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RESUMO
ABSTRACT
1
Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de autoria de S.J. Benelli, intitulada “Pescadores de Homens. A
produção da subjetividade no contexto institucional de um Seminário Católico”, sob a orientação do prof. Dr. Abílio da
Costa-Rosa. Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2003. Apoio: FAPESP.
2
Curso de Filosofia, Faculdade João Paulo II. Caixa postal 1011, Jardim América, 17506-770. Marília, SP. Brasil. E-mail:
<sjbewelli@yahoo.com.br>.
contemporary society and, mainly at total institutions context, where they are
so present. We consider that Goffman’s institutional analyses is between the
macro (molar) and micro spheres of the phenomenon, that happen in closed
institutions. He analyzes the non-discoursive practices, and subtlety
articulates them, as the daily, apparently insignificant and bizarre “details”
from institutional context makes us to realize the intra-institutional relations
of microphysics plan, dipping into different strategies in which power itself
branches, circulates, dominates and produces knowledges and subjects.
We might say that Goffman has already introduced the idea of power as a
dynamical relation of strategies always achieved at all parts and places.
Foucault, reveals us how possible are disciplinary institutions and their
reasons for emerging. They both are outstanding references to the institutional
analyses.
Key-words: total institution; subjectivity; institutional analyses; Foucault,
Michel; Gofman, Erving.
O tempo disciplinar, pelo contrário, visa à cada um e combiná-las num resultado ótimo;
utilização exaustiva: baseia-se no princípio de através da arregimentação, todos os indivíduos
uma utilização teoricamente crescente do tempo, cumprem suas tarefas em uníssono, sob um
intensifica o uso do mínimo instante, buscando sistema preciso de comando.
extrair sempre mais forças úteis. O máximo de Foucault (1999b, p.141) sintetiza a produção
rapidez deve encontrar o máximo de eficiência. que o poder disciplinar efetua a partir dos corpos
À medida que o corpo vai se tornando alvo que controla: uma individualidade caracterizada
de novos mecanismos de poder, oferece-se como celular (através do jogo da repartição
também a novas formas de saber: logo o comporta- espacial); orgânica (pois codifica formalmente as
mento e as exigências orgânicas vão lenta e atividades); genética (ao acumular um tempo
gradualmente substituir uma física algo tosca segmentado e serializado) e combinatória (pela
dos movimentos: composição das forças). A tecnologia disciplinar
O corpo, do qual se requer que seja dócil - aperfeiçoada, sobretudo, a partir da matriz
até em suas mínimas operações, opõe e conventual (Benelli, 2002a) - tende a atravessar
mostra as condições de funcionamento as diversas instituições que compõem o corpo
próprias de um organismo. O poder discipli- social, incidindo num nível propriamente capilar e
nar tem por correlato uma individualidade microfísico do tecido social. Através do processo
que não só é analítica e ‘celular’, mas descrito acima, o poder disciplinar constrói uma
também natural e ‘orgânica’ (Foucault, sociedade disciplinar, adestrando, produzindo
1999b, p.132). coletivamente corpos individualizados e dóceis.
Trata-se de uma modalidade de poder produtivo,
Em terceiro lugar, há um aperfeiçoamento
e não essencialmente restritivo, mutilador ou
do “programa” da busca de perfeição místico-
repressivo, que liga as forças para multiplicá-las
religiosa, que pretendia levar um indivíduo à
e utilizá-las em sua totalidade, apropriando-se
santidade, sob a direção de um mestre,
delas ainda mais e melhor. A ação do poder
constituída por uma vida ascética organizada em
disciplinar é essencialmente produção de
tarefas com níveis crescentes de dificuldade. O
subjetividade moderna.
poder disciplinar é genético, organiza gêneses:
divide a duração em segmentos, organiza
seqüências de acordo com um esquema analítico, Instrumentos técnicos para o adestramento
institui uma prova de qualificação no final do disciplinar
processo e estabelece séries de séries.
A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a
O “exercício” é a técnica por excelência
técnica de um poder que toma os indivíduos ao
pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo
mesmo tempo como objetos e como instrumentos
tempo repetitivas, diferentes e graduadas. Já não de seu exercício. “(...) O sucesso do poder
visa à salvação da alma, mas foi transformado disciplinar se deve sem dúvida ao uso de
numa tecnologia política do corpo e da duração, instrumentos simples: o olhar hierárquico, a
num processo de sujeição interminável. sanção normalizadora e sua combinação num
Finalmente, a tecnologia disciplinar visa à procedimento que lhe é específico, o exame”
composição das forças, reparte os corpos, extrai (grifo meu) (Foucault, 1999b, p.143). Visibilidade
e acumula o tempo dos mesmos, buscando total e irrestrita é a nova estratégia utilizada
também compor forças para obter um aparelho pelo poder disciplinar a fim de realizar o contro-
eficiente. “O corpo se constitui como peça de le – sem uso da violência ostensiva – para o
uma máquina multissegmentar” (Foucault, 1999b, exercício de uma vigilância produtiva. Cria-se um
p.139). A disciplina combina ainda séries dispositivo, “observatório” que obriga pelo jogo do
cronológicas para formar um tempo composto de olhar um aparelho onde técnicas óticas efetuam
modo a extrair a máxima quantidade de forças de manobras de poder: olho do poder que vigia,
O sistema microeconômico de gratificação- disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são
sanção é denominado por Goffman (1987, p.49) percebidos como objetos e a objetivação dos que
de “sistema de privilégios” que inclui os “ajusta- se sujeitam” (Foucault,1999b, p.154), mecanis-
mentos primários”, “ajustamentos secundários”, mo no qual relações de poder permitem obter e
prêmios e castigos. A penalidade perpétua, nas constituir campos de saber.
instituições disciplinares, normaliza os indiví- O hospital, a escola e o exército se
duos, diferenciando-os uns dos outros com base organizaram como “aparelhos de examinar”
no critério da norma: “o que se deve fazer funcionar contínuos: a visita do médico ao doente no
como base mínima, como média a respeitar ou hospital e o exame escolar funcionaram como
como o ótimo de que se deve chegar perto” limiar epistemológico para a assunção científica
(Foucault,1999b, p.152). da medicina e da pedagogia. Da mesma forma,
No regime disciplinar, o objetivo da punição inspeções permanentes no exército permitiram o
não é obter a expiação nem promover a repressão, desenvolvimento de um grande saber tático. “O
afirma Foucault. Ela produz sujeitos normalizados exame supõe um mecanismo que liga um certo
ao relacionar os atos, os desempenhos, os tipo de formação de saber a uma certa forma de
comportamentos singulares a um conjunto exercício do poder” (Foucault,1999b, p.156).
normativo ideal que funciona ao mesmo tempo Segundo Foucault, o exame inverte a
como parâmetro de comparação, espaço economia da visibilidade no exercício do poder:
diferenciador e princípio de uma regra a seguir. o poder disciplinar, ao exercer-se torna-se invisível,
O parâmetro normativo funciona coagindo a mas os objetos aos quais se aplica são
uma conformidade a realizar, traçando limites, submetidos a um princípio de visibilidade
estabelecendo diferenças, criando fronteiras entre obrigatória. “É o fato de ser visto sem cessar, de
o normal e o anormal. Assim, o poder da norma sempre poder ser visto, que mantém o sujeito
se baseia em um conjunto de fenômenos indivíduo disciplinar” (Foucault,1999b, p.156). O
observáveis, na especificação de atos em um exame é a técnica pela qual o poder capta os
certo número de categorias gerais, fazendo indivíduos num mecanismo de objetivação,
funcionar a oposição binária do permitido e do organiza objetos no espaço que domina, até em
proibido, produz diferenciação e classificação, seus graus mais baixos.
hierarquização e distribuição de lugares. A regula- Além disso, o exame também insere a
mentação normalizante não produz homogeneida- individualidade num campo documentário:
de, ela individualiza, mede desvios, determina relatórios, prontuários, fichas, arquivos e pastas
níveis, fixa especialidades, torna úteis as pessoais e dossiês são alimentados com detalhes
diferenças, ajustando-as entre si, introduz toda a que captam e fixam os sujeitos numa rede de
gradação das diferenças individuais. anotações. “Os procedimentos de exame são
acompanhados imediatamente de um sistema
O exame como instrumento de sanção de registro intenso e de acumulação documen-
normalizadora institucional3 tária” (Foucault,1999b, p.157). Goffman (1987,
p.25) também apresenta a prática da realização
As técnicas da vigilância escalonada e da dos “processos de admissão” e do “dossiê”
sanção que normaliza se unificam na produção pessoal.
da tecnologia do exame, que produz efeitos de A escrita disciplinar também possui efeitos
controle normalizante e uma vigilância que permite individualizantes e normalizantes: ela descreve e
qualificar, classificar e punir. Técnica sofisticada analisa o objeto indivíduo, mantendo-o em seus
na qual poder e saber se superpõem, se imbricam traços singulares, submetido a um saber perma-
profundamente. “No coração dos processos de nente. É aí que Foucault localiza o nascimento
3
Os destaques em itálico desta seção são de Foucault (1999b).
das ciências humanas, elaboradas no bojo de As análises de Goffman (1987) são extrema-
relações de saber/poder que realizam a coerção mente agudas quando estudam as formas da
dos corpos, gestos e comportamentos. Trata-se organização do dispositivo institucional. Se ele
de uma dominação produtiva, que não opera por não chega a articular uma microfísica do poder no
subtração ou repressão, mas visa a diferenciação contexto institucional e social, como faz
e a multiplicidade útil dos sujeitos. explicitamente Foucault, isso aparece numa
Por fim, o exame, cercado por esta técnica leitura atenta em sua investigação do manicômio,
da documentação, transforma o indivíduo em um da prisão e do convento. Goffman não pode
“caso”, objeto de conhecimento e de poder, ao conceituar o poder como relações de força em
mesmo tempo. “O ‘caso’ (...) é o indivíduo tal guerra, entretanto, é assim que sua análise o
como pode ser descrito, mensurado, medido, revela: produzindo no nível microfísico exatamente
comparado a outros e isso em sua própria do modo como o poder opera, para além dos
individualidade; e é também o indivíduo que tem limites teóricos e conceituais do autor.
que ser treinado ou retreinado, tem que ser Ao estudar as relações intra-institucionais,
classificado, normalizado, etc.” (Foucault,1999b, ele oscila entre os planos molares e microfísicos:
p.159). Goffman (1987, p.70) também apresenta estabelece polaridades de poder e não-poder,
o “registro de caso” que vai sendo produzido ao nas quais, aparentemente, este seria privilégio
longo da carreira do internado. de um grupo minoritário que infligiria a outro mais
O exame encontra-se no centro mesmo numeroso as conseqüências do abuso do poder;
dos processos que individualizam os sujeitos mas também apresenta um poder que se estende
como efeito e objeto de poder e de saber. “Na como uma rede de pontos, relações móveis,
verdade, o poder produz; ele produz realidade; resistências, efeitos repressivos, coercitivos e,
produz campos de objetos e rituais de verdade. inclusive, produtivos. Estão explícitas as mais
O indivíduo e o conhecimento que dele se pode diversas estratégias anônimas de poder. Das
ter se originam nessa produção” (Foucault,1999b, práticas não-discursivas emergem concepções
p.161). do objeto institucional e de quais são os meios e
instrumentos utilizados para trabalhá-lo.
A instituição total como agência de Normalmente, essa teoria e técnica da prática
produção de subjetividade (pois, “na prática, a teoria é outra”) costumam
estar em franca contradição e conflito com o
Goffman (1987) diz o que são, como discurso institucional oficial.
funcionam e indica o que produzem as instituições
Goffman (1987) analisa as práticas não-
totais. Foucault (1984, 1999a, 1999b), por sua
-discursivas, o não-dito institucional, mas que é
vez, nos revela como são possíveis as instituições
claramente visível (e não oculto) e, portanto,
disciplinares e quais as razões de sua emergência,
dizível: ele os articula com grande sutileza.
além de apontar para sua futura obsolescência e
Goffman faz os “detalhes” (Foucault, 1999b,
desaparecimento. Finalmente, será Deleuze
p.120) mais pitorescos e aparentemente insignifi-
(1992) aquele que nos revela a emergente socieda-
de de controle como superação da sociedade cantes do cotidiano institucional falarem: percebe-
disciplinar. mos então o plano microfísico das relações intra-
-institucionais superando a pura e simples
Curiosamente, como vimos, Foucault
dimensão organogramática (molar) e mergulhando
(1999b) nos apresenta uma sociedade disciplinar
nas diferentes estratégias nas quais o poder se
sem brechas, na qual a resistência ao poder
ramifica, circula, domina e produz.
parece impossível. Movimentos de resistência e
mesmo sua possibilidade parecem ausentes no Consideramos a subjetividade como uma
horizonte do livro “Vigiar e Punir”. Será em outros produção eminentemente social e, portanto,
momentos que Foucault (1982, 1999c) abordará coletiva. No contexto institucional, ela é produzida
o assunto. na intersecção das práticas discursivas (imaginá-
homem ao aparelho de produção, tornando-o alguns, e os demais nunca estão totalmente dele
trabalhador, agente de produção. Não há produ- destituídos.
ção de mais-valia sem esse poder capilar e Foucault (1982) afirma que a perspectiva de
microfísico. que o poder seja algo que se localiza somente no
A sociedade capitalista é caracterizada por aparelho de Estado está equivocada. O poder
relações de produção específicas que, por sua estatal funciona atravessado por um sistema de
vez, são determinadas por estas relações de poderes que o compõem e ultrapassam. Ele
poder microfísico e por formas de funcionamento tampouco é apenas um instrumento do modo de
de saberes que plasmaram as chamadas ciências produção dominante, pois foi justamente o poder
humanas. Assim, poder e saber encontram-se disciplinar moderno que, ao submeter o tempo ao
mutuamente implicados, não se superpõem às imperativo da produção (Foucault, 1984),
relações de produção, mas estão profundamente possibilitou a emergência do Modo de Produção
imbricados na própria constituição delas. As Capitalista (MPC). O poder não deve ser entendido
ciências humanas, o homem como objeto da como agente basicamente repressor, mas
ciência, têm como possibilidade para seu Foucault o apresenta como pleno de uma função
surgimento a própria gênese e construção da produtiva e criadora tanto de saberes quanto de
sociedade disciplinar, que implementou em seus sujeitos.
dispositivos as instituições de seqüestro, onde Ao investigar o surgimento e constituição
espaços e equipamentos de controle permitem a da sociedade moderna, Foucault se pergunta
atualização da maquinaria do Panopticon pelas técnicas de implementação e exercício de
(Foucault, 1984; 1999b; 1999c), multiplicando poder que estão na sua base. Para produzir
nelas saberes sobre o indivíduo, a normalização sujeitos não bastam o uso da violência, valores
e a correção. morais, normas interiorizadas ou influência
Foucault (1984), utilizando a política da ideológica. Foucault vai buscar as técnicas de
verdade como instrumento para sua análise poder modernas que se concentraram no corpo,
histórica da origem da atual sociedade disciplinar, no saber e nas normas. A tecnologia moderna do
conclui que as relações de força e relações poder se caracteriza por uma canalização
políticas são as condições de possibilidade para produtiva de forças submetidas ao adestramento
a formação de um certo número de domínios de disciplinar e a uma rotinização do agir em direção
saber. As condições políticas e econômicas da a padrões normativos fixos, a partir do que se
existência não são um obstáculo ideológico para constrói uma noção de “normalidade”.
o sujeito do conhecimento, mas são as condições O primeiro lugar de exercício do poder
nas quais se formam, se constituem os sujeitos moderno não é o plano cultural, mas os corpos
de conhecimento e as relações de verdade. em sua própria materialidade concreta, física e
O campo social é organizado segundo um manifestações vitais. É como uma “microfísica”
paradigma bélico da luta ou da guerra de acordo que as modernas técnicas de poder se exercitam
com Foucault (1999c), e todas as práticas sociais sobre a padronização e adestramento dos
comportam sempre a dimensão de ações processos de movimento do corpo, visando disci-
estratégicas. O poder é o elemento central em plinar os movimentos motores dos indivíduos em
qualquer sistema social, que se exerce de modo direção a atividades produtivas, numa busca de
estratégico. Aquilo que se mostra como um extrair sua máxima eficácia. Além da dimensão
ordenamento social é apenas um arranjo do corpo do indivíduo, o poder investe também no
momentâneo, mais do que um bloco sólido e controle e desenvolvimento do comportamento
permanente. Trata-se somente do resultado atual biológico das populações, na estatística dos
numa luta constante e nos diversos empregos do seus níveis de natalidade, mortalidade, morbidade
poder. Nessa luta, o poder não é propriedade de e saúde (Foucault, 1982).
Mas essas técnicas de poder modernas totalidade do campo social, que é considerado
desenvolvem sua eficiência máxima quando se um importante pano de fundo.
organizam sob a forma de saberes, num ciclo Nossa ação profissional é normalmente
regular. A tecnologia do poder se formula em situada em contextos institucionais específicos.
regras de descobrimentos científicos relativos Nesses ambientes, notamos que continuam
aos corpos e à vida. São nos estabelecimentos sendo implementadas inclusive as estratégias
sociais, tais como clínica, prisão, hospital, escola, mais grosseiras de normalização disciplinar
manicômio, fábrica etc.; que se constroem mapeadas por Goffman (1987) e Foucault (1999b),
discursos científicos e profissionais, saberes apesar da sofisticação trazida pela tecnologia:
conjugados com poderes. Poder produz saber e telefone celular, Internet, equipamentos de monito-
vice-versa, pois não existe saber que não esteja ração de lojas, empresas, ruas e praias públicas
alicerçado em relações de poder que erigem as com câmeras, rastreamento via satélite, informa-
formas políticas da verdade ao longo da história. tização do controle e gerenciamento de pessoas
Desse modo, Foucault (1982) construiu nos mais diversos tipos de estabelecimento.
uma grade de análise que denominou de Particularmente no que tange à saúde
dispositivo, com a qual pretende dar conta das mental no âmbito maior da saúde coletiva, devido
conexões entre saber/poder: um dispositivo englo- ao clássico descuido e falta de investimentos
ba materiais heterogêneos, o dito e o não-dito. A governamentais, continuamos com instituições
partir desses componentes díspares, o genealo- nas quais vigoram práticas totalitárias tão
gista pode estabelecer um conjunto de relações rudimentares ainda que poderíamos considerar
flexíveis, reunindo-as num único aparelho de tais estabelecimentos verdadeiras “excrescên-
modo a isolar um problema específico. Munido cias” não só do ponto de vista temporal, mas
dessa ferramenta, o genealogista é capaz de inclusive quanto à própria transformação e
demarcar a natureza da relação que pode existir sofisticação das tecnologias de controle.
entre esses elementos discursivos e não-discursi-
vos, além de evidenciar a função estratégica do Sendo a sociedade um tecido formado por
dispositivo na medida em que responde à uma rede de instituições sociais, os problemas
articulação entre produção de saber e modos de psicossociais devem ser contextualizados no
exercício de poder que são dominantes em cada plano institucional e sociopolítico nos quais
momento histórico. emergem para serem adequadamente equaciona-
dos sob pena de permanecermos em conside-
rações funcionalistas que apenas mascaram a
CONCLUSÃO realidade do poder e da política, reduzindo-os a
questões de ordem “psicológica” ou “sociológica”
O lugar das instituições disciplinares na individuais. Muitas vezes, provavelmente, o que
sociedade contemporânea tomamos como efeito colateral é, na verdade, o
produto principal da ação institucional, apesar de
Observando concretamente a realidade
todos os seus discursos altruístas, plasmados
atual, sabemos que o poder e as práticas discipli-
nos seus projetos oficiais.
nares, no século XXI, estão mais sofisticados e
qualitativamente mais dispersos na vida social Podemos afirmar que dominação, aumento
como um todo. Mas nossa perspectiva de da alienação social, adaptação sociocultural,
análise neste artigo, sem desprezar esse fato, mistificação ideológica são funções das diversas
concentra-se e focaliza universos institucionaliza- instituições sociais na sociedade burguesa
dos mais restritos, pois a atuação dos profissionais capitalista. As ciências humanas emergentes
da saúde coletiva (psicólogos, terapeutas nos séculos XIX e XX nasceram com esse mandato
ocupacionais, assistentes sociais, médicos, de gerenciamento das populações para a
psiquiatras etc.) dificilmente se ocupa com a manutenção do sistema (Foucault, 1999b). Desde
sempre, e muito antes, essa também foi a função consciência e suas práticas. Sabemos que sua
social da religião: manutenção ideológica do ação é historicamente condicionada e determi-
sistema social, na antigüidade e no mundo nada pelas condições sociais gerais de produção
medieval. Na modernidade, o controle social e reprodução da existência.
estatal ganhou ares de cientificidade (Foucault, Também é verdade que se uma instituição
1999b). cumprisse o que se propõe a realizar, ela se
O que nos ocupa neste estudo é a análise dissolveria. E as instituições tendem a resistir
de instituições entendidas como elementos de aos processos de dissolução, por isso gastam
um dispositivo articulador das relações entre grande parte de suas energias em esforços de
produção de saberes e modos de exercício do automanutenção. Mas temos o direito de exigir
poder. Por isso retomamos a descrição de das instituições o cumprimento do “contrato
determinadas instituições: aquelas que, num simbólico” (Costa-Rosa, 2000; 2002), questionan-
dado momento histórico, constituem peças na do até que ponto os instrumentos utilizados têm
engrenagem de um tipo específico de sociedade, alguma conexão com a possibilidade de
que Foucault (1984; 1999b) nomeou como cumprirem suas promessas.
“instituições disciplinares”. Nesse sentido, o que Podemos afirmar que a institucionalização
a genealogia de Foucault nos proporciona é uma da vida do indivíduo produz um tipo de subjetivi-
análise pragmática da nossa situação atual, haja dade específica trabalhando na sua formação
vista que ainda vivemos numa sociedade através de práticas objetivantes e subjetivantes
disciplinar, pelo menos no que diz respeito a uma que incidem diretamente na sua constituição
boa parte da vida social alijada da produção e subjetiva, promovendo a explicitação de várias de
consumo de tecnologia de ponta. A partir dos suas possibilidades neuróticas, psicóticas e
estudos que realizamos, entendemos que um perversas, tal como podemos verificar em Castel
elemento estrutural das instituições em geral é o (1978), Guirado (1986), Goffman (1987), Cruz
descompasso e a contradição entre o plano (1989), Tagliavini (1990), Ferraz e Ferraz (1994),
estabelecido em seus estatutos e as práticas Foucault (1999b), Benelli & Costa-Rosa (2002),
implementadas em seu projeto cotidiano. Essa Benelli (2002; 2003). Embora muitos desses
cisão formal encontra seu sentido no fato de que autores não utilizem explicitamente a expressão
o sucesso de uma instituição depende do seu “produção de subjetividade”, eles caracterizam
aparente fracasso como uma organização formal bem sua produção, destacando os efeitos iatrogê-
que se dispõe a realizar alguns objetivos nicos do processo de institucionalização de
específicos. pessoas.
Foucault (1999b) ressalta que a principal Os saberes psi devem abrir mão do poder
função das instituições no estrato sócio-histórico de controle que lhes foi historicamente delegado,
da sociedade disciplinar é de normalização, quando se encomendava que eles gerenciassem
implementando práticas classificatórias, hierar- a loucura e controlassem os distúrbios da popu-
quizantes, distribuindo lugares. Desse modo, o lação. Superando a mera função de mantenedores
atual campo enunciativo que possibilita “ver” e da ordem pública, renunciando à condição de
“falar” algo (remetendo às práticas) aprisiona e instrumentos promotores de segurança pública
aliena ambos os pólos (agentes institucionais ao administrarem a “periculosidade social” dos
dirigentes e clientela). O que uma instituição visa indivíduos desviantes, os profissionais psi podem
é controlar os desvios dos sujeitos enquanto orientar sua ação na direção de uma ética
indivíduos, esquadrinhando seus comporta- singularizante.
mentos e efetuando sobre eles uma vigilância Na sociedade capitalista, as instituições
constante. Quase poderíamos dizer que os metabolizam a contradição principal (capital/
diversos atores institucionais “não sabem o que trabalho) através de diversas estratégias. As
fazem”, afinal, é seu ser social que determina sua relações de poder são escamoteadas e interpreta-
das de um modo funcionalista: tendência a uma nado objeto, partimos da consideração de sua
psicologização interiorizante e individualizante, suposta natureza essencial para a produção de
ou a uma sociologização que universaliza os saberes e técnicas para trabalhá-lo. Os meios e
interesses da equipe dirigente (representante os fins seriam então decorrentes dessa natureza
das forças hegemônicas sociais e institucionais), presumida do objeto. É por isso que acreditamos
negação das contradições sociais reais e um na importância de uma análise das práticas,
processo de naturalização que elude a daquilo que fazemos no contexto institucional. O
historicidade dos fatos (Albuquerque, 1980). fazer embute em si uma teoria, um objeto,
Acreditamos que seja necessário pensar saberes e técnicas: produz subjetividade, modos
as relações de poder situadas no conjunto de de existência, sujeitos, universos de materiali-
práticas sociais que produzem os sujeitos como dade social. Tal processo pode se submeter ao
corpos dóceis, adestrados e seres desejantes sentido do processo hegemônico de produção de
(Foucault, 1999b). Uma articulação pertinente subjetividade, mas também pode se orientar no
dos fenômenos emergentes no contexto sentido de produções singularizadas.
institucional pode ser elaborada num processo Nesse sentido, Costa-Rosa (2000, p.151)
de análise institucional, procurando superar estabelece alguns parâmetros importantes na
posicionamentos funcionalistas ingênuos. composição de um determinado paradigma, que
Pensamos que as dificuldades e problemas das devem ser observados quando procuramos
instituições totais não se modificariam apenas estudar e caracterizar uma determinada
com novos métodos e técnicas de gerenciamento instituição, evitando perspectivas funcionalistas:
institucional. A inércia do instituído tende a a) concepção do ‘objeto’ e dos ‘meios de trabalho’,
mover os atores institucionais na direção de que dizem respeito às concepções do objeto
receitas que prometam soluções mágicas e institucional e concepção dos meios e instru-
rápidas para seus impasses e conflitos. Assim, mentos de seu manuseio (inclui ainda o aparelho
buscam-se reformas para manutenção tudo como jurídico-institucional, multiprofissional e teórico-
está, produzindo modificações em aspectos -técnico, além do discurso ideológico); b) formas
secundários que geram somente efeitos paliativos de organização do dispositivo institucional: como
(Baremblitt, 1998). se organizam as relações intra-institucionais,
Seria preciso ousadia para modificar o eixo organograma, relações de poder e de saber;
central das discussões: teríamos que problema- c) formas de relacionamento com a clientela;
tizar o objeto institucional das diversas instituições d) formas de seus efeitos típicos em termos de
totais, desnaturalizando, “despsicologizando”, resolutividade e éticos, que inclui os fins políticos
“dessociologizando” o homem que aí é processa- e socioculturais amplos para os quais concorrem
do, tomando-o como um sujeito infinitamente os efeitos de suas práticas. As instituições totais
mais complexo e multifacetado do que a caricatura podem ser inseridas num paradigma denominado
empobrecida que faz dele um personagem asilar e podemos compreender claramente sua
habitante do universo institucional totalitário. dinâmica ao situá-las nesse contexto (Costa-
-Rosa, 2000).
Consideramos necessário analisar as
diversas práticas institucionais (formativas, Muitas questões pedagógicas, psicoló-
educativas, pedagógicas, terapêuticas, gicas, psiquiátricas, hospitalares, da saúde
correcionais, socioeducativas), problematizando coletiva, etc. podem se tornar mais inteligíveis
seus pressupostos subjacentes, procurando quando enquadradas num marco institucional
detectar como e até que ponto tais ações global. Entendemos que os problemas institu-
funcionam como filtros de transformação seletiva cionais são também problemas sociais. Soluções
e deformante de qualquer proposta inovadora. técnicas muitas vezes não são suficientes para
Trata-se mesmo de promover uma revolução resolvê-los, pois exigem soluções políticas para
conceitual: dependendo de como vemos determi- sua metabolização. A política não é uma questão
técnica (eficácia administrativa) nem científica Cruz, S.G.F.P. (1989). Herói ou bandido? Um
(conhecimentos especializados sobre geren- estudo sobre a produção de identidade em
ciamento ou administração), é ação e decisão policiais militares. Dissertação de mestrado
coletiva quanto aos interesses e direitos do em Psicologia Social, Pontifícia Universidade
próprio grupo social. Católica de São Paulo.
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