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A FEIRA

dos MITOS
ocultar suas condições de produção ou seu lugar social. Antes, têm
ganas de explicitá-los, apesar de saberem da impossibilidade de
discursos plenos. Constroem-se como estratégia, movimentam-se
como peça de jogo nos enfrentamentos do devir social-histórico.
Para além de tentarem alcançar supostas verdades do passado ou
iluminações do futuro, trazem a marca da necessidade gestada
nos desafios contemporâneos mais decisivos. A feira dos mitos: a
fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste, 1920-1930),
de Durval Muniz de Albuquerque Junior, que o leitor tem em
mãos, é uma dessas obras. (Regina Horta Duarte)

( ISBN 978·8s.64586·53~ I
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

A FEIRA
dos MITOS
A FABRICAÇÃO DO
FOLCLORE E DA
CULTURA POPULAR
........__

(NORDESTE 1920-1950)

1nt<:rmE." ior
CASA DE ARTES ELIVROS
Editora Intermei as
Rua Luís Mural, 40- Vila Madalena
CEP 05436-050- Silo Paulo - SP- Brasil
Fone: 2338-8851 - www.intermeioscultural.com.br

A FEIRA DOS MITOS: A FABRICAÇÃO DO FOLCLORE E DA
CULTURA POPULAR (NORDESTE 1920-1950)

© Durval Muniz de Albuquerque Júnior

1' edição: junho de 2013



Editoração e/elrónica, produção Intermeias- Casa de Artes e Uvros
Revisão lntermeios- Casa de Artes e Livros
Imagem da capa A feira, Tarsila do Amaral
Capa Rai lopes


CON SELHO EDITORIAL
Víncent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D'Aiessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amâlio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar}
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar}
llana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morares (U ESC/NEPAB)
lzabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS)
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação- CIP

A345 Albuquerque Júnior, Durval Mun1z de.


A feira dos mitos: a fabricaçlio do folclore e da cultura popular (nordeste
- 1920-1950} I Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Apresentação de Regina
Horta Duarte. - São Paulo: Intermeias, 2013.

246 p. : 16 x 23 em.

Vencedor do concurso Silvio Romero 2012 - lphan!Conselho


Nacíonal do Folclore e Cultura Popular

ISBN 978-85-64586-53-6

1. História. 2. História do Brasil. 3. História Cultural. 4. História Social.


5. Mitologia. 6. Folclore Nordestino. 7. Cultura Nordestina. 8. Historiografia.
9. Nordeste. I. Titulo. 11. Fabricação do folclore e da cultura nordestinos. 111.
Nordeste 1920-1950. IV. Uma História para o presente. V. Duarte, Regina
Horta. VI. Intermeias- Casa de Artes e Livros.
CDU 981:39
CDD 981

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino


Vencedor do concurso Silvio Romero 2012
Iphanl Conselho Nacional do Folclore e
Cultura Popular
SUMÁRIO

11 Agradecimentos

13 Uma história para o presente


Regina Horta Duarte

19 Introdução

39 Capítulo 1: Condições históricas de emergência

71 Capítulo 2: Mitos de origem

91 Capítulo 3: Acontecimentos

119 Capítulo 4: Os inventores: um ensaio de prosopografia

163 Capítulo 5: As fontes

177 Capítulo 6: Os agentes populares

225 Considerações finais: A síndrome do resgate

235 Bibliografia
Agradecimentos

Tendo vivido minha infância numa isolada fazenda do Cariri paraibano,


lembro que a ida à feira de Campina Grande, em alguns sábados, saindo pela
madrugada, em cima de um caminhão, em que se apinhavam desde gente
até porcos e galinhas, era o único momento em que tinha contato com um
mundo mais vasto e fascinante e, ao mesmo tempo, amedrontador. Nunca me
saíram da memória aqueles cafés da manhã tomados em pequenas pensões,
em que prostitutas serviam como garçonetes e eram objeto de assédio e de
desejo da grande quantidade de fregueses que vinham de todos os arredores.
Esses foram meus primeiros contatos com --..... o erótico. Na primeira vez em
que morei nessa cidade, para estudar, era para a feira, próxima ao colégio,
que fugíamos durante os intervalos, para lanchar e admirar a variedade
de pessoas que aí circulavam. Anos mais tarde, adolescente, me tornei um
feirante, vendendo os queijos que o meu pai produzia em sua fazenda.
O primeiro agradecimento, que queria expressar neste livro, é a todos os
homens e mulheres com quem convivi nesse espaço, eles me marcaram
indelevelmente, e este livro, desde o seu título, lhes faz uma homenagem. E,
por extensão, à minha cidade natal, aquela que trago na alma, a cidade que
se quer rainha da Borborema e se diz, sempre, Grande. Aquela que, segundo
Gilberto Gil, sempre teve mania de ser Nova York.
Mas este livro nasceu do encontro com outra cidade, paixão à primeira
vista, até porque se quer noiva do sol, a bela Natal. Sempre que, no primeiro
ano em que aí morei, tomava o ônibus pela manhã, e ele percorria a avenida
à beira mar, ficava pensando no privilégio que é morar num lugar onde se
pode contemplar uma paisagem como aquela, logo ao amanhecer. Nela
encontrei pessoas que vieram a se tornar amigos queridos e generosos, que me
acolheram com simpatia e carinho, fazendo mais doce meu desterramento:
queria, por isso, agradecer a Almir Bueno, Helder Vianna, Wicliff Costa,
Raimundo Nonato Araújo da Rocha, Aurinete Girão, Raimundo Arrais,
Fátima Martins Lopes, Alípio de Souza, Márcio Valença, Márcio Paraguaçu,
Antônio Eduardo de Oliveira, Magda Dimenstein, Edmilson Lopes,
Terezinha Petrúcia da Nóbrega, Maria do Livramento Miranda, Ângela
Araújo Ferreira e Bruna Rafaela de Lima.
Com a criação do Programa de Pós-Graduação em História, na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, passei a ter a sorte de receber,
para orientação, jovens pesquisadores de muito lalento e que vieram a se
tornar amigos e parceiros de minhas aventuras intelectuais, tenho orgulho
de cada um dos trabalhos que fizemos juntos: Leonardo Ventura, André
Gustavo Paz, Elson de Assis Rabelo, Francisco Firmino Sales Neto, Edianne
dos Santos Nobre, Rosenilson da Silva Santos, Arthur Luís Torquato, Bruno
Balbino Aires da Costa, Felipe de Souza Leão e Kaliana Calixto Fernandes.
Discutindo seus trabalhos, surgiram muitas das ideias presentes neste livro.
Mais do que agradecer, quero oferecer este livro à memória do rneu
querido pai, que me deixou no ano passado. A meus irmãos e sobrinhos.
Principalmente a Lucas Albuquerque que, para enorme orgulho do tio,
resolveu também ser historiador. A todos os amigos e colegas, espalhados
por todo o Brasil, de quem tenho recebido inúmeras demonstrações de
carinho e generosidade. Vocês todos são vozes indispensáveis na feira da
minha vida, são presenças que não têm preço. Enumerá- los aqui, felizmente,
seria impossíveL
Quero agradecer a Daliana Cascudo e Ana Maria Cascudo que, tornando
público e acessível o acervo de Luís da Câmara Cascudo, permitiram que
este livro fosse possível. Obrigado pela simpatia e carinho com que sempre
fui tratado, desde o primeiro momento.
Agradecer o apoio institucional da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, que demonstrou apreço pelo meu trabalho, desde o momento
de minha transferência, notadamente à pró-reitora de pesquisa, minha
conterrânea, Maria Bernadete de Souza, pela simpatia e calor humano.
Por fim, agradecer ao CNPq, sem o apoio do qual esta pesquisa seria
impossível. Uma bolsa de produtividade em pesquisa, bolsas de iniciação
científica e recursos de editais tornaram este livro viável.
Uma história para o presente

Alguns livros de história se voltam para o passado com a intenção de


descobrir "o que exatamente aconteceu': Suas páginas se pretendem janelas
através das quais o leitor seri a transportado ao tempo dos mortos, quem
sabe assim aplacando a angústia de sua própria finitude. Obcecada em ser
mestra, essa escrita cultiva a ilusão da verdade e tenta explicar o presente
como resultado lógico do encadeamento de fatos e processos. Outras obras
de história se dirigem predominantemente ao futuro, desejosas de ditar
diretrizes de ação. Anseiam saber de antemão o que ocorrerá, ou definir o
que deverá acontecer. ---...__
Para nossa alegria, há livros de história escritos para o presente.
Anunciam em viva voz que sua matéria é a vida e os homens presentes.
Assumindo-se como prática de seu tempo, não cogitam ocultar suas
condições de produção ou seu lugar social. Antes, têm ganas de explicitá-
los, apesar de saberem da impossibilidade de discursos plenos. Constroem-
se como estratégia, movimentam-se como peça de jogo nos enfrentamentos
do devir social-histórico. Para além de tentarem alcançar supostas verdades
do passado ou iluminações do futuro, trazem a marca da necessidade
gestada nos desafios contemporâneos mais decisivos. A feira dos mitos: a
fabricação do folclore e da cultura (Nordeste, 1920-1930), de Durval Mun iz
de Albuquerque Junior, que o leitor tem em mãos, é uma dessas obras.
No âmbito da consistente e preciosa contribuição historiográfica já
realizada pelo autor em seus muitos livros e artigos, A feira dos mitos dialoga
intensamente com A invenção do No rdeste, cuja primeira edição data de 1999.
Nesse texto, Durval demonstrou a construção histórica da idei a de Nordeste,
incursionando pela literatura, pintura, música e teatro, entre outras fontes.
Duas grandes correntes convergiram na invenção dessa poderosa categoria
de identidade da região. Uma delas apegava-se ao passado, à saudade, à
conservação. Outra ansiava pelo futuro e pela revolução. Entretanto, apesar
das diferenças, ambas partilharam a idealização da verdade, a negação do
tempo e o reforço do discurso nacionalista. Nosso autor corajosamente
questionou essas tradições, que incluem ícones de nossa intelectualidade,
e inaugurou maneiras inéditas e ousadas de pensar, pesquisar, ver e dizer
'nordeste'.
Mais uma vez, Durval nos instiga a duvidar de discursos que se
cristalizaram no senso comum e parecem justificar-se por si sós como se
fossem necessariamente defensáveis, submetendo -nos ao que é coletivamente
classificado como 'bom: O folclore expressa as nossas mais genuínas raízes e
nos conduz a um passado autêntico, contraposto a nossa contemporaneidade
fugidia e vazia de valores? É tarefa de o governo estimular e financiar projetos
que recuperem as formas mais primordiais da cultura popular, para que se
garanta sua reprodução em rituais, modos de fazer, manifestações e festas
folclóricas, salvando a identidade de nosso povo? A cultura nordestina é
uma das mais fiéis expressões das tradições históricas de nosso passado e
precisa ser salva antes que desapareça, levando consigo a essência de nossa
memória? Respostas afirmativas a essas perguntas parecem absolutamente
naturais, óbvias. Mas o autor alerta, armado com seu senso de humor: quem
resgata é bombeiro, ou socorrista do SAMU. A "síndrome do resgate" nos
aprisiona ao passado, nos escraviza à ideia de verdade total a ser recuperada
e à busca de uma pretensa essência do popular.
Inicialmente essa ânsia era cultivada num meio mais restrito de
folcloristas, antes identificados como conservadores pela intelectualidade
de esquerda. Eis que a valorização incondicional do resgate do 'popular'
invade as práticas culturais mais diversas, incluindo as acadêmicas, e ganha
estatuto de tarefa libertadora e indispensável para afrontar o elitismo de
nossa sociedade. O elogio romântico do povo e de sua cultura seria apenas
uma atitude inocente se não reforçasse - por vezes não intencionalmenle
- relações de poder e interesses arraigados na construção desses mitos de
origem. Essa constatação se desdobra em perguntas colocadas e debatidas
com perspicácia: a q ue interesses serviu a invenção do folclore e da cultura
popular nordestina? Que regimes de produção da verdade possibilitaram
a emergência dessas categorias? Qual a proveniência histórica desses
discursos?
Para desenvolver seus argumentos, Durval pratica sofisticadas
operações teóricas e nos lembra de que - sim! - a história não se faz sem
teoria. Negá-la induz apenas a um manejo heterônomo da massa documental
e de informações, e nos torna incapazes de distinguir tudo o que já nos
chega conceituado desde o passado, levando-nos a reforçar mitos e endossar
origens dadas de antemão. A escrita da história sem teoria é como a decisão
de um neurótico que se nega à análise, na ilusão de que isso o livra da ação
do inconsciente. O desejo de autonomia delineado na escrita de Durval não
se propõe como estado a ser alcançado no futuro, mas como estratégia ativa
a ser constantemente recriada. Conhece seus limites, sabe das incertezas
integrantes da experiência da vida, mas aposta na reflexão ousada e sem
barreiras como tática para 'mudar o jogo:
Não obstante ser indispensável para a escrita da história, a teoria se
exerce mal quando alheia ao acontecimento. A feim dos mitos resulta de
uma minuciosa pesquisa documental, que inclui livros, escritos biográficos
e memorialísticos, bibliotecas, marginálias e sublinhados de intelectuais
ilustres, prefácios e apresentações, jornais e revistas, correspondências
pessoais. O autor visita atenciosamente também as fontes dos folcloristas -
obras de literatura, folhetos de feira, informantes populares, canções, relatos
policiais.
Por meio da história dos conceitos, Durval desnaturaliza os nomes
pelos quais as 'coisas' foram chamadas, demonstrando os deslocamentos do
sentido de palavras como nordeste, nordestano, nordestino, cultura popular.
O leitor é brindado com uma análise magistral das camadas de sentido
sobrepostas por diferentes edições das obras fundadoras do folclorismo,
com a criação e projeção de identidades em direção ao passado, numa
verdadeira invenção de tradições. A sagaz atenção dispensada a detalhes
que facilmente poderiam passar despercebidos - subtítulos acrescentados,
mudança de palavras, supressão de trechos - fornece uma chave estimulante
para a interpretação do reenquadramento espacial e conceitual no qual
o Nordeste foi inventado, entre outros alributos, como espaço de cu ltura
artesanal, autêntica e folclórica.
O livro joga por terra muitos pressupostos estabelecidos sobre a
pretensa inocência do folclorismo ou sobre os atributos românticos da
cultura popular. A genealogia do discurso folclorista o evidencia como
prática política de uma elite monárquica, senhorial e oligárquica. Entre os
mediadores populares não havia uma relação igualitária ou paternal, pois o
que habitualmente se classifi ca como 'povo' envolveu pessoas em condições
muito diversificadas em complexas relações de poder. Os bens culturais ditos
populares eram produzidos, já nos anos 1920 e 1930, segundo a lógica de
mercado, e sua valorização e sucesso dependeram do crescimento das cidades
e da emergência de novas sensibilidades, cujas condições de possibilidade
surgiam exatamente da vida urbana. Mesmo os folhetos de fei ra não eram
inicialmente pendurados em cordéis (pasmem!), mas Silvio Romero os quis
assim descrever e nomear para estabelecer uma continuidade com costumes
portugueses. Todas essas questões incitam o leitor a abandonar suas certezas
e exercitar seu pensamento pela dúvida radical.
Cansada de estereótipos que teimam em permanecer, de uma cultura
nordestina lamentada como moribunda, mas repetidamente reforçada,
a escrita histórica de Durval desenha o horizonte de contextos de criação
cultural livres das amarras e dos moldes paralisantes do folclorismo e da
idealização da cultura popular.
O reconhecimento da obra pelo IPHAN e pelo Conselho Nacional do
Folclore e Cultura Popular com a atribuição do Prêmio Silvio Romero deixa
entrever um panorama cultural desejoso de mudança. O livro de Durval
nos surpreende, mas ao mesmo tempo diz coisas que ansiávamos ouvir.
Impertinente, provocativo, necessário- tudo isso se pode dizer de A feira dos
mitos, que se lança como peça estratégica na construção de novos regimes
de verdade e de diferentes relações de poder. Satisfaz o leitor sequioso por
outras palavras e novos sentidos. Provoca a alegria de sentir que o gozo e a
criação estão reservados a nós, que estamos vivos, se soubermos aproveitar
as oportunidades que surgem em cada 'agora'.

Regina Horta Duarte


Belo Horizonte
Ca rnaval de 2013
Dia de Feira
THÉO B R ANDÃO

Dia de sábado,/ Dia de feira


A praça do mercado cheinha de gente!! As barracas de venda
Com as lonas estendidas no sujo do chão/ As tendas cobertas de peri-peri.
Sol./ Poeira!...
Suor, grilaria./ O povo chegando,
O povo falando,/ Zum, zum, zum, zum ...
Cavalos com caçuás carregados/ De mercadorias
Ma tutos montados em cima da cangalha,/ Mulatinhas criadas,
Com a cesta de compras no braço! justando o preço
Dum frasco de brilhantina/ Com o homem do bazar de miudezas!
Moleques senvergonhas,/ Soldados de polícia,
Gente do mato, gente da rua,/ Gente que compra
Gente que vende! E gente que não faz nada!
Rolos de fumo,/ Gamelas de pau
- Oie as.fruitas gostosas/ do meu país!
- Oie a laranja Tangi!.../ Cajá, cajarmw, imbu,
Melão, melancia! jabuticaba madura,/ Eita quanta fruita boa!
- Oie a jaca de Barro Branco!.. ./- Oie a pinha da "Parmeira"!...
-A h!, imbusada gostosa./ Sacos de farinha de mandioca,
De feijão, de milho,/ Panelas de barro,
Urupemas, abanos de palha,/ Vassoura de piaçava
-----..
- Quero não qui tá caro/ Pela hora da morte!
- Oie qui trum-dum-dum dos diabos./ Que foi, que não foi
O soldado tomou a faca de pontal Do cabra valente!
Tapioca quentinha! Feitinha na hora,
Cocada de Joana Doceira,/ Rapadura batida,
Macaxeira, ilrhame,/ Que jerimum danado de grande!
"Donos" da rua/ Com chapéu de sol armado
"Que verão danado/ Nem um liquinho de chuva
Inté parece castigo de nosso padrim/ Padre Cirço".
Poeira,/ Suor,
Calor, grilaria,/ Eita, fuzuê dos infernos
Feira de Viçosa,/ Dia de sábado
Na Praça do Mercado.'

I. "Dia de Feira': poema do folclorista alagoano Théo Brandão. In: ROCHA, José Maria Tenório.
Tiréo Brandão, mestre do folclore brasileiro. Maceió: Edufal, 1988, p. 160- 161.
Introdução

Onze de março de 2005, o penúltimo capítulo da novela da Rede Globo


de Televisão Senhora do destino 2 é exibido. Depois de uma ausência de mais
de vinte e cinco anos, Maria do Carmo Ferreira da Silva, protagonista da
trama, retoma a Belém de São Francisco, sua terra natal, localizada no sertão
de Pernambuco, às margens do rio do mesmo nome. O autor da trama, o
pernambucano Aguinaldo Silva - que homenageara com a personagem
a sua própria mãe, colocando nela o seu nome - para caracterizar que
estávamos vendo uma cidade nordestina, faz Maria do Carmo ir a uma feira
popular, onde se vendem todos os tipos de-produtos, os mais disparatados,
com a venda sendo acompanhada por uma algaravia de vozes que gritam o
nome de suas mercadorias. Não satisfeito, faz aparecer em plena feira uma
sucessão de manifestações cultu rais que seriam típicas da região: violeiros,
cantadores, um bumba meu boi, uma banda de pífanos, grupos de frevo
portando estandartes, e até os grandes bonecos que caracterizam o carnaval
de Olinda, totalmente improváveis numa cidade do sertão como Belém do
São Francisco. Esta cena insólita, um cortej o carnavalesco a desfilar em
plena feira de uma cidade do sertão pernambucano, pode nos servir de
ponto de partida para expormos as inquietações a que a pesquisa, que tem
como resultado este livro, procurou dar respostas. Se esta cena televisiva foi
possível de ser pensada e escrita por um autor da própria região é porque
ela deve obedecer-a uma forma de ver e dizer o regional e sua cultura, que

2 Novela de autoria de Aguinaldo Silva, com direção de WolfMaya. foi exibida no período de 28
de junho de 2004 a 12 de março de 2005 pela Rede Globo de Televisão.
devemos investigar como emergiu historicamente. Ela perguntou por que,
s~pr~ que é necessári~ fazer ver o Nordeste, produzir uma imagem que
remeta à ideia de nordestinidade, vai se lançar mão de dadas manifestações
culturais ditas populares, de dadas formas e matérias de expressão tidas
como folclóricas, como tradicionais? Por que a cultura nordestina é sempre
pensada, dita e vista como uma ~ura_ ~ tesan_al, eré- industrial, anterior
'à emergência da ~ultura de massas?,lEsta ce_na bizarra foi possív~l~ ser
concebida porque ela obedece a uma dada visibilidade, a regras de produção
do visível e do enunciável que regem a produção cultural e artística em torno
da ideia de Nordeste.
Este livro tem, pois, como objetivo investigar em que momenlo histórico
e em que condições históricas de possibilidade se deu a emergênci a da ideia de
cultura nordestina. Ele busca entender por que, sempre que se fala, se escreve
( Õu se tenta mostrar o que é a cultura regional nordestina, somos remetidos para
um conjunto de manifestações culturais, para matérias e fo rmas de expressão
ligadas a uma dada forma de organização social, a uma dada sociabilidade,
aquela que antecedeu a instalação no país das relações capitalistas de produção,
da sociedade burguesa e da sociedade urbano-industrial. Ele trata de analisar
as motivações históricas que levaram a se construir uma dada forma de
ver e dizer o regional que o confina a um dado tempo histórico, aquele em
que prevaleceu uma sociedade rural, agrária, assentada em relações sociais
hierárquicas e estamentais, em que prevalecia a produção artesanal, em que o
elemento urbano, moderno, industrial, midiático estava ausente. Sociedade de
relações sociais extremamente violentas, onde uma m itologia do masculino,
do macho, se encarnava em figuras como a do coronel, do cangaceiro ou do
jagunço. Uma sociedade sacralizada, onde a presença da religiosidade e do
misticismo dava origem a manifestações messiânicas e a revoltas em torno de
dadas crenças e figuras místicas.
A sensação que se tem quando deparamos com o que é mostrado na
mídia, ou mesmo fora dela, corno.J_endo a cultura nordestina, é de que o tempo
parou para esta região, que a história aí foi paralisada: A cultura regional, tão
orgulhosamente referida por muitos, que é objeto de discursos inflamados de
políticos, de artistas, de intelectuais e agentes culturais, feitos em nome de sua
defesa, de seu resgate, de sua preservação, de sua manutenção intocada, nos

-
parece um "museu de tudo': 3 uma feira de mitos, uma colagem de fragmentos
- - --

3. Referência ao livro de MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo e depois. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
disparatados, selecionados entre a variedade de formas e matérias de expressão
que foram e são produzidas em várias áreas deste espaço. Tal como na cena
da novela de Aguinaldo Silva, sempre que se fala em cultura nordestina, esta
é remetida para lffil conjunto de manifestações culturais que foram objeto de
apropriação e nomeação por parte de um importante grupo de folclor istas que
~tuaram nesta áreã do país entre o final do século xrx e meados do século xx. 4
Eles, através de suas pesquisas, de seus escritos, de suas ações institucionais
e de suas práticas, foram definindo e instituindo o que deveria ser visto e
dito como sendo a cultura desta região, aquilo que seria típico, particular,
singular, autêntico deste espaço e que manifestaria, portanto, sua própria
essência, sua própria identidade. A tese deste livro é que eles inventaram o
que hoje C_?nhecemos como cultura nordestina, eles definiram o que deveria
ser pensado, visto e dito como nordestino, criando uma forma de ver e dizer
à cultura regional da qual os produtores culturais contemporâneos como
Aguinaldo Silva ou Guel Arraes5 não têm conseguido fugir, mesmo que estes
tenham nascido na região, portanto conhecendo-a e sabendo que a produção
cultural deste espaço não se resume a estas manifestações "folclóricas':

.X. 4. Como procuraremos discutir neste texto, não é por mera coincidência que foi nesta área do
país que se concentraram grande parte dos estudos de folclore c que nela tenham nascido e vivido
aqueles que são ainda hoje considerados os maiores estudiosos desta matéria, entre eles podemos
citar: Silvio Romero, Rodrigues de Carvalho, Pereira da Costa, Gustavo Barroso, Leonardo Motta,
Câmara Cascudo, Theo Brandão, Mário Souto Maior, Clodomir Silva c Fontes lbiapina. Quando
abordei em livro anterior o surgimento da ideia dê'Nordeste e a elaboração de discursos de
identidade regional, por várias formas de saber e práticas culturais c artísticas, deixei de fora o
discurso do folclore, pela impossibilidade mesma de, no tempo de que dispunha, tratar de um
campo discursivo tão prolixo, o que tornaria o traba lho ainda mais extenso. Este livro vem no
sentid o de sanar esta lacuna do livro anterior.
5. Aguinaldo Silva nasceu em Carpina, em 7 de junh o de 1944. Dramaturgo, escritor, roteirista,
jornalista e telenovelista, ele escreveu os capítulos de muita audiência da novela de Dias Gomes,
Roque Santeiro (1985, Globo). Além de Senhora do destino, novela escrita entre 2004 e 2005, a obra
de Aguinaldo é marcada pelo tratamento de alguns mitos centrais no que vem a ser definido como
cultura nordestina, como: o cangaço (escreveu a minissérie Lampião e Maria Bonita, 1982, Globo),
o messianismo (escreveu a minissérie Padre Cícero, 1984, Globo) c o coronclismo (escreveu a
novela Pedra sobre pedra, 1992, Globo). Ainda adaptou para a televisão, como minisséries e novelas,
livros c autores clássicos do que se chamou de literatura regionalista nordestina como: Tenda dos
milagres (m inissérie, 1985, Globo) c Tieta de Jorge Amado (novela, 1989-1990, Globo) e Riacho
doce de José Lins do Rêg<> (minissérie, 1990, Globo). Guel Arraes é o nome artístico de 1v1iguel
Arraes de Alencar Filho, cineasta e diretor de televisão, nascido no Recife em 12 de dezembro
de 1953, filho do ex-governador e conhecido líder político Miguel Arraes. Tem produzido um
conjunto de minisséries para televisão e filmes onde a visibilidade clichê do Nordeste é reposta
insistentemente, como em: O Auto da Compadecida (minissérie de 1998,1ançada como filme em
2000 pela Globo Filmes) e Lisbela e o prisioneiro (filme de 2003, Fox Filmes).
Em livro anterior, quando tratamos da emergência do próprio
recorte regional No~:/ havíamos afirmado que esta região foi
pensada articulando dois temas fundamentais: ~ um lado, o tellla das
secas p3riódicas, que legitimaria este recorte regional a partir da idei<!__de
que teria uma natureza particular, seria um recorte natural distinto no
território nacional e, por outro lado, a ideia de que esta região teria ~ma
cultura particular, produto de uma h istória também singular, uma cultura
regional distinta, fruto do cruzamento de elementos culturais das três raças
formadoras da nacionalidade, sendo a região onde a cultura brasileira, a
verdadeira cultura de raiz teria se mantido imune às influências "deletérias"
do cosmopolitismo e da imigração estrangeira, que se dera em outras áreas
do país, desnacionalizando-as. Se dedicamos outro estudo à invenção da secã
como problema regiona1,7 nós nos voltamos para pensar como foi instituído
o conceito de cultura nordestina, para entender como este conceito emergiu
em dado momento histórico, através de uma série de práticas discursivas
e não discursivas, como este foi utilizado para selecionar, nomear e definir
um conjunto de matérias e formas de expressão como sendo nordestinas,
instituindo uma dada forma de ver e dizer a cultura regional da qual somos
prisioneiros ainda hoje, da qual não conseguimos fugir seja na mídia, na
academia ou mesmo na vida cotidiana. Neste estudo nos perguntamos pelos
interesses econômicos, políticos, sociais e intelectuais que estiveram na base
dos discursos que fabricaram a cultura nordestina como a entendemos.
Buscamos, portanto, pensar a que objetivos políticos serviu e serve esta forma
de ver e dizer a cultura regional, que relações de poder estamos reproduzindo
sempre que repomos as imagens e textos, sempre que relançamos estas
manifestações culturais que são ditas como sendo nordestinas.
Além de ser sempre pensada como uma cultura rural, artesanal,
folclórica, tradicional, a cultura nordestina quase sempre remete para as
manifestações culturais ditas populares. Este livro, portanto, também se
inscreve nos estudos de história do folclore e da cultura popular, mas, ao
contrário da maioria deles, não toma o folclore e a cultura popular como
realidades em si mesmas, como dados da realidade sobre a qual se deve
debruçar o pesquisador. Ele toma o folclore e a cultura popular como

6. ALBUQ UERQUE )R. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outra$ artes. 5. ed. São
Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 20 11.
7. Idem. Falas de astúcia e de angústia: a seca 110 imaginário nordestino - de problema à solttç(io
(1877- 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de mestrado em História).
aquilo que são, ou seja, ~nce itos, categorias, instrumentos para nomear
classificar, ordenar, distinguir, identificar, se apropriar de dadas formas
e matérias de expressão, que são comumente retiradas de seus contextos
de produção, que são isoladas de sua h istoricidade, que são neutralizadas
politicamente ou censuradas, para serem colocadas a funcionar em novos
contextos, para ocuparem novos lugares, para se constituírem em formas
quase que empalhadas, des-historicizadas, transformadas em símbolo
de uma dada identidade regional, em ícones, em manifestações típicas de
uma regionalidade que se propõe como sendo a verdade e a essência destas
manifestações culturais.
A fabricação da cultura nordestina é um dos capítulos da história da
fabricação do folclore e da cultura popular e do uso destas categorias, seja
no Brasil, seja no Ocidente contemporâneo, para nomear formas e matérias
de expressão que estão sendo modificadas, transformadas ou destruídas
pela emergência do mundo moderno, da sociedade urbano-industrial; pela
.J emergência de um novo aparato técnico, que propicia novas formas de
~ organização do trabalho; pela emergência de novas forma s de sociabilidade
e sensibilidades a par com as mudanças que se dão no cotidiano dos vários
grupos sociais submetidos a novos ritmos de temporalidade, que veem

l seus valores, hábitos e costumes sendo modificados pelas novas relações


_sociais, pelas novas práticas políticas, administrativas, artísticas e técnicas.
Por isso, discutimos como a operacionalização desses conceitos implica
dadas práticas e dadas concepções qut;_Q_efinem o trabalho intelectual que
é feito sobre e a partir das matérias e formas de expressão das camadas
trabalhadoras, que são tomadas como objeto de pesquisa, guarda, análise
_e divulgação. Fabricar o folclore, a cultura popular, implica a utilização de
\ uma utensilagem mental, de uma tecnologia intelectual, de mecanismos de
produção de fontes e de discursos, de um modo de produção escriturístico
\ que, embora sejam aqui analisados a partir do caso do folclore ou da cultura
ditos nordestinos, podem ser encontrados na invenção de outros folclores e
outras culturas populares. Muitos colegas historiadores da cultura popular
~ continuam a empregar esses procedimentos, com muita perícia, e obtendo
sucesso na fabricação de seus (arte)fatos.8

8. .t extensa a produção dos historiadores sobre as temáticas do folclore c da cultura popular


no Brasil. por isso citarei apenas alguns títulos de maior destaque: ABREU, Martha. Império do
Divino: festas religiosas e cultura popular 110 Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008;
ABREU, Martha c MATTOS, Hebe. Pelos cami11hos do jongo e do caxamlm. Niterói: uff/ neami,
2009; MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São
Seria interessante discutirmos, ainda mais detidamente, o título
que demos a este trabalho, por ser uma metáfora que pretende resumir o
problema que norteou a pesquisa, por trazer subjacentes os pressupostos
teóricos que embasaram a análise desse problema e a própria concepção do
fazer historiográfico do autor do texto. Por que nomear este livro de A feira
dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura nordestinos (Nordeste 1920-
1950). Na escolha da figura da feira, para expressar o que aqui se vai ler,
podemos confessar que existe um traço biográfico, ao mesmo tempo em
que pode significar uma homenagem à minha cidade de nascimento: nasci
em Campina Grande, cidade paraibana que realiza, semanalmente, uma
das maiores feiras livres de todo o país.9 Trabalhei nessa feira em minha
adolescência. Ela sempre foi palco de muitas formas de expressão cultural
que são nomeadas como pertencendo ao folclore ou à cultura nordestinos. 10
Mas o uso da imagem da feira, aqui, remete, sobretudo, a um dos sentidos
dicionarizados desta palavra: o sentido de balbúrdia, de falario. Este livro
trata de um conjunto de discursos, de um conjunto de vozes que vêm a
público enunciar o que seriam o fo lclore e a cultura nordestinos. A feira
quase sempre se faz em lugares públicos e se caracteriza pelo aglomerado de
pessoas, pela multiplicidade de vozes, de pregões, de falas, de ditos que se
misturam, se confundem e terminam por gerar uma verdadeira algaravia de
vozes. Ela também remete à multiplicidade de apelos em torno das distintas
mercadorias que se tenta vender. Os diferentes anúncios que aí se fazem
significam a colocação no mercado dos mais disparatados artefatos para
serem consumidos. Este livro abordará um tipo de mercadoria muito especial:
o texto escrito, mais particülarmente os textos escritos por folcloristas. Ele

Paulo: Contexto, s/d; CUNHA, Maria Clementina Pereira da. Ecos da folia: uma história social
do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; CUNHA, Maria
Clcmentina Pereira da. Carnavais e outras f(r)estas. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. Outros
títulos aparecem citados ao longo desse texto.
9. Ver: PEREIRA JÚNIOR, Francisco. Feira de Campina Grande: museu vivo da wltum popular
e do folclore. João Pessoa: edufpb, 1977.
IO. O jornalista C. Nery Camello aconselhava àqueles que rendiam culto "a ciência especuladora
do folclore': que se embrenhavam pelos sertões, perscrutando, como ele fizera, a alma ingênua
dos caboclos, estudando-a em múltiplas face tas, a não perderem a oportunidade de assistir às
feiras das cidades, vilas c povoações do interior, pois a elas compareciam os roceiros do município,
lavradores, proprietários, gente das fazendas e povoados circunvizinhos. Seria o ponto escolhido
pelos cantadores e violeiros, músicos e poetas matutos, para as suas expansões de alegria. Seria a
feira, em suma, um dia de festa para os habitantes do lugar e campo privilegiado para o estudioso
do folclore e da cultura popular. Ver: CAMELLO, C. Nery. Alma do Nordeste. Rio de Janeiro: Tip.
Baptista de Souza, 1936, p. 75.
abordará como eles circulavam, como eram anunciados e que enunciados
acerca das formas e matérias de expressão culturais da região que nomearam
de Nordeste passaram a em itir, a partir de novos rótulos ou etiquetas: os
conceitos de fo lclore e, mais tarde, de cultura popular.''
A figura da feira aparece articulada ao conceito de mito que é pensado
aqui no mesmo sentido em que aparece no livro Mitologias 12 do semiólogo
francês Roland Barthes. Ou seja, inicialmente, en1un; sentido mais geral, o
mito é uma fala, é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Ele não
é um objeto, um conceito ou uma ideia, o mito é um modo de significação,
uma forma. O mito independe do conteúdo que veicula, não é a mensagem
que transmite que o torna mítico, mas a maneira como é proferido, éa
forma de seu discurso. Ele também independe do tipo de linguagem em.
que é veicu lado, sendo uma fala, pode dizer através da escrita, da imagem,
ae grafismos, de ícones etc. Mais importante ainda para a nossa reflexão é
considerar que o mito é uma das formas de transformar o real em discurso, e
como esta transformação é histórica, os mitos são falas produzidas na e pe~a
história. Não há, portanto, mitos que sejam eternos, eles estão sujeitos ao
nascimento e morte em dados contextos históricos. Os mitos são históricos
porque, além de se constituírem de uma dada forma, esta forma está
articulada a dadas ideias, a dadas concepções políticas, filosóficas, estéticas,
a dados valores, aquilo que Barthes chama de ideologia. O mito é, portanto?...
uma ideia-em-forma. 'o que vamos tratar neste livro é da emergência
hist_Slri~a de uma mitologia cultural, de_ um conjunto de mitos que têm a
função de dizer e descrever o que seria a cultura nordestina.
Barthes analisa o discurso mítico a partir das categorias desenvolvidas
pelo que chamou de semiologia, que seria um desdobramento da ciência
geral dos signos que teria sido inaugurada por Ferdinand de Saussure' 3 •

11. A Feira é também o título de uma das peças teatrais de maior sucesso do teatro regionalista
nordestino, escrita pela teatróloga po tiguar, radicada em Campina Grande, Maria de Lourdes
Nunes Ramalho, nos anos setenta do século passado. Bisneta do poeta popular Ugolino Nunes
da Costa, uma figura mítica da poesia sertaneja, sua dramaturgia reitera os principais temas,
enunciados, imagens e estereótipos constitutivos dos discursos em torno da região Nordeste. Ao
intitular uma de suas peças regionalistas de A Feira, a autora reafirma esta ligação existente no
imaginário nacional entre a feira c a nordestinidadc, entre a feira e a cult ura popular nordestina.
Ver: RAMALHO, Maria de Lourdes. Teatro nordestino: cinco textos para montar ou simplesmente
ler. Campina Grande: rg, 1981 e SILVA, Vanuza Souza. O teatro de Lourdes Ramalho e a iuvenção
da autoria nordestiua. Campina Grande: ufcg, 2005 (Dissertação de mestrado em Sociologia).
12. BARTHES, Roland. Mitologias. 11. ed. São Paulo: Di fel, 2003.
13. SAUSSURRE, Ferdinand de. Curso de linguística gemi. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
Como sabemos, para Saussure, o signo, base de todo trabalho de significação,
pode ser decomposto em dois termos: um significante e um significado.
O signo resulta da equivalência e não da semelhança ou igualdade entre
o significante e o significado. Para Saussure, que se dedicou ao estudo
da língua, o significante era a imagem acústica (de ordem psíquica), o
significado era o conceito, e a relação entre o conceito e a imagem era o
signo (a palavra, por exemplo), entidade concreta. O signo, portanto, seria
o resultado da articulação entre uma imagem ou uma forma e um conceito.
Esta forma, esta imagem, como significante, seria em si mesma vazia de
significado, pois receberia seu sentido do conceito que é a ela atribuído. Diz-
se que o significante é vazio porque ele permite diversos significados, pois a
mesma forma, a mesma imagem pode ser dita, descrita, nomeada, definida,
valorada, significada a partir de distintos conceitos. Tomemos um exemplo a
própria matéria em análise, para que esta relação fique mais clara: a capoeira
é inicialmente apenas um conjunto de gestos, de figuras, de imagens descritas
com o corpo de seus praticantes, é um conjunto de formas, constituindo-se,
pois, num significante, que ganha significado ao ser nomeado pelo conceito
de capoeira. E capoeira é um conceito porque ela não é um simples nome,
uma simples palavra, pois é, como toda palavra, situada em dada cultura, em
dada sociedade e pertence a uma dada época, carrega, portanto, significados
já estabelecidos socialmente, que são imediatamente transferidos para aquele
conjunto de gestos, para aquelas práticas que nomeia. No século XIX, por
exemplo, a capoeira era considerada uma atividade ilícita, era vista como
ato de violência e barbarismo, era considerada um crime. Ao se lançar mão
deste conceito para nomear alguma prática nesta época, imediatamente este
gesto de nomear carregava consigo estes significados que passavam a definir
aquilo que era feito. Porém, como costuma ocorrer, o conceito de capoeira
sofreu deslizamentos de sentido com o passar do tempo, com a história,
o que repercutiu sobre o significado das próprias atividades e formas que
veio nomear posteriormente. A capoeira hoje, por exemplo, carrega o
significado de ser um jogo, uma dança, ou mesmo uma arte marcial. Embora
o significante possa ter permanecido o mesmo, ou seja, suponhamos que
ainda sejam os mesmos gestos, as mesmas práticas, as mesmas figuras
corporais que o compõem, ao ser nomeado pelo conceito de capoeira, hoje,
estes mesmos gestos, estas mesmas formas, estas mesmas imagens ganham
significados diferentes. Mesmo a palavra tendo permanecido a mesma, seus
sentidos culturais, sociais e históricos se alteraram, alterando o próprio ser
desta prática. Portanto, se as figuras que os corpos dos brincantes descrevem
no ar e no chão constituem-se num significante, o conceito de capoeira passa
a dar a eles um significado, e a articulação entre essas fo rmas e esse conceito
faz da capoeira um signo, d isponível para novas significações, ao longo do
tempo. 14
Este primeiro passo dado por Barth es na discussão do conceito de mito
que, em grande medida, retoma as discussões que são fundantes do próprio
campo dos estudos da linguagem, nos permite mostrar nossa primeira
discordância em relação à grande parte da produção historiográfica que
trabalha com os temas do folclore ou da cultura popular. Esta produção
tende a confundir ou colar formas e conceitos, significantes e significados, a
tõniãfõ signific""ado como sendo o significante. A maioria dos historiadores
da cultura _p~ular tendeE! a confundir, seguindo o ex!mplo com que
vínhamos trabalh~ndo, o conceito capoeira como sendo a própria realidade,
con1Õ sendo o próprio referente deste conceito. O realismo essencialista que
professam os leva a desconsiderar o fato de que capoeira é um conceito e
não uma realidade em si, assim como escravo é um conceito que pode ser
utilizado para nomear distintos significantes, tais como: aqueles que não
saldavam suas dívidas na Grécia antiga, os prisioneiros de guerra na sociedade
romana, os africanos no período moderno, os indígenas americanos e
até mesmo aquele que hoje trabalha sem receber a devida remuneração e
obedece a formas compulsórias de recrutamento e permanência no trabalho.
Tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o
conceito e a empiricidade, o conceito e .a..(orma. A necessária percepção da
diferença existente entre formas e conceitos, entre materialidade e conceito é
fundamental para que se proceda à análise crítica das operações discursivas
que articularam dado conceito à dada forma. A análise dos discursos, a que
pro ~e demos n ~t~rab alho, se faz possível porque de saída estabelecemos a
suspeição da necessária relaçãÕ entre um conceito, o de cultura nordestina
e o conjunto de formas p~r ele nomeadas/Não- há nenhuma necessidade
ou nenhuma obviedade no fato de que a literatura de cordel venha a ser
1
um texto folclórico ou uma manifestaÇão da cultura popular e regionai. Esta
articulação entre um significante, o folheto de cordel, e um significado, o
de ser uma literatura tipicamente nordestina, foi construída historicamente,

14. Ver: LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. A política da capoeiragem: a história social da capoeira e
rio bumba meu bvi no Pará republicano. Salvador: edufba, 2008 e LEAL, Luiz Augusto Pinheiro;
OU V EIRA, )os iv;~ldo Pires. Capoeira, identidnde e gê11ero: ellsnios sobre a história social da capoeira
110 Brasil. Salvador: edufba, 2009.
~ dado momento, processo que fez com que hoje o cordel seja um signo
da nordestinidade e que, ao vê-lo, imediatamente o associemos a outro
conceito: o de Nordeste. Com Barthes aprendemos que toda equivalência
entre um conceito e uma forma, um significado e um significante foi
historicamente estabelecida e feita a partir de dados interesses e relações
humanas. A arqueologia dos saberes, tal como praticada por Foucault, 15
ou a atividade da desconstrução, tal como feita por Derrida, 16 que também
servem de inspiração para este trabalho, foram possíveis a partir do
questionamento da costumeira ingenuidade realista que costuma assaltar os
historiadores, que faz com que normalmente confundam as empiricidades
com os conceitos que as significam. Este questionamento é fundamental
para que deixem de afirmar, como fazem alguns, que a História não n ecessita
de teoria, pois perceberão que não apenas o escrever a história requer uma
reflexão conceitual, mas a própria história, enquanto processo, já nos chega
conceituada e é a ignorância do caráter conceitual dos eventos que faz os
historiadores confundi-los com a realidade ou a coisa em si.
Mas, segundo Barthes, se podemos encontrar o mesmo esquema
tridimensional no discurso mítico (o significante, o significado e o signo), ele
constitui um sistema particular, visto que se constrói a partir de uma cadeia
semiológica que o antecede, ele seria um sistema semiológico segundo.
Ou seja, o mito não se constitui numa atividade de significação de uma
forma vazia de sentido, de um significante ainda disponível, mas ele é uma
significação que se dá a partir de uma forma já conceituada, já significada, ele
é um discurso que desloca o sentido das primeiras significações. A atividade
fundamental do discurso mítico é a deformação, o deslocamento de lugar
do sentido primeiro atribuído a uma dada forma. O mito se constitui como
metalinguagem, ou seja, é uma fala que toma cÕrüÕ referente uma fala
~terior, que Barthes chama de linguagem-objeto, ele é um discurso que
tem como referente outro discurso. Se tomamos, neste trabalho, o discurso
sobre o folclore ou a cultura nordestinos como um discurso mítico é porque
ele opera a partir de narrativas anteriores que já haviam atribuído dado
significado às matérias e formas de expressão culturais que escolhem, para
adquirir ur-p novo sentido a partir deste conceito.;o discurso folclórico, que
aqui analisamos, é um discurso sobre discursos e o que tentamos analisar

15. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber: 7. ed. Rio de janeiro: Forense Universitária,
2008.
16. DERRJDA, jacques. Pensar n desconstruçào. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
é o deslocamento, a distorção de sentidos que ele precisou realizar para
construir o saber que enuncia. Aqueles artefatos que já eram nomeados
por seus praticantes ou brincantescfe aada maneira;<.ju"e possuíam em seu
üniverso cultural um dado conjunto de significados, sofrem deslocamentos
de sentido e, inclusive, de lugar de inscrição para passarem a ser vistos e
d itos como folclore ou cultura nordestina.~e antes os brincantes praticavam
0 bumba meu boi e a ele atribuíam um conjunto de significados, agora ficam
sabendo, através do discurso folclórico, que o que fazem é folclore ou cultura
popular e nordestinos, sendo a eles oferecidos outros significados possíveis
para o que fazem. 17
O mito tem como significante não uma forma vazia, mas um sentido já
estabelecido, ao qual é articulado um novo conceito, produzindo, ao invés de
um signo, como ocorre no sistema semiológico primeiro, uma significação,
já que o mito não apenas designa e notifica, como faz o significado primeiro,
mas ele faz compreender e impõe uma dada compreensão a partir do
trabalho de distorção e deslocamento do sentido anterior.18 A articLtlação
entre o conceito de bumba meu boi (significado) e o conjunto de formas, de
práticas que ele nomeia (significante), já constituía um sentido, que seria o
que Barthes chama de significado primeiro, que será de certa forma esvaziado

17. LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Op. cit.; MEYER, Marlyse. Pirineus, caiçaras: da comédia
del/'arte ao bumba meu boi. Campinas: Unicamp,~l; REIS, )osé Ribamar Sousa dos. Bumba meu
boi. São Luís: s/ c, 2000.
18. É neste sentido, e só neste sentido, que Barthes e Levi-Strauss consideram o discurso
da historiografia um discurso mítico, ou seja, pelo fato do discurso historiográfico ser uma
metalinguagem, um discurso sobre discursos, um discurso que parte de sentidos que nos chegam
já atribuídos aos eventos através dos documentos. As diatribes de Carlo Ginzburg, só para citar um
e xemplo, contra Barthes, partem do pressuposto de que o discurso do historiador fala diretamente
de um referente, de um significante material vazio de sentido que seria o evento ou o indício ou
a evidência históricos, como se queira chamar, o que se constitui num equívoco. O historiador
já trata de um conjunto de acontecimentos significados pelas fontes que consulta; portanto, seu
discurso seria mítico, no sentido de que é um discurso que procede ao esvaziamento, à distorção,
ao deslizamento do sentido anterior para produzir outra significação. Cita-se muito a respeito
do tema o livro O pensamento selvagem de Lcvi-Strauss, mas quando o consultamos vemos que
o antropólogo francês faz esta afirmação especificamente em relação ao livro Crítica da razão
dialética de Sartre e ao historicismo que nele identifica, não tendo a passagem da página 282, na
edição brasileira, na minha percepção, o alcance que comumente lhe dão. Veja-se, por exemplo,
François Dosse no seu livro A História, p. 76. Parece-me que aqui estamos também diante de
um mito, o mito do Levi-Strauss-ameaça-à-História, que teria sido enfrentado com sucesso por
Fernand Braudel. Parece que Dosse, o grande desmitificador dos Annales, acabou por engolir
alguns dos mitos que esta Escola criou para legitimar-se. Ver: LEVT-STRAUSS, Claude. O
pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1979; DOSSE, François. A História. Bauru: edusc, 2003.
para que o conceito de bumba meu boi perca sua qualidade de conceito para
aparecer como se fosse uma pura forma, um novo significante 19 que será
ressignificado pela articulação agora feita com os conceitos de folclore ou
de cultura nordestinos. O significante no mito é ambíguo por não ser pura
forma, mas já carregar um sentido. Ele já se encontra, ao mesmo tempo,
preenchido por um sentido e vazio para ganhar nova significação. O mito
é uma forma parasitária do sentido anterior, que já postula um passado,
uma memória, uma ordem comparativa de atos, ideias e decisões. Mas
estes sentidos anteriores são transformados em pura forma, ele perde a
sua eventualidade, esvazia-se, se empobrece de historicidade, permanece
apenas como letra morta. Para transformar o chapéu de couro em símbolo
da nordestinidade, este objeto é esvaziado de sua historicidade; é desligado
do contexto histórico, cultural e social em que possuía um sentido distinto
e anterior; a memória a que estava ligado tem o seu sentido deslocado,
ele se torna um ícone, uma pura forma disponível para novos sentidos. 20
O mocambo que representava a miséria de seu morador é esvaziado deste
sentido para como pura forma vir a ser um ícone da nordestinidade no
Museu do Homem do Nordeste. 21 O que chamamos de fabricaçãÇ> neste
texto - outro conceito que compõe o título deste trabalho - são as operações
que foram necessárias para esvaziar dadas práticas culturais, dadas matérias
e formas de expressão de seus sentidos anteriores para que elas se tornassem
~ignifica ntes, formas disponíveis para assumir a nova significação atribuída
pelos conceitos de folclore e de cultura nordestina. Chamamos de fabricação
as atividades que foram necessárias para atribuir uma nova memória e outra
história a formas e matérias culturais que, no mesmo momento e através da
mesma operação, eram esvaziadas de outras memórias e da historicidade
singular que as havia permitido emergir, O mito empobrece o sentido do qual
parte, mas não o afasta completamente, conservando -o à sua disposição. O
mocambo continua sendo uma forma de morar do povo, servindo agora para

19. ~ nesta armadilha que normalmente os historiadores da cultura popular caem, ou seja,
tomam o que já é do plano do conceito, da ordem do significado, corno sendo do plano da
empiricidade, da ordem das coisas, um real puro, aguardando pela significação primeira ou por
uma ressignificação que pode atuar direttlmente sobre a forma vazia do significante, quando já se
faz sobre um significado anterior.
20. 13ERAROI, Maria Helena Petrillo. Sem/o Amaro: memória e história - dn botina amarela ao
chapéu de couro. São Paulo: Scortecci, 2003.
21. FR.EYRE, l'ernando de Melo. Museu do lromcm do Nordeste. São Paulo/ Recife: Banco Safra/
fundaj, 2000.
simbolizar o próprio popular, o que desa2_arece ou se distare~ é o sentidQ d~
-miséria, de pobr~, de precariedade que ele carrega_va. O sentido se esconde
M forma, mas continua lá à espreita, cabendo ao trabalho de desmistificação
fazê-lo vir à tona. O gue procuramos fazer neste trabalho é, lançando mªç
do recurso da história arqueogenealógica, tentar escavar estas camadas de
sengdo que ficaram o_bliter<!d.as_p_ela mitologia.da.cultura nordestina.
No mito é o conceito a força motriz, sendo intencional e historicamente
motivado, ele é que implanta toda uma nova significação para os sentidos
que foram esvaziados e transformados em significantes. Isto contl)Qui para
qUeõ conceito termine por vir a ocupar o lugar 'do próprio significante.
Se na operação semiológica original, um significante poderia ter muitos
;ignfficaaos, no mito são os significados que podem recobrir inúmeros
significantes. Os conceitos de folclore e de cultura popular podem recobrir
distintas formas e matérias de expressão, podem incorporar as mais
disparatadas atividades culturais e os objetos mais distintos.JPor isso também
nos pareceu adequada a imagem da feira para figurá-la, já que a feira se
macteriza por ser um local onde tudo se encontra, por colocar à disposição
dos fregu.~ses uma variedade de coisas, as mais distintas possíveis. Em
Campina Grande costuma-se carregar a feira em balaios, neles vai sendo
amontoado todo tipo de mercadorias. Podemos dizer que folclore ou cultura
popular como conceitos são balaios, ou recorrendo a uma expressão popular,
são verdadeiros balaios de gatos, pois com estes conceitos se consegue produzir
significação para uma infinidade de ati.Y.i.Qades artísticas, culturais, para uma
gama variada de objetos e artefatos.T tv1as a força do conceito mítico reside,
justamente, nesta sua plasticidade, nesta sua elasticidade, neste pouco rigor,
em sua capacidade, segundo Barthes, de ser apropriado, de ser adequado,
de ser funcional em muitas situações e contextos. Mas é, justamente, esta

22. Uma das práticas que me chamava mais atenção quando trabalhava na feira de Campina
Grande era, justamente, a do uso dos balaieiros: homens mui to pobres, quase sempre muito velhos.
que suportavam o peso excessivo de um balaio sobre as suas cabeças. Sendo um claro resquício
da sociedade escravocrata que tivemos, a existência daquela figura e das relações que envolviam
balaieiros e fregueses me chocava. Correndo a pé, atrás dos fregueses, que iam colocando sem dó
nem piedade as mercadorias mais pesadas (melancias, jacas, jerimuns, quilos de feijão, fa rinha,
batata etc) dentro do balaio, até quase ficarem aplastados sob seu peso, estes homens, muitas vezes,
eram enviados até a casa do freguês para entregar as mercadorias, andando a pé, enq uanto este
se deslocava de carro para casa. A remuneração que recebiam era irrisória. Como estudante de
história eu ficava de frente para um quadro que lembrava, ainda, a sociedade do século XIX, no
Brasil. Aprendi, depois, que isto era folclore ou cultura popular e esses conceitos. desde então, me
causam espécie.
abundância de formas recobertas por um mesmo conceito que permite que
identifiquemos um discurso mítico. Quando a nordestinice 23 se excede e se
espalha sobre uma variedade crescente de formas e práticas culturais, ela
termina por revelar-se como mitificação e mistificação.
Mas por que a cultura nordestina foi pensada, dita e vista assim?
Que interesses estão na base desta invenção e que forças sociais e políticas
a mantêm e a atualizam permanentemente? Por que a cultura nordestina
desde que foi inventada, no começo do século xx, já se enuncia como uma
cultura que está morrendo, que está prestes a desaparecer? Por que aqueles
que fabricaram a noção de cultura nordestina a inventam como um morto
que, no entanto, é vestido para um ato inaugural, na imagem magnífica de
João Cabral de Melo Neto? 24 Por que os discursos dos agentes culturais e de
boa parte das elites políticas e acadêmicas da região ainda continuam sendo
presididos pela síndrome do resgate, pela ideia de que se deve preservar
\.!ma cultura regional e popular que estaria prestes a morrer, que sempre é
anunciada como morta, mas que, como um espectro, teima em voltar, em
retornar, em obsedar de novas maneiras os vivos? É a estas questões que este
~abalho busca dar respostas.
No primeiro capítulo, tratamos de inventariar as condições históricas
de emergência desse novo objeto para os discursos e as práticas: a cultura
nordestina. No segundo capítulo, tratamos da construção, para esse objeto
que emergia, no presente, de um passado mítico, da fabricação de um mito de
origem para os estudos em torno da cultura popular e regional. No terceiro
capítulo, abordamos os acontecimentos que na sua dispersão, que em suas
conexões, muitas delas aleatórias e casuais, foram fazendo surgir a ideia da
existência de uma cultura nordestina, foram dando contornos a esta noção,
foram, à medida que permitiam o uso desta noção, institucionalizando-a,
dando estatuto de verdade e de realidade a este conceito, foram
transformando-o em objeto de práticas e instituições, de saberes e de ações
políticas e culturais. ~ão temos a pretensão aqui de encontrar a origem da
cultura nordestina, mas de mapear a dispersão de um começo; por isso
mesmo, os acontecimentos que aqui levantamos não pretendem dar conta
de tudo o que ocorreu, não pretende abordar à exaustão o que se passou, é

23. Barthes também defende a ideia de que a construção de neologismos é indispensável para se
proceder à crítica do discurso mítico. BARTHES, Roland. Op. cit. p. 212.
24. MELO NETO, João Cabral. "Duas das festas da morte': In: Obra completa. São Paulo: Nova
Aguilar, 1994.
-
uma narrativa que se sabe lacunar, fragm entada, urdida em grande medida
--
ao acaso dos encontros com os documentos, com os achados que a pesquisa
artesanal e meticulosa nos permitiu. O marco que estabelecemos se sabe
provisório, apoiado que está na documentação e nas informações que nos
foi possível coletar. Texto que busca ser mais uma provocação, uma incitação
a novas pesquisas, que a conclusão definitiva sobre um dado assunto. No
quarto capítulo, realizamos um ensaio de prosopografia ao cruzar dados
biográficos daqueles estudiosos que, por primeira ve"L., se utilizaram da
noção de cultura nordestina, bem como daqueles autores que são por eles
citados como sendo seus predecessores e aqueles ,que se tornaram seus
mais destacados continuadores. O objetivo do capítulo é traçar um perfil
social e de conjunto daqueles homens que se interessaram pelas "coisas
populares" do Nordeste. Ao cruzar traços biográficos, presentes em sua
maioria nos relatos memorialísticos e biográficos sobre esses autores, o que
se pretendeu foi visualizar o lugar social de fala daqueles que enunciaram
discursos sobre o folclórico, o popular e a cultura popular, notadamente na
área hoje chamada de Nordeste. No quinto capítulo, tratamos das fontes a
partir das quais esses trabalhos, esses discursos e estudos foram possíveis.
Conforme dissemos acima, o mito é um discurso sobre discursos, o que
pretendemos neste capítulo, portanto, foi trazer à tona aqueles discursos
que Barthes chamou de enunciação primeira e que formaram o material
sobre o qual operaram as atividades de mitifi.cação dos inventores da cultura
nordestina; aqueles discursos que foi]J!l sobrecodificados e, ao mesmo
tempo, atribuídos ao lugar de empiricidades, de relatos da realidade ou a
realidade em si mesma. No sexto capítulo, abordamos a participação dos
agentes culturais das camadas sociais não letradas ou ditos e tidos como de
origem social nas camadas trabalhadoras da sociedade, nesse processo de
fabricação da cultura nordestina. Nele tratamos da difícil e complexa relação
entre os agentes das manifestações culturais ditas populares e aqueles agentes
que estavam institucionalizando e definindo o que seria a cultura regional.
Feitas de troca de favores, de anuência, de entusiasmo, de condescendência,
de subserviência, mas também de resistências, descontentamentos e recusas,
estas relações precisam ser tratadas para que se possa perceber o papel que os
agentes culturais ligados às camadas populares tiveram na institucionalização
de uma cultura nordestina. As relações que se dão entre estes agentes
culturais de classes sociais diversas e com interesses diversos nos permitirão
entrever o papel que a chamada cultura tem na legitimação e reprodução de
dadas formas de relações de poder e dadas formas de dominação.
Esta pesquisa se inscreve no campo de estudos, definido por Reinhart
Koselleck,2 5 como história dos conceitos ou como estudos de semântica
dos tempos históricos. Este campo historiográfico toma como objeto de
interrogação, como problema, os próprios conceitos que aparecem definindo
objetos e sujeitos, nomeando eventos, definindo marcos temporais e recortes
espaciais no discurso historio gráfico. Ele nos obriga a desnaturalizar e pensar
como produtos da história os próprios nomes como as coisas foram chamadas,
os próprios sentidos e significados que estes nomes carregaram e carregam
ao longo de distintas temporalidades. É um campo de pesquisa que obriga os
historiadores a perderem sua costumeira inocência ou ignorância em torno
das questões que envolvem o uso da linguagem, a mediação dos signos, o
papel dos símbolos, das imagens, dos ícones, a importância do imaginário, do
discursivo para a instituição, produção, veiculação, legitimação, reprodução
e circulação do que pensamos ser o real, do que definimos ou aceitamos
como sendo a realidade, a verdade. Ele impõe ao historiador que pense o
próprio papel que o discurso do historiador, que a produção historiográfica,
que o seu próprio texto tem na reprodução ou questionamento de dadas
versões da realidade, de dadas assertivas tomadas como sendo a verdade.
_É l_!m campo de estudos que traz para o primeiro plano o papel político do
uso da linguagem, da escolha de noções e conceitos, com que nomeamos,
distinguimos, classificamos, hierarquizamos, diferenciamos, valorizamos ou
desqualificamos certos eventos, certos objetos e certos sujeitos.
É um campo de estudos que pensa, como fez a obra de Michel Foucault26,
as articulações entre formas de saber e relações de poder, que procura traçar
uma arqueologia das vá!:bs camadas de discurso que foram se cristalizando
e dando forma a um dado objeto e a um dado sujeito; que faz uma genealogia
das forças que entraram em cena para constituírem uma dada versão da
realidade e da verdade. Como Gilles Deleuze e Felix Gattari, 27 este campo de
estudo trata de realizar uma cartografia das forças e das formas e matérias de
expressão que se articularam para compor um dado saber ou fazer emergir
objetos e sujeitos em dado momento histórico. É um campo de estudos que

25. KOSELLECK, Re inhart. Futuro passado: contrilmiçâo â semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. puc-Rio, 2006.
26. Ve r: FOUCAULT, JV1ichel. As palavras c as coisas. São Paulo: tV!artins Fontes, 1999; A ordem
do discurso . São Paulo: Loyola, 1996; Miaojísica do poder. São Paulo: Graal, 1984.
27. Ver: DEI.EUZE, Gilles e GUATTARI, Fel ix. J\lfil platôs, v. 5. São Paulo: Editora 3·1, 1997;
DELEUZE, Gilles. Fouca ult. Lisboa: Vega, I 993; A imagem -tempo - cinema 2. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
dialoga com pensadores como Maurice Blanchot, Jacques Derrida, Roland
Barthes, Michel Serres, Richard Rorty, Paul Ricouer28 e com todos aqueles
que chamaram a atenção para o caráter instituinte da linguagem, todos
aqueles que romperam com a filos ofia da representação, com a filosofia da
semelhança, filosofia que apostava na possibilidade de haver uma relação de
espelhamento entre linguagem e referente, que acreditava na possibilidade
de uma articulação realista e/ou naturalista entre palavras e coisas. Herdeiros
de uma tradição que podemos remontar ao pensamento de Nietzsche,
mas articulada com todas as discussões feitas, ao longo do século xx, em
campos como os da linguística, da antropologia, da p sícanálíse, da crítica
literária e da filosofia da linguagem, além das contribuições trazidas por
vários campos da arte e pela literatura, estes pensadores podem servir de
inspiração para um campo de estudos ainda novo e sem muita tradição entre
os historiadores.29 Embora possamos encontrar em obras historiográficas
notáveis 30 o questionamento de dados termos ou noções e a prática de uma
história dos conceitos com que trabalhavam, esta área de estudos vem se
sistematizando mais recentemente, à medida que os historiadores já não
mais esperam dos filósofos ou de profissionais de outras disciplinas que
lhes forneçam conceitos ou que façam a crítica conceitual que a prática
historiográfica implica. :j:ste texto quer contribuir para este campo de
pesquisa, colocando-se como uma tentativa de realização de uma h istória
dos conceitos de folclore, de cultura popular e de cultura nordestina.
O trabalho tem como fontes princjp~is as obras produzidas pelos
folcloristas ou estudiosos da cultura popular que vão se autodenominar ou

28. Ver: BLANCHOT, /VIaurice. O livro por vfr. São Paulo: l:vla rtins Fontes, 2005; DERR IDA,
Jacq ucs. A voz e o fe nômeno. Lisboa: Edições 70, 1996; Gramatologia. São Paulo: Perspectiva,
1973; BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001; SERR ES,
Michel. Hermes: uma filosofia da> ciências. São Paulo: Graal, 1990; RO RTY, Richard. Objetivismo,
relativismo e verdade. Rio de Janeiro : Relume-Dum ará , 1997; RI COEUR, Paul. A metéifora viva.
São Paulo: LO)'Ola, s/d.
29. Ver: NIETZSCHE, Friedrich. A ga ia ciél1cia. São Pa ulo: Hem us, 1981; BAKHT 1N, Mikhail.
Estética da criação verbal. São Paulo: Jvla rtins f ontes, 1997; \'\1ITTGENSTEIN, Luclwig. 7i·atado
lógico-filosófico. Lisboa: Caloustc Gubenkian, 2002; MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e
o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2006; LEV1-STRAUSS, Claude. A M trvpologia estrutural.
Rio de )anei ro: Tempo Bras ileiro: 1975; LACAN, Jacques. O Seminário 11: os quatro conceitos
Ji111damentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 198 1.
30. Ver : AR1 ÉS, Philippe. Sobre a história da morte 110 Ocidente. Lisboa: Teorema, 1988;
O'GORMAN, Edmundo. A invençtio da América. São Paulo: Unesp, 1992; LE GOFF, jacq ues. Para
tnn novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estam pa, 1997; SA1D, Edward. Orientalismo. São Paulo:
Companh ia das Letras, 2007.
ser denominados de nordestinos. Embora autores como Juvenal Galena,
Silvio Romero, Pereira da Costa e Rodrigues de Carvalho nunca tenham
se definido como nordestinos, já que viveram e escreveram antes do
surgimento desta identidade regional, foram posteriormente incorporados
como precursores dos estudos sobre a cultura nordestina, no processo
de invenção das tradições e de definição de marcos d e origem para esta
atividade. Já autores como Gustavo Barroso, Leonardo Mota e Luís da
Câmara Cascudo, embora tenham só a partir de dado momento se assumido
como nordestinos, são aqueles que participam diretamente desta fabricação
de uma cultura regional e popular e que vão, inclusive, incorporar através
de seus escritos aqueles outros autores como partícipes desta tradição de
estudos em torno da cultura regional. Ao lado das obras escritas por estes
autores, foram usados jornais e revistas em que circularam textos por eles
produzidos e através dos quais podemos acompanhar a recepção que elas
tiveram, as repercussões em termos institucionais e práticos de seus estudos
e ações. Os jornais também foram fundamentais para termos contato com
os debates, com as discussões, com as questões que estavam sendo postas
no momento em que estes autores escreveram as obras analisadas. Através
dos jornais, das revistas, da correspondência pessoal, de escritos biográficos
e memorialísticos por eles produzidos, procuramos nos aproximar dos
eventos, nas suas distintas versões, que se constituíram em condição de
possibilidade para a emergência dos textos e dos próprios autores, como
enunciadores desta novidade que seria a cultura regional nordestina.
Se a primeira cena convocada para este livro é a de uma feira, imagem
também usada pelo novelista para metonimizar a região Nordeste, a
nordestinidade, para causar o imediato reconhecimento de um lugar
nordestino, a feira como imagem clichê do regional nordestino, este
texto também vai se constituir numa feira, uma feira de mitos, pois aqui
se pretende expor, anunciar, enunciar, trazer a público, pôr em comércio,
disponibilizar, pôr em questão, pôr em negociação os vários mitos que foram
construídos a partir da noção de cultura nordestina. Esperamos que o freguês
aqui encontre, ao contrário do espectador da novela global, material para
problematizar as imagens clichês, estereotipadas, folclorizadas, os enunciados
repetitivos, as formas e matérias de expressão desvitalizadas, despolitizadas,
das manifestações culturais que pretensamente corresponderiam a uma
tradição regional, dariam à região sua identidade, sua verdade e sua essência.
Esperamos que nesta feira de mitos o discurso do historiador, ao contrário
do discurso televisivo, sirva para embaralhar as certezas, pôr em dúvida as
verdades, suspender as conclusões e reconhecimentos fáceis e imediatos.
Esperamos que, ao invés de encontrar aqui o que lhe é familiar, rotineiro,
repetitivo, indiscutível, possa sair desta feira com o balaio cheio de dúvidas,
incertezas, incômodos e surpresas. Que em lugar de ser mais uma colherada
num caldeirão de mitos, 31 este livro seja o veneno que venha estragar o
banquete de signos 32 corroídos pelo tempo e pela repetição incessante que
nos oferece o discurso regionalista nordesti no. Esperamos que o carnaval
organizado que é a história arraste em seu cortejo estas formas e matérias de
expressão que pretensamente pertenceriam a uma dada tradição regional,
as faça diferir, tornarem -se outras, evitando reaparecerem em cortejos
bizarros e despropositados como aquele que percorreu a feira de Belém de
São Francisco no penúltimo capítulo da novela global. Este livro só quer
que após a sua leitura os produtores e agentes culturais deste espaço que
se nomeia de Nordeste possam ser senhores de seus destinos, criando,
inventando, produzindo novas formas e matérias de expressão. Que eles
exerçam suas atividades de semiotização sem os limites do regional, sem a
necessidade de serem regionais, de representarem o regional, fazendo arte,
literatura, produtos cu lturais universais, mesmo que a partir de um dado
lugar específico. É preciso enterrar definitivamente este morto, que teima em
permanecer em meio à sala, ele já exala um mau cheiro nauseante. A história
tem este papel de enterrar os m ortos à medida que deles fala, à medida que
oferece para eles novas versões, que os coloca novamente em circulação, que
os traz para novamente fazer efeito no pr~nte. Fazer a história da cultura
nordestina, de sua institucionalização como conceito, de sua enunciação
como um morto que se embalsama na folha de papel de um livro de folclore
e etnografia, é se livrar deste defunto que teima em fazer festas nas salas e
salões de palácios, museus, teatros, mercados; que insiste em dançar em ruas
e avenidas; morto que não cessa de aparecer como fantasma deslocado n o
tempo em programas televisivos, filmes, produções midiáticas, como cadáver

31. Referência à canção Caldeirão dos mitos do compositor paraibano Bráulio Tavares, gravada
pela cantora Elba Ramalho no LP Capim do Vale (1980). A letra da canção faz referência a várias
figuras míticas da chamada cultura nordestina como Corisco, Lampião, Vitalino, Pedro Malazartes
e João Grilo, além à e se remeter a algumas manifestações culturais consideradas típicas do
_V Nordeste como: o maracatu, o forró e o artesanato em barro.
" 32. Referência à canção Banquete dos signos do compositor paraibano Zé Ramalho, gravada pela
cantora Elba Ramalho no LP Capim do Vale (1980). A letra da canção também se refere a signos
da nordestinidade que seriam o cangaço, a viola, a violcncia, os engenhos, o melaço da cana e as
novenas.
que teima em empestar até a produção acadêmica regional, que adora fazer
discursos de exéquias para esta cultura que pretensamente estaria morrendo.
Está na hora de pormos um fim a esta historiografia de carpideiras que vive
chorando uma cultura que estaria em seus últimos estertores e da qual o
historiador se arvoraria de salvador, médico, enfermeiro e padre confessor.
Chega deste populismo acadêmico que está na base dos trabalhos que
pretendem resgatar, recuperar, salvar, escutar, dizer, registrar o que seria
a cultura nordestina. Este trabalho quer apenas ser um necessário passo
neste processo de exorcismo de uma dada forma de ver e dizer as atividades
semióticas produzidas nesta área do país. Pretende ao fazer a história de
um conceito, nos liberar para pensarmos outros conceitos, outras formas
de nomeação para as atividades de semiotização que vemos a nossa volta, o
que requer também novas maneiras de ver e de se relacionar com os agentes
e as ações daqueles que produzem formas e matérias de expressão ao nosso
redor. Enterrar o morto para que, livre de sua pestilência, possamos respirar
novos ares no campo da produção cultural e acadêmica no país e na própria
região.
Capítulo 1

Condições históricas de emergência

Quando da emergência da ideia de região Nordeste, nos anos 1O do


século passado, dois aspectos foram considerados elementos privilegiados
"' de singularização deste espaço, de definição de sua particularidade, de
conformação de sua identidade: a sua natureza, marcada pela ocorrência
das secas periódicas e pela rusticidade da formação de caatinga, pela
paisagem sertaneja, árida e r ústica; e a sua cultura, diferenciada em relação
a outras áreas do país, cultura que teria preservado sua autenticidade, que
representaria as próprias raízes da cultura brasileira, por não ter sofrido
os influxos deletérios da imigração estrangeira. l Uma cultura que seria
a expressão das nossas raízes ibéricas e da mestiçãgem cultural entre as
contribuições das três raças formadoras de nossa nacionalidade. Cultura que
teriãSUa melhor expressão nas matérias e formas de expressão populares,
nas manifestações culturais das populações rurais ou sertanejas, nos rituais,
lendas, contos, poesias, danças, manifestações religiosas, festas, tradições,
superstições, na literatura oral, presentes num passado que estava ficando
para trás, na sociedade patriarcal que vinha desaparecendo sob o impacto
da modernidade, da sociedade urbana, do mundo da técnica e do dinheiro,
da sociedade burguesa e da economia capitalista.
O que se abordará neste capítulo são as condições históricas de
~erg~nci a da ideia de folclore nordestino ou, simplesmente, de cultura
~s tina , já que fa lar de cultura nordestina seria falar de folclore. O que
se buscará explicar é em que momento histórico e devido a que conjunto
de fatores emergiu este objeto para o pensamento: a cultura nordestina e
como este objeto deu origem a práticas, instituições, form~de ver e dizer o
regional que, em grande m edida, ainda estão presentes em nossa produção
~ltural, ainda se fazem presentes na mídia, ainda se atualizam em discursos
e práticas, inclusive acadêmicas, na região Nordeste e mesmo fora dela.
O que se pretende mostrar é através de que práticas, de que estratégias
discursivas, de que instituições foi se gestando a ideia de que exJste uma
cultura nordestina, distinta em relação à cultura das demais regiões do país
e homogênea internamente, tendo uma história particular, maneira de se
expressar e de se processar original, autêntica, marcada pela unidade, por -
um dado ethos, que a tornaria reconhecível, visível, individualizável de
forma inequívoca.

• A) NASCE UMA SOCIEDADE DE CLASSES

Para entendermos o surgimento da ideia da existência de uma cultura


nordestina, no começo do sécu lo xx, é fundamental aval iarmos as motivações
que permitiram a visualização, neste momento, da própria distinção cultural
entre o povo e as chamadas classes abastadas ou as elites sociais. _pa~ce-m~
fundamental tentar entender por que o próprio conceito de folclore que foi
gestado em momento anterior na Europa, e que já tinha sido objeto de alguns
poucos trabalhos no país, ainda no século xrx, passa a ter uma audiência
expressiva, no início do século passado, estando no cerne do trabalho de
importantes eruditos e intelectuais do período. Acompanhando o crescimento
do número de trabalhos dedicados aos estudos do folclore nacional ou
regional, o uso crescente da noção de cultura nordestina parece ter conexão
com as transformações sociais que estavam se processando na sociedade
brasileira e, mais particularmente, nos até então chamados estados do Norte,
onde o número de autores e obras dedicados a esta temática excede, em muito,
o de qualquer outro espaço do país. Traçar um esboço, embora ligeiro, destas
transformações sociais seria condição indispensável para compreendermos
não só a extensão e centralidade que os estudos de folclore ou de cultura
popular tiveram na elaboração, definição e fixação do que seria uma identidade
regional nordestina, com o seria nuclear no entendimento do porquê de estes
estudos terem tanta audiência nesta parte do país em particular, bem como
para avaliarmos a importância política e cultural que estas obras e autores
dedicados ao folclore ou à cultura popular tiveram e têm na região Nordeste.
Num texto escrito, em 1965, por Francisco Alves de Andrade, membro
da Comissão Cearense de Folclore, em que apresentava a reedição da obra
de Juvenal Galeno, {-findas e canções populares, encontra-se uma referência
ao sociólogo Daniel Vidart em que este remete o surgimento do interesse
pelos estudos de folclore ao momento em que emerge uma clara distinção
social e um fosso em termos de costumes, hábitos e tradições entre as elites e
as camadas populares, entre as novas elites e o povo, povo que emerge como
tema, problema e preocupação. Dizia ele: "O folclórico situa-se a partir do
gyeJ.epara uma sociedade que se estratifica em elite instruída e cosmopolita
de um lado, e um setor tradicional, de humilde cepa, do outro'~ 33 Embora
Vidart esteja a se referir ao processo ocorrido, desde pelo menos os fins do
século xvm, na Europa, ele nos dá uma pista para. entendermos o que se
passava, no começo do século xx, no Brasil, para que o povo e sua cultura
houvessem emergido como tema, como problema, como preocupação de
estudos eruditos e acadêmicos.
Folcloristas e etnógrafos são acompanhados por médicos, juristas,
funcionários do Estado e policiais neste interesse pela vida do povo, pela vida
das classes ínfimas, do povo rude. Certeau nos fala, em obra clássica sobre o
tema da cultura, como, na França, os primeiros inventários sobre a cultura
popular são realizados por policiais e por agentes do Estado visando ao
controle e à censura. 34 O mesmo parece ter se passado no Brasil e no Nordeste.
Raimundo Arrais, em seu livro Recife, culturas e confrontos,35 ao abordar as
manifestações culturais populares que ocorriam no Recife, do começo do
século passado, vai perceber uma espécie de ruptura na forma como estas
manifestações são encaradas, a partir d~uas primeiras décadas do século
xx. Ao mesmo tempo em que despertam a curiosidade de estudiosos do
folclore, em que estes começam a aparecer na cidade, os médicos~ os juristas
e a polícia parecem também crescentemente preocupados com o que se passa
nos arrabaldes, nos cortiços, nas ruas e nas festas populares. De uma atitude
aeaesprezo, de distanciamento, marcado por um olhar de superioridade,
de evitação preconceituosa ou amedrontada, de participação despretensiosa
e despreocupada, as elites intelectuais e políticas passam a olhar de outra
maneira para as manifestações culturais populares, no começo desse século.
§á um deslocamento na visibilidade destas práticas, que passam a ser objeto
de curiosidade, de inventário, de regis!ro, de interesse, de classificação, de

t 33. ANDRADE, Francisco Alves de. Introdução. In: GALENO, Juvenal. Lendas e canções
Populares. 3. ed. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965, p. 11.
~ 34. CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: A cultura 110 plural. 4. ed. Campinas: Papirus,
2001.
35. ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos. Natal: edufrn, 1998, p. 79- 146.
controle e policiamento~36 A ida ao povo e às suas manifestasõe~ ulturais
se faz de forma cada vez mais frequente, guiadas agora por uma curiosidade
de saber e, também, por um afã de controlar, de ditar regras, dê dominar
estes territórios sombrios e desconhecidos.. Não se trata, apenas, de visitar
ou revisitar, mas de revistar também. Na mesma década em que emerge a
ideia de Nordeste, parece estar nascendo o interesse pelo popular, tanto por
registrá-lo, por preservá-lo, quanto por discipliná-lo e controlá-lo.
" A emergência de uma preocupação crescente com o povo e sua cultura
seria resultado, portanto, entre outros fatores, da crescente distinção de
estilos de vida, de comportamento, de valores, de hábitos, de costumes, numa
sociedade que, saída da escravidão, da estratificação social um tanto rígida
de uma sociedade escravocrata, transitava para uma sociedade nitidamente
de classes, onde os estilos de vida passam a ser importantes marcadores de
status social e onde a mobilidade social parece mais frequente. A crescente
complexização desta sociedade, com a emergência de novos atores sociais,
como a classe média em expansão ou a classe trabalhadora industrial,
parece colocar para as elites tradicionais, notadamente para aquelas ligadas
às atividades agrárias, a tarefa de repensar os critérios de distinção social e
reavaliar o que as distanciava ou aproximava dos distintos atores que agora

36. Na história do carnaval do Recife e da invenção de sua cultura popular não poderão ser
esquecidos nomes como o do delegado de polícia dr. Santos Moreira que, a partir do ano de 1908,
tentou se aproximar das agremiações carnavalescas, evitando a violência gratuita da polícia, mas,
ao mesmo tempo, procurando submetê-las ao controle policial, promovendo, inclusive, a paz entre
agremiações rivais como: Vassourinhas e Lenhadores; ou do dr. Ulysses Costa, chefe de polícia
que foi eleito juiz e árbitro do Primeiro Congresso Carnavalesco de Pernambuco; ou o nome do
jornalista Osvaldo Almeida, um mulato boêmio, que, a partir desse mesmo ano, passa a frequentar
o desfile das agremiações populares, levando para o Jomal Pequeno, em que escrevia, sob o
pseudônimo de Pierrot, informações sobre suas atividades, descrevendo suas atuações, levando o
seu linguajar e os termos que designavam seus passos e evoluções coreográficas ao conhecimento
das elites letradas, que eram seus leitores, ao mesmo tempo em que institui concursos c faz críticas
que levam as agremiações a adotarem novas práticas e temas. Foi ele que ouviu entre os populares e
divulgou a palavra frevo, tornando-o um conceito do mundo dos letrados, participando ativamente
da captura simbólica das manifestações populares pela cultura que se tornará hegemônica,
justamente porque será capaz de absorver c ressignificar aquilo que antes parecia monstruoso
c aterrador: a massa humana sem controle a encher as ruas, a tomar o espaço público para si,
sem pedir permissão e apesar das proibições. A invenção do conceito "frevo" é fundamental nesse
processo e permitirá, mais tarde, a sua incorporação ao conceito de cultura popular. Ver: SILVA,
Lucas Victor da. O carnaval na cadência dos se11tidos: uma história sobre as representações das folias
do Recife entre 1910 e 1940. Recife: ufpe, 2009 (Tese de doutorado em História); ARAÚJO, Rita de
Cássia Barbosa de. Festas: máscaras do tempo. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife,
1996, p.369, 374-377,393.
povoavam a cena pública. 37 Parece ser neste contexto que as elites agrárias
ou seus descendentes citadinos vão descobrir no camponês ou no artesão,
seus semelhantes, seus aliados na defesa de um modo de vida, de uma
cultura, de uma forma de organização social que estariam ameaçados pelas
transformações trazidas pela nova organização social, onde prevaleciam a
cidade, a indústria e o comércio. No texto citado acima há outra passagem
em que, ao definir o que seria a· cultura popular para Juvenal Galeno, o
prefâciador a conceitua como sendo "uma cultura ameaçada pela indiferença
6lírguesa e antipopular, representada pelos novos tempos': enunciado que
fala mais da opinião do próprio prefaciador do que da de Gàleno, que vivera
em uma época em que a ideia de viver novos tempos nem estava colocada. 38
A emergência da sociedade burguesa, das classes sociais em que esta se
divide, de distinções cada vez mais profundas nos modos de vida trazidas
por esta sociedade, teria tornado visível o povo e suas manifestações, como
relicários de um tempo prestes a desaparecer.
Nos escritos em que define o que seria a sociedade patriarcal, em
contraposição à sociedade burguesa, Q_ilberto Freyre assinala a maior
proximidade dos modos de vida, dos hábitos, dos costumes, dos valores,
das formas de pensamento, trabalho e atividades de diversão entre as
camadas senhoriais e as camadas populares neste tipo de organização social,
que estaria sendo suplantada e destruída pela nova forma de organização
social trazida pelo avanço das relações econômicas e sociais burguesas na
sociedad e do que chamava de Nordeste açucareiro. O próprio fato de que
esta nova classe de homens de negócio, deempresários agrícolas, não vivia
mais no campo, era absenteísta, não partilhando os mesmos espaços com
os camponeses, com os trabalhadores do eito, fazia com que houvesse um
maior distanciamento, inclusive psicológico, desta nova classe social em
relação aos homens do povo, fazendo com que este fosse visto cada vez

37. Leonardo Mota várias vezes vai se referir ao fato de que não eram apenas os folcloristas que
se interessavam, neste momento, pelo que se estava chamando de folclore. Vai cit<lr nomes que,
mesmo sendo componentes das elites políticas dos Estados nordestinos, sendo membros ligados
às oligarquias rurais, se mostravam adeptos das coisas sertanejas e populares. Por exemplo,
diz que na Paraíba homens como os Drs. João Dantas, Siqueira Campos, João da Mata, Rui
Carneiro e Temístocles Campelo, o jornalista Aderbal Piragibc, os Srs. Pedro Oscar e Tonico
Carvalho seriam provectos conhecedores de toadas de cocos e emboladas. Leota registra algumas
quadrinhas populares por eles cantadas. Ver: MOTA, Leonardo. Sertiio alegre. Fortaleza: Imprensa
l}niversitária do Ceará, 1965, p. 84.
38. ANDRADE, Francisco Alves de. Introdução. Tn: GALENO, juvenal. Lendas e canções
Populares, p. 12.
mais com certo exotismo, distanciamento e estranhamento. Apartados por
ambientes naturais e sociais diversos, os homens do campo e os da cidade, os
homens do povo e das novas elites sociais vinham desenvolvendo formas de
vida completamente à parte e quase incompreensíveis entre si, o que talvez
estivesse gerando esta curiosidade crescente por con hecer um povo que se
tornava cada vez mais desconhecido e distinto. 39 A atitude etnográfica, que
marca os estudos nomeados de folclore ou de estudos da cultura popular,
nasceria deste distanciamento entre os modos de organizar a vida, de
ordenar o cotidiano, de realizar as tarefas diárias, mas também de ocupar
os momentos de não trabalho, de realizar os principais rituais e atividades
lúdicas, rituais sagrados e profanos, das atividades semíóticas entre os
diversos grupos que cada vez mais se diferenciavam e complexizavam a
estrutura social.
Esta nova sociedade de classes que surgia vai significar, para amplos
setores das camadas populares, o maior aviltamento de suas condições de
vida, pois não passarão mais a contar com as contraprestações de serviços
e favores que caracterizavam a realidade social anterior, quando os homens
livres pobres, vivendo no interior da sociedade escravista, faziam parte de
relações sociais e de dominação que pressupunham, ao mesmo tempo, a
reverência, a subalternidade, a reciprocidade e a proteção entre os pobres
e as elites sociais e políticas.40 A emergência da sociedade de classes, do
assalaríamento, das chamadas relações livres de trabalho, contraditoriamente
representou, para muitos homens e mulheres pobres, notadamente para
aqueles recém-saídos da escravidão, a perda das poucas garantias e da
proteção paternalista que recebiam. _A nostalgia pelo retorno a essa ordem
social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, será
partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que
contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da
ideia de folclore ou de cultura popular. Nessa ideia está implícita uma inegável
saudade da ordem estamental anterior e do paternalismo e patriarcalismo
que a caracterizavam.

39. Rita de Cássia Barbosa de Araújo se refere a uma série de reportagens publicadas pelo }o mal
do Recife, no ano de 1900, na qual, representando os interesses agrários, denuncia a chegada do
capitalismo a Pernambuco c com ele a chegada ameaçadora da exploração da classe operária e da
luta de classes. Ver: ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa. Op. cit., p. 321-322.
40. Ver: TERRA, Ruth Brito Lémos. Memória de lutas: literalllra de folhetos do Nordeste (1893-
1930). São Paulo: Global, 1983, p. 17.
O historiador Edward Palmer Thompson descreve processo semelhante
que teria ocorrido na Inglaterra, quando da passagem das relações sociais
que chama de paternalistas para as relações sociais tipicamente burguesas,
entre os fins do século xvii e meados do século XIX, quando se forma,
inclusive, uma cultura propriamente operária, formação que é o objeto
central de seu estudo A formação da classe operária inglesa.41 Neste estudo
ele defende a ideia de que a organização social em termos de classe é um
acontecimento histórico recente e particular das sociedades modernas, das
sociedades dominadas pelo modo de produção capitalista. Neste processo
de emergência das classes sociais os elementos culturais desempenhariam
um papel tão relevante quanto os elementos de caráter econômico. Para
Thompson a formação de uma classe social não depende apenas da existência
êle diferenças em termos econômicos ou sociais entre grupos de indivíduos
que compõem uma dada formação social, mas se faz necessário que estes
-grupos formulem identidades sociais diversas, que através da manipulação
de símbolos, da invenção de rituais e de tradições, da constituição de uma
memória, do uso específico de uma dada linguagem particular desenvolvam
a consciência de pertencerem a um mesmo estrato social, de terem interesses
Cõmuns entre si e divergentes em relação a outros grupos. Embora, de certa
forma, naturalize o conceito de cultura popular, pois o toma como uma
realidade em si e não um conceito, inclusive estranho ao universo que
tenta nomear, os estudos de Thompson nos ajudam a perceber como este
processo de construção da própria ideia de ~ultura popular está vinculado
~emergência da nova ordem social. burguesa, com o surgimento de uma
~c i edade de classes, em que o próprio âmbito do que se define como cultura
se segmenta em diferentes universos simbólicos e os conflitos em torno da
hegemonia cultural se acentuam de forma dramática.
Permanecendo ainda no campo dos estudos marxistas, gostaríamos
de chamar atenção para os textos de Antônio Gramsci~ 2 sobre a questão da
cultura e dos intelectuais entre as camadas populares, que não por mera
coincidência são realizados na mesma conjuntura em que o interesse pelo
tema se torna candente na sociedade brasileira. Gramsci trata da realidade
de um país que, como o Brasil, se integrou tardiamente de forma plena

41. THOMPSON, Edward P. Aformaçiio da classe operária inglesa. 3 vols. São Paulo: Paz e Terra,
1987.
42. GRAMSCI. Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
aos ditames da economia capitalista e da sociedade burguesa, onde a vida
rural continuou tendo uma prevalência sobre a vida urbana, até o início do
século xx. O que seus estudos chamam a atenção é para o que considera ser
o retardamento que ocorre, neste tipo de sociedade, não só na constituição
de uma sociedade tipicamente de classes, como na própria diferenciação da
cultura em esferas apartadasÉ ta fragmentação tardia da cultura, de~ita
por Gramsci, para a Itália, será desenhada e considerada por Freyre, quando
se trata da.realidade brasileira, como sendo fruto da perda da centralidade
da família patriarcal também nos processos culturais. Quando o terreiro da
fazenda ou do engenho era o lugar de produção e realização das principais
atividades culturais, quando mesmo as manifestações cultu rais que ocorriam
nas cidades dependiam do mecenato, assistência e permissão dos grandes
senhores rurais e giravam em torno dos valores e aspirações desta camada
senhorial, haveria maior unidade cultural entre os distintos segmentos que
compunham a estrutura desta sociedade e entre as próprias regiões do país.
Haveria um lastro comum de valores e costumes que unificaria a sociedade,
que a tornaria mais harmônica, menos conflitiva, um conjunto de tradições
que estariam se perdendo e, com elas, o próprio sentido de nacionalidade e
regionalidade, de unidade cultural e política do paísY
Mesmo não endossando completamente as análises de Thompson ou
de Gramsci, por não concordar que se possam pensar as fo rmas e matérias
de expressão culturais segmentadas, radicalmente, em termos de classe,44
considero que suas análises, que tomam realidades e espaços distintos
no que se refere à inserção na sociedade capitalista, um espaço pioneiro
e considerado típico como a Inglaterra, e um espaço periférico e singular
como a Itália, são úteis para pensar o tema da emergência da ideia de fo lclore
ou de cultura popular no Brasil e, notadamente, o de cultura nordestina, por
nos permitir visualizar os laços que parecem existir entre o surgimento desta
preocupação com o povo, com o popular, e com sua cultura, da qual a própria
obra do autor italiano é um indício, e a emergência de uma nova ordem
social onde as classes passam a ser a forma prevalecente de estrutu ração da
sociedade, de definição de identidades, passam a ser lugares reivindicados
e d isputados por indivíduos e grupos sociais. Haveria uma conexão entre o
surgimento da ideia de cultura popular e a maior visibilidade das distinções

' 43. FREYRE, Gilberto. Região e tradiçrio. Rio de janeiro: José Olympio. 1941.
44. Esta é, também, por exemplo, a posição do historiador francês Roger Char tier. Ver:
CHARTIER. Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Di fel, 2002.
sociais, a explicitação de forma mais clara das distâncias não só econômicas
e políticas que separavam os diversos estratos que compunham a sociedade,
que já eram bastante perceptíveis nas organizações sociais anteriores, mas
também das diferenças de valores, de formas de pensar, de costumes, de
estilos de vida, daquilo que se passa a definir como culturas entre estes
distintos atores sociais. No Brasil e, notadamente, na região que estava
nascendo como Nordeste, espaço periférico do capitalismo brasileiro, que
já vivia esta mesma condição em relação à economia mundial, este processo
tardio de constituição de uma sociedade de classes parece ter respondido
também pelo próprio retardamento das discuss&es em torno da noção
de povo, de popular, de folclore, de cultura popular, se comparado com o
mesmo processo ocorrido em alguns países da Europa.

-. B. Ü POVO COMO QUESTÃO POLÍTICA

Com o fim do Império e a instalação do regime republicano, uma


questão que já era colocada, desde pelo menos meados do século anterior,
tendo se expressado com ênfase no movimento romântico, será novamente
retomada: quem seria o povo brasileiro? Como defini-lo, como entendê-lo?
~efinido como um regime que tinha no povo a base de sua sustentação e
legitimação, a República vem recolocar para as elites políticas e intelectuais a
tarefa de pensar a noção de povo e de popular, a tarefa de conhecer este povo,
~ dirigir ações e discursos em sua direçãõ. O povo se torna, portanto, uma
noção central para todos os discursos do período, vindo sempre associada
à própria ideia de nação ou de nacionalidadeY Torna-se comum a assertiva
de que no povo estaria a própria essência da nacionalidade, que ele seria o
repositório do que seria o espírito da nação, ele guardaria nossas tradições,
aquelas que seriam a verdade da nacionalidade, daquilo que chamavam de
seu gênio ou caráter, numa retomada de noções caras ao romantismo e ao
naturalismo, para repensar o papel que este povo desempenharia na política
e na cultura nacionais.

45. Rita de Cássia Barbosa de Araújo chama a atenção para o significativo fato de que o dia 15
de novembro de 1910, aniversário da Proclamação da República, é escolhido para a realização do
Primeiro Congresso Carnavalesco de Pernambuco, uma iniciativa do jornalista Osvaldo Almeida
e das autoridades policiais do Estado, visando a ordenar e civilizar as atividades carnavalescas.
Um povo civilizado e ordeiro era visto como o povo que a República precisava e almejava. Ver:
ARAúJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit. p. 390.
Esta recolocação em cena da temática do povo é um dos elementos
importantes para pensarmos a emergência de uma formação discursiva que,
notadamente a partir dos anos 1Odo século PESado, tem na articulação entre
o nacional e o popular uma de suas regras basilares. Os discursos e práticas
das elites políticas e intelectuais passam a se remeter a esta articulação entre
a questão da nação e a questão do popular. Este me parece um dos elementos
gue nos ajuda a compreender a emergência da ideia de cultura nordestina
num contexto em que se discute quem e como seria o povo brasileiro
e quais as características particulares que este teria, que contribuiÇões
§ingula~dariuara a civilização. É a mesma questão transplantadã do
plano nacional para o plano regional, sendo este um recorte através do qual
melhor se compreenderia o próprio todo. Ir ao povo, conhecer de perto
suas manifestações culturais e artísticas, co;}hecer o seu cotidiano, as suas
atividades, sua forma de pensar, seria a tarefa de elites realmente patrióticas,
realmente preocupadas em romper com a dependência de modelos
estrangeiros, seja na cultura, seja nas artes, seja na vida política.
Mas, ao contrário do século XIX, a retomada da questão de quem seria
o povo brasileiro, de que identidade ele teria, se dá num contexto em que
a complexidade da sociedade só se ampliara. Com o fim da escravidão,
pelo menos juridicamente, os ex-escravos, os negros e seus descendentes
passavam a integrar a cidadania brasileira, passando a constituir parcela
significativa deste povo ainda indefinido e em formação. A crescente
imigração estrangeira incorporava uma série de novas etnias à população
brasileira. A diversificação social também se dava com o aparecimento
de novos personagens sociais como a classe trabalhadora industrial. Esta
diversidade de personagens tan1bém implicava a ampliação do número de
conflitos sociais, da emergência do que chamariam de questão social, que
exigia novos saberes e práticas no sentido de ser enfrentada. O povo aparece
não apenas com um rosto ainda mais diversificado e colorido, mas com uma
face cada vez mais perigosa, amedrontadora. Fenômenos como o do cangaço
ou das manifestações messiânicas, da qual Canudos foi a mais simbólica,
por ter sido considerado um desafio à República nascente, tornavam o
popular, o seu lugar, como um problema a ser pensado e equacionado. Esta
diversidade permitia, inclusive, que se escolhessem aqueles personagens que
efetivamente representariam o povo que se queria ver constituído e aqueles
que deveriam ser combatidos ou extirpados do convívio social.
Como veremos, na definição do que seria a cultura nordestina, de como
seria o povo nordestino, muitos destes novos personagens que estavam
emergindo na cena pública serão insistentemente recusados. O nordestino
será representado pelos personagens populares que antecedem a emergência
da sociedade urbano-industrial. A elaboração da ideia de cultura nordestina
me parece nascer, entre outras coisas, da reação à emergência desta nova
realidade social e aos conflitos que a constituem. O povo que será figurado
nestes discursos que definem o que seria a cultura regional é um povo
~uo, simplório, subserviente, embora corajoso, destemido, até heroico.
_t na reação a esta face perigosa e amedrontadora do povo que se elaborará
-; face do povo nordestino, bem como na reação aos novos personagens da
<jgcgle. Ele será representado pelo homem do sertão, pelos personagens do
sertão ou pelos personagens ligados a atividades artesanais (jangadeiros,
pescadores, vaqueiros), recusando-se assim o novo trabalhador da indústria
como seu representante. O folclorista nordestino teria como tarefa tornar
visíveis estes grupos sociais, estes personagens pertencentes à velha ordem
social, que produziriam manifestações culturais que eram desconhecidas no
litoral da região e fora dela:

Apaixonado, desde a minha meninice, pela observação e estudo dos costumes,


da linguagem e da poesia das nossas gentes do sertão, seduziu-me a vaidade
de ser no nosso país um arauto da inteligência do brasileiro nordestino.
No Rio de Janeiro, em doze capitais de Estado e nas principais cidades de São
Paulo e Minas, populosos centros urbanos patrícios que visitei há três anos,
todo me devotei a uma campanha de morigerado nacionalismo, refutando
a velha injustiça de as populaçõeslitorâneas ou citadinas só enxergarem
no sertanejo ou o cangaceiro de alma de lama e de aço a que se reporta
Gustavo Barroso, o u o ser desfibrado e lerdo que nwngína, de cócoras e tão
inexoravelmente caricaturado por Monteiro Lobato.46

Leonardo Mota, como será comum entre os intelectuais, os homens de


letras que assumem a identidade nordestina, vai se colocar como defensor
deste espaço vilipendiado, desconhecido naquilo que tinha de mais valioso:
o seu povo autêntico e a cultura que este produzia. Ele se diz um porta-voz
dos homens do interior, lutando contra o divórcio que se aprofundava entre
os espaços do sertão e do litoral, tentando mostrar, no levantamento das
matérias e form as de expressão produzidas por estas populações, por estes

' 46. MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. São Paulo:
Monteiro L<>bato, 1925, p. 4.
grupos pertencentes a uma ordem social anterior, que as generalizações
estouvadas que se faziam sobre a região nasciam do desconhecimento
daquilo de positivo que este povo era capaz de criar. Ainda hoje, sempre
que vítima de preconceitos regionais, os letrados nordestinos, as suas elites
políticas e intelectuais, independente da posição política que tenham,
utilizam este discurso que aponta o valor cultural da região, que toma o que
seria a riqueza do folclore regional, a importância das tradições culturais
nacionais que ela preservaria, como matéria de defesa e de distinção deste
espaço. )::mbora pobre economicamente, o Nordeste seria uma região
_rica culturalmente; embora subordinada politicamente, teria uma cultura
autõnoma, autêntica, independente e soberana. Mesmo em meio à pobreza,
ao abandono dos poderes públicos, notadamente do Estado nacional, mesmo
vítimas da calamidade periódica das secas, os nordestinos, os homens do
povo, os homens do sertão, seriam capazes de produzir manifestações
culturais expressivas e esteticamente representativas da cultura nacional:

Fui assim, meus Srs., fui, como estais vendo, fui intransigente na defesa do
sertão esquecido, do sertão ridicularizado, do sertão caluniado e só lembrado
quando dele se quer o imposto nos tempos de paz ou o soldado nos tempos de
guerra. E foi, sobretudo, contra o labéu de cretinice do sertanejo nordestino
que orientei a minha documentada contradita: em todo o meu 'Cantadores'
e nas conferências que proferi, de norte a sul, pus o melhor dos meus
empenhos em fazer ressaltar a acuidade, a destreza de espírito, a vivacidade
da desaproveitada inteligência sertaneja, de que os menestréis plebeus são a
expressão bizarra e esquecida, apesar de digna de estudos.
Quando de regresso da minha peregrinação, num inolvidável serão de letras
no lar patriarcal do legendário Juvenal Galeno, tive de agradecer cativante
preito da intelectualidade de nossa terra, assegurei o meu propósito de
prosseguir na minha bem intencionada propaganda das virtudes rácicas
da gente sertaneja em quem Álvaro Fernandes descobriu o barro plástico,
o sólido cimento e Euclides da Cunha descobriu a rocha viva da nossa
nacionalidadeY

47. MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, p. 6-7.


c. OESTADONACIONAL,ACENTRALIZAÇÃOPOLÍTICAEA ((DESCOBERTA,
DO REGIONAL

Embora existam estudiosos do folclore espalhados por todo o país,


é inegável a concentração deles nas áreas que se tornarão periféricas ao
processo de desenvolvimento da sociedade industrial, da sociedade moderna
e capitalista no Brasil. Os estudos de folclore parecem estar conectados
com este processo de marginalização e subalternização de dadas áreas e
iarcelas das elites políticas e intelectuais, à medida que avança o processo de
constituição de um espaço nacional cada vez mais c'entralizado em torno de
determinadas áreas econômicas e políticas. Renato Ortiz já havia chamado
; atenção para o fato de que a descoberta da cultura popular, eu diria sua
invenção, por parte dos intelectuais, se deu preferencialmente nos países
periféricos da Europa, onde a questão nacional se resolve tardiamente como
é o caso da Alemanha e da Itália. Se no Brasil, a emergência dos estudos do
folclore também acompanha o su rgimento da questão nacional, eles vão se
intensificar, justamente, quando a formação da nacionalidade parece chegar
a um momento decisivo e deste processo são alijados determinados espaços e
determinados grupos sociais. A emergência dos estudos de folclore regional
e a emergência da noção de cultura nordestina parecem ser inseparáveis do
processo de declínio de importância econômica e política vivido por este
espaço e suas elites, que parecem temer não restar espaço para ocuparem,
também, no mundo das letras. O estudo do folclore local, das tradições
regionais parece ser uma forma de defesããe um dado modo de vida, de uma
dada estrutura social, de um dado momento histórico enl que este espaço e
estas elites ocuparam outra posição na correlação de forças e nas disputas
regionais, entre as várias áreas do país. Renato Ortiz sugere que o estudo da
~ultura popular seria uma espécie de consciência regional que se contraporia
~o traço centralizador do Estado. 48 O saber folclórico nasceria, portanto,
também como um saber subalterno, menor, periférico, um saber que precisa
todo o tempo ser justificado, defendido, um lugar de menor prestígio, mas
um lugar possível para o letrado de famílias e espaços em declínio. Na carta
escrita por Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo"9 desaconselhando-o

• 48. ORT!Z, Renato. Românticos e folc/oristns: cultura popular. São Paulo: O lho Di\gua, s/d, p.
67-68.
' 49. Carta d e Mário de Andrade a Câmara Cascudo, 9 de junho de 1937. In: MELO, Veríssimo
de (org.). Cnrtns de Mário de Audrnde n Luis dn Cilmnrn Cascudo. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000,
p. 146· 150.
a continuar escrevendo história e praticamente reservando para ele o papel
de alguém que ia registrar as curiosidades locais, a cultura popular local, o
folclore ameaçado de desaparecimento pelo progresso, _Earece-me haver, por
parte do intelectual paulista, certa visão hierárquica entre os saberes e os
espaços do país destinados a desenvolvê-los, pois reserva a história, o saber
nobre, para figuras intelectuais localizadas no centro do país, e o folclore
para os intelectuais de província como o potiguar. Sua carta parece deline_ar
o que Doreen Mossey chama de geografia do conhecimento, em que a
produção de dados saberes é associada a dadas espacialidades.50 E não será
mera coincidência que esta carta de Mário seja uma resposta a uma carta
de Cascudo em que este conta seu estado de penúria financeira e solicita ao
amigo paulista acesso a alguma publicação em que pudesse escrever para
ganhar a sobrevivência. O folclore parece ser atividade destinada a intelectuais
em estado de penúria financeira ou de prestígio e um saber típico de áreas
carentes de recursos e de poder, de centralidade na vida política e intelectual
do país, quando não a figuras menores no campo do saber. Se compararmos
o número de estudiosos do folclore radicados ou que estudam a chamada
cultura popular em São Paulo com aqueles que, mesmo não radicados no
Nordeste, estudam o que seria a cultura popular desta região, este raciocínio
nos parecerá bem razoável.
O folclorista tende a se apresentar, inclusive, como representaní!je
sua região, como um defensor de seu espaço, como alguém que através de
seu trabalho traz à tona os tesouros culturais, as tradições que legitima!}am
aquele espaço, que demonstrariam a sua importância para a cultu ~a
nacional. O folclore regional seria a expressão da particularidade desta
área e motivo mesmo de reconhecimento de sua existência autônoma. -
Neste gesto de demarcação da diferença cultural e, ao mesmo tempo, da
identidade que definiria uma dada região, explícita-se a sua defesa enquanto
espaço autônomo, que deve ser reconhecido politicamente e assistido
economicamente pelo Estado nacional. O folclorista passa a se dizer e ser dito
como a própria expressão de seu espaço, como aquele que encarna não só
em seu trabalho, mas no seu próprio corpo, no seu próprio gesto, na sua voz
a região a que pertence. Seu corpo, seu rosto, sua escrita vai se confundindo
com o próprio espaço do qual seria representante, o "folclorismo" seria
"um processo incomprimível de exteriorização regional e consciente, de

50. Ver: MASSEY, Doreen. Pelo espaço - uma nova política de espacialidade. São Paulo: Bertrand
Brasil, 2008.
permanência no solo': como dirá Cascudo sobre Leonardo Mo ta. 51 Embora
se diga um estudioso da cultura popular regional, um amante da cultura do
povo de süãterra de nascimentõ, é ele próprio, e não apenas aqueles que
são designados como sendo o povo, aquilo que é nomeado como senào o
popular, que irá representar a região. Se Cascudo se torna o provinciano
incurável, aquele que é a encarnação de sua cidade e de seu Estado, é porque
dedicou a sua vida a estudar as coisas simples e abandonadas, as coisas
sem importância, sem utilidade, as coisas características de seu povo e de
sua terra. &ele que, ao escrever um prefácio para o livro Cantadores, de
Leonardo Mota, o apresenta como uma espécie de metonímia de seu espaço.
Ver Leota, ouvi-lo, era ver e ouvir o sertão do Ceará, o sertão nordestino, a
sua região, a qual defendia através de seu trabalho:

Ouvi-lo era ver o sertão inteiro, tradicional e eterno, paisagem horizontal dos
taboleiros, candelabros de mandacarus, vulto imóvel das serras misteriosas,
ondulação verde do panasco na babugem das primeiras águas; vozes, cantos,
benditos, aboios, feiras, cangaceiros, cantadores, assombrações, chefes
políticos, analfabetos imortais, populares, soldados, comboieiros, luares,
entardeceres ...
Em qualquer parte do Brasil que estivesse ressuscitava o Nordeste como
nenhum escritor poderia fazer ou outro artista tentar. Não era o Embaixador
mas a própria Terra com a gente palpitante...
Para os amigos de Leota, falta a voz. A voz multíplice, poderosa, inesgotável
nos timbres imitadores; a voz mágtca, de cego pedinte, de comando, de
declamação; voz lírica, de sereneiro, de recitativo, de pregador, de feiticeiro,
de cicio e berro, de choro e clamor, de feirante mentiroso e de retirante
resignado; romeiro do Padre Cícero, devoto do Canindé...
Ouvi-lo dizer versos de cantadores, fazendo valer as intenções e os
subentendidos inexistentes e saborosos; dizer poemas de fogo e fumo, vividos
na mímica impecável, intuitiva, inseparável; depois encontrar todas as figuras
do Nordeste, verazes, reais, absolutas, na sua voz milagreira de saudade e de
fidelidade lindas, eram suas "constantes': ..

• Si. CASCUDO, Luís da Câmara. «Aí começa o sertão!': In: MOTA, Leonardo. Cantadores.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961, n/p.
O seu folclorismo era expressão mnemônica. A sua era a história da gente
cearense, fiel e sofrida no cruel nordeste, como diz Pedro Calmon. 52

Figuras do Nordeste. _Os estudos folclóricos, os chamados estudos de


cultura popular vão traçar, justamente, a figura do Nordeste, vão figurá-lo
no mesmo momento em que figura o que seria a sua cultura, os elementos,
os signos, as imagens, os eventos, os sons, os gestos, que remeteriam a esta
identidade regional, que passariam a representá-la: o sertão, o mandacaru,
as vozes líricas, os cantos fanhosos, os benditos chorosos, os aboios, as feiras,
os cangaceiros, os cantadores, os chefes políticos, os analfabetos imortais, as
assombrações, os comboieiros, os luares, os entardeceres, o choro, o clamor
de cegos pedintes, o cicio, o berro, os feirantes, os retirantes, os romeiros
de Padre Cícero e Canindé. No mesmo texto em que descreve a figura de
Leota, em que figura o próprio folclorista, Cascudo vai agenciando matérias
e formas de expressão que particularizariam, que definiriam o que seria o
Nordeste. Leota e o Nordeste vão se fundindo, o folclorista vai se tornando
mais uma figura a dizer o regional, a ser a sua própria incorporação, a
sua "expressão mnemônica': É esta operação de fusão entre o folclõre,
o folclorista e a própria região que faz com que ainda hoje associe~s o
Nordeste a uma região folclórica por excelência, que faz com que sempre
que pensamos na cultura nordestina a vísualizamos como uma cu!tura
tradicional, uma cultura marcada pela presença e riqueza do folclor~. A voz
do folclorista é a voz milagreira da saudade, como dirá Cascudo_, aquela que
constrói a cultura deste espaço como sendo tradicional, como sendo uma
cultura a ser evocada porque ligada ao passado, em vias de extinção; vozes
~éis a seu espaço, à sua terra, à sua gente, vozes que verbalizam, cai!!_am,
gemem, gritam, declamam, levantam-se para defender a terra amea.çada
de desaparecer, não apenas econômica e politicamente, mas culturalmente
também. Assim como a cultura popular, assim como o folclore, o Nordeste
é uma região que precisa de defesa. t!_ão será mera coincidência que a maior
parte dos folcloristas nordestinos pertence a famílias tradicionais da região,
~az parte de clãs políticos que dominaram, por certo tempo, a política de seus
Estados, chegando muitos deles a fazer parte da administração pública em
postos de comando. 53 Muitos aliaram a militância político-partidária às suas

52. CASCUDO, Luís da Câmara. "Aí começa o sertão!': ln: MOTA, Leonardo. Cautadores, n/p.
53. Vejamos, por exemplo, a biografia de Clodomir Silva, um estudioso dos costumes populares
de Sergipe: Clodomir de Souza e Silva, que. pela sua importância, deu nome a uma biblioteca
pesquisas no campo do folclore, tendo na aproximação com o Estado e com
os grupos políticos locais o apoio para estas atividades. Muitos dos livros
publicados por eles tiveram o patrocínio dos poderes locais ou estaduais.
As gráficas oficiais foram pródigas em realizar a publicação deste tipo de
trabalho que pouco interessava às editoras comerciais. A militância política
r~g~onalista aliava-se, assim, à militância no campo cultural no sentido de
definir o que era a cultura da região, de defendê-la, tal como se defendiam
os pretensos interesses da região. Manter e defender o folclore regional, a
cultura regional, passa a ser uma forma, também, de militância política
regionalista, uma de suas faces mais destacadas, que legitima, por seu turno,
não só a atuação intelectual do folclorista, mas a sua atuação como agente
político, como representante da região. Esta relação entre a defesa da cultura
regional e a tomada de posição política contra aquilo que é visto como sendo
a marginalização deste espaço, o injusto abandono de uma região que tanto
contribuíra para a história nacional, se explicita claramente no discurso do
próprio !_.eonardo Mota:

Protestei contra essa mania de autodesmoralização que tristemente nos


singulariza... Fiz lembrado que o publicista baiano Lemos Brito depõe num
dos seus livros que assistindo, uma vez, a uma vaquejada nas planícies
verdejantes do Ceará Mirim, ouviu do presidente eleito da República, o
saudoso conselheiro Afonso Pena, esta exclamação arrebatada: - Sinto-me
orgulhoso de ir governar a um povo que nestes valentes vaqueiros apresenta
lípos extraordinários de força e bravr:rm·. Provei que nos sertões do Nordeste

municipal em Aracaju. a uma loja maçônica, ao Grêmio Escolar do colégio Atheneu Sergipense
e a uma travessa no bairro Ge túlio Vargas, também em Aracaju. Jo rnalista, escritor, advogado
c político, ele integrou a elite intelectual sergipana entre 1920 e 1932. Clodomir nasceu em
20 de fevereiro de 1892. na cidade de Aracaju. Seus primeiros anos de estudo foram feitos no
colégio Atheneu. Aos dezenove anos iniciou a carreira de jornalista, escrevendo para diversos
jornais, entre eles Correio de Aracaju. Estado de Sergipe e Sergipe Oficial. Cursou a Faculdade de
Direito de Recife, integrou a primeira geração do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe,
a Loja Maçônica Capitular Cotinguiba e a Academia Sergipana de Letras. Foi ainda professor
do colégio Athcneu e da Escola Técnica de Comércio Conselheiro Orlando, além de deputado
estadual por duas vezes. O intelectual faleceu de febre tifoide em lO de agosto de 1932. Ainda hoje
é considerado um estudioso que contribuiu para "revela r'' a sergipanidade e para "recuperar a
cultura popular sergipana·: Os últimos governos municipais de Aracaju, nomeados de ''populares':
deram enorme destaque a Clodomir Silva c a sua obra. com a participação, em várias cerimônias
em sua homenagem, de poetas e cantadores populares contemporâneos. Ver: http:/fwww.aracaju.
se.gov.br/indcx.php?act=leitura&codigo=6040. Consultado em 2 de março de 2009; c SILVA,
Clodomir. Minha gente: costumes de Sergipe. Rio de janeiro: P. Pongetti, 1926.
não vegeta molemente uma patuleia de inúteis, à feição do caboclo de
Urupês. Repeti sob aplausos o que dissera lldefonso Albano: -'Quem vive no
Nordeste não é Jeca Tatu, é Mané Chique-Chique. E Mané Chique-Chique
não vive de cócoras, porque acocorado ninguém dá vivas à Liberdade, nem
liberta escravos, nem abate ditadores. nem funda Repúblicas, nem desbrava
florestas ... e Mané Chique-Chique, quatro anos antes do 13 de maio, quebrou
os grilhões e fechou as senzalas dos cativos; sessenta e cinco anos antes do 15
de Novembro, fundou a Confederação do Equador; cinco anos antes do 7 de
setembro, gritou a libertação nacional'! 5'1

Nesta conferência Leonardo Mota, curiosamente, agencia os mitos


formadores do discurso da identidade cearense para agora estendê-los a todo
o Nordeste, sinal de que esta região, de que este conceito agora abarcav~ ~
~ea lidad e cearense, embora a extrapolasse. Mota agencia a famosa polêmica
entre o político cearense Ildefonso Albano55 e o intelectual paulista Monteiro
Lobato em torno da figura do Jeca Tatu,S6 como uma figura capaz de dar
conta de representar o que seria o homem do interior, o matuto, no caso
paulista, o caipira. Albano vai, justamente, contrapor ao caipira paulista,
o sertanejo nordesti'Iiõ:-parã o qual inventa outra representação, o Mané
Chique-Chique, o homem que no próprio nome indicia ser produto do meio,
da natureza inóspita e agressiva do sertão. Usando da mesma contraposição,
Mota defende o sertanejo nordestino mostrando o que seria não só a sua
capacidade de criação cultural, a sua inteligência e vivacidade, mas também
a sua contribuição para a construção da nacionalidade, quando relembra
a participação decisiva destes na incorporação do Acre ao território
brasileiro. 57 Num discurso de cobrança por reconhecimento da contribuição
para a história do país que teriam dado estes homens, verbaliza, na verdade,
a insatisfação das elites regionais deste espaço com a centralização política e
a perda de prestígio em nível nacional que vinham sofrendo, a sua própria
perda de centralidade nos rumos da história nacional. O sertanejo parece
§.~r uma metonímia do cearense, o cearense uma metonímia do nordestino.
!.,ndependentemente de qualquer divisão de classe, é como se todos fossem

~ 54. MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, p. 4-5.


55. lldefonso Albano (Fortaleza, 12 de fevereiro de 1885- Rio de Janeiro, 22 de dezembro de
1957), político cearense, eleito deputado federal por aquele Estado, intendente municipal em
Fortaleza (1912-1914, 1921-1923) e presidente do Estado do Ceará (julho de 1923-julho de 1924).
56. Ele aparece em: LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1918.
57. MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, p. S.
se.ft~ej.os, tanto o homem que fala: como o de ~e se fala, criando~"
unidade e uma solidariedade regional necessária para enfrentar o que
~ coilloã discriminação dos poderes públicos e o desconhecimento
das elites de outros es_Qaços. Não é por pura coincidência que o alvo do
discurso, o opositor, é um intelectual paulista, um dos homens de maior
poder no momento, pois detém em suas mãos a editora e a revista que têm
0 dom de consagrar quem a elas tem acesso. Homem que representaria no
campo cultural o mesmo poder que teria o próprio Estado de São Paulo,
as suas elites políticas, que seriam praticamente donas do Estado nacional,
acusando-as de serem insensíveis à situação do Ndrdeste e de terem uma
visão preconceituosa e equivocada em relação a seu povo. Este discurso
de ressentimento em relação a São Paulo é uma marca do regionalismo
nordestino, presente até hoje. 58 Ele apresenta ~_!.l<jo cultural d<?
Nordeste, seu caráter }Utêntico e nacional, como um aspecto que torna
esta região superior a um Estado que por seu cosmopolitismo, pela invasão
estrangeira que sofreu, nada de autêntico em termos culturais produziria. São
Paulo, ao contrário do Nordeste, seria rico economicamente, seria poderoso
~ticamente, mas pobre culturalmente, subordinado culturalmente aos
ditames da superficial e decorativa cultura burguesa, a cultura da moda, do
reClame, das modernidades, sem raízes e sem tradições históricas, chegando
; se discutir se existem ou não manifestações autenticamente folclóricas
- ---
neste Esta~o. 59
Os discursos que formulam a ideia de Nordeste e de cultura nordestina
expressam, muitas vezes, este desconteõtãmento com o lugar ocupado por
este espaço na política nacional, exprimem a reação das elites políticas e
intelectuais de Estados que se veem como preteridos pela política do governo
da República, que se veem como elites alijadas das pril1cipais decisões
políticas do país e discriminadas pelas atitudes e políticas do governo central,
através de uma nostalgia em relação a uma clara defesa da Monarquia.
Os estudiosos do que seria o folclore, os inventores da chamada cultura
nordestina vão buscar, nas manifestações culturais das camadas populares,

58. Para o papel que o ressentimento pode desempenhar na história e na relação com o passado,
ver: NAXARA, Márcia Regina Capelari; BRESClANl, Maria Stella. Memória e (res)selllimenlo.
Campinas: Unicamp, 2004.
59. A adoção do espaço regional para tratar das manifestações culturais do país, notadamente
daquelas que seriam das camadas populares, aparece de forma clara no livro de: DIÉGUES
JÚNiOR, Manuel. Regiões culturais do Brasil. Rio de janeiro: Inep/ mec, 1960, o que mostra a
Permanência e a longevidade deste critério, ao longo de todo o século x.x.
memórias, ícones, formas e matérias de expressão que remetem ao país e à
sociedade dos tempos do Império. Muitos destes folcloristas pertenciam a
famílias que dispunham de prestígio político e de destaque social e cultural
durante o regime monárquico, que responsabilizavam a República pelo
declínio político e econômico em que muitas se viam. A reação das camadas
populares a dadas políticas do regime republicano, como a da laicização do
Estado, com a separação entre a Igreja e o Estado, a adoção do casamento
civil, somadas ao seu caráter autoritário, excludente e repressivo, muitas
vezes antipopular, leva a que o povo seja visto como um aliado destas elites
que cultuam ainda a memória da monarquia, através da qual cultuam a
memória da própria sociedade senhorial, estamental e escravista, da qual
sentem indisfarçável saudade. A invenção da cultura nordestina parece ser
inseparável desta nostalgia aristocrática e!11onárquica, que os estudiosos ~o
folclore vão localizar também no seio das camadas populares, explicitadas
em suas manifestações culturais, em que símbolos e signos ligados a uma
ordem senhorial, estamental, aristocrática e monárquica ainda seriam
êultuadoS: Afinal, proliferavam nestas produções culturais das camadas·
populares referências ao rei, ao imperador, à monarquia, a príncipes,
princesas, a nobres e plebeus, a reinos e reinados, a coroas e coroações, a
cortejos de cavaleiros e damas, a cerimônias de beija-mãos, a tronos e cetros,
a brasões e outros símbolos heráldicos. Estes estudiosos localizam no seio
do povo o que seriam opiniões elogiosas em relação ao período monárquico
e críticas em relação ao período republicano. Ao contrário do que querem
fazer crer, o trabalho folclórico está longe de ser um trabalho apolítico ou
despolitizado. Se Câmara Cascudo com frequência se disse avesso à atividade
política, dela participou ao longo de toda a vida: crítico da República, no
entanto chegou a ser nomeado deputado estadual, em 1930, como membro
da oligarquia local;60 foi chefe da seção da Ação Integralista Brasileira no
Rio Grande do Norte e membro do seu Conselho dos Quatrocentos, além
de saudar com entusiasmo um movimento monarquista organizado nos
anos 1930; anticomunista, apoiou o Estado Novo e, mais tarde, o golpe
militar de 1964. Este monarquismo de Cascudo, que o motiva, inclusive, a
produzir alguns de seus livros dedicados à História, será um traço presente
em outros estudiosos da cultura nordestina e ressaltado por eles como
elemento também presente nos meios populares. Não podemos esquecer
que um dos motivos alegados para a dura repressão feita pela República

60. CASCUDO, Luís da Càmara. O tempo e eu. Natal: Imprensa Universit<íria, 1968.
nascente ao movimento de Canudos foram as críticas feitas por Antônio
Conselheiro ao regime, que passou a considerar o arraial do morro da Favela
como sendo uma Troia monarquista.6 ' Leonardo Mota, por exemplo, lança
mão do que seriam as opiniões e escritos de um caipira paulista, chamado
Joaquim Bentinho, personagem do folclorista Cornélio Pires62 - um típico
estudioso citadino das coisas caipiras para fazer delas motivo de riso -sobre
a República, para falar do sertão alegre. Por que Mota reproduz num livro
sobre a face alegre do sertão nordestino a narrativa de um caipira paulista?
Leonardo Mota parece fazer de seu ofício uma forma de intervenção política,
de veiculação de suas ideias e opiniões políticas, c0locando-as na boca de
pessoas que seriam do povo: matutos, sertanejos e, quando necessário, até
caipiras paulistas. Vejamos como o discurso do folclore está longe de ser
inocente politicamente:

Mas, o Joaquim Bentinho interveio:


- Qual! Negóço de Gunverno pra mim é a mesma coisa que criação de
porco... A gente ricói o capado magro no chiqueiro. Bota um jacá de mío,
de menhã; bota outro jacá a mei-dia; bota outro jacá à boca da noite: - de
menhã, o chão tá limpo... O porco vai comendo, vai comendo e engordando,
vai engordando inté não pudê mais de gordo: - os óio empapuçado, as oreia
caída, bochechão estufado... Tá gordo, só qué dormir e roncá. A gente não
precisa mais nem botá jacá de mío, basta uma espiguinha: - ele ispromenta
e larga. Já comeu muito, tá gordo, tá cnfarado ... Esse é o imperadô! Mas,
República?!. .. A gente ricói um, ant~csse um engordá, sai e entra outro: -
não h ai mio que chegue! ...61

Mota atribui muitas falas como essa ao que chama de um sertanejo,


identidade que utiliza, todo o tempo, em suas obras, para nomear os sujeitos
das falas e versos que diz reproduzir fielmente, sem que nunca diga a que
grupo ou classe social pertencem tais figuras, embora deixe entrever que
muitos deles são proprietários de terra e até membros das oligarquias locais.64

61. Ver: MACEDO, José Rivair; MAESTRI, Mário. Belo J\tfonte - uma história da guerra de
Canudos. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
62. Ver: PIRES, Cornélio. Co11versas ao pé do fogo. Rio de Janeiro: C ia. Ed. Nacional, 1927.
"63. MOTA. Leonardo. Sertão nlegre, p. 93.
64. Podemos entrever quem são os sertanejos de que fala Mota, por historietas como esta: "A
dever os cabelos da cabeça, o João Constantino, sertan ejo honrado, falira durante a 'seca de 15; em
Massapê, no Ceará. À proporção que lhe iam aparecendo os credores, desfazia-se ele dos últimos
Vejamos, por exemplo, a seguinte comparação entre as atitudes de D. Pedro
II e de Epitácio Pessoa em relação ao combate à seca no Ceará, mais uma vez
um embate entre Império e República:

Junto à estátua de D. Pedro u, na Praça da Sé, em Fortaleza, um sertanejo


monologava:
- Nosso Imperadô velho! Papai Pedro! Isso foi o único homem de bem que
essa nação já deu!
Alguém aparteou que também o Presidente Epitácio Pessóa merecia a
gratidão dos cearenses, pois eram devidas à iniciativa de Sua Excelência as
obras contra as secas. O matuto deu um muxoxo de desdém e para exprimir
que, ao tempo da monarquia, os socorros aos flagelados eram diretos, ao
passo que no quadriênio Epitácio se exigiu penoso trabalho de organismos
depauperados, combalidos pela fome, sustentou:
- Como nosso Imperadô Velho daqui a cem ano não nasce outro! Pitaço...
Papai Pedro mandava já cozinhado e o Pitaço mandou cru! 65

Parece-me que Leota, assim como a maior parte daqueles que fabricaram
a ideia de cultura nordestina, parecem sentir uma enorme nostalgia da
época em que já recebiam as coisas cozinhadas; agora elas chegavam cruas
e nuas. Os sertanejos, na verdade as elites agrárias desta área do país, se
queixavam da perda de privilégios políticos e econômicos que a passagem
do Império para a República veio significar. 6: fabricação da cultura _.e.opular
_se faz na saudade de reis, rainhas, condes, barões, castelos, reinos, feudos,_
bandeiras, brasões, cortejos, que apareciam como elementos constituintes
e participantes de várias atividades culturais e semióticas das camadas _
populares, recém-saídas da sociedade monárquica. É nelas que as elites em
aeclínio vão encontrar ainda viva uma memória da sociedade estamental e _
hierárquica que se transformava rapidamente. A defesa que passam a fazer da
preservação dessas manifestações culturais é a luta, não só pela preservação
dessa memória, mas também das relações sociais e da estrutura política e
econômica que permitiram que essas manifestações tivessem lugar.

possuídos: os troços do estabelecimento, as casas de que era dono, umas posses de terra, até o
ouro da mulher e filhas'~ Parece que a noção de povo e de popular de Leota é bastante abrangente,
incluindo nela até proprietários de terra, de estabelecimentos, de casas e até de ouro. Ver: MOTA,
Leonardo. No tempo de Lampião. Fortale1-<1: Imprensa Universitária do Ceará, 1967, p. 97.
65. MOTA, Leonardo. No tempo de Lampião, p. 90-91.
p . NA QUEDA É QUE SE ENXERGA O PÓ

O que mais chama a atenção nesse processo que levou à emergência


da ideia de cultura nordestina é o fato de que, a partir de dado momento,
difícil de precisar, os letrados ligados às elites agrárias, aos grupos políticos
que dominavam a administração nos Estados e que detinham, portanto, o
acesso privilegiado aos meios de divulgação, seja através dos jornais, das
revistas ou em formato de livros, tenham voltado seu interesse para as coisas
do povo, tenham passado a se interessar pelo garimpo, coleta, registro e
divulgação de matérias e formas de expressão cultu~is dos não letrados, das
camadas sociais que ocupavam a base da pirâmide social, que estavam em
grande medida distante dos privilégios concedidos pelo nascimento ou pelo
pertencimento a dados meios sociais. Neste item buscaremos entender o
porquê da emergência do que poderíamos nomear de um olhar etnográfico
e de uma escrita etnológica que procurava fazer ver e dizer o que era esse
outro que agora emergia: o homem do povo, o popular.
- Neste item, portanto, procura-se realizar aquela que é a tarefa mais
árdua para o historiador: abandonar os condicionamentos históricos
que se materializaram em algum evento exterior e tentar entender como
estas mudanças impactaram as subjetividades dos homens e mulheres
que viveram no passado; entender que mudanças nas sensibilidades,
nas formas de pensamento, nas maneiras de ver as coisas, naquilo que
se costuma chamar de visão de mundo, elas acarretaram. Nele busca-se
realizar a difícil tarefa de, saindo do nos~empo, tentar entender o que se
passava nas cabeças, no íntimo, nos sentimentos, nos afetos daqueles que
viveram outro tempo. Através daquilo que deixaram escrito, através das

--
ações que realizaram, tentar entender por que, nesse momento, homens
e.:rtencentes às elites políticas e intelectuais do país, e particularmente do
~ordeste, se voltam para as manifestações culturais dos mais pobres, por
que passam a se interessar, a admirar, a valorizar, a recolher, registrar e
~lgar manifestações culturais realizadas por camadas sociais distintas
<kguela a que pertenciam. O que se busca pensar são os impactos
subjetivos que as mudanças em curso estavam provocando, de que
maneiras um processo visto e dito como de decadência de dados setores
das elites, notadamente daquela ligada à propriedade da terra, provocou
modificações nas formas de pensar, de sentir, de ver e de dizer o mundo, a
cultura, o povo, o popular, neste espaço que se estava constituindo como
sendo a região Nordeste.
O que se trata de entender é como um olhar que antes era de
repulsa, desprezo, condenação, medo, ou no máximo de curiosidade,
em relação ao povo e suas atividades culturais e semióticas, se desloca
para um olh ar de admiração, de adesão, de fascínio, de empatia. Como
se constrói progressivamente uma certa identidade cultural entre setores
que se encontravam, se não apartados, pois viviam muito próximos na
ordem social escravista e patriarcal em vias de desaparecimento, mas
hierarquicamente ocupando lugares bem definidos. Como a consciência da
queda, da debacle social, como a percepção da mudança de status fez com
que homens letrados, bacharéis, passassem a sentir certa proximidade com
os homens do povo, no que tange a valores, a costumes, a códigos de gosto,
a dadas práticas culturais.
Parece-me que, contraditoriamente, é justamente no momento em que
os grupos sociais começam a se afastar em termos culturais, tal como já
disse noutro momento, que a percepção desse outro é possível. Enquanto
partilhavam de modos de vida, de costumes, de práticas culturais muito
próximas, as elites agrárias e seus subordinados não podiam se perceber
como pertencendo a culturas distintas. A saída para a cidade, dos fi lhos destas
elites, a urbanização e o letramento tornam-se condições fundamentais para
que percebessem o cassaco da usina, o negro velho que lhe serviu de pajem,
o vaqueiro, o jangadeiro, o pescador, o comboeiro, como sendo um outro,
como sendo parte de uma outra cultura. A invenção do folclore e da cultura
popular é possível, nesse momento, porque as transformações subjetivas que
estas novas gerações das elites ligadas à terra vão sofrer, em seu contato com
a cidade, os levam a se distanciar do antigo universo cu llural do qual faziam
parte, e podem percebê-lo, nostalgicamente, como sendo aquilo mesmo que
dava a eles um lugar, uma identidade, num mundo que estava em declínio.
Aquilo que vivem e conceituam como decadência tem como um de seus
elementos, exatamente, este distanciamento cultural, subjetivo, em relação ao
mundo de seus antepassados, mundo que parece agora sobreviver apenas nas
camadas sociais retardatárias, aquelas que, por não terem acesso ao mundo
da cidade e das letras, preservam "intactos" valores, costumes, hábitos, antes
partilhados por seus ancestrais. Daí porque um folclorista como Leonardo
Mota dedique sua vida a ouvir e registrar aqueles que nomeia de sertanejos,
que tanto podem ser o cantador pobre e cego da feira ou da calçada da igreja,
q uanto o fazendeiro caturra, analfabeto, apegado a seus antigos costumes
e valores, contando causes e fazendo imprecações contra o progresso, a
modernidade, a cidade, as mudanças a que estava assistindo à sua volta.
Para uma geração que estava perdendo o contato com a terra, seja por ter
perdidO as propriedad~ que teria possuído, seja por ter se tornado incapaz
~o afeita às suas atividades, à medida que foi urbanizada e educada para
;e dedicar às atividades liberais, do comércio ou da indústria; a nostalgia
; ; relação à terra, ao mundo rural, torna esses homens solidários àqueles
~1a terra permanecem e que são expressões dos costumes, valores e
atividades ligadas ao universo rural. Mesmo na cidade vão se aproximar
da{]uelas atividades culturais que remetem àquelas que presenciaram, na
infância, nos terreiros e latadas das fazendas e engenhos. Vindos também
do campo, muitos desses homens e mulheres que habitam as periferias das
cidades, seus becos e cortiços parecem, como desgarrados da terra que
também são, remeter em suas atividades culturais àquele tempo e àquele
espaço que ficaram para trás, não só para eles, mas para estes descendentes
dos antigos senhores, que vêm buscar entre eles o consolo para sua saudade:
saudade de uma dada ordem social, de um dado domínio, de um fausto, de
hierarquias sociais e de poder, que estavam em vias de desaparecimento.
Mesmo os grupos sociais formados por homens e mulheres pobres que
já haviam nascido na cidade, em suas atividades culturais, em seus hábitos e
costumes, expressam valores e concepções distantes do mundo burguês que
se instalava, da cultura burguesa que se tornava paulatinamente hegemônica.
A identidade e comunidade de interesses entre estes homens letrados
ligados ao mundo rural e as camadas populares mbanas podem se dar, em
muitos casos, por uma recusa partilhada dos códigos culturais e sociais
que emergiam com o avanço das relaçõe~pitalistas e com a implantação
definitiva do domínio burguês na sociedade brasileira. Notadamente quando
essa reação passava pela busca da preservação, conservação, pela recusa
reacionária às mudanças em curso. Praticamente nenhum folclorista de
e~pressão, que participou da invenção da c ultura nordestina, foi simpático
a outras formas de reação ao mundo burguês e capitalista, advindas das
camadas trabalhadoras, como aquelas que se expressaram através da adesão
a ideologias de esquerda ou através da organização de movimentos sociais e
políticos de cunho revolucionário. Ao contrário, a nova classe trabalhadora
Industrial, suas atividades culturais e políticas, em grande medida, vão ser
~ecusadas ou desconhecidas por estes estudiosos do popular, elas vão, quase
~empre, ser excluídas do próprio povo, à medida que também representariam
um dos malefícios trazidos pelo novo mundo da cidade e da indústria,
~a sociedade do dinheiro e do salário. Os homens e mulheres pobres que
serão tomados como agentes privilegiados das manifestações da cultura
nordestina são aqueles grupos ligados ao artesanato, ao trabalho manual, ao
trabalho autônomo ou informal, ao trabalho no meio rural, quando não ao
mundo da boemia e da malandragem, do não trabalho.
Na recusa aos novos grupos sociais emergentes, sejam as classes médias
burguesas, seja a classe trabalhadora industrial, está também implícita a
recusa a uma ordem social que acusam de estar introduzindo a luta de classes,
o conflito como princípio ordenador ou desordenador da vida em sociedade.
Nas manifestações culturais que nomeiam de populares e na própria atitude
de irem até o povo, de com ele conviver, de a ele frequentar, de com ele
partilhar suas folganças, suas horas de alegrias, de descantes, de festas, de com
eles dividirem suas mesas, suas casas, até seus palácios, um outro modelo de
relacionamento social, baseado nos laços face a face, no personalismo, no
contato pessoa a pessoa, no que chamam de harmonia social, na ênfase na
conciliação social, é afirmado e valorizado. Os defensores do folclore, da
cultura popular, ao valorizarem dadas atividades e manifestações culturais,
o fazem porque elas expressariam outro modelo de relacionamento social:
aquele que Gilberto Freyre nomeará de patriarcal, ou seja, aquele em que o
modelo de relação social está na família, na vida doméstica, na vida privada,
privilegiando o que seriam os laços de afetividade, dependência, respeito,
hierarquia, solidariedade e os laços de sangue e hereditariedade. 66 São
valorizadas e nomeadas como pertencentes ao folclore e à cultura nordestina
atividades culturais, semióticas, que se apeiam em valores como a honra, a
harmonia, a caridade, a lisonja, a subserviência, o respeito aos mais velhos
e aos poderosos, o mecenato, a dádiva, a troca de favores, a homenagem,
o compadrio, o paternalismo. A identidade que estes letrados sentem
com as atividades semióticas que vão nomear de folclóricas, tradicionais,
populares e regionais advém do fato de que elas expressam ainda códigos de
valores, veiculam concepções de mundo, ritualizam formas de pensamento,
expressam sensibilidades que estão na contramão do mundo moderno,
do mundo burguês, ainda coerentes com a ordem social anterior, de onde
também provieram esses estudiosos do popular. É como se tivéssemos o
encontro solidário entre distintos naufragados, entre pessoas que se irmanam
nas perdas simbólicas, subjetivas, identitárias, mas também materiais que
vinham sofrendo. Eles são física, mas principalmente subjetivamente, frutos

66. Para uma abordagem pormenorizada deste processo, sentido e vivido como declínio e
decadéncia do mundo patriarcal, ver: FREYRE. Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo: Global,
2004.
de um mesma_o.Ldem em -vias...de desapareómento, por isso tornam-se
-,--
aliados, mesmo que-ª..ÇJ:mtragos!o.
O que estamos vendo é a derrocada de uma ordem social onde se
destacavam os chamados laços comunitários e aquilo que Durkheim67
nomeou de solidariedade orgânica, com a prevalência das relações face a
face, tendo como modelo de sujeito prevalecente aquele que dava origem
ao que se chamava de pessoa, que implicava um baixo grau de anonimato e
também de liberdade individual, já que se deviam observar códigos sociais
bastante rígidos e pouco modificáveis ao longo do tempo, embora houvesse
muito maior possibilidade de se viverem situações de ilegalismos e de
passageira exterioridade às regras sociais, notadamente no caso dos homens
e das elites sociais. A invenção da sociedade, um modelo de ordenamento
social constituído pela ascensão do mundo burguês, marcado pela destruição
dos laços comunitários, pela emergência da solidariedade mecânica, pelo
surgimento do indivíduo como modelo de sujeito prevalecente, implicou o
questionamento dos códigos sociais que tolheriam a liberdade individual,
ao mesmo tempo que significou a busca crescente por parte do Estado, de
seus agentes, das instituições sociais, do controle de todos os momentos
e situações da vida social, sua disciplinarização, seu governo, reduzindo
cada vez as zonas de sombra, de ilegalismos, as possibilidades de se colocar
fora do ordenamento jurídico e social. No mundo popular, os estudiosos
do folclore e da cultura dos pobres vão encontrar, nostalgicamente, a
sobrevivência ou o simulacro da vida comunitária, que se perdia. Ainda
hoje o termo comunidade não sai da bGCa daqueles que querem falar dos
Qóbres, notadamente quando é para se referir às suas atividades culturais e
--
~cas. Comunidade é um conceito incorporado pelas próprias lideranças
políticas e culturais desses grupos sociais, conceito que norteia, inclusive,
suas reivindicações no campo da cultura. Entre os pobres e na relação
deles com os folcloristas, com os agentes do chamado folclo re ou da dita
cultura popular, vão encontrar, como realidade, ou vão simular o retorno
a relações presididas pelos laços afetivos, relações diretas, sem mediações
institucionais, ou mediadas por instituições que ainda adotam o modelo
da família, da tribo, da aldeia, da igreja, da solidariedade vicinai.68 Relações

67. DURKHEIM, Emile. Da divisilo do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
68. Sobre a influência do modelo familiar para a organização interna das instituições culturais
dos grupos populares, ver, por exemplo, como se estruturam os terreiros de candomblé. PARES,
Luís Nicolau. A formação do cmulomblé: história e ritual da 11ação ]eje na Bahia. Campinas:
Unicamp, 2007.
em que tanto o agente popular quanto o estudioso ainda se colocam como
pessoas, estabelecendo relações mediadas pelo sentimento, marcadas pela
proximidade, pelo estabelecimento de laços de dependência, homenagem,
troca de favores, solidariedade, paternalismo, podendo levar, também,
como era comum neste tipo de relação, ao conflito direto, pessoal, à desfeita,
ao desafio, à peleja, à vingança, à traição, à mácula da honra, ao desfecho
sanguinário. A inexistência do anonimato, o fato de que todo mundo aí
é alguém, mesmo que seja para ocupar o lugar do opróbrio e da recusa,
encanta esses homens que lutam contra a despersonalização trazida pelo
mundo burguês. Todo mundo aí tem um nome, tal como antigamente entre
as elites tradicionais, que viam agora seus nomes naufragarem na perda de
prestígio e de destaque, sendo substituídos e preteridos por aqueles que nem
nome tinham ou por nomes estranhos e estrangeiros à própria terra. Nestas
"comunidades" de homens pobres, praticantes da cultura popular, eles
encontram, para seu encanto e identificação, estruturas de poder marcadas
ainda pela hereditariedade, pelo sangue, pela hierarquia, pela distribuição
de lugares que são transmitidos de uma geração para outra, pela noção de
respeito a e a prevalência dos mais velhos. Hierarquias que recebem o respaldo
e a justificativa, inclusive, nas crenças e práticas religiosas, aparecendo não só
como naturais, mas também como sagradas, como divinas, tal como pensava
a Igreja Católica sobre a divisão social, da qual eram adeptos e seguidores a
maioria de nossos estudiosos do popular. 69 Aí ainda se cultua a obediência e
a homenagem a quem exerce o poder em lugar de destaque. O estudioso do
popular não só pode logo vir a se tornar alguém a quem se recorre em busca
de proteção e de ajuda econômica ou de outro tipo, mas também aquele que
logo merecerá gestos de homenagem, lisonja, bajulação, sentindo -se assim
integrado àquela "comunidade': dela fazendo parte, quando não se tornando
dela uma liderança política ou cultural, responsável pela divulgação e pela
mediação entre a "comunidade" e o mundo exterior, o mundo da cultura
letrada, da mídia ou mesmo junto às autoridades governamentais.
Por isso, o filho do rei degolado nas caatingas do sertão se tornará o
amante do popular, das coisas do povo, do povo habitante do sertão castanho,
do sertão da onça suçuarana e do carcará, alçados à condição de símbolos

69. Sobre a importância da hereditariedade, do critério geracion;ll para o estabelecimento


das hierarquias nestas instituições culturais ligadas aos grupos populares, ver, por exemplo,
a organização in terna dos maracatus pernambucanos. Ver: LIMA, lvaldo Marciano de França;
GUILLEN, Isabel. Cultura afrodescendente 110 Recife: maracatus, valentes e cntímbós. Recife:
Bagaço, 2007.
heráldicos, armoriais da vida sertaneja.i0 O povo sertanejo, o homem do
carnpo, o homem do interior, da pequena vila parada no tempo, o cassaco
do engenho, o pescador, o jangadeiro, os cantadores e violeiros guardariam
os tesouros culturais desse tempo e desse espaço onde os senhores antigos
reinaram, onde seus avós e pais foram reis, agora degolados pela cidade,
pela usina, pela fábrica, pela casa comercial e bancária, outros literalmente
degolados ou assassinados por aqueles que passam a encarnar a nova ordem,
0 estado novo. Se a hipoteca levou os bens imóveis que muitos possuíam, se
agora dependiam de um emprego público, da bajulação aos novos grupos no
poder para poderem sobreviver, se tudo o que passant a possuir é um capital
cultural, que o letramento e o título de doutor os asseguram, põem suas
habilidades a serviço de salvarem restos, pedaços desse mundo encantado
anterior que ainda desfilam, cantam, contam, ritualizam, dançam, tocam,
soam nas atividades culturais, nas matérias e formas de expressão que vão
encontrar perdidas no meio do povo. Elas permitem realizar_2 mira_gem de
uma volta à época do reinado de seus ancestrais, e, eles próprios, podem, por
iii'Stantes.-no contato com os brincantes das atividades culturais populares,
~a ser tratados como reis.
/ A formação cristã, católica, da grande maioria desses intelectuais que
se colocam como amantes do popular, muitos levados a questionar essa sua
formação quando de sua inserção no mundo das letras e do pensamento
filosófico, científico e jurídico, com que entram em contato nos bancos
- escolares ou ao terem acesso a leituras que põem em dúvida suas convicções;
l

1 muitos vivendo o impacto de uma sociecj..ade que se dessacraliza, de uma


,. sociedade que valoriza, cada vez mais, a ciência e a técnica, em detrimento
}do saber religioso; sociedade que chega a provocar crises subjetivas ao
instalar a dúvida sobre a existência do divino; sociedade que teria matado
Deus, vão encontrar nas manifestações culturais dos pobres, para seu deleite
Iou consolo subjetivo, gerando imediata identidade, a presença constante do
\~grado, uma visão da natureza e do mundo ainda presidida pela sacralidade.
Homens abalados na fé, ou que lutam em defesa de suas crenças, que
vão encontrar no povo toda uma disposição, uma disponibilidade e uma
afirmação da crendice, do ato de crer, da fé, do sagrado, do sacralizado, do

70. Referência ao escritor paraibano Ariano Suassuna e à sua obra: SUASSUNA, Ariano. História
do rei degolado nas caatingas do sertão. Rio de janeiro: José Olympio, 1977. Ver, também: SANTOS.
ldelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suasszma e o movimento
Clrmoria/. Campinas: Unicamp, 2009.
sobrenatural, do mistério, do segredo, do oculto, do epifânico, das coisas de
outro mundo. A curiosidade pelas crenças e hábitos religiosos, pelos rituais
e pelas devoções populares, por suas crendices e superstições mostra uma
disposição por parte desses homens que pertenciam ou deveriam pertencer
ao mundo da racionalidade, da intelectualidade, da consciência, para
reencontrarem um mundo presidido por mitos e mistificações?' A vontade,
o desejo do encontro com o sagrado, com o sobrenatural, com o divino, é
uma forma de apaziguar as angústias e incertezas trazidas por um mundo
burguês materialista e presidido, cada vez mais, por ideias e ideologias laicas.
O povo torna-se o repositório do encanto e do encantado, do sagrado e do
sacralizado, num mundo desencantado e desencantador. Na contramão de
uma sociedade que aposta no império da razão, das luzes, vai se buscar no
povo o império do sentimento, do afeto, do mágico, do apofântico. Através
da coleta e da publicação de matérias e formas de expressão encontradas
entre as camadas populares, estes homens de letras reafirmam suas próprias
concepções antimodernas, anti-iluministas, românticas, religiosas, cristãs.
Assim como reafirmam e repõem muitos de seus preconceitos de cunho
religioso, racial, de gênero, de classe etc.
Confundidos e desnorteados pelo contato com os saberes modernos,
fragilizados em suas convicções, divididos em torno das múltiplas teorias e
ideologias que procuram dar sentido ao mundo, à vida, a existência humana, à
sociedade, à história, esses estudiosos do popular vão encontrar no povo e nas
manifestações culturais que nomeiam de populares uma sabedoria, formas de
saber, convicções, formas de pensamento, ideias, valores que, em desacordo com
este mundo moderno, repõem antigas crenças, reafirmam certezas, apaziguam
as angústias destes letrados. Mais tarde, outros, também romanticamente, se
apaixonarão pelo povo, por sua capacidade de resistir ao mundo burguês, mas
nele valorizarão a capacidade de luta, a rebeldia, a revolta, a capacidade de
criação do que seriam novos mundos, realidades paralelas, cidades outras,
dissidentes em relação à ordem hegemônica. Alguns intelectuais se tornarão
não só brincantes, mas até autoridades no interior da hierarquia dos grupos
e "comunidades" que se articulam em torno de dada manifestação cultural
que, agora, os próprios agentes populares já nomeiam, orgulhosos, de cultura
popular, à medida que incorporaram o conceito ao seu universo e perceberam
as potencialidades semióticas, estéticas e políticas que carrega.

71. Ainda na década de 50 do século passado, Câmara Cascudo dedicou um livro às superstições:
CASCUDO, Luís da Câmara. Superstições e costumes. Rio de janeiro: Antunes, 1958.
Estas são algumas das condições históricas que, no meu modo de
ver, possibilitaram a emergência da noção de cultura popular, de folclore,
de tradição, de cultura nordestina, para nomear as matérias e formas de
expressão que, entre os fins do século XIX e meados do século xx, passaram
a ser vistas e ditas como sendo exclusivamente do povo, das camadas
populares, dos homens pobres. A fabricação do folclore e, posteriormente,
da cultura popular foi possível e emergiu como uma resposta a esses
condicionamentos históricos, dos quais procuramos traçar um breve perfil.
0 importante a destacar é que essas próprias condições históricas foram
também objeto de mitificação ao longo desse' processo. Elas não foram
propriamente ocultadas, mas foram ressignificadas, ressemantizadas pelo
próprio trabalho de significação que a invenção do conceito de cultura
nordestina implicou. Q_sentido il).icial dado pelo conceito de dec~dência
é deslocado e substituído pela noção de resgate, que aparece como tendo
sido capaz de não apenas reler e mostrar de forma diferente essas mudanças,
éõiDo teria sido capaz de obstá-las e de superá-las. Uma derrota histórica é
transformada assim em vitória. A história de um fracass o coletivo se torna o
~cesso de uma empresa de rememoração, de criação de lugares e suportes
para perenizar uma dominação que, embora modificada pelo tempo, aparece
como eternizada, como perene, incrustada, imanente a formas e matérias de
expressão que são recorrentemente relançadas em circulação, como garantia
e promessa de continuidade de uma região, de sua cultura e de seu povo. No
tempo imobilizado do mito, a perenidade de uma época e suas formas de
poder e de saber. ,-
Capítulo 2

Mitos de origem

',

Embora tenha emergido apenas no começo do século xx, como veremos


no capítulo seguinte, a noção de cultura nordestina permite a renomeação,
releitura e classificação de toda a produção anterior ocorrida no espaço do
antigo Norte, ou mesmo nos espaços das antigas províncias do Império ou
dos Estados da federação republicana, que trataram de algum modo do que
seria a produção cultural popular ou das manifestações culturais e artísticas
das camadas populares. Este conceito recobrirá e dará novo sentido às
obras e às atividades artísticas ou intelectuais de uma série de letrados
que teriam, desde o século XIX, se intere!jSado pelas coisas do povo, como
lendas, contos, superstições, costumes, festas, rituais, crendices, tradições
alimentares, a poesia ou a literatura oral. A partir deste conceito podemos
dizer, com Hobsbawm e Ranger/ 2 que são inventadas tradições, que uma
origem é buscada, remetendo para o passado e naturalizando um conceito e
um modo de ver e dizer as manifestações culturais populares de uma dada
área do país que se demarcava como sendo o Nordeste.
Neste capítulo tratarei inicialmente da construção deste mito de
origem73 para o que seria a cultura nordestina. Procurarei abordar o

72. HOBSBAWM, Eric; RANGER. Terence. Op. cit.


' 73. Paul Ricoeur faz uma interessante discussão em que diferencia en tre a busca das origens
e dos inícios. O início consistiria numa constelação de acontecimentos datados, colocados por
um historiador à frente de um processo histórico que seria a história da histó ria; já a origem
designaria o surgimento do ato de distanciamento que torna possível o empreendimento como
um todo e, portanto, também seu início no tempo, que seria sempre o atual; por isso a origem
não seria o mesmo que o inkio, pois estes se dariam em tempos distintos. Creio que, no trabalho
processo de criação de uma narrativa que não só desloca para o século XIX
o nascedouro do que seria a preocupação com os estudos do folclore e da
cultura nordestinos, mas que a articula com o processo de constituição da
própria nacionalidade brasileira. Faz-se necessário, portanto, que, num
segundo momento deste capítulo, trate do processo de construção da ideia
de cultura brasileira a par com o processo de consolidação de um projeto de
constituição da nação e como esta está também articulada com a invenção,
no Ocidente, desta área de estudos, notadamente com o surgimento dos
chamados estudos de folclore.
Por fim, trata-se de mapear a própria história do conceito de folclor~,
surgido na Europa, no início do século XIX, para podermos entender a
singularidade de seu uso entre nós, notadamente quando de sua utilizaçãq_
para recortar, nomear, classificar e definir o que seria uma particular cultura
regional: a cultura nordestina. Neste percurso acompanharei a produção
historiográfica internacional e nacional sobre o tema, questionando o próprio
papel que esta possa ter exercido para uma dada naturalização do conceito,
para tornar um conceito, com uma dada história e uma dada singularidade,
num fato em si ou numa coisa em si, tornando-o um objeto de estudo que
aparece como um dado, um já lá na empiria, como uma coisa óbvia, que
antecederia os discursos e as práticas, as relações sociais e de poder, as
instituições e os processos históricos que lhe constituíram e lhe deram dados
sentidos e significados em dados contextos históricos, em dadas espacialidades
e temporalidades, em dadas realidades culturais. :_rrata-se, pois, inicialmente
~e pôr em questão os próprios conceitos de folclore e de cultura popular, de
traçar sua história, de analisar seus usos e abusos historiográficos, para melhor
entendermos o processo que se passou com o conceito de cultura nordestina.

A) MITO DE ORIGEM DO FOLCLORE OU DA CULTURA NORDESTINOS

Na introdução que escreve para a terceira edição do livro Lendas e


canções populares,74 Francisco Alves de Andrade considera que naquele ano
de 1965 comemorava-se o centenário de duas grandes obras, que seriam

do folclore, inicio e origem sempre são buscados no passado, embora, ao mesmo tempo, sejam
definidos a partir do presente, a partir do qual se escavam, por isso são sempre incertos podendo
ser colocados em qualquer época e atribuídos a qualquer marca ou marco. Ver: RICOEUR, Paul. A
memória, a lzist6ria, o esquecimento. Campinas: edunicamp, 2007, p. 149-150.
74. ANDRADE, Francisco Alves de. Op. cit.
marcos no processo de gestação e autonomia do pensamento literário no
Brasil: o romance Iracema, de José de Alencar, que, segundo Fernando
Azevedo, ali citado, seria o "iniciador no domínio literário e linguístico,
da reação nacionalista em favor das formas brasileiras"75 e aquele livro
que prefaciava, escrito por Juvenal Galena, que seria o criador da poesia
popular em nosso país. O livro revelaria "os ritmos telúricos e as harmonias
étnicas, eco das vozes ancestrais"76 que definiriam e simbolizariam nosso
povo. Neste pre(ácio, Juvenal Galeno é nomeado o iniciador dos estudos
em torno da poesia popular, da cultura popular e do folclore nordestinos.
Ere teria dãdo origem ao interesse pelo povo e por sua produção cultural,
não só na região Nordeste, mas em todo o Brasil. .§mbora, em momento
nenhum, apareça nos escritos de Galeno a denominação Nordeste para
nomear o espaço onde circularia aquela poesia que apresenta como sendo
p-õpular, o prefácio escrito no século seguinte vai não só nomear Galeno
e sua obra como sendo nordestinos, como vai considerá-lo o pioneiro dos
estudos da cultura popular nesta região, visando, possivelmente, preparar a
recepção da õõra, torná-la vendável, torná-la significativa para o presente,
dãr a ela um sentido contemporâneo, além de convocar para ela o lugar de
clássico, tentando produzir o interesse pelo livro que era relançado. Alves de
Andrade, membro do Instituto Histórico do Ceará e da Comissão Cearense
do Folclore, falando destes lugares institucionais, destes lugares de memória
e de consagração, de instituições voltadas para a produção e elaboração de
uma dada memória, memória que servisse de apoio para a construção de
uma dada identidade local e regional, está no seu papel de sujeito de um
discurso que visa a monumentalizar dadas figuras e obras como precursoras
do que seria a cearencidade e a nordestinidade. Em seu discurso acerca de
Galeno e de sua obra não se disfarça a própria int~nção de dar ao Ceará uma
centralidade na elaboração da cultura popular e erudita do Nordeste.
Para explicar de onde teriam vindo os impulsos e a inspiração para que
Galeno redigisse este livro pioneiro no trato com o que seria a poesia popular
do Nordeste, Francisco Alves de Andrade traça primeiro uma breve biografia
de Galena, lembrando que ele e sua família estiveram sempre ligados à terra
por atividades agrícolas, recebendo da terra e da família tradições generosas.
Na origem da cultura nordestina estaria o campo, o sertão, estaria o trato

• 75. AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1944,
p. 136.
76. AN DRADE, Francisco Alves de. Op. cit. n/ p.
com a terra. Por estar ligado a estas realidades, Galeno pôde fazer-se um
_b om intérprete desta cultura. Seria ele um perfeito mediador postado_~!fL
as populações humildes e as elites, vibrando emocionalmente_com o campo
e a cidade, fazendo repercutir as vozes do litoral e dos sertões, as dores da
terra e os cânticos do mar. Como veremos em outro item deste capíhrlo, Õ
folclorista, quase sempre, se atribui este lugar de mediador não só entre as
classes sociais e os espaços do campo e da cidade, como o de mediador entre
temporalidades diversas, entre o passado e o presente. Galeno pôde tornar-se
um bom estudioso das coisas do povo, pois, embora tenha estudado e vivido
na cidade, no litoral, próximo ao mar, fazendo parte das elites intelectuais,
econômicas e políticas da província, seria também um homem que conhecia
e estava ligado à vida no campo, no sertão, na serra, conhecendo os homens
humildes e sábios que aí residiam, que aí trabalhavam, em contato com
quem, em seu cotidiano, pudera aprender, acumular e amealhar aquelas
pérolas da poesia popular, e, após lapidá-las, as tornava conhecidas das
pessoas civilizadas e eruditas que, diferentemente dele, nunca teriam tido
este contato com este mundo popular do qual desvelaria os encantos.
Para se aperfeiçoar n o trato com a cultura do café, plantado nas
terras de sua família na serra da Aratanha, Galeno é enviado pelos pais,
~ 1855, ao sul do país, visitando São Paulo e Rio de Janeiro. Primo que
era do historiador Capistrano de Abreu e do jurista Clóvis Beviláqua, foi
recomendado a Paula Brito, em casa de quem pôde conhecer grandes nomes
das letras e da política nacional como Machado de Assis, Saldanha Marinho,
!YJ:ello Morais (que também se tornará um importante estudioso do folclore
nacional) e Quintino Bocaiúva, publicando suas primeiras poesias no
Marmota Fluminense, pertencente a seu anfitrião. Para Alves de Andrade,
nesta viagem Galeno entrará em contato com os "pensamentos formadores
da nacionalidade" e será despertado intelectualmente para a necessidade de
se construir a independência das letras nacionais seguindo o "princípio das
nacionalidades': esposado pelo romantismo.
Neste passo, o que nos interessa é o verdadeiro mito de origem que
o texto passa a construir para os estudos em torno do chamado folclore
nordestino ou da chamada cultura popular nordestina a partir do retorno de
Juvenal Galeno ao Ceará e do desembarque, naquele Estado, no ano de 1859,
_da Comissão Científica de Exploração, que ficará popularmente conhecida
como Comissão das Borboletas. Esta parte do prefácio é sugestivamente e
de forma significativa e reveladora assim intitulada: "A Comissão Científica,
ponto de partida dos estudos e reconhecimento · do Nordeste': Ela era
presidida por Freire Alemão e composta de doze pessoas, entre as quais
se destacavam Raja Gabaglia, Guilherme Capanema e o poeta romântico
Antônio Gonçalves Dias, na qualidade de chefe da Seção Etnográfica e
Narrativa da Comissão. Alves Andrade, citando livro de Renato Braga, narra
assim o que teria sido, segundo ele, o encontro decisivo para que Juvenal
Galeno abraçasse os estudos da cultura popular de sua região:

Comunicativo pela vivacidade das palavras e simpatia dos gestos, conhecedor


da sociedade cearense desde 1851, quando estivera no Ceará em viagem de
inspeção ao Liceu, Gonçalves Dias travou boas relações na terra, prendeu-se a
Tomaz Pompeu de Souza Brasil, Senador do Império e nossa maior expressão
de cultura. Em suas andanças a Pacatuba, aproximou-se dos pais de Juvenal
Galeno, em cujo lar, no sitio Boa Vista, na encosta da serra da Aratanha, os
membros da Comissão Científica eram recebidos com especial agrado.
Narram os biógrafos e críticos que, ao ensejo destas relações de simpatia e
hospitalidade, o jovem poeta Juvenal Galeno apresentou-se ao glorioso autor
de Timbiras, oferecendo-lhe para leitura os seus primeiros versos Prelúdios
poéticos, livro com que o moço cearense, aos vinte e dois anos, aparecia nas
letras pátrias.
Com sua autoridade de mestre da poesia nacional e, ao que parece, refletindo
a sua responsabilidade de membro da Comissão Científica encarregado da
seção etnográfica, Gonçalves Dias aconselhou o jovem que se deixasse de
poesias acadêmicas e procurasse no
povo a matéria de seus versos.n

Se nos anos 30, do século xx, em carta marcada por uma cruel
sinceridade, Mário de Andrade teria indicado o estudo da cultura popular
como aquilo que daria originalidade e sjngularidade à obra de Luís da
Câmara Cascudo, parece-nos ter havido, quase um século antes, um episódio
semelhante, no qual um grande nome das letras nacionais indica o estudo
das matérias e formas de expressão populares para um jovem, iniciante no
mundo das letras, como o caminho que devia trilhar para a produção de
algo original e nacional, evitando apenas reproduzir as fórmulas acadêmicas.
O encontro com Gonçalves Dias, a recomendação que este lhe faz, teria
traçado o destino literário de Juvenal Galeno, convertendo-o no que seria
o primeiro poeta popular do Brasil. Este mesmo episó~io é narrado na
biografia de Juvenal Galeno escrita por João Clímaco Bezerra, em 1959, na

77. ANDRADE, Francisco Alves de. Op. cit. n/p.


qual é afirmada a sua condição de representante da poesia nordestina, de
homem que teria cantado sua região, a sua terra. Aproximando as afirmações
de Alves de Andrade e Clímaco Bezerra, teremos em Juvenal Galeno o perfil
do estudioso pioneiro da poesia popular e regional, daquele que primeiro
articulou o popular e o regional, a cultura popular e o Nordeste:

Ele cantou precisamente o Nordeste, porventura também uma região que


vem se conservando, por um milagre histórico, a distância das influências
estrangeiras. Juvenal Galeno foi, antes e acima de tudo, um poeta do
Nordeste. Nos seus versos há uma constante: homem e terra, nesse drama de
vencido e vencedor que a região vem assistindo através de seus três séculos
de afirmação....78

Para reforçar sua tese de que foi a presença de Gonçalves Dias e da


Çomissão Científica no Ceará, de que foi o encontro entre o poeta indianista
e Juvenal Galeno, que deram início aos estudos de cultura popular na região
Nordeste, Alves de Andrade chama atenção para o fato de que os poemas
~ompilados no livro Lendas e canções populares foram produzidos entre os
anos de 1859, justamente o ano de estadia da Comissão em terras cearenses,-
·~ 1865, o ano da publicação do livro. Não seria mera coincidência que ã
poesia de Juvenal Galeno, antes de perfil acadêmico, tenha começado a beber
em fontes populares no ano em que a Comissão esteve em sua província
natal e que Gonçalves Dias lhe fizera aquela recomendação decisiva. E
conclui, estabelecendo definitivamente um mito de origem para os estudos
de cultura no Nordeste, para os estudos de folclore nordestino, em item
significativamente intitulado de "O Patriarca da Poesia Popular - Pioneiro
do Folclore no Nordeste do Brasil"79:

Tem-se, deste modo, a implantação dos trabalhos desta Comissão como


ponto de partida dos estudos nordestinos, especialmente do folclore regional.
Examinando-se o roteiro de suas preocupações na seção etnográfica e
narrativa da viagem, vislumbramos que a mesma não se atinha não apenas
à organização e caracteres físicos do povo, mas ao seu caráter intelectual e

e 78. BEZERRA, João Clímaco (org.). Juvenal Galeno: poesias. Rio de Janeiro: Agir, 1959, p. 6.
• 79. Francisco Alves de Andrade havia, em data anterior, no dia 27 de setembro de 1948, proferido
uma conferência na Casa de Juvenal Galeno intitulada "O pioneiro do folclore no Nordeste do
Brasil". Anais da Casa de ]uvenal Galeno. Tomo i. Ano i. Fortaleza: Editora do Instituto do Ceará,
1949.
moral, às línguas e tradições históricas, contos, lendas, alocuções diversas
etc.80

Além de Juvenal Galena, dois outros autores costumam ser referidos


como iniciadores se não da recolha, mas dos estudos acerca da cultura
. ~ nordestina: Couto de Magalhães e Celso de Magalhães. Em Folk-lore
pernambucano, Pereira da Costa toma os estudos de Couto de Magalhães81
como aqueles que teriam dado início a esta área de estudos no Brasil, ele será
referido inúmeras vezes no livro do estudioso pernambucano que, quase
sempre, apoia suas análises do material que compalsou em Pernambuco nas
interpretações feitas pelo autor mineiro.82 Já autores como Gustavo Barroso e
Leonardo Mo ta consideram que o iniciador dos estudos folclóricos nacionais
teria sido o maranhense Celso de Magalhães, que publicou, em 1873,
romances tradicionais populares recolhidos nas províncias do Maranhão,
Pernambuco e Bahia, no jornal O Trabalho, na cidade do Recife, com o título
t::>..-
Poesías populares brasileiras.83
Os autores e obras que gestam o que seria a cultura popular nordestina
procuram inserir-se, portanto, no que seria uma tradição de estudos do
folclore nacional, cujos precursores serão por eles nomeados e avaliados.
Se, como vimos, Juvenal Galena é inscrito como o pioneiro dos estudos de
folclore no Nordeste, quando se trata de fazer uma genealogia dos estudos
sobre o folclore no Brasil, em cada obra e autor, este marco inicial, esta origem
parece deslocar-se, dependendo da prépria visão que cada autor terá do

80. ANDRADE, Francisco Alves de. Op. cit. n/p.


• 81. José Vieira Couto de Magalhães nasceu em Diamantina, Minas Gerais, em 1837. Bacharel
em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo. Foi conselheiro e deputado por Goiás e Mato
Grosso. Foi Presidente destas duas províncias e das províncias do Pará e de São Paulo. Suas obras
Os selvagens, publicada em 1876, e Ensaios de Antropologia, publicada em 1894, o fazem apontado
por e~tudiosos do folclore como o iniciador destes estudos no país.
82. Ver, por exemplo, COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Folk-lore pemambucano. Recife:
Arquivo Público Estadual, 1974, p. 27, 28, 29, 30, 95.
, 83. Embora o Nordeste sequer existisse naquele momento e muito menos o conceito de
cultura nordestina, muitos trabalhos de caráter acadêmico, notadamente aqueles produzidos por
intelectuais ligados às universidades da região, tomam os trabalhos feitos por estudiosos do século
xix como testemunhos e a comprovação de que "o Nordeste do Brasil tem se revelado muito rico
quanto a seu romanceiro e cancioneiro: apesar de muitos destes romances terem ampla circulação
em alguns países da Europa. Ver, por exemplo, o artigo intitulado "Poesia oral: cancioneiro e
romanceiro tradicional popular': da professora da Universidade Federal da Paraíba, Maria de
Fátima Barbosa de Mesquita Batista. In: http://www.sbpcnet.org.br/livro/57ra/ programas/CONF_
SIMP/textos/mfatimabarbosa.htm. Acessado em 15 de janeiro de 2010.
que seria específico e caracterizador dos estudos desta natureza. Cada obra
lançada e cada novo estudioso do que seria o popular procura se inscrever
no interior desta genealogia, no sentido de marcar a própria contribuição,
a própria novidade que seu trabalho representava. Çoncebendo os estudos
do folclore numa lógica da continuidade e da acumulação, partilhando de
uma visão linear de temporalidade e de história, estes estudos normalmente
constroem para si próprios o lugar de caudatários e, ao mesmo tempo, de
suplementos da produção feita neste campo de estudos, anteriormente. Estas
digressões em torno de uma produção anterior têm, justamente, a função de
ir afirmando e demarcando este campo de estudos, ao mesmo tempo em que
servem para legitimar a obra e o autor em causa, fazendo-os parte de uma
tradição, contribuindo para a instituição deste saber no país.

B) MITOS DE ORIGEM PARA OS ESTUDOS DE FOLCLORE E CULTURA


POPULAR

Juvenal Galena, Gonçalves Dias e José de Alencar estiveran1 ligados ao


movimento romântico. Não recontarei aqui a história do surgimento dos
estudos em torno do que se chamou na Europa de tradições populares, nem
mesmo da invenção do conceito de cultura popular e a importância que o
movimento romântico teve na emergência deste interesse pelo que nomeia
de Povo e por suas atividades culturais, isto já foi feito por muitos autores.84 O
que me interessa perceber é a recepção que esta produção, que esta tradição
romântica teve entre os formuladores do conceito folclore e de cultura
nordestinos, como eles releem a trajetória dos estudos em torno do que_
seria a cultura popular, como utilizam a trajetória histórica dos estudos de
folclore para legitimarem ou explicarem aquilo que fazem, como reescrevem
~tradição do próprio saber folclórico e inscrevem em seu interior o trabalho
que realizam no presente. Enfocarei, portanto, o que chamarei de estratégias

84. Ver: BAKHTIN, Mikhail. A wlturn popular 11a Idade Média e 110 Re1wscime1110. São Paulo:
Hucitec, 1999; BURKE, Peter. Cultura popular 11a Idade Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989; DAVIS, Natalie Zemon. Cultums do povo. São Paulo: Paz e Terra, 1990; MANDROU,
Robert. De la Culture Populaire aux 17 et 18 Siecles. Paris: puf, 1985; MUCHEMBLED, Robert.
Culture populaire et culture des elites dmrs la Frmrce moderne, xv-xviii siecles. Paris: Flamarion,
1978; ROCHE, Daniel. O povo de Paris: e11saio sobre wltura popular 110 século xvm. São Paulo:
Edusp, 2004; THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
de recepção da produção internacional sobre o folclore e o que seriam as
tradições populares, bem como dos próprios conceitos que estão na base
desta produção, entre eles, aqueles que me parecem ter maior centralidade e
relevância: as noções de povo, de popular e de cultura popular, utilizadas por
aqueles que abraçam a tarefa de definirem, de pesquisarem, de estudarem o
que nomeiam de folclo re nordestino ou, simplesmente, de cultu ra nordestina.
É fundamental, também, ver como estes fo lcloristas e estudiosos do
popular que passam a assumir a identidade nordestina releem a própria
proaução folclórica já realizada no Brasil, como se filiam a uma dada
tradiÇão dos estudos do que seria a cultura popular brasileira. Neste sentido,
podemos identificar o que seriam duas tradições: a primeira, de inspiração
romântica, movimento filosófico e literário, que fora responsável, na Europa,
pelõ estabelecimento da relação obrigatória entre cultura nacional e cultura
püpu1ar, que deu origem ao conceito de povo, como nuclear tanto para a
vida política, como para a vida cultural, que foi o elaborador da noção de
cultura popular. Também no Brasil, e no Nordeste, teria sido responsável por
dar o impulso inicial no interesse pela elaboração de uma cultura nacional,
e regional, que teria as manifestações c ulturais populares como ponto de
partida, como um conjunto de matérias e formas de expressão a serem
trabalhadas para a produção de uma cultura, uma arte e uma literatura
eruditas nacionais e regionais. Juvenal Galeno seria o representante do
movimento romântico e de seu interesse pelas coisas populares e nacionais
quando se trata de fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura
nordestina. A outra tradição, que contra esta se volta, de inspiração positivista
e evolucionista, teria como figura precursora e tutelar nos estudos da cultura
nordestina o sergipano Silvio Romero. 85 No entanto, seus trabalhos serão
'-;--
~lticados, mais tarde, por folcloristas como Leonardo Mota, por fazer o que

---
seria um "sertanismo de indução': por ser um pesquisador de gabinete, sem
0 contato direto com o material que pesquisa, nem com os agentes do que
-.
~ena a cultura popular, por fazer seu trabalho por meios de informações
eivadas
......._ de falsificação, das quais não se teria dado conta:

85· Suas obras mais importantes neste campo de estudos seriam: ROMERO, Sylvio. Contos
Populares do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: usp. 1985; Cantos populares do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: usp. 1985.
Srs., não ponhais reparo em que eu possa repetir-vos improvisos de aédos
rústicos. Milagre maior é o dos críticos e historiadores de nossa Literatura,
como Silvio Romero, que cita uma meia dúzia de sonetos improvisados
por Muniz Barreto e mais dez quadrinhas repentinamente inspiradas por
inopinado beijo da atriz Emília das Neves. Atalhando sagazmente previsíveis
demonstrações de incredulidade, Silvio advertiu a seus leitores de que, 'uma
vez improvisados uns versos, Muniz Barreto nunca mais os esquecia: 86

Assim como Romero, outros estudiosos do que seria a cultura popular


que antecederam ao trabalho de Mota, como Pereira da Costa e Rodrigues
de Carvalho incorreriam no mesmo erro do folclorista sergipano. O fato de
não entrarem em contato direto com os agentes das manifestações culturais
populares levava a que confundissem, constantemente, materiais que se
haviam popularizado, mas que teriam origem erudita, com as criações
autênticas e originais do povo.87 Mota chega a propor que se distinguisse
o popular, do popularesco e do popularizado. O popular seria qualquer
matéria ou forma de expressão de autoria ignorada ou anônima e que o povo
repetiria; conceituação que parece irônica num estudioso que se especializou
em procurar a autoria do que seriam poemas populares, ou seja, se levarmos
em conta seu conceito de popular, o que ele procurava era despopularizar
o popular, já que procurava retirá-lo do anonimato e estabelecer a autoria.
A popularesca seria a matéria e forma de expressão feita em estilo singelo,
à maneira popular, e a popularizada seria aquela que lograria divulgação
extraordinária entre o povo e adoção cabal por parte do mesmo, apesar de
ter sido, originariamente, de autoria conhecida, de autoria erudita ou culta.88
João Ribeir.o,..~m livro publicado em 1919, procura traçar o que seria
uma história do saber folclórico e a par com a tradição romântica procura
dizer da utilidade social do estudo das tradições populares, afirmando
que elas seriam a expressão da "camada primigênia que explica e define o
caráter especial de cada povo, no seu tríplice aspecto físico, antropológico

86. MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, p. 7-8.


87. Idem. p. 38.
88. Idem. Sertão alegre, p. 193. Celso de Magalhães afirma que Gonçalves Dias tem uns versos
de "Reis" que se popularizaram no Maranhão e confessa que ele próprio também escreveu outros
para serem cantados na Bahia. Segundo Manuel Que ri no, o autor da primitiva música das cantigas
baianas de "Reis" foi o "sábio helenista, alferes de milícias e provecto latinista João da Veiga Murici".
Ver: MOTA, Leonardo. Sertão alegre, p. 193; QUERINO, Manuel R. A Bahia de outrora. Salvador:
Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 1916.
e histórico': elas representariam a camada de ideias "étnicas antigas e de
repouso': sobre a qual se acrescentariam camadas culturais mais instáveis
trazidas pela civilização, pela vida culta.89 O rústico, o analfabeto, ao contrário
do civilizado, do letrado, representariam uma camada primitiva, original,
autêntica da cultura de dado povo, por não terem recebido as influências
transformadoras da civilização. Este povo rústico é que expressaria a
psicologia coletiva ou étnica, a alma do grupo, a alma da raça; no seu
"enciclopedismo inculto, formado de pensamentos elementares, de emoção
e de inteligência, é que consiste a alma popular'~ 90 O trabalho do folclorista
se apresentava como indispensável em qualquer sociedade, dado que cada
povo tinha sua psicologia própria, que antecederia e moldaria as psicologias
individuais. Todos os povos, por mais incapazes que fossem, teriam ciência,
arte e literatura, assim como medicina, direito ou religião, pois seriam coisas
e funções que definiriam o humano, seja em que estágio cultural estivesse:

Os rústicos, os campônios, os elementos humanos de qualquer gregário,


tribo ou sociedade possuem em comum certas ideias e doutrinas elementares
acerca das coisas. Selvagens, bárbaros ou civilizados, homens, enfim, possuem
uma alma coletiva onde repousam as próprias superstições, crendices, as suas
formas d'arte ou de ciência elementares que lhes dão a intuição do mundo,
anterior, preliminar e precedente às criações pessoais mais tardias da ciência
abstrata ou da arte culta.91

O estudo das "noções ingênuas do povo" seria impo1tante por estas


representarem a matéria bruta, rústica sobre a qual a ciência e a arte culta se
fariam. A ciência quantificaria o grosseiro e o rústico, a poesia estilizaria os
versos populares, a medicina teria se originado da magia e das superstições,
a astronomia da astrologia. Embora, para Ribeiro, fosse eterna a distinção
entre incultos e letrados, estes últimos sempre teriam o que aprender
com os primeiros por serem eles empíricos, ignorantes mas observadores,
e sem empiria e observação não haveria teoria. ~ interessante observar a
~agem do povo que este estudioso do que seria o popular delineia: rústico,
ignorante, grosseiro, supersticioso, inculto (embora produzam cultura),

4
89. RIBEIRO, João. O Folk-lore: est11dos de literatura pop11lar. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro
dos Santos, 1919, p. 8.
90. Idem, p. 7.
91. Idem .
homens empíricos, observadores, de ideias elementares, intuitivos, ingênuos,
possuindo um enciclopedismo ingênito, ou seja, possuindo um sa.Qer natural,
primitivo, o que o romantismo chamará de saber orgânico, possuind.Q um
saber elementar, que seria natural em todo humano e, por isso mesmo, seria
tlln saber autêntico, livre da contaminação do artifício da civilização, da
modernidade, da urbanidade; daí que o povo é também identificado como
sendo o campônio, aquele homem que vive o mais próximo da natureza e
como que secreta naturalmente elementos culturais que atendem a funções
de cunho biológico e étnico.92
O folclore aparece no pensamento de Ribeiro tal como foi pensado
pela tradição romântica europeia: uma cultura natural, orgânica, expressão
da alma, do caráter, do gênio, da psicologia da raça ou da psicologia coletiva.l.
tal como definidas por autores como Lazarus, Steinthal e Wundt. A cultura
pensada como fruto da própria natureza humana, em seu estágio mais --.,
natural, mais primitivo, mais ingênuo, por isso mesmo, mais inconsciente.
de si mesmo, menos racional, mais afetivo, sentimental, supersticioso,
crédulo, instintivo. Uma cultura nascida das atividades afetivas, emocionais
e intelectuais de homens rústicos, presos à natureza. Que, por isso mesmo,
eram observadores empíricos privilegiados, produzindo um saber prático,
nascido das atividades cotidianas, do contato direto com a natureza, da vida
em família, no iar junto à prole, no bando, em pequenas comunidades, no
contato pessoal e direto dos homens e mulheres com o mundo e entre si.
O folclore expressaria o elemento mental conservador, seria o Volksgeist, o
espírito social, uma espécie de alma coletiva que rodearia o homem médio,
base sobre e sem a qual não se ergueriam os gênios. Estudar tradições, contos
e superstições populares, por exemplo, seria explorar o antigo nível da alma
já sobre-excedido pela civilização. Os alemães teriam sido os pioneiros no
estudo da psicologia coletiva por já se interessarem, em época anterior,
desde o romantismo, pela literatura popular. Desde Herder e Grimm que
se preparava o interesse pela psicologia coletiva, desde Humboldt que
se preparava o interesse pela "alma étnica'' que governaria o pensamento
de todos. Adolfo Bastian teria pretendido subverter a noção de sujeito

92. O chamado critério étnico, adotado por João Ribeiro, no início do século x.x, para classificar
e analisar o material dito folclórico, conhecerá grande longe vidade no campo dos estudos de
folclore, mesmo com todas as críticas que a noção de raça passa a sofrer após a Segunda Guerra
Mundial. Este critério ainda foi utilizado por folcloristas posteriormente a esse acontecimento; ver,
por exemplo: DlliGUES JÚNIOR, Manuel. Etnias e culturas no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército, 1980.
individual cartesiana ao propor que em vez de se dizer - eu penso - se dissesse
_pensam em mim - para ilustrar que seria a multidão de ideias externas que
constituiriam as consciências individuais. Seria esta "psicologia étnica", as
formas rudimentares do espírito, este saber espontâneo, este saber autêntico,
original, que teria interessado, desde cedo, ao folclore, que definiria o seu
campo de atuação.93
A _palavrajolk-lore teria sido empregada pela primeira vez no dia 22 de
agosto de 1846~o jornal londrino Athenaeum, sob a assinatura de Ambrose
Merton, pseudônimo de William John Thoms, que a propunha como a
"expressão técnica apropriada ao estudo das lendas', tradições e da literatura
popíllar':94 A palavra se difundiu pelas línguas latinas, que teriam menor
fãéiiiaãdé na criação de neologismos e que, nestes casos, costumariam
socorrer-se do grego, que nos daria a palavra demologia como equivalente
literal da palavra folk-lore. Para Ribeiro, esta palavra serviu para renomear o
que antes se chamava de estudos das tradições populares, aplicando-se tanto
à coleta de materiais, como ao próprio estudo metódico, da história e da
comparação do material coletado.95 Ricardo Ortiz traça uma história distinta
para o emprego do termo folclore, diz que este veio renomear, inicialmente,
apenas a coleta das "antiguidades populares': realizada, basicamente, pelo
que se nomeava de antiquários - Thoms era um deles - que se restringiam
a coletar e guardar matérias e formas de expressão consideradas populares,
o que se considerava representativo dos costumes populares, não os
estudando.96 Parece-me, ao ler o texto de Thoms, texto em que teria usado
pioneiramente a pa1avrafolclore, 97 em que aparece sim a expressão "estudo': é

93. RIBEIRO, João. Op. cit., p. 10-12.


94. Idem, p. S-6.
95. Idem.
96. ORTIZ, Ricardo. Op. cit., p. 14.
97. "[Dirigindo-se aos leitores] suas páginas têm frequentemente mostrado o interesse pelo
que na Inglaterra chamamos Antiguidades Populares ou Literatura Popular (embora seja mais
um saber do que uma literatura, e seria mais apropriado descrevê-lo por uma boa combinação
saxõnica, Folk-lore - o saber do povo) que não é sem esperança que lhes peço ajuda para cultivar
as poucas espigas que existem dispersas no campo, e que nossos antepassados juntaram numa boa
colheita. Todos aqueles que estudaram as maneiras, os costumes, práticas, superstições, baladas,
~rovérbios etc., dos tempos antigos, devem ter chegado a duas conclusões: primeiro, o quanto tudo
•sto é curioso e que o interesse por elas está agora se perdendo; segundo, o quanto pode ainda ser
recuperado. O que poderíamos fazer no 'Evcry-Day-Bool<. o 'Atheneaum' com sua circulação mais
ampla, pode realizar dez vezes mais: juntar os infinitos, os pequenos fatos, ilustrativos dos objetos
que mencionei, e que se encontram espalhados na memória de milhares de leitores·: (grifo nosso)
Reprodução do artigo de lhoms in: DORSON. Richard. Peasmrt, wstoms and savage mi11ds.
que há um deslocamento de sentido desta noção entre o texto do antiquário
inglês e do erudito brasileiro: Ribeiro me parece pensar a noção de "estudo"
a partir dos pressupostos positivistas, em que estes implicavam um trabalho
metódico, de ir além da simples coleta e registro por escrito do material,
que parece ser o sentido, dado por Thoms, à noção de "estudo': Estudo para
Ribeiro implicava submeter o material coletado a uma análise comparativa,
estabelecendo classificações, dando um ordenamento e elaborando uma
interpretação do material à luz da história, da comparação ao longo do
tempo com outros materiais semelhantes, de outras sociedades e épocas, na
busca de sua origem e variações no tempo e espaço.
Os métodos propostos para os estudos folclóricos por João Ribeiro, no
entanto, já não são os métodos filológicos, tão caros ao romantismo, com
suas tendências literárias, mas métodos mais afeitos a uma visão do folclore
como ciência positiva e do folclorista como um profissional e não um amador
diletante, apoiados em pressupostos evolucionistas, e em estudos do que
seria a psicologia primitiva e a antropologia das raças. Ao invés dos estudos
etimológicos de Max Müller, da teoria dos m itos astronômicos de Gubernatis
e de Bréal, recomenda a pesquisa da psicologia dos povos, das suas ideias e
sentimentos comuns, do seu inconsciente, feito e refeito secularmente e que
constituiria a fonte viva donde sairiam os gênios e as individualidades de
escol, tal como praticada por Andew Lang e outros folcloristas ingleses.98
A pesquisa das correntes do espírito que atravessariam e transcenderiam a
própria nacionalidade não deveria prender-se ao anedótico, ao documento,
ao pormenor, embora ponderasse que, sem o pormenor, as generalizações
não passariam de vagas filosofias, a que se poderia contrapor facilmente outra
doutrina. Os detalhes deveriam ser tomados como "sinais fisionômicos" de
um corpo mais completo de ideias, que se deveria perseguir. 99 Esta tensão

Chicago: University of Chicago Press. 1969, citado a partir de ORTIZ, Ricardo. Op. cit. p. 13 c
14.
98. RIBEIRO, João. Op. cit. p. 14- 15. l.uís da Càmara Cascudo parece concordar com Ribeiro
quando este define o folclore como uma pesquisa da psicologia dos povos, das suas idcias e
sentimentos comuns, do seu inconsciente, feito c refeito secularmente e que constitui a fonte
viva de onde saem os gênios e as individualidades de escol, pois no exemplar do livro de Ribeiro,
presente em sua biblioteca, este trecho cst<1marcado a lápis comum n:ts margens com duas grandes
letras C. a qual, como sabemos, é usada pelos professo res para s ignifi ca r que está certa, que está
correta uma afirmação, a resposta a uma questão. Ver a margimllia feita por Luís da Câmara
Cascudo no livro de Ribeiro, presente na biblioteca do Ludovicus - Instituto Cilmara Cascudo,
nas páginas supracitadas.
99. RII3El RO, João. Op. cit., p. 273 e 316. Câmara Cascudo, um entusiasta do detalhe e que
entre a atenção ao detalhe e a necessidade de generalização atravessa os
estudos folclóricos. A deficiência do aparato teórico deste saber será um dos
motivos de seu constante questionamento por parte dos cientistas sociais. 100
Francisco Augusto Pereira da Costa, assim como Silvio Romero, no
Brasil, e Theóphilo Braga e Oliveira Martins em PortugaP01 , baseia suas
análises do que seriam as manifestações culturais das camadas populares
a partir de teorias de base biológica advindas do social darwinismo e do
evolucionismo. Logo no início do seu livro Folk-lore pernambucano, ao
analisar as superstições populares, toma como base de interpretação as
concepções de Max Nordau, médico húngaro, que• foi simplesmen te um
dos fundadores da organização sion ista mundial. Para ele as superstições
e crendices populares obedeceriam a leis hereditárias, teriam um caráter
universal, pois adviriam daquilo que nomeia de memória da espécie,
memória que se alojaria no inconsciente, levando a persistir em cada
indivíduo em particular as ideias dos antepassados, que viriam à luz sempre
que estímulos externos assim o provocassem. Dos autores da tradição
romântica cita apenas Alexandre Herculano, no momento em que quer
afirmar a importância das tradições e de seu estudo. 102 Assim como outros
estudiosos da chamada cultura brasileira, Pereira da Costa, no momento
de definir essa hereditariedade cultural que teria constituído a cultura do
povo brasileiro e, no caso, pernambucano, seleciona o elemento branco,
o português, para ser aquele de quem ele teria herdado a maior parle de
suas crendices e superstições. E como ocorre--na obra de Luís da Câmara
Cascudo, que não poupa elogios à obra do estudioso pernambucano, recua-
se esta herança até os povos clássicos, aos gregos e aos romanos, de quem
os pernambucanos teriam herdado elementos culturais: as pausas nas

via com muitas restrições as teorias o u explicações generalizantes para o que chamava de fato
folclórico, sublinha o trecho do livro de João Ribeiro que defende o direi to de meditar sobre o que
seria a sua inútil Bíblin pnuperum, tal como gostava de fner o folclorista potiguar, que mu itas vezes
defendeu o trabalh o que fazia a respei to do que muit os julgavam ser inutilidades. Ver a marginália
feita por Câmara Cascudo no exemplar do livro de Ribeiro presente na biblioteca do Ludovicus-
Instituto Câmara Cascudo, na página 316.
100. Ver: MICELI. Sérgio. Histórin dns Ciências Sociais 110 Brasil. v. 1. São Paulo: anpocs, 2001.
101. Pereira da Costa cita algumas vezes Theóphilo Braga e Oliveira Martins, para apoiar suas
análises de bases raciais das origens de dadas práticas ou crenças populares e acerca de algumas
referências que fazem a matérias e formas de expressão que seriam comuns a Brasil e Portuga l, ou
materiais que foram do Brasil para Portugal. Ver, por exemplo, COSTA, Francisco Augusto Pereira
da. Op. cit., p. 166, 188, 193,203.
102. Idem, p. 105.
procissões, a reverência à mesa, o fechar os olhos e a boca ao defunto, as
festas de carnaval, que viriam de suas saturnais, os dias aziagos, os espectros
noturnos, as almas dos finados que vêm atormentar os vivos, e a sina ou 0
fado em que acreditaria geralmente o vulgo. 103 Lembra ainda o que seria a
influência de espanhóis, batavos, italianos e de outros povos europeus na
formação do que chama de "nossa índole" ou de "nosso caráter': 104
Adotando claramente a concepção de raça como nuclear em sua análise,
Pereira da Costa também veicula o esquema interpretativo, tão presente na
tradição romântica brasileira, do amálgama das três raças formadoras como
sendo explicativa das tradições culturais pernambucanas, notadamente no
tocante a crendices e superstições já que tanto o indígena, quanto o negro
africano manifestariam o sentimento religioso sob a forma de um temor
supersticioso. Assim como fará Câmara Cascudo no seu livro Superstição no
Brasil, 105 Pereira da Costa estabelece uma relação entre superstição e religião,
relação hierárquica e assimétrica, manifestando o grau de civilização da
raça ou do povo, o grau de evolução do espírito de uma dada comunidade
humana: a superstição antecederia e conviveria com a religião, como um
estágio anterior de crenças, estágio inferior e remoto, típico de raças não
civilizadas como os indígenas e os negros.
Embora considere seu trabalho uma primeira contribuição, oferecendo
apenas subsídios para futuros estudiosos, alegando que não faria nenhum
tipo de classificação do material recolhido, nem iria em busca das origens
destas manifestações supersticiosas, Pereira da Costa parece advogar a tese
monogenista, ou seja, que o gênero humano teria surgido em dada parte
da terra e daí se disseminado por todo o globo, no entanto, tal origem não
seria mais registrada nem mesmo pela tradição oral de povos como os
indígenas brasileiros. A tese monogenista se associa em Pereira da Costa
à tese difusionista dos traços culturais humanos, que é uma consequência
daquela. Esta concepção o leva a interpretar todas as manifestações culturais
do presente como fruto da transmissão através do tempo de traços culturais
que vêm das civilizações mais antigas surgidas na África, na Ásia e na Europa
e que teriam se espalhado pela terra à medida que os povos migravam,
sofrendo modificações para dar conta da adaptação a diversos meios e com
o próprio passar do tempo. Defende, por exemplo, que o que chama de

103. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Op. cit., p. 25.


104. Idem, p. 26.
105. CASCUDO. Luís da Câmara. Superstiçcio no Brasil. 5. cd. São Paulo: Global, 2002.
astrolatria dos indígenas brasileiros é a continuidade de uma prática que já
era comum a todos os povos da antiguidade que adoravam o sol, a lua ou as
estrelas, sofrendo apenas "modificações concepcionais': dado que para ele os
índios eram incontestavelmente originários dos povos orientais. 106
Nos anos 1930, uma figura como o médico e político baiano, Afrânio
PeiXoto procura dar aos estudos de folclore um estatuto científico. Bem
condizente com sua formação na Faculdade de Medicina da Bahia, adotará o
evolucionismo como modelo de interpretação do que seria o fato folclórico
e uma concepção positivista de ciência, que se opõe à tradição romântica,
em que identifica, apenas, pendores literários, poéticos e o abusivo uso da
imaginação em detrimento da pesquisa, da observação e da experimentação
rigorosa. Num capítulo de seu lívro Missangas: poesia efolk-lore, 107 dedicado
às trovas populares, propõe, por exemplo, o uso do que chama de método
experimental em literatura e busca demonstrar a existência do que considera
serem as duas leis da criação coletiva: a lei da adoção e a lei da adaptação,
opondo-se frontalmente a ideias e conceitos de inspiração romântica como
a de gênio popular, inspiração coletiva, de multidão criadora, com os quais
se buscava afirmar o caráter anônimo, coletivo e não individual da produção
dita popular. Para Peixoto era o oposto que ocorria, o que se passava com
o elemento folclórico é que este nascera individualmente, fora produto da
lavra de um autor, mas ele caíra no gosto popular, o povo o teria adotado
e o adaptado a distintas circunstâncias, a distintos meios, promovendo,
inclusive, a melhoria paulatina deste mateFi~l pela ação evolutiva do tempo.
Diz ele, demonstrando a sua tese:

Outra demonstração: a trova popular que raramente é bela, 10 em 100


vezes, que raramente é perfeita, 1 em 1000 vezes ... a trova popular tem para
esse juízo a nossa implícita e tácita prevenção crítica... é perfeita como as
criações do Povo. Prejuízo democrático, talvez romântico, derivado filosófico
daquela admitida perfeição da natureza, dogma científico ruído por terra e
a que o evolucionismo, de nosso tempo, substituiu, pelo aperfeiçoamento da
natureza, que vamos vendo, e veio de antes, e irá até o fim. Com as trovas
populares, adotadas, variadas, aperfeiçoadas. 108

106. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Op. cit., p. 28-29, 37.
107. PEIXOTO. Afrânio. Missangas: poesia e folk-lore. Rio de janeiro: Cia. Editora Nacional,
1931.
108. Idem, p. 184.
Leonardo Mota, de maneira bem humorada, chama atenção para
o fato de que os estudos de folclore no Brasil ainda desfrutavam, entre os
anos 1920 e 1930, de pouco prestígio social. O próprio conceito de folclore
era pouco divulgado em meio à intelectualidade brasileira. Mota defende
a necessidade de se divulgarem não só as atividades dos folcloristas, 0
material que eles recolhiam, como o próprio conceito, o próprio campo de
estudos do folclore que, mesmo nos meios letrados, ainda era ignorado ou
praticamente desconhecido. Ele mesmo ainda o considerava um gênero
literário, um campo das artes literárias, ao contrário de Afrânio Peixoto e
Câmara Cascudo que, conforme vimos, buscavam transformá-lo em um
campo científico. Produzindo toda a sua obra entre os anos 1910 e 1930,
Leota ainda via o folclore como uma atividade relacionada ao campo da
erudição, como uma atividade ligada às belas letras. Seu trabalho ainda
profundamente marcado pela oralidade, como analisamos em capítulo
anterior, será motivo de reprovação por sucessores que querem dar aos
estudos de folclore um caráter e um rigor científico. Seus livros com formato
de miscelânea, de recolha, de coleção das coisas mais disparatadas, deixam
entrever que ele próprio representava uma dada maneira de pensar e praticar
a profissão de folclorista, que posteriormente seria posta em questão, pelo
menos em nível de discurso pelos estudiosos do folclore, embora suas obras
nunca deixem de ter aparência semelhante à das obras de Leota. Se a própria
ideia de folclore era pouco divulgada, quanto mais a de folclore nordestino,
de criação ainda mais recente, da qual ele próprio nem sempre partilhara,
como veremos no capítulo seguinte:

É um gênero literário de nome infeliz, este a que me devotei. Vezes sem conta,
tenho sarapantado empregados de livrarias, perguntando-lhes se tem alguma
novidade sobre folclore. Nas pequenas cidades, sobretudo, raríssimos têm a
noção do que seja este bicho de sete cabeças: folclore. E o mal é sem remédio,
porque o termo é insubstituível. Há que metê-lo no entendimento das turbas.
Em Aracaju, o poeta Pires Wynne ofereceu a um servente da estação telegráfica
um ingresso para uma conferência minha sobre o folclore nordestino. No dia
seguinte, o poeta procurou conhecer as impressões de seu convidado a meu
respeito:
-Então, seu Anastácio, foi ontem à conferência do Leonardo Mota?
-Fui.
-E que me diz do folclorista?
- Que é que me diz de que?
- Do folclorista. Você gostou do folclorista?
- Isso eu não vi não, porque, quando eu cheguei lá, fazia uns cinco minutos
que o homem tinha começado... 109

Entre os anos 40 e 50, do século passado, o conceito de folclore dá lugar


ao conceito de cultura popular, embora, contraditoriamente, seja o momento
de institucionalização definitiva do movimento folclórico com a criação
do Conselho Nacional do Folclore (1947), responsável pela realização em
vários Estados da Semana do Folclore, da Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro (1958), em que se destacaram inteleCtuais nordestinos como
hdison Carneiro e Renato Almeida, e da Comissão Nacional do Folclore,
vinculada à Unesco, por parte do governo federal.110 Estes conceitos passam,
muitas vezes, a ser utilizados como se fossem sinônimos, aparecendo, em
muitos textos, lado a lado, sem que se precise o que os diferencia. Para a

-
substituição progressiva da noção de folclore pela de cultura po-pü ar,
-
notadamente por intelectuais ligados à Universidade, onde os estudos de
Ioiclõre praticamente não encontram guarida, no caso dos estudos ligados
ãcnamada cultura nordestina, foi fundamental o chamado Movimento de
Cultura Popular,'" que foi concebido no Recife por Paulo Freire e Hermilo
Borba Filho, durante a gestão de Miguel Arraes, na prefeitura do Recife
(f960), mas que teve repercussão em toda região, além da atuação de
intelectuais como Ariano Suassuna, que fizeram sua obra e a difundiram
já a partir desta nova categoria. No final dessa década e na década seguinte
ããtuação dos Centros Populares de Cultura, ligados à União Nacional
aos Estudantes, permite não só a ressignificação de matérias e formas de
expressão das camadas populares a partir do conceito de cultura popular,
como dá origem a uma procura de teorização, de definição desta categoria,
tendo agora como referência teórica o marxismo. 112 A atual historiografia,
que tem como preocupação a cultura popular, bebe nesta tradição de estudos
em torno deste conceito, realizados, principalmente, até o golpe militar de

109. MOTA, Leonardo. No tempo de Lampião, p. 95.


'\ li O. Para uma história do movimento folclórico no Brasil, ver: VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto
e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Editora da fgv/Funarte,
1997.
0
111. Sobre o Movimento de Cultura Popular (mcp), ver: BARBOSA, Letícia Rameh. Movimento
de cultura popular: impactos na sociedade pemnmbucana. Recife: Bagaço, 2009.
0
112. O texto que maior repercussão causou sobre a temática foi o de: MARTINS, Carlos Estevam.
A questão da cultura popular. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963.
1964. Podemos dizer que, em dado momento, há um embate ideológico
entre as noções de folclore e de cultura popular, a primeira se identificando
com posições políticas mais conservadoras e a segunda ligada a posições
políticas que se propunham revolucionárias ou reformistas.113 Isto faz com
que sejam os estudos de folclore aqueles privilegiados institucionã h;-ente
pelo Estado, após o golpe militar. O Museu do Folclore foi criado em
1968, ano de maior recrudescimento do regime, e de edição do AI-5. Em
1978 foi criado o Instituto Nacional do Folclore, atual Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular, onde, curiosamente, os dois conceitos voltam a
aparecer articulados e sem que se definam claramente as suas distinções. O
movimento folclórico que sempre se caracterizara por sua dependência em
relação ao mecenato dos poderes públicos se aloja mais ainda no aparelho
do Estado, enquanto os estudos de cultura popular se refugiam no espaço
da Universidade, onde retomam seu vigor após a abertura política dos
anos 1980, inspirados agora em novos referenciais teóricos, embora ainda
dentro do universo dos modelos de interpretação filiados ao marxismo,
como aqueles ligados à chamada história social. Foge dos limites deste
trabalho tratar dessa nova configuração histórica e conceitual de forma mais
aprofundada, ela merece um posterior trabalho, que venha complementar o
que aqui está sendo tratado.

113. Para as relaçôes entre folclore e política ver: ARAÜJO, Nelson. Folclore e política. Salvador:
Ianamá, 1988.
Capítulo 3

Acontecimentos

Nove de setembro de 1924, data em que ocorre um acontecimento


decisivo para a emergência do que conhecemos hoje como sendo a cultura
popular nordestina. Na casa do Dr. Odilon Nestor, no Recife, reúnem-se
os membros do Centro Regionalista do Nordeste, entidade fundada sob a
inspiração de Gilberto Freyre e que encabeçaria o movimento denominado
de Regionalista e Tradicionalista, movimento que milita em torno da ideia
de Nordeste, procurando propagandeá-la, ao mesmo tempo em que procura
definir quais seriam os elementos natu~, históricos, sociais e culturais
que particularizariam esta região. Nesta noite, o Centro recebe a visita de
"interessantes figuras de nordestinos" que teriam vindo trazer "à obra de
patriotismo regional, a força de sua simpatia e do seu entusiasmo", todos
prometendo cooperar com o Centro desde os seus respectivos Estados,
para que o movimento adquirisse "extensão e significação regionais": o Dr.
Joaquim Nogueira Paranaguá, ex-governador do Piauí, ex-senador federal
e "figura simpática de 'gentleman farmer"'; o Dr. Leonardo Mota, do Ceará,
"apreciado folclorista, autor dos Cantadores" e o jornalista e escritor Luís
da Câmara Cascudo, do Rio Grande do Norte, cujo trabalho Histórias que
o tempo leva teria vindo trazer "novo interesse aos estudos deste gênero, na
região Nordeste". 1 14

114. N/ a. Centro Regionalista elo Nordeste. Recife: Diário de Pemnmbuco, ll/09/1924, p. I, c. 4.


Neste dia, portanto, numa reunião do Centro Regionalista do Nordeste
encontram-se aquele que já era considerado um expoente dos estudos
folclóricos no país, desde que houvera publicado seu livro de estreia,
Cantadores, em 1921, o cearense Leonardo Mota, e aquele que se tornaria 0
grande mestre do folclore nacional, Luís da Câmara Cascudo que, embora
já tivesse publicado alguns estudos sobre folclore, tanto no jornal de
propriedade de seu pai, A Imprensa, quanto na Revista do Brasill15, dirigida
por Monteiro Lobato, não publicara nenhum livro sobre o assunto e não era
ainda considerado um folclorista, como a apresentação que faz dele o artigo
do Diário de Pernambuco deixa transparecer. Em prefácio que escreve para a
reedição, em 1961, deste livro pioneiro de Leonardo Mota, Câmara Cascudo
relembra que foi em setembro de 1924 que os dois vieram a se conhecer
pessoa1mente:

Essa evocação de criatura física, convivida desde setembro de 1924, revela a


identidade material com o assunto. 116

Deste encontro pioneiro entre Leota e Cascudinho, como eram


chamados pelos íntimos à época, conhecemos ainda três episódios: um deles
narrado pelo próprio Câmara Cascudo, no referido prefácio de 1961. Estava
o escritor potiguar na "república" em que morava, na Rua do Imperador,
quando ouve uma cantoria de cego pedindo esmolas, que o atrai até a janela.
Ao olhar para baixo, se depara com Mota, vestido de fraque, entoando aquela
cantoria para chamar sua atenção e poder convidá-lo para uma feijoada
dominical na Rua das Florentinas. Ao contar este episódio, parece-me que
Cascudo quer, além de demonstrar qué surgiu uma amizade imediata entre
os dois, dizer que ambos partilhavam os mesmos interesses, desde esta
época, pelas coisas populares. Em seguida, Cascudo relembra que, neste
mesmo dia, à noite, pôde presenciar, na sede do Diário de Pernambuco, um
dos recitais que versava sobre causas sertanejos, que o folclorista cearense
costumava proferir, nas principais cidades do país 11 7• Este deve ser o recital
de Leonardo Mota que teria sido encerrado quando Gilberto Freyre e José
Lins do Rêgo erguem suas bengalas com lenços brancos na ponta, num

115. Destes primeiros estudos pude localizar: CASCUDO, Luís da Câmara. "Lycanthropia
sertaneja': Revista do Brasil, São Paulo, v. .x.x-v. n. 94. p. 129-133.
116. CASCUDO, Luís da Câmara. "Aí começa o sertão!': In: MOTTA. Leonardo. Cantadores,
n/p.
117. Idem, n/p.
cômico gesto de rendição, episódio narrado pelos biógrafos de Freyre,
Giucci e Larreta. 118 No livro que publicaria logo no ano seguinte, Violeiros do
Norte {1925), 119 Leonardo Mota se refere ao que chamou de "serão de letras
matutas" a que ele teria assistido, nesta mesma época, no Recife, na casa do
dr. Samuel Hardman, Secretário de Agricultura de Pernambuco e membro
do Centro Regionalista do Nordeste, onde ouvira o cantador negro João
Catingueira. Entre os livros que pertenceram a Câmara Cascudo, guardados
hoje no Ludovicus - Instituto Câmara Cascudo, consta a primeira edição
desta obra. Ao consultá-la, encontramos nas margens deste trecho do livro,
a seguinte anotação feita pelo potiguar, escrita a'lápis:

Estive presente a esta festa, assim como Aníbal Fernandes, Gilberto Freyre e
outros.' 20

Através desta marginália, ficamos sabendo não só de mais um encontro


entre Câmara Cascudo e Leonardo Mota, no Recife, em torno das "letras
matutas", como de mais um episódio que os reúne aos intelectuais e políticos
que compunham o Centro Regionalista do Nordeste, como o anfitrião, Samuel
Hardman, e Aníbal Fernandes. Nesta, vemos confirmada a presença de
Gilberto Freyre, o idealizador do Movimento Regionalista e Tradicionalista,
o que, embora não textualmente citada, também deve ter ocorrido no evento
na casa de Odilon Nestor e no recital de Mota no Diário de Pernambuco. A
reunião em torno de um cantador de viOla mostra que todos que ali estavam
valorizavam este tipo de manifestação cultural popular, que todos estavam
dispostos a ouvi-la como algo significativo da produção cultural da região.
Porém, o que torna estes eventos narrados acima singu lares? Por que
eles ganham importância quando tentamos averiguar em que momento
histórico e em que circunstâncias surgiu a ideia de cultura nordestina?
Por que eles seriam relevantes no sentido de afirmar o caráter histórico
desta noção? Por que eles se tornam fundamentais quando buscamos
encontrar o momento em que este conceito passou a funcionar e a recobrir
um dado feixe de fenômenos e manifestações culturais, que antes tinham
outras denominações? Esses autores, como disse, antes deste momento,

118. GIUCCI, Guillcrmo; LARRETA, Enriqueta. Gilberto Freyre- uma biografia cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 146.
119. MOTTA, Leonardo. Violeiros do Norte.
120. Marginália escrita por Câmara Cascudo no Livro: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, p.
57.
já haviam produzido escritos sobre o folclore. Leonardo Mata já era um
folclorista respeitado. E antes dele outros já tinham se dedicado à recolha
das "tradições populares". No prefácio ao livro de Mo ta, Cascudo lista Silvio
Romero (1883), Rodrigues de Carvalho (1903), Pereira da Costa (1908) e
Gustavo Barroso (1921) que, nestas datas, haviam publicado trabalhos sobre
a "literatura popular': Não residia, portanto, no interesse por esta temática ou
por este tipo de manifestação cultural, a importância destes acontecimentos
ocorridos em 1924, no Recife.
Para perceber em que consiste a ruptura trazida por eventos
aparentemente tão prosaicos e corriqueiros é preciso que prestemos atenção
no que pode parecer um detalhe sem importância, mas que para um
historiador se torna extremamente relevante. O livro que Leonardo Mota
publicara em 1921, que teria materializado seu interesse pelos cantadores
populares que, segundo Cascudo, datava de 1913, e lhe teria dado fama
nacional, tinha um subtítulo, que exercia a função tradicional de explicitar
a temática de que tratava o livro: "poesia e linguagem do sertão cearense':
Um ano após os eventos do Recife, Leota volta a publicar um novo livro
em que enfeixa vários dos recitais que ministrava sobre a "musa sertaneja".
Com o título de Violeiros do Norte trazia agora o seguinte subtítulo: "poesia
e linguagem do sertão nordestino", subtítulo que reaparecerá no seu livro
de 1928, Sertão alegreY 1 Se a temática não mudara, seu enquadramento
espacial havia se alterado. Se antes a poesia e a linguagem dos cantadores
eram uma manifestação cultural do sertão cearense, agora, um ano após a
estada no Recife, o encontro com Gilberto Freyre, o contato com o Centro
Regionalista do Nordeste e o Movimento Regionalista e Tradicionalista,
Leonardo Mota passa a incorporar a ideia de Nordeste, passa a usar a
designação de nordestina para nomear e definir os materiais culturais
populares que recolhera e que organizara em forma de livro. A poesia dos
cantadores deixa de ser uma manifestação cultural popular sertaneja para
ser uma manifestação cultural popular nordestina, designação com que lhe
foi, possivelmente, apresentado o cantador que ouviu na festa regionalista
e tradicionalista. João Catingueira pode ter sido o primeiro vate popular a
deixar de ser apenas sertanejo para ser nordestino. O sertão não será mais
apenas de um Estado, o Ceará, mas de toda uma região, o Nordeste. A obra
que publica não se refere mais a manifestações culturais típicas apenas de

121. MOTTA, Leonardo. Sertiio alegre: poesia e linguagem do sertiio nordestino. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1928.
seu Estado natal, mas de toda uma região. Estava nascendo, assim, a cultura
nordestina. Esta era a novidade, estes materiais e formas de expressão eram
agora associados a uma dada identidade regional, a uma dada identidade
espacial: a nordestina.
Outro dado significativo é que o título do livro ainda é Violeiros do Norte,
mostrando que este é um momento de transição entre estas identidades
espaciais, de indefinição, momento em que a ideia de Nordeste ainda não
se consolidara nacionalmente, que a invenção desta região ainda estava se
processando. Como o livro de Mo ta fora publicado pela C ia. Gráfico-Editora
Monteiro Lobato, de propriedade do famoso escritG>r paulista, visando a uma
circulação nacional, possivelmente pode ter parecido temerário, até para o
editor, nomear o livro de Violeiros do Nordeste, já que esta espacialidade
ainda estava em construção, ainda não era uma identidade consolidada.
Mas o nordestino já aparecerá no subtítulo, talvez como uma especificação,
um recorte no interior do próprio Norte, o que antes era feito com o uso
das designações estaduais ou provinciais. Se antes era o recorte Ceará que
especificava um Norte sertanejo, agora era o Nordeste que vinha recobrir e
nomear esta área nortista específica.
O que me parece bastante provável é a clara influência que o contato
com o Centro Regionalista e com as ideias de Gilberto Freyre, seu inspirador,
teve na adoção por parte de Mota da identidade nordestina para nomear as
atividades culturais e as manifestações populares que vinha pesquisando. Ao
contrário do que afirma Maria Lúcia PaTiàres-Burke, no livro que escreveu
sobre o sociólogo pernambucano, 122 a militância regionalista de Freyre não
me parece ter sido em vão, ela deu frutos importantes e permanentes, como
a própria ideia de Nordeste, e ajudou a definir o que hoje pensamos ser a
cultura nordestina. A importância destes eventos de 1924 também pode
ser avaliada no que tange à obra do outro personagem aí presente. Embora
tenha constantemente silenciado a sua aproximação com as ideias de Freyre
e tenha omitido suas relações com os Regionalistas e Tradicionalistas, 123
aqueles episódios mostram que Luís da Câmara Cascudo não passou ao
largo do movimento cultural encabeçado pelo sociólogo pernambucano.
Se Leonardo Mota se deixou afetar com uma simples visita, não podemos

122. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyrc: um vitoriano nos trópicos. São
Paulo: Editora unesp, 2005, p. 242-243.
123. Sobre esta temática, ver: SALES NETO, Francisco Firmino. Palavras que silenciam: Cflmara
Cascudo e o rcgionalismo-tmdicionalista nordestino. João Pessoa: Editora Universitária/ ufpb, 2008.
acreditar que Cascudo que, entre 1924 e 1928, viveu no Recife, para cursar a
Faculdade de Direito, possa ter desconhecido aquela movimentação cultural,
que se dava em torno, não só de muitas figuras das mais expressivas da
intelectualidade e da política local, como em torno do jornal mais influente
e de maior circulação na cidade: o Diário de Pernambuco, do qual Freyre
era colaborador. Cascudo, como mostra os eventos relatados, conviveu com
muitos dos membros do Centro e se propôs a ser seu representante no Rio
Grande do Norte.
Em carta escrita a Freyre em 1940, Cascudo assim se despede:

Aqui fica, o velho sócio do 'Centro Nacionalista do Recife: na sede no Odilon


Nestor, a quem V. indigestou fazendo -o comer nove beijus secos. Abraço.
Luís da Câmara Cascudo. 124

Talvez não por equívoco, mas por ironia, o Centro Regionalista do


Nordeste é transformado em "Centro Nacionalista do Recife': mas não há
dúvida de que Cascudo se refere nesta carta à sua condição de sócio do
Centro, que tinha como presidente justamente Odilon Nestor, que recebia
em sua casa as reuniões periódicas daquela instituição e que, ficamos
sabendo, quase morreu de indigestão ao se submeter à dieta regionalista a
qual tanto prezava Freyre.
Mas, ao contrário de Mota, Cascudo levará alguns anos para publicar
seu primeiro livro dedicado ao folclore, embora em uma carta escrita a
Freyre, já no ano seguinte, 1925, Cascudo fale de um livro sobre "Folk-
lore", que estaria "quase pronto" e que teria "coisas curiosas': 125 Talvez
possamos encontrar nesta espécie de prestação de contas que Cascudo faz a
Freyre - pois além de nomear este livro, se refere ainda a tudo que estivera
produzindo - ecos dos acontecimentos do ano anterior, que teriam reforçado
em Cascudo seu interesse pelo que os regionalistas chamavam de "tradições
regionais': Mas, somente em 1939, publicará seu primeiro livro dedicado ao
tema: Vaqueiros e cantadores, que terá como subtítulo "folclore poético do
sertão do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco': 126 Ou seja,

124. Carta de Câmara Cascudo a Gilberto Freyre (1940). Acervo da Fundação Casa de Gilberto
Freyre.
125. Carta de Câmara Cascudo para Gilberto Freyre, 06 de novembro de 1925. Acervo da
Fundação Casa de Gilberto Freyre.
126. CASCUDO, Luís da Câmara. \faqueiros e ca11tadores: folclore poético do sertão do Ceará,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Porto Alegre: Globo, 1939.
diferentemente de Leonardo Mota, Cascudo não parece ter incorporado
imediatamente a ideia de Nordeste como recorte espacial a que remete as
manifestações culturais populares que estuda. A ideia de sertão, que aparece
em seus primeiros escritos, anteriores aos eventos de 1924, continua sendo a
demarcação espacial que usa para organizar e dar identidade ao material de
cunho popular que recolhe e organiza em livros ou artigos. Em reforço do
que afirmo podemos citar o fato de que neste mesmo ano de 1925, Cascudo
publica no Recife, na Revista de Pernambuco, periódico patrocinado pelo
governo daquele Estado, um artigo sobre o que chamou de astrolatria
popular, ou seja, as manifestações culturais populares em torno dos astros,
intitulando o texto de "Selenolatria sertaneja': 127 ou seja, o sertão continua
sendo para Cascudo o lócus da cultura popular, das tradições populares, o
âmago da própria nacionalidade e não o Nordeste.
Mas, se a ideia de Nordeste parece tardar a aparecer como recorte
espacial que dá sentido a sua própria produção no campo do folclore, sua
adesão à ideia de Nordeste parece ser anterior aos próprios acontecimentos
de 1924. Em artigo escrito em 1920, na Revista do Centro Polymathico do
Rio Grande do Norte, em que analisa os três livros publicados por Gustavo
Barroso sobre o sertão, Cascudo após ter se referido à frase de Monteiro
Lobato - que parece ser o seu modelo de intelectual nacionalista, neste
momento- dizendo que o "Brasil está no interior", longe do cosmopolitismo
das cidades do litoral e afirmar ser o s~ão o lugar de onde se deveriam
retirar as inspirações e motivos para a criação de uma arte e uma literatura
verdadeiramente brasileiras, vai abrir um item no artigo intitulando-o
de: "O esquecido Nordeste': O mais curioso é que, como é comum neste
momento em que a ideia de Nordeste ainda está se consolidando, a anterior
denominação Norte aparece logo a seguir àquele título, sem que o autor
perceba haver qualquer incompatibilidade no uso das duas designações. Diz
ele:

O esquecido Nordeste
Para o norte é o esquecimento. O ronco troante das buzinas de Antônio
Conselheiro, o erguer miraculoso de Canudos, trotLxe com os regimentos
(raticidas, a pena brônzea de Euclides da Cunha. Xa\rier Marques, Manoel
Aarão, Thcotônio Freire, Carlos D. Fernandes, Orris Soares, e muitos outros

127. CASCUDO, Luís da Cámara. "Selenolatria sertaneja': Rel'ista de Pernambuco, Recife, n. 9,


tnarço de 1925, s/p.
ao de leve escrevem e pensam sobre aquilo que os circunda. A literatura do
norte é meio convencional e meio lírica. Surgem as tinturas de azul e róseo
romantizando o tipo descrito. A observação é quase sempre substituída pela
leitura, observação feita por outrem sem o 'enérgico vinco da impressão
pessoal: Há uma espécie de ritual descritivo. Para cada capítulo os mesmos
tons, tipos, cenários e dizeres. Parece que nenhum dos livros publicados no
nordeste, com exceção do 'Luzil-Homem' (sic) de Domingos Olympio, não é
um nortista que escreve, quem o sente, quem o vê, quem o sofre. 128

Em todo o artigo Cascudo oscila entre o uso dos termos Nordeste


e Norte, nordestino e nortista para designar o espaço e o homem aos quais
seriam dedicados os livros de Barroso, embora a referência ao recorte espacial
Nordeste só aparecesse no subtítulo do último deles, aquele publicado em
1917, Heróis e bandidos, os outros dois tinham como subtítulo: "natureza e
costumes do Norte" e "alma sertaneja", sendo que o próprio Barroso usava o
pseudônimo de João do Norte 129 • Porém, o mais interessante, é que tanto o
Nordeste como o nordestino ou o Norte e o nortista a que Cascudo se refere
serão sempre resumidos e representados pelo sertão e pelo sertanejo, estes
são uma metonímia da região e do homem que a habita. Mas o que interessa
para o objetivo deste livro é que as três obras de Gustavo Barroso, 130 que são
objeto da análise de Cascudo e que são tomadas por ele como representantes
de uma verdadeira literatura nacional, têm como assuntos o que será
posteriormente nomeado de cultura nordestina:

As obras desta natureza, destoando do convencionalismo dos livros baratos,


levam a um grau maior de magia o tipo do homem, a cor do mato, a vitalidade
da terra, o terror da seca, o heroísmo das gentes, e tudo isso se amolda e
se fu nde numa sinergia perfeita, cântico profundo do valor intrínseco do
nordeste. O homem focalizado na "Terra de Sol" é o misto de Jeca-Tatú e
Mané Chique-Chique. Monteiro Lobato e Ildefonso Albano têm razão.

128. CASCUDO, Luís da Câmara. "Uma nova expressão de arte em literatura: três livros de
Gustavo Barroso - o instinto da naciona lidade nas artes': Re1•ista do Centro Polymathico do Rio
Grande do Norte, Natal, setembro de 1920, p. 10-11.
129. Ver: BARROSO, Gustavo (João do Norte). Terra de Sol: natureza e costumes do Norte. Rio de
Janeiro: Benjamim de Aguiar Editor, 1912.
130. As três obras de C ustava Barroso que eram analisndns por Cascudo neste artigo, além da
j<Í citada Terra de Sol, são: BARROSO, Gustavo. Pmias e várzeas: alma scrtcwejcz. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1915, e BARROSO, Gustavo. Heróis e bandidos: os ca11gaceiros do nordeste. Rio de
janeiro: r:rancisco Alves, 1917.
O nordestino é simultaneamente a loucura e o riso, a audácia infinita e a
precaução infindável. Onde quer que esteja descansa. Onde quer que veja
a luta, luta. Euclides da Cunha pontifica a verdade nas brônzeas linhas do
Sertões. 131

Vê-se que, ao considerar o nordestino, de que trata Barroso, idêntico


àquele homem descrito por Euclides, é ao sertanejo que se está reduzindo
0 homem da região. Ao se referir aos personagens de Lobato e Albano, o
nordestino está sendo reduzido ao homem do povo, ao pobre, às figuras
populares. Este texto pioneiro de Cascudo articula, portanto, três temáticas
que serão decisivas para a emergência da ideia de uma cultura regional
nordestina: o popular, o sertanejo e o regional como expressões legítimas
do nacional, como sendo onde reside a possibilidade da produção de uma
arte e literatura nacionais, salvas "do cosmopolitismo': que assim como o
cubismo em pintura seria "uma idiossincrasia mórbida caracterizada': longe
da "parizistização", livrando-nos de produzir uma "intragável maionese
literária, monotonamente banal e insípidá'. 132 Neste texto de Cascudo, o
Nordeste era o sertão, o sertão era o lócus da cultura popular, o Nordeste
era, pois, o sertão e o popular, que por seu turno representavam o nacional.
Cascudo, portanto, já esposava ideias muito próximas daquelas que vai
encontrar no Recife, circulando entre os Regionalistas e Tradicionalistas,
talvez, por isso, o impacto daqueles acontecimentos para ele não tenha sido
da mesma monta que parece ter sido ~a Leonardo Mota. Vejamos um
trecho em que Cascudo inventaria o que seriam as manifestações culturais
populares que comporiam aquele cenário descrito pelo livro Terra de sol de
Barroso e que, segundo ele, aguardavam ainda um trabalho de apreensão a
ser feito pelo folclore, anunciando assim, talvez, de forma prematura a tarefa
que assumiria mais tarde:

A maior necessidade é a vulgarização das cenas encantadoras do sertão bravio:


as suas músicas dolentes, o encanto das modinhas, os desafios Jongutssimos,
o trino agudo da viola de pinho, enfeitada com fitinhas multicores e ramos de
alecrim, as danças características, 'o sereno: 'o curisco: a 'Jararaca: .. As lendas,
as fábulas, um mundo disperso de inéditas maravilhas que o 'folk-lore'
apreenderá um dia. As histórias do caapora pequenino e negro, montado no

13 1. CASCUDO. Luís da Câmara. "Uma nova expressão de ar te em literatura': p. 12.


132. ldem,p. 8.
'queixada: galopando no meio das caatingas, dirigindo a caça e atemorizando
os caçadores. 133

A adesão à ideia de Nordeste e às formulações regionalistas que


podemos encontrar nos escritos de Cascudo, ainda quase adolescente, talvez
se deva a outros intercessores, que não propriamente Freyre e os regionalistas
e tradicionalistas, mas que não deixa de a estes se vincular mais tarde.
Estou me referindo a figuras como Eloy de Souza e Henrique Castriciano,
importantes membros do mundo político e intelectual do Rio Grande do
Norte, do início do século xx, que em várias oportunidades mereceram o
reconhecimento de Cascudo por terem desempenhado um importante
papel na sua formação, notadamente aquele que chama de "nosso amigo
Castricíano': 13•1 em livro célebre. Não é por mera coincidência que serão
esses os dois intelectuais potiguares que aparecerão no Livro do Nordeste, 135
organizado por Gilberto Freyre, em 1925, quando das comemorações do
centenário do Diário de Pernambuco. Enquanto Castriciano escreve um
artigo sobre a escritora potiguar Nísia Floresta, Eloy de Souza aborda,
justamente, uma das manifestações culturais populares que se torna uma das
temáticas centrais quando se trata de definir o que seria a cultura nordestina:
a temática da cantoria ou dos cantadores, fazendo-o no tom nostálgico que
caracterizará os discursos que se fazem em torno desta noção de folclore,
este sempre apresentado como estando com seus dias contados, estando em
vias de desaparecer, ameaçado pelo cosmopolitismo ou pela vida moderna,
que Cascudo também denunciava. 136 Sabemos que Câmara Cascudo foi
convidado a não só escrever um artigo para O Livro do Nordeste, como
foi encarregado por Freyre de conseguir outras contribuições para esta
publicação.
Na biblioteca deixada por Câmara Cascudo podemos encontrar outros
indícios, não só do seu prematuro interesse pelos estudos do folclore, como
do momento histórico em que se deu a emergência da noção de cultura
nordestina. Em 1922, Bruno Pereira presenteia Cascudo com o livro de João

133. CASCUDO. Luís da Câmara. "Uma nova expressão de arte em literatura·; cit., p. 14.
134. CASCUDO. Luís da Câmara. O nosso amigo Castriciano (1874- 1947): reminiscências e
notas. Recife: Imprensa Universit;)ria, 1965.
135. FREYRE, Gilberto et ai. Livro do Nordeste. Recife: Arquivo Público Estadual, 1979 (Edição
Fac-similada).
136. O título do artigo de Henrique Castriciano era "Uma figura literária do Nordeste: Nísia
Floresta'; e o de Eloy de Souza era "Os últimos cantadores do Nordeste':
Ribeiro 137 sobre o folclore, livro que aparece todo anotado e sublinhado por
ele, com o uso do lápis de cor com que costumava marcar as obras que lia
entre o final da década de 1O e a década de 20 do século passado.138 Faz
várias anotações eruditas nas margens, o que demonstra ter feito outras
leituras sobre o tema e que seu interesse pelo folclore já vinha, pelo menos,
do começo dos anos 1920.139 Em sua biblioteca também encontramos o
livro de José Rodrigues de Carvalho, 140 intitulado Cancioneiro do Norte,' 41
que teve sua primeira edição publicada em 1903, 142 e uma segunda edição
aumentada em 1928. Cascudo possuía um exemplar desta segunda edição,
que traz um texto introdutório, escrito pelo próprio autor, para esta edição,
intitulado de: "Antes do Prefácio': Neste texto, Rodrigues de Carvalho diz
ser um batalhador pela nacionalização das letras nacionais, há pelos menos
trinta anos, e diz ter publicado o livro quando a cantiga popular era motivo
de chufa, sendo este livro, segundo ele, um dos primeiros do gênero.143

137. RJBEIRO, João. O Folk-lore. Porto: Tipografia da Empresa Literária c Tipográfica, 1919.
138. Na primeira página há o seguinte oferecimento: "Ao Luiz Cascudo- o generoso artífice do
Alma Patrícia - lembrança e gratidão de Bruno Pereira': datado de Natal, 8-3-922.
139. Na página 28, na margem superior, escrita a lápis de cor azul, lê-se: "p. 50': numa referência
à página onde estaria a fábula que João Ribeiro vinha comentando nas Fábulas de Esopo. Na página
30, margem direita inferior. escrito também com o mesmo lápis, lê-se: "p. 230': corrigindo uma
informação dada por João Ribeiro que Jocaliz~ uma variante do conto que vinha analisando
entre as páginas 192 e 193 do livro Folklore Brésilit!n de S. An na Nery.
140. José Rodrigues de Carval ho nasceu no povoado de Alagoinha, município de Guarabira (pb),
no dia 18 de dezembro de 1867. Faleceu em 20 de dezembro de 1935, em Recife (pe). Foi deputado
estadual pelo Estado da Paraíba e consultor jurídico do seu Estado. Foi sempre advogado, tanto
na Paraíba como em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Foi secretário geral no governo de João
Pereira de Castro Pinto ( 1912-1915), quando estabeleceu um acordo entre os quatro Estados em
que atuava o bando de Antônio Silvino, para sua perseguição, junto com o chefe de polícia Antônio
Massa. O prôprio Rodrigu es de Carvalho conta que, diante desta sua iniciativa, Silvino passa o
seguinte telegrama para o presidente do Estado: "Doutor Castro Pinto. Presidente Parahyba. Não
tenho medo quatro Estados. Doutor José Rodrigues de Carvalho pise o milho, faça a massa, e dê
a este pinto para comer, que o mal dele é fome. Antônio Silvino de Moraes': Ver: Cancioneiro do
Norte, p. xi.
141. CARVALHO, José Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. 2. ed. Parahyba do Norte: Tipografia
da Livraria São Paulo, 1928.
142. Cascudo anota a lápis comum, no alto do verso da folha de rosto, o que devem ser a editora
e o local desta primeira edição: "1• edição. Militão Bivar Ceará. 1903': Anota, em seguida, como
costumava fazer, as datas e locais de nascimento c morte do autor: "Aiagoinha- 18-12-1867. +
Recife 20-12, 1935':
143. CARVALHO, José Rodrigues de. Op. cit., p. vi i. Contraditoriamente, neste texto ele critica,
inclusive, o que considera ser o extravagante regionalismo que grassava na literatura nacional,
embora estivesse prefaciando, como admitia, uma obra regionalista (p. xvi).
Sintomaticamente, a primeira edição é oferecida à memória de Mello
Morais Filho e Silvio Romero, a quem reconhecia como seus antecessores
nos estudos do cancioneiro popular e do folclore. Neste texto introdutório
à segunda edição, Rodrigues de Carvalho faz menção a outros nomes que
reconhece, nesta altu ra, final dos anos 1920, como tendo dado contribuição
para os estudos do folclore: João Ribeiro, Gustavo Barroso, Afrânio Peixoto,
Basílio de Magalhães e Leonardo Mota. 144 Vê-se que o nome de Câmara
Cascudo está ausente desta lista, o que indicia o seu reconhecimento tardio
como folclorista, o que só ocorrerá na década seguinte, tanto é que este
exemplar do Cancioneiro do Norte lhe é oferecido por Mário Rodrigues de
Carvalho, que suponho ser filho de José Rodrigues de Carvalho, a esta altura
já falecido, apenas no ano de 1937. 145
Mas o que torna este texto muito importante para o que se discute
aqui é o fato de que o livro que havia sido nomeado na edição de 1903
como o Cancioneiro do Norte, título que se preserva na segunda edição, é
agora apresentado como "um reflexo da vida do nordeste (sic), com alguns
elementos de outros Estados': 146 Ou seja, no período que medeia entre
a primeira e a segunda edição desta obra, uma nova identidade espacial
começou a ser atribuída aos materiais, temas e formas de expressão cultural e
artísticas de que tratava a obra de Carvalho. Entre 1903 e 1928 havia ocorrido
a emergência histórica da região Nordeste e aquele cancioneiro nomeado
como sendo popular e do Norte por Rodrigues Carvalho, agora se torna uma
expressão, um reflexo da vida do Nordeste, de sua popu lação, embora, já na
página seguinte, diga que o lirismo, o que considera a ingênua música dos
simples, trai o "poeta nortista': deixando claro que a identidade nordestina
ainda está em fase de consolidação e a identidade de sua população como
nordestina e não nortista ainda não está generalizada. 147 Mas pode mos
tomar este ·~ntes do Prefácio" como um signo deixado por este processo
de constituição do que se chamaria de folclore nordestino ou de cultura
nordestina, conceitos novos que vêm recobrir o que antes era nomeado de
cultura do Norte ou nortista. Para fazer uma nova edição de seu livro, para
relançá-lo no debate em torno do fo lclore da região, foi necessário escrever
este novo texto introdutório, que o relaciona com uma nova identidade

144. CARVALHO, José Rodrigues de. Op. cit., p. VIL I.


145. Na segunda página de rosto lê-se a seguinte dedicatória: "Ao D. Luiz da Câm ara Cascudo
com muita estima, oferece Mario Rodrigues de Carvalho, João Pessoa, 12/8/37':
146. CARVALHO, José Rodrigues de. Op. cit., p. V III.
147. Idem, p. ix.
espacial, com o novo recorte identitário que se estava forjando. No prefácio
à primeira edição o autor se apresenta da seguinte forma:

Filho desta região nortista, onde o senso da liberdade e o amor da pátria


foram sempre o apanágio do brasileiro, desde a luta dos Tabajaras nas
fraldas da Ibiapaba, das vitórias de Cabedelo e Tabocas, à Confederação do
Equador; acostumado neste meio, a ouvir a tristeza do africano nostálgico
nos canaviais da Parahyba e a alegria arrojada do jangadeiro cearense; achei
de coligir também cabedal para esse precioso tesouro- o folclore nacional. 14g

Se no texto que antecede o prefácio, na segunda edição, ele nomeia


de região nordeste o espaço do cancioneiro popular que coligiu, na
primeira edição este pertencia, como ele, à região nortista, o livro era uma
compilação da "poesia popular do norte': que, segundo ele, ainda não havia
sido enfeixada em volume, para se tornar uma "obra imorredoura'~ A obra
de Rodrigues de Carvalho será, portanto, uma das primeiras a se dedicar
a tratar exclusivamente das manifestações ditas folclór icas de uma dada
região do país, o norte, já que tanto Mello Morais quanto Silvio Romero, que
reconhece como seus antecessores, falaram em nome da nação, pesquisaram
e trataram do que seria o folclore brasileiro. Opondo-se a Romero, Carvalho
propõe o critério geográfico ou regional como superior ao critério étn ico para
"concatenar as produções em um livre_de canções populares", e completa:

Estudemos, pois, o meio físico, a sua influência sobre o ambiente moral;


falemos também das múltiplas modalidades por que ~írito nortista se
revela nas suas crendices e folganças; e depois deste trabalho ofereçamos ao
povo o resultado de sua própria vocação artística, fruto desta espontaneidade
anônima, característica do espírito meridional brasileiro. 1' 19 (grifos nossos)

Elenca a seguir o que seriam as temáticas que definiriam o que seria


a cultura nordestina. Uma série de características de sua natureza e de seu
povo que conformariam um dado complexo cultural à parte no país: a
religiosidade das classes humildes; a sua ignorância no seio da civilização; as
secas; os heroísmos de uma população sofredora; a tortura dos fracos, sob
a pata de elefante dos "mandões"; a vida litorânea; a lavoura nas diversas

148. CARVALHO, José Rodrigues de. Op. cit., p. 2.


149. Idem, p. 19.
zonas; a vida pastoril nos sertões adustos; a emigração para a Amazônia; o
cangaceirismo; a fusão da sub-raça, tudo se amalgamando nas concepções
anônimas que se expressariam através do cancioneiro popular que coletara.
Ainda informado por concepções naturalistas, o seu discurso chama
atenção para o fato de que as misturas raciais particulares deste espaço e suas
características físicas, somadas aos eventos históricos aí ocorridos, davam
uma marca particular a este recorte regional, que inicialmente nomeia de
Norte, e que, na segunda edição do livro, chamará de Nordeste, justamente
porque a natureza será um dos elementos fundamentais na distinção deste
espaço em relação ao anterior. 150
Como já dissemos de passagem, mais acima, podemos observar esta
mudança de enquadramento espacial do que seriam as manifestações
culturais populares também na obra de Gustavo Barroso, que usava,
inclusive, em suas primeiras publicações o pseudônimo de João do Norte.
Em Terra de sol, publicado em 1912, o subtítulo define o tema do livro como
sendo "a natureza e os costumes do Norte': mas já em Ao som da viola, 151
publicado em 1921, tendo como subtítulo apenas a palavra "folk-lore': já
podemos ler em sua introdução o seguinte enquadramento espacial dos
materiais folclóricos que o livro apresentaria:

Desta sorte, quem tiver de conhecer a alma e a vida dos nossos sertões de
Nordeste, tão açoitados pelas misérias das secas, deve sem fa lta estudar
carinhosamente o seu "folk-lore", analisando as suas fontes e procurando
suas analogias. Nele está contida a essência mesma do caráter do povo
mestiçado, principalmente de português e de índio, que, há séculos já, luta,
com heroísmo, pela salvação de sua riqueza e da sua própria vida, contra
a natureza impiedosa, quase abandonado dos poderes centrais e vendo
afundado nos lameiros das politicagens pessoais os governos dos Estados.
Enquanto o litoral progrediu e outras regiões do país progredi ram, devido
a estas ou aquelas circunstâncias, ficou insulado no tempo e no espaço,
perdido nas crenças, nas imagens e nas formas do século em que iniciou a
árdua colonização daquelas terras, retardado de mais de duzentos anos. 152

ISO. CARVALHO, José Rodrigues de. Op. cit., p. vr11.


15 I. BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro, 1921.
I 52. BARROSO, Gustavo. Ao som da viola, p. 11-12. Luís da Câmara Cascudo afirma ser Ao som
da viola a primeira antologia do folclore em prosa e verso nordestino. Ver o prefácio que ele redigiu
para o livro Ca11tndores, de Leonardo Mota, n/p.
O que primeiro nos chama a atenção, além do fato de que entre o livro
de 1912 e 1921 houve um deslocamento da identidade espacial atribuída
aos materiais folclóricos que estuda, de Norte para Nordeste, é o uso da
própria expressão "de Nordeste" ao invés do que seria de esperar, ou seja, "do
Nordeste". Parece-me que ainda há nesta forma de uso da expressão Nordeste,
feita por Barroso, ecos de quando esta aparece veiculada na documentação
da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (IFOCS), no final da década
anterior, quando tem ainda a função de nomear um ponto colateral, uma área
compreendida entre o leste e o norte, sem ainda ter adquirido plenamente
a função de nomear uma parte do território brasileiro, com uma identidade
cultural própria. É como se fizesse referência, ainda, ao famoso vento que
circulava no sertão do Ceará, no final da tarde e início da noite, vindo do
litoral através do rio Jaguaribe, um vento de nordeste, que terminou também
por ser simplesmente conhecido como "o nordeste': Parece-me que Barroso
com o uso deste conceito está ainda indicando mais a posição de um lugar
do que, com ele, definindo o que é o lugar. Embora, curiosamente, este texto
contenha elementos que foram fundamentais para a construção da própria
identidade nordestina e para que o conceito Nordeste deixasse de ser um
mero indicador de uma posição no espaço para passar a dar a um dado
espaço um conjunto de sentidos e significações particulares.
Barroso associa o estudo do folclore ao conhecimento do que chama
da alma e da vida dos sertões do Nordeste, o conhecimento profundo deste
espaço, do que seria o espírito desta região. O conhecimento da região dar-se-
ia através do estudo das manifestações folclóricas que, por seu turno, seriam
a expressão da essência mesma do caráter do povo mestiçado de branco e
índio que há muito lutava por sua vida e na defesa de seus pertences nesta
área do país. Nesta passagem do discurso de João do Norte vemos, mais
uma vez, a associação entre sertão e Nordeste, pois tanto este quanto aquele
são definidos fisicamente pela presença ameaçadora das secas periódicas;
a associação entre cultura folclórica, tradicional e o Nordeste, associação
que povoa ainda hoje o imaginário nacional; e a associação entre a cultura,
o popular e o Nordeste, também ainda vigente em nossa época, embora
suspeitemos que este povo sertanejo de que fala Barroso parece ser mais os
proprietários de terra do sertão do que propriamente os homens pobres da
área sertaneja, que são apresentados como vítimas não só da natureza, mas
da incúria do Estado nacional e da politicagem estadual. Mas estes também
são enunciados centrais no discurso regionalista nordestino: a seca como
causa da miséria da região, o abandono do poder central e a singularidade
cultural deste espaço, caracterizado que seria pela presença de uma cultura
tradicional, uma cultura que remeteria aos primeiros tempos da colonização.
Cultura marcada pela influência ibérica e que teria passado incólume pelo
processo de civilização, infensa ao cosmopolitismo e à descaracterização que
teria sofrido a cultura das áreas litorâneas e de outras regiões do país, onde
o progresso teria vindo alterar significativamente os valores, os hábitos,
os costumes, o que não teria acontecido com o sertão, que representava 0
próprio Nordeste, que teria ficado, segundo Barroso, retardado de cerca de
duzentos anos, guardando ideias e atitudes que ele considerava serem rudes
e até bárbaras, mas também puras, originais, autênticas, simples e ingênuas.
Ainda na década de 1930, Gilberto Freyre, ao escrever o livro
Nordeste 153, queixava-se da associação existente entre este recorte regional
e a ocorrência das secas periódicas, praticamente ignorando-se o que
seria, para ele, o primeiro Nordeste, aquele criado pela casa-grande e pela
senzala, o Nordeste dos engenhos de cana-de-açúcar, Nordeste da água e
do massapê. Esta associação criada pelo próprio discurso da seca, emitido
pelas elites do antigo Norte, desde o fim do século xrx, é reforçada, como
vimos, por sua institucionalização através de órgão como o wcs e depois o
IFOCS. Não será mera coincidência que, no mesmo ano em que a Inspetoria
está sendo reorganizada e transformada em Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas, sendo definida, pela primeira vez, como sua área de atuação
um recorte espacial chamado de Nordeste, o livro sobre folclore publicado
pelo erudito sergipano João Ribeiro traga em um mesmo parágrafo uma
referência à denominação Norte para se referir ao que seria o espaço da
região como um todo e, explicitamente, refira-se a Nordeste para designar a
área de ocorrência das secas:

Um folklorista do Norte, o Dr. Julio C. Monteiro, recolheu a seguinte e curiosa


variante d'aquele jogo infantil nas regiões áridas do nordeste brasileiro. 15''

Um estudioso e professor da Hngua portuguesa como Ribeiro, autor de


famoso livro sobre a língua nacional, 155 um autor de gramáticas para o ensino
fundamental, não grafaria a palavra Norte com letra maiúscula e Nordeste

153. FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de janeiro: José Olympio, 1937.


154. RIBEIRO, João. Op. cit., p. 49.
155. Ver: RIBEIRO, João. A língua nacional: notas aproveitáveis. São Paulo: Monteiro Lobato,
1921.
com letra minúscula se não considerasse que o nordeste, no caso, era apenas
um recorte do Norte, uma área marcada pela ocorrência das secas e não
uma região, identidade ainda reservada por ele para o Norte. Tanto é que,
em nota em página posterior, ele se refere ao Ceará, tido como Estado vítima
por excelência das secas, como um Estado do Norte 156 e em outro momento
fale explicitamente em região do Norte. 157 Estávamos no ano de 1919 e, como
já dissemos, vivia-se um momento de transição entre estes dois conceitos,
e ao conceito de Nordeste faltava, justamente, uma definição que o fizesse
ir além de mero ponto colateral ou mero recorte definido por uma dada
configuração da natureza. Faltava ao Nordeste deixar de ser apenas natureza
para ser cultura, ser não apenas uma área natural para ser uma região cultural,
histórica, política, fato que o trabalho dos regionalistas e tradicionalistas, e
dentre eles o trabalho dos folcloristas tratará de fazer acontecer. O Nordeste,
ao longo da década de 1920, vai deixando de ser apenas uma área árida, para
ir se tornando uma região com uma memória própria, com uma história
particular e, principalmente, com uma cultura característica, uma cultura
regional, representada pelas manifestações culturais, pelas matérias e formas
de expressão das camadas populares, por uma cultura dita como popular
e autenticamente sua, cultura folclórica que será inventada pelos estudos e
registros feitos por homens como Ribeiro.
Quando as obras escritas em período anterior não têm seu
enquadramento espacial modificado ~a nos títulos, subtítulos ou através
de prefácios ou apresentações feitos pelo próprio autor, como é o caso da
obra Folk-lore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em
Pernambuco escrita por Francisco Augusto Pereira da Costa, 158 publicada

156. Ver: RIBEJ RO, João. O Folk-lore, p. 94, nota I.


157. Idem, p. 184.
158. Francisco Augusto Pereira da Costa nasceu no dia 16 de dezembro de 185 I, na antiga rua
Bela, n. 10, hoje Ulhoa Cintra, no Recife, filho de Mariano Pereira da Costa e Maria Augusta
Pereira da Costa. De família pobre. mal terminou o curso primário no Colégio Nossa Senhora do
Bom Conselho e já começou a trabalhar como empregado de uma livraria na rua do Imperador,
para ajudar a sustentar a casa. Provavelmente tenha vindo daí seu apego aos livros e seu gosto
pela leitura e pela pesquisa. Aos vinte anos, trabalhou como amanuense na repartição de Obras
Públicas, depois na Conservação dos Portos, na Secretaria do Governo c na Câmara de Deputados
de Pernambuco c, em 1884, foi Secretário do Governo do Piauí. Inicio u-se no jornalismo aos
2 1 anos colaborando com o jornal Diário de Pernambuco, do Recife, em 1872. Em 1891, já com
a família constituída, bacharelou-se em direito pela Faculdade de Direito do Recife. Exerceu os
c~rgos de Membro do Conselho Municipal do Recife e deputado estadual por Pernambuco, tendo
Sido eleito, repetidas vezes, entre 190 I c 1923, ano de sua morte. Foi também membro do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, onde recebeu o título de Sócio Benemérito.
em 1908, já que Pereira da Costa faleceu em 1923, momento em que a ideia
de Nordeste é ainda recente e por não ter tido a oportunidade de fazer uma
nova edição da obra, elas vão ser reenquadradas espacialmente pelos seus
comentadores, prefaciadores ou em apresentações posteriores. Embora
a segunda edição da obra de Pereira da Costa feita pelo Arquivo Público
Estadual, no ano de 1974, tenha mantido o título e o subtítulo original da
obra, preservando o enquadramento estadual do material que ele recolheu,
mesmo que a obra se refira explicitamente no título e subtítulo apenas a
Pernambuco, definindo a poesia popular ali tratada como pernambucana,
inscrevendo o livro no campo dos estudos do folclore apenas deste Estado,
logo na primeira página da obra, logo após a capa, será utilizada uma
frase do, à época, já consagrado folclorista e estudioso da chamada cultura
popular Luís da Câmara Cascudo, como uma estratégia de consagração
e monumentalização também da própria obra, frase em que ele altera o
enquadramento espacial do livro de Pereira da Costa, dando a ele um caráter
regional que nunca pretendeu ter. Embora o livro, inclusive, em diversas
passagens se refira à intenção do autor de não sair dos limites locais, de
se ater a matérias vinculadas a seu Estado, 159 diz Cascudo, em trecho
retirado de uma carta que escreveu ao governador de Pernambuco, Eraldo
Gueiros, patrocinador da segunda edição da obra, que o livro do folclorista
pernambucano era "o mais extenso, sólido e surpreendente documentário
da cultura popular do Nordeste': que não existiria, na bibliografia brasileira,
realização comparável. Veja que não só o alcance espacial da obra é alterado,
como o seu próprio objeto de trabalho, já que de um estudo sobre a poesia
popular pernambucana passamos a te r um livro sobre a cultura popular do
Nordeste, entrando em cena os dois conceitos e a interligação entre eles,
cuja história venho tentando fazer neste livro: cultura popular e Nordeste. 160
Aderbal Jurema, num discurso pronunciado como representante do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, na sessão inaugural

Segundo ele, o Instituto Arqueológico foi a sua escola, a sua tenda de trabalho onde encontrou
grandes mestres. Foi fundador da Academia Pernambucana de Letras. Morreu no Recife. no dia
21 de novembro de 1923.
159. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Op. cit. p. 131. Em outra passagem do livro diz
que não rep rod uzirá as orações contra a espinhela caída, espinha na garganta, soluço e sezões
consignadas por Silvio Rom ero em seus Cantos populares "na incerteza de serem, ou não,
recolhidas em Pernambuco", p. 148.
160. PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Op. cit. (página de rosto). A primeira edição da
obra foi publicada pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo lxx, parte ii, no
ano de 1908.
da Semana do Centenário de Pereira da Costa, também vai proceder o
reenquadramento espacial de toda a obra do folclorista pernambucano, e
ressaltar sua importância como fonte de pesquisa para todos os folcloristas
ditos nordestinos que o seguiram; diz ele:

...o captador honesto do que há de mais genuíno, de mais puro e vigoroso


em nosso folclore nordestino. Nessa obra, a messe de todos os estudiosos
posteriores, Pereira da Costa reuniu, em grosso volume, um material de
primeiríssima ordem desde as canções do "Boi Espácio" até as jornadas dos
nossos líricos pastoris de arraial, hoje quase desaparecidos ou profundamente
deturpados. 161

No prefácio feito para a obra pelo jornalista, advogado e geógrafo


Mauro Mota, a carta de Câmara Cascudo ao governador Eraldo Gueiros é
reproduzida na íntegra, dando conta dos esforços que este há muito fazia para
que a obra de Pereira da Costa fosse reeditada, ao mesmo tempo reforçando
a importância da publicação, por ser ela fruto de pesquisas levadas a cabo
por mais de quarenta anos, pela raridade das fontes utilizadas, muitas delas
dispersas ou desaparecidas e por trazer à tona o "registro da vida mental
do Nordeste em suas raças, momentos de cultura, figuras e episódios,
constituindo uma rica e moviment~a literatura oral:' Ou seja, mais uma vez
o recorte espacial a que se refere a obra é ampliado e a identidade regional
nordestina é sobreposta à identidade pernambucana, da qual Pereira da
Costa foi um dos formuladores. Mas a atitude regionalista de Cascudo é
reforçada pelo prefácio do próprio Mauro Mota que começa por dizer que
o grande etnógrafo, o estudioso com a autoridade reconhecida no Brasil
e além-mar, devia sempre ser chamado de nordestino, para reivindicá-lo
cada vez mais para a região, e complementa a obra de reenquadramento
espacial da obra de Pereira da Costa ao dizer textualmente: "no espaço,
ultrapassando o pernambucano e o do Nordeste- o Folk-lore pernambucano
não é só pernambucano': seria como dissera Cascudo: "uma régia oferenda de
Pernambuco às indagações radiculares e coletivas da memória tradicional" e
completa Mota: "do povo brasileiro·: dando à obra de Pereira da Costa não

161. JUREMA. Adcrba l. "O pesquisador Pereira da Costà: ]omal do Comércio, Recife, 16 de
dezembro de 1951.
apenas um enquadramento regional e regionalista, mas um enquadramento
nacional e nacionalista. 162
No ano de 2004, o livro de Pereira da Costa será reimpresso pela
Companhia Editora de Pernambuco, ainda como sendo a sua segunda
edição, mas em lugar do prefácio de Mauro Mota, antecederão o texto uma
rápida apresentação de Marcelo Maciel, presidente da CEPE, um editorial
de Mário Hélio e a reprodução de um texto que Luís da Câmara Cascudo
escreveu para a Folha da Manhã, para a celebração do centenário de
nascimento do folclorista pernambucano, publicado no dia 16 de dezembro
de 1951. Em dois dos três textos novamente acontece o reenquadramento
espacial do livro: mesmo que ao longo da obra Pereira da Costa sempre
nomeie a área onde fica o Estado de Pernambuco como o Norte, 163 vamos
ler logo na apresentação de Marcelo Maciel que o assunto do livro seria
"a beleza e a diversidade da arte popular que recheia não só o Nordeste,
mas fortalece a tradição do folclore mais rico do Brasil': Ou seja, não só
altera para o Nordeste o espaço de abrangência da obra, como afirma o que
seria a maior riqueza do folclore desta área do país. 164 O artigo de Cascudo,
desconhecendo que a ideia de Nordeste não existia na época em que Folk-
lore pernambucano foi escrito, mostrando como este conceito se naturalizara
até para quem participou do seu processo de elaboração, chega a dizer que
o único engano do autor foi ter nomeado de pernambucano ao material
folclórico que recolhera, diz ele:

O único engano do autor é, no amor febril por Pernambuco, não ter dado a
seus trabalhos os títulos reais, ampliando na primeira página o que tão bem
existe no texto, o estudo de toda a região, de todos os estados do Nordeste.
Batizando-o "pernambucano" Pereira da Costa limitou, apenas no nome, as

162. MOTA. Mauro. Prefácio. In: COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Op. cit. n/p.
163. Ver, por exemplo, esta passagem: "Para atingirmos, porém, de certo modo, a filiação histórica
do samba e do baiano, não temos dúvida em afirmar, de acordo com Silvio Romero. que são
umas transformações dos batuques e maracatus africanos, constituindo assim uma especialidade
brasileira, e de generalização em todo país, afigurando-se-nos, contudo, que têm eles o norte como
ponto de partida da sua irradiação" (grifas nossos); ou esta outra: "Seja como for, o que não resta
dúvida é que o Bmnba meu boi é uma rapsódia do Norte, e puramente brasileira, sem afinidades
de imitações estranhas·: COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Folk-/ore Pernambucano. 2. ed.
Recife: cepe, 2004, p. 244 e 276.
164. Idem, p. 7.
águas de seu rio, que correram por outras terras, sem nascer ou morrer onde
riscara as fronteiras convencionais.l65

E conclui dizendo:

No Folk-lore Pernambucano é a própria região que se deixou prender, nos


cantos, nos contos, nas lendas, na alegria e no sonho, em todas as modalidades
da existência normal, trabalhada e sincera no trágico cotidiano.l 66

Ao chegarmos ao final da década de 20 do século passado, a noção de


cultura nordestina ou a ideia da existência de um folclore nordestino parece
começar a se consolidar. Noção e ideia nascidas entre letrados ligados às elites
regionais começam a se popularizar, a chegar, pelo menos, até alguns poucos
letrados advindos das camadas populares da região, que se constituirão em
importantes intermediários, em importantes agentes na popularização destas
ideias e conceitos. Exemplo deste processo é a publicação em 1929 do livro
Cantadores e poetas populares por Francisco das Chagas Batista, pela gráfica
editora de sua propriedade: a Popular Editora. Francisco das Chagas Batista
tinha origem humilde, nasceu na cidade de Teixeira em 1885, onde aprendeu
as primeiras letras. Mudou-se para Campina Grande, acompanhado pela
mãe e pelo irmão, no ano de 1900 onde foi carregador de água e de lenha
e em aulas noturnas aprendeu a '~ranhar o vernáculo", segundo diz seu
irmão, em carta escrita a Câmara Cascudo, no ano de 1937, carta que
acompanhou um conjunto de folhetos de cordel escritos por Francisco das
Chagas Batista, a serem usados por Cascudo em sua obra Literatura oral no
Brasil. 167 Trabalhou como cassaco na Estrada de Ferro de Alagoa Grande. Em
1902, ainda em Campina Grande, publica o seu primeiro folheto Saudades
do sertão; saindo, vendeu-o pelas feiras do brejo, tendo impresso, na cidade
de Areia, nova tiragem do folheto, dirigindo-se com ele até a cidade da
Parahyba, capital do Estado, onde recebeu elogios do Jornal do Comércio e
do jornal A União, folheto que também foi comentado elogiosamente por

165. CASCUDO, Luís da Câmara. "Pereira da Costa, folclorista': In: COSTA, Francisco Augusto
Pereira da. Op. cit, 2004. p. 19.
166. Idem, p. 23.
167. Carta escrita por Pedro Baptista a Luís da Câmara Cascudo datada de 13 de setembro de
l937, colada por Cascudo na capa do livro de Francisco das Chagas Batista, Cantadores e poetas
Populares, exemplar presente na biblioteca do Ludovicus - Instituto Câmara Cascudo na cidade
do Natal.
Henrique Castriciano no jornal A República da cidade do Natal. Francisco
das Chagas Batista era sobrinho do mítico cantador do Teixeira, Ugolino
Nunes da Costa, vindo, inclusive, a se casar com a prima que levava o nome
feminino do famoso poeta, Hugolina Nunes da Costa, no ano de 1909. Reside
em Guarabira, para finalmente se fixar na cidade da Parahyba, onde funda
a livraria Popular Editora, que vendia livros usados para estudantes pobres,
vindo depois a se constituir em editora voltada para a publicação de cordéis
e literatura popular. Na nota introdutória que escreve para o livro, Chagas
Batista já utiliza tanto o conceito de Nordeste para enquadrar espacialmente
os versos dos poetas populares que compila, como chega a definir sua obra
como uma antologia regional, que vem complementar a obra daqueles que
seriam os fundadores dos estudos de folclore na região:

Da leitura de valiosos estudos sobre o nosso FOLK-LORE, me veio a ideia de


publicar este livro.
Notando que os ilustres escritores Drs. Gustavo Barroso, Leonardo Mota
e Rodrigues de Carvalho, deixaram de incluir nos seus livros: "Ao Som da
Viola", "Cantadores': "Violeiros do Norte" e "Cancioneiro do Norte': a maior
e melhor parte dos versos dos P-Oetas populares do nordeste, vivos e já
falecidos, venho reuni-los nesta Antologia Regional, no intuito de prestar uma
justa homenagem a poetas obscuros e desconhecidos dos nossos estudiosos
historiadores nordestinos. {grifos nossos)

O fato de ser um poeta popular e de ter convivido com muitos deles


é usado, inclusive, como justificativa e legitimação da obra que publicava.
Se tanto Leonardo Mota quanto Câmara Cascudo legitimavam o trabalho
que faziam através do argumento de que, ao contrário do que ocorria com
seus antecessores, eles iam direto às fontes populares, eles frequentavam
os lugares e conviviam com os agentes que produziam o chamado folclore,
Chagas Batista dará legitimidade a sua empresa também apelando para o
argumento de que convivera com "quase todos os cantadores dos Sertões
e Brejos da Paraíba': recebendo a maior parte dos originais das mãos dos
próprios autores, seus contemporâneos. Os mais antigos teria colhido nos
alfarrábios de velhos amadores do verso popular, contemporâneos dos
antigos cantadores que teriam vivido nos sertões na segunda metade do
século XIX. No entanto, diferentemente daqueles dois autores, Chagas Batista
considera que seu livro não é uma obra de estudos sobre o folclore regional,
alegando faltar-lhe tempo e conhecimento do que chama de "modernas
correntes litefárias" para realizar tal empresa. Deixa para outros o estudo
do material que diz publicar tal como o encontrou na mão de seus autores,
deixa a tarefa da "classificação folclórica" e do estudo da "psicologia desses
poetas incultos"- reproduzindo a mesma hierarquia e o mesmo preconceito
encontrados entre os intelectuais ligados às elites sociais - para os homens
cultos. 168
Este livro de Francisco das Chagas Batista tem uma enorme importância
para o que estamos discutindo neste trabalho, não só por ser a primeira obra
de um intelectual ligado às camadas populares que incorpora as noções de
cultura nordestina e de folclore nordestino para nomear e dar identidade
às matérias e formas de expressão poéticas que recolhe e organiza em livro,
como por três outros elementos nele presentes, que gostaríamos de comentar:
o primeiro deles me parece indiciar que este processo de emergência da
identidade nordestina ainda está se consolidando neste momento, pois na
dedicatória do livro podemos ler: "Ã memória de Leandro Gomes de Barros,
o maior poeta popular de seu tempo, o que mais contribuiu para o folk-
lore nordestano". É inequívoca a adoção por parte do autor do conceito de
folclore para enquadrar aquilo que Leandro Gomes de Barros fizera, mas
curiosamente o folclore é designado aí de nordestano e não de nordestino.
Há, para explicar este fato, uma hipótese bastante plausível, a de que se
trataria apenas de uma troca de ~ras motivada pela forma de impressão,
adotada na época, que requeria a formação de cada palavra pela junção dos
caracteres em linotipos, já que a palavra nordestino é que aparece em todo
o restante do livro, mas também não podemos deixar da aventar a hipótese
de que, neste momento de fixação progressiva da própria ideia de Nordeste,
pudesse haver em circulação esta indefinição do correlato genitivo, entre
nordestano e nordestino. O segundo deles é a contribuição que esta obra
dará para projetar para o passado esta identidade, este novo enquadramento
espacial que é de emergência recente, à medida que, assim como faz com
Leandro Gomes de Barros, ele recua a história da poesia popular nordestina,
ele nomeia de cantadores nordestinos poetas que nasceram, viveram e
produziram seus versos ainda no século xvm, como Agostinho Nunes
da Costa, que não por mera coincidência era um ancestral de sua própria
família, um dos primeiros habitantes da serra do Teixeira e pai dos poetas
Nicandro e Ugolino Nunes da Costa, tio do autor. O livro, além de construir

168. BATISTA, Francisco das Chagas. Cantadores e poetas populares. Parahyba: Tipografia da
Popular Editora, 1929, p. 1-2.
uma ancestralidade para o folclore e a cultura nordestina, coloca a família
do próprio Chagas Batista no interior desta história, dando a ela um papel de
centralidade e destaque. O mesmo ele faz, por exemplo, com Silvino Pirauá,
poeta patoense, chamado por seus colegas de o enciclopédico, que, embora
tenha vivido entre 1848 e 1913, quando a ideia de Nordeste sequer existia,
é nomeado por Chagas Batista de maior cantador do Nordeste, depois de
Romano, e acrescenta que ele teria ilustrado com o estro de seu formidável
talento o folclore regional. 169 O terceiro e último elemento que n1erece análise
encontra-se em um trecho do prefácio escrito para o livro pelo folclorista
paraibano Coriolano de Medeiros e que parece dialogar com a tese central
deste meu livro. Diz ele:

Este livro não precisa de prefácio. Apresenta-se por si c por si mesmo


se recomenda. Entretanto cumpro o dever de salientar o seu esforço, -
homenagem piedosa e justa aos nossos cantadores, cujo estro tem sido
ultimamente, não só explorado à substância, como caluniado, adulterado
a valer. Até os nomes lhes transformam! ... Os livros dedicados ao folk-lore
nordestino, em maioria, são de escritores que inventam folk-lore também.
Os que se afastam desta regra não se apegam ao afã de separar o joio do trigo,
ou de espantar as gralhas que infestam a poesia sertaneja. Felizmente esta
publicação tem sobre as congêneres a vantagem de ser documentada com
testemunho idôneo, de ser material colhido, cirandado nas próprias fontes. 110

Coriolano de Medeiros 171 fa la neste prefácio, portanto, do processo que


estou nomeando de fabricação do folclore nordestino, reconhecendo ser uma

169. BATISTA, Francisco das Chagas. Op. cit., p. 96.


170. ME DEl ROS, Coriolano. Palavras Sinceras. In: BATISTA, Francisco das Chagas. Op. cit, n/p.
171. )oão Rodrigues Coriolano de Medeiros nasceu no sítio Várzea das Ovelhas, município de
Patos, em 30 de novembro de 1875 e faleceu em João Pessoa, no dia 25 de abril de 1974; filho do
casal Aquilino Coriolano de Medeiros e D. Joana Maria da Conceição. Em 1877, impulsionados
pela seca que assolava a terra sertaneja, a família de Coriolano deixa o sertão e se fixa na capital
do Estado. Coriolano inicia os estudos na capital, a princípio em pequenas escolas e mais tarde
frequenta o Lyceu Paraibano, concluindo os preparatórios em 1891. Matricula-se na Faculdade
de Direito do Recife, mas abandona o curso no terceiro ano pela necessidade de trabalhar
para aj udar a mãe no sustento da casa; trabalhou no comércio e depois como funcionário dos
Correios c Telégrafos. Casou-se, em 1905, co m a pianista Eulina Medeiros. Retorna ao comércio,
inicialmente, como caixeiro da Tabaca ria Peixo to, depois, com o seu próprio estabelecimento;
mais tarde, fundou uma escola particular para ensinar as primeiras letras c, durante muito tempo,
manteve-se nessa atividade de professor. Coriolano era professor, jornalista c escritor. Colaboro u
em A lmpreusa e foi redator de O Comércio, jornal de Artur Achiles. Em 1910, foi nomeado
Escriturário da Escola de Aprendizes Artífi ces, chegando a diretor, em 1922, aposentando-se nesse
preocupação recente e crescente, na qual a produção semiótica das camadas
populares não só era explorada, mas sofreria processos de adulteração, de
renomeação, de ressignificação, portanto. Neste momento, diz ele, não só se
estuda o folclore nordestino, mas muitos autores - eu diria todos, inclusive
ele e aqueles chamados por ele de idôneos - o inventam, o criam.
Na década de 1930, a ideia da existência de um folclore nordestino já
parece consolidada e os autores pioneiros no uso do conceito de cultura
nordestina já aparecem reconhecidos como mestres neste campo de estudos.
Um exemplo desta consolidação e de como ela se articula com o trabalho
realizado pelos chamados pioneiros é o livro publicado por um jornalista
cearense, C. Nery Camello, no ano de 1936, com o título significativo de
Alma do Nordeste. Esse título já expressa como é visto e definido o que se
nomeia de folclore nordestino, ou seja, as manifestações culturais ditas
populares das quais o livro trata são pensadas como reveladoras do que
seria a alma da região, seu espírito, sua essência, sua identidade, sua verdade
mais interior. É o que afirma Gustavo Barroso logo no início do prefácio que
escreve para a obra, ressaltando que especialmente a alma nordestina só se
deixava capturar nas suas manifestações folclóricas, estabelecendo a relação
necessária entre folclore e identidade cultural do Nordeste, tão veiculada e
aceita ainda hoje. Diz ele:
---..._
O folclore retrata a alma dos povos em todas as suas manifestações.
Sobretudo na poesia. Os povos cantam pelos seus poetas os sacrifícios e os
heroísmos, as maguas (sic) e as alegrias, a infância e a velhice, o passado, o
presente e o futuro, porque no verso os vates vaticinam. Mas alma de povo
algum se mostra viva e palpitante nos seus cânticos e cantigas populares
como a da gente nordestina, queimada pelo sol ardente dos sertões bravios
que os invernos vestem de veludo verde e as secas envolvem no luto de sua
desolaçâo. 172

cargo. Em 1941, Coriolano liderou um grupo de intelectuais que fundou a Academia Paraibana de
Letras, tendo sido eleito presidente da entidade. Coriolano foi sócio-fundador do Centro Literário
Paraibano, sócio do Instituto Histórico c Geográfico Pa raibano; Membro da Universidade Popular
(Agremiação cultural, com sede no Teatro Santa Rosa); Membro da Associação dos Homens de
Letras, sociedade acadêmica com trinta membros efetivos, criada por sugestão do Presidente
Camilo de Holanda. Além de trabalhos publicados em livros, revistas, periódicos e jornais,
Coriolano escreveu e publicou os livros: Dicionário corográfico do Estado da Paraíba, 19 14; Do
litoral ao sertão, 1917; O tesouro da cega, 1922; lvlestres que se foram, 1925; O Barracão, 1930;
Manaíra, 1936; A evolução social e históriw de Patos, 1941; Sampaio, 1955.
172. BARROSO, Gustavo. "Alma do Nordeste': In: CAMELLO, C. Nery. Op. cit., p. 5.
Nery Camello, logo nos oferecimentos, liga o seu trabalho ao trabalho
daqueles que estou chamando de inventores da cultura nordestina. O fato de
que o livro teria sido resultado de uma viagem que teria feito a pé, no ano de
1933, no afã de conhecer o interior do país, "estudando como um apaixonado do
folk-lore nordestino" "os costumes ingênuos de nossa gente matuta, o linguajar
caipira, a verve e a filosofia irônica do caboclo': 173 percorrendo os sertões da
Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí, Maranhão, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe e Bahia, é atribuído ao exemplo dado por "seu mestre e amigo" Leonardo
Mota, de quem apenas seguira as pegadas. Oferece o livro ainda a Gustavo
Barroso, Afrânio PeL'<oto, Olegário Mariano, Herman Lima e Berillo Neves e
aos que chama de "talentosos folcloristas nordestinos': deixando claro que este
lugar de autoria não só já existia, como já estava reconhecido e consolidado, e
já abarcava um número significativo de autores, pois atribui esta designação a
nomes como: Alarico da Cunha, Luis da Câmara Cascudo, Mardokêo Nacre,
Cordeiro Lima, Humberto Santiago, José Aluisio Vilela e Exupero Monteiro. 174
Continua colocando-se como continuador e discípulo destes precursores, ao
longo da obra. Atribui a si o lugar de continuador do trabalho de Leonardo
Mota ao revelar os poetas populares que se encontravam escondidos no
interior dos Estados, pois desde a morte do folclorista cearense não mais se
falava neles. Ao se pôr em contato com "esses poetas bizarros que se ocultam
lá pelo recôndito das caatingas, vindo somente às cidades nos dias de feira,
onde, com a chorosa viola ou o estridente ganzá, dão expansão à sua musa':
muitas vezes teria lamentado a ausência de seu "ilustre conterrâneo" Gustavo
Barroso, por ser ele "autoridade reconhecida em assuntos demonológicos': 175
Ao tratar do poeta Joaquim Mello, diz não constar que Leonardo Mota ou
Rodrigues de Carvalho o tenham incluído entre os mais festejados cantadores,
o que ele faria, preenchendo, assim, as lacunas deixadas pelas obras pioneiras
sobre os cantadores, agora ditos nordestinos.176
Ele chama o folclore de "tesouro regionalista", 177 enunciado que sintetiza
a ligação inseparável entre o regionalismo nordestino e a valorização do
que seriam as manifestações culturais populares, a atenção dada, por parte
das elites letradas, às matérias e formas de expressão vistas e ditas como
folclóricas.

173. CAMELO, C. Nery. Op. cit., p. 12.


174. Idem, n/ p.
175. Idem, p. 17.
176. Idem, p. 35.
177. Idem, p. 19.
Podemos concluir, portanto, acompanhando esta série de aconteci-
mentos que ocorrem entre os anos 20 e 30 do século passado, que a
emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma
cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade
inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa. Há, nestes fatos,
uma verdadeira genealogia de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão,
paulatinamente, dando forma a este novo objeto para o saber que é: o
folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura
popular nordestina. Estes episódios não só provocam o reenquadramento
espacial daquelas obras e publicações, daquela pl'odução feita em torno do
folclore, das tradições populares, da poesia popular, das províncias e estados
que agora compunham o Nordeste, ou mesmo do antigo Norte, como vão
motivando que novas pesquisas, que novos estudos, que novas publicações
se façam a partir do recorte regional Nordeste, que vai assim ganhando um
de seus mais constantes elementos de definição e significação: o fato de ser
um espaço marcado pela riqueza das manifestações culturais tradicionais,
populares, de ser um espaço folclórico, artesanal, caracterizado por uma
cultura popular e regional anterior, resistente ou reativa ao mundo moderno,
ao mundo urbano, industrial, burguês e cosmopolita.
Capítulo 4

Os inventores: um ensaio de prosopografia

·,

A palavra prosopografia vem do grego e etimologicamente se refere


à descrição de uma pessoa ou de uma personagem (prosopon) . Já na
Antiguidade a prosopografia era um gênero de estudos e de narrativa que
auxiliava os estudos históricos. Ela consiste em analisar em conjunto as
biografias de pessoas ou personagens pertencentes a uma mesma categoria
social, notadamente as elites políticas e sociais. 178 Neste item me proponho
a fazer um estudo prosopográ&o daqueles letrados que, entre o início
da década de 1920 e o final da década de 1940, adotaram os conceitos
de folclore e de Nordeste e inventaram o que seria a cultura nordestina,
ressignificando tanto matérias e formas de expressão que eram realizadas,
praticadas e produzidas pelas camadas populares de uma dada área do país,
que já tinham, entre elas, dados significados, quanto deslocando o sentido da
produção feita por aqueles letrados interessados por este material popular,

178. É interessante notar que Luís da Câmara Cascudo, um daqueles folcloristas que considero
inventores do folclore entre nós, parece ter aprendido com esta tradição clássica, sobre a qual
muito se debruçou, não só o gosto pelo estudo biográfico, ao qual dedicou muitos de seus escritos
c também muitas de suas horas de leitura, como o articular do biográfico com o historiográfico.
Alguns de seus principais livros dedicados à escrita da História são também biográficos e em
quase todos os seus textos se esmera no estabelecimento de perfis biográficos retirando deles
elementos de compreensão do processo histórico, das relações sociais ou das práticas culturais e
políticas de que está tratando. Ver, por exemplo: CASCUDO. Luís da Câmara. López do Paraguai.
Natal: Typographia d'A República, 1927; O Conde D'Eu. São Paulo: Cia. Editora Nacional. 1933;
O Marquês de Oliuda e seu tempo. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938, ou todos os estudos
biográficos reunidos pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte na série de
livros intitulados de O livro das velhas figuras.
que os antecederam, mas que o organizaram a partir de outros conceitos,
como cantigas populares, lendas e canções populares, poesia populares,
festas e tradições populares, tomando, mormente, o Brasil como o espaço a
delimitá-las. Além disso, eles recorrem às mais variadas fontes de informação:
livros de folcloristas estrangeiros, relatos de viajantes, relatos etnográficos
e sociológicos, dicionários, enciclopédias, almanaques e outras obras de
referência, fontes literárias e artísticas e também as informações fornecidas
através de correspondências com outros estudiosos ou interessados na
temática ou colhidas em contato com pessoas das camadas populares, seja
através da oralidade, seja através da aquisição ou recolha de seus escritos.
Dedicarei um item específico ao estudo do que chamarei de fontes da cultura
nordestina.
Para realizar um estudo prosopográfico é preciso, de início, que se
analise e se estabeleça até que ponto estes homens, que utilizaram pela
primeira vez a noção de folclore nordestino, estabeleceram entre si laços
de cooperação, até que ponto suas trajetórias biográficas se encontraram,
se cruzaram, já que a prosopografia pode auxiliar a história, justamente,
porque ela articula as trajetórias individuais, notadamente lançando mão
da noção de geração, fazendo emergir entre elas, para além da vida singular
de cada indivíduo e de suas ações isoladas, as articulações, as trocas, as
interferências, as colaborações que estabeleceram entre si, fazendo com
que essas atitudes e trajetórias individuais terminem por configurar uma
ação coletiva. A prosopografia se torna um instrumento válido para o
historiador, justamente, por permitir cruzar as trajetórias individuais e
encontrar regularidades entre elas que denunciam aspectos do contexto
histórico em que estes homens viveram e produziram suas obras. Creio que
para analisarmos uma formação discursiva 179, como a que emergiu a partir
da adoção do conceito de cultura nordestina, torna-se importante verificar
os pontos de cruzamento, estabelecer a rede de relações pessoais, sociais,
culturais, políticas e intelectuais que se pode vir a recuperar analisando em
conjunto alguns traços biográficos relevantes desses letrados devotados a

179. Utilizo a noção de formação discursiva tal como a entende Foucault, ou seja, como um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que
definiram em uma dada época. para uma dada área social, econômica, geográfica ou linguística, as
condições do exercício da função enunciativa, expressando-se através da presença nos discursos
de regularidades quanto aos temas, aos enunciados, aos conceitos e às estratégias discursivas.
Ver: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p. 35-45; CASTRO, Edgardo. Vocabulário de
Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. J77- 180.
esses estudos, sem que se tenha a pretensão de realizar estudos biográficos
profundos de cada um deles e sabedor de que a biografia é também um
gênero narrativo, que possui as suas regras de produção, e que implica o
que Pierre Bordieu chamou de "ilusão biográfica", 180 ou seja, a ilusão de se
pretender descrever uma vida em sua inteireza e complexidade. Alerto, pois,
0 leitor de que trabalharei aqui sobre versões biográficas destes letrados
já elaboradas previamente por seus biógrafos e por eles mesmos, em suas
memórias, sabendo, portanto, que elas têm uma grande dose de invenção,
de fabricação. Por isso me deterei para esta análise em algumas informações
básicas, o que chamarei de alguns traços ou dados biográficos, aqueles que
seriam mais "objetivos': e me deterei menos na abordagem dos enredos, das
tramas em que estes dados aparecem conectados. Sei que até estes dados são
fruto de escolhas, submetidos aos jogos da lembrança e do esquecimento,
mas os escolhi porque eles estão presentes, obrigatoriamente, na narrativa
biográfica de qualquer personagem ou pessoa, eles constituem regularidades
discursivas no gênero, 181 permitindo realizar o trabalho de cruzamento
destes dados individualizados, para verificar a imagem de conjunto, o perfil
que desenham para estes homens, quando postos em contato. São eles: local
e data de nascimento (o que configura o que seria ou não uma geração e
o pertencimento a um dado espaço), a origem social (profissão a que se
dedicavam os pais, famílias a qiie'-pertenciam, posição que elas ocupavam
na hierarquia social), formação escolar e profissional (que formação escolar
tiveram e voltada para que profissão), articulações sociais e políticas
(instituições de que faziam parte, em que trabalharam ou estudaram,
vinculação ou não a atividades partidárias, políticas ou ao exercício de cargos
públicos), redes intelectuais (instituições culturais ou artístico-literárias de
que faziam parte, contatos intelectuais e, principalmente, o contato que
estabeleciam entre si).

180. BOURD!EU, Pierre. "A il usão biográfica': In: FERREIRA, Marieta Moraes e AMADO,
)anaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. da fgv, 2006, p. 183-191.
181. Poderíamos chamá-los de biografemas, espécie de átomos do discurso biográfico, de
elementos fundamentais em que se pode decompor a maior parte dos discursos de cunho
biográfico. como: nome, data e local de nascimento e morte do biografado, nome dos pais, família
a que pertenceu e que veio a constituir, se veio, profissões e cargos que exerceu, lugar ou lugares
onde viveu, legado que deixou para a sociedade.
O que se busca, pois, é realizar o estudo de vidas entrecruzadas
e não de vidas paralelas 182 e creio que esta primeira exigência de uma
prosopografia é plenamente atendida pelo grupo que irei estudar, pois eles
realmente conformam um grupo, à medida que estabelecem entre si laços de
cooperação através de extensa correspondência, envio de dados e materiais,
envio de livros, opúsculos, separatas escritos por cada um, quase sempre
acompanhados de afetuosas e significativas mensagens de oferecimento;
convites mútuos para eventos e homenagens; participam de instituições
culturais e literárias comuns; publicam, por vezes, nos mesmos periódicos,
editoras e coleções, e, principalmente, legitimam permanentemente os
estudos que realizam ao se citarem recorrentemente, citações quase sempre
corroborativas, pouco acompanhadas de crítica ou de correção, citações que
vão explicitando um verdadeiro trabalho em conjunto, partilhando visões,
abordagens e conceitos comuns. É como se a obra de cada um, notadamente
daqueles de produção mais tardia, fosse, afinal, a produção coletiva de todos,
que são convocados, através de citações longas do material que recolheram
ou das classificações ou interpretações que fizeram desse material a, ao
mesmo tempo, conferir autoridade ao novo escrito que se faz e colocá-lo
dentro de uma mesma tradição.
Há atuando, entre eles, o que podemos chamar de estratégia do
reconhecimento. O tempo todo eles, nos seus escritos, se reconhecem
mutuamente, notadamente como estudiosos devotados ao tema e falam da
preocupação que os uniria: o folclore, sua valorização e preservação. Mas a
tese que defenderei aqui é a de que eles se reconhecem por pertencerem ao
mesmo universo social, cultural e político. Eles se reconhecem para além do
partilhamento de um campo de estudos, por serem pessoas que possuem
trajetórias biográficas muito semelhantes.
Este item tem a pretensão, portanto, de explicitar o que há de comum
na traj etória de vida dos inventores do folclore nordestino, da cultura
nordestina, de traçar um perfil destes homens que fabricaram, a partir
do uso destes conceitos, os sentidos partilhados, hoje, por grande parte
da sociedade brasileira e nordestina, sobre que manifestações culturais
constituem o que seria esta cultura regional. Para isso usarei da seguinte
estratégia metodológica: num primeiro momento compararei a trajetória

182. Referência aqui ao conjunto de obras prosopográficas escritas na Antiguidade, muitO


citadas, que se rvem de referê ncia, por exemplo, aos escritos biográficos de Cascudo, que a elas se
remete constantemente: PLUTARCO. Vidas paralelas. Madrid: Espasa-Calpe, 1952.
dos quatro autores que são reconhecidos por todos aqueles que os seguiram
como os autores das obras pioneiras e fundamentais sobre o tema do folclore
do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho
e Luís da Câmara Cascudo, verificando se há ou não pontos de interseção
entre elas, traçando o que seria o perfil de conjunto destes homens que
fabricaram, através de um trabalho de ressignificação mítica dos sentidos
anteriormente já produzidos para as matérias e formas de expressão que
tomam corno objeto de estudo, o que chamarão de folclore nordestino, de
cultura nordestina. Para finalizar, buscando avaliar o caráter singular ou
não deste perfil, eu o coloco em confronto com •os traços biográficos de
quatro letrados que antes deles se interessaram pelo dado cultural nomeado
de popular e que foram insistentemente por eles utilizados e citados como
precursores do estudo do que nomeiam como de folclore nordestino: Juvenal
Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa e de quatro
letrados que, entre aqueles que deram sequência ao trabalho que fizeram,
reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, tiveram
grande destaque: Adernar Vida!, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário
Souto Maior.
Partindo de dados biográficos bastante sumários, podemos, no
entanto, vislumbrar elementos de convergência entre as trajetórias de vida
daqueles que chamo de inventores do folclore nordestino, elementos que
procurarei analisar agora em sua confluência, no sentido de estabelecer um
perfil de conjunto que nos permita visualizar o lugar social de produção
deste discurso acerca da cultura nordestina e daqueles que pioneiramente se
utilizaram deste conceito. Se não podemos dizer que todos eles pertencem
a uma mesma geração, chegamos à conclusão de que todos nasceram na
segunda metade do século XIX, vivendo todos o importante período em
que se dá a substituição da Monarquia pela República, o fim do trabalho
escravo com a chamada Abolição, a emergência de uma classe média, da
classe trabalhadora industrial e a chegada entre nós do que se passou a
chamar de modernidade, com o crescimento de importância da vida urbana
e o consequente declínio de determinados setores ligados ao mundo rural.
O mais velho deles, José Rodrigues de Carvalho, nasceu em 1867, começou
a produzir utilizando o conceito de folclore antes da emergência da ideia
de Nordeste, por isso mesmo, só aderirá à ideia de cultura nordestina ao
publicar a segunda edição de seu livro Cancioneiro do Norte, em 1928, que
será sempre considerado pelos que o seguem como um livro precursor
dos estudos dessa cultura. O mesmo acontece com Gustavo Barroso, que
nasceu em 1888, e Leonardo Mota, que nasceu em 1891, que renomeiam
ou ressignificam o que escreveram sobre o tema a partir do surgimento do
conceito de cultura nordestina, conforme tratamos mais detalhadamente em
outro momento. Luís da Câmara Cascudo, que nasceu sete anos depois, em
1898, publica suas obras a partir da existência dos conceitos de Nordeste e de
cultura nordestina, embora nem sempre seja este o enquadramento espacial
que dará aos temas de que trata.
Todos são naturais das províncias e estados que conformam, ao lado de
Pernambuco, o que seria considerado inicialmente o espaço nordestino por
excelência: Gustavo Barroso e Leonardo Mota são cearenses, José Rodrigues
de Carvalho é paraibano e Luís da Câmara Cascudo norte-rio-grandense.
Como tratei em livro anterior, 183 a ideia de região Nordeste surgiu entre as
elites intelectuais e políticas que estavam ligadas por motivos econômicos,
políticos, culturais e até por laços familiares à cidade do Recife, tendo
destaque aquelas pertencentes aos Estados da Paraíba, Rio Grande do Norte
e Ceará e com menor destaque Alagoas. Sergipe, Bahia, Piauí e Maranhão
terão adesão retardatária a esta identidade regional, embora desde o início
possamos encontrar simpatizantes da causa regionalista nordestina nestes
Estados. O Movimento Regionalista e Tradicionalista do Recife, fundamental
para a emergência da ideia de Nordeste, mobilizou fundamentalmente os
intelectuais e políticos daqueles quatro Estados, o que pode explicar a adesão
desses estudiosos do folclore a esta identidade regional.
Todos têm origem nas elites econômicas e políticas de seus Estados,
sendo pertencentes a famílias que estiveram ligadas às atividades agrárias
e à propriedade da terra. José Rodrigues de Carvalho e Leonardo Mota são
filhos de pais que ainda eram proprietários de terra, na área canavieira do
agreste paraibano, e no sertão cearense, respectivamente. 184 Os demais são
filhos de pais bacharéis ou que tiveram, pelo próprio declínio das atividades
agrícolas e da economia agrária do Norte brasileiro, que migrar para as
cidades dedicando-se ao serviço público, a atividades comerciais ou a
profissões liberais. No entanto, o próprio José Rodrigues de Carvalho para
poder estudar teve de contar com o apoio de um tio que era dono de uma
casa comercial na cidade de Mamanguape, onde trabalhou como caixeiro.

183. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
184. Leonardo Ferreira da Mota, Pai Leonardo, como era chamado pela família, era dono do sítio
Herval, em Quixadá. Ver: MOTA, Murilo. A casa de minha mãe. Fortaleza: Imprensa Universitária
da ufc, 1991, p. 171.
Leonardo Mota foi ajudado pelo irmão padre que lhe arrumou um emprego
num colégio na cidade em que era sacerdote. Sérgio Miceli chama aqueles
que exercem a carreira intelectual, a p~rtir dos anos 20 do século passado, de
"parentes pobres das oligarquias': 185 E comum nos relatos memorialísticos
dos inventores da cultura nordestina a presença de um tom nostálgico,
saudosista, ao falar da época de seus avôs, apontados como homens nobres,
verdadeiros aristocratas, portando o título de capitão, sendo dono de escravos
e terras. As referências aos pais, embora muito elogiosas, não manifestam a
mesma admiração com que se referem aos velhos patriarcas de suas famílias.
Gustavo Barroso é filho de um advogado que exerce a função de notário e
Luís da Câmara Cascudo é filho de um alferes do Batalhão de Segurança do
Corpo Policial, coronel da Guarda Nacional, que veio a se tornar o mais rico
comerciante da cidade do Natal, no início do século passado.186
Com Sérgio Miceli podemos chamá-los de intelectuais das oligarquias,
embora ele estude o caso de São Paulo que, diferentemente do caso dos
Estados em que os inventores da cultura nordestina nasceram, vivia
um processo acelerado de mutação econômica, tornando-se o polo de
desenvolvimento do capitalismo nacional e se constituindo no Estado de
maior influência no país. Assim como em São Paulo, entre os anos 20 e 40
do século passado, não por coincidência o período de invenção da ideia de
cultura nordestina, ocorrerá urna transformação no papel político e cultural
dos intelectuais das oligarquias nordestinas, só que no caso dos Estados que
comporão o Nordeste, isto ocorre devido ao processo de declínio econômico
por que passam suas principais atividades, fazendo com que esta área do
país se torne subordinada no que tange ao processo de modernização e de
desenvolvimento do capitalismo no país e da perda de centralidade política
no contexto nacional. O progressivo declínio econômico e, inclusive, a
falência de algumas das famílias em que nasceram estes letrados, como é
o caso da família de Câmara Cascudo, reduzem os espaços de atuação, o
mercado de empregos para a nova geração de bacharéis que estão sendo
formados nos Estados que constituíram o Nordeste. A maioria deles terá que

185. MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Di fel, 1979,
p. XXI.
186. Gustavo Barroso era filho de Antônio Filinto Barroso e de Ana Dodt Barroso; Leonardo
Mota era filho de Leonardo Ferreira da Mota e Maria Cristina da Silva Mota; José Rodrigues de
Carvalho era filho do casal Manuel Rodrigues de Carvalho e O. Cândida Maria de Carvalho; e
Luís da Câmara Cascudo era filho do coronel Francisco Cascudo e de Ana da Câmara Cascudo.
migrar para o Rio de Janeiro, 187 onde está o poder central, lançando mão do
capital de que ainda dispõem, ou seja, o capital político, pois ainda preservam
importantes laços de parentesco, de compadrio ou de amizade com figuras
importantes no interior do Estado, e o capital cultural, por possuírem títulos
acadêmicos num país de analfabetos. Quando permanecem em seus Estados,
dependerão do exercício de cargos públicos, notadamente na área jurídica ou
nas atividades de ensino, para garantirem sua sobrevivência material e para
obterem os suportes necessários para a produção de suas obras no campo
das letras. Terão que se colocar a serviço das oligarquias, da legitimação
e justificação de seu domínio, como forma de assegurarem os cargos e os
lugares de poder e prestígio que frequentam. 188 Como já afirmava Victor
Nunes Leal 189 em seu clássico sobre o tema do coronelismo, é o declínio dos
grupos agrários e a crescente dependência destes das benesses do Estado que
dão origem a esta modalidade de exercício das atividades políticas e não a
força das oligarquias, como se poderia pensar.
Gustavo Barroso percorrerá este caminho. Seu pai, Antônio Felinto
Barroso, se dedicava às atividades de notário, o que representava o primeiro
degrau de declínio de sua família paterna. Leonardo Mota também foi
proprietário de cartório que, segundo seus biógrafos, teria sido vendido
para custear as viagens em busca de dados folclóricos daquele que receberá
o epíteto de Príncipe (as veleidades monárquicas são comuns no seio das
elites que inventaram o Nordeste) dos folcloristas nacionais. Leota recebera
o cartório de presente do presidente José Tomé Saboia e Silva, a quem servira
como oficial de gabinete quando ele governou o Ceará. 19° Como sabemos
- para espanto nosso esta realidade se estendeu até nossos dias - receber,

187. Os es tudos sobre migração no Brasil, que sempre deram muita atenção à migração que teve
os Estados do Nordeste como ponto de origem, nunca trataram devidamente o processo migratório
de pessoas pertencentes às elites deste espaço, a fuga de pessoas qualificadas para as outras áreas
do país. Q uase sempre se limitou ao es tudo da migração da classe trabalhadora, produzindo uma
espécie de silêncio e esquecimento sobre esta outra população migrante, que também se constituiu
num grande prejuízo para este espaço por perder grande parte de sua mão de obra qualificada.
188. Em suas memórias, a úni ca fi lha de Leonardo Mota se refere a fatos qu e demonstram o nível
de dependência das relações pessoais para se ter acesso a qualquer serviço público, nesta época:
a fim de conseguir uma vaga na Escola Normal para matriculá-la, a mãe teve de recorrer ao dr.
César Cals de Oli veira (pai do futuro governador do Estado, César Cals). Quando fo rmada, o pai
recorre ao governador Francisco de Meneses Pimentel ( 1935-1945), que lhe consegue uma cadeira
de professora no Estado. Ver: fERNANDES, Mimosa Mota. Luzes no entardecer. FortaiC'La: Casa
de José de Alencar, 2000, p. 34 c 5 1.
189. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 2. ed. São Paulo: Alfa-6rnega, 1975.
190. Ver: MOTA, Murilo. Op. cit., p. 27.
do poder público, a concessão de um cartório se tornou uma das formas
de amparar filhos das oligarquias em dificuldades financeiras, aproveitando
a formação na área do Direito que muitos deles possuíam. Talvez, por
isso, Barroso faça questão constantemente de relembrar em seus escritos
e em suas palestras o passado glorioso não só de sua família paterna, de
seu avô, mas, principalmente, de sua familia materna, para ressaltar a sua
ascendência germânica, o que talvez seja um dos elementos que explique
a importância que dava ao tema da raça em seus escritos, coerente com as
teorias de seu tempo e o seu militante antissemitismo. Lembrar a ascendência
aristocrática e, no caso, ariana, possivelmente se constitua numa estratégia
de defesa adotada por esta parcela decadente da oligarquia que temia a
mistura e a confusão não só com as novas classes médias, sem tradição, mas
principalmente com as classes e raças vistas e ditas como inferiores. 191 Esta
defesa de um passado dito aristocrático leva-os a evitar o rebaixamento e
a serem igualados àquelas camadas que na sociedade por eles chamada de
democrática estariam ameaçando seus lugares. Para agravar o sentimento
de orfandade que parece ser uma constante nestes homens que vivem nesta
área do país, neste período, orfandade econômica e política, que se acentua
sobremaneira com a derrota política das oligarquias em 1930, Gustavo
Barroso perde a mãe, Ana Guilhermina Dodt Barroso, quando contava
apenas sete dias de nascido. Este'é um traço que também encontraremos na
vida de Cascudo, que sente muito a morte do pai, que ocorre junto com sua
debacle financeira. Eduardo Campos cita trecho das memórias de Barroso
em que ele fala de sua família e relaciona sua origem familiar ao gosto
que teria pelo passado e pelas tradições, que seria um dos motivos por se
interessar pelas manifestações culturais populares. Neste trecho diz ainda ter
vivido num ambiente conservador, o que talvez seja um elemento que nos
ajude a compreender as suas posições políticas conservadoras e, por outro
lado, o seu desejo de conservação das coisas do passado e do povo:

Em seu livro de memórias, já adulto e bem vivido, quarenta anos depois dos
venturosos dias de infância, o escritor dá as razões porque em sua casa, o
que vale dizer em sua família , 'se falava tanto em tradição. Único menino no
meio de gente velha e conservadora, cu tinha ainda' - conta - 'a aumentar o

191. Mimosa Mo ta Fernandes. filha de Leonardo Mota, descreverá os antepassados de seu marido
e os seus próprios corno um "patriarcado estrumado com a força dos currais': Ver: FERNANDES,
Mimosa Mota. Op. cit .• p. 112.
amor ao passado e a seus ideais de ordem e construção o sangue germânico
de minha mãe, filha do engenheiro alemão Gustavo Dodt, que dera sua vida a
serviço do Brasil, explorando rios, estudando os costumes de seus indígenas
e construindo suas linhas telegráficas. A sua estirpe era a dos Von Lanzehr,
de Damenberg, no Hannover, e a de sua mulher, a dos Von Mohlielbroeck,
de Dantzig:
A tradição, portanto, fluía generosa deste lado da linhagem, e também dos
antepassados paternos. O avô, "capitão José Maximiniano Barroso, filho do
velho José Fidelis Barroso, a que alude o viajante Koster, hóspede de sua casa
nobre no Aracati, no começo do século, por ser o homem de mais prestígio e
fidalguia daquela cidade': 192

Nas memórias que escreve sobre sua família, Murilo Mota, filho de
Leonardo Mota, fala o tempo todo das dificuldades financeiras enfrentadas
por sua família, notadamente por sua mãe, que tinha de criar seis filhos com os
recursos que seu esposo folclorista amealhava com suas conferências literárias
ou lítero-humorísticas por todo o país. Tendo se desfeito do cartório, que
poderia ter lhe garantido uma vida sossegada financeiramente, para investir
os recursos em suas viagens de estudos folclóricos, tendo se disposto a viver
das letras, Leota ofereceu à família, segundo ele, uma vida de dificuldades, que
se ampliaram quando ele se tornou alcoólatra na década de 1930, ou quando
passou a sofrer de uma série de moléstias que o levaram à morte aos cinquenta
e sete anos, em 1948. No entanto, Murilo se refere também ao fato de que sua
mãe fora moça rica, da "aristocracia do back-country", filha do coronel José
Lourenço de Araújo, moça de passear na Capital Federal, de ter seu próprio
piano, possuindo joias de família que guardava com muito cuidado em uma
cômoda que ficava no quarto do casal.' 93 Descendia ela, por parte de mãe,
das famílias dos grandes barões do açúcar, Vasconcelos, Holanda, Cavalcante
e Albuquerque, que se tornaram, também, barões do café no semimeridião
do Ceará. Porém, ele mesmo admite que, estas recordações da boa genealogia
eram uma forma de sobrevivência para famílias decaídas na fortuna como
a sua. Lembra-se de a mãe ter penhorado suas joias e de comprar fiado em

192. CAMPOS, Ed uardo. Gustavo Barroso: sol, mar e sertão. Fortaleza, 1988, p. 23-24. Consultado
em <http://vl\vw.ed uardocampos.jor. br/_livros/bO l .pdf>. Acesso no dia 5 de janeiro de 2011 . Ver
ainda: BARROSO, Gustavo. Coração de Menino (memórias). Rio de Janeiro: Getúlio M. Costa,
1940.
193. MOTA, Murilo. Op. cit. p. 19, 70,78 e 159.
bodegas para poder alimentar os filhos. 194 O caso de Leonardo Mota parece
revelar um traço interessante e comum às subjetividades destes homens que
fabricaram a cultura nordestina: o despreparo subjetivo para viverem no mundo
das mercadorias e do dinheiro, subjetividades e sensibilidades inadaptadas e
reativas ao mundo burguês, tornando-os homens sonhadores, boêmios, fora da
realidade ou desastrados quando se tratava da administração de suas finan ças,
quase sempre já combalidas. O desprezo, de pendor aristocrático, que votavam
ao dinheiro, a dificuldade de viverem a soldo, a intolerância em se verem tendo
patrões ou chefes, o gosto por trabalhar por si mesmos, o valor que davam
aos títulos, às prebendas, à fama literária, ao nome de família, a certeza que
guardavam da superioridade dos valores do espírito sobre os valores monetários
e materiais195 levam estes homens, quando não devidamente amparados por
laços de parentesco e de compadrio político, a ter vidas desastradas e de muita
penúria. 196 Embora seus filhos tivessem dificuldade em se alimentar, Leota se
alimentava de sua fama, de seu nome, de seu sucesso como homem de letras,
havendo trocado a segurança financeira trazida pela propriedade de um
cartório, que lhe teria garantido vida estável, mas monótona, por uma vida
de viagens literárias, que o levava a ficar às vezes ausente de casa por mais de
um ano. O fascínio que Mota e seus companheiros devotavam ao universo
cultural popular talvez adviesse de aí também encontrarem esta mesma reação
ou inadaptação à sociedade~pitalista, embora, como veremos, mesmo entre
as classes trabalhadoras, ela não seria generalizada.

L94. MOTA, Murilo. Op. cit., p. 79 e 105.


195. Esta concepção da superior idade do espírito sobre a matéria vinha da formação católica
que todos receberam. Catolicismo que, como sabemos, sempre conviveu com dificuldades com
os valores burgueses. Não é simples coincidência que a esposa de Leota apelava aos santos nos
momentos de dificuldade e ele, uma vez doente, tendo um "surto espiritual" se tornou um católico
carola, empenhado em escrever uma História eclesiástica do Ceará, criando, no próprio sobrado
onde morava, uma pinacoteca for mada só por quadros e fotografias que retratavam membros da
Igreja, indo à missa todas as cinco horas da manhã e sendo visitado por e visitando constantemente
os padres capuchinhos e o Arcebis po. Como lembra seu fi lho, para estas fa mílias da "aristocracia
rural" ter um padre na família era motivo de maior orgulho. Sua avó paterna confessava-se,
orgulhosa, ao seu filho Aureliano, sacerdote, irmão mais velho de Leota. Ver: MOTA, Murilo. Op.
cit. p. 37, 110 e 112 e FERNANDES, Mimosa Mota. Op. cit. p. 53-57.
l96. Para se ter uma ideia da importância que ainda se dava aos laços de parentesco, nesta
sociedade, pelo menos para estas fam ílias vindas da antiga aristocracia da terra, veja-se o relato
de Murilo Mota sobre a presença constante de parentes e aderentes que vinham morar ou passar
temporadas em sua casa, mesmo com todas as dificuldades financeiras que enfrentavam. Sua mãe
acolhia todos os parentes, muitas vezes sem sequer receber qualquer contribuição para o sustento
da casa, o que também nunca foi motivo de reclamação por parte de seu pai. Ver: MOTA, Murilo.
Op. cit. p. 108-109.
José Rodrigues de Carvalho morou fora da Paraíba em alguns
períodos de sua vida, mas aí se radicou, onde exerceu inúmeros cargos
públicos. Esteve inicialmente ligado ao grupo oligárquico capitaneado por
Álvaro Machado, ligando-se, em seguida, à oligarquia Pessoa de Queiroz, que
dominou a política do Estado a partir de meados da década de 10 do século
xx. Chegou a residir no Rio Grande do Norte, no Ceará e em Pernambuco,
onde veio a falecer, mas grande parte de sua vida passou entre Alagoinhas,
onde nasceu, Mamanguape, importante entreposto comercial, por dispor de
um porto por onde escoava a produção açucareira realizada nas várzeas do
rio do mesmo nome, e na cidade da Parahyba, depois renomeada de João
Pessoa. Era filho de proprietários de terras da área canavieira da Panuba,
mas precisou da ajuda de seu tio comerciante para realizar seus estudos,
tendo exercido a função de caixeiro enquanto estudava, o que indicia 0
declínio das atividades agrícolas desta área e a necessidade de que fossem
encontradas alternativas para a reprodução da fortuna e do status destas
famí lias.
Todos eles estudaram nos melhores colégios de seus Estados, os colégios
mantidos por ordens religiosas católicas e os colégios públicos dedicados ao
que hoje equivale ao ensino médio: Gustavo Barroso estudou no externato
São José e no Liceu do Ceará; Leonardo Mata, depois de ter estudado
em escolas primárias particulares de Quixadá, estudou no seminário de
Fortaleza, no Colégio São José e no Liceu do Ceará; José Rodrigues de
Carvalho estudou no colégio particular do professor Manuel de Almeida,
latinista famoso na cidade de Mamanguape, e no Liceu Paraibano; Câmara
Cascudo estudou inicialmente com professores particulares, frequentando,
em segu ida, o Externato Coração de Jesus e o Colégio Santo Antônio, na
cidade do Natal. Todos tiveram form ação jurídica: Gustavo Barroso e
Leonardo Mota concluíram o curso na Faculdade Livre de Direito do Rio
de Janeiro, após iniciá-lo na Faculdade Livre de Direito do Ceará, José
Rodrigues de Carvalho concluiu o curso na Faculdade de Direito do Ceará
e Câmara Cascudo, após iniciar o curso de medicina na Bahia, transferir-se
para o Rio de Janeiro, é obrigado a abandonar a faculdade devido ao início
das dificuldades financeiras de seu pai, terminando por concluir o curso de
Direito na tradicional Faculdade do Recife.
Todos v ieram a ocupar cargos públicos, estando suas famílias ligadas,
quer por laços familiares, quer por laços de compadrio, ao grupo oligárquico
dominante em seus Estados. Por ter migrado para o Rio de Janeiro, Gustavo
Barroso, embora estivesse ligado à oligarquia Nogueira Accioli, que
dominava a politica no Ceará, exerceu a maior parte de suas atividades
públicas na capital do país, tendo sido apenas secretário de Interior e Justiça
do Ceará pelo curto período de um ano (1914), quando administrou o
Estado o seu parente, o presidente Benjamin Liberato Barroso. No Rio de
Janeiro foi professor da Escola de Menores, da Polícia do Distrito Federal
(1910-1912); secretário da Superintendência da Defesa da Borracha (1913);
inspetor escolar do Distrito Federal (1919 a 1922); criador c diretor do
Museu Histórico Nacional (a partir de 1922 até o ano de sua morte em 1959).
Leonardo Mota foi tabelião, promotor de justiça, diretor da Gazeta Oficial do
Estado do Ceará e oficial de gabinete de José Tomá de Saboia e Silva (1916-
1920), presidente de Estado ligado à oligarquia Nogueira Accioli. 197 José
Rodrigues de Carvalho exerceu os cargos de procurador e secretário geral
do Estado no governo de João Pereira de Castro Pinto (1912-1915), ligado à
oligarquia capitaneada por Álvaro Lopes Machado, que teve seu domínio na
política paraibana substituído após este governo pelo domínio da oligarquia
comandada por Epitácio Pessoa. Luís da Câmara Cascudo foi chefe de
gabinete do governo Juvenal Lamartine (1928- 1930), professor e diretor do
Atheneu Norte-Riograndense e da Escola Normal do Rio Grande do Norte.
Seu pai esteve ligado à oligarquia Albuquerque Maranhão, que dominou
a politica potiguar até ~ados dos anos 20 do século passado. Nomeado
historiador oficial da cidade do Natal e, posteriormente, do Estado do Rio
Grande do Norte, secretário do Tribunal de Justiça e consultor jurídico do
Estado. Em 1951 tornou-se professor de direito internacional público na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Três deles participaram diretamente da vida político-partidária, embora
quase sempre por um curto período, e chegaram a ser eleitos para ocuparem
funções legislativas: Gustavo Barroso foi deputado federal pelo Ceará entre
1915 e 1918; José Rodrigues de Carvalho exerceu o mandato de deputado
estadual da Paraíba, assumindo como suplente, nas legislaturas de 1904 a
1907, 1908 a 1911, 1912 a 1915 e Luís da Câmara Cascudo chegou a ser
eleito deputado estadual pelo Rio Grande do Norte para a legislatura que
se iniciou em 1930, mas teve sua breve carreira política interrompida pelos
acontecimentos de outubro daquele ano.

197. Segundo as memórias de sua filh a, que nasceu neste período, esse foi um tempo de bonança
Para seus pais, vivendo na Chácara Jarina, uma bela e ajardinada casa no bairro de Jacarecanga,
em Fortaleza, frequent ando a alta sociedade da época, a mãe usando lindos vestidos e joias. Ver
FERNANDES, Mimosa Mota. Op. cit., p. 17.
Todos exerceram a atividade de jornalista ou escreveram para os
jornais da época. Como observa Tânia Regina de Luca, o jornal é, neste
momento, "a principal mercadoria da nascente indústria cultural, ditava
modas e estilos, impunha ao cotidiano seu ritmo nervoso, apressado e
superficial, consagrava certos autores e relegava outros ao ostracismo': 198
A militância nos jornais constituía para esta geração empobrecida das
oligarquias agrárias a possibilidade da utilização do capital cultural que
possuíam para construir uma reputação de homens de letras, conseguindo
fama e prestígio, fundamental para ocuparem os novos postos que surgiam
com a crescente complexização da burocracia do Estado, notadamente
no período posterior a 1930; conseguir amealhar recursos para sua
sobrevivência, já que a imprensa está se profissionalizando e remunerando
seus profissionais, bem como exercer as atividades de legitimação da
dominação do grupo oligárquico de que faziam parte e que lhes garantiam os
postos que ocupavam na máquina pública. A imprensa também se constituirá
em veículo privilegiado de divulgação de seus trabalhos como folcloristas: a
maioria das obras que versam sobre a temática da cultura nordestina serão
impressas nas gráficas da imprensa oficial de seus Estados. Leonardo Mata
e José Rodrigues de Carvalho chegaram a participar da criação de jornais:
Leonardo Mota fundou, em 1913, um jornal chamado Gazeta do Sertão, na
cidade de Ipu, para onde fora a convite de seu irmão cônego Aureliano Mota,
pároco da cidade, dirigir e dar aulas de francês no Colégio Ipuense. Trabalhou
como redator do jornal Gazeta do Ceará e foi diretor da Gazeta Oficial, como
vimos. José Rodrigues de Carvalho, em 1890, juntamente com Castro Pinto,
fundou em Mamanguape o semanário A Comarca. Escreveu nos jornais A
União, Gazeta do Comércio, O Comércio, Estado da Paraíba, República, Jornal
Pequeno (Recife) e em A Província do Pará. Gustavo Barroso foi redator do
Jornal do Ceará (1908-1909) e do Jornal do Commercio (1911-1913) e diretor
da revista Fon-Fon (a partir de 1916). Luís da Câmara Cascudo iniciou sua
carreira como jornalista dirigindo e escrevendo uma coluna intitulada Bric-
à-Brac no jornal A Imprensa, de propriedade de seu pai, assinou crônicas e
colunas diárias nos jornais A República e Diário de Natal e colaborou com
vários outros órgãos de imprensa do Recife e de outras capitais.
Todos fizeram parte das principais instituições destinadas à
consagração dos homens de letras e de personalidades ligadas às elites

198. LUCA, Tânia Regi na. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)açiio. São Paulo: Ed. da
unesp, 1999, p. 36.
políticas e intelectuais dos Estados e em âmbito nacional. Instituições
destinadas a se constituírem em lugares de memória, em lugares de culto
às memórias de nomes que teriam contribuído decisivamente para as
letras e para a história dos Estados e do país. Instituições que, como nos
diz Regina Abreu, 199 continuam a se reger, em grande medida, por códigos
de distinção e renome que remetem a uma sociedade aristocrática, a uma
ordem social estamental e se constituem, em grande medida, a partir da
escolha, indicação e eleição de nomes através da prevalência das relações
e apoios pessoais, sendo fundamentais para a candidatura e para a escolha
as relações de apadrinhamento, as relações pessoais e de troca de favores
entre aqueles que compõem a instituição. Estas instituições se encarregam
de tornar a vida e o nome destes homens em semióforos,200 ou seja, em vidas
e nomes que seriam signos de poder e prestígio, que encarnariam valores e
qualidades excepcionais, homens preciosos que funcionariam como faróis,
como guias para a sociedade de que foram membros, que para eles deveriam
olhar e neles se espelharem. Estas instituições visam a tornar estas vidas em
monumentos, ou seja, dar a elas perenidade, evitar que elas sejam esquecidas,
torná-las, portanto, imortais, livres do caráter corrosivo e destrutivo da
história. A busca do prestígio social, político e no interior do mundo das
letras, que estas instit:!:_lições conferem, leva a que estes homens aspirassem,
desde muito cedo, a vir a integrá-las. Fazer parte de seus quadros será uma
recorrente estratégia de consagração utilizada por esta geração de letrados
que fabricou a cultura nordestina.
Gustavo Barroso foi eleito em 8 de março de 1923 para a cadeira
número 19 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de D. Silvério
Gomes Pimenta, sendo seu presidente nos biênios 1932-1 933 e 1949-1950.
Criou e dirigiu o Museu Histórico Nacional, entre 1922 e 1959, data de sua
morte. Fez desta instituição um lugar de memória do Império brasileiro.
Sua nostalgia monarquista está presente nos tipos de acervo que recolheu
na instituição e até na forma como organizava suas coleções. Leonardo
Mota ocupou inicialmente a cadeira número 32 da Academia Cearense
de Letras, quando foi admitido em 1922. Em 1930, quando a Academia

199. ABREU, Regina. Afabricnçiio do imortnl: memória, história e estratégias de consagração no


Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
200. Semióforo: sinal, imagem, objeto, artefato capaz de simbolizar ou assumir o lugar de algo
ou alguém invisível, algo material que recorda, relcmbra, assume o lugar de algo ou de alguém não
Presente, não material. Ver: POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: ROMANO, Ruggiero. Enciclopédia
Einaudi: Memória-História. Lisboa: Imprensa Casa da Moeda, 1982, p. 69.
sofreu uma reorganização, seu nome foi esquecido, sendo novamente eleito
para ocupar a cadeira número 28, no ano de 1937; também fez parte do
Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), onde ocupou
a cadeira 18. Coerente com o espírito nobiliárquico destas instituições,
Leota recebeu de seus colegas e nas instituições que frequentou inúmeros
títulos que funcionaram não só como estratégias de consagração, mas como
estratégia de singularização, servindo para monumentalizá-lo, para dar a
ele um lugar de honra e destaque na história dos estudos folclóricos e da
cultura popular no Brasil: ele foi chamado de Príncipe da Poesia Popular,
Rondon das Letras Matutas, Bandeirante do Brasil Caboclo, Embaixador do
Sertão e judeu errante do folclore nacional. 201 José Rodrigues de Carvalho
foi membro do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico);
do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano; da Academia Cearense de
Letras e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco.
Luís da Câmara Cascudo foi membro e fundador do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte e da Academia Norte-Riograndense de
Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,202 além de ser
sócio correspondente de vários outros Institutos Históricos e das Academias
de Letras dos Estados do Acre, Pará, Piauí, Ceará, Paraíba, Pe rnambuco,
Alagoas, Sergipe, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do
Sul e muitas outras instituições congêneres nacionais e internacionais. As
comendas e condecorações que recebeu são peças de destaque do acervo que
hoje está sob a guarda do Ludovicus - Instituto Câmara Cascudo, às quais
dava grande valor.
Podemos dizer, portanto, a partir desta breve comparação entre
as biografias dos quatro letrados cujas obras são decisivas para o
estabelecimento de quais matérias e formas de expressão comporiam o
que chamam de cultura nordestin a, que eles possuem um perfil social
muito assemelhado: são nascidos no seio de famílias pertencentes às elites

201. Em sessão do Instituto do Ceará, ocorrida em 10 de maio de 1991, na comemoração do


centenário de nascimento de Leonardo 1\lota, ~ua filha enumera estes epítetos como se fossem
verdadei ros títulos de nobreza, deixando claro como eles exercem esta função de consagração.
Ve r: FERNA NDES, Mimosa Mota. " Palavras de agradecimento'~ Revista do illstituto do Ceará,
Fortaleza, t. c v, 1991, p. 293-297.
202. Para termos uma idcia da impo rtância que Câmara Cascudo dava ao fato de ser eleito para
estas instituições e como se dava conta de que ocupar um lugar nelas significava status e distinção,
assim que foi escolhido para ocupar uma cadeira no ihgb ele mandou imprimir um bloco para
redação de cartas em que se lia: Luís da Câmara Cascudo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (Ace rvo do Ludovicus- Instituto Câmara Cascudo).
sociais e políticas de seus Estados, embora eles representem uma geração
que sofreu as consequências do declínio econômico das elites cuja origem
da riqueza era a propriedade da terra; estão articulados por vinculas de
parentesco e/ou de compadrio com as oligarquias dominantes em seus
Estados, de quem recebem benesses e a quem servem através do exercício de
funções públicas e das quais dependem para conseguir produzir e veicular
os resultados do trabalho no campo das letras que realizam, notadamente
0 trabalho no campo do folclore; este trabalho no campo das letras, que
aproveita o capital simbólico e cultural que acumularam, ao frequentarem
as melhores instituições de ensino e ao conseguirGm ter acesso ao restrito
mercado de diplomas em cursos superiores, torna-se uma alternativa não
só para garantirem a sobrevivência material mas também para retomarem
o lugar de destaque na sociedade local e nacional que suas famílias vinham
perdendo, desde pelo menos a geração de seus pais, trabalho que será
marcado, portanto, por certa nostalgia em relação ao passado, momento em
que seus antepassados ocupavam os principais postos políticos do Império
e que faziam parte do que seria a aristocracia desta sociedade estamental e
escravista. O fato de terem se tornado membros das principais instituições
voltadas para a consagração dos homens de letras, seja no âmbito de seus
Estados, seja foUl__deles, nos permite afirmar que tiveram sucesso nesta luta
pela preservação do nome e do lugar de destaque de que gozavam suas
parentelas, contra o processo de desclassificação que seus núcleos familiares
vinham sofrendo, embora fosse, agora, a custas do exercício de um trabalho
que podemos considerar, assim como faz Miceli, mais próximo daquilo
que socialmente se definia como sendo do universo feminino, do que do
universo masculino.20·1
Se compararmos o perfil destes inventores da cultura nordestina com a
de outros letrados que, antes deles, se interessaram pelas formas e matérias
de expressão das camadas populares, que servirão, inclusive, de inspiração e
cujas obras serão fontes para o trabalho que realizam, talvez possamos divisar
melhor a especificidade da trajetória destes homens, bem como encontrar
elementos de contato e de continuidade entre aqueles que se interessaram por
este campo de estudos. Escolhemos, para fazer este trabalho de comparação
entre trajetórias biográficas, quatro nomes que serão referência constante
e obrigatória nos escritos dos inventores da cultura nordestina, de cujas
obras retiram constantemente informações e a quem atribuem, inclusive, o

203. 1\IICELI, Sérgio. Op. cit .• p. 97-115.


pioneirismo no interesse por esta modalidade de estudos. São eles: Juvenal
Galeno que, como vimos em outro momento, é alçado pelos inventores da
cultura nordestina à condição de iniciador dos estudos sobre o folclore da
região; Celso de Magalhães, também apontado, notadamente nos estudos
acadêmicos mais recentes, como o pioneiro neste tipo de preocupação; SilVio
Romero, também nomeado por muitos especialistas em cu ltura popular
como aquele que teria iniciado os estudos científicos sobre o tema (como
vemos, não falta pai fundador para os estudos de folclore ou sobre a cultura
popular) e Pereira da Costa, que serve de referência para todos os estudos
sobre a temática que foram escritos depois dele, notadamente no que tange
à área que viria a ser nomeada de Nordeste.
Mesmo excluindo Juvenal Galeno, que nasceu antes, pouco mais de
uma década em relação aos outros três autores, poderíamos dizer que os
demais fazem parte de uma mesma geração, se levamos em conta, apenas,
o ano em que nasceram, pois há entre eles uma diferença somente de dois
anos; mas o fato de uns terem vivido mais do que outros e a publicação
da obra voltada para o estudo das manifestações culturais populares ter se
dado em momentos distintos de suas vidas mostram o quanto é complexo e
difícil o uso da noção de geração, pois podemos dizer que, se levarmos em
conta o momento da publicação das obras e não do nascimento de cada um,
eles pertencem a gerações diversas, o que deixa claro que é preciso sempre
especificar o critério a partir do qual essa noção está sendo empregada.
Juvenal Galeno nasceu em 1836, embora bastante longevo, pois faleceu já
acometido de cegueira aos 95 anos em 1931. Publicou a obra que sempre é
referida pelos inventores da cultura nordestina, Lendas e canções populares,
ainda no ano de 1865, sendo, por isso, considerado um autor pertencente à
segunda geração romântica; Celso de Magalhães nasceu em 1849, teve vida
bastante breve, morrendo com menos de trinta anos, em 1879; escreveu a
série de artigos sobre o que chamou de poesia popular brasileira no ano
de 1873, na cidade do Recife, no momento em que estudava na Faculdade
de Direito, sendo por isso considerado um membro da geração de 1870,
mais identificada com o realismo e o naturalismo; Silvio Romero e
Pereira da Costa nasceram no mesmo ano, 1851, mas tiveram trajetórias
diversas: Romero começou a publicar muito cedo, ainda quando cursava
o segundo ano na Faculdade de Direito do Recife, nos anos 70 do século
XIX, sendo identificado, portanto, com essa geração, adepta do realismo e
do naturalismo. Ele publicou, já na década de 80 do século XIX, algumas das
obras que o consagrariam um dos maiores nomes do folclorismo nacional,
como Cantos populares do Brasil (1883) e Contos populares do Brasil (1885).
Pereira da Costa, por vir de uma parentela empobrecida, teve que dedicar
grande parte das primeiras décadas de sua vida a trabalhar para o sustento
da fan1ília, vindo iniciar tardiamente sua vida de pesquisador do que seria o
folclore pernambucano, só publicando a obra que o consagrou e que serve de
referência para os inventores da cultura nordestina, Folk-lore pernambucano,
em 1909, quando já contava com quase 58 anos, sendo identificado com a
geração que se nomeou de pré-modernista. Silvio Romero faleceu em 1914,
tendo ainda escrito outras obras no campo dos estudos folclóricos. Pereira
da Costa morreu em 1921 e, embora tenha deixaClb uma obra bastante vasta,
não dedicou outros escritos que possam ser enquadrados no campo do
folclore.
Se os inventores do folclore nordestino ou da cultura nordestina eram
todos oriundos das elites sociais e políticas, embora já representassem
uma geração empobrecida economicamente das oligarquias, quando os
comparamos com aqueles estudiosos que, antes deles, se interessaram
pelo que seria o popular, este processo de declínio econômico dos grupos
agrários e daqueles a eles ligados fica mais explícito, assim como o perfil
elitista daqueles que se interessaram inicialmente por estes assuntos. Quanto
ao primeirG-a._specto o caso de Pereira da Costa é emblemático. Trazendo no
nome dois dos sobrenomes mais tradicionais da província de Pernambuco,
que remetem a famílias que fundaram e colonizaram a capitania, como
grandes senhores de terras e de escravos, Francisco Augusto Pereira da Costa,
filho de Manoel Augusto Menezes Costa, professor de música que anunciava
seu ofício nas páginas do Diário de Pernambuco, e Maria Augusta Pereira
da Costa, nasceu no Recife e era já, em meados do século xrx, um menino
membro de uma família de poucas posses, o que o obrigou a trabalhar desde
muito cedo, dificultando seus estudos e retardando o seu ingresso no campo
das letras.204
Quanto ao segundo aspecto, os três outros autores são também
exemplos emblemáticos. Juvenal Galena e Celso de Magalhães nasceram em
famílias abastadas, cuja fortuna tinha como origem a propriedade da terra.
Galena nasceu em Fortaleza, era filho de José Antônio da Costa e Silva e

204. O seu local de nascimento indicia a condição financeira de sua família: Pereira da Costa
nasceu na Rua Bela, hoje Ulhoa Cintra, uma ruela transversal à rua das Florentinas, no bairro de
Santo Antônio. Seu pai cometeu suicídio, talvez devido à sua situação financeira. Ver: JOFFTLY,
Atílio. Um brasileiro singular. Rio de Janeiro: TB Edições, 1964, p. 51 · 52.
Maria do Carmo Teófilo e Silva, plantadores de café na serra da Aratanha,
em Pacatuba. Era primo pelo lado paterno de Capistrano de Abreu e Clóvis
Beviláqua e pelo lado materno de Rodolfo Teófilo. Para se ter uma ideia do
prestígio de sua família, quando da vinda ao Ceará da Comissão Científica
de Exploração, enviada pelo Império, também conhecida como Comissão
das Borboletas, que reunia nomes como Freire Alemão, Raja Gabaglia,
Capanema e o poeta Gonçalves Dias, sua casa os recebeu como hóspedes.
Celso de Magalhães era filho de José Mariano da Cunha e Maria Quitéria
Magalhães da Cunha, proprietários da fazenda Descanso, onde nasceu,
no município de Viana,105 Maranhão, localizado na Baixada Maranhense,
grande produtora de algodão para a exportação, durante a primeira metade
do século x rx e de açúcar na segunda metade daquele século. Seu pai era
Cavaleiro da Ordem da Rosa e foi deputado provincial do Maranhão na
legislatura de 1848/1849. Sua família era ligada ao Partido Conservador da
Comarca de Viana.206 Silvio Romero nasceu na cidade de Lagarto, Sergipe,
sendo filho do rico comerciante português André Ramos Romero e de
Maria Joaquina Vasconcelos da Silveira. Como se vê, apenas Pereira da
Costa não faz parte de uma família abastada, embora descenda de famílias
de enorme tradição em Pernambuco, sendo um exemplo do processo de
declínio econômico vivido pelas elites agrárias nesta área do país. Agamenon
Magalhães, em discurso em homenagem ao autor, chega a chamar a atenção
para a ironia que era o fato de Pereira da Costa dar nome a uma rua da
cidade, mas, apesar disso, não ter uma casa própria para morar.207
A condição econônlica fez de Pereira da Costa um homem preso a sua
província e a seu Estado, nunca dele se ausentando definitivamente, talvez
por isso o tome como enquadramento espacial que dá ao material popular
que recolhe. Juvenal Galena, embora tenha podido sair de sua província,
tendo uma viagem de estudos, ao Rio de Janeiro, patrocinada pelo pai,
visando a adquirir conhecimentos relativos a técnicas de plantação de café,
nunca se ausentou definitivamente de sua província e Estado, o Ceará,
sendo talvez por isso posteriormente elevado pelos inventores da cultura
nordestina à condição de pioneiro dos estudos de folclore no Nordeste. Celso
de Magalhães teve os estudos custeados por seu avô materno, Manuel Lopes

205. Hoje é um lugarejo do município de Pcnalva, Es tado do Maranhão.


206. Ver: CANTA NHÊDE, Washington. Celso Magalhâes: um perfil biográfico. São Luís:
Associação de Ministério Público do Estado do Maranhão, 2001 , p. 35 e 61.
207. JOFFILY, Atílio. Op. cit., p. 35.
de Magalhães, que o enviou a São Luís para estudar humanidades no colégio
particular do educador Perdigão. Morto o avô, deixa-lhe uma herança que
permite que ainda muito jovem se desloque, em 1869, para o Recife onde
cursará a Faculdade de Direito, retornando após concluir o curso, em 1873,
para a cidade de São Luís, onde vem a falecer seis anos depois.208 Os poucos
escritos que deixou tinha o Brasil como enquadramento espacial para as
matérias e formas de expressão que descrevia e publicava. Conviveu no
Recife com Silvio Romero, que também frequentava a Faculdade de Direito,
e foi, junto com Tobias Barreto, que também assistia ao curso nesta mesma
época, fundador da chamada Escola do Recife. Romero já estivera na Corte,
fazendo os eshtdos preparatórios para ingressar no curso superior e para
lá retornou em 1879, tornando-se um nome nacional, talvez, por isso,
adotartdo o Brasil, a nação como o espaço de enquadramento daquilo que
nomeava como sendo de cunho popular.
Juvenal Galeno não chegou a fazer curso superior, tendo cursado
seus estudos primários em Pacatuba e recebido noções de latim com o
padre Nogueira Bezerra, mudando-se posteriormente para a casa do tio,
Dr. Marcos Theóphilo, médico e pai de Rodolfo Teófilo, em Aracati, onde
se matriculou numa escola pública, tendo completado seus estudos em
humanidafles no Liceu do Ceará, em Fortaleza, entre os anos de 1851 e 1855.
É quando empreende a viagem ao Rio de Janeiro para obter conhecimentos
técnicos sobre a cafeicultura. Voltando ao Ceará, passou a administrar a
fazenda de seu pai e ingressou como alferes na Guarda Nacional. Ocupou
vários cargos públicos: inspetor da Instrução Pública, terceiro suplente de
juiz municipal de Pacatuba, onde também manteve uma casa comercial, e
diretor da Biblioteca Pública do Estado, na cidade de Fortaleza, para onde
se mudou no ano de 1887, cargo que ocupou por dezenove anos até 1908,
quando, cego em consequência do glaucoma, se aposenta do serviço público.
Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa foram bacharéis
em Direito pela mesma Faculdade de Direito do Recife. Mas a formatura de
Pereira da Costa se deu tardiamente, com quarenta anos de idade, em 1891,
já com família constituída, por ter de trabalhar para ganhar a vida desde
muito cedo e ter interrompido várias vezes seus estudos em humartidades por
dificuldades financeiras. Assim que completa o curso primário no colégio
Nossa Senhora do Bom Conselho emprega-se numa livraria, podendo advir
daí seu apego e interesse pelos livros. Aos vinte anos passa a trabalhar como

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208. Ver: CANTANI-ll: uc, Washington. Op. cit., p. 44-73.
amanuense na repartição de Obras Públicas, depois na Conservação dos
Portos, na Secretaria de Governo e na Câmara de Deputados de Pernambuco
sendo por toda a vida um modesto funcionário público, que vai ganhand~
visibilidade por seus escritos na imprensa e pelo seu trabalho incansável de
pesquisador, o que resultará, na maturidade, na publicação de várias obras
que lhe conferirão prestígio e reconhecimento.
Silvio Romero cursou os estudos primários na escola mista do professor
Badu, em Lagarto. Em 1863 foi para o Rio de Janeiro cursar os preparatórios
no Ateneu Fluminense. Assim que se formou, exerceu a promotoria em
Estância. Tentou fazer-se professor da Faculdade de Direito do Recife,
sendo aprovado em primeiro lugar, porém teve seu concurso anulado pela
Congregação, com quem mantém uma de suas primeiras grandes polêmicas
em torno da morte da metafísica. Em 1875, muda-se para Parati, onde exerce
o cargo de juiz municipal por dois anos. Em 1880 ingressa por concurso para
ministrar filosofia no Colégio Pedro n, onde se aposenta em 191 O. Foi ainda
professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas
e Sociais do Rio de Janeiro.
Celso de Magalhães, ao retornar a São Luís, em 1874, é nomeado
promotor público da comarca da capital da província, sendo exonerado do
cargo no ano de 1878, com a ascensão ao poder do Partido Liberal, talvez
em represália ao fato de ter acusado de homicídio de um escravo a uma
importante dama da aristocracia da província: Anna Rosa Vianna Ribeiro.209
Mesmo o caso de Pereira da Costa, que só completou os estudos tardiamente,
mostra, no entanto, que os homens que primeiro se interessaram entre nós
pelas coisas do povo, que procuraram recolher e relatar suas matérias e
formas de expressão, pertenciam ao privilegiado grupo que pôde ter acesso à
educação formal, frequentando alguns dos mais destacados estabelecimentos
de ensino de suas províncias ou fora delas, assim como ocorreu com os
inventores da cultura nordestina. Letrados que, embora procurassem estudar
aquilo produzido em meio ao povo, em busca de uma produção cultural que
expressasse o gênio, a índole, o caráter da nação que era preciso construir,
partilhavam opiniões nada lisonjeiras sobre esse povo e mesmo sobre a sua
produção intelectual. Opiniões como esta de Celso de Magalhães:

Assim, desde que se reconhecer, quer fisiológica, quer psicologicamente, a


fraqueza de uma raça; desde que se examinarem as leis que presidiram ao

209. CA NTA NHÊDE, Washington. Op. cit., p. 67-69.


cruzamento e ao desenvolvimento dessa raça, e concluir-se a sua pouca
vitalidade, em razão de defeitos hereditários, do clima, da nutrição, da
fecundação e de muitos outros princípios que regem a formação das raças,
desde que se reconhecer isto, dizíamos, a conclusão não se fará esperar
por muito tempo. Seremos obrigados, em que nos pese muito embora,
a reconhecer também a pouca importância ou nenhuma dos produtos
intelectuais desse povo, a sua fraqueza, as suas frivolidades e o seu nenhum
valor.
Será uma raça que se desenvolve e um povo que desmorona.m

Todos eles militaram no jornalismo, fundando ou escrevendo em


periódicos, onde publicaram muitos de seus estudos sobre as expressões
culturais populares, que posteriormente eram enfeixados em livros. Celso de
Magalhães publicou os artigos que o tornariam conhecido como um estudioso
da poesia popular no jornal O Trabalho, no Recife e depois os republicou no
jornal O Domingo de São Luís do Maranhão. Dirigiu juntamente com Silvio
Romero o periódico A Crença. Chefiou a redação da parte literária do jornal
O País de propriedade de Temístocles Aranha, pai do escritor Graça Aranha e
redator do jornal O Tempo. Juvenal Galeno publicou seus primeiros poemas
no jornal Marmota Fluminense, que pertencia a Francisco de Paula Brito, que
o recebeu no Rio de Janeiro sob recomendação de Rufino José de Almeida.
Durante muito tempo escreveu no jornal A Constituição, um dos mais lidos
em Fortaleza no século XIX, sob o pseudônimo de Silvanus. O livro Folhetins
de Silvanus reuniu a série de crônicas de costumes que escreveu sob aquele
pseudônimo. Silvio Romero ainda no período que cursava a Faculdade no
Recife colaborou em jornais como O Americano, o Correio Pernambucano,
o Diário de Pernambuco, o Movimento, o Jornal do Recife, a República e o
Liberal. No Rio de Janeiro colaborou com o jornal O Repórter de Lopes
Trovão e com vários outros periódicos, tornando-se um crítico respeitado e
temido por sua verve de polemista. Pereira da Costa inicia-se no mundo das
letras colaborando com o Diário de Pernambuco, quando tinha apenas 21
anos, tendo publicado grande parte de seus escritos nas páginas dos jornais
recifenses. Os jornais, antes mesmo que os livros, serão os veículos através
dos quais os primeiros ensaios eruditos sobre manifestações culturais ditas

210. MAGALHÃES, Celso de. A poesia popular brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
19 73, p. 35-36.
populares ficarão conhecidos e serão divulgados, tendo contribuído para a
afirmação deste campo de estudos entre nós. 211
Com a exceção de Celso de Magalhães, que morreu ainda muito
moço, justo no momento em que o Partido Conservador o indicara para
concorrer a uma vaga de deputado na Assembleia Geral do lmpério,m os
outros três autores, considerados precursores dos estudos do popular entre
nós, militaram, em algum momento, na política partidária, deixando claro
que estavam ligados ao universo das elites políticas que dominavam suas
províncias e depois seus Estados. Juvenal Galeno, filiado ao Partido Liberal,
foi eleito, em 1858, suplente de deputado provincial pelo ciclo de Icó. Silvio
Romero elegeu-se deputado à Assembleia Provincial de Sergipe em 1874,
tendo renunciado logo depois à cadeira. No governo Campos Sales, Silvio
foi, inicialmente, deputado provincial e depois deputado federal pelo Estado
de Sergipe, sendo escolhido relator da chamada Comissão dos Vinte e Um,
que redigiu o Código Civil. Pereira da Costa ocupou sua primeira função
de governo no Estado do Piauí, para onde se deslocou, em 1884, por um
curto período, a convite do presidente Francisco Theodorico de Castro e
Silva, para exercer as funções de secretário geral de seu governo. Integrou
o Conselho Municipal do Recife, no período de 1884 a 1891. Em 1900,
ele é eleito pela primeira vez deputado estadual pelo segundo distrito da
cidade do Recife, sendo reeleito para mais sete legislaturas, só abandonando
a vida pública com sua morte. Andrade Lima Filho, em discurso proferido
na Assembleia Legislativa de Pernambuco em 1951, narra como se deu a
entrada de Pereira da Costa para a vida pública. Esta narrativa é reveladora
de que tipo de relações políticas faziam parte os letrados que primeiro se
interessaram pelas coisas do povo no espaço que será nomeado, mais tarde,
de Nordeste, relações que também sustentaram a produção e publicação de
suas obras:

Rosa e Silva manejava os cordéis da política, dava ordens aos chefes locais
c estes dominavam o eleitorado amorfo que sustinha, democraticamente, a

211. Foi também através de um jornal, O Globo, do Rio de janeiro, que José de Alencar publicou,
no formato de uma série de quatro cartas ao amigo Joaquim Serra, o ensaio literário que o f<tz
figurar como um dos primeiros estudiosos do que seria a cultura popular em nosso país, sendo
tamb.!m uma referência constantemente citada pelos inventores da cultura nordesti na. Estas cartas
foram reunidas posteriormente em livro. Ver: ALENCAR. José de. O nosso cancio11eiro. C.1 mpinas:
Pontes, l993.
212. CANTANHf.DE, Wash ington. Op. cit., p. 70.
continuidade do marretismo. E ninguém discutia se a orientação de Rosa c
Silva era boa ou má, se consultava, ou não, os interesses da coletividade. Era
o chefe e bastava.
Foi nesse ambiente que Pereira da Costa, já cinquentão, guindado por
aqueles cordéis do Conselheiro, veio parar aqui, numa indumentária política
de marreta que, todavia, lhe ficava tão mal assentada como uma roupa
adquirida ali no "Vuco-Vuco" do mercado de S. José. Não era um político:
era um pesquisador. m

Celso de Magalhães não chegou a ocupat, ainda em vida, nenhum


posto em instituições de consagração dos homens de letras, mas se tornou
mais tarde o patrono da cadeira número cinco da Academia Maranhense
de Letras, quando ela foi fundada no ano de 1908. O mesmo ocorreu com
Juvenal Galena que se tornará, após sua morte, patrono da cadeira número
vinte e três da Academia Cearense de Letras. A casa em que residiu em
Fortaleza, na rua General Sampaio 1128, que se notabilizou, no início do
século passado, por ser palco de recitais, conferências, palestras, números
de canto, audições de piano, concerto de violões e de números de dança,
aos moldes dos salões literários franceses, tudo organizado pelas filhas Júlia
e Henriqueta,2 H que procuravam com isso manter a casa cheia dos homens
de letras da cidade e do Estado, alegrando a velhice de cegueira de seu pai,
foi transformada numa instituição destinada a guardar seu acervo e cultuar
a sua memória, a Casa Juvenal Galeno, onde podemos encontrar exemplares
das matérias e formas de expressão populares que coligiu, servindo esses
artefatos como semióforos de sua memória. Embora sejam objetos que
remeteriam ao folclore, ao se tornarem parte do arquivo de um homem
de letras, é a ele, é a sua memória, que estes objetos passam a apontar, eles
sofrem um processo de ressignificação e se tornam símbolos da vida desse
homem de letras e não da vida daqueles que os fabricaram e criaram. Este
é mais um sofisticado processo de captura e ressignificação do material

213. Marreta era o nome que se dava aos seguidores de Rosa c Sih·:1. JOFFILY, Atílio. Op. cit.,
p. 74.
214. Estavam na moda, neste momento, as conferências, que dominavam o mundo literário,
inclusive no Rio de janéiro, onde Medeiros e Albuquerque se destacava. Foi na casa de juvcnal
Galeno, em 1920, que Leonardo Mota fez uma das priJneiras conferências de sua carreira, a qunrta
delas, sobre atualidades literárias cearenses, estando presente o Presidente do Estado, a quem ele
servia. Em 1933 volta a fazer aí uma conferência com o título "Meu Ceará': título de livro sobre a
poesia cearense que não chegou a publicar. Ver: MOTA, Murilo. Op. cit., p. 57 e 62.
popular realizado pelos letrados que inventam o folclore. Silvio Romero
foi o fundador da cadeira dezessete da Academia Brasileira de Letras,
escolhendo como patrono Hipólito da Costa. Era membro do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia de Ciência de Lisboa e de
várias outras associações literárias. Pereira da Costa foi membro do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, onde realizou grande
parte de seu trabalho como historiador e pesquisador do passado de seu
Estado, recebendo o título de Sócio Benemérito. Foi membro dos Institutos
Históricos de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba e São Paulo. Participou da
fundação da Academia Pernambucana de Letras, em 1901.
Espero ter fornecido os elementos necessários, lançando mão destas
breves considerações de cunho biográfico a respeito de quatro letrados
cuja produção sobre coisas do povo antecedeu e serviu de fonte para os
inventores da cultura nordestina, para poder afirmar que este gênero de
estudos e o uso pioneiro de noções como povo e popular estiveram a cargo
de letrados pertencentes quando não às elites econômicas das províncias e
dos Estados da área que viria a tornar-se o Nordeste, mas pelo menos às
elites políticas e intelectuais ligadas ao mundo agrário ou a elas ligadas.
A própria emergência do campo de estudos do folclore se dá com estes
letrados. Embora não utilizem ainda o conceito de cultura popular ou de
cultura nordestina, eles serão fundamentais para a emergência deste gênero
de estudos e desta preocupação em conhecer o que seriam as produções
intelectuais do povo, mesmo tendo por ele pouco apreço. Estimulados pela
preocupação instaurada pelo movimento romântico de encontrar as raízes
da nacionalidade ou estimulados por fazer estes estudos sobre a possibilidade
de uma literatura ou de uma cultura brasileiras, dando a eles um caráter
científico e não literário e emocional, com as correntes cientificistas de base
positivista no final do século XIX, estes letrados vão inventar o povo e o
popular e inventariar o que seriam suas expressões culturais e artísticas.
Resta ver agora até que ponto este perfil elitista dos produtores dos
estudos sobre o folclore, sobre a cultura popular, e em particular sobre a
cultura nordestina, se mantém quando investigamos o perfil social daqueles
que deram sequência ao trabalho dos inventores desse conceito. Para isso,
como dissemos, faremos a comparação das trajetórias biográficas de quatro
letrados que dedicaram grande parte de seus esforços e de sua produção
escriturística para tratar das manifestações culturais que seriam do povo e
que incorporaram a seu trabalho o conceito de cultura nordestina. Eles, em
grande medida, se reconheceram como discípulos dos inventores da cultura
nordestina e seguiram a trilha aberta por eles, ampliando, reafirmando e
dando legitimidade a esta área de estudos e aos conceitos que a sustentam.
Adhemar Vidal, folclorista paraibano, só veio publicar obras neste campo
de estudo a partir do fim da década de 40 do século passado, mas foi um
importante interlocutor dos inventores da cultura nordestina, desde os anos
20, tendo sido desde o princípio um entusiasta e divulgador das ideias do
Movimento Regionalista e Tradicionalista na Paraíba. Foi ele que, quando
oficial de gabinete do presidente do Estado Solón de Lucena, recepcionou o
folclorista Leonardo Mata, providenciando os lugares para que ele realizasse
suas conferências, além de tê-lo, na ocasião, presenteado com um caderno
contendo exemplares de versos populares. Théo Brandão iniciou sua
produção no campo do folclore no final da década de 1940, tornou-se o mais
importante folclorista do Estado de Alagoas, incorporando à sua produção
o conceito de cultura nordestina. Veríssimo de Melo, folclorista potiguar,
foi considerado, pelo próprio Câmara Cascudo, como um de seus mais
brilhantes discípulos. Também começou a publicar suas obras no campo
do folclore, no final dos anos 40 do século passado, assumindo, da mesma
forma, a identidade nordestina para enquadrar espacialmente sua produção.
Mário Souto Maior pode ser considerado o folclorista pernambucano
de maior produção depois de Pereira da Costa. Começa a produção de
suas obras no campo do folclore nos anos 60 do século xx, incorporando
fortemente os temas, imagens e enunciados que definiram a nordestinidade,
estando sua-obra marcada pela veiculação de toda estereotipia em torno do
ser nordestino.
Embora não pertençam à mesma geração, se levarmos em conta
apenas suas datas de nascimento, esses homens têm em comum o fato de
se interessarem pelo campo do folclore e iniciarem a publicação de seus
escritos sobre o tema a partir dos anos 40 do século passado, quando a
identidade regional nordestina já estava elaborada e consolidada no seio
das elites sociais, políticas e culturais deste espaço e quando o conceito de
folclore nordestino começa a conviver com a emergência da noção de cultura
Popular nordestina, que muitas vezes utilizam como se fossem sinônimos.
Eles reconhecem que são continuadores da geração, como estou chamando,
dos inventores da cultura nordestina, tendo recebido deles influência direta.
Théo Brandão dá a esse respeito o seguinte depoimento:

Além disso, apesar de papai querer que eu fosse médico, papai gostava de
folclore, ele comprava as obras de Gustavo Barroso, de João Ribeiro, de
Lindolfo Gomes e de Leonardo Mota e nos dava, a mim c a Vilela para ler,
isso, de certo modo insinuava uma dedicação ao folclore. Ainda hoje eu pego
em livros de T.indolfo Gomes e Leonardo Mota com o nome de papai, Dr.
Manoel Brandão.215

Narra ainda como uma demanda de Luís da Câmara Cascudo o obriga,


pela primeira vez, a fazer pesquisa de campo e os aproxima definitivamente:

Eu me correspondia com Cascudo pelo seguinte: quando ele estava fazendo


a "Geografia dos Mitos Brasileiros': mandou perguntar a um amigo, hoje
falecido, se ele não conhecia ninguém em Alagoas que pudesse mandar
alguns dados a respeito dos mitos alagoanos. Esta pessoa me entregou a carta
então fui coletar. Foi a primeira pesquisa de campo, mas isso aí era no meio
dos caboclos de Boa Sorte, Sinfrônio, meus tios, mamãe que sabia muito
dessas coisas... De maneira que Cascudo, colocou isso no livro dele: "do Sr.
Théo Brandão recebi as seguintes informações sobre Alagoas': .. ~ interessante
notar que ele não guardou de memória, depois, fez amizade comigo quando
me conheceu com Arthur Ramos e um dia, ele foi fazer uma conferência em
Maceió e cu tinha que o apresentar, então eu disse, como título de glória,
que meu primeiro trabalho de folclore tinha sido publicado na "Geografia
dos Mitos Brasileiros"; ele ficou surpreso e satisfeitíssimo porque não tinha
imaginado que aquele camarada que tinha mandado os mitos era o mesmo
Théo Brandão que ele conhecia.! 16

Adhemar Vida! nasceu na cidade da Parahyba do Norte, ainda no final


do século X IX, no ano de 1897, pertencendo, na verdade, à geração daqueles
que fabricaram a cultura nordestina, porém por ter sido entre eles aquele
que mais viveu, pois só veio a falecer em 1986, e por ter se dedicado a outras
atividades tanto no campo das letras, como fora dele, retardando a sua
produção como folclorista, a publicação, no ano de 1950, do livro Lendas e
superstições, que o consagra como estudioso da cultura popular, já encontra
a noção de cultura nordestina estabelecida. Embora o subtítulo do trabalho
seja "contos populares brasileiros·: dando a ideia de que o enquadramento
espacial da obra é a nação, quando da leitura verificamos que ela se concentra
sobre material colhido no Nordeste, recorte espacial que aparece manejado

215. ROCHA, José Maria Tenório. Op. cit., p. 29.


216. Idem, p. 30-31.
por ele ao longo de todo o escrito. O livro é organizado, inclusive, tomando
como critério de agrupamento e classificação do material semiótico que
reproduz, a divisão em zonas climáticas e de ocupação que se costumava
fazer, neste momento, do território nordestino, que mais tarde serão
oficializadas pelo IBGE, com pequenas modificações, como sub-regiões do
Nordeste: litoral, várzea e brejo (que serão agrupados como agreste) e sertão.
Théo Brandão nasceu na cidade de Viçosa, Alagoas, em 1907. Em 1931
publicou seu primeiro artigo sobre o tema do folclore intitulado Folclore e
educação infantil, mas seu primeiro livro sobre o tema e que lhe conferiu o
lugar de folclorista é Folclore de Alagoas, publicado em 1949. Sob a inspiração
direta da Sociedade Brasileira do Folclore, instituição fundada, em 1941,
por Luís da Câmara Cascudo, tendo como objetivo coordenar e articular os
estudos de folclore no país, TI1éo Brandão assumirá a tarefa de dotar o seu
Estado natal de estudos nesta área, incorporando-o ao mapa do Nordeste,
contribuindo localmente para os estudos da cultura regional. Quando mais
tarde o governo federal cria, em 1948, o Conselho Nacional do Folclore,
ele será indicado pelo governo estadual como represente de Alagoas junto
àquela instituição. Ele, em toda a sua obra, assumiu a identidade nordestina,
incorporou os conceitos de folclore e de cultura popular do Nordeste para
recobrir as manifestações culturais, para nomear as matérias e formas de
expressão que ele recolhia com afinco em suas viagens de estudo por todo o
território alagoano.
Veríssimo de .Melo nasceu na cidade do Natal, no ano de 1921 . Tendo sido
aluno de Luís da Câmara Cascudo no colégio Atheneu Norte-Riograndense,
deixou-se fascinar, desde muito cedo, pelos estudos do folclore. Ainda no
final dos anos 40 publica três obras que são recorrentemente citadas quando
se trata da abordagem destes temas no campo do folclore: Adivinhas (1948),
Acalantos (1949) e Parlendas (1949). Assim como Théo Brandão, ele tratará
de construir uma obra que procurará incluir o folclore de seu Estado natal, o
Rio Grande do Norte, no interior do folclore nordestino e brasileiro. Tendo
sido escolhido peJo governo do Estado como seu representante junto ao
Conselho Nacional do Folclore,217 ocupando um lugar que deveria ser de
Câmara Cascudo, mas que este se recusou a assumir, indicando o pupilo-
possivelmente por se sentir magoado com a preterição pelo governo federal

217. As disp utas no interior do movimento folclórico brasileiro, as rivalidades e articulações


entre a Sociedade Brasileira do Folclore, o Conselho Nacional do Folclore e a Comissão Nacional
do Folclore são abordados por: YILHENA, Luís Rodolfo. Op. cit.
da Sociedade Nacional de Folclore que havia criado, com sede em sua casa,
em Natal - Veríssimo de Melo assumirá também, em grande medida, este
lugar de sujeito de folclorista do Estado, lugar que Cascudo, considerado,
a esta altura, um mestre nacional e internacional na matéria, não queria
ocupar.218
Tendo nascido um ano antes do que Veríssimo de Melo, em 1920,
na cidade de Bom Jardim, Pernambuco, Mário Souto Maior iniciará
tardiamente sua carreira como estudioso do folclore. Somente com sua
entrada na Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, em 1967, com
o incentivo de Mauro Mota, Sylvio Rabello e Gladstone Vieira Belo, reunirá
tudo o que havia anotado sobre as crendices em torno da maternidade no
Nordeste e publicará um livro com o título de Como nasce um cabra da peste,
no ano de 1969, fazendo nascer, assim, segundo suas biografias, o folclorista.
O título da sua obra de estreia já revela não só o enquadramento espacial
que dará ao material que recolhe e reescreve, mas o fato de que sua obra
se constituirá na reafirmação deste recorte espacial, da ideia de folclore
nordestino, repondo toda a mitologia que foi criada em torno da região e de
sua cultura pelos antecessores. A reposição da imagem do Nordeste como
uma região de cultura rural, artesanal, folclórica, atravessada pelo machismo
e pelo humor, muitas vezes, de cunho racista e sexista, será uma tônica
de seus escritos, feitos num período em que este espaço definitivamente
se urbaniza, se moderniza, torna-se muito mais complexo e variado do
ponto de vista econômico e social, e muito mais diversificado do ponto
de vista cultural; escritos feitos no momento em que os conflitos sociais,
notadamente na área açucareira, se intensificam, em que a repressão política
se abate duramente sobre importantes organizações e personalidades de
seu Estado. Trabalhou numa instituição de grande prestígio na região, a
Fundação Joaquim Nabuco, criada a partir de projeto de lei apresentado ao
Congresso Nacional, no ano de 1949, pelo então deputado federal Gilberto
Freyre, que capitaneara, nos anos 1920, a criação do Centro Regionalista do
Nordeste e o Movimento Regionalista e Tradicionalista, fundamentais na
elaboração da identidade nordestina, organização criada para dar uma base
institucional e garantir a continuidade da obra freyreana e sua visão áe Brasil,
que veio a se constituir, também, numa instituição voltada para reatualizar
permanentemente a identidade nordestina, produzindo conhecimento.

218. Ver, por exemplo: MELO. Veríssimo de. Folclore brasileiro: Rio Gra11de do Norte. Rio de
Janeiro: funarte/Campanha d e Defesa do Folclore Brasileiro, 1977.
veiculando saberes e dando suporte a uma produção no campo das ciências
sociais, no campo das artes, da literatura, do folclore, fundamentais para a
permanente atualização e reposição da ideia de cultura nordestina. O Museu
do Homem do Nordeste, por exemplo, que faz parte da Fundação Joaquim
Nabuco, tanto pelas coleções que abriga, quanto pela narrativa museológica
que a disposição e a organização das peças propiciam, constitui não só uma
reafirmação do discurso freyreano sobre a formação da nacionalidade,
como recoloca a sociedade açucareira, a sociedade chamada de patriarcal
e nordestina, pelo sociólogo de Apipucos, como o cerne da nacionalidade,
como nela estando as raízes da cultura brasileh;a. Não é possível separar,
conforme nos alerta Certeau e Foucault,219 uma produção discursiva de seu
lugar de produção. A obra de folclorista de Mário Souto Maior é inseparável,
é ininteligível se não levarmos em conta o contexto institucional em que
foi elaborada: a Fundação Joaquim Nabuco, instituição que foi dirigida por
trinta e um anos pelo filho do sociólogo pernambucano, Fernando Freyre,
que a direcionou no sentido de torná-la um lugar privilegiado de atualização
do regionalismo e tradicionalismo nordestinos. Ainda hoje a Diretoria de
Cultura dessa instituição define seu papel como sendo o de apoio à difusão
e à produção da cultura do Norte e Nordeste. 220
Um elemento de unidade nas trajetórias destes folcloristas que
sucederam aos inventores da cultura nordestina é que a maioria deles
assume a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus
Estados, ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade
regional nordestina. Inspirados ou diretamente envolvidos no chamado
Movimento Folclórico, como é o caso de Théo Brandão e Veríssimo de
Melo, que estarão inicialmente ligados à Sociedade Brasileira do Folclore,
fundada por Câmara Cascudo, e depois farão parte da Comissão Nacional
do Folclore e do Conselho Nacional do Folclore representando seus Estados
a partir da indicação dos governadores, estes folcloristas assumirão a tarefa
de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura
regional e nacional. Se os folcloristas do século XIX tiveram a nação como
referencial espacial de seus estudos, se os inventores da cultura nordestina
tiveram a região como referência, esta terceira geração de folcloristas

219. Ver: CERTEAU, Michel. "A operação historiográfica': In: A escrita da História, p. 65-119; e
FOUCAUL'I: Michel. A ordem do diswrso.
220. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presen tation.Naviga
tionScrvlct?publicationCode= 16&pagcCode=24l&textCode=553&date=currentDate. Acesso em
2 1 de janeiro de 2011.
tomará o espaço estadual como o recorte espacial de sua produção. 1:. como
se houvesse uma procura progressiva pelo conhecimento do singular, do
detalhe, da diversidade das manifestações, para, no entanto, enquadrá-las
numa identidade mais ampla, seja a nacional, seja a regional. O livro de
Ademar Vida!, Lendas e superstições, é um exemplo bastante significativo
do que venho dizendo. Embora traga no subtítulo a referência ao espaço
nacional, pois nos diz que o livro trata de "contos populares brasileiros': já
no prefácio o autor delimita ao Nordeste o espaço de que retirou seus contos,
e quando empreendemos a leitura da obra verificamos que grande parte do
material foi colhida na e se refere à Paraíba.l21
Os folcloristas que sucederam os inventores da cultura nordestina
são, em sua maioria, filhos de profissionais liberais que, se descendem de
famílias que tiveram vínculo com a terra, já não mais vivem ligados às
atividades rurais. Seus pais já são citadinos, já são bacharéis, que até podem
descender de famílias que tiveram seu poder político e sua fortuna baseados
na propriedade da terra, mas que não vivem mais diretamente das atividades
agrárias. Por certo o fato de terem chegado a cursar estudos superiores e se
estabelecerem como profissionais liberais de sucesso indiciao pertencimento
a grupos familiares privilegiados econômica e socialmente. A exceção é Mário
Souto Maior, filho de Manuel Gonçalves Souto Maior, coronel da Guarda
Nacional, comerciante e fazendeiro, e de Maria da Mota Souto Maior. Tanto
pelo lado paterno, como materno, as famílias de que descendia o folclorista
pernambucano estavam ligadas à propriedade da terra, embora também
exercessem o comércio, consorciamento típico da zona denominada de
agreste, onde a agricultura e a pecuária se voltavam para o abastecimento das
cidades do litoral e zona da mata. Seu avô paterno, Etelvino ela Cunha Souto
Maior, era coronel da Guarda Nacional e comerciante e seu avô materno, o
major da Guarda Nacional Prisciliano da Mota Silveira, era dono da fazenda
Taperinha, no município de Bom Jardim. 222
Ademar Vidal era filho do jornalista Francisco de Assis Vida! e da dona
de casa D. Amélia Augusta Menezes Vida!, tendo casado, no entanto, com
D. Maria do Céu Lins Vida!, senhora de engenho e de antiga usina de açúcar
da Várzea da Paraíba. A nostalgia da vida rural, embora fosse um bacharel
nascido na cidade, o leva a construir uma casa cercada por jardins e pés

221. VIDA L, Ademar. Lendas e superstições: coutos populares brasileiro.>. Rio de Janeiro: Empresa
Gráfica O Cruzeiro, 1950.
222. ~IAIOR, Mário Souto. As dobras do tempo, p. 2 1.
de coco para, segundo ele, "recordar o ambiente de província, dos velhos
tempos que não voltam mais'~m
Théo Brandão era filho do médico e farmacêutico Manoel de Barros
Loureiro Brandão, casado com sua prima Carolina Vilela Brandão, padrão de
matrimônio bastante presente e valorizado nas elites da área que se chamará
de Nordeste. Ambos eram filhos de senhores de engenho do município de
Viçosa em Alagoas. 224 Veríssimo de Melo era filho de Graciano Melo, que era
comerciante, possuía u.m a loja de venda de tecidos, armarinho, papelaria, no
centro da cidade do Natal, e Emília Pinheiro de Melo.m
Eles também se dedicarão a atividades libera'is e, muitas vezes, farão do
exercício destas profissões a fonte de sustento de suas incursões no campo
dos estudos de folclore, campo ainda não profissionalizado, vivendo ainda
um processo de institucionalização, do qual farão parte. Adhemar Vida!
foi, assim como o pai, jornalista, tendo começado a trabalhar aos doze anos
como revisor do órgão oficial do Estado da Paraíba, o jornal A União, que
veio a dirigir mais tarde. Théo Brandão também seguiu a profissão paterna,
formando -se em farmácia e medicina, tendo frequentado inicialmente a
Faculdade de Medicina da Bahia, concluindo o curso, no ano de 1929, na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Mário Souto Maior exerceu a
profissão de advogado, foi promotor público das comarcas de Surubim e
João Alfredo, foi professor da Escola Normal de Santana em Bom Jardim,
fundador, diretor e professor do Ginásio de Bom Jardim, inspetor federal de
ensino, passando a fazer parte do setor administrativo da Fundação Joaquim
Nabuco, a partir de 1967. Veríssimo de Melo também exerceu a profissão de
advogado, jornalista, juiz municipal, professor de Etnografia do Brasil na
Faculdade de Filosofia de Natal e Antropologia Cultural da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Se olharmos para as biografias destes
letrados, veremos que eles comumente são titulados nas duas carreiras mais
tradicionais entre as elites brasileiras: a medicina e o direito, mas também

223. TARGINO,Itapuan Bôtto. Ademar \lidai e Raul de Coes: personagens da lristória da Paraíba.
João Pessoa: Micrográfica, 1996, p. 42.
224. Seu avô paterno era dono do Engenho Barro Branco e seu avô materno dono de engenho
Boa Sorte. Sua mãe tinha como primo legítimo o escritor Graciliano Ramos. O militante com unista
Otávio Brandão era seu primo. Tinha o mesmo nome do primo e conhecido líder político alagoano
Theotônio Brandão Vilela, pai do atual gover nador de Alagoas, lhcotônio Brandão Vilela Filho.
Ver: ROCHA, José Maria Tenórit>. Op. cit.
225. A loja se chamava Natal Moderno c se localizava na esquina entre as nw~ Vig:írio Bartolomeu
e Ulisses Caldas. Informações fornecidas ao autor pelo neto de Graciano Melo, Dalton Andrade,
a quem agradeço.
exercem atividades que serão comuns aos homens de letras destes grupos
sociais: o jornalismo e a docência.
Chama atenção, também, o fato de que quando estes folcloristas são
admitidos no ensino universitário, não será o folclore a matéria a que se
dedicarão. O caso de Veríssimo de Melo, e mesmo de Câmara Cascudo
e Théo Brandão, é emblemático. Eles foram designados para o ensino da
antropologia e da etnografia e não do folclore. Théo Brandão, por exemplo,
professor de etnografia e antropologia na Universidade Federal de Alagoas,
teve que lutar muito para ver realizado seu sonho da criação de um museu
dedicado ao folclore. Tendo idealizado este espaço desde 1963, somente no
ano de 1975 viu ser criado o Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore
para abrigar seu acervo que doara à Universidade. É significativo que, mesmo
sendo um órgão vinculado à Universidade, ele se destina a atividades de
extensão, não estando ligado diretamente às atividades fins da instituição,
mantendo o caráter lateral do folclore quando se trata das atividades
acadêmicas. Esta falta de profissionalização e a precária institucionalização
não favorecem uma definição precisa do perfil desta atividade, quase
sempre subsidiária de outras, quase sempre amadora e feita às expensas de
recursos do próprio pesquisador. TI1éo Brandão, por exemplo, após exercer
seu trabalho como médico e professor universitário ao longo da semana,
dedicava seus fins de semana a fazer suas excursões folclóricas, as suas
visitas de observação a lugares e manifestações que considerava serem de
interesse para as pesquisas no campo do folclore. 226 Ele próprio considerava
a atividade um "hobby" ou uma "atividade colateral': 227 Se tomarmos como
exemplo as biografias reunidas por Mário Souto Maior em seu Dicionário de
Jolcloristas brasileiros,228 podemos dizer que este caráter amador da atividade
de estudioso do folclore, esta ausência de profissionalização, além de faze r das
atividades folclóricas mera atividade de fim de semana, das horas vagas, um
passatempo ou uma atividade complementar, que exige o sacrifício de horas
que seriam destinadas ao descanso, torna a definição deste lugar de sujeito
bastante imprecisa. Tomando como exemplo os nomes arrolados na obra do
folclorista pernambucano, podemos perceber que falta clareza sobre o que
vem a ser um folclorista, quem pode ser assim denominado. No Dicionário,

226. ROCHA, José Maria Tenório. Op. cit ., p. 31.


227. Idem, p. 29.
228. MAIOR, Mário Souto. Dicionário de folc/oristas brasileiros. Recife: 20-20 Comunicação e
Editora, 1999.
souto Maior inclui desde cronistas do período colonial, porque se dedicaram a
fazer observações que hoje chamaríamos de etnográficas, viajantes do século
X:J.X, por terem feito relatos sobre usos e costumes da população brasileira,
até autores de obras literárias, musicais, teatrais, acadêmicas que tiveram
corno temáticas algo que seria do universo do folclore. Teremos incluídos na
categoria de folcloristas nomes como: Gilberto Freyre, Florestan Fernandes,
Idelette Muzart, Ariano Suassuna, José Américo de Almeida~ José Lins do
Rego, Guerra Peixe, Heitor Vila-Lobos, Pierre Verger, Nina Rodrigues, Mário
Sete e Lourdes Ramalho. Talvez seguindo uma estratégia de dar prestígio a
este ramo de estudos, sempre visto com reservas pelo mundo acadêmico,
dará uma elasticidade tal ao conceito de folclorista, tentando incluir nele
nomes de reconhecido prestígio nas letras e nas artes nacionais, que este
perderá sua especificidade, passando a ter contornos bastante fluidos.
Quanto à formação seguem o mesmo padrão das gerações anteriores:
fazem os estudos primários em escolas particulares, os chamados
preparatórios em escolas católicas ou públicas e se dirigem às tradicionais
Faculdades de Direito do Recife e de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro,
trajetória escolar que só poderia ser feita por filhos das elites econômicas
e sociais, até meados do século xx. Adhemar Vidal foi alfabetizado em
casa, com a sua mãe, uma mulher letrada, o que já era excepcional para a
época. Frequentou depois os colégios religiosos Nossa Senhora das Neves e
Diocesano Pio x e o Liceu Paraibano, todos na capital paraibana. Para realizar
os exames de madureza estudou~com o professor e poeta paraibano Augusto
dos Anjos. Formou-se em Direito pela Faculdade do Recife, especializando-
se em Direito Internacional. 229
Théo Brandão estudou as primeiras letras com o mesmo professor
de seu pai, João Manuel Simplício, depois frequentou a escola de D. Maria
Amélia Coutrim e estudou com o professor Ovídio Edgar de Albuquerque,
na cidade de Viçosa. Aos dez anos vai para Maceió e continua o curso
primário no Colégio São José, faz o preparatório no Colégio Diocesano, dos
irmãos Maristas, seguindo então para a Faculdade de Medicina da Bahia
onde cursa medicina e farmácia entre 1924 e 1927, concluindo seu curso na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1929, defendendo tese na área
de pediatria e puericultura. Esta sua especialização no campo da medicina
está ligada diretamente ao primeiro texto que publica sobre o que seria uma
temática folclórica, ou fole, como gostava de chamar, o artigo "Foldore e

229. TARGTNO, Itapuan Bôtto. Op. cit., p. 39.


Educação Infantil", publicado em 1931, em que defende as brincadeiras
infantis como essenciais na educação das crianças.230
Mário Souto Maior frequentou a escola da professora Josefa Coleta
de Albuquerque (Santinha), onde aprendeu as primeiras letras, e depois
o colégio do professor Valpassos, na cidade de Bom Jardim. No Colégio
Marista do Recife, fez o curso primário e ginasial. No Colégio Carneiro Leão,
fez curso pré-jurídico e em Maceió, na Faculdade de Direito de Alagoas,
concluiu o curso de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais.
Veríssimo de Melo estudou no Colégio Pedro n e no Atheneu Norte-
riograndense, sendo depois transferido para o Colégio Universitário, no Rio
de Janeiro. Rapazinho, aos dezoito anos, teve pretensões de entrar para as
Forças Armadas. Porém, ingressou na Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, de onde se transferiu para a
Faculdade de Direito do Recife, onde concluiu o curso.
Embora tivessem formação em profissões liberais, os folcloristas que
formam esta geração que veio em seguida àquela que inventou a cultura
nordestina, mantêm o padrão das anteriores ao se dedicarem ao serviço
públ ico, ao contarem com o amparo do Estado, em grande medida por
fazerem parte de famílias ligadas aos grupos dominantes locais. Alguns deles
participarão diretamente da vida partidária, ocupando postos de governo, já
que suas famílias estavam ligadas aos grupos políticos que dominavam a
política estadual. Portanto, podemos dizer que os estudiosos do folclore, os
estudiosos da cultura popular, pelo n1enos no Nordeste, mantêm um mesmo
perfil, de homens advindos das parentelas que dominaram econômica e
politicamente seus Estados, mesmo que visivelmente em processo de declínio
a cada geração ou tendo que converter a base de seu poder econômico e político
das atividades agrárias para as atividades urbanas. Ademar Vidal, no início
da década de 1920, se submete a concurso público para o Itamaraty, tendo
sido aprovado e nomeado para a Legação do Brasil na Holanda no governo
do presidente Epitácio Pessoa, que liderava a oligarquia que dominava a
vida política da Paraíba e à qual ele estava ligado. Por problemas de saúde,
renunciou ao cargo e retornou à Paraíba, sendo então nomeado oficial de
gabinete pelo presidente do Estado Solón Barbosa de Lucena ( 1920- 1924),
também ligado à oligarquia Pessoa. Em seguida ocupa o posto de procurador
da República. Em 1928, a convite do presidente João Pessoa assume as pastas
da Justiça e da Segurança, tendo participação destacada e decisiva em todos

230. ROCHA. José Maria Tcnório. Op. cit., p. 26-28.


os episódios que levaram à eclosão da chamada Revolta de Princesa, cuja
repressão chefiou e nos episódios que culminaram com o assassinato de
João Pessoa e com a chamada Revolução de 1930. Foi procurador geral do
Tribunal de Segurança Nacional durante a ditadura do Estado Novo, que
instituiu este órgão como parte do seu aparato de repressão. Com o processo
de democratização, após a queda de Vargas, e com o fim da Segunda Guerra
Mundial, extinto esse órgão, passou a servir como consultor jurídico da
Comissão de Reparação de Guerra no ltamaraty. Exerceu por urna década,
na Paraíba, a presidência do Conselho Penitenciário e, simultaneamente, a
Comissão Federal de Tóxicos, coroando, assim, utna longa carreira ligada a
órgãos de repressão política e social. Fez parte, ainda, na Justiça do Trabalho,
da Junta de Conciliação e Julgamento, na época da ditadura militarY'
Mário Souto Maior, além de promotor público, professor, inspetor
federal de ensino e funcionário da Fundação Joaquim Nabuco, como já
vimos, foi secretário de finanças do município de Bom Jardim, no início dos
anos 1940, na gestão de seu próprio pai, que foi prefeito da cidade por duas
vezes. Seu pai pertencia aos quadros do Partido Social Democrático (PSD ),
liderado no Estado pelo interventor Agamenon Magalhães e na região pelo
deputado Osvaldo Lima. Foi graças à intervenção política desse deputado
que o folclorista pernambucano foi nomeado prefeito da cidade de Orobó
(1945) e promotor adjunto na comarca de Surubim, mesmo cursando ainda
o terceiro ano do curso de Direito. Seu primo, Estácio Souto Maior, foi
deputado federal e ministro da -Saúde no governo João Goulart. Foi ele que
conseguiu uma verba de cinco mil contos de réis para que Mário pudesse
equipar o Ginásio de Bom Jardim, estabelecimento de ensino que havia
fundado. Graças a ele Mário foi nomeado para as funções de inspetor federal
de ensino, no ano de 1964; com a extinção deste cargo passou a trabalhar na
Inspetoria Seccional do Ensino Secundário no Recife, para onde se muda
em 1967. A convite de Mauro Mota trabalhou no setor administrativo da
Fundação Joaquim Nabuco, onde termina por se interessar pelos estudos
folclóricos, sendo transferido em 1976 para o Departamento de Antropologia,
daquela instituição, e dirigindo o Centro de Estudos Folclóricos, criado
em 1980, na gestão de Fernando Freyre, constituindo-se numa das raras
instituições que apoiam este tipo de estudos.2.\2

231. TARGI NO, ltapuan Bôtto. Op. cit., p. 40.


232. Ver: M AIOR, Mário Souto. As dobras do tempo.
Théo Brandão iniciou sua carreira, em 1930, como médico na cidade
do Recife, a conselho de seu pai, trabalhando no hospital Manoel S. Almeida
e na inspetoria de Higiene Infantil e Pré-Escolar do Departamento de Saúde
Pública de Pernambuco. Voltou a Maceió e instalou sua clínica de pediatria e
obstetrícia. Foi por dez anos diretor da Caixa Econômica Federal em Alagoas.
Em 1933, indicado pelo então diretor de Educação do Estado, Graciliano
Ramos, torna-se professor da Escola Normal de Maceió, ensinando higiene
e puericultura, ministrando aulas até o ano de 1961, quando se aposenta.
Foi também professor de higiene no Liceu Alagoano. 233 Foi por duas vezes
secretário da Educação e Cultura de Alagoas, a primeira em 1941-1942, no
governo de Ismar de Góis Monteiro, e a segunda em 1966, no governo do
gal. João José Batista Tubino, auxiliando, assim, por pouco tempo, o governo
de dois interventores, nomeados por duas ditaduras. Foi um dos fundadores
da Faculdade de Medicina de Alagoas, no ano de 1950. Em 1960, abandonou
a carreira médica para se dedicar integralmente aos estudos de folclore,
tendo ingressado como professor da cadeira de Antropologia Cultural na
Universidade Federal de Alagoas.
Veríssimo de Melo fo i procurador da prefeitura da cidade do Natal, juiz
municipal, além de professor universitário de etnografia e antropologia. Em
1950 foi chefe de gabinete do prefeito Sylvio Pizza Pedrosa. Assim como
ocorreu com Théo Brandão, foi após a aposentadoria que intensificou
a sua dedicação aos estudos folclóricos, o que indicia, mais uma vez, o
caráter amador e a fa lta de apoio institucional para estes estudos, que se
tornam apêndices na vida profissional de seus cultores, o que dificulta
o desenvolvimento teórico e metodológico neste campo de pesquisas.
O amadorismo e a falta de um aparato teórico, a atividade presidida por
mera curiosidade pelo colecionar detalhes, relatos, manifestações artísticas
e culturais, fazem do folclore uma área de trabalho bastante frágil em
termos científicos e, muitas vezes, mesmo em termos literários. Este fato é
reconhecido, por exemplo, pelo próprio Mário Souto Maior que, no entanto,
faz o elogio da precariedade teórica como sendo aquilo que faria o folclore
estar mais perto da veracidade dos fatos, pois, segundo ele, as teorias nunca
se ajustariam às práticas, e o foldorista descreveria práticas concretas,
sem procurar interpretá-las usando o que chama de "antropologuês" e
"sociologuês': Ele diz:

233. ROCHA, José Maria Tenório. Op. cit. , p. 141-146.


Sempre acreditei na impossibilidade de, em assuntos folclóricos, casar, ajustar
teoria e prática, de vez que a teoria significa ter os pensamentos e o raciocínio
atados, forçados, distantes da verdade.
Nunca me considerei um cientista social com embasamento academicamente
teórico. Sempre fui um pesquisador mais dedicado ao aprisionamento, na
sua liberdade, dos costumes, dos hábitos, da linguagem, da culinária e de
outros assuntos folclóricos antes que o tempo conseguisse sepultá-los no
esquecimento total, substituindo-os, modificando-os, fazendo com que o
ontem tradicional desse lugar ao hoje tecnológico. Mesmo respeitando os
antropólogos e sociólogos nunca usei o antrop())loguês e o sociologuês nos
meus trabalhos.

Minhas pesquisas/livros sempre foram muito simples, como simples sempre


fui durante toda minha vida. Nunca fui muito chegado a complicações de
ordem científica.234

TI1éo Brandão também deixa entrever em relato memorialístico


que a distância entre o discurso do folclore e o discurso acadêmico, das
ciências sociais, passa pela recusa da abordagem teoricamente orientada de
questões e problemas a serem suscitados a partir da pesquisa de campo. Os
folcloristas se comprazem em coletar, em descrever, em relatar, em ordenar,
em classificar as matérias e formas de expressão a que têm acesso, mas eles
consideram a abordagem teoricamente embasada uma deturpação espúria.
Amedida que se tornam professores universitários, serão confrontados com
as regras acadêmicas e, no entanto, a elas resistirão. Diz Brandão:

Eu tive esta amarga experiência, meus discípulos saíram para diversas


universidades para fazer mestrado quando voltaram, voltaram cada um com
um ponto de vista. Um que é estruturalista, outro é neomarxista, um é isso,
outro é aquilo outro, e fica enterrado naquela doutrina e eu acho sempre que
tudo tem um fundo de verdade em cada uma delas. Elas são visões parciais
de todo o universo, então, a maneira de tratar cada uma dessas coisas é uma
maneira de tratar, às vezes é moda, mas realmente é uma maneira de tratar,
por isso não podemos desprezar.
Eu mesmo digo, eu faço aquilo que eu sei fazer. Eu posso saber que o
estruturalismo é uma grande escola, que o neomarxismo, que o ritualismo;

234. MAIOR, Mário Souto. As dobras do tempo, p. 162-163.


mas, se eu trabalho bem desse modo, para que mudar na idade em que eu
estou a maneira de trabalhar?235

Todos tiveram uma atuação destacada na imprensa, escrevendo nos


principais jornais de seus Estados, inclusive sobre o que chamam de matéria
folclórica; fundaram e dirigiram periódicos e revistas culturais, embora, para
esta geração, o escrever, muitas vezes, tenha se constituído numa atividade
que exercem roubando tempo e concorrendo com suas atividades principais
como profissionais liberais e funcionários públicos. Ademar Vidal aos doze
anos já trabalhava no jornal A União. Fundou a revista A Novela, que circulou
na capital da Paraíba e teria sido pioneira na divulgação do modernismo no
Estado. Foi colaborador assíduo da revista Era Nova, trabalhou nos jornais
A República, O Liberal, O Comércio e O Avante. Foi diretor dos jornais A
República e o Estado da Paraíba. Escreveu ainda para vários jornais do país
e revistas estrangeiras. 236
Théo Brandão inicia, em 1928, colaboração em pequenos jornais de
sua cidade, Viçosa, publicando poemas e crônicas. Ser poeta, fazer versos,
parece ser um sonho e quase uma obrigação de todos estes letrados das
elites nordestinas. Muitos, mais tarde, confessarão que se envergonhavam
dos versos que cometeram, notadamente na adolescência, mas todos serão
agraciados com a publicação na imprensa local de sua "obra poéticà: A
crônica é um gênero em que todos também militam, talvez por requerer esta
observação aguda do cotidiano, esta vontade de registrar por escrito o que
vê e do que participa, que está bem de acordo com os traços que definem
um folclorista. Quando retoma para Maceió, formado em medicina, Théo
Brandão depara com a chamada Geração Intelectual de Alagoas, um grupo
composto por Manuel Diégues Júnior, que como antropólogo e etnógrafo
será um nome importante, mais tarde, no movimento folclórico, participando
da Comissão Nacional do Folclore e da Campanha Nacional do Folclore, o
escritor Graciliano Ramos, Raul Lima, Santa Rosa Júnior, Aurélio Buarque
de Holanda e ainda José Lins do Rêgo, Rachel de Queiróz e seu marido José
Auto que moram na capital de Alagoas, neste momento. Em 1946, participa
da publicação na revista O Cruzeiro de uma reportagem sobre o folclore
do mar. Colaborou com a Gazeta de Alagoas e com o jornal de Alagoas.
Seus artigos, sobre o que definia como sendo o fo lclore alagoano, fora11l

235. ROCHA , José Maria Tenório. Op. cit., p. 38.


236. TARGINO, Itapuan l3ôtto. Op. cit., p. 40·41.
publicados em jornais como o Diário de Pernambuco, O Jornal e Diário de
Notícias no Rio de Janeiro, em revistas como Revista Brasileira do Folclore,
Fevista de Etnografia do Porto, Revista de Dialetologia e Tradições Populares
de Madrid.
Mário Souto Maior também inventou de ser poeta aos treze anos de
idade, escreveu vários poemas em um caderno que intitulou como se fosse
um livro de Minhas poesias. Com apenas dezesseis anos funda um jornal
em Bom Jardim, junto com Américo Sedycias, chamado O Literário. Depois
participa da fundação do Grêmio Literário Paulo Setúbal, que publica o
boletim Ouro de Cuiabá. Em 1938 funda junto epm Guerra de Holanda,
Pelópidas Soares e Isaac Schachnick a Academ ia dos Novos, que passa a
publicar o boletim Geração. Colaborou com o jornal Correio de Catende e
com as revistas Clã, de Fortaleza, Renovação e Nordeste do Recife, Vamos
Ler do Rio de Janeiro, escrevendo crônicas, publicando contos e poemas.
Veríssimo de Melo, a partir de 1943, publica no Diário de Natal crônica
diária com o título "Boa Tarde': trabalhando na redação desse jornal até os
anos 1950. Nos anos 1940 também escreveu no jornal O Democrata, dirigido
por Romildo Gurgel.
Como as gerações anteriores que se dedicaram aos estudos do folclore,
aquela que consolidou, com o trabalho que fez em seus Estados, a construção
da ideia de cultura nordestina ou de folclore nordestino, também integrou
as principais instituições de consagração dos homens de letras, seja em nível
local, seja em nível nacional, mantendo, neste aspecto, o perfil daqueles que a
antecederam. Fazer parte de instituições voltadas para a celebração dos nomes
daqueles que representam as elites políticas e sociais do país, dos Estados e
dos municípios, delas receber prêmios e honrarias, indicia o lugar de fala
destes homens que atualizaram e veicularam a ideia de cultura nordestina.
A exceção é Mário Souto Maior que, apesar de ter sido convidado duas
vezes para concorrer a uma cadeira na Academia Pernambucana de Letras,
quando o fez, foi derrotado na eleição pelo médico, teatrólogo e escritor
Reinaldo Oliveira, fato que o levou a escrever em seu livro de memórias:
"Jamais serei candidato a nenhuma outra vaga em nossa Academia, à qual
rendo as minhas homenagens. Mas essa grande mágoa me acompanhará até
a Eternidade': 237

237. MAlO R, Mário Souto. As dobras do tempo, p. 161.


Théo Brandão, ao publicar sua obra de estreia Folclore de Alagoas
(1949), é de saída agraciado com o prêmio da Academia Alagoana de Letras
e com o prêmio "João Ribeiro" da Academia Brasileira de Letras. Ao ser
indicado para fazer parte do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, não
podendo apresentar um trabalho sobre a história da medicina no Estado, por
já estar sendo escrito por outro pesquisador, Théo Brandão resolve escrever
um discurso de posse tratando da biobibliografia do folclore em Alagoas,
abraçando assim, definitivamente, esta área de estudos. Em 1942, fundou
em sua casa, a seção alagoana da Sociedade Brasileira do Folclore, entidad~
fundada nacionalmente por Câmara Cascudo, da qual faziam parte Manuel
Diégues Júnior, Ulisses Braga, Mário Marroquim, Abelardo Duarte, Aloísio
Vilela, Hélio Machado e Ledo Ivo. A sessão de criação foi composta por uma
"série de palestras sobre os cantadores do Nordeste e a respeito das tradições
locais". "Formidável jantar de cunho regional foi servido, em meio ao
contentamento e alegria de todos'~ 238 "Os militantes pela causa do Nordeste
sempre tiveram bom apetite para comidas regionais, desde os fundadores da
região'~ 239 Seis anos depois, em 1948, Théo Brandão tornou-se presidente da
Sub-Comissão Alagoana de Folclore ligada à entidade nacional fundada por
Renato Almeida, a Comissão Nacional de Folclore, na qual também toma
parte. Em 1961 é nomeado pelo presidente Jânio Quadros para compor o
Conselho Nacional de Folclore. Foi membro, desde 1941, da Sociedade de
Antropologia e Etnografia fundada por Arthur Ramos, de quem foi colega
quando cursava a Faculdade de Medicina na Bahia, morando inclusive na
mesma pensão em que se hospedava, e que também o indicou para fazer
parte da Sociedade Luso-Brasileira de Etnologia, em 1955 e da Associação
Brasileira de Antropologia, em 1958. Em 1951 torna-se membro da Academia
Alagoana de Letras.
Adhemar Vidal foi membro do Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano e da Academia Paraibana de Letras, sendo empossado no
dia 24 de outubro de 1979. Mário Souto Maior, em 1979, com o livro
Folclore & alimentação ganhou o prêmio Silvio Romero, do Ministério da
Educação e Cultura e, com o mesmo livro, em 1989, ganhou o gran-prêmio
iberoamericano Augusto Cortazar, instituído pelo Pondo Nacional de Ias

238. ROCHA, José Maria Tenório. Op. cit., p. 65.


239. Ver: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. "Receitas regionais: a noção de regiãO
como um ingrediente da historiografia brasileira o u o regionalismo como um modo de preparo
historiográfico. Rio de Janeiro": Anais do XIll Encontro Estadual da ,\NPUH- RJ - Jdelltidades, zoas.
}\ftes, do Ministerio de la Educación y Justicia, da Argentina. Veríssimo de
Nfelo foi membro da Academia Norte-Riograndense de Letras, onde ocupou
a cadeira de número doze.
Espero ter atingido o objetivo deste capítulo, que foi mostrar o
perfil social e o lugar social de onde falavam aqueles que, desde o século
XIX, se interessaram por escrever sobre aquilo que chamarão de popular, de
folclore e, mais tarde, de cultura popular e que, mais especificamente, vão
elaborar a ideia de cultura nordestina. Desejo ter conseguido demonstrar
0 caráter privilegiado, do ponto de vista social e educacional, daqueles que
abraçaram o lugar de sujeito de folclorista. Mesmo.que, ao longo do tempo,
possamos perceber o declínio econômico e, algumas vezes, político de suas
famílias, de suas parentelas, os estudiosos do popular utilizarão o capital
cultural e as relações políticas das quais fazem parte ou que herdam de
seus antepassados para conseguirem realizar o seu trabalho e conquistarem
posições de destaque no mundo das letras. Ao cruzar estas biografias, ao
fazer este ensaio de prosopografia, espero ter dado uma visão de conjunto
de quem eram esses amantes do popular e das condições históricas, sociais,
políticas e institucionais em que escreveram suas obras.
Capítulo 5

As fontes

·,

Os folcloristas que fabricaram o conceito de cultura nordestina lançaram


mão de distintas fontes para compor suas obras. Eles releram, antes de tudo,
toda a produção feita por outros letrados que se interessaram antes deles
pelo estudo de matérias e formas de expressão populares, desde aqueles
pertencentes à geração romântica do século XIX, como Juvenal Galeno e José
de Alencar, até aqueles mais vinculados à geração de 1870, a chamada Escola
do Recife, sob a influência do positivismo e do evolucionismo, como Celso
de Magalhães e Silvio Romero. No entanto, operam um reenquadramento
conceitual e espacial das manifestações culturais e literárias que foram
referidas, descritas e reproduzidas por esta produção anterior. Em Antologia
do folclore brasileiro,m Cascudo cita nomes como: Ermano de Stradelli,
Guilherme Studart, Simões Lopes Neto, Couto de Magalhães,241 Lopes Gama,
Pereira Coruja, Carlos Koseritz, Barbosa Rodrigues, 242 Melo Morais Filho,2'13
Santana Neri, Manuel Raimundo Querino, Vale Cabral e Pereira da Costa,
autores que trataram de temas e se referiram a eventos, costumes, festas,
rituais, aspectos etnográficos, que serão ressignificados a partir do discurso
do folclore e do conceito de cultura nordestina que a maioria desconhecia

240. CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro. 5. ed. São Paulo: Global, 200 L
241. O livro citado é O selvagem (1876), um ensaio sobre costumes, idiomas e mitos indígenas,
escrito sob encomenda do imperador D. Pedro ii para figurar na Exposição da Filadélfia neste
illesmo ano.
242. O seu livro mais citado é Pora11duba amazonense (1890), uma coletânea de lendas e canções
em Nheengatu (a lí ngua geral amazônica) com tradução em por tuguês.
243. Seu livro mais citado é o Festas e tradições populares do Brasil ( 1901).
e que não utilizava para se referir às manifestações culturais e às matérias e
formas de expressão que referendam em suas obras. Também servirão de
referência para a obra de eruditos seus contemporâneos que já manejavam
o conceito de folclore ou que se dedicavam a pesquisas etnográficas,
antropológicas ou demonológicas (nome que se deu em dado momento à
pesquisa sobre as coisas das camadas populares, do "demos") como: Nina
Rodrigues, João Ribeiro, Basílio de Magalhães, Afrânio Peixoto, Sérgio
Milliet, Amadeu Amaral, Osvaldo Orico, Rodolfo Garcia, Arthur Ramos >
Alberto Faria, Valdomiro Silveira e Cornélio Pires.
Se tomarmos como exemplo a produção do jurista maranhense Celso de
Magalhães, considerado por muitos o pioneiro no estudo e pesquisa da poesia
tradicional do Brasil ou da literatura oral no Brasilw (conforme veremos, a
discussão sobre quem é o pioneiro é quase infindável num gênero de estudos
em que a busca das origens é uma obsessão), que publicou no ano de 1873,
num pequeno jornal, de fugaz existência, da cidade do Recife, chamado O
Trabalho, uma série de dez artigos sob o título "A poesia popular brasileirà:
reunindo informações sobre e transcrevendo trechos do que ele chama de
romanceiro tradicional, cantigas, poesia popular, lendas, costumes, danças e
festas que seriam tradicionais, colhidas e presenciadas em Pernambuco, na
Bahia e no Maranhão, veremos que ele parte dos estudos sobre o romanceiro
português, feitos por Almeida Garret e Teófilo Braga, e compara as versões
dos romances que seriam de origem ibérica, encontrados no Brasil e em
Portugal, identificando variantes e analisando o que seriam processos de
adaptação e conservação. Como vemos, para produzir seus escritos, ele já
lança mão de pelo menos três fontes: as narrativas orais que ouve ou lhe são
contadas, as memórias das manifestações culturais que vê e/ ou das quais
participa e as fontes eruditas representadas pelas obras dos escritores e
folcloristas portugueses, as quais submete a uma n ova leitura.
Os inventores da cultura nordestina, por seu turno, lançam mão, em
vários momentos, do material coligido por Magalhães, notadamente através
da transcrição de seus artigos, de difícil localização e consulta, pelo seu
colega de Faculdade de Direito no Recife e também considerado pioneiro
nos estudos do tema, Silvio Romero, em seu livro Estudos sobre a poesia

244. Ver, por exemplo: NASCIMENTO, Braulio do. Introd ução. In: MAGALHÃES, Celso de.
Op. cit, p. 5 e 7. Seu sobrinho, Antônio Lopes, o considerava o pioneiro nos estudos científicos
do folclore no Brasil. Ver: LOPES, Antônio. Presença do Romanceiro: versões maranhenses. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Cascudo diz:"~ realmente o primeiro folclorista do Brasil no
tempo': Ver: CASCUDO, Luís da Câmara. A11tologia do folclore brasileiro, p. 263.
popular do Brasil,m mas também alteram o seu enquadramento conceitual,
deslocam o sentido produzido por Magalhães e sobrepõem um novo sentido.
como é característico do trabalho de mitificação, no entanto, denotarão que
0 sentido que conferem já estava presente no próprio discurso do estudioso
maranhense. Magalhães, que já recorrera a, pelo menos, três tipos de fontes
para compor seus escritos, torna-se também uma fonte de informações para
05 escritos dos inventores da cultura nordestina, mas uma fonte indireta,
pois acessada através da transcrição feita por Romero que, como veremos no
exemplo a seguir, não só redefine seu sentido, mas adu ltera o próprio texto.
Isto ocorre, por exemplo, na reprodução do• oitavo artigo da série,
escrita por Celso de Magalhães, intitulada "Poesia popular brasileira': que
faz Silvio Romero, em estudo que publicou com o mesmo título, e no livro
de Luís da Câmara Cascudo Antologia do folclore brasileiro, no qual ganha
um título que reduz o seu enquadramento espacial e altera sua significação
conceitual: "Os divertimentos tradicionais no Maranhão e Bahia': 2~ 6 Este
título inexiste no original, nele o trecho transcrito, tanto por Silvio como
por Cascudo, aparece apenas numerado como sendo o oitavo da série de dez
artigos que o autor maranhense estava escrevendo. Ao reproduzir o artigo
de Magalhães, Silvio Romero omitiu parte de seu início e colocou em nota
o seu final, levando Cascudo a repetir o texto com as mesmas supressões e
ainda lhe acrescentar o título que também inexiste no original de Magalhães
e em Romero. O texto perde partes em Romero e ganha um título com
Cascudo, explicitando a que operações os textos denominados de clássicos
ou dos precursores foram submetidos no processo de fabricação do folclore
e da cultura nordestinos.
O material enquadrado por Magalhães na categoria de poesia popular,
embora não fosse composto só de poemas, é posteriormente renomeado
através do uso do conceito de folclore, e o enquadramento espacial Brasil é
substituído pelo enquadramento espacial Nordeste. Anacronicamente estes
conceitos são lançados para o passado e reinscrevem o trabalho do estudioso
maranhense numa tradição que se está inventando a partir dos anos 20 do

245. Ver: ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular do Brazil. Rio de janeiro: Tip.
Laemmert, 1888.
246. É o próprio Cascudo que nos oferece esta informação ao final do artigo: "Do 'Poesia Popular
Brasileira: publicado em 'O Tempo: Recife, 31 de agosto de 1873, e transcrito por Sílvio Romero
no seu estudo com o mesmo título na 'Revista Brasileira: tomo ii, 209-213, Rio de Janeiro, 1879~
Ver: CASCUDO, Luís da Cãmara. Antologia do folclore brasileiro, p. 263-266, e ROMERO, Silvio.
Estudos sobre a poesia popular do Brasil, p. 119-113.
século passado. Conceitos como poesia tradicional e literatura oral virão
também, posteriormente, ressignificar o material coligido e comentado por
Magalhães, mas o enquadramento espacial como sendo material nordestino
tenderá a ser mantido pelos estudiosos que deram seguimento ao trabalho
dos inventores da cultura nordestina, inclusive pelos estudiosos da "cuJtura
popular" com assento nas Universidades e instituições de pesquisa
contemporaneamente.
O fato de o conhecimento do trabalho de Celso de Magalhães ter se dado,
em grande medida, pela reprodução de grande parte dele na obra de Silvio
Romero, que lhe rendeu, inclusive, a acusação de ser praticante de pilhagem
de material alheio,w constitui um procedimento comum no campo dos
estudos folclóricos, onde é muito tardia a introdução de exigências técnicas
e formais. O importante para nosso trabalho é destacar este procedimento
de utilização das fontes: elas norm almente são copiadas, reproduzidas,
transcritas, em parte ou na sua integralidade, sem qualquer aparato crítico
e, muitas vezes, sem sequer haver referência à autoria de quem coligiu ou
estabeleceu a versão escrita do material que está sendo copiado. O próprio
Silvio Romero, na primeira edição de seu livro Cantos populares do Brasi/,248
fez constar no final do volume uma "Advertência" em que cita aqueles autores
de quem havia retirado informações e material a ser reproduzido: Celso
de Magalhães, José de AJencar, Couto de Magalhães, Carlos de Koseritz,
Carlos Miller e Teófilo Braga, além de se referir ao longo do livro ao envio
de material por amigos cearenses como Araripe Júnior, FrankJin Távora e
Macedo Soares. Não se sabe se por motivo das divergências que teve com
Teófilo Braga, que fizera a introdução e notas do livro e acompanhara sua
publicação em Lisboa, ao publicar a segunda edição, aqui no Brasil, Romero
não só retirou a introdução e as notas do folclorista português, como fez
desaparecer todas as referências aos autores que lhe tinham servido de
fonte de informação e pesquisa, levando a que, muitas vezes, seja citado,

247. PAXECO, Fran. "O Sr. Silvio Romero e a literatura portuguesa': In: MAGALHÃES. Celso.
Op. cit., p. 25, nota 7.
248. ROMERO, Silvio. Cautos populares do Brasil. (I. cd. Lisboa, s/e, 1883) 2. cd. Rio de Janeiro:
Alves e C ia., 1897.
por exemplo, como sendo o coletor do material cearense que expõe em seu
}ivro,249 quando este lhe foi enviado por colaboradores.250
No início do sécu lo xx, parte do material recolhido e tornado escrito por
Celso de Magalhães aparecerá também reproduzido no livro do folclorista
pernambucano Pereira da Costa, só que sofrendo um processo de seleção
devido ao enquadramento espacial proposto pelo livro. Enquanto Celso de
Magalhães e Silvio Romero enquadram o material tomando o recorte da nação,
tema central da produção dos letrados do século XIX, principalmente, como
mostramos no item anterior, daqueles que saem das províncias e confluem
para a Corte, tornando-se o que Renato Amado chamou de produtores da
nacionalidade,251 Pereira da Costa enquadra o material tomando o recorte
espacial do Estado onde nasceu e vivia: Pernambuco. Por isso, se resume
a republicar o material referente a esse estado recolhido pelo folclorista
maranhense.252 Das páginas de Pereira da Costa chega também até aos
inventores da cultura nordestina, que fazem novo enquadramento espacial
deste material vindo do estudioso maranhense: ele passa a representar não
mais a poesia popular brasileira, nem o folclore pernambucano, mas a
literatura oral ou a poesia popular nordestina. Mais tarde, quando na década
de 40 do século xx, a ideia de cultura popular nordestina já se encontra
consolidada, o sobrinho do folclorista maranhense, Antônio Lopes, volta a
utilizar num livro, que só será publicado quase vinte anos depois, parte do
material recolhido e transcrito no século X IX pelo seu tio, dando a ele novo
enquadramento espacial, adstrito ao Estado do Maranhão. Talvez isto se deva
ao fato de que as elites maranhenses, notadamente aquelas que confluem

249. Câ1m1ra Cascudo diz que Romero colhera no Ceará a xácara Dom jorgc-c.jrtlinua, quando
ela é uma daquelas enviadas do Ceará por seus colaboradores. Ver: CASCUDO, Luís da Câmara.
Litemtum oml11o Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006, p. 226-227, nota 26.
250. Este fato não pode ser atribuído apenas às distintas regras de produção que regiam o mundo
das letras e o mercado editorial no século xix, mas parece ser um traço deste campo de estudos,
difícil de se apagar. Recentemente o escritor Moacy Cirne escreveu um livro no qual denuncia
que a recent e edição do Diciouário do folclore brasileiro, considerado a mais importante obra de
Luís da Câmara Cascudo, adultera profundarneJlte a versão original, fazendo, entre outras coisas,
desaparecer as referências que havia a outros estudiosos do folclore que com ele contribuíram,
redigindo verbetes constantes do Dicionário, o que faria de Cascudo o autor de verbetes que não
escreveu, como ele fez questão de reconhecer quand o da primeira edição. Ver: CIRNE, Moacy.
Dicionário do folclore bmsileiro: uma edição desfiguradn. Natal: Sebo Vermelho, 20 IO.
251. PEIXOTO, Renato Amado. Cnrtogmfias imnginárias: est11dos sobre a construção do espaço
II(Jcionnl e n relnçào histórin e espnços. Natal: edufrn, 2009.
252. Pereira da Costa reproduz os romances referentes aos números 12, I 5, 16 17, conforme
numeração presente após cada romance no livro de Celso de Magalhães.
para São Luís, têm no mito da superioridade cultural da Atenas brasileira um
diferencial identitário, dificultando sua integração e dissolução na mitologia
cultural nordestina. O sobrinho, ainda em meados do século passado,
quando escreve a obra, parece resistir à integração da cultura maranhense
à cultura nordestina, parece realizar uma operação de recaptura do nome
e da obra de seu tio, que havia sido subsumida na produção cultural que
seria nordestina, muito pela sua presença e por sua publicação no Recife,
cidade cujas elites capitaneiam o processo de invenção do Nordeste, para
ressignificá-la como sendo símbolo da maranhencidade.
Outra fonte recorrentemente utilizada pelos inventores da cultura
nordestina, notadamente por Luís da Câmara Cascudo, são os relatos de
cronistas e viajantes que percorreram a América portuguesa durante
o período colonial ou o Brasil durante o período imperial. Deles serão
retiradas observações sobre a fauna, a flora, os costumes indígenas, africanos
e das camadas populares, sobre as festas, as manifestações culturais e
artísticas observadas e registradas pelos estrangeiros, notadamente aquelas
consideradas exóticas ou originais. À medida que estes relatos passam
a ser lidos a partir não só de uma ótica nacional, mas a partir das regras
que definem o campo dos estudos folclóricos, eles terão seus sentidos
modificados para serem incorporados a um relato sobre a cultura nacional
ou sobre o folclore ou a cultura nordestina. O relato de uma dança dos
indígenas que acompanhavam e serviam de guia para o viajante ou que
estavam a seu serviço, o registro de um acontecimento singular e curioso,
de um dado dia da viagem, tornam-se agora um relato sobre costumes
indígenas, sobre suas danças, ganhando um caráter de generalidade e de
exemplaridade que não possuía no relato original. 253 A obra Antologia do
folclore brasileiro é neste sentido bastante exemplar, pois, segundo o próprio
autor, ela teria a fi nalidade de reunir fontes para os estudos do folclore no
país. Em seu primeiro volume, Câmara Cascudo apresenta o que considera
ser fragmentos de relatos de viajantes que teriam interesse para esse campo de
estudos, explicitando o procedimento de seleção e de significação de dados
trechos destas obras, que passam a ganhar um novo sentido: a de ser um

253. Ver, por exemplo, a transformação sofrida pelo relato que Hcnry Koster faz das danças
que os indígenas qu e estavam a seu serviço realizavam no terreiro de sua residênc ia quando
ele é recortado e inserido sob o título de " Danças de índios, negros e escravos no )aguaribe
(Pernambuco)" no livro Antologia do folclore brasileiro. CASCUDO. Luís da Câmara. Op. cit., P·
7 1-72.
relato etnográfico sobre dados aspectos da cultura nacional e/ou regíonal.254
A submissão destes relatos a um novo enquadramento espacial, ditado pelo
regionalismo nordestino, se explícita, por exemplo, quando da publicação,
em 1942, na coleção Brasiliana, da tradução feita pelo folclorista potiguar
do livro de Henry Koster, publicado na Inglaterra, em 1816, com o título
de Travels in Brazil que, no entanto, será publicado com o título de Viagens
ao Nordeste do Brasi/,255 ou seja, um relato cujo enquadramento espacial
no original era o Brasil, passa a ter um enquadramento espacial regional,
fazendo com que deixe de ser um relato sobre costumes e manifestações
culturais brasileiras, para se tornar um relato sobre aspectos da cultura
nordestina, deixando de se constituir numa fonte para os estudos do folclore
brasileiro, para tornar-se uma fonte etnográfica da cultura popular do
Nordeste. Ou seja, se quanto ao sentido atribuído ao evento relatado pelo
viajante, ele sofre, ao ser incluído no discurso do fo lclore, um processo de
generalização, quanto ao enquadramento espacial, ao ser retirado do espaço
do que viria a ser a nação, para o espaço regional, ele sofre um processo
de singularização, de redução de escala. Torna-se genérico como evento
folclórico, mas específico como evento regionaJ.2 56
Em suas obras os inventores da cultura nordestina também se utilizarão
de obras literárias que consideram possuir interesse etnográfico, obras que
se apropriaram de temas considerados populares ou que se utilizaram de
matérias e formas de expressão que vêm das camadas populares ou, ainda,
que trouxeram pioneiramente para a literatura erudita a descrição de
costumes, práticas, gestos, modos de falar, lendas, cantos, festas, modos de
viver, danças, poemas, adágios e de outras manifestações que seriam típicas
do povo nordestino. Utilizam-se tanto de referências literárias nacionais
como internacionais. Não será mera coincidência que entre eles terão

254. Nesta obra ele inclui relatos de cronistas como: Gaspar de Carvajal, Hans Staden, Padres
Manoel da Nóbrega e Anchieta, Thevet, Jean de Léry. Gabriel Soares de Sousa, Fernão Cardim,
Knivet, Ivo D'Evreux, Abbeville, Marcgravc, Barléu, Antonil e Loreto Couto. Inclui trechos de
relatos dos seguintes viajantes: Mawe, Luccock, Koster, Eschwege, Freyreiss, Wied-Neuwied,
Debret, Saint-Hilaire, Tollenare, Martius, Pohl, Darwin, Gardner, Kidder, Castelnau, Wallace,
Bates, Spruce, Agassiz e Avé-Lallemant.
255. Encontra-se na biblioteca de Câmara Cascudo a segunda edição inglesa do livro, a partir
da qual, supomos, fez. a tradução: KüSTER, Henry. Travels in Brnzil. London: Longman, Hurst,
Orme and Brown, 1817. Para a versão brasileira, ver: KüSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do
Brasil; tradução e notas de Luís da Câmara Cascudo.- Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1942
(Coleção Brasiliana. Vol. 221).
256. Henry Koster é referido, por exemplo, por Gustavo Barroso em Ao som da viola, p. 43.
destaque os autores que se voltaram para escrever uma literatura de caráter
regionalista, que buscavam contribuir para o registro dos costumes locais,
que antecederam e inspiraram ou participaram diretamente do Movimento
Regionalista e Tradicionalista do Recife. Seja o regionalismo de cunho
romântico de um Juvenal Galeno, de um José de Alencar, de um Couto de
Magalhães, de um Gonçalves Dias, seja um regionalismo de cunho realista
ou naturalista como de um Franklin Távora, de um Rodolfo Teófilo, de um
Antônio Sales ou de um Mário Sette, "escrevem páginas indispensáveis para
a evocação do passado folclórico" da região Nordeste. 257 A operação que
realizam com esta literatura poderíamos chamar de "desficcionalização':
ou seja, o dado considerado folclórico ou da cultura nordestina que
havia sido ressignificado a partir do trabalho de ficção literária, que fora
modificado para se integrar a uma narrativa de cunho literário/58 que havia
abandonado a oralidade para ganhar a forma escrita através do trabalho
poético do escritor, é agora reduzido a figurar como uma manifestação, um
evento, um elemento de uma dada cultura folclórica ou da cultura popular,
é reduzido à condição de dado ou de informação. - Qualquer semelhança
com o que alguns historiadores fazem e propõem que se faça com o material
literário, em nossos dias, até mesmo com Machado de Assis, não será mera
coincidência - . Retirado da trama literária, é colocado para atuar num
discurso que obedece a regras distintas: o discurso do folclore, em que deixa
de ser um elemento ficcional para, pretensamente, passar a ser um dado da
realidade do passado e da cultura de determinada área ou de determinado
grupo social. Algumas dessas obras, pelo fato de já terem sido escritas com
uma preocupação etnográfica, com a preocupação de documentar o que
seriam os costumes e tradições da população local ou nacional, comum, por
exemplo, entre os românticos, cuja preocupação em construir tuna literatura
brasileira os levava a dar um caráter documental a seus livros, favorecem
este tipo de operação. Nas obras que adotam esta estratégia narrativa,
notadamente naquelas mais questionáveis do ponto de vista literário, às
vezes na ânsia de dar uma cor local a sua obra o autor introduzirá trechos de

257. CASCUDO, Luís da Câmara. Uteratum oral no Brasil, p. 52, nota 13.
258. Almeida Garret denomin ou de rifacimento este processo de reelaboração da li teratura oral
para adaptá-la à literatura escrita, retirando dela o que considerava ser seu "caráter detestáveI"•
para isto estudando "com repugnáncia muitas de suas versões bárbaras'; conferindo a ela o que
seria mais beleza e o necessário refinamento. Este procedimento será duramente atacado pelos
folcloristas que o vão nomear de deturpação ou adulteração. Ver: NASCIMENTO, J3rauli0 ·
Introdução. In: MAGALHÃES, Celso de. Op. cit., p. 23, nota 1.
obras literárias que circulam oralmente de uma forma tão forçada e artificial
que eles não se integram na trama do romance, gerando certo ruído e
favorecendo esta conversão do elemento ficcional em elemento documental
feita pelos folcloristas.
Muitos dos estudiosos do folclore nordestino começam suas pesquisas
dentro de suas próprias casas, escutando as histórias que suas amas ou babás
contam; as narrativas das negras e das caboclas da cozinha; dos trabalhadores
e empregados das fazendas e sítios de seus pais ou avós; prestando atenção
nas conversas daqueles que frequentam a casa comercial de sua família;
ouvindo e anotando as histórias contadas por tio~, primos, pais, mães, que
narram o que ouviram do povo, entre o riso, a curiosidade e a crença. Numa
ordem social onde a convivência entre os distintos grupos sociais era muito
dheta e cotidiana, em que havia maior homogeneidade cultural, em que as
elites sociais ainda partilhavam grande parte dos costumes e valores com
seus subordinados, esta troca de informações culturais era mais constante.
Talvez, por isso, o folclorista não existia, a noção de folclore ou de cultura
popular ainda não havia emergido. Os estudos de folclore e a emergência do
conceito de cultura popular emergem devido ao processo de distanciamento
progressivo dos grupos e classes sociais em termos culturais. A diferenciação
e o fosso cada vez maior entre universos culturais diversos fazem com que
aquilo que antes era uma crença, um costume, uma vivência, uma prática
de todos, fosse agora apenas de alguns e pudesse ser visto de fora como um
objeto de curiosidade, de exotismo e de estudo. Se os membros da família
de Théo Brandão, seculares moradores da região do agreste de Alagoas,
donos de engenhos, podiam ser sua primeira fonte de informação sobre
práticas que chamava de fole, pois conviviam com os trabalhadores do
eito e do engenho todos os dias, partilhavam de muitas de suas práticas,
festas, crenças, costumes, valores, modos de viver e pensar, para ele, um
médico com vivências citadinas, um menino criado na capital, desde os dez
anos, estas formas e matérias de expressão só podiam constituir objetos de
curiosidade, interesse, saudade e estudo. Ele mesmo se pergunta por que seu
primo Vilela, que nunca abandonou a cidade de Viçosa, de quem se esperava
que se interessasse pelo folclore, nunca por ele se interessou e, ele, o médico
da família, foi que terminou por se apaixonar pelo assunto. Isto talvez se
explique pelo fato de que possivelmente Vilela continuasse mergulhado
naquele universo cultural, tanto que era considerado um "poeta popular",
e lhe faltava o distanciamento, o sentimento de perda, que acompanhava o
primo citadino. Seu encontro com o povo só vai se dar no seu consultório de
médico pediatra, quando poderá colher, também, informações sobre práticas
de cura, sobre o que seria a medicina popular. Seu depoimento indicia esta
proximidade cultural entre grupos sociais distintos e nos fala de como este
contato direto com figuras do povo permitirá constituí-las em fontes para os
estudos de folclore ou de cultura nordestina; estes homens e mulheres das
camadas populares passam a ocupar, agora, ao mesmo tempo, os lugares de
sujeito de povo e de informantes sobre práticas folclóricas: o cassaco e a ama
viram povo e agente do fo lclore:

Minha mãe sabia de muita coisa e, claro que sendo filha de senhor de engenho,
aprendera muitos remédios caseiros e muitos remédios dela curavam. Tive
depois meu primo Sinfrônio Vilela, poeta popular que chegou a exercer 0
ofício de curandeiro e que é urna enciclopédia viva de medicina popular;
ainda está vivo com 87 anos e que, em conto popular e medicina popular é
um grande informante. 259

Assim como TI1éo Brandão, que inicia seus estudos de folclore em


seu próprio consultório médico, observando os hábitos e formas de falar
de seus pacientes, ouvindo-lhes as histórias, anotando as concepções que
traziam sobre as doenças, o corpo e modos de curar, outros médicos e
pessoas que exerciam outras atividades e que estavam em contato direto e
permanente com a população serão considerados fontes privilegiadas de
informação para os estudiosos do folclore. Para o jornalista Nery Camello
os médicos, farmacêuticos e padres do interior seriam "as pessoas que se
acham melhor aparelhadas a fornecer preciosos subsídios aos pesquisadores
do folk-lore': 260 Seriam muito interessantes as cartas e bilhetes que "os jecas"
dirigiam a essas três distintas personagens de cada localidade. Ele reproduz
em seu livro uma carta que chama de "pitoresca", enviada pelo sr. Pedro
Terceiro da Anunciação ao dr. Paulo Fernandes, da cidade de Mossoró, no
Rio Grande do Norte. Carta que foi dada ao folclorista pelo médico potiguar,
sem que seu cliente tenha sequer autorizado tal operação. A carta aflita,
escrita em busca de cura, torna-se um documento folclórico. Num só gesto o
médico modifica o estatuto daquela carta ao torná-la fonte para o estudo das
"curiosidades populares': mesmo sendo a prática da escrita uma raridade
entre pessoas das camadas trabalhadoras. Ao invés de ter valorizado o fato

259. ROCHA, José Maria 1enório. Op. cit .• p. 29-30.


260. CAMELLO, C. Nery. Op. cit., p. 183.
de ser um homem capaz de escrever uma carta, mesmo pertencendo aos
estratos populares, o discurso do folclore toma a sua escrita para colocá-
la hierarquicamente numa posição de inferioridade e como digna de riso
curioso e condescendente. A carta reproduzida tinha o seguinte conteúdo:

Senhor Dr.
Vou com esta à sua presença,- isto é, não vou, mando, dando os sinais duma
moléstia que me atacou, cuja suponho que é ramo estupor. Digo porque
estou com o corpo todo encalombado, sinto dor nas cruz e nos peito, dor na
cadeira, nos osso dos braço e dor intrior.
Quando me deito sai dor na cantareira, dor na cabeça, no caroço dos óios e
um formigamento no corpo.
Quando estou dormindo aparece um resfrian1ento nas mãos e nos pés e um
arrocho no peito com um acocho no coração que fica todo safocado. Tem
um trimido nas costela mindim e do outro lado o sangue corre solto três vez.
Mando esta para o doutor me inzaminar e me iscutar para ver si é mesmo
ramo estupor ou mal de nervoso.26 1

Não será mera coincidência que muitos juízes e delegados de polícia


não só se constituíssem em fonte de informação do dado folclórico, como
alguns deles terão despertada a paixão pelo estudo do chamado folclore ao
serem designados para comarcas do interior, como é o caso do folclorista
piauiense Fontes Ibiapina ou mesmo de um dos mais destacados entre
eles: Leonardo Mota. Câmara Cascudo consulta, inúmeras vezes, através
de cartas, não apenas estes profissionais, mas também os professores
e as autoridades políticas do lugar, que oferecem in formações sobre as
manifestações folclóricas que ocorriam em seu município e, muitas vezes,
auxiliam os estudiosos do popular a contatá-los e entrevistá-los. O que há de
comum entre estes profissionais para se tornarem fontes de informação para
o estudioso do popular? Eles são os únicos que, em vários lugares, dominam
as letras e, por isso mesmo, estão não apenas socialmente, mas culturalmente
afastados daquelas pessoas e atividades culturais que chamarão de populares
ou folclóricas, que podem assim ser objeto de um olhar etnográfico, de um

261. CAMELLO, C. Nery. Op. cit., p. 183- 184. Ele cita ainda, na página 184, uma carta em que
Um cliente do dr. Luiz Fabrício de Oliveira, da cidade de Castro Alves, na Bahia, chamado Libório
de Souza, após descrever todos os sintomas que estava sentindo, pergunta ao médico: "Pesso a
vosmicê mandar disê si o mal é de gravidc-l:
olhar de curiosidade e estranhamente. Normalmente são descendentes
das elites sociais, que cedo foram para as cidades e tiveram uma educação
regular, o que os faz subjetivamente e em termos culturais bastante diferentes
daqueles que nunca saíram da roça ou da pequena cidade e nunca tiveraiU
a oportunidade de frequentar os bancos escolares. No discurso do folclore 0
privilégio se torna distinção e identidade cultural. Além de suas atividades
os obrigarem a estar em contato permanente com a população, esse contato
torna visíveis e busca-se tornar dizíveis as diferenças de códigos culturais,
de costumes, de formas de viver, de crenças e de valores que separam,
diferenciam e distinguem esses letrados daqueles que nomearão de povo.
No discurso em que folclorizam essa população e suas matérias e formas de
expressão escavam a própria distinção, a própria identidade e estabelecem
hierarquias entre o modo como vivem, pensam e produzem cultura e o modo
como vivem, pensam e produzem expressões culturais aqueles nomeados de
populares.
Exemplo deste processo se pode encontrar em estudo dedicado por
Luís da Câmara Cascudo ao catimbó, enfeixado no livro Meleagro. 262 Apesar
de, como sempre, legitimar seu trabalho alegando ter testemunhado de
perto as práticas que descreve, ter frequentado as sessões e convivido com
os principais mestres do ofício da cidade do Natal, recolhendo de viva voz
testemunhos, narrativas e explicações sobre estas práticas religiosas, que
procurou transcrever no livro tal como ouviu dos depoentes; apesar de
alegar ter recebido em casa o mestre Germano, João Germano das Neves,
o devoto de Xaramundi, tão bem vestido que ninguém o identificara como
catimbozeiro;263 apesar de ter convivido, portanto, com os homens e mulheres
do povo que se dedicavam a estas atividades religiosas, com os quais teria
conseguido em "momentos de confiança" muitas das informações, inclusive
secretas que fazia constar do livro, parece haver a participação decisiva de
outro personagem na coleta do material e na criação de condições para que a
pesquisa do estudioso do folclore se fizesse: a polícia. É preciso lembrar que
o próprio pai de Câmara Cascudo, Francisco Cascudo, foi chefe de polícia
na cidade e que, ainda na adolescência, Cascudinho costumava acompanhar
as rondas noturnas da guarnição policial, como repórter do jornal paterno
A Imprensa. Esses laços de Cascudo com a instituição policial, empenhada

262. CASCUDO, Luís da Câmara. lY!eleagro: pesquisa do Catimbó e notas de magia branca 110
Brasil. 2. ed. Rio de janeiro: Agir, 1978.
263. ldem, p. 55.
desde os anos 1920 na repressão às atividades religiosas das camadas
populares, notadamente às religiões afro-brasileiras, em todas as suas
variantes, todas identificadas como atividades criminosas, embustes voltados
para enganar a população, quando não consideradas práticas diabólicas,
como sendo superstições grosseiras, ou como no dizer do prefaciador da
obra de Cascudo, o médico Antônio da Silva Mello, um acervo de ignorância
e exploração, entravando o progresso da civilização,264 serão fundamentais
para que tivesse acesso a dadas informações e a dadas matérias e formas de
expressão, pertencentes a este universo religioso. A fabricação da cultura
nordestina contará, portanto, com a colaboração,< digamos "etnográfica e
folclórica", de soldados e delegados de polícia, que se tornarão colaboradores
do mestre do folclore nacional. O mesmo Cascudo que diz que "sua credencial
era defender na Polícia a liberdade dos colaboradores, como intermediários
miraculosos': 265 usando sua condição de advogado para atuar na defesa de
alguns destes mestres catimbozeiros, quando presos pela polícia, angariando
com isto, certamente, a simpatia, a gratidão, a amizade e possivelmente
valiosas informações por parte destes para seus estudos, conseguirá junto
ao Departamento de Segurança Pública "os despojos livrescos que iam ser
queimados", fruto de "uma batida minuciosa nos arraiais catimbozeiros':266
Além de utilizar procedimentos também comuns na fabricação do
folclore e da cultura popular, utilizados por muitos outros folcloristas, de
reunir uma considerável coleção de rezas fortes através de cópias, dádivas
ou através da compra, como ele mesmo dirá através de "confidências com
sigilo e cem cruzeiros"267, o livro Meleagro é amparado por uma série de
informações policiais, algumas delas extraídas de reportagens publicadas na
imprensa local ou de processos crime, mas a maioria conseguida diretamente
junto àquela instituição pelo pesquisador do folclore nordestino. A própria
imagem de uma mestra do catimbó, a mestra Iracema, foi conseguida por
Cascudo junto à polícia, conforme nota de rodapé constante do livro.268 O
livro traz, para ilustrar quais instmmentos eram utilizados e que objetos
compunham uma mesa de trabalhos do catimbó, fotos que foram tiradas
pela polícia ou na delegacia. Há ainda fotos e a reprodução de uma
reportagem do jornal Diário de Natal, de 15 de outubro de 1947, do qual

264. MELLO, Antônio da Sil va. Prefácio. In: CASCUDO, Luís da Câmara. Me.lcagro, p. 12.
265. CASC UDO, Luís da Câmara. Meleagro, p. 16.
266. Idem, p. 149.
267. Idem, p. 17
268. ldem, p. 170- 17 1.
Câmara Cascudo era colunista à época, que trata de "uma demonstração
especial" de "ritos afro-brasileiros': feita perante autoridades, fotógrafos e
representantes da imprensa, no prédio do Departamento de Segurança
Pública pelos catimbozeiros Manuel Pereira da Silva e sua companheira
Francisca Pereira de Lima. "A sessão [que] teve início às 16 horas quando
ambos foram trazidos à sala da Delegacia de Ordem Social"269 parece ser
uma contribuição da polícia para o conhecimento do folclore, pois tal sessão
artificial e adrede preparada, é fartamente fotografada, com o subdelegado
da Praia do Meio, Pedro Vilela e um soldado fazendo questão de posar em
uma das fotos junto aos catimbozeiros e a uma mesa preparada para o ritual
do catimbó. Essas fotos, não se sabe se através da própria polícia ou através
do jornal, chegam às mãos do grande estudioso do folclore e da cultura
popular, que as utiliza como precioso material etnográfico na composição
de sua obra sobre a magia branca no Brasil.270 Portanto, o Estado, através de
atividades e órgãos de repressão a dadas manifestações culturais populares,
acaba por produzir um saber sobre elas, realizando atividades de registro
que inscreverão estas práticas em várias formas de discurso que serão
posteriormente transformadas em fon tes pelos folcloristas e estudiosos
do popular, para a escrita e ilustração de seus trabalhos. Estas atividades
repressivas do Estado, vão, portanto, alimentar a vontade de saber e de poder,
não só de agentes da administração pública, dos órgãos de controle político
e social, como da imprensa e da intelectualidade acerca de certas zonas
consideradas de sombra, acerca de certos mistérios e segredos que eram
apanágios das atividades culturais das camadas populares, contribuindo
para a invenção e institucionalização do chamado fo lclore e da dita cultura
popular.

269. CASCUDO, Luís da Câmara. Me/eagro, p. 203.


270. Ver as fotos encartadas entre as páginas 52 e 53 e entre as páginas 202 e 203; a reportageJll
do jornal é transcrita como adendo ao livro. CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro, p. 199-205.
Capítulo 6

Os agentes populares

-.

Não é meu propósito, neste trabalho, negar a existência de uma vasta


e variada produção semiótica, realizada cotidianamente pelas camadas
trabalhadoras da sociedade nordestina ou de qualquer sociedade. Não
advogo que só as elites sociais produzem cultura. Antropologicamente
falando, isto seria um absurdo, pois o humano se define por sua capacidade
de engendrar cultura. O meu propósito é negar a existência de um objeto
dado, de um objeto óbvio, com existência em si mesmo, chamado de folclore
ou de cultura popular, que é tomado pelos historiadores como sendo uma
realidade em si mesma. O meu propósito é advogar que folclore, cultura
popular e cultura nordestina são conceitos, que recortam, promovem
escolhas, dão visibilidade e produzem o esquecimento de parte da vasta
produção de matérias e formas de expressão feita pelos agentes das camadas
populares. É pôr em questão afirmações clichês e tautológicas que advogam
que é popular porque veio do povo, sem sequer definir de que povo se está
falando, ou dar por certo que é nordestino, naturalizando tanto o recorte
regional, como se sempre tivesse existido, como a relação entre folclore e
Nordeste, cultura popular e Nordeste, como se o cordel, por exemplo, fosse
só produzido e consumido nessa região, tornando-o de imediato um dado
de identidade cultural, como podemos ver, por exemplo, nesse trecho da
História do Brasil em cordel de Mark Curran:

Trata-se, então, de crônica popular [o cordel] porque expressa a cosmovisão


das massas de origem nordestina e as raizes do Nordeste na linguagem do
povo. ! história popular porque relata os eventos que fizeram a história a
partir de uma perspectiva popular. Seus poetas são do povo e o representalll
nos seus versos. Nesse sentido, o cordel pode ser considerado o documento
popular mais completo do Nordeste brasileiro.2''

O que é fundamental, o que tento fazer aqui, no rastro do que formulam


Jacques Revel, Michel de Certeau e Dominique Julia 272, é entender as relações
estratégicas, as lutas, os afrontamentos, as alianças, as adesões e as subordinações
que estão na base da produção desses conceitos e das identidades culturais que
eles constituem. É importante pensar, pois, não só o papel desempenhado pelas
elites na construção e veiculação da ideia de folclore nordestino ou de cultura
nordestina, mas também que papel os atores sociais dos meios populares
tiveram neste processo. Tomando o devido cuidado para não considerar os
meios populares como caracterizados pela homogeneidade, pela unidade,
pela similitude, conforme faz crer o uso da noção de povo ou de popular. Ao
analisarmos a participação que dados agentes populares tiveram na formulação
e veiculação da noção de cultura nordestina, fica patente a existência de uma
diferenciação interna às próprias camadas populares, atravessadas também
por diferenças e hierarquias que, da mesma forma que ocorriam com as elites
sociais, cujas tensões, hierarquias e afrontamentos internos se constituíram em
condicionantes do processo de engendramento dessa noção, serão definidoras
do papel que cada parcela desempenha nesse processo.
O que nos propomos a fazer, pois, neste capítulo, é abordar de forma
sumária o papel desempenhado por dados agentes dos meios populares
no processo de emergência, circulação e cristalização das mitologias que
constituiu e constitui o que entendemos, ainda hoje, como sendo a cultura
nordestina. O que faremos é tentar tornar visível o conjunto de posições
assumidas por estes agentes populares nesse processo e como essas posições
estão em permanente mudança e sempre em relação com as posições
assumidas pelos agentes das elites letradas. Mesmo no interior dos grupos
populares há aqueles que ocupam posições mais privilegiadas, que são mais
fortes, que podem manter com as elites e com os demais grupos populares
uma relação diferenciada, de maior destaque e há aqueles grupos que se
encontram em posição de fraqueza, de marginalidade, de ilegitimidade,

271. CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: Ed usp, 1998, p. 19-20. Ver
também: DltGUES JÚ NIOR, Man uel et ai. Uteratura popular em verso. São Paulo: Ed usp, 1986.
272. Ver: REVEL, jacques. Acerca do "popular': In: REVEL, Jacques; CERTEAU, Michel de e
JULIA, Dominique. A invençtío da sociedade. Rio de janeiro: Difel, 1990, p. 45-47 e CERTEAÚ,
Michel de. A beleza do morto. In: A cultura no pluml. Campinas: Papirus, 1995, p. 55-85.
de ilegalidade, que terão dificuldades maiores em se fazerem ouvir ou
ser levados em conta nesse processo, mas que nem por isso deixam de
nele intervir. O que se tem que levar, pois, em conta, é o campo cultural
em sua totalidade, procurando romper com o dualismo que noções como
cultura popular e cultura erudita terminam por instituir. Pensar o campo
cultural como atravessado por múltiplas relações de força, por múltiplas
estratégias, que implica pensar tanto o afrontamento, o conflito, a resistência,
como a adesão, a subordinação, a aquiescência, a negociação. Pensá-
lo como constituído pela circulação, pelo contato, pela negociação, pela
interpenetração, pela imbricação de diferentes saberes, de diferentes práticas
e distintas formulações discursivas, semióticas, simbólicas. É preciso evitar
transpor mecanicamente para o campo da cultura, da produção cultural,
as segmentações localizadas no campo econômico e social, embora elas
não deixem de marcar o que aí se passa. Deixar de pensar o campo cultural
a partir das metáforas do alto e do baixo, para pensá-lo como estando
atravessado por fluxos multivetoríais, multidirecionais.

A) As CIDADES POPULARES

Cidade que vai ter um papel decisivo na elaboração do discurso


regionalista nordestino, na própria invenção da ideia de Nordeste, pois aí
nascerá o movimento Regionalista e Tradicionalista e será fundado o Centro
Regionalista, Recife também será importante para a emergência do conceito
de cultura nordestina. Recife era o maior centro urbano de toda a área que
será inicialmente nomeada de Nordeste, que incluía os Estados de Alagoas,
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Recife era, já no início
do século passado, um importante centro comercial e industrial, porto para
onde confluía grande parte da produção dessa área que se destinava ao
mercado internacional ou nacional. Para a capital pernambucana também
confluía grande parte dos filhos das elites políticas e sociais dessa área, onde
iam cursar a Faculdade de Direito ou mesmo fazer o curso preparatório para
o ingresso nos cursos superiores, circunstância que permitia o conhecimento
pessoal e a troca de ideias entre grande parte daqueles bacharéis que
iriam, nos anos seguintes, ocupar posições de mando em seus Estados e/
ou se destacar no mundo das letras, o que favoreceu a emergência de uma
consciência e uma solidariedade regional entre as elites desses Estados, que
já possuíam, muitas vezes, raízes familiares comuns.
Mas o que nos interessa aqui, particularmente, é abordar outra
face dessa cidade, que será fundamental para que os letrados dessas elites
realizem a empresa de formular uma identidade regional, que terá na cultura
e, particularmente, em dadas manifestações culturais das camadas populares,
um elemento que, assim como a ocorrência das secas periódicas, será tomado
como distintivo e definidor do ser da região. O Recife era uma cidade que
crescia rapidamente com o fim do cativeiro e a crescente crise que atingia a
produção açucareira, abalada pela concorrência da produção do açúcar de
beterraba na Europa, representada pelo declínio da produção dos engenhos
banguês e a concentração da produção nas usinas. A migração traz do campo
um volume crescente de pessoas, notadamente ex-escravos e descendentes,
trabalhadores atingidos pelo que se chamava, na época, de crise da lavoura.
"Entre o período de 1872 a 1920, a população da cidade mais que duplicou,
passando de um total de 116.671 para 238.843 habitantes':273 A cidade passa
a ser moradia e destino de um número crescente de pessoas, a maioria
em situação de extrema pobreza, que afluem, notadamente, quando das
estiagens, vindas não apenas de seus arredores, mas também do longínquo
sertão e dos Estados vizinhos, dando origem a um diversificado universo
popular, diverso não apenas quanto à origem geográfica, composição étnica,
mas também quanto às informações culturais que trazem consigo. Muitos
vêm em busca de trabalho no comércio e na indústria, que se dinamizam,
mas também exercem inúmeras atividades que hoje chamaríamos de
informais: desde o comércio ambulante até a cata de caranguejos, aratus
e mariscos pelos mangues que cercavam a cidade, onde instalam suas
moradias precárias que ficam conhecidas como mocambos. Eles se tornam
presenças incontornáveis pelas ruas da cidade. Os letrados e bacharéis que
chegam ao Recife não poderão deixar de se encontrar com o "povo': em suas
mais variadas faces e com as suas diversificadas manifestações culturais. Se
Recife, desde o século XIX, já chamava a atenção de quem a visitava pela
presença marcante dos negros e pardos trabalhando ou na pândega por suas
ruas, se os viajantes já se interessavam pelo exotismo de suas crenças, de
seus rituais, de suas vestimentas, de seus costumes, de suas festas e pelo que
já nomeavam de suas tradições, no início do século xx, essa variedade e
diversidade dos populares, agora ampliada, e de suas práticas não passarão
despercebidas para os letrados que nela viviam ou que a visitavam.

273. Ver: ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 312.
Estes grupos populares também estavam participando da construção
da cidade, de cidades outras diferentes daquelas sonhadas pelas elites,
planejada pelos urbanistas, projetada por higienistas, médicos, juristas,
pedagogos, construída pelos poderes públicos. Cidades dentro de uma
cidade que passam a interessar ao letrado como objeto de pesquisa e de
intervenção, que amedrontam pelo desconhecido, que fascinam pelo exótico
e pelo diferente, que atraem e causam repulsa, mas que não permitem mais
a indiferença. Importantes trabalhos acadêmicos que abordam a cidade do
Recife, nesse momento, são unânimes em referir essa maior visibilidade
das camadas populares e de suas manifestações culturais. Elas passam a ser
motivo de enquete, de descrição, de relato, de documentação, de testemunho
e de frequentação por parte de agentes vindos do meio das elites. Descobre-
se a Recife popular, suas festas e seus agentes culturais, até porque, dada
a crise econômica, muitas das manifestações culturais de cunho elitista
têm dificuldade em sobreviver, como é o caso do carnaval das máscaras,
carnaval civilizado copiado de Veneza ou dos clubes de alegorias e críticas,
que exigiam investimentos com que um comércio e um Estado com finanças
combalidas não estavam dispostos a arcar. 274
Com o crescimento e complexização da população também se
complexizam as trocas culturais. As tensões e conflitos e, ao mesmo tempo,
as aproximações e misturas culturais se ampliam. Rita de Cássia Barbosa
de Araújo diz que entre 1888 e 1914 o número de clubes carnavalescos na
cidade cresceu significativamente, especialmente os pedestres, aqueles que
reuniam os estratos mais pobres da população e que deram origem ao que
viria a ser o frevo, tanto como sonoridade, quanto como coreografia.275
Muitos desses clubes traziam em seu nome a referência explícita à categoria
de trabalhadores que eles congregavam e representavam, sendo, portanto,
um importante elemento de distinção e formulação de uma identidade
para eles, no interior da grande massa da população que habitava a cidade:
caiadores, lenhadores, vassourinhas, ferreiros, charuteiros, espanadores,
abanadores, vasculhadores, empalhadores, ciscadores, carpinteiros,
marceneiros, sapateiros, engomadeiras, quitandeiras, clube das pás, bloco
das flores, talhadores etc.276 As sedes desses clubes se constituíam em locais
de sociabilidade, convivência, solidariedade e conflito durante todo o ano,

274. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 298-302.


275. Idem, p. 21.
276. Idem, p. 348.
não apenas no carnaval, mesmo quando ocupavam a casa dos próprios
fundadores. Eles ensaiavam seus cantos e manobras não apenas em suas
sedes, mas pelas ruas da cidade, notadamente naquelas próximas onde
moravam seus componentes, atraindo a atenção e a adesão de um maior
número de pessoas, inclusive de condições sociais diversas. Havia aqueles
que reuniam pessoas de um mesmo local de trabalho, uma mesma fábrica
ou casa comercial, outros eram compostos por grupos familiares, parentes,
amigos e vizinhos. Os clubes eram sociedades civis, que se registravam
legalmente, obedecendo a estatutos submetidos à aprovação da Questura
Policial.m
Se observarmos a forma de organização interna desses grupos e as
atividades que realizavam, as próprias formas com que se apresentavam,
torna-se difícil visualizar uma separação radical entre a cultura popular
e a cultura de elite, entre a cultura das classes dominantes e a cultura das
classes dominadas como quer, por exemplo, a antropóloga pernambucana
Rita de Cássia Barbosa de Araújo.m As próprias informações trazidas pelo
seu relevante trabalho nos permitem pôr em questão essas dicotomias, para
além do próprio questionamento ao fato de que toma a cultura popular como
uma realidade em si mesma e não como um conceito estranho ao universo
cultural de que está tratando e que tem uma historicidade que precisa ser
levada em conta. Os clubes populares, pela descrição que deles chegou
até nós, estavam longe de ser compostos por quaisquer pessoas do povo.
Eles se apresentavam de forma muito distinta dos que ficarã o conhecidos
como blocos de sujos, troças ou daquele folião pobre, que sai pelas ruas
com "máscaras de meias, casaca de estopa, chocalho na cintura e chicote na
destra': 279 Eles lançaram mão de formas de organização interna inspiradas
nas organizações militares, uma das poucas instituições do Estado onde
elementos das camadas populares eram admitidos: batalhões, guarnições,

277. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 338-341.


278. Ver, por exempl o, a sua definição do termo wltum: "O termo cultura é aqui utilizado
para designar o conjunto de crenças, valores, tradições, práticas, visões de mundo, atitudes e
comportamen tos socialmente partilhados por indivíduos de urna mesma classe e num mesmo
período histórico. Assim, a cultura de elite ou cultura dominante (o que não é nunca a mesma
coisa, pois para ser dominante a cultura não pode ser só da elite) é vista como a cultura das classes
dominantes (reduz a cultu ra dominante à cultu ra da classe dominante, outro eq uívoco); e a cultura
popular corresponde à cultura das classes dominadas (a cultura popular existe como un idade e
realidade em si, além de ser das classes dominadas)': ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cil.,
p. 37.
279. ldcm, p. 309.
companhias, brigadas, comandantes, generais em chefe, capitães, majores,
tenentes, alferes tornam-se divisões e postos hierárquicos também presentes
nas organizações carnavalescas. Muitos músicos populares aprenderam nas
bandas militares a tocar um instrumento. Os capoeiras costumavam vir à
frente das bandas militares, que ficaram famosas no Recife do início do século
xx. não só por seu desempenho musical e pelo seu garbo, mas também pelas
lutas e enfrentamentos que provocavam. O uso de balizas à frente do desfile
das agremiações também tem inspiração nos desfiles militares. A marcha
carnavalesca, mais tarde batizada de frevo, inspira-se nas marchas militares.
O desfile feito em formato de préstito, com o uso de estandartes, insígnias e
símbolos, remete não só aos cortejos militares, como às procissões e cortejos
religiosos, de que participavam as antigas corporações de ofício, que eram
identificadas no desfile por estes símbolos corporativos. A imitação, o
pastiche, a ironia, a caricatura dos procedimentos e instituições, das praticas
e símbolos das atividades semióticas das elites se misturam à reverência, à
admiração, ao respeito, à busca de reconhecimento e legitimidade para suas
atividades culturais por parte dos grupos populares, notadamente por parte
de suas lideranças, dos agentes que ocupam lugar de destaque nas hierarquias
que também se fazem presentes no mundo popular. Ao contrário da visão
de matriz romântica de um povo exótico e bizarro ou de um povo rebelde e
rebelado, temos de pensar que esses populares também querem fazer parte
da ordem social, não é cômodo viver na marginalidade e na invisibilidade.
Estes agentes das atividades culturais populares buscam também se inserir
na ordem, eles não apenas resistem ao processo de mudança social em curso,
também negociam a sua admissão na nova ordem capitalista e burguesa que
se instala. Não há nada de estranho que, como diz Rita de Cássia Araújo,
estes segmentos populares tenham "absorvido a ordem social dominante':
se isto não tivesse ocorrido essa ordem social não seria dominante. Ela era
dominante justamente por ter sido absorvida por todos os grupos sociais,
cada um a sua maneira, com suas particularidades. Imaginar a possibilidade
de alguém viver fora da ordem social dominante é pensar a possibilidade
de se viver fora do social. O erro é fazer a associação mecânica entre ordem
social dominante e classe dominante. A ordem social dominante inclui
todos os grupos e classes sociais, que partilham de valores, costumes,
formas de pensar, de sentir, de explicar o mundo, sem as quais o social seria
impossível. 280

280. ARAÚJO, Rita de Cás~ia Barbosa de. Op. cit., p. 343.


Neste capítulo interessa-me ver de perto este agente das manifestações
culturais das camadas trabalhadoras, dos pobres e analfabetos que, ocupando
um lugar de destaque, um posto de comando nas instituições e organizações
culturais populares, por algum atributo que o destaca, o capacita e o convoca
a ser um mediador, um tradutor, entre seu universo cultural e os demais,
notadamente, o universo da cultura letrada e das elites sociais. Aquele homem
pobre, preto, mas que teve acesso numa organização militar ao aprendizado
de como organizar uma instituição, que aprendeu a tocar um instrumento,
que graças ao apadrinhamento de um poderoso, do seu padrinho, do seu
patrão ou mesmo de um religioso ou de uma instituição religiosa aprendeu
as primeiras letras, teve acesso à leitura ou que por ocupar uma posição
de respeito e destaque na confraria, na corporação, no sindicato ou no
culto religioso, de matriz africana ou europeia, par tilha do respeito e exerce
liderança entre os de sua igualha e pode se apresentar junto às autoridades, às
lideranças políticas, inclusive aos letrados entusiastas das atividades culturais
dos pobres como um representante do que esses letrados vão chamar de
folclore ou de cu ltura popular. Se podemos considerar os folcloristas e
interessados pelo que chamarão de cultura popular de mediadores culturais
que vêm das elites letradas e participam ativamente da fabricação da cultura
nordestina, eles o fazem com a colaboração espontânea ou não, consciente ou
não, desses mediadores populares. São estes líderes populares que convocam,
para serem protetores, financiadores e, inclusive, figurarem como figuras
de destaque, de honra e de comando na hierarquia de suas agremiações,
comerciantes, industriais, chefes políticos, letrados, chefes militares e até
chefes de polícia. Nestas relações, como em todas as relações humanas, estão
inscritas várias estratégias e investidas várias expectativas, de parte a parte.
O industrial que financia as atividades de uma agremiação popular não
apenas quer ganhar a simpatia de seus trabalhadores, quer evitar que façam
a greve ou que lhe exijam pagar melhores salários, mas ele também pode
gostar sinceramente de carnaval, e tentar torná-lo a festa civilizada com que
sonha e almeja. O líder popular não apenas quer o dinheiro para as fantasias
e a cachaça, mas quer reafirmar seu poder junto aos seus iguais e, quem
sabe, conquistar para si um melhor lugar na fábrica ou na loja, quer receber
benesses e ter proximidade e reconhecimento, quer ser uma pessoa para
o chefe político ou para o cabo eleitoral que acompanha, procura, então,
entender quais são e atender as expectativas de seu mecenas, ao organizar
o desfile da agremiação. Entender e atender às expectativas do outro e, ao
mesmo tempo, procurar conquistar o que aspira e fazer as coisas como as
concebe é a arte cotidiana que este mediador cultural tem que desempenhar.
Aí não há inocentes ou vítimas, nem heróis ou vilões, aí ocorrem os jogos que
constituem a vida em sociedade, aí se jogam lances que poderão vir atingir a
meta ou não. 281 Essas relações são desiguais, são hierárquicas, uns dispõem de
maior capital econômico, político e cultural para nelas investir, mas há nelas,
também, o investimento de astúcias diversas, a presença sempre possível do
acaso, do inesperado, que fazem com que, como em todo jogo, o resultado
nunca esteja previamente decidido. No jogo, como na guerra, cada um lança
mão das armas e habilidades que tem, sendo o resultado final definido pelo
conjunto de lances ou de batalhas que constituíram aquele evento.
Numa ordem social marcada pelo paternalismo, pelas relações ainda
bastante pessoalizadas e personificadas, embora esta ordem estivesse em
declínio, os contatos face a face e a convivência entre pessoas de distintos
grupos sociais favoreciam o partilhar de formas e matérias de expressão
culturais, a transversalidade dos fluxos culturais, tornando imprópria
uma abordagem dessa história cultural em termos dicotômicos e duais.
É significativo que no interior das agremiações populares também se
estabelecessem relações de apadrinhamento, de compadrio, de troca de
favores, de nepotismo, mesmo tipo de relações que ocorriam entre os setores
populares e as elites, sejam elas de natureza econômica, política ou cultural.
Os clubes populares costumavam ser conduzidos por pequenos grupos
que se perpetuavam e se revezavam nos cargos diretivos. Os fundadores ou
a velha guarda costumavam monopolizar os cargos de direção, transmitindo
esse poder hereditariamente. Alguns grupos se impunham pela força, pela
capacidade de aliança ou pelo carisma, mesmos atributos que terão de usar
nas relações com outras agremiações, grupos populares ou também com
os demais grupos que compunham a sociedade. Estou abordando mais
longamente essas instituições carnavalescas porque, além de termos maiores
informações sobre elas na documentação e na bibliografia, elas se constituem
numa espécie de microcosmo onde podemos observar as relações e as
posições que se disputavam no âmbito do campo cultural, mas também que
eram constitutivas da própria ordem social, nesse momento histórico. Rita
de Cássia Araújo chama atenção, por exemplo, para a figura do "Paizinho"
ou do "Pai': uma figura carismática, normalmente um dos fundadores do

281. Ver: ALBUQUERQUE JúNIO R, Durval Muniz de. "A História em jogo: a atuação de
Michel Foucault no cam po da historiografia". In: História: a arte de inventar o passado. Bauru:
Eousc, 2007, p. 165- 182.
grupo, que contava com respeito e prestígio no seio da agremiação e que
passava a representá-la e a encarná-la nas relações com outras instituições e
com as autoridades e letrados. Aliás, a instituição familiar - como uma das
primeiras e muitas vezes única instituição social a que terão acesso os pobres,
mesmo que a maioria constituída informalmente -, servirá de modelo de
organização para várias outras instituições populares. A centralidade que
desfrutará a família, muitas vezes ainda pensada como família extensa,
entre as comunidades afrodescendentes, marcará todas as suas instituições e
expressões culturais. Esse "Paizinho': assim como as mães e filhas de santo,
padrinhos e madrinhas que serão presenças constantes nas manifestações
de caráter popular, terão o reconhecimento, em muitos casos, para além de
seu grupo social e serão acionados em várias ocasiões como mediadores
entre aqueles que representam e as autoridades constituídas, tornando-se
inclusive promotores de dadas medidas conformadoras de seus pares de
classe e das agremiações às leis e medidas disciplinadoras partidas do Estado
ou de outras instituições sociais como a Igreja.282
Como já afirmei, estas instituições populares també1n servem para
marcar e estabelecer distinções e hierarquias no interior das próprias
camadas populares, principalmente aquela que atravessa e se torna cada
vez mais importante numa sociedade burguesa que se afirmava, a distinção
entre aqueles que pertencem ao universo do trabalho e aqueles que dele estão
ausentes, seja por contingência, seja por opção, distinção que aparecerá com
certo tom pejorativo inclusive na obra do pensador que deu aos trabalhadores
e ao trabalho centralidade na história e na vida social, ao distinguir entre
o proletariado, do qual se esperava inclusive o parteja1nento do futuro da
humanidade através da revolução, e o lumpemproletari ado, de quem nada
se esperava ou de quem só se podia esperar ser massa de manobra nas mãos
da reação política.283 Os clubes populares do Recife mantinham como parte
de sua estrutura organizativa comissões de sindicância que investigavam a
vida pregressa daqueles que se propunham a ingressar nas agremiações.w
Tratava-se de garantir, inclusive perante as autoridades policiais, que
do clube só faziam parte trabalhadores, homens de bem, excluindo os
desordeiros, os meliantes, os vadios, os vagabundos, as prostitutas, aqueles

282. ARAÚjO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. dt., p. 3-!3-344.


283. Referência ao pcnsaménto de Karl i\larx. Ver, por .:xcmplo, .\IARX, Karl. O Dezoito de
Brumário de Louis Ronaparte. S;io Paulo: Centauro. 2010.
284. ARAúJO, Rita de Cássia Rarbos.t dc. Op. cit., p. 3-t-t.
que não possuíam nenhuma referência a apresentar. Isto demo nstra que a
emergência da ideia de folclore esteve acompanhada por um processo de
disciplinarizaçào, institucionalização e, portanto, de ordenação e controle
das manifestações culturais das camadas populares; controle exercido não
apenas por instituições externas ao mundo popular. Os mediadores culturais
dos meios populares, os agentes que negociam saberes, também são, na
maioria das vezes, os agentes que medeiam poderes, que negociam lugares
de poder e que o fazem por já os ocuparem nas instituições populares. O
combate às práticas violentas e consideradas atentatórias à moral e aos bons
costumes, às atividades consideradas inestéticas e irtcivilizadas e, inclusive,
àquelas consideradas perigosas politicarnente contará, na maioria das vezes,
com a colaboração das lideranças populares, sem as quais seria muito mais
difícil realizá-lo. Nos anos 1930, por exemplo, as comissões de sindicância
das agremiações populares serão "aconselhadas" e intimadas a fecharem
as portas das agremiações para os "elementos comunistas': sob pena de
perderem o acesso a subvenções públicas e privadas e, inclusive, virem a ser
proibidas de funcionar. A institucio nalização é, assim, uma arma de dois
gumes, pois, ao mesmo tempo em que fortalece e d<1 presença e visibilidade
a setores das camadas populares, principalmente às camadas trabalhadoras,
permitindo-lhes negociar e reivindicar com maior possibilidade de sucesso
dadas concessões por parte do Estado e de outros setores da sociedade,
significa também a possibilidade de controle e de disciplinarização desses
setores sociais. !s>
Esses clubes carnavalescos permaneciam ativos o ano inteiro, sendo
lugares de sociabilidade e encontro para os populares em dias cívicos,
feriados religiosos, promovendo festas, bailes, piqueniques, saraus, festas de
aniversário dos sócios, comparecendo a procissões, ajudando nas festas das
capelas e nas novenas, constituindo -se também em importante instituição
de assistência aos desvalidos e às viúvas e promovendo, com aparato, as
cerimônias fúnebres de seus associados. 2b6 Essas práticas,- que também eram
semelhantes àquelas realizadas nos clubes e instituições que congregavam

285. Durante muito tempo os es tu dos ~ob re a dassc trabalh adora também se detiwram em suas
instituiçôcs, desconhecendo que elas congregavnm apenas parcela, at~ <:c.:r to ponto privilegiada,
entre as camadas populares. Grande parte do mundo popular só podt:r<í ser entrevista quando
1Uais recentemente uma história social. interessada, inclusive, na cultura popular, \'asculhar os

Processo~-crimc em que os não institucionali7.ados deixam rastros de suas obscuras existt:ncias,


sendo \'isto~ e dito~ a partir da ótica do reprcssor.
286. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 345-346.
as elites como a Maçonaria e os Rotarys Clubes -, conferiam respeito e
prestígio às agremiações não só entre os pobres, como entre outros setores
da sociedade. Quando se interessam pelas manifestações que denominam
de folclóricas, quando querem participar e testemunhar em loco essas
"coisas do povo': serão normalmente para essas instituições que se dirigirão
os estudiosos do popular. O assistencialismo e o mutualismo, de inspiração
cristã, que também estavam presentes em instituições das elites, eram marcas
dessas instituições populares, e a "segurança" que proporcionavam era um
dos motivos de atração que exerciam sobre seus participantes, principalmente
a garantia de uma morte e de um enterramento condigno. Como vemos, ao
contrário de duas culturas apartadas, temos a partilha de valores, de visões
de mundo, de práticas, apenas adaptadas ao contexto social, econômico e
técnico em que viviam os distintos grupos sociais.287
Porém, como em toda realidade cultural e social, a ambiguidade, 0
convívio de múltiplas ideias, formas de vida e comportamento, a tensão entre
distintos projetos também se fazem presentes neste universo das atividades
culturais populares da cidade do Recife, neste começo de século xx. Ao lado
das ideias e práticas disciplinadoras e moralizadoras, conviviam a violência
e a indisciplina. As festas, e o carnaval especialmente, eram momento da
expressão pública de rivalidades e proporcionavam momentos de encontro
entre desafetos, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista
coletivo. A ocorrência de crimes de morte durante as festas carnavalescas
e envolvendo membros de agremiações não era rara. A própria rivalidade
entre os distintos clubes, que expressavam rivalidades entre profissões,
lugares de moradia, pertencimento a distintos grupos étnicos e sociais;
entre as bandas de música que os acompanhavam e que podiam expressar,
inclusive, a rivalidade entre corporações militares, notadamente entre
a polícia e o Exército, podia explodir em violência aberta. A fabricação
do folclore passará pela tentativa de domar e coibir tais práticas, com a
ajuda de lideranças dessas próprias agremiações. A presença de valentões,
de capoeiras, de brigões, que iam à frente das agremiações, não apenas
preparados para defendê-las de possíveis ataques de agremiações rivais,

287. A própria Rita de Cássia Barbosa de Araújo, que trabalha com uma visão dicotômica
da cultura, ao se referir aos símbolos que essas agremiações portavam, como vassouras, pás,
espanadores, abanadores, vasculhadores, ciscadores, lembra que eles estavam associados a atos
corno varrer, lustras, limpar, assear, o que se associava também ao desejo de moralizar os costumes,
notadamente os costumes políticos, um ideal também presente nos segmentos dominantes,
notadamente na emergente classe média. Ver: ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 352·
mas em atitudes desafiadoras, lançando insultos e, muitas vezes, usando o
corpo para provocar situações de enfrentamento, era comum nesse universo
popular onde a exibição de destreza não apenas na dança, mas no uso de
suas insígnias carnavalescas como armas de ataque e defesa e a exibição
de coragem emergiam como formas de expressão da masculinidade e da
virilidade. O porte de facas, navalhas e punhais era comum. A violência
advinha de um código de valores, também partilhado por amplos
setores das elites, que valorizava a coragem pessoal, que estava associada,
principalmente, ao universo masculino, onde era atributo decisivo para
se manter ou conquistar a honra e o prestígio.288 Aproveitava-se também
a confusão provocada pela passagem das agremiações para se acertarem
contas com desafetos, por vezes desafetos de outros carnavais ou rivais no
trabalho, no mundo do crime e da contravenção ou nas relações sexuais e
afetivas. 289 A fabricação do folclore ou da cultura popular, feita por letrados,
tem que se defrontar e dar significado a práticas culturais em que o corpo
e não a mente exerce uma grande centralidade. O medo dos perigos e, ao
mesmo tempo, a sedução que oferecem esses corpos expostos nas ruas,
suados, gingantes, rebolantes, saltitantes, seminus; a presença da carne, do
sexo, de suas atrações e descaminhos fazem desse universo cultural dos
pobres motivo de curiosidade, de desejo, mas também de medo, repulsa e
vontade de controle. 290
Mas a cidade também era habitada por uma grande massa de populares
que não estavam filiados a nenhuma agremiação, uma massa de homens
e mulheres desenraizados, desgarrados, desterritorializados, chegados há
pouco, vindos do campo, que eram, inclusive, vistos com suspeição por
parte da vizinhança e dos trabalhadores já enraizados e estabelecidos nos
vários recantos da cidade. Eles, muitas vezes, excluídos das agremiações
aprenderão a acompanhá-las de fora, tornando-se parte do arrastão que essas
promoviam. Esses homens e mulheres só terão seus nomes registrados nas
páginas policiais, quando se envolvem em alguma confusão. Eles não serão
agentes da construção da cultura nordestina. Eles não serão procurados por
letrados interessados em suas aventuras, serão os setores organizados e em
Vias de ordenamento e disciplinarização, serão as "lideranças populares"

288. Ver: TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cit., p. 18.


289. ARAÚJO, Rita de C.'ssia Barbosa de. Op. cit., p. 352-356.
290. Ver: ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. "Ágeis, irrequietos e buliçosos: o corpo do
povo e outros corpos na obra de Luís da Câmara Cascudo". In: Nos destinos de fronteira: história,
espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008, p. 494-514.
que participarão desse processo e terão seus nomes registrados nos livros de
folclore e, mais tarde, nas teses e dissertações sobre a cultura popular. Neste
contexto é preciso destacar o próprio protagonismo que as forças policiais
terão, tanto na realização dos festejos populares quanto na sua repressão
e adequação a dados códigos de conduta. Constituídas em sua grande
maioria por homens vindos das camadas populares, notadamente em suas
mais baixas patentes, as forças policiais participarão ativamente dos desfiles
das agremiações, através de suas bandas que tocavam e puxavam os foliões,
através de homens que faziam a segurança durante o desfile, mas também
participando de brigas e enfrentamentos entre os clubes carnavalescos. No
entanto, essas mesmas forças policiais atacavam as agremiações, tentando
impedir que saíssem e obrigando-as a se dispersarem, muitas vezes levadas
apenas pelo desejo de exposição e afirmação em público de sua autoridade
discricionária. 291 Era o pobre espancando o pobre para se mostrar diferente
e superior ao outro, afinal, quando do exercício da função, passavam
a representar a força e a presença do Estado, do governo, passavam a ser
autoridades. Eles serão não apenas agentes das forças policiais, mas agentes
da fabricação do folclore, à medida que impõem limites e estabelecem regras
para que essas manifestações culturais aconteçam, levando a alterações
significativas nas formas e nas práticas dessas manifestações. Rita de Cássia
Araújo, por exemplo, resume algumas das modificações que os clubes
pedestres do Recife promoveram para se conformarem às ordens e aos
desejos emanados da polícia e das autoridades do Estado, buscando atender
às expectativas civilizadoras e modernizadoras também trombeteadas pela
imprensa, onde os letrados, inclusive os inventores da cultura nordestina,
exerciam a missão transformadora da realidade social de que julgavam
estar investidos. 292 Eles tudo farão para não mais serem vistos e ditos como
andrajosos, sujos, repetitivos, sem estética:

291. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 364-370.


292. Um dos traços culturais relevantes da chamada Primeira República é, justamente, a
presença, entre os letrados, da ideia de que portavam uma missão especial, que era a de civilizar e
moralizar o país e sua população, conformar um povo c uma elite política que fizessem jus a uma
sociedade republicana e burguesa, projetando sobre o Brasil padrões que se riam europeus c norte·
americanos. Esse bovarismo das elites letradas brasileiras apareceu co m intensidade na imprensa
diária. Embora totalmente partidarizados, os órgãos de imprensa veicularam essa vontade de
conformação do social a novos códigos. A fabricação do folclore c da cultura nordestina são
capítulos dessa história. Ver: SEVCENKO, Nicolau. Litemt11m como missfio. São Paulo: Brasiliense,
1985.
[... ]Os barrigões e enchimentos traseiros foram substituídos pelos espartilhos.
Os chitões com que se vestiam os sócios dos cordões foram trocados pelo
cetim, pela seda e pela pelúcia. Os triângulos e violões, pelas orquestras.
Requintaram-se os estandartes, sendo adotados novos desenhos e materiais
na sua confecção, mais próximos ao estilo art-noveau. Incorporaram-se novas
figuras ao préstito carnavalesco: o porta-bandeira, geralmente portando uma
indumentária luxuosa, inspirada nos usos e costumes da corte francesa, os
balizas puxantes, os serra-filas etc. Alguns clubes passaram a apresentar carros
de passeios, nos quais seguiam, em posição de destaque e distinguindo-se
dos demais associados, os estandartes, as diretorias e seus familiares. Uns
poucos exibiam figuras alegóricas em carros de aluguel. A partir de 1907, os
estandartes de alguns clubes pedestres eram levados em carros, por meninas
ou gentis senhoritas luxuosamente vestidas, que representavam a República
do Brasil.293

B) Ü S MEDIAD ORES P OPULARES

Não foram apenas os populares, que se congregaram em agremiações e


clubes, que contribuíram para a emergência do conceito de cultura nordestina
e não somente aqueles que passaram a integrar a classe trabalhadora
urbana. Entre aqueles vários desgarrados e migrados para a cidade do
Recife e seu entorno, alguns se destacaram dedicando-se exclusivamente a
atividades semióticas, aproveitando-se do fato excepcional de dominarem
minimamente as letras, de disporem de um capital cultural que os destacava
no interior dos meios populares. Capital cultural que, em alguns raros
casos, se transformou em fonte de acúmulo de ganhos financeiros, que lhes
permitiram viver da exploração de suas habilidades literárias e artísticas,
aproveitando-se do fato de que a cidade também, à medida que crescia,
tornava-se mercado consumidor de produtos culturais. À medida que para
ela convergiam pessoas vindas do interior dos Estados, que partilhavam
traços culturais com esses produtores de artigos culturais, tornam-se seus
consumidores e fregueses, constituem suas audiências, gerando um mercado
Popular de artefatos culturais que, no entanto, opera sob a nostalgia do
Passado, da terra e do rincão deixado, da saudade dos costumes, práticas,
valores e vivências do sertão, alojados no passado. Vivem na cidade grande,

293. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Op. cit., p. 371-372.


dela relativamente se beneficiam, mas a recusam, a estranham, rejeitam
os seus personagens, os seus costumes, os valores que nela circulam. Por
isso, surgirá uma certa solidariedade, uma certa identidade, uma certa
identificação entre esses agentes populares que promovem atividades
culturais, que produzem artefatos semióticos, matérias e formas de expressão
e setores das elites identificados com a ordem social que, em declínio, em
vias de desaparecimento, havia transformado a vida desses homens, os havia
jogado na lama do mangue, nos mocambos ou nos quartos de cortiços, nas
pequenas casas de aluguel. A emergência do capitalismo, contraditoriamente,
inclui alguns deles a um nascente mercado de bens culturais, lhes permite
abandonar relações de trabalho e de poder profundamente injustas e
discricionárias, que ainda operavam no campo, de onde a maioria provém,
mas cria, por outro lado, novas e insuperáveis dificuldades para suas vidas,
como a falta de moradia, o necessário pagamento do aluguel, o pagamento
do transporte público, a aquisição dos meios de subsistência, que os fazem
em suas atividades criticarem a carestia, o cobrador de impostos, os bondes,
as relações de trabalho urbano, etc e, por mais surpreendente que possa
parecer, idilizar e idealizar a vida que deixaram para trás. Por isso serão
eles que, reagindo ao mundo em que vivem, terminam por encontrar certa
solidariedade por parte dos setores das elites que também estavam sendo
afetados pela emergência dessa nova ordem social, e se tornam partícipes
voluntários ou não do processo de fabricação da cultura nordestina. Se esse
processo tem em Recife seu exemplo mais significativo, ele não deixa de
ocorrer em outras capitais e cidades da região Nordeste, recorte regional que
estava emergindo nesse momento.
Estes agentes produtores de manifestações culturais nos meios
populares não costumavam associar o que faziam a um trabalho, a uma
atividade profissional, considerando-as parte das atividades que definem
como integrantes da boêmia. Embora muitos retirassem destas atividades
parte ou a totalidade dos recursos para seu sustento, elas não são definidas
a partir do conceito de trabalho, até porque muitos exerciam atividades ou
profissões paralelas. Estando ligadas, normalmente, ao universo da festa,
da feira, do dia em que excepcionalmente dada parcela da população ia à
cidade, às datas e dias de eventos excepcionais, como casamentos, batizados,
vaquejadas, datas comemorativas, a feriados e dias santos, essas formas e
matérias culturais eram associadas ao que mais tarde receberá a designação
de lazer, e que se chamava, entre os anos 20 e 40 do século passado, de
divertimentos. Outro dado que faz com que os próprios agentes destas
atividades semióticas dos meios populares as considerassem como atividades
boêmias era o fato de, normalmente, estarem associadas ao uso da cachaça
ou de outras bebidas alcoólicas. O jornalista Nery Camello observa que a
atividade do cantador era inseparável do consumo da cachaça, ela seria uma
fonte de inspiração.294 Os próprios repentistas, em seus versos, associavam
sua atividade ao nomadismo e à boêmia, notadamente ao consumo de
aguardente. O poeta Joaquim Mello assim dizia:

Aos vinte anos de idade/ Eu já cantava repente,


Já cantava desafio/ Ao lado do Zé Clemente,
Ponteava na viola/ E já bebia aguardente.

Os tempos foram passando,/ Foi-se embora a mocidade,


E eu vim viver sossegado/ Nesta formosa cidade,
Mas, da vida de boêmio/ Nunca se acaba a saudade. 295

Em seus depoimentos e em suas produções poéticas, esses agentes


da produção cultural dita popular parecem falar de uma mudança trazida
para suas vidas e as atividades que exercem à medida que o tempo passa e
eles saem da juventude para a velhice. Embora muitos desses homens, pois
os homens são a maioria, continuassem, ainda velhos, a realizar, participar
e criar essas expressões culturais, ditas folclóricas pelos letrados, tendiam a
cindir o tempo de suas vidas em dois momentos: um tempo da boêmia, do
nomadismo, da criação e da liberdade, que localizam no passado e do qual
dizem ter saudade, e um tempo do trabalho, da sedentarização na cidade,
das obrigações de família, da perda da liberdade, mas também um tempo de
regeneração de seus vícios, que, contraditoriamente, resultaria na tristeza,
na decadência de sua própria capacidade de criação. O poeta alagoano
Chico Nunes se considerava acabado, desde que deixou, a pedido dos pais,
de beber:

Quem vê Chico Nunes agora/ É capaz de não conhecer


Não pode se parecer/ Com o Chico Nunes de outrora,
Bebia de hora em hora/ E, agora, regenerou-se

294. CAMELLO, C. Nery. Op. cit., p. 49.


295. Idem, p. 38 e 40.
Em tristeza transformou-se/ Por deixar a boêmia,
Digo sem hipocrisia:/- O Chíco Nunes acabou-se. 296

Nesse item vou tratar da trajetória de alguns desses agentes populares


que na condição de indivíduos, desligados de qualquer organização coletiva>
contribuíram para a emergência do que seria a cultura nordestina que,
conforme veremos, embora seja dita e vista como uma cultura de matriz
rural, tal conceito emerge nas cidades e por causa das cidades, assim
como a noção de tradição surge por causa da emergência do que se passa
a charnar de moderno. Eles não são populares comuns, possuem atributos
que os diferenciam e distinguem dos demais, nem que seja naquilo que
chamarão de dom, que considerarão ser natural, ser congênito, dado pelo
próprio Deus. Veremos, no entanto, que esse dom tem uma história, que foi
a trajetória de cada um que possibilitou que desenvolvessem as habilidades
que os vão destacar e distinguir nos meios populares, chamando a atenção
sobre si dos estudiosos do popular, dos curiosos pelas coisas do povo. Serão
eles os primeiros agentes culturais dos meios populares a terem seu nome
registrado por escrito, a participarem do fascinante e excludente mundo da
cultura letrada.
É no Recife que Leandro Gomes de Barros, considerado, posteriormente,
como o primeiro grande cordelista nordestino, imprimia seus folhetos,
em tipografias de jornal ou em tipografias que faziam serviços gráficos
diversos, até a compra de um pequeno prelo manual, que instala em sua
própria residência/9' fundando a Typografia Perseverança, que funciona
entre os anos de 1906 e 1913, imprimindo seus folhetos.m Leandro será uma
referência constante para os estudiosos do folclore e da cultura popular e é até
hoje cultuado como um ícone da cultura nordestina. Mas quem foi Leandro
Gomes de Barros? Qual a sua trajetória? Ele era um popular comum?

296. CAMELO, C. Nery. Op. cit., p. 47.


297. Utilizou-se das tipogra fias: Imprensa Industrial, T ipografia Franccs:~ c do jornal do Recife.
Ver: GRILLO, Ângela. A arte do povo: hist6rins 1w literatura de cordel (1900-1940). Niterói: ulf.
2005 (Tese de doutorado em História), p. 43.
298. Ver: VIANA, Aricvaldo. Lea11dro Gomes de Barros: pioneiro do cordel c i11spirador do Auto
da Compadecida. Disponível na págin:~: lmp://www.museudapessoa.net/ historias/90anosmortelea
ndrogomes.pdf. Acessado em 17 de março de 2011.
O famoso "poeta popular" nasceu na fazenda Melancias, no município
de Pombal, sertão da Paraíba, no ano de 1865.299 Ficou órfão de pai muito
cedo, sendo criado por sua mãe e um tio materno, o padre Vicente Xavier de
Farias, pároco e professor de latim e humanidades na vila de Teixeira, que
provavelmente lhe ensinou as primeiras letras. Submetido a maus tratos pelo
tio, teria fugido de casa ainda adolescente, com a idade entre treze e quinze
anos, e passado muitas privações. A família de sua mãe tinha posses, mas o
pai de Leandro perdera tudo o que tinha. A proteção que recebe de parentes
de sua mãe indicia como os laços de compadrio eram importantes ainda
nessa sociedade e como serão fundamentais para 1Jermitir a ascensão social
isolada de alguns indivíduos dos meios populares. Na vila de Teixeira, onde
passa sua infância, viveram e viviam famosos cantadores como: Agostinho
Nunes da Costa, Ugolino Nunes da Costa, Nicandro Nunes da Costa, todos
de uma mesma famíl ia, Germano Alves de Araújo Leitão (Germano da
Lagoa, por ter nascido numa localidade do município de Teixeira chamada
Lagoa de Dentro), Francisco Romano Caluête (conhecido como Romano
de Teixeira), seu filho Josué Romano e Bernardo Nogueira. Aí viveu até os
quinze anos e foi nesta cidade miticamente considerada o berço da cantoria
popular no Nordeste onde, provavelmente, tomou gosto pela poesia popular
e, mais importante ainda, conheceu um arquivo de formas e criações
poéticas transmitidas pela oralidade ou anotadas em cadernos, que usará,
posteriormente, na criação de seus folhetos de cordel, dando a ele forma
escrita, porque aprendera a escrever, o que era raro entre seus iguais. Seu
dom, portanto, foi na verdade fruto de uma educação formal e informal, do
aprendizado e manejo de formas e matérias de expressão que já circulavam
no meio em que viveu, tendo-as recriado e ressignificado no seu trabalho
como cordelista. Foi provavelmente em Teixeira que conheceu, por exemplo,
a versão oral do que teria sido o encontro entre os poetas Romano de Teixeira
e o escravo cantador Inácio da Catingueira, a quem poderia ter conhecido
pessoalmente, encontro que teria ocorrido na feira da vizinha cidade de
Patos, considerado um dos mais famosos encontros de cantadores para a

299. Francisco das Chagas Batista, que o conheceu na capital paraibana, assim o descreveu:
"Bai.xo, grosso, de olhos claros, o bigodão espesso, cabeça redonda, meio corcovado, risonho,
contador de anedotas, tendo a fala cantada e lenta do nortista, parecia mais fazendeiro que um
poeta, pleno de alegria, de graça c de oportunidade'~ Disponível em: www.algosobre.com.br/
biografias/lcandro -gomes-de-barros.html. Acesso em 7 de março de 2011.
prática do desa:fio. 300 Leandro criou a partir desse e de outros desafios urn
gênero narrativo que depois será considerado pelos folcloristas como urna
das divisões da literatura popular: a peleja. O desafio, que se dava no campo
da oralidade, ao ser transposto para o escrito e para o impresso originará
uma nova modalidade poética que, embora de invenção recente e letrada )

será chamada de tradicional. Tal gênero é fruto de uma criação que se dava
no presente mas que será remetida para o passado, à medida que remaneja e
reutiliza um arquivo de produções poéticas anteriores. Leandro, assim como
outros poetas populares, criou suas próprias pelejas, mas, percebendo que a
pretensa tradicionalidade era um atributo indispensável para que elas fossem
vendidas, atribui-as ao choque de poetas e cantadores antigos, personagens
lendários e míticos, muitos sendo de sua própria criação.
Ele se mudou, em 1880, para Pernambuco, indo viver, inicialmente,
em duas cidades da Zona da Mata, próximas ao Recife, e a ele interligadas
pela estrada de ferro - Vitória de Santo Antão e Jaboatão dos Guararapes -,
onde teria in iciado sua atividade poética no ano de 1889. 301 Em 1908 muda-
se para o Recife, onde vive de escrever versos e vendê-los. Pelo endereço que
fazia imprimir em seus folhetos, para que possíveis interessados na aquisição
deles o procurassem, podemos perceber que o poeta nunca teve moradia
certa, vivendo de aluguel, mudando -se com certa constância, vivendo em
muitas casas e bairros da cidade.302 Ele possivelmente gastava parte do que
ganhava nos folhetos com a boemia, com o consumo da cachaça, das quais
fala em vários de seus folhetos. A trajetória de Leandro Gomes de Barros é
exemplar do processo que estamos analisando, não só por ser o primeiro a
imprimir folhetos em verso, constituindo-se assim em importante mediador
e tradutor entre um universo cultural marcado pela oralidade e o universo
cultural dominado pela escrita, mas também por ter sido o primeiro
produtor de folhetos a viver de seu ofício, significando a emergência de uma
categoria nova, o produtor cultural voltado para as camadas populares e

300. Segundo depoimento do poeta José Alves Sobrinho, na família Nunes da Costa, com a
qual Leandro passou a conviver, na cidade do Teixeira, até as moças faziam versos. Ver: MELO,
Rosilene Alves de. Arcanos do verso: trajetórias da Tipografia São Francisco em Juazeiro do Norte
(1926-1982). Fortaleza, ufc, 2003, p. 65 (Dissertação de Mestrado em História).
301. No folheto A mulher roubada, escrito e publicado em 1907, Leandro data de dezoito anos
a sua atividade de poeta, o que faria do ano de 1889 aquele em que iniciou suas atividades. Ver:
GRILLO, Ângela. Op. cit., p. 43.
302. O endereço que aparece em maior número de se us folhetos é o de uma casa situada na rua
do Alec rim de número 38-E, no bairro Córrego do Jenipapo. Ver: TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op.
cit., p. 26.
que graças à emergência de um mercado de bens culturais consegue viver
desse ofício. Embora critique constantemente em seus folhetos a vida na
cidade, foi ela que possibilitou o surgimento desse tipo de atividade e do
lugar de sujeito de "folheteiro" e, mais tarde, de "cordelista", que vai ocupar,
lugar que nada tem de tradicional, pois é fruto da emergência de novas
atividades proporcionadas pela expansão do consumo de impressos e pela
possibilidade de acesso por agentes dos meios populares à escrita e aos meios
de impressão como: pequenas tipografias, o papel, fotolitos com imagens
etc, que darão origem a esse novo produto: o folheto de feira, nomeado de
cordel por um letrado das elites, Silvio Romero. 30\ A ideia de que os folhetos
eram vendidos pendurados em cordéis (palavra sequer usada pelas camadas
populares) e por isso adquiriram esse nome é uma criação erudita, pois se
baseia na realidade portuguesa. Leandro Gomes de Barros, por exemplo,
vendia seus folhetos espalhando-os sobre uma lona, colocada no chão da
Estação Ferroviária, do Mercado São José ou de uma rua onde se realizava
a feira. 304
Leandro consegue viver da venda de seus folhetos por possuir, além
de talento para a poesia, a capacidade de, a partir de todo um arquivo de
matérias e formas de expressão que já circulavam oralmente nesse espaço
como: os romances de origem europeia, que já haviam sido objeto de estudo
e preocupação dos folcloristas no século XI X, desafios e cantorias, versos
e lendas, criar uma obra própria, individual, em que já aparece, inclusive,
a ideia de autoria, inexistente na produção de que lança mão. Mas, além
disso, Leandro demonstrou sempre uma enorme habilidade comercial. Ele
compunha, mandava imprimir os seus folhetos e ele próprio os vendia.

303. A partir de 1909, com a tipografia montada por João Martins de Athayde, começam a
funcionar as tipografias de propriedade dos poetas populares, mas só a partir de 1918 é que a
impressão de folhetos passa a ser feita exclusivamente nelas. Entre 1904 e 1920 existiam cerca
de vinte tipografias que imprimiam folhetos, a maioria delas situadas em Recife e em cidades da
Paraíba, como a capital, Guarabira e Campina Grande. Ver: TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cit.,
p. 24.
304. Folhcteiros contemporâneos de Leandro também não penduravam os folhetos em cordéis:
Manoel Tomás transportava seus folhetos num saco de pano que levava a tiracolo; João Melquíades
transpor tava os folhetos em malas, no lombo de burros e os expunha dentro delas nas feiras.
Ver: VIANA, Arievaldo. Op. cit. O termo cordel, embora seja invenção dos letrados das elites, no
entanto, já aparece assimilado por Francisco das Chagas Batista, em sua obra de 1929, ao dizer que
Leandro foi o "fundador da literatura poética de cordel do Nordeste': e o cordel também já aparece
associado à ideia de Nordeste, constituindo o que seria um elemento de sua cultura regional. Ver:
BATISTA, Francisco das Chagas. Op. cit., p. 114.
Produziu folhetos numa quantidade e numa velocidade quase industrial: a ele
se atribui a autoria de cerca de seiscentos títulos diferentes, que totalizariam
mais de dez mil edições, num período de vinte e nove anos (1889-1918). Suas
constantes diatribes contra a Great Western e contra a cobrança de impostos
se devem ao fato de ter utilizado com frequência a estrada de ferro, os trens
para transportar os folhetos, que vendia pessoalmente nas várias cidades
em que a linha passava ou os distribuía para uma rede de revendedores,
que conseguiu montar ao longo do percurso do trem. Como transportava
seus folhetos em malas, muitas vezes tinha que pagar a passagem dobrada
para poder transportá-las sobre a cadeira ao lado da sua. Essas são práticas
mercantis que nada possuem de tradicional, ao contrário, podemos dizer
que Leandro foi um inovador, um empreendedor, um pequeno empresário
cultural, tendo montado um verdadeiro circuito comercial, utilizando-se
do mais moderno meio de transporte da época: o trem. Ele é exemplo de
um agente do meio popular que soube aproveitar as oportunidades que
a sociedade mercantil e capitalista em expansão estava abrindo, apesar
de estar causando outras tantas dificuldades para a vida desses homens.
Talvez tenha sido, justamente, a percepção daquilo que fazia como sendo
uma mercadoria, como sendo sua forma de vida, como sendo seu ganha
pão, que o tenha levado a ser cioso da propriedade daquilo que produzia,
introduzindo práticas como a de terminar os folhetos com um acróstico em
que se podia ler o seu nome, a de colocar sua foto no verso do folheto ou de
colocar na terceira ou quarta capas dos folhetos alertas contra a possibilidade
de plágio de suas produções.305 Leandro nos parece, pois, ter assimilado e
representar valores que são fundamentais na sociedade burguesa que se
instaura: a valorização da propriedade, a ideia de indivíduo e de autoria,
a transformação da produção sem iótica em mercadoria, e a vida na cidade
parece ter sido fundamental para isso. Ângela Grillo se refere a algumas

305. Segundo Ruth Terra, isso passa a ocorrer a partir de 1917, quando toma conhecimento
de que seus folhetos são impressos e vendidos sem a sua autorização. Em 1919, após sua morte,
quando seu genro Pedro das Ch::~gas Batista se julga dono de seu e~pólio poético, denuncia à
polícia a prática desses editores, como seria o caso de Francisco Lopes, dono da editora Guajarina,
no Pará, c de Luís da Costa Pinheiro, no Ceará, de publicar folheto~ de Leandro sem a devida
autorização. Ver: TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cif., p. 30. Ângela Grillo encontrou em folhetos
por ele escritos frases de alerta como ess:1s: "Atenção: Previno que todas as obras que não tiverem
o meu nome não são de minha lavra"; "O auctor procederá judicialmente contra quem reproduzir
o presente folheto''; "O editor e proprietário reserva os direitos de reprodução de acordo com o
artigo 649 do Código Civil': em folhetos como: Os defensores de Garaulums c A força do amor. Ver:
GRILLO, Ângela, Op. cit., p. 45.
de suas estratégias comerciais, que sinalizam para a subjetividade de um
homem moderno, para um comerciante astuto e com noção da importância
do que poderíamos chamar de propaganda, na atividade que exercia:

[. .. ] juntar dois temas bastante distintos numa mesma edição a fim de


agradar a vários gostos ao mesmo tempo, como é o caso do folheto que traz a
história de Como Antonio Silvino fez o diabo chocar juntamente com Queixas
amorosas. Algumas vezes, misturava histórias inéditas com outras reprisadas,
numa única brochura que trazia, entre parênteses, a seguinte explicação:
'Repetído a pedido:
Outra maneira de garantir boas vendas era deixar algumas histórias inacabadas
e dar sua continuidade a elas em outros livretos. Quando isso acontecia,
vinha estampando na capa que se tratava de uma "oBRA COMPLETA': ou após
o título da história, vinha registrado o termo "coNcLUsÃo':
Outra estratégia de venda por ele utilizada era, após enumerar alguns
agentes, estampar os dizeres: "Em nossa biblioteca particular encontra-se
sempre vinte e tantas qualidades de folhetos deste autor. Remete-se pelo
correio mediante importância qualquer quantidade, para qualquer Estado'';
ou ainda, após registrar algumas de suas obras, informava que: 'Além destes
Romances, Leandro Gomes de Barros tem mais de 500 qualidades de
Folhetos de versos a 200 rs. que vende em grosso com grande abatimento, na
casa de sua residência á Rua do Motocolombó n.28 em Afogados arrabalde
do Recife:' 06

Assim como Leandro, João Martins de Athayde é considerado um ícone


da poesia popular, da literatura popular, do cordel, do folclore e da cultura
popular nordestina, dependendo de que conceito seja utilizado. Assim como
seu antecessor, nasceu na Paraíba, no povoado de Cachoeira das Cebolas, no
município de Ingá do Bacamarte, no ano de 1880. Era filho de um artesão,
que trabalhava em serviços de construção, consertando engenhos, casas
etc. Só frequentou a escola já adulto, sendo um exemplo de aprendizado
autodidata da leitura e da escrita. Segundo seu depoimento, foi o interesse
pela escrita de poesias que o levou a buscar o domínio das letras, comprando
uma carta de ABC, que transportava dentro do chapéu e lia quando ia tomar
conta do gado. Quando teria oito anos, ao ouvir a exibição do cantador
Pedra Azul, se interessou pela poesia, tendo escrito seu primeiro folheto

306. Ver: GlULLO, Ângela. Op. cit., p. 46-48.


quando contava doze anos de idade. Em Ingá já se dedicava a atividades
comerciais: a venda de miudezas, rapaduras e queijo. Em 1898, devido à
seca, migrou para um município próximo ao Recife, Camaragibe, seguindo
o mesmo padrão migratório de Leandro Gomes de Barros, ao se instalar
primeiro numa pequena cidade próxima ao grande centro, numa espécie de
escala preparatória, tanto material quanto imaterial, para encarar o desafio
de viver na metrópole regional da época. Aí trabalha como comerciante
e operário de fábrica. Só dois anos depois se muda para o Recife indo
trabalhar de auxiliar de enfermagem no Hospital Português. Escreveu o seu
primeiro folheto em 1908, intitulado O preto e o branco apurando qualidade,
abordando as tensões raciais que atravessava uma sociedade onde, devido
à abolição, os negros adquiriram a condição de cidadãos e passaram a
disputar, notadamente com os homens livres pobres, o mercado de trabalho
e de oportunidades, mas continuavam sendo vistos como naturalmente
inferiores e destinados à subalternidade. Talvez por isso, por ter sido escrito
numa cidade que vinha recebendo uma grande massa de ex-escravos, que

1
tinha uma população predominantemente negra e mestiça, onde a cor da
pele era fundamenta l para estabelecer hierarquias e distinções, até entre os
pobres, seu folheto fez enorme sucesso, tendo amealhado com ele dinheiro
suficiente para, somado ao que ganhava como empregado, montar, no ano
seguinte, 1909, a sua própria tipografia, na rua do Rangel, no bairro de São
José, bairro popular, próximo às atividades portuárias e vizinho ao centro
da cidade.
João Martins de Athayde, que também se tornará uma referência
do que seria o folclore e a cultura nordestinos, visto como um ícone da
tradição regional, é, também, assim como Leandro, um pioneiro em vários
aspectos. Será o primeiro poeta popular a imprimir seus próprios folhetos
e de outros poetas, produzindo durante quarenta anos milhares de edições.
Seu nome se transformou numa marca, a ponto de bastar a chancela de sua
tipografia para que o cordelista tivesse sucesso de vendagem. Athayde dá
ares de empresa a sua tipografia, criando o que seria o "ramo da poesia",
uma nova especialidade comercial, dando oportunidade de emprego a
poetas, folheteiros ambulantes, agentes e distribuidores, aperfeiçoando a
rede mercantil criada por Leandro. Ele adota novos procedimentos técnicos
e estéticos na produção do folheto, como o uso de clichês de cartões postais
e fotos de artistas de cinema para ilustrar as capas, introduzindo, mais tarde,
o uso da xilogravura. Seu sucesso é inseparável, portanto, da emergência da
sociedade capitalista, da prevalência crescente dos laços mercantis - inclusive
no campo da produção cultural-, da modernização técnica e tecnológica que
começa a impactar essa produção. 307 É curioso que esses agentes de produção
da semiótica popular tenham se tornado ícones de um discurso reativo ao
mundo capitalista e moderno, como o discurso que deu origem à ideia de
cultura nordestina e ao discurso do folclore, pois eles, no meu entender, são
agentes das transformações que o capitalismo está processando, inclusive, na
produção cultural das camadas populares. Suas práticas não representam o
resgate, a manutenção ou a resistência de tradições milenares ou seculares da
cultura popular como querem, romanticamente, os estudiosos do popular.
São atividades que criam o novo, utilizando-se de e'remanejando um arquivo
de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição
desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas
oferecidas pela sociedade urbana e de mercado. Sobre a prosperidade do
negócio de João Martins de Athyde, outro poeta popular, também editor e
cordelista de sucesso a partir dos anos 1930, Rodolfo Coelho Cavalcante,
deu o seguinte depoimento:

Em Pernambuco florescem as histórias de cordel do pioneiro editor Ataíde,


que, sem o saber, fez da poesia popular uma das mais sublimes indústrias
do nosso país. Pernambuco tem produzido tantas histórias em versos que
deixa para trás a produção de açúcar das suas usinas e dos seus engenhos.
[... ] Pernambuco das modernas usi nas e de velhos engenhos, da capital que é
o orgulho do Brasil, nos matizes arquiteturais dos teus edifícios e das pontes,
Pernambuco gigante, eu te cognomino Pernambuco das Histórias e Versos
[...)30~

Será, portanto, nos próprios meios populares que Athayde será


considerado o criador de uma indústria: a indústria de folhetos- tão moderna
quanto a das usinas - , e um comerciante hábil e de sucesso. O fato que talvez
seja mais emblemático da adoção por Athayde de novos procedimentos,
que iriam criar e difundir a indústria dos folhetos, e do caráter mercantil
que essas atividades possuíam, é o episódio da compra do espólio poético
de Leandro Gomes de Barros. Athayde adquire, em 1921, pela quantia de

307. Ver: VILA NOVA, Sebastião. João lvlartins de Athayde: artista popular e empresário urbano.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco, J 985.
308. CAVALCANTI, 1958, n/p, apud GASPAR, Lúcia. João Martins de Athaydc. Pesquisa
escolar on-line. Recife: Fundaj. Disponível em: http:/ /basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/ index.
php?option=com_content&view=article&id=375&Itemid=l89. Acesso em 7 de março de 201 I.
seiscentos mil réis, à viúva e ao filho toda a obra monumental de Leandro e
passa a editá-la com o seu próprio nome, adulterando, inclusive, os acrósticos
que garantiam o reconhecimento da autoria do folheto. Demonstrando não
só um apurado tino comercial, pois adquire a obra do poeta mais famoso,
cujos folhetos têm mercado garantido, mas um senso exclusivamente
mercantil, não tem pejo em vender os folhetos como sendo seus, pois afinal
se os comprara eram de sua propriedade.309 É acusado de ter colocado seu
nome e vendido como sendo de sua autoria folhetos escritos por poetas
obscuros e em situação de extrema pobreza e penúria que lhe vendiam sua
produção semiótica. Como vemos, portanto, a lógica mercantil e inclusive a
exploração e apropriação dos bens simbólicos produzidos pelos pobres não
são fe itas exclusivamente pelos membros das elites letradas, mas também
por letrados e por aqueles que ocupam posições de poder no interior das
próprias camadas populares.310 Athayde inaugura, assim, mais uma figura de
sujeito que não existia anteriormente, nesse universo da produção cultural
das camadas populares: a de editor proprietário, que vem se somar à de autor
proprietário, que havia sido, em grande medida, instituída por aquele de
quem agora adquiria a obra. 311 Se Leandro se apropriara de todo um arquivo
de matérias e formas de expressão que circulavam na oralidade e recriando-
as produziu a sua obra, agora era Athayde que se apropriava de seu legado

309. O contrato através do qual a sra. Vcnusti niana Eulália de Barros, esposa de Leandro, vende
:1s obras do poeta é explícito em assegurar a Athayde o direito de "fazer dela o uso que lhe convier':
Ver a íntegra do contrato em: BATISTA, Sebastião Nunes. Litemtum populnr em verso- Bstudos.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1986, p. 452. Embora Leandro tenha se tornado muito amigo de Athayde,
sendo inclusive se u com padre, Athayde já usara, antes de conhecê-lo, a fama de Leandro para se
promover, ao publica r uma peleja imaginária entre ele e o poeta (A diswsstio de Leandro com João
A//l(lyde), que a denunciou como uma falsificação na quarta capa do folheto O dinbo nnnovn scitn.
Ver: GRILLO, Ângela. Op. cit., p. 55.
310. Esta não é uma prática específica do mundo do cordel, sabemos que no mundo da música,
da composição, no universo do samba também foi frequente a venda de obras para editores,
gravadoras, para intelectuais, para pessoas ligadas ao mundo do disco e do rádio, para jornalistas,
bem como a oferta de parceria a pessoas que não eram músicos ou poetas, que nunca compuseram
nada, mas que, algumas vezes, em troca de ter oferecido um luga r para morar, para dormir ou
par<~ comer ao sambista ext remamente pobre, passavam a figurar como autores de dadas canções.
Isto ocorreu, por exemplo, com Nelso n Cavaquinho, q ue tem canções registradas como sendo
parceria com donos de hotéis, bares, cafés etc. Ver: COSTA, Flávio Moreira da. Nelson Cavaqui11ho:
biogrcifin. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
311 . Os folhetos por ele editados passam a trazer impresso na capa: Editado por João Martins
de Athayde ou Edição da Tipografia de J. M. Athaydc. TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cit., p. 26.
para reinventá-lo como sendo seu.312 Estes acontecimentos não constituem
nenhum escândalo, é assim que comumente ocorre no universo cultural,
embora a emergência de uma sociedade de mercado e daquilo que Benedict
Anderson chamou de capitalismo editoriaP 13 constitua a singularidade
desses eventos. Poucos anos antes de falecer, tendo sofrido um acidente
vascular cerebral, não podendo mais gerir o seu negócio, vende, em 1950,
sua tipografia e os direitos de edição de todas as suas obras, incluindo as
de Leandro e de outros poetas, a José Bernardo da Silva, proprietário da
tipografia São Francisco, na cidade de Juazeiro do Norte, que passou a ser,
a partir dessa década, o maior centro de prod~Ção de folhetos de cordel,
posição até então ocupada pelo Recife. Muda-se então para a cidade de
Limoeiro, em Pernambuco, onde vive seus últimos anos de vida, vindo a
falecer em 1959.314
Assim como Leandro Gomes de Barros, Athayde também se destacava
em sua produção por ter sido um cronista do cotidiano. Escreveu inúmeros
folhetos comentando os acontecimentos locais, nacionais e internacionais.
Isto indicia que, além de ser um letrado, era leitor da imprensa diária,
alguém que, por viver na cidade, podia ter acesso não só aos jornais,
como à própria repercussão imediata das notícias que eles publicavam.
Além disso, transformou alguns clássicos da literatura oral em folhetos
de cordel, o que demonstra que procurava se informar e se formar para
realizar a impressionante obra de que foi capaz. Se Leandro não conheceu
pessoalmente nenhum inventor da cultura nordestina, pois faleceu pouco
antes dessa ideia emergir, Athayde teve contato com eles e assim como a
obra de seu antecessor, aquilo que produziu foi incorporado a esse conceito,
assim que ele foi elaborado. Em entrevista concedida ao jornalista Paulo
Pedroza, do Diário de Pernambuco, no dia 16 de janeiro de 1944, Athayde
fala de seus procedimentos de criação, deixando claro o papel que a imprensa
desempenhava quando se tratava de abordar fatos contemporâneos, como
os eventos ligados ao cangaço, sem que isso significasse o abandono de sua
capacidade de imaginação e invenção:

312. Athaydc sempre deu mostras de possuir uma grande admiração por Leandro Gomes de
Barros. Quando ele morreu, em 1918, Athayde escreveu em sua homenagem um folheto intitulado
A pranteada morte do grande poeta Leandro Gomes de Barros.
313. ANDERSON, Benedict. Comu11idades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
314. Ver: MELO, Rosilcne Alves de. Op. cil.
[... ] Em algumas me aproveitei do que noticiava o jornal, noutras do que
me contava a boca do povo. E em algumas não me baseei em fato nenhum.
Imaginei o caso e fiz o meu floreio. Conheci pessoalmente Antonio Silvino.
Era no tempo o bandoleiro mais temido. Várias vezes conversou comigo. 0
povo o chamava "capitão". Nunca se deixou retratar, a não ser quando foi preso
e ainda assim depois de todo amarrado. Escrevi alguns "livros" sobre Silvino
e ainda tenho assunto para vários outros que se fossem lançados agora não
fariam sucesso. Já Lampião era diferente do "capitão", com dois anos apenas
de cangaço aparecia com o retrato nos jornais, cercado pelo grupo. Para você
ver: quando ele entrou em Mossoró, eu soube da notícia pelo jornal. Fiz um
"livro'~ Mas as cenas, os diálogos, a ação da narrativa, tudo isso foi tirado da
minha cabeça. Do mesmo jeito fiz com Os projetos de Lampião onde toda
aquela plataforma foi inventada. [... )315

O que podemos perceber é que, da mesma forma que as agremiações


populares, as lideranças de clubes carnavalescos ou de outras atividades
culturais dos pobres tomaram iniciativas no sentido de se inserirem na nova
ordem social e nos novos fluxos culturais que emergiam com o advento da
sociedade burguesa, isoladamente, em outros setores, indivíduos, artistas
e intelectuais populares também deram passos importantes para serem
reconhecidos e para encontrarem ou criarem lugares de sujeito, para
ocuparem posições de onde pudessem produzir, fazer circular e divulgar
a produção artística, literária ou simbólica que realizavam e para verem
legitimadas suas práticas culturais. Eles não faziam parte de um universo
cultural à parte, de uma pretensa cultura popular heroica e resistente, mas
partilhavam e participavam de processos mais amplos que ocorriam naquela
ordem social, embora fossem, ao mesmo tempo, fruto de um processo
mais intenso de diferenciação cultural que atingia as camadas populares
e resultado de processos de distinção e de diferenciação no interior não
só do universo da cultura, mas da própria ordem social. De forma tensa
e ambivalente, diferenciação e integração conviviam e faziam parte de um
mesmo processo histórico. O contato, a busca de apoio, a aproximação com
os mediadores culturais de outras classes sociais, com aqueles interessados
em negociar, legitimar ou promover aquilo que produziam, com aqueles

315. PEDROZA, 1944, n/p, apud GASPAR, Lúcia. João Martins de Athaydc. Pesquisa escolar
011-li11e. Recife: Fundaj. Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pcsquisacscolar/indCX·
php?option=com_content&vicw=article&id=375&Itemid=l89. Acesso no dia 7 de março de 2011.
interessados, inclusive, em se apropriarem do que faziam, tomam parte
nesse processo cheio de ambiguidades em que buscam um lugar na nova
ordem que emergia. Nesse, como em todos os processos sociais, uns tiveram
sucesso, outros fracassaram.
Se estamos privilegiando, na análise do papel dos agentes das camadas
populares, da emergência histórica da categoria de cultura nordestina,
aqueles ligados à produção da chamada poesia popular, do cordel ou da
literatura popular, é porque será sobre essa produção que se debruçarão
primeiramente os inventores da cultura nordestina. Os livros pioneiros no
uso desse conceito, mesmo que em segunda ed1tção, como os de Barroso,
Rodrigues de Carvalho, Leonardo Mota e Câmara Cascudo se debruçam
sobre a produção dos cantadores, repentistas e poetas populares, que serão
a matéria-prima também para a produção desses pioneiros nos meios
populares da produção escrita. Entre eles destaca-se, por ter exercido
um papel central na negociação com os mediadores das elites letradas,
principalmente com os inventores do conceito de cultura nordestina, o
poeta e editor de folhetos de cordel Francisco das Chagas Batista. Foi ele
que forneceu versos e informações para livros de Leonardo Mota, Rodrigues
de Carvalho, Câmara Cascudo e Adernar Vidal, entre outros, trocando com
eles correspondências. Sua livraria editora, situada na cidade da Parahyba
do Norte, atual João Pessoa, foi invariavelmente visitada e frequentada pelos
amantes do que chamam de folclore ou da poesia popular que moravam na
cidade ou no Estado ou que vinham de outros Estados.316
Francisco das Chagas Batista nasceu no sítio Riacho Verde, pertencente
ao termo de Teixeira, no ano de 1880, portanto, desde a infância viveu num
ambiente onde a presença de poetas populares e de cantadores era marcante,
além de ser o lugar onde circulavam as lendas, as histórias e os versos de
míticos poetas do passado. Era parente da família Nunes da Costa que,
como vimos, foi integrada por famosos poetas populares, tendo se casado,
em 1911, com uma prima chamada Hugolina Nunes, nome em homenagem
ao antepassado ilustre Ugolino Nunes da Costa, portanto estava ligado até
por laços familiares com esse universo de produção semiótica. No ano de

316. Mário de Andrade, por exemplo, em sua viagem etnográfica pelo Nordeste, realizada
entre 1928 e 1929, visitou a editora e livraria de Chagas Batista e escreveu a respeito: "Existe aqui
na Paraíba uma tipografia que estava na obrigação de ser célebre no país tudinho, se fôssemos
patriotas de verdade. t a Tipografia Popular Editora, de F. C. Baptista Irmão. Publica folhetos,
"foiêtcs" como falam seus cantadores, em versos populares': Ver: TERRA, Ruth Brito Lemos. Op.
cit., p. 28.
1900, com vinte anos, torna-se comerciante de água e de lenha na cidade de
Campina Grande, para onde se mudara para estudar em cursos noturnos.
Aí, em 1902, compõe seu primeiro folh eto, significativamente intitulado
Saudades do sertão, já que deixara sua terra na área sertaneja para vir morar
numa importante cidade da região do agreste paraibano. Em 1905, assim
como fizeram Leandro e Athayde, Francisco das Chagas Batista migra para
o Recife, onde se dedica à venda de folhetos, tendo assim sua primeira
experiência de âmbito comercial no campo cultural, já que comerciara
antes com outros tipos de mercadorias, assim como fizera Athayde.
Ingressou por pouco tempo no Seminário de Olinda, buscando continuar
seus estudos. A entrada para a vida religiosa significou, por muito tempo,
a única possibilidade para os filhos das camadas populares de terem acesso
ao mundo das letras. Em seguida trabalhou na estrada de ferro de Alagoa
Grande, cidade próxima a Guarabira, onde seu irmão, Pedro das Chagas
Batista, possuía uma tipografia que editava e vendia folhetos populares, na
qual passa a trabalhar a partir do ano de 1909, tendo contato direto com
esse tipo de comércio. Em 1913 muda-se para a capital da Paraíba, onde
passa a ser vendedor de livros. Esta experiência será importante para Chagas
Batista, pois ele será pioneiro na articulação entre o universo dos folhetos
populares e o universo dos livros. Ele não só passará a imprimir e vender
Ir
juntos folhetos e livros na livraria e editora de sua propriedade, como se
dedicará a escrever folhetos e livros, o que não havia ainda acontecido com
seus mais famosos predecessores.m A aproximação entre esses dois produtos
culturais, feita através de uma atividade comercial, indicia claramente não
só o lugar de mediador e articulador cultural que ocupará Chagas Batista,
mas também a emergência de um mercado cultural, de um mercado para
os impressos com o advento da sociedade burguesa. Ela será fundamental
para essa aproximação entre mundos antes apartados, da qual a própria
atividade de folclorista e a própria emergência da noção de fo lclore são um
sintoma. 318 Ainda, em 1907, fora pioneiro em outra atividade que significa a
aproximação e a mescla do universo da literatura dita erudita e a literatura
dita popular: ele transforma em folheto popular em versos o romance de
Henryk Sienkiewicz, Quo Vadis . Mais tarde fará o mesmo com o romance

317. Segundo Ruth Te rra , na Bíbliogmjia pamiba11a compencliada por Horácio de Almeida
aparecem dez títulos de "livros de prateleira·· editados pela Popular Editora. Ver: TERRA, Ruth
Brito Lêmos. Op. cit., p. 27.
318. Ver: BATISTA. Sebastião Nunes. Fm11cisco da Clragas Bafista: 110tícia bi/Jiiográjicn. Rio de
Janeiro: fundação Casa de Rui Barbosa, 1977.
de Bernardo de Guimarães, A escrava lsaura e, baseado num episódio do
Decameron de Boccaccio, escreverá o folh eto História de Esmeraldina. 319
Depois de nomadizar por vários lugares, e m busca de uma vida melhor,
em busca de oportunidades de trabalho e de estudo, traço comum nos meios
populares, Chagas Batista adquire, em 1913, o prelo manual que pertencia a
Leandro Gomes de Barros, que, por viajar constantemente para vender seus
folhetos, não dispunha de tempo para imprimi-los, preferindo encomendá-
los a tipografias. Instala, então, na rua da República, 65 (depois 584) a "Popular
Editora': que em 1923 já contava com três prelos: dois movidos a pedal e
um manual. A editora empregava tipógrafos, impressores-encadernadores e
auxiliares de encadernação, que recebiam remunerações diárias ou por tarefas
realizadas, constituindo-se, portanto, numa atividade industrial. Além da
impressão de folhetos e livros (de modinhas, de contos, de paródias, novelas
e de poesias), a editora imprimia, ainda, faturas, envelopes, blocos para cartas
comerciais, carta, circulares, cartões comerciais, de visita, participação de
boas festas, material escolar e rótulos de diversos produtos. Segundo o registro
da tipografia na Junta Comercial da Paraíba, feito em 15 de fevere iro de 191 9
e o pedido de registro de capital feito a 7 de junho de 1921, pesquisados
por Ruth Terra, a firma denominava-se F. C. Baptista Irmão, possivelmente
para deixar claro que era irmão de outro Baptista que tinha tipografia ali já
registrada. Ela contava com um capital de onze contos de réis, uma quantia
nada desprezível:no É importante chamar atenção para a diferença entre o
nome oficial da firma e o nome de fantasia e para o sign ificado que esse fato
carrega. Embora a firma seja registrada com a abreviatura de seu nome e o
acréscimo da observação que era o "irmão': o nome de fantasia estampará
a noção de popular, a Tipografia e Editora Popular, indiciando como esse
conceito estava em circulação e como tinha uma centralidade na produção
cultural desse momento. A designação popular não só trazia prestígio e
legitimidade, mas, ao que tudo indica, tornava atraente comercialmente
aquilo que nomeava. Além disso, demonstra que o uso e a visibilidade que
tinha esse conceito na produção dos letrados das elites sociais começavam a
ser partilhados e apropriados pelos próprios agentes das atividades culturais
das camadas trabalhadoras e dos pobres.

319. Ver: SILVA, José Fernando Souza e. Francisco das Chagas Batista: Biografia. Disponh·el em:
ht t p://www.casa ru ibarbosa.gov. br Icordel! Fra nciscoChagas/franc iscoChagas_biografia_ctd.html.
Acesso em 8 de março de 20 I I.
320. Ver: TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cif., p. 26-27.
A Popular Editora chegou a imprimir folhetos de Leandro Gomes
de Barros, que tinha ligações fa miliares com os irmãos Baptistas, já que uma
de suas filhas era casada com Pedro das Chagas Batista, que, além de ser
dono de sua própria editora, foi inicialmente representante e depois diretor
da filial da editora do irmão na cidade de Guarabira. Além dessa filial
em Guarabira, existia outra na cidade de Lages, no Rio Grande do Norte,
dirigida por outro parente. Esse seu parente devia ser pessoa de destaque e
influência, além de ter posses, pois foi nomeado intendente do município,
como consequência da chamada Revolução de Trinta.321 É justamente no
início desse ano que ele vem a falecer. Três anos depois, após ter impresso,
ainda, alguns folhetos, sua viúva abre concordata da firma, vindo assim a
encerrar-se esse empreendimento.
Embora não tenha sido poeta popular e, talvez por isso, não seja
considerado, por alguns autores, como um "autor popular" tal qual seu
irmão, (discutiremos esse aspecto que parece muito relevante mais à
frente), sendo tratado como um intelectual e escritor que chegou a integrar
o Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, Pedro Batista desempenhou
importante papel nesse processo que estou descrevendo de emergência do
conceito de folclore e de cultura nordestinos. Além de ser irmão do poeta
popular e editor Chagas Batista, o pouco que sabemos sobre sua vida é que
Pedro Batista era genro de Leandro Gomes de Barros, tendo-se casado com
sua filha Rachei Aleixo de Barros, no ano de 1917. Sabemos que em 1909
já estava estabelecido na cidade de Guarabira, na Paraíba, com a Livraria
do Povo, pois seu irmão trabalha para ele nesse período - Assim como a
loja de seu irmão trazia no nome o conceito de popular, no nome de sua
loja aparecia o conceito de povo, indiciando como esses conceitos estavam
em circulação nesse momento e estavam sendo apropriados por estes
mediadores culturais não advindos das elites letradas - . Além de livraria
seu estabelecimento se constituía também de uma tipografia que imprimia
folhetos de cordel de vários poetas populares, tendo impresso muitos dos
folhetos de seu sogro Leandro. Sabemos também que, à medida que seu
irmão montou sua tipografia e livraria na capital do Estado, Pedro passou

321. Ver: ROMÀO, João Evangelista. Além dos Jardins: história e genealogia de jardim dos
Angicos!RN, p. 70. Disponível em: http://books.google.eom.br/books?id=OzOH5R6Kleo C&pg=P
A70&lpg= PA70&dq=ubaldino+batista&sourcc=bl&ots=w087m6k5p&sig=Nhu5xuwK3gx5027
2aHQ2h5Wqjlg&hl=ptR&ei=IDZ2TdD6JeqEOQGHxdjYBg&sa=X&oi=book_ result&ct= result&
resnum=3&ved=OCCMQ6AEwAg#v=onepage&q=ubaldino%20batista&f=false. Acesso em 8 de
março de 2011.
a representá-la na cidade de Guarabira e depois dirigiu a sua filial naquela
cidade, que na verdade era a sua própria livraria, pois ambas são referidas
ocupando o mesmo endereço, à rua 7 de Setembro, número 17. Com a morte
de Leand ro Gomes de Barros, em 1918, considera-se herdeiro natural de
todo seu espólio poético, por ser seu genro, editando seus folhetos até 1921,
quando é surpreendido com a venda da obra, do famoso poeta, por parte de
sua sogra e seu cunhado, ao editor e poeta João Martins de Athayde, a quem
nunca parece ter perdoado, pois em carta escrita a Câmara Cascudo adverte
para que desconfiasse das publicações realizadas sob a responsabilidade
de Athayde, "que jamais teve pejo de pôr o seu pomposo nome nas obras
alheias':322 O fato de se sentir dono, por herança, da obra do sogro, aparece,
claramente, em um aviso que publica na última página do folheto que
continha as histórias O tempo de hoje e O sorteio militar, datado de 30 de
março de 1918. O sogro falecera no mês de janeiro daquele ano:

Tendo falecido o poeta Leandro Gomes de Barros passou ao meu possuído a


propriedade material de toda a sua obra literária. Só a mim pois cabe o direito
de reprodução dos folhetos do dito poeta e acho-me habilitado a agir dentro
da lei contra quem cometer o crime de reprodução dos ditos folhetos. 323

Em 1922, Pedro Batista se transfere para a capital, a cidade da Parahyba


do Norte, onde se estabelece com a livraria São Paulo, embora mantenha
sua tipografia e livraria em Guarabira. Isso fica patente no documento de
registro de seu novo estabelecimento junto à Junta Comercial da Paraíba,
onde declara que era estabelecido com livrarias e tipografia, na capital à rua
Maciel Pinheiro, n. 160 e em Guarabira, à rua 7 de setembro, n. 17; que
seu capital era de vinte contos de réis (uma quantia bem maior que aquela
declarada por seu irmão); que seu estabelecimento na capital começara
a funcionar no dia 16 de julho daquele ano (1923) e que sua sucursal em
Guarabira estava sob a direção de Raymundo Nonato Batista, possivelmente
um parente seu, dado o último sobrenome.
A importância do papel exercido por Pedro Batista no processo de
emergência histórica do que seria definido como sendo a cultura nordestina

322. Casc udo se refere a esta carta em seu livro Vaqueiros e cantadores. Ver: CASCUDO, Luís da
Câmara. Vaqueiros e cmztadores, p. 254.
323. A confusão entre a ideia de posse, que aparece na expressão bastante popular de "possuído':
e de propriedade é visível. Ele se arvora um direito que logo constatará não possuir. Reproduzido
por TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cit., p. 28.
pode-se aquilatar pelos seguintes eventos: ele foi o primeiro editor de
folhetos de cordel que não era poeta, tendo transitado para o universo
da cultura letrada, vindo a ser reconhecido, como dissemos, na condição
de escritor e intelectual, a ponto de ocupar uma cadeira de sócio no e de
ser nomeado secretário do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba,
instituição reservada à consagração dos letrados ligados às elites sociais.
Encontramos um bom número de referências ao fato de que manteve
contatos com os formuladores da ideia de cultura nordestina, com os
folcloristas, a quem fornecia informações e matérias e formas de expressão
populares, notadamente poesias populares, que conhecia por ouvir, que
recolhia ou adquiria comercialmente. Leonardo Mota, em uma de suas
viagens de pesquisas em busca de "material folclórico" na Paraíba, visitou
o que chamou de Livraria Editora de Pedro Batista, na capital do Estado,
onde teria encontrado grande variedade de folhetos, considerando-o, ao
lado de João Martins de Athayde, como os dois grandes divulgadores da
poesia popular - A rivalidade que separava esses dois personagens parece
ter claros contornos comerciais - .324 Câmara Cascudo, que o chama de
livreiro e escritor paraibano, diz ter dele recebido um folheto impresso com
o título de História de D. Genevra, sem nome de autor, acompanhado de
uma carta em que informava possuir o original do folheto, escrito pelo poeta
Zé Duda, que o teria entregado, pessoalmente> a Leandro Gomes de Barros.
Infelizmente Cascudo não informa a data dessa correspondência, pois
seria interessante saber se continuava de posse de um original pertencente
ao acervo de Leandro mesmo depois que todo seu espólio foi vendido a
João Martins de Athayde, contra quem não deixa de levantar suspeitas.325
Ao romper com o IHGP, em 1931, Pedro Batista associa-se aos dois mais
importantes folcloristas paraibanos do início do século, Rodrigues de
Carvalho e Coriolano Medeiros, na fundação do Gabinete de Estudinhos
de Geografia e História da Paraíba (GEGHP ). Foi por influência de outro
folclorista e inventor da cultura nordestina, Gustavo Barroso, que Pedro
Batista funda e dirige a Ação Integralista Brasileira na Paraíba, movimento
político conservador do qual Câmara Cascudo também foi dirigente no Rio
Grande do Norte. 326 O caráter reacionário da invenção da ideia de cultura

324. Ver: MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará.
1962, p. 71 e 83. Fato também citado por TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cit. , p. 29.
325. Ver: CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores, p. 254.
326. Ver: T ERRA, Ruth. Op. cit., p. 148, nota 18.
nordestina parecer ser indiciado não só pelas posições políticas assumidas
pelos agentes das elites letradas que a elaboraram, como por aqueles agentes
pertencentes a outras camadas sociais que vieram a adotar essa ideia.
Ele, juntamente com o irmão, Francisco das Chagas Batista, teriam
inaugurado uma nova figura de sujeito, inexistente anteriormente no meio
dos letrados advindos das camadas populares: a de folclorista. Esse lugar
de sujeito, que surgiu para os letrados das elites, tanto fora do Brasil, como
aqui, no século XIX, com a atuação desses dois irmãos, passa também a ser
ocupado por homens advindos das camadas populares. Se Leandro criara o
lugar de sujeito de autor proprietário, se Athayde criara o lugar de sujeito de
editor proprietário, os irmãos Batista parecem ter ocupado pioneiramente o
lugar de folclorista e de estudioso do popular, lugar de sujeito exclusivo dos
letrados das elites sociais. Pedro Batista organizou uma coletânea do que seria
a poesia popular para a editora de seu irmão, a Popular Editora, que intitulou
de A lira do sertanejo/folclore nordestino. Organizar coletâneas de matérias e
formas de expressão ditas populares era uma das principais atribuições e uma
das atividades que definiam o lugar de sujeito de folclorista, explicitamente
assumido ao nomear o que ali publicava de folclore nordestino. Além disso,
em nota que acompanhava o primeiro folheto da coleção, diz estar há dez
anos trabalhando na aquisição das poesias ali reproduzidas, todas colhidas
diretamente da boca do povo. Ou seja, utiliza-se dos mesmos argumentos de
autoridade, para legitimar e dar prestígio à publicação que fazia, que eram
recorrentes entre os folcloristas: o de que colheu diretamente nas fontes o
material popular a ser publicado, garantindo a sua autenticidade. Ao afirmar
que fazia dez anos que adquiria aquele material, deixa pistas também do
período em que trabalhava como editor e, mais ainda, que essa atividade
implicava relações mercantis. E, mais significativo ainda, se estiver correta a
data de publicação referida por Ruth Terra,327 o ano de 1917, Pedro Batista
pode ser considerado um pioneiro no uso da identidade nordestina, no uso
do conceito de nordestino para nomear dada produção cultural e, mais ainda,
teria sido um pioneiro em articular os conceitos de folclore e de Nordeste, o
que por todas as pesquisas que tenho feito parece bastante improvável, não
só porque a ideia de Nordeste ainda estava se gestando naquele momento -
o termo só aparecerá no documento de criação do IFocs, em 1919 - , mas
principalmente porque a emergência do designativo nordestino é posterior

327. TERRA, Ruth. Op. cit., p. 28.


ainda ao de Nordeste, só vindo à baila nos anos 1920. 328 Como sabemos, a
datação de folhetos de cordel é bastante imprecisa. Mas de qualquer modo
não deixa de ser significativo para o que estamos discutindo neste livro,
o fato de explicitamente assumir o lugar de sujeito de folclorista, que era
monopólio dos letrados das elites, e ter, claramente, assimilado as regras que
o presidiam nesse momento.
A ocupação do lugar de sujeito de folclorista por um homem que seria
dos meios populares ainda parece mais clara no caso de Francisco das Chagas
Batista, que, além de editor e livreiro, era considerado poeta popular. 329 Logo
na apresentação do livro Cantadores e poetas populares, que publica em
1929, por sua própria tipografia editora, ele se diz um leitor da produção dos
"ilustres escritores" Gustavo Barroso, Rodrigues de Carvalho e Leonardo
Mota, justamente aqueles que usaram pioneiramente a ideia de Nordeste
para identificar um dado conjunto de produções semióticas populares,
das quais cita os livros Ao som da viola, Cantadores, Violeiros do Norte e
Cancioneiro do Norte, também inauguradores daquilo que chamaram de
cultura e/ou folclore nordestino. Tanto é que Chagas Batista incorpora a seu
discurso não só o uso do recorte espacial Nordeste, como nomeia sua obra de
Antologia regional. Mas é também significativo que, ao explicar os motivos
que o teriam levado à escrita daquela obra, afirme que aqueles escritores
e livros "teriam deixado de incluir a maior e melhor parte dos versos dos
poetas populares do nordeste, vivos e já falecidos" e que ele buscava assim
"prestar uma justa homenagem a poetas obscuros e desconhecidos de nossos
estudiosos historiadores nordestinos': 330 Embora ele não os denomine de
folcloristas, mas os chame de escritores e de historiadores, o que ele buscava

328. Tendo sido elaborada pelos intelectuais e políticos das elites econômicas e sociais, a ideia
de Nordeste levou certo tempo para ser popularizada. E é, justamente, este universo da literatura
de folhetos que nos permite afirmar isso, pois nela essa designação só vai aparecer nos folhetos
publicados nos anos 30 do século x_:.c. O caso de Pedro Batista é, assim, uma exceção que indicia
seu lugar excêntrico em relação a esse meio. Ainda, em 1927, José Adão Filho, poeta nascido na
cidade de Campina Grande, publica um folheto intitulado ABC dos violeiros do Norte, em que
o enquadramento espacial continua sendo o Norte e não o Nordeste. Portanto, ao contrário do
que afirma Ângela Grillo, a "poesia nordestina" não nasceu em fins do século xix e menos ainda
teve seu ponto de partida em 1830, em TeLxeira, nesse período e lugar teriam surgido a cantoria
e mais tarde a literatura de folhetos que só na década de 20 do século passado serão nomeadas
pelos folcloristas como poesia popular e nordestina, cri ando para elas esses mitos de origem que a
historiografia teima em reproduzir. GRILLO, Ângela. Op. cit., p. 82.
329. Ruth Terra identificou cerca de quarenta e cinco folhetos de cordel de autoria de Chagas
Batista. Ver: TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. cit., p. 44.
330. BATISTA, Francisco das Chagas. Op. cit., p. 1-2.
era, com aquela obra, ocupar um lugar entre eles, assumir o mesmo lugar
de sujeito, o mesmo lugar de escrita ocupado pelos inventores da cultura
nordestina, saídos do interior das elítes.
Com uma vantagem e um diferencial, que dariam maior legitimidade
a seus escritos, o que será reconhecido, inclusive, pelos folcloristas que o
consultavam como fonte fidedigna:

Tendo conhecido e convivido com quase todos os cantadores dos Sertões e


Brejos da Paraíba, colhi nas próprias fontes a maior cópia das poesias que
compõem esse volume.
A maior parte dos originais recebi-os (sic) mesmo das mãos dos próprios
autores, meus contemporâneos. Os mais antigos, porém, colhi nos alfarrábios
de velhos amadores do verso popular, contemporâneos de nossos antigos
cantadores e que viveram nos sertões na segunda metade do século x1x. 331

O uso do possessivo coletivo nosso indicia a subjetivação por parte de


Chagas Batista, da identidade regional nordestina. Ele justifica o fato de que
seu livro seria apenas uma antologia, uma recolha da poesia popular, por
falta de tempo, por falta de espaço no livro e por ser pouco familiarizado
com as modernas correntes literárias, que não lhe permitiam "fazer um
ligeiro estudo do nosso vasto FOLK-LORE", apenas publicaria os versos como
os encontrara nas mãos de seus autores, deixando para outros o estudo e a
crítica deles, dando a cada verso a sua classificação folclórica. 332 Novamente
utiliza o possessivo coletivo nosso para se referir ao folclore, identificando-o
como adstrito a um recorte regional nordestino. Embora não se proponha
a ser um especialista, um estudioso do folclore, ele se coloca como aquele
que vai reunir e publicar material fundamental para que esses estudos
aconteçam. Ao mesmo tempo em que há uma espécie de reconhecimento
de que os letrados das elites tinham mais condição do que ele de submeter
o material a uma classificação, ao estudo do que chama de "psicologia dos
poetas incultos': por dominarem o que nomeia de habilidades literárias -
campo em que aloja os estudos de folclore - , afirma o seu livro como uma
contribuição à "verdade dos fatos': o que, segundo o prefaciador da obra, o
folclor ista Coriolano Medeiros, era o que mais faltava aos estudos de folclore,
pois segundo ele- talvez por querer criticar os concorrentes ao mesmo lugar

331. BATISTA, Francisco das Chagas. Op. cit., p. 1-2.


332. Idem, p. 1-2.
que almejava para si - "Os livros dedicados ao fo lk-lore nordestino, em
maioria, são de escritores que inventam folk-lore também'~ 333
Mas o que chama atenção, não só na trajetória e no discurso dos
irmãos Batista, mas de certa forma, também, nas trajetórias de vida de
Leandro Gomes de Barros e de João Martins de Athayde é essa referência
à existência de cantadores e poetas obscuros, esta dívida que teriam para
com eles e a tarefa que assumem de dar-lhes visibilidade, de fazer-lhes
justiça, mesmo tipo de discurso que encontraremos legitimando a obra
dos folcloristas e estudiosos do popular. Em contato com os fragmentos
das histórias de vida desses artistas e produtores culturais considerados
populares, comecei a suspeitar que eles não faziam parte, propriamente, dos
extratos sociais mais pobres da população. Os tais poetas obscuros, aqueles
que nunca tiveram acesso às letras, que nunca tiveram contato com o mundo
da palavra escrita, que nunca estiveram envolvidos com atividades que
podemos chamar de mercantis e industriais, esses sim seriam pessoas que
viviam em condições sociais bastante precárias. Esses obscuros terminaram,
mu itas vezes, por ter a sua produção semiótica comprada, apropriada ou
publicada por esses agentes culturais cujas trajetórias acabamos de analisar,
mesmo tipo de relação que entabularão com os folcloristas. Ao ter notícia
sobre o fato de que Pedro Batista chegou a ser chefe de partido, chegou a
ser admitido no IHGP, considerado intelectual e escritor, tendo condições
financeiras de montar uma tipografia, que em certo momento contava com
um capital de vinte contos de réis, fiquei a me perguntar se esses homens
não constituíam uma emergente baixa classe média, fruto, justamente, do
processo de d iferenciação social que emergia com a sociedade capitalista e
burguesa; classe média baixa que tanto podia ser constituída por membros
decaídos das antigas elites rurais (desconfio que esse seja o caso tanto dos
irmãos Batista, como de Leandro Gomes de Barros, aquele que parecia um
fazendeiro, não um poeta), como de descendentes de pequenos proprietários
de terras (o que talvez seja o caso de João Martins de Athayde).
Sobre Leandro Gomes de Barros temos algumas informações
biográficas que nos levam a desconfiar de sua condição de homem nascido
nas camadas populares, embora não duvidemos de que a literatura que
produzia, os folhetos de feira, eram populares, no sentido de que eram lidos e

333. MEDEIROS, Coriolano. "Palavras sinceras': In: BATISTA, Francisco das Chagas. Op. cit., P·
1. Esse texto parece ser de um a carta escrita por Coriolano c endereçada a Chagas Batista, que a
inclui no livro a título de prefácio.
adquiridos preferencialmente por pessoas das camadas populares, o que não
excluía que membros das elites rurais se interessassem por eles e também os
adquirissem. O uso da categoria popular é sempre difícil porque se torna
sempre necessário explicar a partir de que parâmetros está se definindo algo
como passível de ser assim classificado. Pode ser pela origem social de quem
produz, pode ser pelo público a que se destina, pode ser por atingir amplas
parcelas da população etc. Cristina Nóbrega, bisneta de um dos irmãos de
Leandro, afirma que o pai do poeta teria deixado uma herança da qual era
tutor o seu tio materno, o padre Xavier de Farias, que a teria repassado para
outro irmão, deixando a mãe do poeta e ele próprio na miséria. Revoltado
com esses fatos, Leandro não se entenderia com o tio que o maltratava. Teria
sido para fugir dos maus tratos que o padre lhe infligia que Leandro teria
abandonado a escola e fugido de casa entre os treze e quinze anos, passando
muitas privações. Por isso teria também alterado o seu nome, retirando
o sobrenome Nóbrega, da família de seu tio e de sua mãe, e adotado o
sobrenome Barros, da família de seu pai. Sabemos que a família Nóbrega,
que vivia no sertão da Paraíba, era uma das parentelas que dominava a vida
econômica e política daquela área, notadamente nos municípios de Patos e
Teixeira, área em que nasceu e viveu o menino Leandro Gomes de Barros.
O avô do padre Vicente, portanto, bisavô de Leandro, foi o coronel Liberato
Nóbrega, assassinado por um grupo de cangaceiros da vila do Teixeira,
chamados Guabirabas, quando estava sozinho em sua fazenda. Os filhos
e genros do coronel perseguiram os assassinos, os mataram e cortaram as
orelhas, que foram salgadas, enfileiradas num cordão e guardadas numa
cabaça. Este fato aparecerá no folheto escrito por Leandro Gomes de Barros
intitulado A confissão de Antônio Silvino, em que o poeta parece vingar-se de
seu tio ao retratar um padre que corta orelhas e guarda-as, o que seria uma
referência à ameaça que o tio lhe teria feito quando fora tomar satisfações
por ele ter se apossado de sua herança334:

334. Informações colhidas através de entrevista com a bisneta do irmão de Leandro, Daniel
Gomes da Nóbrega (ele preserva o sobrenome retirado pelo poeta), Cristina Nóbrega, realizada
por Arievaldo Viana. Ver: VIANA, Arievaldo. Op. cit. Disponível em: http://www.museudapessoa.
net/ historias/90anosmorteleandrogomes.pdf. Acesso em 17 de março de 20 li.
O padre disse: - Eu não acho
Nada no mundo custoso -
Custoso é você sair
Comigo vitorioso,
Eu, no tempo que brigava,
Todos os dias guardava
Orelhas de criminosoP)s

Acompanhando a biografia de Leandro Gomes de Barros, deparamos,


algumas vezes, com a presença dos irmãos Batista e, através dessas
in formações, temos indícios de que eles também não tinham origem modesta,
de que possivelmente eram filhos de famílias sertanejas empobrecidas com
a ocorrência das secas periódicas, conjugadas com as mudanças econômicas
trazidas pelo fim da ordem escravista e a emergência da sociedade burguesa.
Já sabemos que Pedro Batista era genro de Leandro e que publicou, em
dado momento, seus folhetos. Sabemos também que Francisco das Chagas
Batista foi quem comprou o prelo tipográfico que Leandro possuiu entre
1906 e 1913. Estes fatos, no entanto, ocorrem quando todos eles já haviam
abandonado o sertão em direção ao litoral e ao agreste da Paraíba e de
Pernambuco. No entanto, no trabalho do frei Hugo Fragoso, intitulado
Dos Sucurus aos Teixeirenses, em que faz uma genealogia das famílias que
construíram a vila de Teixeira, nós encontramos um episódio que liga as
famílias de Leandro Gomes de Barros à dos irmãos Batista, em período
anterior, envolvendo, inclusive, o padre e tio do poeta. A segunda filha de
Manuel Batista dos Santos, Maria Batista Guedes, tia de Pedro e Francisco
das Chagas Batista, tivera, antes de se casar, uma filha com o padre Vicente
Xavier de Farias, o tio de Leandro, que veio a morrer num sítio fora da
cidade para onde fora retirada. 336 Esse episódio e o próprio fato de a família
Batista fazer parte de um livro sobre genealogia de famílias ilustres daquela
localidade nos fazem pensar que os irmãos Batista não tinham ascendência
popular, mas pertenciam a uma família que por algum motivo, que não
pudemos apurar, entrara em declínio econômico. O fato de terem acesso
às letras e, no caso de Pedro Batista, de dispor de capital para abrir uma
tipografia e livraria na cidade de Guarabira parece reforçar minha suspeita

335. Referência citada por VlA NA, Arievaldo. Op. cit. Disponível em: http://www.museudapessoa.
net/ historias/90anosmorteleandrogomcs.pdf. Acesso em 17 de março de 2011.
336. Idem.
de que esses promotores do popular, esses agentes ditos populares que
participaram da invenção da cultura nordestina não vinham propriamente
dos extratos mais empobrecidos da população, mas sim de setores sociais,
em processo de declínio, o que talvez explique a solidariedade para com os
agentes culturais dos pobres e o partilhar com os folcloristas, também filhos
de setores declinantes das elites agrárias, do mesmo interesse pela produção
cultural e semiótica das camadas populares.
João Martins de Athayde, em entrevistas concedidas para os jornais,
diz que em 1898 a seca "rebentou com valentia, matou meu roçado, meu
gadinho quase se acaba. Vendi meus troços e an1ibei para Camaragibe aqui
em Pernambuco''. Ou seja, ele não era também um homem desprovido
completamente de posses, não era um trabalhador de alugado, nem um
pobre sem ter nada de seu. Parece-nos que ele era dono de uma pequena
propriedade, de um pequeno rebanho de gado, praticando uma agricultura
e uma pecuária de subsistência que são inviabilizadas pela seca. Quando
migrou para Pernambuco não o faz sem ter levado algum dinheiro, resultado
da venda do que possuía. Isso explicaria ter tido condições de montar uma
tipografia, que, se não o fez ficar rico (há quem afirme que fez fortuna),
permitiu que se tornasse o primeiro empresário no ramo da produção e
venda de folhetos. Quando vendeu a tipografia e todos os direitos de edição
dos folhetos que publicava a José Bernardo da Silva, Severino Milanez
calcula que tal acervo valia em torno de duzentos contos de réis. Athayde
diz ter vendido quase de graça, por falta de comprador interessado, diz ter
recebido quinze contos de réis, assim mesmo "no fiado", pois a venda não
teria sido à vista. Ele não tem pejo de afirmar nessa entrevista que imprimia
folhetos "para ganhar dinheiro': mostrando-se subjetivamente identificado
com os valores modernos, subjetividade formada, desde cedo, nas atividades
comerciais, se bem que colocasse nos folhetos o que chama de "um fim
moral': 33i
O que venho tentando demonstrar neste capítulo? O quanto é complexo
e equívoco o uso de conceitos como os de "povo" e "popular': Não podemos
negar que os folhetos de feira eram uma produção popular, se levarmos
em conta o público para o qual preferencialmente se dirigiam, o circuito
comercial de que participavam, o próprio preço que custava cada obra, os
temas de que tratavam, mas se adotarmos como critério a condição ou origem
social de seus produtores e editores, o uso da noção de popular já não será

337. Entrevista citada por TERRA, Ruth Brito I.êmos. Op. cit., p. 46-47.
tão adequado. O aparecimento do folheto escrito parece ser acompanhado
pelo processo de emergência de uma classe média baixa, fruto do declínio
de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das
camadas populares. Os folheteiros, aqueles que serão chamados de cordelistas
pelos eruditos, se diferenciam social e profissionalmente dos cantadores,
dos violeiros, dos repentistas de extração popular, de escravos e ex-escravos
como Inácio da Catingueira, Fabião das Queimadas, Preto Limão, dos
cantadores de porta de igreja, cegos, pobres como Aderaldo e Sinfrônio, ou
dos violeiros nômades a perambular pelos sertões como Anselmo, Azulão,
Passarinho, Serrador, nomes que, embora famosos nos meios populares,
só nos chegaram pelo registro feito pelos folcloristas. Eles foram homens
que não construíram sua própria reputação entre os meios letrados como
fizeram Leandro Gomes de Barros ou João Martins de Athayde. Desconfio
que os nomes dos chamados fundadores da cantoria, que habitaram a
mítica vila do Teixeira, não eram propriamente pessoas do povo, se a esse
conceito atribuímos o sentido de pessoas pobres, sem posses, desprovidas
de conhecimentos no campo das letras, de trabalhadores braçais. Talvez
seja por isso que tenhan1 ficado na memória e constituam esse panteão
mítico de pais fundadores. Câmara Cascudo se refere ao fato de que um dos
fundadores da chamada escola de Teixeira, Ugolino Nunes da Costa, que
viveu entre 1832 e 1895, estudara no Seminário de Olinda, sabia latim, era
um rapaz branco e de sangue bom, que causara decepção em sua família ao
se interessar pela viola. 338 Com efeito descendia Ugolino do português João
Nunes da Costa que veio de Portugal, no século xvm, e se instalou na região
onde fica Teixeira, sendo proprietário de terras e gados.
O progressivo declínio da ordem senhorial e a transição para a ordem
burguesa permitirão o surgimento desses agentes de produções culturais que,
embora fruto desse processo, serão nomeadas de tradicionais, folclóricas
e populares, agentes que romperão co1n a dependência em relação às
elites agrárias, que terão uma trajetória individual se não completamente
autônoma e livre de laços de dependência e compadrio, mas gozarão de maior
espaço de ação e que farão uma trajetória de vida onde suas habilidades não
estarão, em grande medida, a serviço de outrem, mas voltadas para garantir
seus sustentos, de suas famílias, até tornarem-se pessoas importantes
para a sobrevivência de outros indivíduos vindos das camadas populares.
Se cantadores como Silvino Pirauá e Serrador precisavam dos coronéis e

338. CASCUDO, Luís da Câmara. Prefácio. In: MOTA, Leonardo. Cantadores, n/ p.


fazendeiros, que os convidavam e incentivavam a se baterem em desafio,
que recebiam em suas casas e varandas os contendores, que pagavam a
pequena quantia em dinheiro em troca de suas habilidades poéticas, que os
socorriam em momentos de dificuldade e, por isso, recebiam deles louvações
em formas de verso, um poeta e editor como José Bernardo da Silva, que
vivia na cidade de Juazeiro do Norte, que se torna, desde o final do século
xrx, centro de peregrinação de romeiros que vão em busca das bênçãos do
padre Cícero Romão Batista, e, portanto, um movimentado mercado para
produtos baratos como os folhetos de feira, tornará a pequena tipografia São
Francisco numa das maiores produtoras de folhetos de cordel do Nordeste,
principalmente depois que, em 1949, compra todo o acervo de João
Martins de Athayde. O poeta Expedito Sebastião da Silva, que abandonou
o emprego em um curtume, para se empregar como poeta na tipografia de
José Bernardo, de quem passa a receber o mesmo salário de 7 mil e 200 réis
que recebia na fábrica, para escrever folhetos - que aí veio a perder o dedo
polegar numa impressora - , descreve a tipografia no auge de sua produção,
entre as décadas de quarenta e cinquenta do século passado: a família do
dono trabalhava junto com os operários, os xilógrafos e poetas populares,
revendedores e fregueses, mestres e aprendizes, jovens e velhos se misturavam
naquele estabelecimento que, na verdade, se constituía numa manufatura
de produtos culturais. José Bernardo da Silva estava muito distante de um
Luís Quesado, de um João Melquíades ou de um José Adão, 339 de todos os
poetas pobres dos quais, segundo Expedito, ele se apiedava e recebia em sua
casa. Ou seja, era ele agora que podia estabelecer laços paternalistas com
os poetas pobres dos quais, possivelmente, adquiria as produções.Ho Ele era

339. José Adão constrói para si um lugar específico de sujeito que denomina de "poeta pensador':
para se diferenciar dos poetas repentistas. O "poeta pensador" seria aquele que apenas cria versos
por escrito, não fazendo mais parte da prática do repente, da cantoria oral. Com o uso dessa
designação para nomear o que fazia, Adão deixa claro que percebia a novidade de sua prática, que
sabia constituir-se num produtor cult ural de novo tipo, pertencente a uma cultura escriturística c
não mais a uma cultura da oralidade. Ver: GRILLO, Ângela. Op. cit., p. 59.
340. Expedito canta a bondade paternalista de seu patrão nos seguintes versos: "Às vezes quando
chegav<ll Em sua tipografia/ Poetas sem um centavo/ Ele bem os recebia/ Então como bom am igo/
No seu lar ele acolhia". Mas também tem que defender seu empregador da acusação de se apropriar
de poemas alheios, tal como era acusado Athayde, de quem havia comprado o acervo: "Porque
todos os folhetos/ Por Athayde editados/ Foram por ele os direitos comprados/ Recebendo os
documentos/ Em cartório registrados/ Ficando ele por dono/ Daquela propriedade/ Unindo com
a que tinha/ Aumentou a quantidade/ Oferecendo aos fregueses/ A maior variedade". Ver: KUNZ,
Martinc. Expedito Sebastião da Silva. Siio Paulo: Hedra, 2000, p. 15.
um empregador, tendo poetas como seus trabalhadores, como era o caso
de Expedito, que cobre de louvores a seu benfeitor. Ele deixou registrado
em versos o testemunho da pujança do negócio de José Bernardo, em seu
período áureo e sua gratidão para com seu mecenas:341

Até quinze operários/ Teve vez de trabalhar


Em sua tipografia/ Todo dia sem faltar
Em verso, com cinco máquinas/ Trabalhando sem parar
E a Tipografia São Francisco/ Se desenvolveu ligeiro
Tornando-se conhecida/ Por este Brasil inteiro
Graças a benção que deu-lhe/ O santo do Juazeiro 342

A bênção que o santo do Juazeiro deu para o negócio de José Bernardo


da Silva nós podemos vislumbrar com clareza: atraiu para a cidade milhares
de fregueses para seu estabelecimento, milhares de pessoas dispostas
a comprar os folhetos, que seus poetas contratados criavam e que ele
imprimia, narrando os milagres e proezas do santo. Agentes e representantes
da editora levavam os folhetos ali impressos para as feiras e festas da região.
Não estamos aqui diante nem de um homem propriamente do povo, visto
í
que é um empresário cultural, nem estamos diante de uma produção
cultural tradicional, mas da produção industrial e da circulação comercial
de um produto cultural num mercado de bens culturais. Uma produção
manufatureira que se articula a uma rede comercial que se espalha por toda
uma grande área do país. Estamos diante da produção de artefatos culturais
populares sim, mas populares porque é destinada a esse público, obedece
a suas preferências e gostos, como diz o poeta Expedito Sebastião da Silva,
é uma produção barata, mas nem por isso fora dos circuitos do capital, do
lucro, da exploração do trabalho assalariado e alheio, como as românticas
visões do folclore ou da cultura popular fazem crer. Aqui é explorado não
só o trabalho manual (o poeta Expedito diz ter não apenas se dedicado a
compor folhetos, notadamente seus famosos almanaques de previsão do
ano, mas também começou dobrando folhetos, trabalhou na composição
e impressão, atendeu no balcão da loja, fez a revisão de folhetos e livros,
fez xilogravuras e chegou à gerente do negócio, cuidando da escrituração
nos livros), mas também o trabalho intelectual, as atividades semióticas dos

341. KUNZ, Martine, Op. cit. , p. 11-15.


342. Idem, p. 16.
pobres. A mais valia aqui não é só monetária, mas simbólica. Aqui se fabrica,
literalmente, o folclore ou a cultura popular, e o uso desses conceitos mascara,
romantiza e idealiza relações que não são essencialmente distintas daquelas
que se processam no interior de outras fábricas: nada mais simbólico do que
a passagem de Expedito do curtume para a tipografia, ganhando o mesmo
salário. Na sua passagem do couro ao cordel, podemos dizer que não se
deixou de tirar-lhe o couro, inclusive, o próprio dedo. 343
Por isso discordo de Ângela Grillo quando define essas tipografias como
sendo corporações e seus proprietários mestres. Embora também fizessem
versos, os proprietários não mantinham com seus empregados uma relação
de transmissão desse saber. Eles eram apenas empregados assalariados, e
realizavam tarefas específicas e a partir de dado domínio técnico, não eram
aprendizes do saber que o mestre possuía, não estavam ali para se tornarem
poetas, mas para trabalharem e ganharem um salário. A relação era mediada
pelo pagamento de salário ou pela compra, quase sempre a baixo preço, da
produção poética daqueles que, como ela se refere, faziam seus "primeiros
versos de pé quebrado': relações, portanto, mais assemelhadas à das
maquinofaturas do que das corporações de ofício. O próprio José Bernardo,
em versos citados pela autora, se define como chapista e impressor e não
como poeta e o funcionamento da sua tipografia descrito por Expedito está
longe de se assemelhar à rotina de um atelier medieval.344 A tendência a negar
a modernidade dessa produção, sua medievalização, é uma das estratégias de
produção do dito folclore nordestino ou da dita cultura popular nordestina
como tradicional, é o que faz Ariano Suassuna ao definir a empresa tipográfica
de Athayde como sendo "uma entidade ou corporação no sentido barroco-
primitivo do termo". Só mesmo Ariano, com suas veleidades aristocráticas,
para tornar uma empresa comercial em corporação barroca e um homem
que dizia claramente que o que fazia era para ganhar dinheiro, em mestre
de ofício. O relato do trabalho que realizava na tipografia de Athayde, feito
por Sofia Cavalcanti de Athayde, uma das empregadas contratadas por ele
e que viria a se tornar sua esposa, não nos parece barroco, nem primitivo,
mas o trabalho típico de uma empregada de fábrica capitalista submetida ao
sobretrabalho e à máxima exploração:

343. KUNZ, Martine. Op. cit., p. 15-16. Ver, também: MELO, Rosilene Alves de. Op. cit.
344. GRI LLO, Ângela. Op. cit., p. 90 e 62; SUASSUNA, Ariano. Introdução. In: Literatura popular
em verso: Leandro Gomes de Barros. 2. A11tologia. Tomo iii. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa; João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1977, p. 4.
Muitas máquinas, tinha uma que ia como daqui lá, a virar dia e noite. Nesse
tempo ele estava muito atrasado e usava as moças para dobrar os livros e cada
uma fazia 200 ou 300, e tinha outra máquina que serrava pra botar grude e
colar (a capa) ... Eu entrei trabalhando nesse serviço. Primeiro dobrava assim
e fazia o livro, depois ia pra colar, uma soprava e outra encadernava. Eu fiquei
nesse trabalho da encadernação.J•>

A própria Angela Grillo narra, em outro momento de seu texto, o caso de


um em pregado de José Bernardo da Silva, Manuel Caboclo, que foi trabalhar
na tipografia São Francisco, aos vinte e dois anos de idade, como aprendiz
de tipógrafo, embora com a convivência com os poetas, que frequentavam
o local, tenha vindo a se tornar cordelista. Ao tentar desligar-se da empresa
para exercer a profissão de ambulante, se vê obrigado a denunciar seu ex-
patrão ao Ministério do Trabalho, por falta de pagamento de seus direitos,
situação nada barroca ou primitiva e estranha a uma corporação de ofício:

Em 1948, teria se desligado da T ipografia São Francisco para trabalhar


como ambulante, terreno fért il para sua imaginação criadora. Sobre as
condições de sua saída daquela gráfica, podemos destacar as relações que
ali se estabeleciam entre proprietário e trabalhadores empregados. Consta
que, naquele mesmo ano, a tipografia havia recebido a visita de um fiscal do
Ministério do Trabalho. Por essa época José Bernardo já contava com cerca
de doze funcionários, que trabalhavam dia e noite na impressão de folhetos,
e nenhum deles apresentava uma situação regular. Temeroso de ter que
pagar uma multa elevada pela sonegação dos direitos trabalhistas, Bernardo
solicitou a Caboclo que omitisse do fiscal o tempo de serviço que mantinha
em sua empresa, o que foi recusado. Bernardo viu-se, então, obrigado a
estabelecer um acordo com o Ministério do Trabalho c assinou a carteira de
seu mais antigo funcionário, como se ele estivesse ali trabalhando há apenas
três meses, o que deLxou em aberto todo o período trabalhado anteriormente.
Pelos serviços já prestados, Caboclo receberia uma pequena indenização no
valor de 42 mil réis (nesta época um auxiliar de tipógrafo recebia em torno
de 30 mil réis semanais).-w'

345. Entrevis ta de Sofia Cavalcanti de Athayde. In: MAIOR, Mário Souto. ]otio Martins de
Atlwyrle. São Paulo: Hedra, 2000, p. 49.
346. GRILLO, Ângela. Op. cit., p. 102. O mesmo episódio aparece narrado em: MELO, Rosilene
Alves de. Op. cit., p. 93.
O que procurei fazer, neste capítulo, foi, ao mesmo tempo, tratar da
participação que teriam tido dados agentes nomeados como populares
na emergência e veiculação da ideia de cultura nordestina, e questionar a
visão romântica que tende a considerar as atividades desses agentes como
tradicionais, como pertencendo a um mítico passado, como estando em
continuidade com processos seculares de produção semiótica, destacando
os elementos de ruptura, de modernidade, de criação de novas práticas,
de novos lugares de sujeito, de novos gêneros narrativos e literários, fruto
da integração deles à nova ordem burguesa e capitalista que emergia.
Procurei questionar a própria ideia de que sejàm pessoas que vieram do
povo, chamando atenção para o processo de diferenciação social que vinha
ocorrendo no seio das próprias camadas populares e trabalhadoras, além
da emergência de uma classe média baixa, decorrente tanto da ascensão
social de pessoas vindas dos meios empobrecidos, como do declínio e da
decadência de setores das elites sociais. É preciso ter enorme cuidado no
uso de divisões dicotômicas e simplistas do social, na romantização das
atividades ditas populares e do povo, em ver os meios populares como sendo
homogêneos e indivisos do ponto de vista cultural, em pensar a história
como um jogo de futebol realizado entre dominantes e dominados, em não
levar em conta que relações de dominação e exploração, inclusive simbólicas,
não ocorrem apenas nas relações entre membros das elites e das camadas
trabalhadoras, mas também nos próprios meios nomeados de populares.
É preciso fugir da repetição acrítica dos mesmos enunciados, quando se
trata de historiar a vida de dados atores elevados à condição de ícones da
cultura nordestina, do folclore nordestino, da cultura popular nordestina. É
preciso, sempre, duvidar das afirmações repetitivas, ritualísticas, com que os
inventores da cultura nordestina transformaram o que era um acontecimento
contemporâneo em acontecimento vindo de um passado cheio de tradições.
Este é, quase sempre, o maior pecado da historiografia da cultura popular,
veicular acriticamente o discurso que tomou acontecimentos do presente,
novidades, rupturas, como sendo eventos do passado, tradicionais, quando
não milenares. Assim como a cultura nordestina é um acontecimento
recente, muitas das práticas e conceitos que esta maneja como: literatura de
cordel, peleja, autor proprietário, editor proprietário, cordelista, nada têm de
tradicionais, são invenções do mundo moderno e possíveis por causa dele,
são fruto da emergência de novas práticas culturais propiciadas pelo meio
urbano e pela crescente presença de grupos populares que para ele afluem em
busca do trabalho e de oportunidades de vida que as atividades industriais e
comerciais propiciam. Ver estas atividades culturais como sendo resistentes
ao mundo mercantil e capitalista é apenas levar em conta um aspecto dessa
história, que é muito mais complexa e contraditória do que muitas vezes
podemos supor.
Considerações finais

A síndrome do resgate

·.

Em 1995, os historiadores Hebe Maria Mattos de Castro e Eduardo


Cavalcanti Schnoor organizaram um livro com o título Resgate: uma janela
para o oitocentos,347 em que diversos outros colegas de profissão, em cada
capítulo, analisavam distintos aspectos sobre a produção econômica, a vida
social, as relações de trabalho, a vida cotidiana, as práticas culturais em
uma grande fazenda de café, do século XIX, localizada no Vale do Paraíba.
Esta fazenda escravista foi, para aqueles que realizaram a pesquisa, que
deu origem ao livro, um grande achado, por dois motivos: primeiro, por
possuir um acervo documental pouco comum para uma fazenda da época,
o que demonstra o cuidado com atividades de registro que tinham seus
proprietários, atitude também rara para o período, mas, em segundo lugar,
o que parece ter encantado a todos, foi o fato de que a fazenda se chamava,
significativamente: Resgate. A fazenda escravista tinha como denominação
a palavra que se tornou uma noção cara aos historiadores e a muitos
profissionais que lidam com o passado: o conceito de "resgate': que indicia
uma dada maneira de entender a relação entre o presente e o passado, entre
o pesquisador e aquilo que se toma como objeto de pesquisa. O subtítulo do
livro também é bastante significativo, não só para indicar como os autores
pensam a relação entre as temporalidades, mas também como entendem a
atividade do historiador, como concebem a própria noção de "resgate". A
fazenda Resgate se constituiria numa janela para o oitocentos, ela permitiria

347. CASTRO, Hebe Maria Mattos de; SCHNOOR, Eduardo Cavalcanti. Resgate: uma janela
para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
que os historiadores, postados no presente, vislumbrassem, através da sua
documentação, como se organizava a atividade da grande lavoura, como era
a vida cotidiana, como viviam aqueles habitantes de um grande latifúndio
escravista, como eram as relações sociais e culturais numa fazenda de café
do dezenove, como era a vida dos escravos, suas manhas e suas manhãs.
Aquela documentação era, tal como uma janela, uma abertura, um foco
de luz, uma forma de acesso a esta realidade exterior ao presente que é o
passado; ela permitiria que os historiadores, no presente, se debruçassem
sobre o passado para enxergá-lo de forma nítida e, não apenas, visualizar
suas formas, divisar seus contornos, mas através dela poder trazê-lo de
volta; fazê-lo pular para o presente; fazê-lo retornar ao presente; recuperá-
lo, como algo que se encontrava perdido ou como algo que havia sido
cedido a outrem; libertá-lo de sua prisão ao seu próprio tempo; salvá-lo do
esquecimento, da obscuridade, da distância, do desconhecimento; remi-lo
de seu caráter mesmo de passado, cumprindo, assim, o que seria o dever do
historiador, ou seja, conseguir, com dificuldade e sacrifício, com um trabalho
árduo, fazer tornar o passado, fazê -lo novamente presente, reencená-lo tal
corno era na realidade, em essência, na sua verdade, diante dos olhos dos
contemporâneos, como que expiando uma culpa, aquela que a sociedade
brasileira carregaria pela crueldade de seu passado de escravidão, que
deveria ser conhecido, em seus mínimos detalhes, para que esta dívida fosse
restituída. Esta forma de compreender o trabalho do historiador, a relação
entre o presente e o passado, compreende todos os sentidos dicionarizados
para a palavra "resgate': daí ela ter se tornado quase um mantra entre os
profissionais deste ofício.
Mas a noção de "resgate" não impera apenas entre os historiadores
sociais, entre os profissionais que lidam com o passado, ela é urna tônica em
todos os discursos que têm corno terna a cultura e, mais particularmente, a
cultura popular, a cultura nordestina, o folclore. Entre os estudiosos destas
temáticas mas, também, entre os próprios agentes das atividades culturais
recobertas por estes conceitos podemos dizer que opera uma verdadeira
"síndrome do resgate". Esta palavra não sai das cabeças e bocas de jornalistas,
atores, autores, diretores, brincantes, folcloristas, cientistas sociais,
antropólogos, etnógrafos, poetas populares, cantadores, produtores culturais,
gestores da cultura. É quase impossível se ouvir ou ler urna entrevista, um
artigo, uma conferência, uma palestra, um discurso, de qualquer natureza,
cujo tema seja a cultura, a cultura popular, o folclore, a cultura nordestina,
sem que a noção de "resgate" não venha à tona. A impressão é que se esta
palavra desaparecesse do dicionário, se a última reforma ortográfica da
língua portuguesa a tivesse cassado, o discurso cultural se quedaria afásico.
Todos aqueles que lidam nesse campo, assim como a maioria que trabalha
no campo do patrimônio artístico e cultural, da museologia, só conseguem
definir as suas atividades, a partir desta noção, que possui implicações
tanto do ponto de vista epistemológico, ou seja, na forma como concebe e
pratica a produção do conhecimento, como do ponto de vista político, pois
implica uma dada maneira de entender o papel social que estas atividades
e profissões teriam socialmente, a ação que executam, bastante criticáveis.
Podemos dizer que a ideia de que é possível resgatar o passado, resgatar
atividades e formas culturais, é mais um dos mitos que compõem esta
movimentada feira de mitos que se realiza no campo dos estudos nomeados
como sendo de folclore, de cultura popular, de cultura nordestina. A
"síndrome do resgate" mobiliza atividades mitificadoras, pois ela opera
transformando o que já é um significado em um pretenso significante. Ela
fabrica o passado dizendo tê-lo encontrado, constrói-se a janela dizendo
que ela já estava aí. Faz do ato de ver uma ação unidirecional, partindo do
observador para o observado sem que esse interfira em como é visto. Faz de
conta que o objeto não emerge na relação com esse olhar, já estando pronto,
dado como uma evidência para ser apanhado pelo olhar que lhe permanece
exterior. Não sendo fruto, isso sim, de dada vidência, uma dada maneira
de ver, que interpela a empiricidade e que conforme ela o refrata, nessa
relação agônica e diferencial surgirá como objeto. Aquela empiricidade que
é transformada, por um olhar munido pela noção de folclore ou de cultura
popular, em seu objeto aparece como já estando em sua essência, ern sua
realidade, em sua verdade ITlesma, nesta condição, desde o início. A folia de
reis, o lundu, o caxambu, o jongo, que tinham e têm, para seus brincantes,
sentidos próprios, ao serem "resgatados" como uma manifestação do folclore
ou da cultura popular, adquirem novos sentidos e significados, no entanto,
o discurso do resgate quer fazer crer que essas manifestações culturais estão
apenas sendo repostas, tal como eram, como se fosse um significante neutro,
vazio, no tempo presente, no livro do estudioso, no vídeo, no documentário,
na cerimônia em palácio, na atividade dos órgãos oficiais da cultura. A voz
e o olhar do pesquisador que organiza, pensa, dirige e, portanto, conceitua
toda a ação de registro se mistificam ao se alçar ele à condição de alguém que
dá a voz ao outro, que permite ao outro se mostrar tal como ele foi ou é, que
permite que o passado ainda viva no presente, através daquelas pessoas que
seriam, assim, fora do tempo, a-históricas, suspensas num tempo, também
mítico, e testemunhas vivas do tempo que se foi. O pesquisador constrói
uma dada leitura da memória dizendo deixar a memória falar, alegando
resgatar uma dada memória que, ao invés de ser também uma elaboração
feita a partir do presente, mesmo entre as camadas populares, aparece como
sendo uma memória anterior ao presente, quase a temporal. Não se resgatam
memórias, constroem-se memórias. Assim como o fato de focalizarmos um
agente social e cultural das camadas populares, em nossos estudos, não nos
faz ver a história de baixo, porque quem olha para a história, seja através
de que janela for, somos nós, os especialistas, os letrados, os portadores
da cultura escrita, aqueles que ocupam lugares institucionais e sociais que
não permitem que nosso olhar seja de baixo. 3.18 Nós olhamos de cima e
temos que fazer esforço para não olhar por cima a história daqueles que
estão em posição social diferente da nossa. Não dá mais para convivermos
com esta mitologia populista que faz dos letrados companheiros, quando
não parceiros, daqueles homens e mulheres que têm um acesso precário ao
mundo da escrita. Temos que ser críticos em relação ao discurso de grupos
universitários de maracatu dizendo que estão resgatando essa manifestação
cultural como popular e regional. Eles executam um importante labor de
modificação, de colocação em outros lugares desta manifestação cultural,
fazendo-a ser outra, mas estão presos à "síndrome do resgate". O que há, em
suas atividades, é captura, não resgate.
A "síndrome do resgate" implica uma operação de mitificação por
parte dos próprios discursos que elegem como objeto o que chamam de
fato folclórico, sujeito e objeto da cultura popular, atividades culturais
nordestinas, pois estes tendem a negar a sua própria condição de discurso,
com as consequências que esta condição implica: ser uma elaboração
parcial e interessada do mundo; ser uma atividade de produção de sentidos
e significados que ocorre em dado contexto social, temporal e espacial;
ser uma atividade mediada por relações de poder, de interesse; ser uma
operação que se efetiva mediante o uso de códigos de valores, ideológicos,
estéticos, que estão situados historicamente e que representam dados
posicionamentos em meio a conflitos e disputas em torno dessas regras;
ser uma atividade que lança mão de conceitos, enunciados, temas, formas

348. Produzir uma "história vista de baixo" é uma expressão, que indiciaria uma postura
metodológica e uma postura política, que se tornou corrente na historiografia brasileira a partir da
leitura da obra do historiador social inglês Edward P. Thompson. Ver, por exemplo, sua obra cara
aos estudiosos da "cultura popular": THOMPSON, E. P. Costumes em comum, já citada.
de argumentação, estruturas de enredo, que circulam socialmente, que
formam um arquivo, em torno do qual se estabelecem dissensões, tensões,
disputas, e que conformam, delimitam e limitam previamente a atividade
que executam. A ideia de "resgate" opera com o mito da transparência dos
discursos e da linguagem; opera com o mito iluminista da possibilidade de
que uma atividade racional e razoável seja capaz de ver as coisas tais como
elas são; o mito de que a razão tenha uma capacidade de iluminação das
coisas em sua realidade primeira, original, primitiva, adâmica. A ideia de
"resgate", embora seja um conceito, opera com o mito da possibilidade de
wn discurso pleno, de um discurso não conceitual, não tropológico, um
discurso capaz de aderir às coisas, de ser um decalque das coisas mesmas,
ser um discurso que acolhe carinhosamente a coisa, um discurso que salva
a coisa em si de seu desaparecimento e de seu esquecimento, pagando assim
uma dívida, purgando assim uma culpa, bastante cristã, em relação ao sujeito
e objeto que é resgatado (meus colegas historiadores tendem a sentir culpa
pelo passado). Não é mera coincidência que a palavra resgate nomeie tantos
livros de caráter místico e de autoajuda e seja uma expressão do discurso
clichê da compaixão e do amor românticos. 349
Mas talvez a maior mistificação, empreendida pelo discurso do
"resgate': é aquela que faz crer que o discurso do especialista, que a atividade
do agente cultural, no presente, é capaz de trazer de volta o passado, é capaz
de fazer reviver algo que estava morto, é capaz de apagar as mudanças e
transformações ocorridas no tempo e por causa do passar do tempo (seria
como acreditar que o botox traz de volta o rosto que se teve no passado
e sabemos nas monstruosidades em que essa crença pode resultar). A
relação do presente com o passado não é uma relação de identidade,
continuidade e espelhamento como supõe o discurso do "resgate". A relação
entre presente e passado é de diferenciação, afastamento, descontinuidade,
ruptura. Nós estudamos o passado não para resgatá-lo, trazê-lo de volta,
repô-lo no presente, mas é para medirmos a distância que dele nos separa,
para pensarmos a diferença que constitui o próprio ser do presente, para
na comparação e no distanciamento do passado desenharmos os contornos
do presente e daquilo mesmo que passou. Toda vez que vamos ao passado

349. Veja-se em que companhia estão os historiadores e todos aqueles que se propõem a fazer o
"resgate" da cultura popular ou do folclore nordestinos: INGERMAN, Sandra. O resgate da alma:
reencontre os pedaços da alma que você perdeu. São Paulo: Vida e Consciência, 2008; MORAIS.
Mônica. O resgate da consciência. Lisboa: Dinalivro, 2011; RICI-IARDS, Susan. Resgate de um
coração partido. São Paulo: Ponto de Leitura, 2001.
voltamos com uma imagem nova dele, o transformamos, o fazemos diferir de
como era visto e dito até então. Não se volta jamais no tempo, a possibilidade
de retorno no tempo é o principal mito com que opera a "síndrome do
resgate". Quando uma atividade do passado é reencenada no presente ela
não vem à cena tal como foi, ela vem à cena conforme as condições e o
contexto do presente que a fazem ser, de saída, distinta. O reencenar não é
encenar tal como era anteriormente, mas é trazer a uma nova cena, pois se
nada mais tiver mudado, pelo menos o tempo já será outro.
A atividade do folclorista, do estudioso da cultura popular, do
pesquisador da cultura nordestina tende a se mistificar cada vez que se
apresenta como uma atividade que tem como função "resgatar" algo
do passado, entendendo por isso trazê-lo de volta tal como ele era, fazê-
lo novamente ganhar vida, cantar, brincar, dançar, entre nós. A principal
mistificação resulta em negar que estas atividades implicam transformar,
mudar, adulterar, modificar aquilo que tomam como objeto de coleta,
pesquisa, guarda, classificação, disposição, organização, registro, divulgação,
interpretação. Um mito que se alimenta da negação do fato de que estas
atividades implicam a elaboração de discursos que operam com conceitos,
categorias, noções, linguagens, narrativas, estéticas, formas de pensamento
que implicam moldar de nova maneira qualquer empiricidade que toma
como caso de análise. Como toda atividade discursiva ela se efetiva a partir
de dados lugares institucionais, espaciais, temporais, sociais, étnicos, de
gênero, teóricos, metodológicos que implicam a observância de regras, de
normas, de códigos que levam à modificação de qualquer empiricidade que
elejam como objeto de suas preocupações. Nada passa incólume pelo gume
dos discursos.
O folclorista, o estudioso da cultura popular, mesmo a nordestina, não
resgata nada, não faz nada voltar a ser o que era, retornar a uma pretensa
pureza original, a uma pretensa autenticidade e originalidade perdidas.
Nada no campo cultural é puro, autêntico e original. O campo cultural, em
qualqu er época e espaço, é marcado pelas misturas, pelas mestiçagens, pelos
hibridismos, pelos amálgamas, pela circulação, pelo fluxo multidirecional das
matérias e formas de expressão. Nada no campo cultural garante a preservação
da identidade, pois ele é presidido pela criatividade, pela capacidade
humana de criar símbolos, linguagens, sentidos vários e diversificados, ele
é presidido pela diferenciação, pela proliferação barroca dos significados. O
próprio jogo entre os significantes e os significados, entre as empiricidades e
as linguagens, que permite a existência dos discursos míticos, fazendo com
que estes elementos possam se deslocar e assumir a forma do outro, mostra
bem como não podemos pensar, em matéria de cultura, na existência de
realidades fixas, de objetos estáticos, de sentidos definitivos e a priori, tudo
nesse campo é movência, nomadismo, deslocamentos.
A aposta de muitos destes profissionais em paralisarem o tempo, de
evitarem a mudança de sentido e de práticas nas atividades culturais, nas
matérias e formas de expressão daqueles que integrariam o que nomeiam de
povo, de classes popu lares, é uma atitude de automitificação, pois se atribuem
e atribuem ao que fazem uma capacidade e uma tarefa que jamais possuem
ou poderão cumprir. Ao contrário, o que fazem só contribuiu e contribui
para tornar estas atividades e estas matérias e formas de expressão ditas
folclóricas ou populares muito diferentes do que fora m ou são. fabricam
o folclore e a cultura popular a pretexto de reencontrá-los, reencantá-los e
recontá-los. Fazem essas manifestações culturais se afastarem, mais ainda,
do que um dia foram, a pretexto de trazê-las de volta no tempo, de apagar o
esquecimento, de fazê-las novamente importantes e valorizadas.
A atividade que rea lizam tem uma enorme importância, mas não pela
tarefa que a si se atribuem, nem pela forma como a justificam e legitimam. Não
é pelo fato de serem atividades de "resgate': de "preservação': de "salvamento':
daquilo que estaria desaparecendo, sendo esquecido, morrendo, mas pelo
fato de serem, como muitas outras, atividades de criação, de dotação de
novos sentidos, de reenquadramento institucional, teórico, conceitual,
ideológico, estético das matérias e formas de expressão que elegem como
objeto da ação que realizam. Não se advoga neste livro que desapareçam,
por daninhas, as atividades do folclorista, do estudioso das manifestações
culturais das camadas sociais mais pobres, das classes trabalhadoras, dos
homens e mulheres que ocupam a parte de baixo da pirâmide social, nem
que os historiadores deixem de estudar os escravos ou os homens e mulheres
trabalhadores. Ele combate as mitologias que operam nesses campos de
estudos e pesquisas e que mistificam estas atividades.
Apresentamos, usando a arma dos estudos históricos, os procedimentos
de fabricação do objeto dito folclórico ou de cultura popular, como eles
foram mobilizados por aquele grupo de folcloristas que, no início do século
xx, inventaram o que seria a cultura nordestina ou o folclore nordestino
e como eles continuaram atuando quando emergiu, por volta dos anos 40
do século passado, a noção de cultura popular nordestina. Nestas páginas
não há nenhuma intenção de resgatar esse processo, pois não vemos a
historiografia como um discurso que traz de volta o passado, mas a intenção
foi submeter esse processo a uma nova interpretação, a uma outra leitura,
permitindo que seja visualizado de uma outra forma, não necessariamente
a única ou a mais correta, mas uma forma que permite ver de ângulos
diferentes, experiências e documentos que foram lidos de outras maneiras
antes dele. Um texto que mais do que enunciar verdades, e é inescapável
que o faça, foi escrito para pôr em questão dadas verdades clichê, que
são repetidas acriticamente, ad nauseam, pelo campo da historiografia
da cultura popular ou mesmo pelos discursos em torno do cultural, que
tendem a repetir as mesmas ladainhas sem qualquer parada para a crítica
e para a pesquisa. Não quero com isso dizer que não tenhamos uma
produção de muito mérito e importância feita pelos historiadores e pelos
especialistas em folclore ou cultura popular, e deles dependi para escrever
este trabalho, e a sua citação e mesmo a crítica podem ser tomadas como
uma homenagem ao que fizeram e vêm fazendo. Mas é preciso acabar com
os consensos, que levam sempre à monotonia e ao cansaço. É preciso pôr
em questão as certezas que atravessam qualquer campo de estudo para que
ele se torne vivo e vigoroso, para que seja capaz de produzir conhecimentos,
interpretações, novos e distintos.
É preciso que não continuemos como Carolina,350 debruçados na janela,
seja para que século for, sem ver o tempo passar, pois ele levará embora até a
janela, e ficaremos sem apoio para nosso cotovelo, ou seja, desabaremos. Os
conceitos, assim como as coisas, são afetados pelo tempo, têm uma história,
guardam em suas formas as marcas da passagem das épocas. Assim como
as coisas, as empiricidades, aquilo que é da ordem do material, do concreto,
são afetadas, quando não arruinadas pela passagem do tempo; as noções, os
conceitos, as categorias, as formas de pensamento, aquilo que é da ordem do
imaterial, do abstrato sofrem marcas, transformações, mudanças no decurso
do tempo, também podem vir, inclusive, a ser esquecidos, abandonados. O
que fiz neste livro foi a história dos conceitos de folclore, de cultura e de cultura
popular nordestinos, de como eles emergiram no pensamento brasileiro, de
como foram utilizados, manejados, a que práticas e operações deram origem
e que consequências resultaram de seu uso, no que respeita às matérias e
formas de expressão de dados grupos sociais, eleitos pelos agentes destes
conceitos como sujeitos das atividades que pesquisaram, deram visibilidade
e conferiram uma dada dizibilidade. Acima de tudo questiono a confusão,

350. Referência à canção "Carolina': composta por Chico Buarque de Holanda. Álbum Chico
Buarque. Vol. iii, 1968 (rge).
comum entre meus pares, entre conceito e empiria, entre realidade e empiria.
A realidade, de qualquer época já é, e já nos chega, portanto, conceitualizada,
elaborada por nós humanos, a partir de conceitos. Dizer, como fazem alguns
colegas, que a historiografia não possui uma teoria, que não demanda o uso
de conceitos, é ignorar que até mesmo aquilo que se chama de documento,
de evento, de fato, só existiu no passado e só é possível nos chegar, através
de qualquer forma de registro, mediante conceitos, portanto, a realidade já
é conceitual, é a empiria organizada e articulada mediante conceitos. Desse
modo, fazer a história dos conceitos não é fazer uma história que não seria
da realidade, mas é fazer a história daquilo que possibilita mesmo que a
realidade exista, que ela possa ser vista e dita pelos homens de dadas maneiras,
e não de outras, em determinados tempos e lugares. Nós não apenas falamos,
escrevemos, representamos mediante conceitos, nós agimos, praticamos,
fazemos a partir deles; eles orientam e definem a ação e são por ela e nela
testados, modificados, elaborados. Fazer uma história do folclore, da cultura
nordestina implica fazer uma história dos acontecimentos que permitiram e
convocaram a emergência desses conceitos e dos usos que deles foram feitos,
das práticas a que deram origem e das consequências que resultaram da sua
utilização e das práticas que motivaram.
Nele se procurou mostrar que, em nome da salvação, da defesa, do resgate
de dadas formas e matérias culturais, novos lugares de sujeito emergiram,
como: os de folclorista, etnógrafo, especialista em cultura popular, inclusive
nos meios populares. Novos objetos emergiram e classificações foram fe itas,
novas hierarquias entre as atividades culturais foram estabelecidas, novas
práticas foram introduzidas, modificações irreversíveis foram realizadas.
Como costumo dizer, em forma de boutade, só quem resgata é bombeiro e
socorrista do SAMU. Este livro é a história das mudanças, das transformações,
dos desgastes feitos em nome do "resgate"; das apropriações, da exploração,
inclusive no campo da cultura, sofridas pelas camadas populares. Ele procura
analisar como o processo de implantação de uma sociedade tipicamente
capitalista, burguesa, urbano-industrial, mercantil, entre nós, foi inseparável
de um processo de expropriação não apenas do trabalho manual, mas
também do trabalho intelectual das camadas trabalhadoras; como elas
foram, muitas vezes, desapossadas das suas criações sem ióticas, simbólicas;
como, em nome do resgate, da salvação, da defesa, mesmo no interior dos
próprios grupos populares, travaram-se negociações de material simbólico
que resultaram numa troca desigual, no que poderíamos chamar de extração
de uma mais-valia simbólica, que teve como consequência a acumulação e a
distribuição desigual do capital cultural no interior da sociedade. 351 Analiso
como estas negociações no campo cultural são inseparáveis das relações, dos
embates, dos conflitos, das alianças, da subordinação, da aceitação de dados
lugares no campo econômico, político, jurídico etc. Embora o processo
histórico e os eventos do passado não possam ser julgados em termos de
bem ou de mal, parodiando o título de um livro de famoso poeta brasileiro,
eu diria que, se existe algum "resgate" aqui, seria um "resgate de males': 352 E
assim dou por concluído o remate deste texto.

35 I. Para as noções de capital simbólico, trocas simbólicas, capital cultural, "er: BOURDIEU.
Pierre. .rl. ecouomia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
352. Referência a: ANDRADE, Mário de. Remate de males. São Paulo: Cupolo, 1930.
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Federal de Pernambuco. Publicou A


Invenção do Nordeste e outras artes

(Cortez/Massangana,1999), História: a
arte de inventar o passado (Edusc, 2007),

Preconceito contra a origem geográfica e

de lugar (Cortez, 2007), Nos destinos de

fronteira: história, espaço e identidade

(Bagaço, 2009), Nordestino: invenção do


"falo" - uma história do gênero masculino

(1920-7940) (Intermeies, 2013), além

de vários capítulos de livros e artigos


sobre teoria da história, história das
identidades espaciais e história de
gênero.

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