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Kurt Baier Egoísmo
Kurt Baier Egoísmo
Extraído de: SINGER, Peter (Org.). A Companion to Ethics. Maiden, Estados Unidos da
América: Blackwell, 2000. pp. 197-204.
I- Introdução
Talvez essa caracterização se adeque apenas aos egoístas crassos e inflexíveis, porém,
qual seja seu nível ou grau, egoísmo envolve colocar o próprio bem, interesse e
preocupação acima daqueles dos outros. Mas isso não parece ser a história toda.
Certamente, não sou egoísta somente porque me preocupo mais com minha própria saúde
que com a sua. Nem meu egoísmo aumenta ou diminui em proporção exata ao número de
instâncias nas quais eu me favoreço em detrimento de outros. Na realidade, o que me faz
egoísta parece depender de alguma característica especial dos casos nos quais o sou.
Adeptos do egoísmo psicológico podem admitir que nem sempre podemos de fato
promover ou mesmo proteger nosso bem maior, pois é possível que nos equivoquemos
sobre qual seria, ou como obtê-lo, ou ainda podemos não possuir a força de vontade
necessária para obtê-lo. Assim, a rigor, o egoísmo psicológico não alega explicar todo
comportamento humano, mas somente o comportamento explicável nos termos das
crenças e desejos do agente, ou das considerações e razões por ele sopesadas.
Mas esta objeção fragiliza o egoísmo psicológico. No lugar de ser uma surpreendente,
de fato chocante, teoria empírica segundo a qual somos sempre egoisticamente motivados
no sentido ordinário de ‘egoísta’, ela simplesmente dá um significado novo e bastante
enganador para ‘motivação egoísta’. Nessa nova interpretação, alguém é egoisticamente
motivado, não se e somente se é motivado a fazer o que for necessário pelo seu maior
bem mesmo quando isso causa dano a outros, mas se alguém faz aquilo que mais quer
fazer, seja isso o que necessário for para seu próprio maior bem ou não, e mesmo se o seu
objetivo for beneficiar outros por meios custosos a si mesmo. Ordinariamente, um egoísta
é alguém que mais quer algo muito mais específico, a saber, promover seu próprio bem,
promover somente interesses próprios, promover o que é melhor para si, satisfazer
somente necessidades e objetivos que dizem respeito a si mesmo. O não egoísta, por
contraste, não quer isso mais que tudo, ao menos não quando isso não é moralmente
permissível. Assim, ordinariamente, egoístas são caracterizados por uma uniforme
predominância da força de seus desejos e motivações voltados para si mesmos, e os não
egoístas por uma força ‘suficiente’ de seus desejos e motivações relacionados aos demais.
A versão atualizada do egoísmo psicológico é, portanto, vazia, uma vez que ‘o que
alguém “mais quer” fazer’ aqui deve significar qualquer coisa que alguém é finalmente,
considerados todos os aspectos, motivado a fazer, por exemplo, doar uma grande quantia
à Oxfam (mesmo quando sente mais vivamente a inclinação de reabastecer sua adega).
Desse modo, neste último constructo, o egoísmo psicológico sustenta que somos todos
egoístas simplesmente porque somos todos motivados por nossas próprias motivações, e
não pelas alheias: mas, nesse sentido, não poderíamos conceber a motivação como sendo
alheia: ela é minha, não da minha irmã, mesmo que, odiando isso, eu acenda regularmente
uma vela do túmulo de nosso pai apenas porque ela o quer.
Deveria ficar claro que este ideal prático – seja ele genuinamente egoísta ou não
– sustenta-se sobre uma premissa factual duvidosa. Pois a remoção dos constrangimentos
legais e morais autoimpostos na busca do interesse próprio provavelmente só promoverá
o bem comum se tais interesses não entrarem em conflito, ou se algo como uma ‘mão
invisível’ tome o lugar desses constrangimentos. Se todos nos apressamos para sair do
teatro em chamas, muitos ou todos podem ser pisoteados até a morte ou perecer nas
chamas. Para evitar ou minimizar a interferência mútua, precisamos de alguma
coordenação adequada de nossas atividades individuais. Obviamente, isso pode não ser o
bastante. Mesmo que formemos linhas bem ordenadas, apesar de ninguém ser pisoteado
até a morte, os últimos da fila poderiam ser apanhados pelas chamas. Assim, nosso
sistema de coordenação pode não ser capaz de prevenir todo mal, e então surge o
problema contencioso de como o mal inevitável será distribuído. No que diz respeito ao
egoísmo como meio para o bem comum, o essencial é que a busca do bem individual não
promove necessariamente, e pode na realidade ser desastroso para, o bem comum.
Me volto, por fim, às duas versões do egoísmo como ideal prático, normalmente
chamadas egoísmo racional e ético, respectivamente. Em contraste com a doutrina
previamente considerada do egoísmo como meio para o bem comum, elas não se
sustentam sobre qualquer premissa factual acerca das consequências sociais e econômicas
de cada de nós promovermos nosso próprio bem maior. Elas defendem, como se isso
fosse auto evidente ou algo sobre o qual as pessoas podem simplesmente decidir por si
mesmas, que promover o próprio bem maior é sempre em conformidade com a razão ou
a moralidade.
Ambos os ideais têm uma versão mais forte e outra mais fraca. A versão mais forte
sustenta que é sempre racional (prudente, razoável, amparado pela razão), sempre correto,
(moral, louvável, virtuoso) ter em vista o próprio bem maior, e nunca racional etc., nunca
correto etc., não o fazer. A versão mais fraca sustenta que é sempre racional, sempre
correto, fazê-lo, mas não necessariamente nunca racional ou correto deixar de fazê-lo.
1
Tradução citada de Butler, J. Quinze sermões. In: Butler et al. Filosofia moral britânica: textos do
século XVIII. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. p. 232.
Junto de outra premissa bastante plausível, o egoísmo racional implica o egoísmo
ético. Esta outra premissa é o racionalismo ético, a doutrina segundo a qual para que uma
obrigação ou recomendação moral seja sólida ou aceitável, seu cumprimento deve estar
em conformidade com a razão. Nas duas sentenças destacadas da esplêndida passagem
do Leviatã que segue, Hobbes sugere tanto o egoísmo racional quanto o ético: “O reino
de Deus se ganha pela violência. E se ele fosse ganho pela violência injusta? Seria contra
a razão assim ganhá-lo, quando é impossível que daí resulte qualquer dano? E se não é
contra a razão não é contra a justiça, caso contrário a justiça não pode ser considerada
uma coisa boa” (Hobbes, 1651, Cap. 15)2. Assim, se aceitarmos a versão fraca do
racionalismo ético – que obrigações morais são sólidas e podem ser aceitas se o seu
cumprimento está em conformidade com a razão – e também aceitarmos a versão fraca
do egoísmo racional – que comportar-se de certa maneira está em conformidade com a
razão se com esse comportamento o agente tem em vista seu próprio maior bem –, então
devemos, por coerência, aceitar também a versão fraca do egoísmo ético – que obrigações
morais são sólidas e podem ser aceitas se, ao cumpri-las, o agente tem em vista seu
próprio bem maior. E o mesmo pode ser dito com respeito às versões fortes.
2
Tradução citada de Hobbes, T. Leviatã, ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São
Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 79.
nosso interesse é moralmente proibida. Assim, o egoísmo ético é incompatível com a
regulação ética de conflitos. Isso permite apenas princípios ou preceitos de autoridade
pessoal: podem me recomendar matar meu avô e ao meu avô que evite ser morto, talvez
que me mate preventivamente em autodefesa, mas não podem, ‘regulativamente’, dizer-
nos qual dos dois interesses deve ceder. Mas é precisamente essa função regulativa que
atribuímos aos princípios morais.
Ora, então deveríamos aceitar o egoísmo ético e, por isso, rejeitar a regulação ética
de conflitos, ou deveríamos rejeitar o egoísmo ético e, portanto, rejeitar também ao menos
o racionalismo ético ou o egoísmo racional? A maior parte das pessoas (filósofos
inclusos) não encontraram dificuldades em escolher entre egoísmo ético e regulação ética
de conflitos, uma vez que muitos deles já haviam recusado o egoísmo ético por outras
razões. Da mesma forma, poucos (filósofos inclusos) quiseram abandonar a regulação
ética de conflitos. No entanto, como notamos, manter a regulação ética de conflitos e
rejeitar o egoísmo ético envolvem renunciar ao racionalismo ético ou ao egoísmo
racional, e muitos consideraram essa escolha muito difícil. Alguns utilitaristas, seguindo
Henry Sidgwick (ver seu The Methods of Ethics, 1874, 7. Ed., último capítulo),
mantiveram a regulação ética de conflitos, o racionalismo ético e o egoísmo racional.
(Mas eles podem conservar o egoísmo racional apenas em sua versão fraca, uma vez que
a regulação ética de conflitos e o racionalismo ético juntos são incompatíveis com o
egoísmo racional em sua versão forte. Pois esses dois, somados ao egoísmo racional em
sua versão forte, implicariam em algumas vezes ser contrário à razão alguém fazer algo
do seu interesse e também contrário à razão não o fazer). Eles sustentam, em outras
palavras, que nunca é contrário à razão alguém fazer o que é do seu maior interesse, nem
é contrário à razão fazer o que é moralmente exigido ou desejável, e que, quando ambos
entram em conflito, fazer qualquer um deles está em conformidade com a razão.
Compreensivelmente, Sidgwick não estava satisfeito com essa ‘bifurcação’ da razão
prática, e igualmente insatisfeito com a única solução concebida: uma divindade que, em
caso de conflito entre o correto e o vantajoso, atribui recompensas adequadas aos justos
e castigos aos aproveitadores, tornando, assim, racional que as pessoas façam o
moralmente correto ao invés do que, não fossem pelas recompensas e castigos, seria do
seu maior interesse. Mas por que deveria uma divindade, sendo ela presumivelmente um
ser racional, atribuir tais recompensas exorbitantes à escolha do moralmente exigido e
tais penalidades chocantes à escolha do próprio bem, quando ambos os modos de agir se
supõem igualmente conformes à razão?
Outra possibilidade seria manter o egoísmo racional em sua versão forte, mas
abandonar o racionalismo ético, desbancando, assim, a razão, monarca entre os
justificadores, do seu antigo trono. Nesse tipo de visão, o fato de fazer a coisa certa ser
possivelmente prejudicial ao interesse de outro e, portanto, contrário à razão, não implica
que alguém possa, muito menos que tenha ou deva, fazer o que é do seu interesse ao invés
do que é moralmente exigido; a conformidade com a razão constitui apenas um tipo de
justificativa, e pessoas ‘decentes’ irão ignorá-la quando ela entrar em conflito com a
justificativa moral. Nominalmente, isso pareceria implicar que a escolha entre o racional
e o moral é questão de gosto, uma escolha comparável àquela entre ser fazendeiro ou
empresário, uma escolha que é apenas da conta de quem escolhe. Porém, muitos estão
convencidos de que há algo mais em ser irracional do que meramente satisfazer um gosto
pessoal (talvez idiossincrático).
V- Conclusão
Quanto a segunda versão, o egoísmo psicológico, o qual, por causa do seu suposto
desmascaramento da natureza humana como menos que admirável, foi consideravelmente
atrativo para os desiludidos, estamos convencidos de sua insustentabilidade. Certamente,
o candidato mais promissor para essas condições, a existência real, se fosse possível, de
um mercado perfeitamente competitivo como definido pelos economistas neoclássicos,
não poderia garantir a realização mesmo da versão econômica do bem comum, a
eficiência. A quarta versão, egoísmo ético, não tem nem mesmo uma plausibilidade
inicial, pois ela exige o abandono ou da moralidade como reguladora de conflitos de
interesses, ou da crença quase certa de que tais conflitos são um fato inescapável da vida.
Se os egoísmos psicológico e ético são falsos, então não há nenhuma boa razão para
rejeitarmos nossa primeira versão de senso comum do egoísmo como uma falha moral
generalizada. Resta o egoísmo racional, a teoria normativa sobre o egoísmo mais bem
consolidada. Mas, nesse caso, o júri ainda está em desacordo.