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A dialética entre o fim do voto de qualidade e a persecução penal

Edison Carlos Fernandes e Felipe Gali Panelli

Em meio a devaneios decorrentes do isolamento social, de novas medidas


governamentais adotadas, que se demonstram às vezes em descompasso com a
lei, para combater a pandemia, enfim, deste momento sui generis de crise
humanitária, novas teses têm surgido e teses antigas têm voltado à tona para
acalorar os debates no mundo jurídico, político e social. Dentre as diversas teses,
uma delas se destaca. Não pela sua notoriedade, inclusive pouco difundida no
mundo jurídico, nem por ser relacionada à pandemia, e sim pelo diálogo de fontes
entre o direito penal e o processo administrativo tributário federal; ou seja, a dialética
entre o fim do voto de qualidade e a persecução penal.

O artigo 18 da Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020 – conversão em Lei da Medida


Provisória 988, de 116 de outubro de 2019 –, extinguiu o voto de qualidade e
homenageou o princípio in dubio pro contribuinte. Basicamente, o voto de qualidade
era um método utilizado para desempatar decisões em órgãos colegiados, assim, no
caso de empate propriamente dito, o voto de minerva era do presidente do
colegiado, que representava a Fazenda Nacional. Não há complexidade nenhuma
em deduzir que os votos de minerva, em maioria, eram proferidos contrários ao
contribuinte1. Agora, no entanto, com a nova redação do artigo 18 da Lei 13.988, nos
casos de empate, decide-se favoravelmente ao contribuinte.

Mas, qual seria a relação entre o fim do voto de qualidade e a persecução penal?

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De acordo com estudo elaborado pela Insper, entre o período de 2017 a 2020, 76,61% dos votos
foram favoráveis à Fazenda. Não bastasse, os casos decididos por voto de qualidade têm valor 3,6
vezes maior que os demais. Acesso: <https://www.jota.info/jota-insper/estudo-mostra-que-voto-de-
qualidade-e-mais-usado-em-casos-de-maior-valor-08052020>; acessado em 28 de maio de 2020.
À guisa de exemplo, até para elucidar o ponto fático de intersecção entre o voto de
qualidade e a persecução penal, imagine-se: o contribuinte era autuado no âmbito
federal pelo não pagamento de determinado tributo; após recorrer
administrativamente, a discussão chegava à instância colegiada, entretanto, o caso
empatava, cabendo o voto de minerva ao representante da Fazenda, que, no caso,
tenha decidido de modo desfavorável ao contribuinte. Encerrada a fase
administrativa (sem mais recursos), o débito seria inscrito em dívida ativa, mas, além
de ser encaminhado para o ajuizamento de execução fiscal, também seria
encaminhado à delegacia e ao Ministério Público para apuração de suposto crime
contra a ordem tributária. E, após a fase inquisitiva, o Ministério Público prosseguiria
com a denúncia, recebida pelo juízo competente. Em outras palavras, seria iniciada
a persecução penal.

A hipótese descrita acima, até antes do fim de 2019, quando existia o voto de
qualidade, era perfeitamente possível. A dúvida é: com o fim do voto de qualidade,
as persecuções penais de crimes contra a ordem tributária de obrigações (principal e
acessória) exclusivamente exigíveis em razão desse voto, deveriam ser extintas,
pois, pela atual redação legal, sequer deveriam existir? Há diversos princípios
penais que podem ser invocados para melhor reflexão sobre o caso, em especial,
três deles se destacam: retroatividade da lei penal mais benéfica, in dubio pro reo e
analogia in bonan partem – em razão da interação dialética, os referidos princípios
serão abordados de modo concomitante.

A questão central é a aplicação – ou não – do princípio da retroatividade da lei penal


mais benéfica no presente caso. Seria possível a Lei nº 13.988 retroagir para
extinguir um crime decorrente (existente) do voto de qualidade? A princípio, a
resposta poderia ser negativa por dois argumentos objetivos. Primeiro, não se trata
de lei penal propriamente dita. Segundo, a natureza jurídica da norma é processual
(administrativa).

Conquanto seja uma norma de natureza processual, está estritamente ligada ao


direito penal, mormente à materialidade (existência) do crime em si, já que, se
retroagisse, extinguiria a materialidade do crime. Assim, tais argumentos poderiam
corroborar com a tese, sobretudo sob a ótica dos princípios analogia in bonan
partem e in dubio pro reo.

Sob a égide do princípio analogia in bonan partem, não obstante a norma seja de
natureza administrativa tributária, poderia, como no caso penal, por ser mais
benéfica, retroagir à época para que a decisão seja entendida como favorável ao

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contribuinte e, por conseguinte, extinguiria a materialidade do crime (existência do
débito) para fins penais.

À luz do princípio in dubio pro reo, a persecução penal também não se sustentaria.
Nesse diapasão, apareceriam, de certo modo, dúvidas em relação à materialidade
do crime, pois, além de atualmente tal circunstância não ser considerada crime –
sem voto de qualidade, a decisão seria favorável ao contribuinte e, portanto, o débito
se extinguiria por decisão administrativa – , àquela época, em que se discutiu o
tributo, ou descumprimento de obrigação (a materialidade do crime), já haviam
dúvidas vigorosas em relação a sua existência – ou não; por isso, com o fim do voto
de qualidade, foi prestigiado o princípio in dubio pro contribuinte.

Durante o presente artigo, questionamentos foram suscitados e respondidos na


medida do possível. Contudo, tendo em vista a complexidade da questão, inclusive
sob a perspectiva do diálogo de fontes, ainda há dúvidas sobre a aplicabilidade
desse posicionamento – brevemente esboçada – pelos Tribunais. Deveras, será
interessante analisar o posicionamento jurisprudencial sobre o assunto e os seus
respectivos efeitos.

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