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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE POS-GRADUAGAO EM LETRAS VISEMINARIO : DOS ALUNOS DA POS-GRADUACAO EM LETRAS DA UERJ Onpanizadores: Dayana Mendes Lopes Felipe Lima da Silva WZ (clras srersas HO DE ANEHRO- RI Zot LUGAR DO CANONE E DA CRITICA NOS ESTUDOS LITERARIOS DA UNIVERSIDADE HOJE Jofio Adolfo Hansen Literatura Brasileira Departamento de Letras Clissicas ¢ Verndculas Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas Universidade de So Paulo Agradego aos caros colegas e amigos Ana Litcia ¢ Roberto © convite para este evento; também ao Felipe Lima, pols providéneias que facilitaram minha vinda ao Rio. Para Ihes falar sobre 0 lugar que o cénone literdrio ¢ a critica ocupam 10s estudos da universidade hoje, proporho que pensemos a ricidade dos modos de definir, produzit, comunicar, consumir e¢ controlar 2 ficgio como pratica simbélica. Evidentemente, so processos _polémicos_ intotaliziveis, por isso o que vou thes falar vai ser parcial, No ensaio sobre “Canon”, publicado em Palavras da Critica, livro de 1992 organizado por José Luis Jobim, Roberto Reis lembrou que o termo grego kanon, que nomeava a vara usada para fazer medidas, entrou para as linguas rominicas significando norma e lei, Por exemplo, desde 0 inicio do 7 Cristianismo, quando tedlogos _selecionaram —_escrituras hebraicas ¢ versdes gregas e latinas delas ¢ as ordenaram como Antigo Testamento, conjunto de livros sagrados em que a verdadeira Fé esti anunciada ¢ latente, ¢ Novo Testamento, conjunto dé livros sagrados em que ela esti revelada e patente, a Biblia foi um livro candnico feito de livros candnicos que contém as palavras da Lei, O teérico da literatura Paolo Fabri conta que, no século XV, os itmios Sozzini, que viviam em Siena, foram contratados para passar a Biblia do latim para o toscano, O inicio do livro do Génesis, “No principio era o Verbo”, foi traduzide por eles assim: “Cera una volta”, “Era ‘uma vez". A Inquisigio italiana os perseguiu por toda a Europa © parece que sé sossegaram quando se refugiaram na sinagoga de Amsterdé. Qual foi o crime deles? Transformaram as palavras da Verdade candnica da Lei de Deus em conto da carochinha, ficgo. Essa estéria divertida indica algo mais sério: a invengio de cfinones nfio se dissocia da questiio do poder, basta pensar que 0 principio de selegdo de textos se acompanha de outro, 0 de exclusfio, complementar. Ambos, selegfio e exclusio, pressupdem e produzem a autoridade, cujo exercicio geralmente se dé mum espago institucional, como o de uma igreja, de um partido politico ¢, no caso da universidade, nos Departamentos de Letras, onde grupos de interesse formam aparelhos 8 ideolégicos ¢ selecionam autores © obras reproduzides com fidelidade mais que canina & autoridade de um Mestre como textos exemplares, perenes, imortais ou ja efernos, constituindo 08 chamados clissicos de uma tradigio local. A. selegio se acompanha da exclusio do que nfo € oportuno ©, como na chamada vida académica as coisas sempre comegam e terminam em pizza, tudo fica natural e naturalizado, Vocés sabem, desde a segunda metade do século XVIIL até pelo menos 1980, a ficgiio, definida como literatura, substituiu a teologia no ensino da escol burguesa dos lugares que se constituiram como nagGes democraticas, ou quase, na Europa e nas Américas, depois da Revolugdo Francesa, das guerras napoteénicas e dos processos de independéncia das colénias. Nesses lugares, a literatura foi um dos principais instrumentos do processo cultural ¢ politico de educagiio ¢ auto- educagaio que os alemies chamam de Bildung, termo que se associa a diversos conceitos, como dar forma, formacio, plasmagao, moldagem, civilizagéo, cultura, educagéo, instrugdo, treinamento, reflexio, auto-reflexdo etc. No Brasilse costuma traduzi-lo quase s6 por formagio, meio rapidamente demais, Em alemio, Bildung foi um termo inicialmente {eolégico, mantendo muitas caracteristicas metaflsicas da teologia quando aplicado ao cAnone iterétio — entre elas, a 9 teleologia da revelagdo progressiva da esséncia ou ideal ou principio que forma ¢ orienta o cfnone, 0 Nacional. Quando a experitneia do passado © a expectativa do futuro sfio doutrinadas pela teologia cristi, entre os séoulos XVI ¢ XVIII, ou quando so pensadas pela filosofia idealista alema, nos séculos XIX, XX e XXI, a presenga do presente inclui-se num conceito teleologico de historia determinado por um principio extra-temporal, Deus ¢ a Providéncia divina, no caso da teologia cristi (@ das letras coloniais luso-brasileiras, que eram catélicas), ea Razio humana, no caso do idealism alemo ¢ da literatira produzida e orientada romanticamente segundo o conceito,de Bildung. Numcasoe noutro, tanto Deus quanto a Razio so postos teleologicamente — ou seja, teologicamente — como origem e fim do tempo, de modo por assim dizer “étimista”, que dé sentido qualitativamente superior aos processos temporais da destruigo sem sentido que é a historia, Assim, 6 pertinente lembrar que, em alemio, 0 termo Bildung refere niio algo jA dado ou conhecido, mas antes 0 tomar-se algo de um processo cultural de plasmagio em continua transformagio através da reflexfo ¢ da duto-reflexio. © termo nomeia antes de tudo a ago de dar forma de um processo intelectual, Como termo que se refere a processos intelectuais, nfio é especifico de nenhuma classe social; em 10 geral, indica os processos de um campo de forgas reflexivo ¢ comunicativo, que tenta integrar no presente uma determinada heranga cultural, artistica, filosdfica e cientifica, propria de determinado povo ou nagio, visando um futuro que, pelo menos em teoria, vai ser melhor ou superior. Dando-se como processo, © conceito de Bildung & incompreensivel sem 0 conceit de Geschichte, histéria, como prope 0 historiador alemio Koselleck. Ou seja, é conceito que s6 se corporifica a simesmo, a0 mesmo tempo ativa e reflexivamente, ma mudanga diacronica. Muitas vezes, como acontece em grande parte dos cursos de literatura brasileira e teoria literéria da universidade que conheco um pouco mais de perto que outras, a USP, onde fui professor durante 30 anos, Bildung significa genericamente © ideal da educago do individuo burgués como cidadio por meio dos valores constitutivos das tradigGes nacionais expressas ficcionalmente numa forma artistica representativa, quase sempre critica de contradigdes sociais, que se inclui dacronicamente no cfinone literitio como exemplaridade de uma das etapas da realizagio do projeto romAntico-modernista, desde 1822, a Independéncia do pais, até 1922, a Semana de Are Moderna, e de 1922 até 0 momento em que sto dados os cursos, que muitas vezes reproduzem, sem mengéo, a armadura do cfnone, estudando obras que 0 constituem sincrénica € 1 diacronicamente. Na quase maioria dos cursos, 0 cfinone no & apresentado ¢ tratado como objeto particular e artificial historicamente construido, mas pressuposto como se fosse uma realidade empirica substancial, naturalmente natural ¢ evidenternente evidente, sobre a qual as obras literdrias se recortam, Como 0 enone é nacionalista, os cursos assim dados reproduzem 0 nacionalismo como curriculo implicto, justamente quando nfio o referem. Neles, 0 conceito de formacdo tende a qualificar 0 processo da educagio, auto- educagio ¢, para falar ecologivamente, auto-cultivo do individu ainda verde como cidadio maduro, algumas vezes no sentido dado por Hegel & nogdio de “eidadio educado”, alguém ‘que conhece os limites da sua competéneia para julgar. falar de todas as obras Obviamente, no & brasikiras de historiografia lite romanticamente 0 cAnone como conjunto progressivo © ¢ rticn que constituiram progressista de expresses do desejo do povo brasileiro de ter ‘uma literatura nacional, Como sabem, as historias literérias brasileiras comegaram a ser eseritas a partir dos Parnasos Brasileiros editados agui no Rio pelo Cénego Jamuario da Cunha Barbosa, entre 1828 € 1832, © COnego dizia que a colegio das melhores poesias dos nossos poetas tinha o fim de tomar ainda mais conhecido no nosso meio literdrio 0 génio de brasiieitos que poderiam servir de modelos ou de estimulo & 12 nossa mocidade que ji comegava a trihar a estrada das nossas belas letras. Nés, nosso, nossos, nossa, nossas: desde 0 século XIX, 0 uso da Ia. pessoa do plural dos pronomes pessoais ¢ possessives em textos de historia © critica lterérias afitma a unidade politica ¢ ideoljgica de uma comunidade que, obviamente, nunca existiu na sociedade de classes brasileira. Esse uso é ideologia, mas, como sabem, as histérias literdrias escritas por autores nacionalistas pressupuseram como marco fundador da sua operagio historiogrifica ¢ critica a Independéncia politica do pais, afirmando como pri critério da selegdo e ordenagao das obi © fato de elas serem expressiio da comunidade da “nossa nacionalidade, como obras representativas do que & “nosso”. A cexpressiio ¢ © conhecimento do que & “nosso” tinham ¢ ainda tam o sentido civiizador de Bildung, formando 0 cidadio brasileiro consciente do passado e das questdes politico- culturais do presente do Brasil etc. Obviamente, 0 projeto romintico de exprimir a nacionalidade pressupunha um conceito particular de tempo hist6rico e conceitos particulares de autor, obra, piblico, valor artistico ete. que, sendo conceitos idealistas ¢ roménticos correspondendo perfeitamente is priticas do seu tempo, niio podem ser generalizados para todos os outros. Desde o século XIX, houve criticos que relativizaram essa subordinagiio da 13 expresso ao nacional, como o Machado de Assis de Instinto da nacionalidade, de 1873, propondo que literatura niio se confuncde com “cor local” Ou o Drummond de alguns poemas de Alguma Poesia, de 1930, como aquele que diz. “f preciso esquecer ‘o Brasil”, ¢ da quase totalidade deles, em Claro Enigma, de 1950, Ou Joio Cabral, que pe 0 romantismo brasileiro de lado ¢ escolhe trés modernos brasileiros com cuja forma dialoga, Joaquim Cardoso, Drummond, Murilo Mendes, ¢ principalmente os versos pedregosos de um espanhol do século XV, Jorge Manrique, os conceitos engenhosos de Quevedo, no século' XVII, e a chamada tradigio transnacional da poesia moderna Mallarmé, Valéry, Pound, Gertrud Stein, Franois Ponge, Lorca ete, Outro grande autor, Guimaries Rosa, estilzou 03 regionalismos linguisticos da regio dos Gerais, sempre descrita com muito realismo, para dissolver quase que totalmente a referéncia regionalista deles no Um puramente ideal e indivel de um Plotino que fala ¢ mistura todas as Tinguas, do esquim6 ao tartaro, situando o grande sertdio naquele espago da hospitalidade incondicional da Weitliteratur, de Goethe. Com a constituigfio do cAnone nacional a partir dos primeiros roménticos brasileiros, no século XIX, © que aconteceu com as obras coloniais produzidas, digamos, entre 1549, data da chegada & Bahia da missio da Companhia de 4 Jesus chefiada pelo Pe. Manuel da Nébrega, e 1822, a Independéncia? Blas eram obras obviamente niio brasileiras, no sentido nacional ¢ nacionalista que o termo brasileiro passoua ter depois de 1822, quando a literatura brasileira se constituiu ordenada pelos prineipios kantianos, hegelianos, comtianos romanticos de uma nova concepgao de tempo histérico, Falo disso brevemente, retomando coisas que falei em outros lugares. Vocés sabem, quando Deus morreu no final do século XVIII, a filosofia iluminista j& havia produzido uma mudanga radical no conceito de tempo histérico. A mudanga consistiu, fundamentalmente, na ideia de que, a partir da Revolugdo Francesa, 0s homens faziam a histéria, que subordinava a si ‘mesma todo 0 tempo como a matéria transformada, Trés ou quatro anos depois da Revolugo, Kant escreveu, no seu livro Aniropologia, que até a Revolugio toda a histéria humana tinha estado incluida no tempo definido metafisicamente, em termos escolisticos, como ente criado por analogia com Deus. A partir do momento em que escreve, afirma Kant, todo o tempo passa a se incluir na histéria, definida como processo apenas humano, No caso das sociodades aristocriticas que a Revolugo Francesa bola sociedades estabelecidas na Europa a partir dos séculos XV © XVI e que tinham durado até o fim do século XVIII, a experiéneia do tempo era definida e orientada metafisicamente segundo pressupostes e enunciados teolégico-polticos, como 15 Jemos em todas as letras portuguesas produzidas nos séculos XVI, XVII € XVIII no Estado do Brasil © no Estado do Maranho e Grito Para, dos textos de Anchieta e Nobrega, no século XVI, aos poemas de Tomiis Antonio Gonzaga, no XVIII. Eram enimciados escolisticos, como o da Identidade eterna do conceito indeterminado de Deus, definido ¢ posto metafisicamente como Causa Primeira ¢ Causa Final da natureza e do tempo, Ambos, natureza e tempo, eram articulados pela analogia e suas trés espécies, atribuigiio, proporsdo © proporcionalidade, pels quais todos os seres criados, do anjo ad mineral, ¢ também todos os tempos, 0 passado, 0 presenté/ e o futuro, eram dados como efeitos da Causa Primera de todos eles, e signos andlogos dele, Coisa realissima, Deus, que os hierarquizava, fazendo todos semelhantes uns aos outros pelo simples fato de todos serem entes criados, segundo o principio Deus para todos, ©, simultaneamente, fazendo com que todos fossem. hicrarquicamente diferentes, segundo 0 principio Deus diferentemente em todos. Quanto ao homem, afirmava-se que tem uma alma criada e dotada do juizo que faz. predicagbes sobre as coisas com signos participados pela luz. natural da Graga inata, que aconselha e orienta a ago visando a salvagéioe a vida etema etc, Esses ¢ muitos outros pressupostos metafisicos compunham as categorias teoligico-politicas que 16 interpretavam a experiéncia do passado e a expectativa do futuro, fazendo o presente ser um momento da revelagiio em que a Presenga divina se evidenciava no tempo como figura profética, Depois da Revolugio, que cortou a cabega dessa metafisica do chamado Antigo Regime ou Antigo Estado, metafisiea que ordena as priticas de representagdo coloniais dos séculos XVI, XVI ¢ histéria como —matériaobjetivamente quantificdvel_ € © tempo passou a incluir-se na transformada pela ago exclusivamente humana, que faz a historia, sem necessidade de Deus. Desde a Revolugio Francesa, a histéria passou a ser entendida como processo apenas humane, processo apenas quantitativo, que subordina 0 tempo a si mesmo como matéria produzida ¢ transformada, estabelecendo um lapso ou intervalo de indeterminago entre a cexperineia do passado e a expectativa do futuro, Na afirmagaio kantiana da Antropologia, encontramos a ideia iluminista de que 0 futuro & totalmente imprevisivel, pois passa a depender de célculos apenas humanos, que tentam quantificar as diversas variéveis do presente para orientar favoravelmente suas temporalidades na direg%io de um futuro contingente donde vem ‘© seu sentido superior, como progresso da razio e superagio dos mals do presente etc, No século XVII, Ant6nio Vieica escreyeu uma Histéria do Futuro, fundamentado na metafisica escolistica ¢ na interpretagtio profética dos livros do Antigo ¢ do Novo Testamentos. Depois da Revolugio Francesa e da obra rulo © género Histéria do Futuro deixaram de ser , OW seja, possiveis e verossimeis, passando a ser coisas do género fantistico. E tipos proféticos como Vieira viraram loucos ou chariatics. Depois da Revolugio, o tempo tem sentido, que néo & mais divino, mas apenas contingente. Podemos dizer, com Walter Benjamin ¢ outros, que afirmar a orientagio teleoligica ele por um principio candnico, como a razio, 0 progresso, 0 nacional, a Bildung’etc.,permanece coisa teologica ¢ metafisica, ‘como quando Deus; estava af. Mas 0 que importa sublinhar & ‘que, desde a Revolugiio Francesa, 0 tempo foi entendido como produto de priticas meramente contingentes, que avangaram, como progrésso liberal, acumulando realizagSes muita barbirie, ou como contradigiio marxista, superando 0 presente com alguma liberdade e muita barbdrie, rumo ao futuro que até ‘ontem era o tempo donde vinha o sentido da histéria. Essa concepglio de tempo histérico derivada da Revolugdo Francesa em suas duas principais versGes, a liberal e 1 marxista, durou uns 200 anos, do final do século XVII até pelo menos 1980, quando o capital novamente revolucionou os meios de produgdio ¢ produziu 0 novo tempo e seu conceito que vvivemos aqui e agora ¢ planetariamente como 0 presentismo, 18 nome com que 0 historiador francés Frangois Hartog classificou 1 duragio indeterminada do presente da troca mercantil que nfo passa e se repete como repetigiio aparentemente sem diferenga do que ji foi chamado de pés-moderno e pés-utépico, caracterizado justamente como tempo do fim do iluminismo ¢ das utopias revoluciondrias. E tempo em que o trabalho negocia sua sobrevivéncia com 0 capital. Nele se vive a simultaneidade do niio simultineo, Nele os que efetivamente detém 0 poder, financistas ¢ bangueiros, abolem as fronteiras nacionais, internacionalizando os fluxos econdmicos ¢ os controls. Nele, tudo, absolutamente tudo é mercadoria, Na cultura e na universidade mais € valor da literatura, das obras do canone, da teoria e da critica literétias 6 precdrio, cada vez menor, muitas vezes nenfum, Em is subordinadas 4 economia neoliberal, 0 2015, 0 cAnone nfio € objetivamente relevante, a nfo ser na reprodugiio também inercial de velhos procedimentos de aparelhos ideologicos. Hoje, a suposta Bildung on formagao dos individaos esti lteralmente determinada pelos valores financeiros de gerentes de bancos e especuladores da bolsa. As condigées préticas para a Bildung do cidadio educado no sentido hegeliano do individuo que conhece os limites da sua capacidade de julgar mais que nunea dependem diretamente do Estado e da classe social, da riqueza e da posig&o de classe dos individuos. Agora, qualquer Bildung & um fator de 19 produtividade sempre dirigido para o lucro. Assim, quando se 1 © anacronismo da manutengdo do cfinone tr Jiterétio nacionalista como objeto naturalizado no ensino universitério, podemos lembrar 0 que dizia Nietzsche no século XIX. Criticando a nogio de Bildung, ele dizia que néio havia nenhum meio efetivo de Bildung real no seul tempo, um tempo de filistinismo, mas s6 uma espéeie de conhecimento e diseurso sobre Bildung (cf. KOSELLECK, 2002). ‘Como vocés sabem, 0 principal historiador da literatura brasileiro, Antonio Candido, retomou 0 projeto modemista, que tinha retomado 0 ptojeto romantico, nos dois volumes do seu livro de histéria litetéria, Formago da Literatura Brasileira, publicado em 1959 e escrito em oposigaio a tese ultra-romantica historicamente insustentavel de Aftanio Coutinho de que a literatura brasileira existe desde a Carta, de Pero Vaz de Caminha, em 1500. Formagdo, ou seja, Bildung, educagio auto-educagZo pela literatura, socialmente formada _¢ pressupondo a organizagfo sistémica de autores, obras c piiblicos, © que ao mesmo tempo forma socialmente a cultura e 0s individuos. ‘A obra de Candido & muito conhecida de todos vocés ¢, aqui, quero referir ¢ comentar muito rapidamente um texto importante, “O CAnone como Formagao” (BAPTISTA, 2005), que o critico portugués Abel Barros Baptista escreveu sobre cla 20 texto foi publicado como introdugio a um livro de textos de Candido que saiu em Portugal logo depois que ele recebeu 0 Prémio Cam@es. Abel lembra que, no comego de Formacao da Literatura Brasileira, Candido escreve que, tendo adotado a perspectiva da nogiio romantica da literatura do Brasil “como expressiio da realidade local ¢, ao mesmo tempo, elemento positive na constr brasileiros no seu desejo de ter uma literatura” (CANDIDO, 1982, v. 1, p. 25). Para especifiear como a literatura brasileira se jo nacional”, o livro ¢ uma “hist6ria dos forma, pressupde uma oposigiio corrente na_historiografia literdria brasileira nas definigdes de literatura: o “universal”, “geral", “cosmopolita” — ou “europeu” — que predomina necessariamente sobre o “local”, “particul “brasileiro”: “Se fosse possivel estabekecer uma lei de evolugio a nossa vida espiritual, poderiamos talvez. dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopoitismo, manifestada pelos modos mais diversos.” (CANDIDO, 1982, v. 1, p.25) Essa dialética de universal europe e particular brasileiro ocorreria principalmente como “integragtio progressiva de experiéncia literdria e espivitual, por meio da tensiio entre 0 dado local (que se apresenta como substéncia da expressiio) ¢ os moldes herdados da tradigfio europeia (que se 21 apresentam como forma da expresstio) ” (CANDIDO, 1982, v. 1, p. 110). Abel demonstra que a. oposigo _localismo/ cosmopolitismo se desloca para a oposigio substdncia/ forma, que implica a possibilidade da sintese e 6 0 niicleo da teoria da formagaio de Candido, Em 1966, ele sintetizou a tese principal de Formacéto da Literatura Brasileira em um ensaio chamado “Literatura de Dois Gumes”, escrevendo sobre uma ruptura estética que teria ocorrido entre o chamado Arcadismo, no século XVIII, e 0 Romantismo, no XIX: [.J esta muptura estética entre os dois periodos lo ied ruptura histérica, pois 0 Romantismo duplo proceso de integiagio ¢ ‘di incorporagiio do geral (no caso, & normas da Buropa) para obter a expr isto é, os aspectos novos que iamsi de amadurecimento do Pais. Esta continuidade © unidade & nossa literatura, como séeuloXIX, (CANDIDO, 1987, p. © que vem pronto “de fora”, lembra Abel, sto normas, formas, recursos de expressfio, adaptados ‘a uma nova substancia, a realidade brasileira. Assim, a literatura brasileira se forma adaptando e integrando o que vem de fora As matérias locais, até atingir o fim ou o té/os inscrito no seu processo de 22 maturagio, o equilibrio de substincia ¢ forma na expressio do novo pais. Por is titulo do ensaio de Candido a formula “literatura de dois gumes”. No periodo colonial, como afirma, a literatura prolonga o dominio colonial: mesmo, lé-se feratura foi de tal modo expressiio da jor, e depois do colono europetzado, a sua posigio de mente para impor Ses a principio poderosas lados. Une eratura, pols, quo do tngula police pode ser encarada como pega eficiente do proceso colonizador. (CANDIDO, 1987, p. 165) Os romfnticos brasileiros negaram a iiteratura “chegando pronta de fora”, ¢ afirmaram a nogdo de literatura como expresstio do pais, Como sabem, devido & auséncia de insttuigdes de cultura, de pesquisa e de ensino, no século XIX a literatura substituiu as ciéncias na investigagao do pais. Por um lado, a invengdio do novo s6 podia ter por objeto o nacional, que exclu o estranho; por outro lado, esse culto do local diminuia a nova literatura, pois a imaginagio ficava limitada ao provineianismo rastaquera dos temas locais. Mas, segundo Candido, 6 ela, a literatura brasileira, e no outra, que nos cexprime: ‘Se nfo for amada, ndo revelaré a sua mensagem; ¢ se 23 nao a amarmos, ninguém o fard por nds” (CANDIDO, 1981, p. Outta questiio, lembra Abel, é a.do comego. A literatura feita como expressiio do pais obrigava a buscar precursores para a afitmagfo “o Brasil ja tem uma literatura independente”. Mas onde teria comegado? Quando teria deixado de ser portuguesa ¢ virado brasileira? Na historiografia Iiteriria brasileira, a resposta para essa questio pressupde 0 modelo historiogréfico do idealismo alemfo, que poe 0 tempo como categoria a priori da sensibiidade, kantianamente, ¢ 0 divide em épocas ou periodos unitirios, ‘sucessivos e irreversiveis, hegelianamente, clasificados cottio Classicismo, Maneirismo, Barroco, Neockassicismo ete. Como diz Abel, a teoria de Candido se distingue pela perspectiva que, por um lado, desloca a questiio do comego a literatura brasileira falando do desprendimento que a autonomiza da portuguesa e, ao mesmo tempo, afirma que a literatura brasileira pertence as literaturas do Ocidente, sem deixar de sublinhar sua condigiio particular, nacional e derivada: A nossa literatura 6 um galho secundirio da portugues, ‘vez umarbusto de segunda ordem no jardimdas Sie, pak puta pricing ou do seo dias proporgées-(CANDIDO, 1981, p 3-10) 24 Por que as figuras organicistas do “galho” © do “arbusto”? Segundo Candido, a literatura brasileira nfo nasce nem comega, nfio exprime de vez.¢ espontaneamente a realidade local, nem evolui em linha reta desde uma origem determindvel, mas ela se forma, Ela vem de fora, de um arbusto portugués de segunda ordem li do jardim das Musas onde, supde-se, deve estar a grande Arvore greco-latina, A metéfora vegetal do galho parece significar que a literatura cresce teleologicamente em dirego a um fim no qual vira arbusto € drvore. O galho se associa & nogdio de Bildung pressupondo o processo temporal no fim do qual esti a forma da Arvore, Essa forma é, ao mesmo tempo, o fim para o qual o processo das transformagées do galho tende naturalmente © o principio que, desde 0 futuro, 0 dirige nessa tendéncia, Ou seja: a teleologia é retrospectiva, feita a partir do modernismo, momento em que 0 galho ja Arvore. O Brasil atua como principio de formagiio: dele vem a definigfio da nova forma completa — madura —; também é dele que vema diregiio da maturagio: a literatura é expressiio do pais € sua formagiio como sistema acompanha a propria formagao dele, sendo, a0 mesmo tempo, expressio © elemento da construpio nacional, Como 0 processo da formagiio é definido pelo seu fim, ele ocorre como “momentos decisives”, cuja chssificago retrospectiva é feita desde a completude da maturidade. Como diz Abel, em nenhum momento a literatura 25 portuguesa se tomou brasileira, deixando de veicular a cultura do colonizadar © exprimindo © novo pais. Candido procura determinar 0 “momento decisive” em. que o galho atingiu as 5 de transformagdio sob influéncia do terreno condigies em que foi enxertado, ou seja, 0 momento em que jé no se tratava de “manifestagSes literérias”, mas de“sistema literdrio”. ‘A “literatura propriamente dita” & um “sistema de obras ligadas por denominadores comuns”, que englobam “caracteristicas internas (lingua, temas, imagens)” aspectos sociais © psicolégicos, “embora iterariamente organizados", se “manifestam histoficamente e fazem da literatura aspecto orefinico da civilizayio”. Como diz Candido: Entre ces se distingueme: a existéncia de umeonjunto de _produtores literirios, mais ou menos conscientes do seu papel, um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de piblico, sem os quais @ obra no um mecanismo transmissor (de modo geral, uma inguagem, traduzida em estos), que liga uns aos outros. 0 conjunto dos ts clomentos dé higar a um tipo de comunicagfo inter-humana, a literatura, que aparece, sob este angulo como sistema simbélico, por meio do qual as veleidades mais profundas do individuo se transformam em elementos de contato entre os homens fe de interpretagio das diferentes esferas da sociedade. (CANDIDO, 1981, p.23-24).! " Todas as expresses entre aspas se encontratn na pagina 23. 26 Antes do sistema nacional, 0 conjunto das obras is & classificado com a nogio de “manifestagdes literirias”. Digamos que as manifestagdes slo 0 galho colonial sem a Arvore brasileira final e, simutaneamente, 0 galho colonial plantado numa terra em que niio é arbusto crescendo metropolitano ou europeu. A manifestagio literdria deixa de ser ssa fantasmagoria nem frango nem peixe quando, no galho, aparecem brotinhos, sim, sim, verde-amarelos, do novo arbusto, agora brasileiro. Segundo Candido, isso acontece em meados do século XVII, com os poetas arcades: Parece-me que 0 Arcadismo foi importante porque plantou de veza literatura do Ovidente no Brasil, gragas aos padres universais por que ele se regia, e que permitiram articular a nossa atividade Iiteréria com 0 sistema expressivo da civilzago # que pertencemos, ¢ dentro do qual fomos definindo lentamente a nossa iginalidade. Note-se que os ércades contribuiram famente para essa definigio, ao contritio do qi costuma dizer. Fizeram, com cconscientes, uma poesia homens de cultura, que cram entiio os d obras. Com isto permitiram que a literatur fin no Brasil. E quando quiseram exprimir as particularidades do nosso universo, conseguiram elevé- las & categoria depuradados melhores modelos. Acredito que, na simples ¢ imediata experitneia cotidiana de seu corpo de brasileiros vivendo no Rio, vocés sabem 0 que sei faz tempo com a experiéneia do meu vivendo 2 ‘em Sio Paulo: todos nds, brasileiros, somos estrangeitos no Brasil E em qualquer outro pais. Quero dizer, de uma perspectiva intermacionalista, que sempre foi a minha, perspectiva que é critica dos nacionalismos, alguém & necessariamente estrangeiro no Brasil e estrangeiro fora dele quando se situa poliicamente como apétridd pertencente a um ‘do lugar intemacionalista, digamos esse que fica logo ali, na fronteira do Paraguai com a Finlandia, Nesse mio lugar internacionalista no existe nenhuma ideia fora do lugar porque todas as ideias esto na simultaneidade de todos os tempos no igo isso lembrando que a constituigio do céinone literétio pressupde'justamente a do particularismo provinciano do lugar da nagiio e do nacionalismo das representagdes consideradas mimeticamente adequadas a cle: literatura brasileira, “dizemos. No curso de Literatura Brasileira da Universidade de Sio Paulo, ¢ suponho que em outros do pats, 0 adjetivo brasileira & efetivamente 0 substantive que nomeia algo essencial, enquanto que literatura, 0 substantivo, & efetivamente o adjetivo, indicando que 0 ficcional da fiegio & secundério ou “ s6 literatura”, como as vezes se ouve dizer, pois ‘0 que realmente importa é a referéneia, a matéria literdria ou, como se diz, 0 real, a realidade brasileira, o Brasil, de que a literatura € documento, Mas por que literatura brasileira ou alemi ou judaica ou turea ou curda, pondo-se a énfase em 28 brasileira, alemd, Por que nao ica, turca, curda? alguém pode perguntar. ratura. mundial ou literatura universal ou, simplesmente, literatura? Porque 0s homens ainda nfo somos livres, Goethe, vocés sabem, falou da W mundial que daria conta do que & genericamente humano ou iteratur, a literatura comum a todos 0s homens de todos os tempos acima das iferengas de suas nagées, linguas, ragas, culturas etc, Em 1952, Auerbach falou de Goethe, dizendo que o nosso planeta, dominio da Weliliteratur, diminuia © perdia a diversidade. A Weltliteratur de Goethe se referia ao que & genericamente humano ¢ comum a todos os homens. O pressuposto da definigdo da sua existéncia como Weltliteratur era justamente fato de a humanidade ser dividida em muitas culturas. A literatura como Wel teratur deveria unit os homens naquilo - & por meio daquilo - que € comum a todos eles, a divisio deles, (ou seja, 0 fato de todos terem em comum o fato de pertencerem a culluras ¢ a linguas que os separam. Vooés falam urdu ou uirguiz? O que so a lingua portuguesa ¢ a literatura brasileira para quem fala urdu? A fiatemidade universal acima de todas as divisées étnicas, culturais, polticas pressupde justamente essa divistio e essa falta de comuicagao. Isso seria possivel? Era utépico no tempo de Goethe e em 1952, quando Auerbach falou de Goethe; hoje, em 2015, continua sendo e, como 29 acredilo, mais que nunca parece cada vez mais impossivel, pois ‘6 que vemos mundiaimente é a gigantesca regresstio politica da universalizagdo do particular e a barbirie de acreditar que a minha religiio € a melhor, que a minha raga ¢ a melhor, que a minlia patria 6 a melhor, que a minha sexualidade é a melhor, ‘que a minha cultura é a melhor ete. ete, Literatura brasileira, falamos. O termo literatura nos remete a um regime discursive, a ficgao; brasileira situa ¢ particulariza a fiogio no espago-tempo histéricos de uma nagio que existe como tal desde a Independéncia, em 1822, faz 193 anos, definindo fiegiio como representacolexpressiio/documentago do tipico, 0 brasileiro, caracteristico do local. Pensando em alguns romancistas brasileiros candnicos, bseria possivel a gente ler Guimaries Rosa, Graciliano, Machado, Alencar, por exemplo, s6 como ficgfio, descartando a historia brasileira das matérias sociais que slo transformadas nas estérias que eles contam nos seus textos? Essa é uma bela questiio que o eritico portugués Abel Barros Baptista faz. no seu livro Trés emendas. Ensaios machadianos de propésito cosmopolita, publicado em 2014 pela editora da Unicamp. Abel repete a questo de um critico norte-americano, Michael Wood, da universidade de Princeton, perguntando se & possivel ler Machado de Assis sem se interessar pelo Brasil do tempo de Machado de Assis. Deve ser evidente que, sendo 30 ficgfo, a literatura ndo é documento. Se for, é documento do € regime discursive verossimil, que néo trabalha com verdades, mas com o possivel? A questio feita por Abel, retomando a questiio de Michael Wood, pressupée o propésito cosmopolita da Weltliteratur, que na nogio modema de literatura reafirma a concepedo politica visionétia da abertura de um espago de hospitalidade incondicional. Abel tem cuidado de dizer que nio se trata de um espago superior ¢ resttito, para onde seriam cooptados alguns poucos afortunados pela Unesco ‘ou pelo sucesso comercial, formando uma espécie de cinone supra nacional ou literatura internacional. Ou seja, nao se trata de um espago homogéneo, universal, sem fronteiras, sem conflitos, onde o espitito vagueia livre; nem é espago esseneial de onde derivam todos 0s espagos, mas & 0 espago que no impde limites e condigées 4 entrada e a permanéncia do estrangeiro, que é aquele que nio pode deixar de ser reconhecido e de se reconhecer a si mesmo como estrangeiro, ou soja, todos nds, em qualquer parte, ‘Nos estudos politicamente 0 pri propésito cosmopolita definiria ico que orientaria a nossa aproximagio de qualquer texto com a ideia de que aquilo que pode haver de emancipador na nogiio de literatura é justamente pressupor que cada texto de ficgio foi escrito prevendo estrangeiro que um dia iria 1é-lo e que estaria capacitado para 31 lé-lo porque seria capaz de marcar os limites da sua prépria incompreensio, mas sem nunca perder de vista o privilégio de partihar de um espago onde a hospitalidade seria incondicional E incondioional porque 0 estrangeiro e nés que o recebemos com hospitalidade temos um ponto em comum, o de sermos todos estrangeiros em nossos paises ¢ em tédos 0s outros. Abel afirma algo politicamente fundamental: o fundamento da hospitalidade no a chamada natureza humana, nem alguma ideia genérica de hnmanidade, mas uma ideia politica de literatura definida precisamente pelo propésito cosmopolita, ‘Abel propée que outro nome para essa concepgio de literatura podia ger tradugGo, A’ ideia da literatura como hospitalidade incondicional e tradugdo poe de lado 0 universalismo que elimina as linguas © as diferengas das Iinguas; também poe de lado 0 nacionalismo.da lingua que tem a pretensiio de afirmar a existéncia de um nicleo essencial impossivel de ser traduzido nas outras. A literatura € a linha que passa entre esses dois polos, fazendo cada um de nds ser um estrangeiro em relagio a ela e ao estranhamento que ela produz. e, a0 mesmo tempo, fazendo cada um de nds ser um estrangeiro partifhando um espago comum de hospitalidade incondicional com os outros estrangeiros, provavelmente um espago de hospitalidade onde todos sio familiares porque todos sio estrangeiros. 32 Na USP, o curso de Literatura Brasileira hoje reproduz © cAnone modemista-roméntico nacionalista, mas com uma infidelidade ao modelo de Candido, Como sabem, Candido pie fora da Bildung da literatura Brasileira os séculos XVI e XVII, classificando 0 chamado “Barroco” como manifestagao lteréria ¢ fazendo a literatura brasileira comegar com os poetas arcades mineiros ¢ cariocas do século XVII. No curso de Literatura Brasileira da USP, hoje também o século XVII é manifestagao e também virou fantasma, O processo dessa Bildung comegou faz algum tempo. Em 1989, publiquei um livro sobre a sitira atribuida a Gregério de Matos criticando idealismo roméntico-positivista das interpretagdes brasileiras dela. Em 1991, recebi convite dos professores Dirce Cértes Riedel e Luiz Costa Lima para vir UERJ dar um curso de Pés sobre 0 livro, o que fiz, Em 1993, imediatamente depois que voltei da Franga onde tinha estado na EHESS de Paris convidado por Roger Chartier a fazer semindrio sobre o livro, numa reunido da area de Literatura Brasileira colegas decidiram transformar a disciptina de Graduagio Literatura Brasileira I- Coldnia, entio diseiptina obrigatéria, numa optativa, Literatura Brasileira V, que passou a ser dada no titimo semestte do curso, no 4o, ano. O argumento dos colegas era 0 de que os alunos que entio ingressavam na USP eram incapazes de ler e entender textos dos séculos XVI, 33 XVII e XVIIL Eu e um colega, Alfredo Bosi, dissemos que provavelmente também niio entenderiam os textos de Latim Grego © Sinscrito, que em geral so um pouquinho mais antigos. Mas fomos voto vencido e os colegas transformaram a isciplina numa optativa, Vocés sabem, as optativas tém um destino, 0 desaparecimento. A disciptina passou a ser feita por tum nimero muito baixo de alunos, Nos tiltimos 20 anos, a cada ano ingressam cerea de 800 novos estudantes nos cursos de Letras da USP ¢ Literatura Brasileira & disciplina obrigatéria para todos. Mas, em Literatura Brasileira V, desde que foi transformada em ‘optativa, houve turmas de no méximo 20 alunos, duas no miatutino, duas no noturno, as vezes uma em cada periodo. Isso teve efeito imediato na Pés-Graduagao, onde os estudos sobre as etrascoloniais—diminuiram substancialniente e quase terminaram , como esparsas manifestagdes. Desde 2012, a disciplina optativa deixou de ser oferecida. Hoje, nenhum dos professores da Literatura Brasileira da USP, ¢ siio mais de 20, estuda as letras coloniais, Desde 1993, a transformagio da disciplina em optativa produzin objetivamente a inexisténcia e o desconhecimento das letras dos séculos XVI, XVII e XVIII, 0 que reproduz a posigio romintico-rmodemista sobre Portugal. Portugal, paisinho desimportante, como dizia um nacionalista, Mario de Andrade. 34 Desde que o curso de Literatura Brasileira I-Colénia {oi transformado na optativa Literatura Brasileira V, o curso de Literatura Brasileira comega no Jo, semestre com Literatura Brasileira 1, Modernismo de 22; continua com Literatura Brasileira Il, Modernismo de 30-45, no 2o. semestre; segue-se Literatura Brasileira III Romantismo, no 30, semestre; termina-se com Literatura Brasileira IV- Realismo, no quarto semestre. A optativa Literatura Brasileira V deixou de exist. Ainda hi Literatwa Brasileira VI, sobre literatura contempordnea, embora a definiglio de “eontempordneo” no seja chra. Esse Hegel cubista do curriculo trifisico pde a sintese moderna do cfinone antes, provavelmente porque, como no verso metafisico de T.S. Eliot, “no meu fim esté meu principio”; em seguida, ndo sei se isso é dialético, retorna-se & {ese romantica do canone, e, depois, com Machado de Assis, marca-se a antitese critica do romantismo, propondo- como 0 autor mais nacional de todos, pois sua obra inverte a inversio das ideias fora do lugar efetuada pelos romanticos, pondo 0 lugar nas ideias nacionais ordenadas estruturalmente pelo favor. Ou seja: a sintese modemista, como realizagiio final do proceso nacional-nacionalista, vem antes, com Mério de Andrade e Bandeira ¢, bem mais raramente Oswald de Andrade; depois Graciiano Ramos ¢ Drummond, as vezes algam Mauro Mendes, mais Joio Cabral, depois Guimariies Resa ¢ Clarice 35 Lispector; depois dos 2 semestres, 0 modernista de 22 ¢ 0 moderno de 30-40, os estudantes vio ler Alencar e Manuel de Almeida mais as trés etapas hegelianas da poesia a, Gongalves Dias, Alvares de Azevedo e Castro ‘Alves; finalmente, como, apesar de serem naciot rominticos estavam fora do lugar, represeritando ideias liberais francesas que nilo refletiam adequadamente a infraestrutura do pais escravista, vem a antitese representada por Machado . Ele inverte as inversOes romAnticas © poe a nu a estrutura do favor ‘que rege as relagbes socinis do Brasil desde o século XVI. Ou seja, inolui e supeta todo 0 passado colonial; ao mesmo tempo, ‘como jnyenta umd forma tragicémica nova e modema, abre-se para o moderno, ji € moderno, © constitui 0 cfnone, sociologicamente definido, A posse da verdadeira interprotagio de Machado garante o controle de todo 0 cfinone. Quanto aos autores coloniais, nao existem, obviamente, porque no so nacionais, Ou existem com algum espiritismo quando se manifestam em manifestagdes que, provavelmente por mediunidade, so ectoplasmas do Fantasma-que-anda do Nacional. Manifestagdes, nem carne nem peixe: Gregorio de Matos ¢ manifestagiio e se manifesta assim como se manifesta Anténio Vieira, Os dreades mineiros ¢ cariocas do século XXVIII, postos como origem do cAnone, formaciio pelo simples fato de terem se dedicado as letras numa 36 teriam um projeto de coldnia iletrada. Apesar das evidéneins histérieas de que foram poetas néio-rominticos do Antigo Estado portugues, so entendidos como origem do cAnone. Mas nfo sito estudados. Como a disciplina Literatura Brasileira V ¢ optativa no ‘mais ministrada no curso de Graduagio de Literatura Brasileira, nenkum autor colonial e nenhuma obra colonial constam da lista dos pontos da prova de selegiio que os candidatos ao mestrado e ao doutorado em Literatura Brasileita tém que fazer, A lista de pontos comega em Alencar e Gongalves Dias. Dos cerca de 800 akmos novos que anualmente ingressam nos cursos de Letras da USP, eram muito poucos os que faziam a disciplina optativa de Literatura Brasileira V, quando era dada, Hoje, nenhum. Logo, hoje a totalidade deles se forma em Literatura Brasileira sem terem informagéo de que por aqui houve uma colonizagio portuguesa € algumas letras trazidas daquele jardim das Musas nos séculos XVI, XVII e XVIII cujo conhecimento & necessdrio ou assim deveria ser para entender também os processos nacionalistas dos séculos XIX, XX e XI. Como nenhum autor ¢ nenhuma obra existem na lista de pontos da prova da Pés, também nfo hé mais alunos propondo projetos de estuclo sobre as coisas coloniais. Mas por que falo disso? Me desculpem perder seu tempo com esses provincianismos de Sio Paulo, Mas a naturalizagio do enone romintico-modernista-nacionalista faz 0 curso de Literatura 37 Brasileira da USP um lugar contririo 4 Weltliteratur de Goethe © hospitalidade de que fala o Abel Barros Baptista. Como reduto anacrinico da Bildung, que deixou de existir desde a + década de 1980, 0 apagamento de uns 320 anos de referéncias Coloniais inclui-se objetivamente nos processos de naturalizago do cfinone nacional como ideologia nacionalista.” Referencias BAPTISTA, A. B. O cAnone como formagio. In: (org). 0 direito @ literatura e outros ensaios. Angelus Novus: Portugal, 2005, CANDIDO, A. Formiicdo da Literatura Brasileira, 6. cd., Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, vol, 1. . A Educagito pela Noite & Outros Ensaios, 1987, p. 179, . REIS, R. CAnon. In; JOBIM, José Luis (org). Palavras da ‘a. Tendéncias ¢ conceitos no estudo da literatura. Rio de Imago, 1992. p. 65-92, KOSELLECK, R. ‘The anthropological and semantic structure of Bikdung. In: The practice of conceptual history. Timing History, Spacing Concepts. Tradugaio Todd Samel Presner and others, Stanford, Stanford University Press, 2002, 38

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