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Julian Baggini | Peter S. Fos! As ferramentas dos Fildsofos Um compéndio sobre conceitos e métodos filosoficos ‘Tradugao: Luciana Pudenzi Ealges Loyola Para Rick O'Neil, colega amigo, in memoriam The porophors tole Ry ache Ales Uc» Bact Publahing rey (san onze oe nam et aid eraictie Sie im Tt in nan ane © soci ites rvaee ema cori ees ‘rise epee Peete reat Leone ome coos In parang sete ‘oles rents 3 Preps: tans Prefaicio 9 . Cope arte Caper ele Agradecimentos, iM capitulo um: Ferramentas basicas da argumentagio 13 LL. Argumentos, premissas e conclusdes.. 13 1.2 Dedugao _ is 1.3 Indugio 21 1.4 Validade ¢ solidez... - 6 . 15 Invalidade.. ‘L6 Consisténcia. 33, 1.7 Falécias..... ieee aaa 1,8 Refutagao tizieat sree 1.9 Axiomas Pestana ers 1.10 Definigées.... street com br 1.11 Certeza e probabilidade..... acon 1.12 Tautologias, autocontradigoes e a lei de ndo contradicao... 54 Se a re omen capitulo dois: Outras ferramentas da argumentacéo .. Seieemrue soe coeanmae 2.1 Abdugao.. = 2.2 Método hipotético-dedutivo . ssn ass isc0201 2.3 Dialética. . 2 ei: yo de 012 conforms novo acardo cxtograico da Lingua Portuguesa i 24 Analogias ©FDICOESLOWOLA Sto PB 08 2.5 Anomalias ¢ excegdes qne comprovam a regra 2.6 Bombas de intiigdo ....n.ssmneenens 2.7 Construgies logicas 2.8 Redugio 2.9 Experimentos mentais, 2.10 Argumentos transcendentais. 2.11 Fiegdes ites. capitulo trés: Ferramentas de avaliago 91 3.1 Explicagées alternativas. : iw OL 3.2 Ambiguidade. 4 3.3 Bivaléncia eo tereeiro exchifd vn. 96 3.4 Eros categoriais 99 3.5 Celeris paribus, 101 3.6 Circularidade.. Saas 103 3.7 Incoeréncia conceitual .. se 107 3.8 Contraexemplos.. 3.9 Critérios 3.10 Teoria do erro... 3.11 Falsa dicotomia. 3.12.4 alicia genética 119 3.13 Dilemas.... 123 3.14 A forquilha de Hume 126 3.15 A lacuna “é"/“deve'".... 3.16 A lei leibniziana da identidade ssssncnssnnnnsnsnan 3.17 A falicia do homem masearado, 1 135 3.18 A navalha de Ockham... 138 3.19 Paradox08 on 141 3.20 Caimplices no erro.. 44 3.21 Principio de caridade. 146 3,22 Petigao de principio. tn 150 3.23 Redugées.. 1 152 3.24 Redundancia.... 154 3.25 Regress0s ... 156 3.26 Adequagio empfrica.. 3.27 Argumentos autorrefutadores. 3.28 Ravao suficiente.. 3.29 Testabilidade.. 163 167 capitulo quatro: Ferramentas de distingao conceitual. im 4.1 A priorila posteriori i 4.2 Absoluto/relativo 15 4.3 Analiticolsintético 178 4.4 Categérica/modal a 181 4.5 Condicional/bicondicional ce 183 4.6 Revogivel/irrevogivel. Se 185 4.7 Iinplicaglovimplicagao estrita... : 187 4.8 Bsséncia/acidente ... 190 4.9 Conhecimento por contato/conhecimento por dese 194 4.10 Necessrio/eontingente 4.11 Necessério/sul 4.12 Objetivo/subjetivo. 4.13 Realista/nio realista. 4.14 Sentido/referéncia... 4.15 Sintaxe/semintica . 4.16 Conceitos éticas densos e difusos. 214 4.17 Tipos ¢ casos... 216 capitulo cinco: Ferramentas de critica radical... 219 5.1 A critica de classe : 219 5.2 A desconstrugio ¢ a eritica da presenca al 5.3. critica empirista da metafisica 224 5.4 A critica feminista 5.5 A critica foucaultiana do poder 5.6 A critica heideggeriana da metafisica 5.7 A critica lacaniana... : 5.8 A crtica nietzschiana da cultura plat@nico-crst 5.9 A critica pragmatista. 5.10 A critica sartriana da “mé-f6" capitulo seis: As ferramentas no seu limite... 6.1 Crencas bisicas.. 6.2 Godel e a incompletude 6.3 A experiéncia mistica a revelagio.. 64 Possibilidade e impossibilidade. 6.5 Primitivos.. 6.6 Verdades autoevidentes.. 6.7 Ceticismo 6.8 Subdeterminagao. Recursos para filésofos na Internet indice remissivo 269 A filosofia pode ser uma atividade extremamente técnica e complexa, ‘ej terminologia ¢ cujos procedimentos muitas vezes intimidam 0 iniciante ‘eexigem muito até mesmo do profissional. Como a arte da cirurgia a arte da flosofia requer 0 dominio de um corpo de conhecimentos, mas requer também a aquisigio de precisio e habilidade para manejar um conjunto de instrumentos ou ferramentas. Podemos considerar As ferramentas dos {fildsofos uma colegio de tais instrumentos. Diferentemente dos de um cirurgiio ou de um marceneiro, porém, os instrumentos apresentados neste texto so conceituais, ferramentas que podem ser usadas para ana- lisar, manipular ¢ avaliar conceitos, argumentos e teorias filosdficas. Este livro pode ser usado de varias maneiras. Pode ser lido do prin- cipio ao fim por aqueles que desejem conhecer os elementos essenciais da reflexio filos6fica. Pode ser usado como umn guia do método filossfi- co bésico ou do pensamento critica. Pode também ser usado como um livro de referéncia ao qual leitores comuns ou filésofos podem recorrer a fim de encontrar explicagdes rpidas ¢ claras dos conceitos ¢ métodos- chave da filosofia, O objetivo do livro, em outras palavras, & servir como uma caixa de ferramentas conceituais da qual ne6fitos ou mestres artestos 10 | As ferrets dos isofos possam sacar ferramentas que, de outro modo, estariam espalhadas num conjunto de textos diversos, requerendo longos perfodos de estudo para ser adquiridas. O livro divide-se em sete segdes, que incluem uma sega de recur sos na Internet (ver Suméirio). Estas segées vio das ferramentas bisicas da argumentacao a conceitos ¢ prinefpios filosSficos sofisticados. O texto trata de instrumentos de avaliagio de argumentos, leis essenciais, prt cipios e distingdes eonceituais. Em sua conclusio, ha uma discussie sobre 0s limites do pensamento filosofico. Cada uma das seis primeiras segdes apresenta de inicio certo mi- ro de t6picos que trardo uma explicagio da ferramenta em questio, exemplos de usos e orientagées sobre sua abrangéncia e seus limites Cada t6pico possui referéncias eruzadas com outros t6picos relacionados, Foram incluidas sugestdes de leituras, ¢ as mais apropriadas para prin- cipiantes estio identificadas com um asteriseo. Para tomar-se um mestre escultor & preciso mais que a habilidade de selecionar ¢ usar as ferramentas da profissio: necessita-se também de instinto, talento, imaginagio prética. Do mesmo modo, aprender como usar essas ferramentas filos6ficas nao 0 transformard num mestre na arte da filosofia da noite para o dia. Mas este livro Ihe forneceré mui- tas habilidades e técnicas que ajudarao a filosofar melhor. Agradecimentos Agradecemos a Nicholas Fearn, que nos ajudou a conceber e planejar este livro e enjas impressdes digitais ainda podem ser encon- tradas aqui e ali, Somos gratos também a Jack Furlong ¢ Tom Flynn, pelo auxilio com os t6picos sobre eritica radical, ¢ aos revisores andni- ‘mos, por seu completo escrutinio do texto. Agradecemos a Jeff Dean, da Blackwell, pela atengao ao livro desde o estigio em que era apenas tuma boa ideia em teoria até que chegasse a ser, assim esperamos, um bom livro na pritica. Agradecemos ainda a Eldo Barkhuizen, por seu trabalho notavelmente completo. Agradecemos também a esposa e aos filhos de Peter — Catherine Fosl, Isaac Fosl-Van Wyke e Elijah Fos! — por seu pactente apoio. capitulo um‘ Ferramentas basicas da argumentacao LL. Argumentos, premissas e conclusdes A filosofia 6 para aqueles que se preocupam com minécias. Iss0 niio significa que seja uma busca trivial. Longe disso. A filosofia trata de al- sgumas das mais importantes questes que os seres humanos formulam para si mesmos. A raziio pela qual os filésofos sto minuciosos é que cles esti interessados em como as erengas que temos a respeito do mundo sio ou no sio sustentadas por argnmentos racionais. Dada a importin- cia dessa preocupagio, é fundamental dar atengio aos detalles. As pessoas raciocinam de variadas maneiras,utilizando numerosas técnicas, algumas delas legitimas e outras niio. Com frequéncia, s6 podemos dls- cemir a diferenga entre argumentos bons e ruins perserutando seu contetido ¢ sua estrutura com extrema aplicagio. O argumento (0 que 6 entio um argumento? Os filésofos usam o termo “argumen- to” num sentido muito preciso e estrito, Para eles, win argumento € a 14 | As Feramentas dos inais bisica unidade completa do raciocinio, um tomo da razdio, Um ar gumento é uma inferéncia extraida de um ott de virios pontos de partida {proposigies denoi ponto final (uma proposigio denom das “premissas”) que condhv.a ada “conclusao”). Angumento x explicagio Os “argumentos” devem ser distinguidos das “explicagées”. Uma regra geral € que os argumentos buseam demonstrar que algo é verdad ro; as explicagies buscam mostrar como algo é verdadeiro. Por exemplo, suponhamos que nos deparamos com uma mulher aparentemente morta ‘Uma explicagio da morte dessa mulher seria efetuada para mostrar como cla se deu ("A existéncia de agua em seus pulmes explica a morte desta mulher”). Um argumento teria como objetivo demonstrar que a pessoa esti de fato morta ("Como seu coracio parou de bater e niio hé outros sinais vitais, podemos concluir que ela esti realmente morta.”) ou que ‘uma explicagéo é melhor que outra ("A auséncia de sangramento no fe- rimento em sua cabega, associada a presenga de Agua nos pulmdes, indi- ‘ca que essa mulher morren por afogamento e néio por hemorragia.”) O lugar da raxao na flosofia Nao se compreende universalmente que grande parte dos temas tratados pela filosofia consista em argumentagio. Muitas pessoas julgam que a filosofia trata essencialmente de ideias ou teorias acerca da natu- reza do mundo e de nosso lugar nele. Os fil6sofos efetivamente produzem tais ideias ¢ teorias, mas, na maioria dos casos, sua autoridade e seu cam- po de agi procedem do fato de serem derivadas por meio de argumen- tos racionais fundados em premissas aceitiveis. Sem divida, muitas outras 4reas da vida humana também envolvem comumente a argumentagio, ¢ algumas vezes pode ser impossivel definir linhas precisas que distingam essas dreas da filosofia. (De fato, a possibilidade de estabelecer ou nao tal distinggo 6 em si mesma objeto de acalorados debates filoséficos!) As ciéncias naturais e sociais slo, por exemplo, campos de investiga- «20 racional que com frequéncia invadem as fronteiras da filosofia (espe- obtém-se uma conclusio verdadelra ou falsa Introduzindo-se premissa(s} verdadeira(s) > obtém-se uma conclusio verdadeira ou fala ARGUMENTO VALIDO. Introduzindo se premissa(s falsals) > obtém-se uma conclusio verdadeira ou falsa Introduzindo-se premissa(s)verdadeira(s) > s6 se obtém uma conclusio verdadetra | Ferramentas basicas da argumentagdo | 29 Solidez Afirmar que um argumento é vilido, portanto, {que sua conclusio tem de ser aceita como verdadeira. A conchisto te de ser aceita somente se (1) 0 argumento 6 vilido e (2) as premissas sio verdadeiras, Esta combinagio de argumento vélido mais premissas ver- dadeiras (¢, por conseguinte, conclusio verdadeira) denomina-se argu mento “s6lido”. Qualificé-lo de sélido 6 a maior corroborago que se pode atribuir a um argumento. Quando se aceita um argumento como s6lido, esté-se afirmando que & preciso aceitar sua conclusio. Isso pode ser demonstrado pelo uso de outro argumento dedutivo valido. Quando se afirma que um argumento ¢ s6lido, estdo-se afirmando duas coisas que devem ser entendidas como premissas: 1. Se as premissas do argumento sio verdadeiras, entio a conelusio tem de ser também verdadeira. (Ou seja, estamos sustentando que 6 argumento é vilido,) 2. As premissas do argumento sio (de fato) verdadeiras. Se tomamos estas duas premissas, podemos produzir um argumen- to dedutivo que conclui com certeza 3. Logo, a conelusio do argumento é verdadeira, Para que uum argumento dedutivo passe na inspegio, ele tem de ser vilido. Mas ser vilido nao 6 suficiente para que ele seja um argumento s6lido. Um argumento solide precisa nao somente ser vilido, mas também ter premissas verdadeiras. Estritamente falando, somente os arguments sélido fornecem conclusdes que temas de aceitar. A importancia da validade Isso pode levé-lo a indagar por que, entio, o conceito de validade tem alguma importincia. Afinal, os argumentos vélidos podem ser ab- surdos em seu contetido e falsos em suas conclusées — como em nosso exemplo com queijo ¢ gatos. Certamente, é a solide que importa. a 30 | As feramentas dos bso ‘Tenha em mente, contudo, que a validade € um requisito da solide de modo que no pode haver argumnentos sélidos sem argumentos vali- dos. Determinar se as afirmagées contidas em suas premissas so verda- deiras, embora seja importante, simplesmente nao é suficiente para garantir que vocé extrairé conclusoes verdadeiras. As pessoas cometem esse ia. Elas esquecem que se pode partir de ‘um conjunto de crengas inteiramente verdadeiras e, entretanto, efetuar uum raciocfnio tio imperfeito a ponto de terminar com conchusdes intei- ramente falsas. Flas se satisfazem em partir da verdade, O problema é que partir da verdade nfio garante que se terminaré com ela, ‘Ademais, ao elaborar uma critica, 6 importante entender que a compre- cnsiio da validade Ihe propicia uma ferramenta adicional para avaliar & pos «io de outras pessoas. Ao criticar 0 raciocinio de outra pessoa, voc® pode erro com muita frequi 1. questionar a verdade das premissas nas quais a pessoa se baseia, ow 2. demonstrar que seu argumento néo é vdlido, independentemente das premissas empregadas serem ou néo verdadeiras. ‘A validade 6, dizendo de modo simples, um ingrediente erucial da boa argumentagio, da eritica e do pensamento. F uma ferramenta filo- s6fica indispensavel. Domi Ver também 1.1 Argumentos, premissas e conchusées 12 Dedugio 1.5. Invalidade Leituras AnusTOTELES (384-822 a.C.), Primeiros analiticos. “Patrick J. HURLEY, A Concise Introduction to Logic, 2000. Fred R. BERGER, Studying deductive Logic, 1977. ee a Ferramentas bisicas da argumentagéo | 31 1.5 Invalidade Dada a definigo de um argumento valido, pode parecer Sbvio 0 que seja um argumento invalido. Certamente, é simples 0 suficiente definir um argumento invélido: é um argumento no qual a verdade das premissas nio assegura a verdade da conclusio. Dizendo de outro modo, se as premissas de um argumento invalido forem verdadeiras, a conclu- siio ainda assim poders ser falsa, Estar munido de uma definigao acurada, todavia, pode nao ser su ficiente para habilits-lo a fazer uso dessa ferramenta. © homem que sait procurando por um cavalo provido apenas da definicio “mamifero do- mesticado, herbivoro, dotado de cascos, usado para tragio” descobriu isso a duras penas. F, preciso entender todo o alcance da definigio. Consideremos 0 argumento: 1. Vegetarianos nfio comem linguiga suina. 2. Ghandi no comia linguica suina, 3, Logo, Ghandi era vegetariano. Se vocé consideron com atengio, provavelmente percebeu que este 6 um argumento invélido. Mas nio seria de surpreender se voeé e um ‘grande ntimero de leitores precisassem de uma segunda leitura para notar que € de fato um argumento invélido. E, se se pode facilmente deixar de perceber um caso claro de invalidade no meio de um artigo dedicado a um explicagio meticulosa do conceito, imagine-se como 6 ficil deixar de identificar argumentos invélidos de modo mais geral ‘Uma das razdes pelas quais se pode deixar de notar que este argu- mento é invalido é o fato de que as trés proposiges so verdadeiras. Se nada de falso 6 afirmado nas premissas de um argumento ¢ a conclusio 6 verdadeira, é ficil supor que o argumento é, por conseguinte, vilido (e sdlido). Mas lembre-se de que um argumento 6 vélido somente se a verdade das premissas assegura a verdade da conelusio, Neste exemplo, isto no ocorre. Afinal, uma pessoa pode no comer linguiga suina e, contudo, nio ser vegetariana, Esta pessoa pode ser, por exemplo, mu- ‘gulmana ou judia, ou pode ser que simplesmente nfo goste de linguiga suina, mas goste muito de came de frango ou de carne bovina Desse modo, o fato de que Ghandi no comesse linguiga suina ndo assegura, em conjungo com a primeira premissa, que ele fosse vegeta- 32. | As ferramentas dos Hiisofos riano, Simplesmente, ocorre que ele de fato era, Mas, evidentes uma vex que um argumento s6 pode ser sélido caso seja vilido, o fato de que as trés proposigées sejam verdadeiras ndo faz deste argumento ‘um argumento sélido, Recordemos que a validade é uma propriedade da estrutura de um argumento. Neste caso, a estrutura 6: 1. Todos os Xs sto Ys 2 ZLéumy. 3. Logo, Zé um X. Em que X representa “vegetariano”, Y representa “pessoa que nfo come linguiga suina’ e Z. representa “Ghandi”. Podemos ver por que esta cstrutura 6 invélida substituindo estas variéveis por outros termos que produzem premissas verdadeiras mas uma conclusio claramente falsa Se substituirmos X por “gato”, Y por “comedor de carne” e Z por “pre sidente dos Estados Unidos’, teremos: 1, Todos os gatos comem carne, 2. O presidente dos Estados Unidos come carne. 3. Logo, o presidente dos Estados Unidos é um gato. [As premissas sio verdadeiras, mas a conclusio é claramente falsa Por conseguinte, esta nto pode ser uma estrutura de argumento valida. (Voe’ pode fazer isso com virias formas de argumento invélidas. De- monstrar que a forma de um argumento ¢ invélida substituindo senten- «as de modo que tenha premissas verdadeiras mas uma conclusto falsa € aquilo que os filésofos designam como demonstragio de invalidade por “contraexemplo”. Ver 3.8.) Deve estar claro, portanto, que, assim como no caso da validade, a invalidade nao é determinada pela verdade ou falsidade das premissas, mas pelas relagées l6gicas entre elas, Isso reflete uma importante carac- teristica, mais ampla, da filosofia. A filosofia nao consiste apenas em dizer coisas verdadeiras, mas em faver afirmagdes verdadeiras fundadas tem bons argumentos. Voeé pode ter um ponto de vista particular a res- peito de uma questio filoséfica, e pode ser que voc® esteja certo. Mas, ‘em muitos easos, a menos que voeé possa demonstrar que esti certo por meio de bons argumentos, seu ponto de vista néo conquistaré nenhurna influéncia na filosofia. Os filésofos nfo estio interessados somente na Feramentas bisicas da argumentacio | 33 verdade, mas naquilo que a torna verdade e no modo como podemos demonstrar que é a verdade. Ver também 1,2 Dedugao 14 Validade e solider 17 Falicias Leituras “Patrick J. HunLEeY, A Concise Introduction to Logic, "2000 “Irving M. CoPt, Introducdo a logica, #1998 1.6 Consisténcia De todos os crimes filos6ficos existentes, aquele do qual vood niio deseja ser acusado € o de inconsisténcia. A consisténeia 6 a pedra angu- lar da racionalidade. O que 6, pois, a consisténcia? A consisténcia é uma propriedade. que caracteriza duas ou mais proposigdes. Se alguém sustenta duas crengasinconsistentes,ento isso fica, essencialmente, que a pessoa esté afirmando ao mesmo tempo que X 6 verdade e que X, no mesmo sentido e ao mesmo tempo, nio 6 verdade. De modo mais amplo, uma pessoa sustenta crengas inconsis tentes quando uma crenga contradiz outra, ou quando as crengas em questo mantidas conjuntamente implicam contradigo ou oposigio. Em suma, duas ou mais proposiges sio consistentes quando é possivel que todas sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Duas ou mais roposigdes silo inconsistentes quando nao é possivel que todas sejam simultaneamente verdadeiras. ‘Uma tinica sentenga, porém, pode ser autocontraditéria, quando afirma algo que 6 necessariamente falso — com frequéncia unindo duas sentengas inconsistentes. 34 | As feramentas dos idsfos Inconsisténcia aparente ¢ real: 0 exemplo do aborto Em seus casos mais flagrantes, a inconsisténcia é evidente. Se eu digo “todo assassinato & errado” e “aquele assassinato em particular foi correto”, estou sendo claramente i contradi sistente, pois a segunda afirmagio claramente a primeira. Com efeito, estou dizendo, a mesmo tempo: “todo assassinato € errado” ¢ “nem todo assassinato & errado” — uma clara inconsisténeia. Mas algumas veves a inconsisténcia ¢ dificil de determinar. Uma aparente inconsisténeia pode, na realidade, ocultar uma consisténcia mais profuunda — e vice-versa. Muitas pessoas, por exemplo, concordam em que 6 errado matar seres humanos inocentes (pessoas), F muitas dessas pessoas também concordam em que o aborto é moralmente aceitével. Um dos argumen- tos contra o aborto se baseia na afirmagio de que estas duas erengas sio inconsistentes. Ou seja, os erfticos afirmam que é ineonsistente sustentar a0 mesmo tempo que “6 errado matar seres humanos inocentes” e que “6 permissfvel destruir embrides ¢ fetos humanos vivos”. Os defensores da permissibilidade do aborto, por ontro lado, podem retorquir que, propriamente entendidas, as duas afirmagoes niio sio inconsistentes. Por exemplo, poder-se-ia afirmar que embrides nao sao seres humanos no sentido usualmente assumido na proibigéo (por exem- plo, seres humanos conseientes, ou nascidos, ou com vida independente) Ou um defensor do aborto poderia modificar a prépria proibicéo para tomar mais claro o argumento (por exemplo, afirmando que s6 é errado ‘matar seres humanos inocentes que tenham atingido um determinado nivel de desenvolvimento, consciéneta ou sensibilidade). Excegaes a regra? Mas a consisténcia 6 sempre desejével? Algumas pessoas fora tentadas a afirmar que ni. Para apoiar seu ponto de vista, indicam exemplos de crengas que intuitivamente pareeem ser perfeitamente aceitiveis mas que parecem se encaixar na definigio de inconsisténeia apresentada. Dois destes exemplos poderiam ser: Est chovendo, e niio esta chovendo, ‘Minha casa no é minha casa. Feramentas bisias da argumentacio | 35, No primeiro caso, a inconsisténcia poderia ser apenas aparente. O que se poderia estar efetivamente dizendo niio € que esti chovendo e nao est hovendo, mas, antes, que nao esté propriamente chovendo nem é 0 caso aque nao esteja chovendo, jé que hé uma terevira possibilidade — talvex esteja chuviscando on garoando, ou chovendo de modo intermiten aque esta outra possiblidade descreve mais acuradamente a situagao, © que produ. a inconsisténcia apenas aparente neste exemplo é que a pessoa que faz a afirmagao altera 0 sentido dos termos que est cempregando. Outra maneira de formular a primeira sentenga, portanto, 6 “em certo sentido esti chovendo, mas em outro sentido nio estat Para que a incor seja real, os termos relevantes empregados tém de ter o mesmo sentido do infeio ao fin. Este equivoco nos signifieados das palavras mostra que é preciso ter cuidado para nfo confundir a forma légica de uma inconsisténcia — afirmar X e no-X — com as formas da linguagem comum que pare- com se encaixar na definigio de inconsisténcia mas que de fato niio sio inconsistentes. Muitas afirmagoes que afirmam ao mesmo tempo “X” “ndo-X” na linguagem comnm, quando cuidadosamente analisadas nao se revelam de modo algum como inconsisténcias. Portanto, tenha cui- dado antes de acusar alguém de inconsisténeia Mas quando vocé reconhece uma inconsisténcia légica gemutna, fez uma grande coisa, pois 6 impossivel defender uma inconsisténcia sem rejeitar abertamente a racionalidade! Talvez existam contextos poéticos, religiosos e filos6ficos nos quais é precisamente isto 0 que as pessoas julgam apropriado fazer. Inconsisténcia poética, religiosa ou filosdfica? E quanto ao segundo exemplo que apresentamos acima — “Minha casa nfo é minha casa?". Suponhamos que o contexto no qual a sentenga 6 enunciada 6 0 difrio de alguém que vive sob um regime terrivelmente violento e ditatorial — talvez o didrio de Winston Smith, 0 personagem de George Orwell em 1984. Literalmente, a sentenga é antocontraditéria, internamente inconsistente. Ela parece afirmar simultaneamente que “esta 6 minha casa” ¢ “esta nfo é minha casa”. Mas a sentenga também parece transmitir certo sentimento poctieo, parece transmitir quiio absurdo 0 36 | As ferramentas dos mundo parece Aquele que a redige, qui alheia esta pessoa se sente em relaciio ao mundo em que esti inserida. + O filosofo existencialista dinamarqués Soren Kierkegaard (1813-55) stentava que a nogio cristi da encarnagio (“Jesus 6 Deus, ¢ Jests foi 1 homem”) é um paradoxo, uma contradigéo, ama afronta a razao , no entanto, é verdadeira, O filésofo existencialista Albert Camus (1913. 60) sustentava que hé algo fundamentalmente “absurdo” (talver. incon- sistente?) com respeito & existéneia humana, Talver, entio, existam contextos nos quais a inconsisténcia e 0 ab- surdo paradoxalmente facam sentido. Consisténcia » verdade Seja como for, a inconsisténcia na filosofia é, em geral, um vicio grave. Disto se deduz. que a consisténeia na filosofia é a maior virtude? Nao inteiramente. A consisténcia é apenas uma condigio minima de aceitabilidade para uma posicao flos6fica. Uma vez que lrequentemen- te pode ocorrer que alguém sustente uma teoria consistente que & consistente com outra teoria igualmente consistente, a consisténcia de qualquer teoria particular nao é garantia de sua verdade, Com efeito, como sustentaram o filésofo e fisico francés Pierre Maurice Marie Duhem (1861-1916) ¢ 0 fil6sofo americano Willard Van Orman Quine (1908- 2000), pode ser possfvel desenvolver duas ou mais teorias que sejam (1) internamente consistentes, (2) porém inconsistentes uma com a ontra, ¢ também (3) perfeitamente consistentes com todos os dados que sejamos capaves de reunir para determinar a verdade ou falsidade das teo ‘Tomemos como exemplo o chamado problema do mal. Como re- solver problema de que Deus € bom, mas, por outro lado, de que existe um terrivel sofrimento no mundo? Numerosas teorias podem ser propostas para solucionar este enigma, mas sio todas inconsistentes umas com as outras. Pode-se sustentar que Deus nao existe, Ou pode-se sus- tentar que Deus permite o sofrimento por um bem maior. Embora cada solugio possa ser perfeitamente consistente em si mesina, nio podem estar todas corretas, uma vez. que sko inconsistentes umas com as outras, Uma afirma a existéncia de Deus, e outra a nega. Estabelecer a consis- téncia de uma posicio, portanto, pode promover e eselarecer 0 pensa- mento filoséfico, mas provavelmente nio decidiré a questi, Seré pre: s0 recorrer a algo mais que a consist@ncia caso queiramos decidir entre Feramentas bisicas da argumentagdo | 37 posigdes concorrentes. De que modo podemos fazé-lo é uma outra questi, complexa e controversa Ver também 1.12 Tautologias, autocontradigées e a lei da nio contradigio 3.28 Razao suficiente Leituras José L. ZALABARDO, Introduction to the Theory of Logic, 2000, Fred R. BERGER, Studying Deductive Logic, 1977. Pierre M. M. DuHEM, La théorie physique, son object et sa structure, 1906. 1.7 Falacias ‘A nogio de “falicia” seré um importante instrumento para sacar de ccs do facemearis pois a filosofia com frequéncia depende da identificagio de raciocfnios imperfeitos, e uma falécia no é sendio um caso de raciocinio imperfeito — uma inferéncia incorreta. Uma vez. que todo argumento invélido apresenta uma inferéncia incorreta, grande parte do que se necessita saber sobre falécias j& foi tratado na seco sobre validade (1.5). No entanto, se, por um lado, todos os argumentos invalidos sio falaciosos, por outro nem todas as falécias envolvem argu- ‘mentos invilidos, Os argumentos invalidos sio incorretos devido a brechas em sua forma on em sua estrutura. Algumas vezes, porém, 0 raciocinio 6 errdneo nao por sua forma, mas por seu contesido. ‘Todas as falécias so raciocinios incorretos. Quando a incorregio ‘encontra-se na forma ou na estrutura do argumento, a inferéncia fala- ciosa 6 denominada “falicia formal”. Quando a incorregio reside do conterido do argumento, denomina-se “falécia informal”. No curso da hist6ria da filosofia, os filésofos identificaram e denominaram tipos ow classes comuns de faldcias. Com frequéncia, portanto, a acusagéo de falécia invoca um desses tipos. [38 | As Feramentas dos ils Faldcias formais Um dos tipos mais comuns de erro inferencial imputével a forma do argumento veio a ser conhecido como “afirmagao do consequente”, E um erro extremamente féeil de se cometer, e com frequé de ser detectado. Consideremos 0 seguin 1, Se Fiona ganhou na loteria ontem, estar dirigindo uma Ferrari vermelha hoje. 2. Fiona esté dirigindo uma Ferrari vermelha hoje. 3. Logo, Fiona ganhou na loteria ontem. Por que este argumento é invilido? Simplesmente pelo seguinte como em todo argumento invilido, a verdade das premissas nao garante averdade da conelusio. Extrair esta conclusio a partir destas premissas deixa espago para a possibilidade de que a conelusio seja falsa, ¢, se existe tal possibilidade, a conclusio nao esta assegurada, Pode-se perceber que tal possibilidade existe neste caso conside- rando que 6 possivel que Fiona esteja dirigindo uma Ferrari hoje por outras razSes que niio o fato de ter ganho na loteria. Por exemplo, Fio- na pode ter herdado uma fortuna. Ou pode ter pedido 0 carro empres tado, ou pode ainda té-lo roubado. O fato de estar dirigindo a Ferrari ppor outras razes evidentemente no toma a primeira premissa falsa. ‘Mesmo que ela esteja dirigindo o carro porque tenha de fato herdado uma fortuna, ainda assim pode ser verdade quo, se ela houvesse ganha- do na loteria, feria saido ¢ comprado uma Ferrari da mesma man Por conseguinte, as premissas ¢ a conclusio podem ser todas verdad ras, mas a conchisio nao se deriva necessariamente das premissas, ‘A fonte do poder persuasivo desta facia é uma ambignidade do uso do termo “se” na linguagem comum. A palavra “se” 6 as veres usada para denotar “se e somente se”, mas as vezes significa apenas “se”. A despeito de sua similaridade, estas duas frases tém significados muito diferentes. Na verdade, o argumento seria vilido se a primeira premissa fosse ‘enunciada de uma maneira sutilmente diferente. Por mais estranho que ‘possa parecer, embora o argumento apresentado sobre Fiona seja dedu- tivamente invalido, substituindo-se a primeira premissa por qualquer um dos enunciados abaixo, terfamos um argumento perfeitamente vélido: Se Fiona estiver dirigindo uma Ferrari vermelha hoje, ela ganhou na loteria ontem, Ferramentas bisicas da argumentagdo | 39 Somente se Fiona ganhou na loteria ontem ela estaré dirigindo uma Ferrari vermelha hoje. Uma vez que “se” e “somente se” so usualmente empregados de rmaneira vaga (que nio distingue os usos acima), os fil6sofos os redefinem ‘num sentido muito preciso, O dominio das ferramentas filosficas exigi- ri que voce domine também este uso preciso (ver 4.5) ‘Aléin disso, como as falicias podem ser persuasivas ¢ so predomi- nantes, sera muito stil que vocé se familiarize com as falicias mais eo- uns. (dedicamos segdes especiais &falicia do homer masearado [3.17] ‘a falécia genética [3.12]. Outras facias sto deseritas nos textos lstados abaixo.) Fazendo isso, vocé se previne de ser ludibriado por raciocinios incorretos. E também pode evitar perder din! Faldcias informais A “falécia do apostador” é perigosamente persuasiva e uma espécie incorrigivelmente falha de inferéneia. A falécia ocorre quando alguém, por exemplo, faz. uma aposta de cara on coroa com uma moeda nao vi- ciada. A mooda den cara quatro vezes seguidas. O apostador portanto conclui que, da préxima vez que for langada, a moeda teri maior pro- babilidade de eair com a face da coroa voltada para cima (ou o contrério) Mas 0 que 0 apostador nao percebe & que cada langamento da moeda no é afetado pelos langamentos anteriores. Nao importa 0 que ocorreu antes, as chances continuam a ser de 50% em cada novo langamento. As chanees de se obter cara oito vezes seguidas so baixas. Mas se jé houve sete caras subsequentes, as chances de que a série de oito caras se com- plete (ou se rompa) no préximo lance ainda sio de 50%. O que faz desta uma falécia informal, ¢ nao uma falécia formal, é 0 fato de que lemos na verdade apresentar 0 raciocinio empregando tie on vid de argument, —— 1. Seenjfobtive sete caras seguidas, a probabilidade de que ooitavo lance de cara é de menos de 50% — ou seja, espera-se que dé coroa. Eu jé obtive sete caras seguidas. Logo, a probabilidade de obter cara no proximo lance é de menos de 50%. 2, iB. A brecha aqui niio esti na forma do argumento. A forma 6 vilida; os logicos a denominam modus ponens, 0 modelo da afirmagio. Fa mesma 40 | As ferramentas dos fildsofos forma que usamos acima no argumento vilido sobre Fiona. Formalmen- te, ele pode ser representado assim: Se P, entio Q. P Logo, Q. A brecha que toma 0 raciocinio do apostador falacioso reside, 20 contrério, no conterido da primeira premissa — a primeira premissa 6 simplesmente falsa. A probabilidade do préximo lance (como de todos 05 outros) é ¢ continuaré a ser de 50% para 50%, nao importando os lan- ‘ces que o precederam, Mas as pessoas erroneamente julgam que os lances anteriores das moedas afetam os lances futuros. Nao existe um problema. formal no argumento, mas, uma vez que este erro factual continua a ser tio comum e tio fiicil de se cometer, foi classificado como uma falécia e Ihe foi atribuido un nome, Trata-se de uma fala, mas apenas informalmente. ‘Algumas vezes, a linguagem comum se desvia desses usos. As vezes uma crenga amplamente disseminada, embora falsa, 6 descrita como ‘uma falécia, Nao se preocupe. Como disse o fil6solo Ludwig Wittgenstein, a linguagem 6 como uma grande cidade com mnitas avenidas e bairros diferentes. Nao h4 nada de errado em adotar usos diferentes quando se transita por partes diferentes da cidade. Apenas esteja ciente de onde voce esti, ‘Ver também. 1.5 Invalidude 3.12 Falécia genética 3.17 Falacia do homem mascarado 4.5 Condicional/bicondicional Leituras °S. Morris ENGE, With Good Reason: An Introduction to Informal Falla- cies, 1974, “Irving M. Cort, Informal Fallacies, 1986. “Patrick J. HURLEY, A Concise Introduction to Logic, "2000. Ferramentas bisias da argumentaczo | 41 1.8 Refutagio Samuel Johnson ndo se impressionou com 0 argumento do bispo Berkeley segundo o qual a matéria nfo existiria. Em seu livro Vida de Johnson (1791), James Boswell relata que, ao discutir a teoria de Berke- ley com 0 préprio, Johnson chutou uma pedra com eerta forga ¢ disse: “Bu refuto esta teoria assim’. ‘Todo grande homem pode ter um momento de estupidez que se torna pablico, Em sua refutagio, Johnson entendeu muito mal o argu- mento de Berkeley, pois este jamais teria negado que se pode ehutar uma pedra, Mas a refutagao de Johnson nio apenas falhou; ela também no contém nenhuma das chancelas de uma verdadeira refutagao. Refutar um argumento é mostrar que ele esté errado. Se alguém meramente discorda de wm argumento ou nega sua solider, nio 0 esta refutando, embora na linguagem cormum as pessoas muitas vezes usemn © termo “refutar” neste sentido. Entio, como podemos efetivamente refutar um argumento? Ferramentas de refutagao 4 duas maneiras bésicas de fazer uma refutagio, ambas tratadas com maior detalhamento em outras segées deste livro, Pode-se mostrar que 0 argumento é invélido: a conclusio niio pode ser deduzida das premissas, como se afirma (yer 1.5). Pode-se mostrar que uma das pre- ‘issas (ou mais de uma) é falsa (ver 1.4). ‘Uma terceira maneira de faré-lo 6 mostrar que a conchusio tem de ser falsa, ¢, portanto, mesmo que nao se possa identificar o que ha de errado no argumento, algo deve estar errado nele (ver 3.23). Este dltimo método, porém, nfo 6, estritamente falando, uma refutacio, na medida fem que nao se foi capaz de mostrar o que est errado no argumento, mas apenas que ele tem de estar errado. Justificagdo inadequada [As refutagdes sto ferramentas poderosas, mas seria precipitado con- cluir que somente com uma refutagio se pode rejeitar um argumento. eee 42.1 As feramentas dos fis Pode ser justificado rejeitar um argumento ainda que ele nio tena sido, estritamente falando, refutado, Podemos niio ser capazes de mostrar que ‘uma premissa fundamental seja falsa, por exemplo, mas podemos julgar que cla nio esté adequadamente justificada. Um argumento baseado na premissa de que “ha vida inteligente fora da modelo. N: gumentar que nao temos boas raves para acreditar qu € que temos bons motivos para supor que seja falsa, Portanto, poden considerar duvidoso todo argumento que dependa desta premissa © noré-lo legitimamente. Problemas conceituais De modo mais controverso, poderfamos também rejeitar um argu- ‘mento alegando que ele utiliza um conceito de modo inapropriado. Este tipo de problema é particularmente claro em casos nos quais um con- ceito vago é usado como se fosse preciso. Por exemplo, pode-se argu- ‘mentar que 0 governo s6 é obrigado a fornecer assisténcia aqueles que nio tém o suficiente para viver. Mas como nao pode haver uma formu- lagio precisa do que seja “o suficiente para viver", 6 inadequado todo argumento que conclui com base numa distingio precisa entre aqueles que tém 0 suficiente e aqueles que nao tém. A légica do argumento pode ser impeedvel e as premissas podem parecer verdadeiras. Mas se "usarmos coneeitos vagos em argumentos precisos, terminaremos inevi- tavelmente com distorgées. Usando a ferramenta Hi muitas outras maneiras de objetar legitimamente @ um argue mento sem efetivamente refuté-lo. O importante é saber claramente a diferenga entre a refutago e outros modos de objegio, e ter conheci- mento do modo de objegio que se esta empregando. ‘Ver também 1.4 Validade e solidex Ferramentas bisias da argumentagdo | 43 1.5 Inwvalidade 3.3 Bivaléncia ¢ 0 terceiro excluido Leitura “Theodore Sciex, Jn, Lewis VAUGHN, How to Think about Weird Things: Critical Thinking for a New Age, 2002. 1.9 Axiomas Para se obter uma conclusio verdadeira garantida num argumento dedlutivo 6 preciso (1) que o argumento seja vilido e (2) que as premis- sas sejam verdadeiras. Infelizmente, o procedimento para determinar se ‘uma premissa 6 ou néo é verdadeira 6 muito menos determinado que 0 procedimento para avaliar a validade de um argumento. Definindo os axiomas Em virtude de sua indeterminagio, 0 conceito de “axioma” toma-se uma ferramenta filos6fica stil. Um axioma & uma proposigio que age ‘como um tipo especial de premissa num certo tipo de sistema racional. Os sistemas axiométicos foram formalizados pela primeira vez pelo ‘geOmetra Euclides (c. 300 a.C.), em sua famosa obra Os elementos. Em tais sistemas, os axiomas sio assergSes iniciais desprovidas de justifcagio — ao menos no interior do sistema. Eles so simplesmente o alicerce do sistema te6rico, a base a partir da qual, por meio de varios passos de raciocinio dedutivo, o restante do sistema é derivado. Em circunsténcias ideais, um axioma deve ser tal que nenhum sujeito racional possa obje- tar ao seu emprego. Sistemas axiomdticos x sistemas naturais de dedugdo E importante compreender, contudo, que nem todos os sistemas conceituais io axiomaticos — nem todos os sistemas racionais. Por exem- 44 | As Feramentas dos hldsofos plo, alguns sistemas dedutivos tentam simplesmente repro 08 pro. cedimentos de raciocinio que parccem ter se'desenvolvido irrefetidamen- te ou naturalmente entre os seres humanos, Este tipo de sistema é deno- ado “sistema natural de dedugio”; ele nao postula axiomas, mas, em ugar disso, examina suas formulas na pritica da racionalidade comum, Primeiro tipo de axioma no definimos os axiomas, estes pareceriam ser premis- ito poderosas. Todavia, quando consideramos os tipos de axiomas existentes, seu poder parece ser um pouco diminuido. Um tipo de axio- ma compreende premissas verdadeiras por definigio. Talvez pelo fato de que tao poucos grandes filésofos tenham sido casados o exemplo “todos os solteiros sao niio-casados” seja to usualmente oferecido como exemplo disso. O problema é que nenhum argumento sera eapaz de ir ‘muito longe com este axioma. Este axioma 6 puramente tautol6gico, ou seja, “ndlo-casado” meramente repete com palavras diferentes o signifi cado que jf esta contido em “solteiro”. (Este tipo de proposigio é as veves denominado — seguindo-se Immanuel Kant — proposigéo analf- tica, Ver 4.3.) Esta sentenga, portanto, possui um cariter inerivelmente no informativo (a no ser para alguém que no conhece o significado de “solteiro”) e, por conseguinte, tem pouca probabilidade de produzir conclusdes informativas num argumento. Segundo tipo de axioma Outro tipo de axioma é também verdadeiro por definigio, mas de um modo um pouco mais interessante. Muitas partes da matemitica ¢ da geometria fundam-se em seus axiomas, e é somente pela aceitagio de seus axiomas bisicos que provas mais complexas podem ser construt- das, Por exemplo, 6 um axioma da geometria euelidiana que a menor distancia entre dois pontos consiste numa linha reta. Mas embora esses axiomas sejam vitais na geometria e na matemitica, eles definem o que 6 verdade apenas no interior do sistema particular da geometria da iatemitica ao qual pertencem. Sua verdade & assegurada, mas somen- te no contexto no qual esto definidos. Empregados dessa maneira, sua Ferramentas basis da angumentagio 145 eeitabilidade ascende ou decai com a accitabilidade do sistema tebrico domo um todo. (Fssas proposigBes podem ser denominadas sentengas Sprinitvas” no interior do sistema.) Axiomas para todos? ‘Alguns podem considerar insaisfat6ria a interpretagio contextual que apresentamos do axioma, Nao havera “axiomas universais” que sejam ruros ¢ informativos em todos os contextos, para todos os pensadores? ‘Alguns filésofos julgavam que sim. O filgsofo holandés Baruch (também onhecido como Benedictus) Spinoza (1632-1677), em sua Etica (1677), tentou construir todo tum sistema metafisico a partir de alguns poucos axiomas, que ele acreditava que fossem virtualmente idénticos aos pen- ‘amentos de Deus. O problema é que a maioria das pessoas concordaria fem que a0 menos alguns desses axiomas parecem vazios, injustificdvels « suposigSes paroquiais Por exemplo, um axioma afirma que “se niio houver uma eansa doterminada, sera impossivel que um efeito ocorra” (Etica, liv. 1, pt. 1, axioma 3). Mas, como indicou John Locke (1632-1704), esta assergio, tomada literalmente, é inteiramente desprovida de caréter informativo, visto que é verdadeiro por definicio que todos os efeitos tém causas. O aque o axioma parece implica, todavia, 6 uma afirmagio de cunho mais rmetafisico: que todos os eventos no mundo sio efeitos que necessaria- mente resultam de sas causas. Hume, no entanto, aponta que nfo hé razo para se aceitar essa assergiio a respeito do mundo. Ou seja,nilo temos razes para acreditar que 05 eventos niio podem ocorrer sem causas (Tratado, liv. 1, pt. 3, § 14), Certamente, por definigéo, um efeito tem de ter uma causa, mas no temos razBes para acreditar que cada evento particular resulta me- cessariamente de uma causa. © fil6sofo islamita medieval Al-Ghavali (1058-1111) sustentou um argumento similar (A incoeréncia dos fildsofos, Da ciéneia natural, Q. 1 ss.) Naturalmente, Spinoza parece afirmar que apreenden a verdade de seus axiomas por meio de uma forma especial de intuiio (scientia in- tuitiva), © muitos flésofos sustentaram que existem verdades bésicas autoevidentes que podem servir como axiomas em nossa argumentagio. Mas por que deveriamos acreditar neles? 46 | As Feramentas dos fi Ei muitos contextos da racionalidade, portanto, os axiomas parecem. ser um recurso titil, e os sistemas axiométicos da racionalidade muitas veres nos tém serventia, Mas a nogio de que tao garantidos a ponto de que n sujeito ra hum contexto, negé-los, parece duvidosa esses axiomas podem ser poderia, em ne- Ver também. 1.1 Arguinentos, premissas e conclusdes 1.10 Definigaes 1.12 Tautologias, autocontradigdes ¢ a lei de nao contradigio 6.6 Verdades autoevidentes fildsofos “Benedictus SpINozA, Etica, 1677. 1.10 Definigdes Se em algum lugar estio gravados em placas de pedra os dex. man- damentos filos6ficos, pode ter certeza de que entre eles esté a injunga0 “Defina seus termos”. Com efeito, as definigdes so tao importantes em filosofia que alguns sustentaram que as definigdes so, em tltima andli- se, tudo 0 que hé para saber com respeito ao assunto, As definigdes sao importantes porque sem elas é muito fil eair e contradigées ou cometer falcias, acarretando equivocos. Como as faga- has de um recente presidente dos Estados Unidos ilustram, se voce esti, por exemplo, debatendo a ética do sexo extraconjugal, & preciso definir precisamente 0 que voce entende por “sexo”. De outro modo, pode apostar que alguém iré dizer: “Ah! Eu nio considerava que isso fosse sexo”. Grande parte de nossa linguagem ¢ ambfgua, mas se pre- tendemos discutir questées da maneira mais precisa possivel, como a filosofia visa fazer, 6 preciso eliminar a ambiguidade ao méximo, e defi- nigdes adequadas so a ferramenta perfeita para nos ajudar a faré-lo Ferramentas bisicas da argumentagio | 47 exemplo do livre-comércio Por exemplo, eu posso estar discutindo a justiga do “livre-comércio”. Ao fazé-lo, posso definir 0 livre-comércio como “o comércio que nio é ‘obsteuidlo pelo direito nacional ou pelo internacional”. Fazendo isso, fixei 1a definigao de livre-comércio para os propésitos de minha discussio, Ou- tros podem afirmar possuir uma definigio melhor ou alternativa do live- comércio. Isso pode levi-los a conclusoes diferentes a respeito da justia do livre-comércio, Estabelecer definigdes para conceitos dificeis¢ refletir sobre suas implicagdes constitui grande parte do trabalho filos6fico. ‘A razio pela qual é importante claborar definigdes claras para con- ceitos dificeis ou controversos é que todas as conclusées que possam ser apropriadamente aleancadas aplicam-se somente aqueles conceitos (neste caso, o livre-coméreio) conforme definidos. Desse modo, minha definigio de como empregarei o termo ausilia minha discussio, por um lado, e, por outro, a restringe. Auxilia porque confere um sentido de- terminado e niio ambfguo ao termo; restringe porque isso significa que aquilo que eu concluo no necessariamente se aplica a outros usos do termo. Assim, muitas divergéncias resultam do fato de que as partes discordantes, sem perceber, referem-se a coisas diferentes empregando ‘0s mesmos termos, Definigio muito estrita ou muito ampla? Esta é a razao pela qual é importante encontrar uma definigo que fancione do jeito certo. Se a definigao for muito estrita ou idiossincrati- ca, 6 possivel que os resultados obtidos no possam ser aplicados de modo to amplo quanto se esperaria, Por exemplo, se definimos "homem” como ser humano adulto do sexo masculino que tem barba, podemos chegar a conelusdes absurdas — por exemplo, que os indigenas ameri- canos de sexo masculino nao sto homens. Da compreensio desse pro- blema origina-se uma ferramenta de eritica. Com o fim de mostrar que © uso dos termos mma determinada posigdo filos6fica é inadequado, indique um caso que deveria ser abarcado por suas definigdes mas que claramente fica excluido. Se, por outro lado, uma definigao for muito ampla, poders acarretar conchusées ignalmente erréneas. Por exemplo, se voeé define “malelicio” 4B | As feramentas ds fds ‘como “o ato de infligir sofrimento ou dor a outra pessoa”, tert de inchuir af a administragio de injeges pelos médicos, a punigio de eriangas crimninosos, ¢ as atitudes de um treinador de atletas como casos dle ma- leficios. Portanto, outra maneira de eriticar a posigo de alguém acerca de algun tépico filos6fico é indicar um caso que se encaixa na definigao proposta mas que claramente nao se pretendia incluir nel. Uma definicao 6 como uma fronteira de territério; ela demarca os limites que estabelecem os casos aos quais 6 apropriado aplicar um ter- mo € os casos aos quais no é apropriado aplies-lo. A definigo ideal s6 permite a aplicagao do termo aos casos aos quais ele deve ser aplicado —eanenhum outro. Uma medida prética Em geral, 6 melhor que sua definigio corresponda tanto quanto possivel a acepeio usual do termo no género de debate ao qual se refe- rem suas assergdes. Contudo, havers oeasides em que ser apropriado, até mesmo necessirio, definir usos especiais, como no caso em que 0 Iéxico corrente nao for eapaz. de estabelecer distingées que vocé julga filosoficamente importantes. Por exemplo, nio temos na linguagem co- ‘mum um termo que desereva uma meméria que nao seja necessaria- ‘mente uma meméria de algo que a pessoa que a detém tenha experi- mentado. Isso ocorreria, por exemplo, se eu pudesse, de algum modo, partilhar suas memérias: eu teria uma experiéneia de tipo mnemdnico, mas niio seria de algo que eu tivesse de fato experimentado. Chamar isso de meméria seria enganoso, Por essa razfio, os filésofos cunharam 0 termo especial “quase-meméria” (ou “q-meméria”) para se referir a essas experiéncias hipotéticas. Uma longa tradigao Historicamente, muitas questées filos6ficas sio, de fato, buseas de definigdes adequadas. O que é 0 conhecimento? O que é a beleza? O que Co bem? Nestes casos, ndo € suficiente dizer: “por conhecimento enten- do..." Em lugar disso, busca-se a definigao que melhor articule o concei to.em questio. Grande parte do trabalho filos6lico a este respeito envol- Ferramentas biscas da argumentacdo | 49 ‘yeu anilises conceituais ou a tentativa de decifrar e esclarecer os signi- ficados de conceitos importantes. Contudo, sera preciso muito debate para se decidir 0 que seré considerado a melhor articulagio, Com efeito, ‘a propria indagagao de se tais conceitos podem efetivamente ser defini- dos constitui uma questéo filoséfica possivel. Para muitos pensadores antigos e medievais (como Platio e Tomés de Aquino), a formulagao de definigdes adequadas consistia em dar expresso verbal as préprias “es- séncias” das coisas — ess@ncias que existiriam independentemente de nds, Muitos pensadores mais recentes (como alguns pragmatistas ¢ pés- estruturalistas) sustentaram que as definigdes no sio seniio instrumen- tos conceituais que organizam nossas interagdes uns com os outros © com ‘o mundo, mas que de modo algum refletem a natureza de uma realida- de independente. Alguns pensadores chegaram a argumentar que todos os enigmas filosoficos estdo essencialmente enraizados numa falha em compreender ‘o modo como a linguagem comum funciona. Embora, para sermos acu- rados, isso envolva consideragdes que vio além das meras definigoes, por outro lado mostra quao profunda é a importancia da preocupagio filo- s6fica em apreender corretamente a linguagem, Ver também 1.9 Axiomas 3.4 Erros categoriais 3.9 Critérios Leituras “Patho (c, 428-347 aC), Ménon, Eutifron, Teeteto, O banguete J. L. AUSTIN, Sentido e percepedo, 1962 Michel Foucauts, As palavras e as coisas, 1966. 1.11 Certeza e probabilidade © fil6sofo francés do século XVII René Descartes (1596-1650) & famoso por afirmar ter descoberto a pedra angular sobre a qual edificar 50 | As feramentas dos iso va, A pedra angular era uma ideia que cogito (“penso”) — je pense done je suis ("penso, logo existo”, difundido como cogito ergo sum). Descartes argumentou que é impossivel duvidar {ja errado, ou esteja que poderia determinar verdades com absoluta certe- 6. poderia ser contestada, 0 de qu .¢ est pensando, pois mesmo que vo sendo enganado, ou esteja duvidando, vocé esté, contudo, pensando. Estoicos antigos como Cleantes (c. 232 a.C.) e Crisipo (280-207 a.C.) sustentavam que experimentamos determinadas impresses do mundo ¢ da moralidade das quais simplesmente no podemos duvidar — experiéncias que denominaram “impressbes catalépticas”, Fil6sofos postetiores, como 0 filésofo do século XVII Thomas Reid (1710-1796), acreditavam que Deus garante a veracidade de nossas faculdades cogni- tivas. Seu contemporaneo Giambattista Vico (1688-1744) argumentou ‘que podemos ter certeza a respeito das coisas humanas, mas no a res- ante, o filésofo austrfaco peito do mundo no-humano. Mais recenten Ludwig Wittgenstein (1859-1951) tentou mostrar que simplesmente niio faz sentido duvidar de determinadas coisas. ‘Outros suspeitaram que pouco ou nada podemos conhecer com certera, e, no entanto, admitiram que podemos supor coisas com algun rau de probabilidade. Antes, porém, que voce declare ter certamente ou provavelmente descoberto a verdade filosdfica, seria uma boa ideia ‘examinar 0 que significa cada conceito, Tipos de certeza A certeza 6 com frequéncia descrita como um tipo de sentimento cou estado mental (talvez. um estado no qual a mente acredita em algo sem nenhuma divida), mas isso simplesmente fornece uma concepeiio psicol6gica do conceito, e nao diz,nada acerca das circunstaneias em que estamos justificados em nos sentir assim. Uma concepcio mais filos6fiea acrescentaria que podemos dizer com certeza que uma proposigao é verdadeira quando 6 imposstvel que seja falsa, e que podemos dizer com certeza que 6 falsa quando 6 impossivel que seja verdadeira. Algumas vezes, as proposigées em relagio as quais se pode ter certeza segundo esta acepcao sio denominadas “necessariamente verdadeiras” ou “neces- sariamente falsas”. Fenamentas basieas de argumentaglo | 51 0 problema do ceticismo principal problema, flosoficamente falando, enfrentado pelos pensudlores esté em estabelecer que é de fato impossivel para todo ca didato a certeza ter um valor verdade diferente. Os pensadores eéticos foram extremamente hébeis em demonstrar que praticamente qualquer assergio pode ser falsa, ainda que pareca ser verdadeira (ou que pode ser verdadeira apesar de parecer falsa). Na esteira da investigagiio cética, a maioria concordaria em que, no que se refere a afirmagées de verdade, acerteza absoluta permanece inatingivel. Ademais, ainda que fosse pos- sivel atingir este tipo de certeza, embora seja possivel que tudo de que se tem certeza filosoficamente seja verdadeiro, por outro lado 6 muito lato que nao se pode ter eerteza acerca de tudo © que 6 verdadeiro. Mas, se voc8 no pode ter certeza demonstrivel, o que pode ter {que mais se aproxime disso? Uma resposta adequada a esta pergunta requer um exame muito mais amplo da teoria do conhecimento. Con- tudo, seré proveitoso falar um pouco sobre a resposta que mais comu- mente nos ocorre: a probabilidade. ‘A probabilidade é o lugar natural no qual se refugiar caso nao seja possivel alcangar a certeza. Como um refiigio, porém, ela é como a casa de madeira na qual o porquinho se abriga ao fugir da casa feita de palha, problema 6 que a probabilidade & uma nogao precisa que nao pode ser entendida como @ melhor coisa logo abaixo da certeza Probabilidade objetiva e probabilidade subjetiva Podemos estabelecer uma distingo entre a probabilidade objetiva a probubilidade subjetiva, A probabilidade objetiva encontra-se onde © que iri acontecer & genuinamente indeterminado. A desintegracio radioativa poderia ser um exemplo. Para todo étomo radioativo dado, a probabilidade de ter se desintegrado no perfodo de sua meia-vida 6 de 50%. Isto significa que, se vooé considerar dez. de tais sitomos, é provével que cinco deles tenham se desintegrado ao fim do periodo de meia-vida do elemento e que os outro cinco nio tenham se desintegrado, Ao me- nos em algumas interpretagdes, é genuinamente indeterminado quais ftomos estario incluidos em cada categoria. 5.2 | As ferramentas dos fisoto A probabilidade subjetiva conceme a casos nos quais no pode haver indeterminagio efetiva, mas alguma' opiniao particular ou um jes efetua um julgamento de probabilidade a respeito conjunto de opi da chance de que algum evento ocorra. Esses sujeitos fazem tal julga- inento porque carecem de informagSes completas sobre as eausas que determinario 0 evento. Sua ignorfncia exige que fagam uma avali probabilistica, usualmente atribuindo uma probabilidade com base no nimero de ocorréncias de cada resultado no decurso de uma sequéncia prolongada no passado, Se, por exemplo, lango uma moeda, cubro-a e Ihe pego para arrisear cara ou coroa, o resultado jé esté determinado. Ji que vocé nao sabe qual 6 esse resultado, tera de usar sen conhecimento de que caras ¢ coroas saem numa probabilidade de 50% para 50%, assentando uma probal Tidade de 50% de que tenha dado cara e de 50% de que tenha dado coroa. Se voo’ pudesse ver a moeda, saberia que, de fato, havia 100% de certeza de que um determinado lado estava voltado para cima. [As estatisticas estabelecidas por apostadores em corridas de cavalos também sio espécies de probabilidade subjetiva. As chances afixadas registram simplesmente aquilo que as numerosas pessoas que apostain na corrida acreditam que seri o resultado. Certeza ¢ validade Se vocé tem um argumento dedutivo sélido, entio sua conclusio & implicada por suas premissas com eertea. Muitos investigadores, porém, cexigem niio apenas que as conclusbes sejam implicadas pelas premissas, mas também que as pr6prias conclusées sejam verdadeiras. Consideremos a diferenca entre os seguintes argumentos: Se houver chovido ontem noite, a Inglaterra provavelmente vencerd 0 jogo. Choveu ontem a noite. Logo, a Inglaterra provavelmente venceré o jogo. ‘Todos os seres humanas sio morta. Séerates era um ser humano. Logo, Sécrates era mortal preer Ferramentas bisicas da argumentagSo | 53, {A conclusio do primeiro argumento claramente introdw. apenas uma assergio provével. A conelusio do segundo argumento também 6 implicada com certeza pelas premissas, mas, em contraposigao ao pri- meio, introduz. uma assergo muito mais definida, Mas eis o problema: aunbos os exemplos apresentam argumentos dedutivos vilidos. Ambos possuem formas vidas. Portanto, em ambos os argumentos a conclusio cesld implicada com certeza — isto 6, a verdade das premissas assegura averdade da conclusio—, ainda que 0 conterido de uma conclusio seja meramente provivel enquanto 0 outro nio. PPortanto, voo8 deve fazer as seguintes distingSes: (1) se a conchusio de um argumento é implicada com certeza pelas premissas ou nao, ¢ (2) se a conclusio de um argumento produz, on nao uma assergio que & verdadeira com certeza. Teorias filosdficas Mas e quanto as teorias filos6ficas? Aparentemente, aleangando-se a certeza nas teorias filosoficas, haveria ponca ou nenhuma controvérsia entre 08 filésofos acerca de quais teorias seriam verdadeiras © quais seriam falsas — mas na realidade parece haver muita controvérsia a respeito. Isso significa que a verdade das teorias filos6ficas 6 essencialmente indeterminada? Alguns filésofos diriam que nao. Diriam, por exemplo, que, embo- ra subsistam muitas disputas, hd uma concordancia quase unanime entre 0s filésofos sobre muitas coisas — por exemplo, que a teoria das formas de Platio é falsa e que o dualismo mente-corpo é insustentével. Outros, de tendéncia mais eética, com o perdi do jogo de palavras, io estio to certos acerca de se qualquer coisa tena sido provada na fi losofia, ou ao menos provada com certeza. A aceitagio de uma insuficién- cia de certeza pode ser tida como uma questio de maturidade filos6fica. Ver também 1.1 Arguentos, premissas e conclusdes 12 Dedugio 14 Validade e solidex 554 As Feramentas dos ils Ferramentas bisicas da argumentagio | 55 15 Invalidade 19 Axioma Isso nio significa dizer que as tautologias nto posstiem valor flos6- fico. Entender as tautologias nos ajuda a entender a natureza e a fu da radio e da linguagem. Leituras “Brad INWOOD, Lloyd P. Genson, Hellenistic Philosophy: Introductory Arguments vdlidos como tautologias Readings, *1988. Giambattista Vico, A ciéncia nova, 1725. Ludwig WIT tGENSTEIN, Da certeza, 1969. “Todos os argumentos vslidos podem ser reformulados como tauto- ogias — ou seja, enunciados hipotéticos nos quais 0 antecedente 6 a conjungao das premissas e o consequente é a conchusio. Isso equivale a dizer que todo argumento valido pode ser articulado como um emuncia- do com a seguinte forma: “Se W, X, Y sio verdadeiros, entio C é verda- deiro”, onde W, X ¢ Y so as premissas do argumento ¢ C é a eonchusio. Quando um argumento valido é reformulado segundo esta forma, temos uma tautologia. 1.12 Tautologias, autocontradigdes ¢ a lei de nao contradigio As tautologias ¢ as autocontradigées esto nos extremos opostos de lum espectro: as primeiras so sentengas necessariamente verdadeiras, ¢ as tiltimas sio sentengas necessariamente falsas. A despeito de serem, neste sentido, polos contriios, por outro lado esto, com efeito, intima- mente relacionadas. Na conversagio comum, “tautologia” 6 um termo pejorative usado para depreciar uma assergio que pretende ser informativa mas na ver dade meramente repete 0 significado de algo que jé se sabe. Por exem- plo, consideremos: “Um criminoso infringiu a lei”. Esta declaragio po- deria ser depreciada como tautologia, pois no nos diz. nada sobre 0 ‘eriminoso ao dizer que infringin a lei. Ser um infrator 6 precisamente 0 que 6 ser um criminoso. Na légica, porém, “tautologia” tem um sentido mais precisamente definido, Uma tautologia é um enunciado que sera verdadeiro em qual- quer circunstaneia — ou, como dizem alguns, em todo mundo possivel AAs tautologias sio verdades “necessirias” ‘Tomemos o seguinte exemplo: P ow nio-P Se P for verdadeiro, 0 enunciado sera verdadeiro, Mas, se P for Falso, o enunciado ainda assim ser verdadeiro. Este é 0 caso para qual- {quer sentenga que substitua P: “Hoje é segunda-feira”, “Os étomos so invisiveis” on "Os macacos fazem étimas lasanhas”. Pode-se entender entao por que as tautologias sio tratadas com to pouca deferéncia. Um cenunciado que verdadeiro a despeito da verdade ou da falsidade de seus componentes pode ser eonsiderado nulo, uma vez. que seu conted- do nao produz nenhum efeito. Alei de néo contradigao Além disso, a lei de nfo contradigio — a pedra angular da légica filoséfica — é também uma tautologia. A lei pode ser formulada da se- guinte maneira Nao (P € niio-P) Alei é uma tautologia, jé que, sendo P verdadeiro ou falso, a pro- posigio sera verdadeira. A lei de nao contradigao dificilmente pode ser acusada de nfo ser informativa, uma vez que constitui o alicerce sobre 0 qual toda a légica ‘esti edificada. Mas, com efeito, a propria lei em si nfo 6 tio informativa, quanto as tentativas de refuté-la. ‘As tentativas de refutar a lei de nfio contradigao so em si mesmas contradig6es, e so obviamente ¢ em todas as circunstincias erréneas Uma contradigio ofende a lei de nao contradigao, pois ser apanhado em contradigio € ser apanhado afirmando que algo é verdadeiro e falso a0 mesmo tempo —afirmando Pe no-P. Como a lei de nao contradigio 6 ‘uma tantologia, e, desse modo, verdadeira em todas as circunstincias, no pode haver nada mais claramente falso do que algo que tenta refuté-la. prinefpio de no contradig&o também foi historicamente impor- tante na filosofia, O prinefpio corrobora antigas andlises sobre a mudanga eapluralidade, ¢ & crucial na proclamacio feita por Parménides de Eleia 56 | As Feramentas dos fidsofos no séeulo VI a.C::“o que é 6 e nio pode nio ser”. Também € central para consideragdes de identidade — por exemplo, na afirmagao de Leibniz de que 08 objetos que s ‘dénticos devem ter todos as mesmas propriecades. Criticas autorrefutadoras ‘Uma caracteristica curiosa e sitil da let de mao contradi toda tentativa de refuté-la a pressupée. Argumentar que a lei de nio contradigao 6 falsa significa afirmar que ela também nao é verdadeira. Em outras palavras, a critica pressupde que aquilo que est sendo criti- cado pode ser verdadeiro ou falso, mas nao verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Mas esta pressuposicio nao é seniio a propria lei de nao contra- digo — a mesma lei que a erftiea visa refutar. Em outras palavras, qualquer um que negue o prinefpio de nfo contradigao simultaneamen- te o afirma, I um prinefpio que nao pode ser racionalmente criticado, pois é um pressuposto de toda racionalidade. Compreender por que uma fautologia & necessariamente verdadei- ra—e, a0 menos em certo sentido, de maneira nfo informativa — e por que uma autocontradigdo 6 necessariamente falsa € compreender o prin- cfpio mais bésico da l6gica. Estes dois conceitos se unem na lei de ndo contradigdo, que, desse modo, talver,seja mais bem deserita ndo como a pedra angular da logica filoséfica, mas como seu prinefpio-chave. 6 que Ver também. 1.4 Validade e solide, 1.6 Consisténeia 3.16 A lei de identidade de Leibniz 3.19 Paradoxos 3.27 Argumentos autorrefutadores Leituras “Patrick J. HURLEY, A Concise Introduction to Logic, "2000. ARISTOTELES, Segundos analiticos, livo 1, eap. 11:10, Anustérstes, De Interpretatione, esp. caps. 6-9. capitulo dois Outras ferramentas da argumentacdo 2.1 Abdugao ‘A abducao & uma importante dimensio da racionalidade cientifica € da racionalidade comum, assim como da racionalidade filos6fica. Con- sideremos o exemplo a seguir. Um homem é encontrado enforcado numa cabana situada mama remota floresta, com todas as portas ¢ janelas firmemente trancadas por dentro, pendurado numa corda. Hé um bilhete de suicidio numa mesa préxima. O que melhor explicaria este conjunto de fatos? A abdugao, um termo cunhado pelo filésofo pragmatista americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), é um instrumento para determinar precisamente ist. A abdugio 6 um processo de raciocinio usado para decidir que explicacio de um dado fendmeno devemos escolher, e, por isso, nat ralmente, é também denominada “argumento para a melhor explicagao' Muitas vezes nos apresentam certas experiéncias e pedem que oferega- mos algum tipo de explicago para elas. Mas o problema que com fre~ quéncia enfrentamos 6 que um corpo de dados nao determina ow nao nos forga a aceitar uma tinica explicagao. Desse modo, alguns filésofos '58 [As Feramentas dos iso angumentaram que, para todo possivel corpo de evidencias, hi sempre uma variedade de explicagies consistentes com ele. Hsta é a assercio propos- ta por Duhem ¢ Quine. Seja esta assercao verdadeira ou nao, contudo, nos easos em que nos deparamos com uum conjunto de explicagdes alter- vas, nossa tarefa como bons raciocinadlores & decidir qual dessas ex: ages se ajusta melhor as evidéncias. F aqui que entra a abdugao. Para contender de que mancira ela funciona, retornemos ao nosso exemplo. Se voc’ pensar sobre 0 caso, embora a morte do homem parega & caso claro e simples de suiefdio, hé outras explicagdes para ele, algumas mais fantasiosas que outras. Talvez o homem estivesse ‘ensaiando uma pega sobre o snicidio, houvesse trancado as portas para ter privacidade e as coisas sairam errado. Ou talver. a CIA tenha desen- volvido teletransportadores e seus agentes, apés matar o homem e arru- iar as coisas para parecer tum suicfdio, tenham se retirado sem usar as portas, Talvez um espfrito demonfaco que habita os bosques da regido tenha entrado magicamente na cabana, matado o homem e desapareci- do, Bstas explicagdes alternativas podem parecer burlescas, mas so todas consistentes com as evidéncias. Portanto, nao pode ser exato que as evidencias deixam o suiefdio como a tinica explicagao possivel. ‘Assim, qual explicagio deveriamos escolher? Os filésofos que trata- ram do tema da abdugio desenvolveram alguns prinefpios de decisio — observe, porém, que existe muita controvérsia a res lista a seguir como um conjunto de instrumentos que vocé pode usar para escolher entre teorias concorrentes: Pl primeira vista u Simplicidade; quando possfvel, fique com a explicago menos com- plicada, aquela que requer 0 menor mimeo de sequéncias causais as mais diretas, o menor mimero de afirmagées sobre o que existe, fe que especule 0 ininimo possivel sobre coisas que estio além das evidencias, (0 filésofo medieval Guilherme de Ockham é famoso por desenvolver esta ideia. Ver 3.18.) Coeréncia: quando possivel, que com a explicagio que é consistente com aquilo que jé acreditamos ser verdade. ‘Testabilidade ou poder preditivo: quando possivel, escolha a teoria que permite que voet faga previsdes que possam ser confirmadas ‘ou desmentidas (ver 3.29). COutas feramentas da argumentagBo | 59 Abrangéncia: quando possivel, escolha a explicagio que deixe 0 menor néimero possivel de fios soltos, que explique 0 méximo de coisas ¢ deixe o menor ntimero de coisas sem explicagio. Outra maneira de dizer tudo isso 6, simplesmente: “escolha a expli- cago que tenha as caracteristicas mais préximas daquelas de um caso simples e claro” Considere a possibilidade de que a vitima de nosso enforeamento seja um ator que morreu de morte acidental. Bsta tese prediria que ele deveria ter em mios um roteiro, talvez ter sido membro de um grapo de teatro, ou ter mencionado a seus amigos que estava envolvido numa psa. Mas, ao examinar a cabana e sua residéncia, entrevistar seus ami 05 e verificar os membros de grupos de teatro locais, nao encontramos cevidéncias de que fosse este o caso. Ou seja, a investigagio nao confirma a prodigao e constata uma improvivel auséncia de evidéncias. Investigar a explicagio referente ao teletransporte também nfo rende evidéncias confirmadoras, os requisitos de seguranga do governo tormam-no excessivamente dificil de apurar, ¢ a explicagao contradiz nosso conhecimento sobre os recursos tecnolégicos da CTA. Acxplicagio baseada no espirito demonfaco exige que acreditemos numa espécie de ser sobrenatural do qual nfo possufinos quaisquer evidéncias. suicidio como hipétese de explicacio, por outro lado, 6 simples. Nao requer que postulemos a existéncia de espiritos sobrenaturais nem de conspiragies secretas ilegais do governo envolvendo tecnologias des- conhecidas mas incrivelmente avancadas. Essa hip6tese possibilita que facamos predigdes que podem ser testadas. (Por exemplo, que o homem estava sofrendo de depressio ¢ estresse. Digamos que a investigagio revelasse que recentemente ele havia sido demitido, estava em mé situa- fo financeira e acabara de se divorciar.) Diferentemente da hipétese do ator, a do suicidio nio supde a existéncia de coisas (como roteiros) {que nio foram encontradas. A tese do suicfdio 6 consistente com 0 co- nhecimento que temos acerca do comportamento humano e explica todos os fatos com os quais nos deparamos. 0 problema da indugdo enumerativa Mas eis aqui um problema que continua a inquietar os filésofos: 6 contudo possivel que as outras explicagoes sejam verdadeiras. Portanto, 60 1s Feramentas dos i 6 possfvel niio apenas que os prinespios da abducdo ndo garantam que olla de explicagées seja a correta,'mas 6 também possivel que cles sirvam em alguinas situagBes como obstdculos 2 nossa aquisigzo de crengas verdadeiras. Os eéticos adoram destacar essa questio. ‘Tomemos, por exemplo, a seguinte série de niimeros: 1, 2,3, 4, 5, 6. Nossos prineipios de abdugao nos levario a conchuir que © préximo inimero seré 0 7. Ou seja, nossa experiéncia © nossos testes passados nos levario a explicar satisfatoriamente a continuagao da seq tum simples processo de somar o niimero 1 a0 nimero imediatamente anterior para produzir 0 proximo. Mas 6 posstvel que o préximo nime- 10 da série seja qualquer nimero. O processo pode estar seguindo uma regra que soma | por cinco vezes e depois passa a somar 10. Neste caso, 6 préximo ntimero seria 16. Em suma, nossa escolha do nimero 7 seria © melhor que poderfamos fazer usando os principios da abducto e as evidencias dispontveis, mas seria errada. F, para toda a sequéncia de inimeros, 0 préximo sempre pode revelar que nossas conclusbes prece- dentes sobre as regras que governam a sequéncia estavam erradas. F ficil entender, portanto, por que o método de abdugiio de Peirce 6 atracnte aos olhos dos pragmatistas, mas problemético aos olhos dos realistas, que sustentam que a ciéneia revela a simples natureza da rea- lidade independente. De um ponto de vista pragmatico, os métodos de abdugo nio se basciam na suposigio de que a verdade acerca de uma realidade independente pode ser estabelecida de modo irrefutével, mas na ideia de que temos de alcangar 0 méximo de verdade que formos capares, dados os limites das evidéneias e das exigéncias da vida. O proprio Peirce sustentava que a evidente convengéncia das teorias cien- tificas ¢ sua proficuidade sugeriam que a abdugiio, em tltima andlise, faz que as explicagdes convirjam para uma verdade nica. Muitos, porém, no esto conveneidos disso. ‘Ver também. 1.6 Consisténcia 3.1 Explicagdes alternativas 3.18 A navalha de Ockham 3.28 Raziio suficiente 3.29 Testabilidade ‘utras ferramentas da argumentagdo | 61 Leituras Charles Sanders Pemce, Pragiatisin and Pragmaticism, in Collected Works of Charles Sanders Peirce, 1960, v. 5. Peter LIPTON, The Inference to the Best Explanation, 1991 Pierre M. M. Duntes, La théorie physique, son object et sa structure, 1906, 2.2 Método hipotético-dedutivo Num episédio do hilirio programa de parédias inglés Knowing Me, Knowing You, o entrevistador, Alan Partridge, esté conversando com wn grande romancista sobre a existéncia de Sherlock Holmes. Partridge tem a ilusio de que Sherlock Holmes era uma pessoa real que ni apenas solucionou crimes, mas ainda esereveu sobre eles. No final, 0 exaspera- do autor pergunta a Partridge: “Se Sherlock Holmes era de fato uma pessoa real, como poderia ter descrito, nos minimos detalhes, as circuns- tancias de sua propria morte?” Hi uma pausa. “O prémio Nobel de li- teratura’, responde Partridge. “Voc nunca o reeebeu, recebeu?” Por mais grandioso que possa parecer, o autor estava, essencialmen- te, fazendo uso do método “hipotético-dedutivo”, do “covering law” ou do método “dedutivo-nomolégico”. Esse 6 um procedimento que muitos filésofos da ciéncia — mais notavelmente Karl Popper (1902-1994) ¢ Carl Gustav Hempel (1905-1997) — afirmam estar no cere da investi- gacio cientifica. Nele, principia-se com uma hipétese — por exemplo, que o chumbo é mais pesado que a gua. Se isso for verdade, entio sera possivel deduzir outras assergbes indubitiveis que derivem dessa hipé- tese. A mais ébvia é que o chumbo afuunda na agua. Entio, averiguando se o chumbo efetivamente afimda na Agua, testa-se a hipétese original Os resultados do experimento, nos casos mais fortes, podem provar ou refutar a hip6tese; nos casos mais fracos, 0 resultado fornece evidéncias contra ou a favor da hipstese. 0 procedimento é muito amplamente aplicivel, como se pode ver no caso do desafortunado Alan Partridge, Neste exemplo, com base na hipétese de que os romances detetivescos de Sherlock Holmes so au- tobiogréficos, deduzem-se outros fatos. Considerando-se que niio é ppossfvel que os livros descrevam as circunstancias da morte de seu autor, © fato de que o livro sobre Sherlock Holmes 0 faga prova, por conse- guinte, que a hipétese de que seja autobiogritico ¢ falsa. ——————— 62 [As Feramentas dos sol COutrasferamentas da argumentacéo | 63 0 principio bisico do métoda hipotético-dedutivo é, portanto, “co- seres humanos voeé assassine para apurar se a hipétese é verdadeira, mece com uma hipétese ¢ um determinado conjunto de eor sempre persistiré sendo logicamente possivel que um dos seres humanos sobreviventes seja imortal, ou que o proprio experimentador seja imortal Por essa rao, Popper julgava que é possivel refutar, mas nio comprovar nnte uma assergio universal. Por conseguinte, a assergao universal ae afirma que todos os cisnes sio brancos pode ser refutada pela apre- sentacio de um eisne negro, mas, por outro lado, no importa quantos cisnes brancos possam ser encontrados, sempre continua sendo posstvel que 0 préximo eisne encontrado nio seja branco. Hé também problemas concernentes a limitagdes téenicas na testa- bilidade. Por exemplo, posso ser capaz de deduzir, com base num con- junto de hip6teses, que aconteceria as érbitas dos planetas se a massa do planeta Jipiter subitamente se duplicasse, mas son tecnicamente incapaz. de construir um procedimento para testar essa tese. ‘O método hipotético-dedutivo é uma ferramenta itl, portanto, mas nio possui todo o poder e toda a profundidade que pode parecer ter & primeira vista, deduza os fatos que sio implicados por ele, ¢ entio realize experimentos para verificar se taisfatos se sustentam 0 hipstese é verdadeira on fals ai nfo e, assim, determinar se a Niio ida de que algo como o método hipotético-dedutivo ‘uma ferramenta extremamente ‘itl na investigagio em geral e na ciéncia em particular. Contudo, suas limitages tornaram-se muito mais apa tes ao longo do iiltimo séeulo, ¢ é preciso ter uma eerta c uso do método. 0 problema das suposigdes ‘Uma das razées para isso 6 que a relagio aparentemente dbvia direta entre a hipétese e suas implicagdes com frequéncia nao é assim tio Sbvia e direta. Mesmo no caso de Partridge, podemos refletir que, se Holmes efetivamente tivesse existido e planejado seu proprio assas- sinato, por exemplo, e © plano houvesse sido executado com precisio, cle entio poderia ter deserito as cixcunstincias de sua propria morte. Ele também poderia ter deserito as circunstineias de sua propria morte ‘caso fosse clarividente. Isso mostra que aquilo que julgamos ser uma implicagao direta da hipétese depende de um amplo leque de suposigdes sobre se outras coisas so normais ou verdadeiras. Esse é um problema no uso filoséfico do método, pois a argumentagio filoséfica bem-sucedi- da tem de assumir 0 mfnimo de suposigées sobre a verdade de outras coisas. Na filosofia da ciéncia, isso é um problema porque com frequén- cia 0 estudioso 86 pode assumir aquilo que 6 necessério para fazer 0 iétodo funcionar caso jé tenha aceitado a estrutura te6rica mais ampla na qual a hipétese est sendo testada Ver também 1.2 Dedugio 3.1 Explicagées alternativas Leituras Carl Gustav HemPrz, Deductive-Nomological vs Statistical Explanation, Minnesota Studies in the Philosophy of Science 3 (1962). Carl Gustav HEMPEL., Paul OPPENHEIM, Studies in the Logie of Explanation, Philosophy of Science 15 (1948). Karl Popper, A légica da pesquisa cientifica, 1959 [1994]. Problemas de testabilidade ‘Um segundo conjunto de problemas provém do fato de que 0 mé- 2.3 Dialética todo nao gera com facilidade testes passiveis de determinar a questio da verde da hipétese. Isso ocorre especialmente com as assergies univer Segundo o Sécrates de Platdo (Apologia 38a), a vida da anélise filos6- sais, tais como “nenhum ser humano é imortal”, Nao importa quantos fica éa melhor vida, e, mais ainda, a vida nfo examinada nfo vale ser vivida, 664 [As Ferramentas dos solo Grande parte da investigagio filos6fica adotou a forma da “dialétiea” (dia. lektiké). E. um tipo de pensamento que surge repetidamente na historia da filosofia. Mas o que 6 exatamente a dialética ¢ como 6 aplicada? De maneira muito simplificada, 0 pensamento dialético ¢ un pécie de dilogo filos6fico — um processo de ir ¢ vir entre dois ou mais pontos de vista. Hé vérias maneiras de formular esse proceso, Uma delas pode ser a seguinte: 1. Uma das partes prope uma assergao. 2. Alguma outra parte propée um argumento contrario, ou empreen- de uma anilise critica da assergo, buscando nela incoeréncias ou inconsisténcias légicas ou implicagoes absurdas. 3. A primeira parte tenta se defender, refinar ou modificar a asserciio original a luz do desafio apresentado pela outra. 4, Assegunda parte responde 2 defesa, ao refinamento ou A modificagaio da primeira 5. Por fim, forma-se uma compreensio mais sofsticada ou acurada da questo. Vooé pode ver, entio, que o pensamento dialético envolve umn “ou- tro” ¢ um tipo de oposigao ou contestagao entre os varios argumentado- res envolvidos no processo. Esse tipo de oposigao € com frequéncia considerado 0 “momento negativo” da primeira assergao. Alteridade e unicidade Muitos autores consideram que processo dialético funciona como ‘uma espécie de maquinismo do progresso filos6fico — talvez.o mais po- deroso deles. Os dialéticos acreditam que a compreensio da verdade ‘emerge por meio de uma confrontagéo numa série de momentos negati- vvos ¢ de solugaes desses momentos. Usualmente, os dialétieos sustentam que 0 pensamento principia num emaranhado obscuro incoerente de opinises diferentes e alheias — algumas delas apresentando um lampejo ou uma apreensio parcial da verdade. Por meio de confrontagdes com estes outros e sua negatividade, surge uma apreensio mais abrangente do tum on da unicidade que é a verdade. Assim, para Plato, nas asas da dia- lética podemos transcender as muitas imagens da verdade e aprender a utes feramentas 62 argumentacio | 65 forma” tnica das quais essas imagens sio dpias, como ¢ ilustrado em sa farnosa “Linha Dividida” (Republica 532d). Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) sustenta que, embora alguns de nds, indi inseridos na hist6ria, possam alcangar uma compreensio parcial das coisas, “a verdade & 0 todo” (das wahr ist das ganzen). Por conseguinte, pode-se dizer que a dialética visa a totalidade ou a unidade, enquanto fo pensamento “analitico” divide em partes aquilo que aborda. O grande filésofo alemao Immanuel Kant (1724-1804), porém, em sua famosa angumentagio contida na segio intitulada “Dialética transcendental”, em sta obra Critica da razdo pura (1781), sustenta que o pensamento, ao ingressar na metafisica, nfio alcanga a totalidade, a completude e a verdade, mas, em lugar disso, produz apenas ilusGes e conflitos insoli- veis © infindaveis. duos Hegel Hegel, com efeito, foi equivocadamente associado com 0 modelo talvez mais conhecido de dialétiea. Segundo esse modelo, parte-se de tuma “tese” contra a qual se ope uma “antitese”. O resultado de sua confrontacio € uma “sintese” que supera e resolve o aparente conto entre tese e antitese num movimento superior transcendente denomi- nado “superagio” (Aufhebung), resultando numa condigao que é auf- gehoben ou, literalmente, “langado para cima”. SINTESE 1 (superagio) 1 TESE ANTITESE O problema é que Hegel néo usou realmente esse modelo. Ele via a histéria como um processo caracterizado pela oposigdo de momentos negativos assim como momentos aufgehoben de progresso, mas nao formalizou o processo em termos de teses ¢ antiteses. Foi na verdade 0 Hn 66 | As fertamentas dos ilésofos poeta Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759-1805) quem de~ wolveu esse modelo; ¢ outro influente filésofo, Jacob Gottlieb Fichte (1762-1814), foi quem o dese flveu com vigor Materialismo dialético Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) também foram associados a uma maneira de entender a dialética denominada “materialismo dialético”. A expressiio nao foi cunhada por Marx e Engels, ‘mas originou-se com o maraista russo Georgii Plekhanov em 1891. En- gels, porém, caracteriza seu proprio pensamento e o pensamento de Marx como “dialética materialista’, contrapondo-a & “dialética idealista” dos hegelianos. Como os hegelianos, Marx ¢ Engels viam a hist6ria como ‘um processo dialético progressivo impulsionado pelo contlito de opos ‘g6es. Para Marx e Engels, porém, esse processo nao envolve 0 conflito de teorias e ideias, mas o conflito entre classes econdmicas. Desse modo, se para Hegel o resultado do processo dialético é o “conhiecimento ab- soluto” (das absolute Wissen) da totalidade da verdade, para Marx Engels o resultado da dialética material 6 a sociedade perfeita sem clas- ses, que eles descrevem como “comunismo”. Essa ideia foi desenvolvida pelos te6ricns sovieticos Yer também 5.1 A critica de classe Leituras “PLATAo, Republica Jacob Gottlieb FicirrE, A doutrina da ciéncta, 1794-95. Gustav A. WeTTER, Dialectical Materialism: A Historical and Systematic Survey of Philosophy in the Soviet Union, 1973 [1958] 2.4 Analogias Indiscutivelmente, um dos mais famosos textos na histéria da filoso- fia ocidental é a Repriblica de Plato. Embora ele seja muito conhiecido COutras feramentas da argumentacso | 67 pela visio que apresenta de uma ordem politica ideal, os leitores atentos saberlo que o Sécrates de Platio articula sua teoria da polis justa como ‘uma analogia da justiga da alma ou da mente humana (Reptiblica 368b- 369). O texto estd, com efeito, cheio de analogias. Sécrates descreve uuma caverna na qual os homens so mantidos literalmente na escuridao acerca da realidade. Ble descreve uma embarcago de loucos, pilotada nio por alguém com conhecimentos néuticos, mas por aqueles inteligen- tes o suficiente para ganhar poder. Talvez.em virtude de parecer nao poder formular sua concepeao de nenhuma outra maneira, tenta transmitir a natureza da realidade transcendente comparando-a ao sol. Similarmente, 6 fil6sofo medieval Tomas de Aquino (1224-1274) sustentava que, embora sejamos ineapaves de exprimir a natureza de Deus literalmente na lingua- gem, 6 possivel, no entanto, atribuir propriedades como “bom” e “uno” 4 Deus por meio de um processo denominado predicacio analégica. F dificil aprender ideias abstratas tais como verdade ou realidad, mas as pessoas podem facilmente estabelecer conexdes com cidades, bar- cos, objetos celestes e habitantes de cavernas. As analogias possbilitam que envolvamos nossa imaginagio no pensamento filos6fico. Essa é uma das raves pelas quais as analogias sao ferramentas filos6ficas tao ttes Analogias no raciocinio ‘As analogias, naturalmente, t8m muitos usos em nossas vidas. Elas inserem ideias na poesia, na fice, no cinema, na ética, na religiio, no governo e nos esportes. Um de seus mais importantes usos encontra-se no direito, Quando advogados citam precedentes ao defender suas cau- sas, esto recorrendo a argumentos baseados na analogia. Resumidamen- te, esto dizendo: “o caso presente é andlogo a este caso precedente; logo, o tribunal deve tomar agora a mesma decisio que tomou anterior mente”, Seus oponentes legais tentario, evidentemente, mostrar que 0 caso presente no é anilogo ao caso prévio ¢ que, por conseguinte, a decisio deve ser diferente. ‘Também se pode considerar que o raciocinio das ciéncias empfticas faz uso de analogias. Sempre que nos deparamos com um fendmeno novo ¢ 0 explicamos recorrendo a uma lei geral fundada em experiéncias passadas, estamos nos apoiando na hipétese de que o novo fendmeno 6 anélogo aqueles ocorridos no passado. Com efeito, 0 fil6sofo David Hume,

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