénico de Tempo, como tempo ciclico, tempo do etemo retorno. O reencontro com a concepgdo aristotélica de tempo como movimento, apoiado por Sdo Tomas de Aquino criou a base de articulagdo do Tempo da Igreja com o Tempo dos homens. 2.3. 0 TEMPO DOS HOMENS ‘© homem do Renascimento, o humanista, por definigdo era o senhor de seu tempo. Em oposigdo 4 medievalidade, ‘Tempo, dom de Deus, transformou-se em Tempo, propriedade dos homens. Le Goff cita Alberti sobre as trés coisas que pertencem ao hhomem: fortuna, corpo € tempo. A hora tomou-se medida de vida, o homem passou a ter controle sobre ela: nunca perder uma hora transformou-se em virtude, tanto para a visio catélica da disciplina e organizagio, como para o humanista, cuja virtude era a temperanca. A nova iconografia que surgiu atribuiu ao relogio a medida de todas as coisas. TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 ‘A transformagao foi radical: 0 homem do Renascimento tomou-se 0 senhor de seu tempo, porque passou caber a ele definir politicas, atividades econdmicas e posigées intelectuais. Por sua Fortuna e por sua Virti, podia ele decidir os atos e fatos da sua vida ‘0 Tempo, dom de Deus, transformou-se em Tempo, servidor dos homens, pois os mercadores passaram a usé-lo, na sociedade urbana que se instalava na Europa ocidental, tanto como medida do tempo de trabalho do operirio, definindo © demarcando as idades do trabalho, rompendo com esquema do dia natural, como um elemento de cdlculo de lucro, permitindo o ganho em cima do tempo. No momento que aos homens passou a ser dado 0 controle do Tempo, transformando-o em servigal, permitindo o Iucro sobre seu transcurso, abriu-se também, para um desenvolvimento lento e paulatino, a possibilidade que, se servidor dos homens, 0 ‘Tempo se transformasse em Senhor. De inicio, apenas os trabalhadores urbanos estavam submetidos ao dominio do tempo do trabalho, mas com 0 desenvolvimento tecnoldgico, todos os trabalhadores, ‘manuais ou nio, se transformaram em servigais do tempo. 3. O TEMPO COMO SENHOR DOS HOMENS E.P-Thompson chamou a atengdo para a necessidade de sincronizagao no trabalho da sociedade industrial, a exigéncia de formago de novos habitos de trabalho, com disciplina e divisio, levando a interiorizagao do tempo controlado, em estudo muito conhecido.® ‘Aos trabalhadores, a submissio ao Tempo foi sendo cada vez mais exigida, de forma que eles se tornaram servigais do tempo da maquina, da mecanizagao, Hoje, no momento contemporéneo, denominado por alguns autores de “modernidade”, Tempo adquire uma nova percepgdo, uma nova forma de atuago, que esvazia a duragdo temporal, que trabalha sé com o fragmento, 0 descontinuo, o instantineo, 0 efémero, 0 imediato — tempo hegeménico que se impde ao individuo, 0 domina em sua logica despética — tempo comedor do tempo.* 3.1.0 TEMPO DO TRABALHO No desenvolvimento do capitalismo, desde 0 seu inicio, havia a preocupagio de ganhar tempo, pois o ganho sobre o tempo aumentava os lucros. No século XIX 0 tempo do trabalho dos homens foi submetido totalmente ao tempo das atividades das méquinas. O investimento capitalista, buscando sempre 0 méximo de rentabilidade, explora homens e maquinas. Taylor, no inicio deste século, organizou o tempo industrial, em blocos definidos pela maxima produtividade. Em nossos dias, progresso tecnol6gico significa caga ao tempo morto ¢ obsessio pela rapidez. Diferentemente do capitalismo cléssico, que se expandiu pelo espago, no de hoje, © ‘Tempo & um dos campos principais de sua expansio: o crescimento capitalista se deslocou para a dimensio do Tempo, explorando mais rigorosamente cadeias temporais, definindo as duragdes, reduzindo-o a particulas cada vez menores, assegurando no interior dele @ S THOMPSON, ET. Tiempo, disciplin y capitalismo. In: Tradicién, revulta y conseiencia de clase. Estudios sobre la crisis de (a sociedad preindustrial. Barcelon: Csitca, 1979, * Vide CHESNEAUX, Jean, Dela modernité. Paria: La Découverte Maspero, 1983. TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 reconversiéo de uma expansio capitalista, independente do espaco, e se firmando no presente e imediato. Cada vez ma por distincia © Tempo se transformou em hegem@nico e despético. Por sua vez, 0 uso de equipamentos cada vez mais répidos, passou a exigir maior tempo de preparagao, de planejamento prévio (como previsio financeira, previsio de mercado, planos de distribuigao), todos elementos que no concreto alongam o tempo da produc. Diante de tanta velocidade, tanta pressio, os seres humanos resistem, pois a preciso do tempo das maquinas agride o tempo dos homens, o tempo vivido. ‘Na realidade didria, o ganho de tempo realizado por um processo tecnoligico acaba sendo perdido nas restriges humanas, necessérias para o seu uso. Por exemplo, o tempo de véo diminuiu, mas o tempo de viagem aumentou: os aeroportos foram afastados da re urbana; o tempo de espera nos sagudes dos acroportos aumentou pelo sistema de controle € seguranga; o tempo de desembarque diminuiu, mas 0 tempo para atingir 0 outro local aumentou, pelo mesmo processo descrito acima, , © controle de tarifas é feito por célculo de tempo de utilizagao e nao 3.2.0 TEMPO DOS HOMENS Hoje, todos nés somos servigais ¢ prisioneiros do Tempo: pelo modelo econdmico, pela légica do capitalismo, pelas exigéncias da ordem social, as cadeias do tempo invadiram a vida privada dos individuos. Mesmo o tempo fora do trabalho, o tempo pessoal, foi submetido ao mesmo tratamento: a sociedade de consumo invadiu, programou, sincronizou tudo: zonas turisticas, residéncias secundérias, artigos culturais. © homem de hoje possui “fome de tempo”, ndo pode perdé-lo, dispendé-lo. “Ganhar tempo” literalmente significa ganar algo sobre alguém: no pode haver ganhos de tempo sem que ocorra perdas de tempo —o tempo dos conflitos de interesses. Na sociedade contempordnea os seres humanos introjetaram um relogio interior, que serve de instrument de servidio temporal. “Gerir 0 tempo”, ter “tempo livre” transformou-se em anseio e pesadelo, tanto para os aposentados, como para os desempregados; também para uma classe ociosa em busca de lazer, ¢ para as classes mais favorecidas. (O ser humano esta preso ao Tempo: hé uma forte pressio social para a programagao rigida: planos, programas, estratégias — atos asseguradores, mas também invasores. Tudo é dominado pelo Tempo efémero e instantaneo, até o proprio tempo pessoal — 1 propria vida afetiva mascara mal a relago com 0 modelo econémico dominante. ‘A sociedade superprogramada, supersincronizada, foge a realidade profunda do tempo vivido pelos homens, escamoteando 0 deslocamento univoco no eixo da vida do individuo em diregdo 4 morte. Nao ha o reconhecimento dos tempos difetenciados, tais como o tempo da doenga, 0 da juventude, 0 da “‘terceira idade”. Nao hd complementaridade entre os diversos tempos, nem hé relagdo de continuidade. Entretanto, devemos destacar que o tempo individual & profundamente diverso do tempo do equipamento mecénico, criando novos problemas médicos, decorrentes de: uso incorreto da visio; ritmo de trabalho em vinte € quatro horas, atravessando dia e noite; inversio do uso do organismo humano através das estagdes, que até recentemente repousava no inverno e aproveitava o verdo para o trabalho, ritmo invertido em nossos dias, com 0 verdo utilizado como tempo de férias, e inverno como maximo de atividade. Desta maneira, o ‘Tempo transformou-se em senhor dos homens. TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 3.3.0 TEMPO COMO SENHOR © tempo na modemidade é 0 tempo seqiiencial, encadeado por gestos, operacdes, controles, para que renda plenamente, formado, composto por séries rigidas, organizadas em ordem imutdvel. Programar o tempo ¢ colocé-lo em ordem univoca, em um eixo temporal linear, dominante, inelutavel, irreversivel. ‘A sociedade sincrénica integral, como resultado da programagio do tempo, isto é, da quantificagio dele, funcionando em tempo real, que € 0 tempo congelado do instantaneo, sem perspectiva de duracao é a nossa, dominante e hegeménica. Cada vez mais a atividade humana vai sendo regulada pela complexidade crescente de interconexdes temporais, ampliando a sincronizagao que pesa sobre os trabalhadores: @ atividade regulada por nimeros crescentes de dados temporais toma-se mais pesada, ‘mesmo que a duragdo temporal dela seja menor. a sincronizago abrange cidades, como zonas espago-temporais monoprogramadas, rompendo velhos conceitos € habitos, forgando todas as pessoas a uma programagdo rigorosa do tempo, tanto para o transporte didrio para o trabalho, como para o desfrute do lazer. Es te Tempo, cada vez mais compartimentado, dividido, possui valor financeiro, de uso € consumo, Como exemplo da sociedade do instantineo © do efémero, temos os relégios digitais, que mostram apenas 0 momento € ndo mais a durago, onipresentes no espago urbano central; a refeigao em “fast food” endo mais a alimentag3o como ato de civilizagdo. Mas no mundo agrério, sempre pensado como incélume ao tempo controlador, as colheitas agricolas devem ocorrer mais rapidamente, para aumentar o valor do terreno, @ Iucratividade da atividade, pagar os investimentos. Na sociedade contemporinea, sincronizada globalmente, em que 0 Tempo € ndo mais 0 espago é a fronteira da expansdo iiltima do capitalismo, o “tempo real”, o tempo das énicas, domina a vida humana, regula suas atividades, determina seu proprio valor. Hoje, nao hé nagéo que esteja imune ao “tempo real”, pois tanto os Estados como 0 desenvolvimento cientifico 0 tornaram homogéneo ¢ dominante. Entretanto, os seres humanos resistem, criam conflitos: as temporalidades do justapostas mas nao integradas. O tempo do repouso do corpo ¢ da mente ndo esta integrado ao tempo do trabalho remunerado; da mesma forma, o tempo livre das atividades materiais indispensiveis & continuidade da vida verdadeiro tempo livre. Fsta sociedade de “tempo real” desloca a relago com o passado, decompondo-o, esmaga 0 presente no imediato e instantineo, destréi o futuro como pluralidade de possibilidades ‘A duragdo torna-se um pesadelo, quase um valor negativo, se confunde com a perda de tempo - & 0 pleno dominio do “presentismo”, o presente em si mesmo, reproduzindo a si mesmo, uma sociedade fechada no intemporal, cortada do pasado, cortada do futuro, ‘com o contador sempre no zero. Tronicamente, esta sociedade, dominada pelo “tempo real”, transformou 0 ser shumano em seu servidor. Se o sinal de partida para 0 desenvolvimento do capitalismo foi a transformagao do tempo que era Dom em Tempo como Servidor, nos dias atuais, Tempo é Senor, pois os seres humanos estdo escravizados ao Tempo, sdo seus servidores, e, quanto mais ocupado ‘© tempo, tanto mais importante social e economicamente o homem é. (© mesmo tempo do tempo liidico — 0 TEA/USP - ESTUDOS AVANCADOS Colegio DOCUMENTOS. Série Estudos Sobre o Tempo - malo 1992 Se o homem do Renascimento demonstrava seu poder regulando o uso do Tempo entre trabalho e lazer, 0 homem contemporaneo serve ao seu senhor fielmente, seguindo ‘um ritmo de vida que tenta acompanhar o “tempo real” das méquinas, em suas decisdes de negécios esse ritmo acelerado do tempo, a Historia foi sendo esmagada: fisicamente, pela transposigao do conhecimento em dados quantificaveis ¢ acumulaveis — os tinicos que interessam, e, concretamente, pelo crescimento exponencial infinito em tempo finito, que leva ao esgotamento do modelo de desenvolvimento, Ela se transformou em objeto de uso rentivel: moda das antigtiidades; moda de objetos auténticos; moda de simulacros baratos, apenas modas. A modernidade recusa 0 passado, ela se vé como intemporal, um fim em si mesmo. Entretanto, os seres humanos resistem duramente & escravizagio total pelo Tempo: tanto em seus locais de trabalho, como em sua vida particular, apelando ao passado com 0 objetivo de procurar um outro futuro, Ha esperangas de um outro futuro formulado com uma nova divisdo de trabalho: trabathos em tempo parcial; flexibilidade de horirios; trabalhos alternados; trabalhos nas residéncias e retirada progressiva do mercado de trabalho, para que 0 homem se tome novamente Senhor do Tempo. FONTE: Instituto de Estudos Avangados USPIS Paulo rie Estudos sobre o tempo — nimero 6 ‘Tempo e Poder maio de 1992

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