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Capitulo 4 DO ETNOCIDIO 54 Do etnocidio* Ha alguns anos, 0 termo etnocidio nao existia. Beneficiando-se dos favores passageiros da moda e, mais certamente, de sua capacidade de responder a uma demanda, de satisfazer uma necessidade de precisdo terminolégica, a utilizagio da palavra ultrapassou ampla ¢ rapidamente seu lugar de origem, a emologia, para cair de certo modo no dominio piblico. Mas pode a difusio acelerada de uma palavra garantir, 4 idéia que cla tem a missdo de veicular, a manutengdo da cocréncia ¢ do rigor desejaveis? Nao evidente que a compreensio se beneficie com essa extensio que, afinal de contas, se saiba de maneira perfeitamente clara do que se fala quando se faz referéncia ao etnocidio. No espirito de seus inventores, a palavra estava decerto destinada a traduzir uma realidade que nenhum outro termo exprimia. Se sentiu-se a necessidade de criar uma palavra nova, é que havia algo de novo a pensar, ou entio algo de antigo mas ainda nao pensado, Em outros termos, julgava-se inadequada, ou imprépria a cumprir essa nova exigéncia, uma outra palavra, de uso difundido ha muito mais tempo: a palavra genocidio. Nao se pode portanto inaugurar uma reflexdo séria sobre a idéia de etnocidio sem buscar preliminarmente determinar 0 que distingue este fenémeno da realidade que o genocidio nomeia. Criado em 1946 no processo de Nuremberg, o conceito juridico de genocidio é a consideragio no plano legal de um tipo de criminalidade até entio desconhecido. Mais precisamente, ele se refere 4 primeira manifestagdo, devidamente registrada pela Iei, dessa criminalidade: o exterminio sistemético dos judeus europeus pelos nazistas alemies. O delito juridicamente definido como genocidio tem sua raiz portanto no racismo, & © produto légico e, no limite, necessdrio dele: um racismo que se desenvolve livremente, como foi o caso na Alemanha nazista, sé pode conduzir ao genocidio. As guerras coloniais que se sucederam desde 1945 em grande parte do Terceiro Mundo e que, em alguns casos, duram ainda hoje, deram por sua vez ensejo a acusagdes precisas de genocidio contra as poténcias coloniais. Mas 0 jogo das relagdes internacionais ¢ a indiferenga relativa da opinido piblica impediram a jo de um consenso anilogo ao de Nuremberg: nunca houve processos judiciais. Embora o genocidio anti-semita dos nazistas tenha sido o primeiro a ser julgado em nome da lei, ndo foi o primeiro a ser perpetrado. A histéria da expansio colonial no século XIX, a histéria da constituigo de impérios coloniais pelas grandes * Publicado om Encyclopaedia Universalis (Paris: Universlia, 1974), 55 poténcias européias, esta pontuada de massacres metédicos de populagées autéctones. Todavia, por sua extens%o continental, pela amplitude da queda demografica que provocou, é 0 genocidio de que foram vitimas os indigenas americanos que mais chama a atengado. Desde o descobrimento da América em 1492, pds-se em funcionamento uma maquina de destruigdo dos indios. Essa maquina continua a funcionar, 14 onde subsistem, na grande floresta amaz6nica, as dltimas tribos "selvagens". Ao longo dos tltimos anos, massacres de indios tém sido denunciados no Brasil, na Colémbia, no Paraguai. Sempre em vao. Ora, foi principalmente a partir de sua experiéncia americana que os ctndlogos, ¢ muito particularmente Robert Jaulin, viram-se levados a formular 0 conceito de etnocidio. E primeiramente a realidade indigena da América do Sul que se refere essa idéia, Dispomos ai, portanto, de um terreno favoravel, se é possivel dizer, 4 pesquisa da disting&o entre genocidio ¢ etnocidio, ja que as tltimas populagées indigenas do continente so simultaneamente vitimas desses dois tipos de criminalidade. Se o termo genocidio remete a idéia de "raga" e 4 vontade de exterminio de uma minoria racial, o termo etnocidio aponta nao para a destruigao fisica dos homens (caso em que se permaneceria na situagfo genocida), mas para a destruigaéo de sua cultura. O etnocidio, portanto, é a destruigao sistematica dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruigdo. Em suma, 0 genocidio assassina os povos em seu corpo, o etnocidio os mata em seu espirito. Em ambos os io fisica ¢ casos, trata-se sempre da morte, mas de uma morte diferente: a supre: imediata nao é a opressio cultural com efeitos longamente adiados, segundo a capacidade de resisténcia da minoria oprimida. Aqui nao é 0 caso de escolher entre dois males o menor: a resposta é muito evidente, mais vale menos barbaric que mais barbarie. Dito isto, ¢ sobre a verdadeira signifi do etnocidio que convém refletir. Ele tem em comum com 0 genocidio uma visao idéntica do Outro: 0 Outro é a diferenga, certamente, mas ¢ sobretudo a ma diferenga. Essas duas atitudes distinguem-se quanto a natureza do tratamento reservado a diferenga. O espirito, se se pode dizer, genocida quer pura e simplesmente negé-la. Exterminam-se os outros porque eles sdo absolutamente maus. O etnocida, em contrapartida, admite a relatividade do mal na diferenga: os outros séo maus, mas pode-se melhord-los obrigando-os a se transformar até que se tornem, se possivel, idénticos ao modelo que Ihes € proposto, que Ihes & imposto. A negacdo etnocida do Outro conduz a uma identificagao a s i. Poder-se-ia opor 0 genocidio © 0 etnocidio como duas formas perversas do pessimismo ¢ do otimismo. Na América do Sul, os matadores de indios levam ao ponto maximo a posigdo do Outro como diferenga: o indio selvagem nio & um ser humano, mas um simples animal. O homicidio de um indio ndo é um ato 56 criminoso, 0 racismo desse ato é inclusive totalmente evacuado, j4 que afinal ele implica, para se exercer, 0 reconhecimento de um minimo de humanidade no Outro. Monétona repeti¢do de uma antiqilissima infamia: ao falar precursoramente do etnocidio, Claude Lévi-Strauss lembra, em Raga e histéria, como os indios das Ihas da América Central se perguntavam se os espanhéis recém-chegados eram deuses ou homens, enquanto os brancos se interrogavam sobre a natureza humana ou animal dos indigenas. Quem sio, por outro lado, os praticantes do etnocidio? Quem se opée a alma dos povos? Em primeiro lugar aparecem, na América do Sul mas também em muitas outras regides, os missiondrios. Propagadores militantes da fé cristd, eles se esforgam por substituir as crengas barbaras dos pagios pela religido do Ocidente. A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a diferenga — o paganismo — é inaceitavel ¢ deve ser recusada; a seguir, que o mal dessa ma diferenga pode ser atenuado ou mesmo abolido. E nisto que a atitude etnocida é sobretudo otimista: 0 Outro, mau no ponto de partida, é suposto perfectivel, reconhecem-Ihe os meios de se algar, por identificagao, a perfeigao que o cristianismo representa. Eliminar a forga da crenga paga é destruir a substincia mesma da sociedade. Alids, ¢ esse 0 resultado visado: conduzir o indigena, pelo caminho da verdadeira f6, da selvageria a civilizagdo. O etnocidio é praticado para o bem do selvagem. O discurso leigo nao diz outra coisa quando enuncia, por exemplo, a doutrina oficial do governo brasileiro dio seres quanto a politica indigenista: "Nossos indios, proclamam os responsaveis, humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas os condena miséria ¢ 4 infelicidade. nosso dever ajudé-los a libertar-se da servidio, Eles tém o direito de se clevar A dignidade de cidadaos brasileiros, a fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de usufiuir de seus beneficios”. A espiritualidade do etnocidio é a ética do humanismo. © horizonte no qual se destacam o espirito c a pratica ctnocidas é determinado segundo dois axiomas. O primeiro proclama a hierarquia das culturas: hd as que so inferiores e as que so superiores. Quanto ao segundo, ele afirma a superioridade absoluta da cultura ocidental, Portanto, esta s6 pode manter com as outras, e em particular com as culturas primitivas, uma relagdo de negagiio. Mas trata-se de uma negagio positiva, no sentido de que ela quer suprimir o inferior enquanto inferior para igd-lo ao nivel do superior. Suprime-se a indianidade do indio para fazer dele um cidadao brasileiro. Na perspectiva de seus agentes © etnocidio nio poderia ser, ao contrario, é uma tarefa conseqiientemente, um empreendimento de destruigai necessiria, exigida pelo humanismo inscrito no néicleo da cultura ocidental. 37 Chama-se etnocentrismo essa vocagdo de avaliar as diferengas pelo padrdo da propria cultura, O Ocidente seria etocida porque é etnocéntrico, porque se pensa e's quer a civilizagdo. Uma questi porém se coloca: nossa cultura detém 0 monopélio do etnocentrismo? A experiéneia etnolégica permite responder a isso. Consideremos a maneira como as sociedades primitivas nomeiam a si mesmas. Percebe-se que, na realidade, nfo ha autodenominagdo, na medida em que, de modo recorrente, as sociedades se atribuem quase sempre um Ginico e mesmo nome: os Homens. Ilustrando com alguns exemplos esse trago cultural, lembraremos que os indios Guarani nomeiam-se Ava, que significa os Homens; que os Guayaki dizem deles mesmos que so Aché, as "Pessoas", que os Waika da Venezuela se proclamam Yanomami, a "Gente"; que os Esquimés so Inuit, "Homens". Poder-se-ia estender indefinidamente a lista desses nomes préprios que compéem um diciondrio em que todas as palavras tém o mesmo sentido: homens. Inversamente, cada sociedade designa sistematicamente seus vizinhos por nomes pejorativos, desdenhosos, injuriosos. Toda cultura opera assim uma divisfio entre ela mesma, que se afirma como representago por exceléncia do humano, ¢ os outros, que participam da humanidade apenas em grau menor. O discurso que as sociedades primitivas fazem sobre si mesmas, discurso condensado nos nomes que elas se dio, é portanto etnocéntrico de uma ponta a outra: afirmagdo da superioridade de sua existéncia cultural, recusa de reconhecer os outros como iguais. O etnocentrismo aparece entdo como a coisa do mundo mais bem distribuida e, desse ponto de vista pelo menos, a cultura do Ocidente nao se distingue das outras. Conyém mesmo, aprofundando um pouco mais a anilise, pensar 0 etnocentrismo como uma propriedade formal de toda formagio cultural, como imanente a propria cultura. Pertence a esséncia da cultura ser etnocéntrica, na medida exata em que toda cultura se considera como a cultura por exceléncia. Em outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferenga positiva, mas sempre como inferioridade segundo um eixo hierérquico. No entanto, se toda cultura é etnocéntrica, somente a ocidental é etnocida. Segue-se, portanto, que a pratica etnocida nfo se articula necessariamente com a convicgdo etnocéntrica. Caso contririo, toda cultura deveria ser etnocida, o que néo acontece. E nesse nivel, parece-nos, que se pode identificar uma certa insuficiéncia da reflexdio que vém fazendo, de um tempo para c4, os pesquisadores preocupados, com razio, com o problema do etnocidio. Com efeito, no basta reconhecer e afirmar a natureza ¢ a fungdo etnocidas da civilizagdo ocidental. Enquanto nos contentarmos em determinar 0 mundo branco como mundo etnocida, permaneceremos na superficie das coisas, ndo sairemos da repeti¢aio — legitima, & verdade, pois nada mudou — de 58 um discurso j4 pronuneiado, pois afinal o bispo Las Casas, por exemplo, jé na aurora do século XVI, denunciava em termos muito precisos 0 genocidio ¢ o etnocidio que os espanhéis impunham aos indios das Ilhas e do México. Da leitura dos trabalhos dedicados ao etnocidio retira-se a impresstio de que, para seus autores, a civilizago ocidental & uma espécie de abstragao, sem raizes sécio-historicas, uma vaga esséncia que sempre envolveu em si o espirito etnocida. Ora, nossa cultura no ¢ de modo algum uma abstragdo, é 0 produto lentamente constituido de uma histéria, ela ¢ passivel de uma pesquisa genealégica. O que faz que a civilizagio ocidental seja ctnocida? Tal é a verdadeira questo. A andlise do ctnocidio implica, para além da deniincia dos fatos, uma interrogago sobre a natureza, historicamente determinada, de nosso mundo cultural. Portanto, trata-se de encarar a histéria Assim como nao é abstragio extratemporal, a civilizagao do Ocidente tampouco € uma realidade homogénea, um bloco indiferenciado idéntico em todas as suas partes. No entanto, é essa a imagem que parecem fazer dela os autores acima citados. Mas, se o Ocidente é etnocida assim como o sol é luminoso, entdo esse fatalismo torna inutil e mesmo absurda a dentincia dos crimes ¢ o apelo & protegao das vitimas. ‘Nao seria, ao contrario, porque a civilizagdo ocidental ¢ etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma que ela pode sé-lo a seguir no exterior, isto 6, contra as outras formagdes culturais? Nao se pode pensar a vocagdo etnocida da sociedade ocidental sem articuld-la com essa particularidade de nosso proprio mundo, particularidade que 6 inclusive 0 critério classico de distingdo entre os selvagens e os civilizados, entre o mundo primitive e © mundo ocidental: o primeiro redne o conjunto das sociedades sem Estado, 0 segundo compde-se de sociedades com Estado. E é nisso que se deve tentar refletir: pode-se legitimamente colocar em perspectiva es s duas propriedades do Ocidente, como cultura etnocida, como sociedade com compreenderiamos por que as sociedades primitivas podem ser etnocéntricas sem no entanto screm etnocidas, j4 que clas so precisamente sociedades sem Estado. ado? Se fosse assim, Eaceito que o etnocidio é a supressao das diferengas culturais julgadas inferiores e mis; é a aplicagdo de um principio de identificagiio, de um projeto de redugdo do outro ao mesmo (0 indio amazénico suprimido como outro ¢ reduzido ao mesmo como cidadao brasileiro). Em outras palavras, 0 etnocidio resulta na dissolugao do miiltiplo no Um. O que significa agora o Estado? Ele é, por esséncia, o emprego de uma forga centripeta que tende, quando as circunstincias 0 exigem, a esmagar as forgas centrifugas inversas. O Estado se quer ¢ se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos érgdos desse corpo. Descobre-se assim, no niicleo mesmo da substancia do Estado, a forga atuante do Um, a vocagio de recusa do miltiplo, 0 temor e 0 horror da diferenga. Nesse nivel formal em que 59 nos situamos atualmente, constata-se que a pratica etnocida e a maquina estatal funcionam da mesma maneira ¢ produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilizagio ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redugio da diferenga e da alteridade, o sentido e 0 gosto do idéntico ¢ do Um. Abandonando esse eixo formal e de certo modo estruturalista para abordar 0 da diacronia, da histéria concreta, consideremos a cultura francesa como caso particular da cultura ocidental, como ilustracdo exemplar do espirito e do destino do Ocidente. Sua formagio, enraizada num passado secular, mostra-se estritamente coextensivel & expansfo ¢ ao fortalecimento do aparclho do Estado, primeiro sob sua forma mondrquica, a seguir sob sua forma republicana. A cada desenvolvimento do poder central corresponde um desdobramento acrescido do mundo cultural. A cultura francesa é uma cultura nacional, uma cultura do francés. A extensio da autoridade do Estado traduz-se no expansionismo da lingua do Estado, o francés. A nag pode se dizer constituida, 0 Estado pode proclamar-se detentor exclusivo do poder, quando as pessoas sobre as quais se exerce a autoridade do Estado falam a mesma lingua que ele. Esse processo de integragdo passa evidentemente pela supressdo das diferengas. E assim que, na aurora da nagio francesa, quando a Franga era apenas o reino dos francos e seu rei um palido senhor feudal do norte do Loire, a cruzada dos albigenses abateu-se sobre o sul para abolir sua civilizagio. A extirpago da heresia cétara, pretexto ¢ meio de expansio para a monarquia capetiana, tragando os limites quase definitivos da Franga, aparece como um caso puro de etnocidio: a cultura do Midi religido, literatura, poesia — foi irreversivelmente condenada, e os habitantes do Languedoc passaram a ser sitditos leais do rei da Franga. ‘A Revolugiio de 1789, ao permitir o triunfo do espirito centralista dos jacobinos sobre as tendéncias federalistas dos girondinos, levou a seu termo o dominio politico da administragao parisiense. As provincias, como unidades territoriais, apoiavam-se cada qual numa antiga realidade, homogénea do ponto de vista cultural: lingua, tradigdes politicas etc. Elas foram substituidas pela divisio abstrata em departamentos, propria a romper toda referéncia as particularidades locais, e portanto a facilitar em toda parte a penetragao da autoridade estatal. Ultima etapa desse movimento pelo qual as diferengas desaparecem uma apés a outra diante do poder do Estado: a III* Republica transformou definitivamente os habitantes do hexdgono* em cidadaos gragas a instituigdo da escola leiga, gratuita e obrigatéria, e posteriormente do servigo militar obrigatério. Com isso sucumbiu 0 que subsistia de existéncia auténoma no mundo provincial e rural. A francizagao estava completa, 0 etnocidio consumado: linguas tradicionais enxotadas enquanto dialetos de individuos atrasados, * Referéncia& forma geomérics eproximada de Franga.[N.1] 60 vida alded rebaixada a condi¢ao de espetaculo folclérico destinado ao consumo de turistas etc. Embora breve, essa vista de olhos sobre a historia de nosso pais é suficiente para mostrar que 0 etnocidio, como supressio mais ou menos autoritéria das diferengas sécio-culturais, est inscrito de antemao na natureza e no funcionamento da maquina estatal, a qual procede por uniformizagiio da relagiio que mantém com os individuos: 0 listado conhece apenas cidadios iguais perante a Lei. Afirmar, a partir do exemplo francés, que o etnocidio pertence a esséneia unificadora do Estado conduz logicamente a dizer que toda formagdo estatal ¢ etnocida. Examinemos rapidamente o caso de um tipo de Estado muito diferente dos Estados europeus. Os Incas haviam conseguido edificar nos Andes uma maquina de governo que causou a admiragao dos espanhéis, tanto pelo tamanho de sua extensio territorial quanto pela precisio e a mimicia das técnicas administrativas que permitiam ao imperador e a seus numerosos funcionarios exercer um controle quase total © permanente sobre os habitantes do império. O aspecto propriamente etnocida dessa méquina estatal aparece em sua tendéncia a incaizar as populagdes recentemente conquistadas: nao apenas obrigando-as a pagar tributo aos novos sobretudo forgando-as a celebrar prioritariamente o culto dos conquistadores, 0 culto do Sol, isto ¢, do préprio Inca. Religido de Estado, imposta pela forga, em detrimento dos cultos locais. E verdade também que a pressao exercida senhores, ma: pelos Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a violéncia do zelo maniaco com que os espanhéis aniquilariam mais tarde a idolatria indigena. Embora fossem habeis diplomatas, os Incas sabiam utilizar a forga quando necessério ¢ sua organizagao reagia com a maior brutalidade, como todo aparelho de Estado quando seu poder questionado. As freqiientes insurreigdes contra a autoridade central de Cuzco, impiedosamente reprimidas de inicio, eram a seguir castigadas pela deportago em massa dos vencidos para regides muito distantes de scu territério natal, isto é, aquele marcado pela rede dos locais de culto (fontes, colinas, grutas etc): desenraizamento, desterritorializagdo, etnocidio A violéncia etnocida, como negagao da diferenga, pertence claramente & esséncia do Estado, tanto nos impérios barbaros quanto nas sociedades civilizadas do Ocidente: toda organizagao estatal ¢ etnocida, o etnocidio é 0 modo normal de existéncia do Estado. Ha portanto uma certa universalidade do etnocidio, no sentido de ser caracteristico nao apenas de um vago "mundo branco" indeterminado, mas de todo um conjunto de sociedades que so as sociedades com Estado. A reflexio sobre © etnocidio passa por uma anilise do Estado. Mas deve ela deter-se ai, limitar-se & constatagao de que o etnocidio ¢ o Estado © que, desse ponto de vista, todos os 61 Estados se equivalem? Seria recair no pecado de abstrag3o que precisamente reprovamos 4 "escola do etnocidio", seria uma vez mais desconhecer a historia concreta de nosso préprio mundo cultural. Onde se situa a diferenga que impede colocar no mesmo plano, ou pér no mesmo saco, os Estados barbaros (Incas, faraés, despotismos orientais etc.) e os Estados civilizados (0 mundo ocidental)? Percebe-se primeiro essa diferenga no nivel da capacidade etnocida dos aparelhos estatais. No primeiro caso, essa capacidade & limitada no pela fraqueza do Estado mas, ao contrario, por sua forga: a pratica ctnocida — abolir a diferenga quando cla se torna oposig’io — cessa a partir do momento em que a forga do Estado no corre mais nenhum risco. Os Incas toleravam uma relativa autonomia das comunidades andinas quando estas reconheciam a autoridade politica ¢ religiosa do Imperador. Em compensagio, no segundo caso — Estados ocidentais —, a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela & desenfreada. E exatamente por isso que ela pode conduzir ao genocidio e que se pode falar do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida. Mas de onde provém isso? O que a civilizagao ocidental contém que a torna infinitamente mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade? E seu regime de producéo econémica, espaco justamente do ilimitado, espago sem lugares por ser recuo constante do limite, espago infinito da fuga permanente para diante. O que diferencia 0 Ocidente € 0 capitalismo, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma fronteira, enquanto passagem para além de toda fronteira; é 0 capitalismo como sistema de produgdo para o qual nada é impossivel, exceto nao ser para si mesmo seu proprio fim: seja cle, alias, liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, de Estado, como na Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidavel maquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrivel maquina de destruir, Ragas, sociedades, individuos; espago, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo ¢ util, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime maximo de intensidade. Eis por que nenhum descanso podia ser dado as sociedades que abandonavam o mundo 4 sua trangiiila improdutividade originaria; eis por que era intoleravel, aos olhos do Ocidente, o desperdicio representado pela nao exploragdo econémica de imensos recursos. A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder 4 produgao ou desaparecer; ou 0 etnocidio ou o genocidio. No final do século passado, os indios do pampa argentino foram totalmente exterminados a fim de permitir a criag&o extensiva de ovelhas e vacas, que fundou a riqueza do capitalismo argentino. No inicio deste século, centenas de milhares de indios amaz6nicos pereceram sob a agdo dos exploradores de borracha, Atualmente, em toda a América do Sul, os 62 Ultimos indios livres sucumbem sob a pressdo enorme do crescimento econémico, brasileiro em particular, As estradas trans-continentais, cuja construgao se acelera, azar dos indios com constituem eixos de colonizagdo dos territérios atravessado: quem a estrada depara! Que importancia podem ter alguns milhares de selvagens improdutivos comparada 4 riqueza em ouro, minérios raros, petrdleo, em criagdo de bovinos, em plantagées de café ete? Produzir ou morrer, é a divisa do Ocidente. Os indios da América do Norte aprenderam isso na carne, quase todos mortos a fim de permitir a produgdo. Um de seus carrascos, 0 general Sherman, declarava-o ingenuamente numa carta enderegada a um famoso matador de indios, Buffalo Bill: "Pelo que posso calcular, havia, em 1862, cerca de 9 milhdes e meio de bisées nas planicies entre 0 Missouri e as Montanhas Rochosas. Todos desapareceram, mortos em troca de sua carne, de sua pele e de seus ossos. [...] Na mesma data, havia cerca de 165 mil Pawnee, Sioux, Cheyenne, Kiowa e Apache, cuja alimentagéo anual dependia desses bisdes. Eles também partiram ¢ foram substituidos pelo dobro ou 0 triplo de homens e mulheres de raga branca, que fizeram dessa terra um jardim e que podem ser recenseados, taxados e governados segundo as leis da natureza e da civilizagao. Es mt O general tinha razio. A mudanca se cumprira até o fim, s6 acabard quando nao houver absolutamente mais nada para mudar. mudanga foi salutar e se cumpriré até o fim. Thévenin & Paul Coze, Mocurs et hisioire des Indiens Peaus-Rouges (Paris: Payot, 1952). 63

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