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Anténio Hespanha JUSTICA E LITIGIOSIDADE: HISTORIA E PROSPECTIVA 'SERVICO DE EDUCAGKO FUNDAGAO CALOUSTE GULBENKIAN / LISBOA. 287 DA «IUSTITIA» A «DISCIPLINA» TEXTOS, PODER E POLITICA PENAL NO ANTIGO REGIME” ANTONIO MANUEL HESPANHA. SUMARIO Com base na andlise comparada do ‘iscurso da literatura criminal dos fas commune elissico e do projecto do ‘6igo criminal de Pascoal José de Melo Freire, procura-se surpreender 0 impensado de duas matrizes de ‘compreensio da funeio penal ¢ de dois modelos da sua institucionalizagao na sociedade do Antigo Regime, (1) Antigo publicado no nimero especial do Boletim da Facaldade de Dirito {de Coimbra "Estudos em Homenagem ao Prof, Doutor Eduardo Correa", 1986. 289 | INTRODUGAO Em 26 de Novembro de 1786 — quatro dias antes da promulga- 20 daquele que € considerado como primeiro «cédigo penal mo- dernon, 0 eédigo de Pedro Leopoldo da Toscana -, Pascoal de Melo apresentava a Junta do Novo Cédigo « primeira parte do seu projec {ode cédigo criminal Apesar de objecto de its edigdes e de ser geralmente conheci: do e citado, este texto nfo tem despertado grande atengiio, E, no en- tanto, trata-se, meu ver, de uma pega fmpar, quer no confronto com a tradigZo legislativa curopeia, quer pela importineia que vai ter como modelo (muitas vezes implicito ou silenciado) das futuras tentativas de codificagso penal em Portugal, Neste estudo, pretendo contribuir para colmatar esta lacuna da nossa historiogratia, Ao fazé-lo, dou-me conta, porém, do caricter inusitado do em- preendimento, no contexto das actuais tendéncias da hist6ria institu cional ¢ juridica. Numa fase de critica generalizada, e globalmente Justa, a uma hist6ria jurfdico-institucional voltada para os textos legislativos ou doutrinais — ¢ separada do estudo dos factos sociais, cis que me re-proponho um estudo textual, numa érea onde, para ‘mais, proliferam leituras antropolgicas, sociolégicas ¢ politicas ~ a historia do crime e da pena corte, portanto, colocar algumas questies preliminares sobre © cstatuto te6rico da histéria textual nesta época que rompeu definiti- 290 ‘vamente com os postulados da historiografia juridico-institucional de cariz dogmético (Dogmengeschichte). A primeira questio a ser levantada & a de saber se tem sentido, ppara quem pretenda fazer uma hist6ria dos sistemas de controlo ¢ Imarginalizagdo sociais, preocupar-se assim com 0s textos. Na verdade, e quanto aos textos legais, todos sabem que as leis — imesmo as penais ~ nunea so pontualmente cumpridas e gue, em al- ‘guns casos, nem sequer visam - como diremos didiante ~ essa apli- Cagiio pontual. Que, ademas, elas nfo constituem todo o direito, cexistindo normas socialmente eficazes no plano da marginalizagio © da punigao de diversfssima origem, desde os estilos de julgar até a regras muito pouco estruturadas de comportamento social”. Quanto & doutrina, todos os que esto familiarizados com a literatura juridica ccedo descobrem que ela constitu, no um espelho da realidad so- cial, mas um seu filtro ¢ reconstruglio. Que reclassifica ¢ revaloriza 19s factos sociais, que silencia outros, que eria realidades «imaging ras» ~e nifo me refiro apenas aquilo que os préprios juristas consi dderam como fictiones iuris, mas a coisas de cujo carfeter «construi- do» eles parecem nfo se dar conta ~ e as trata como reais E, no entanto, os textos, no apenas so, eles mesmos, realida- des da hist6ria juridica e institucional, como mantém uma fatima re lagi com outras realidades de que se alimenta quotidianamente a tal hist6ria social das instituigdes. ‘Comego por este timo aspecto. Um dos temas actuais da hist6- ria penal europeia é o das grandes linhas de evolugao da etiminali- dade na Europa, ds Idade Média aos nossos dias. Explorando uma sugestdo inicial de uma transigao da criminalidade violenta para a criminalidade patrimonial (from violence to theff)™, tem-se procura- do, com base em estudos estatisticos dos registos judiciais, compro- ‘var ou infirmar esta tese. Mas, «furto» ou «violéncia» sao realida- des conceituais ¢ no empiricas (no sentido mais Ihano da palavra. E realidades conceituais que, como se verd, experimentaram mu- ‘dangas bruscas no decurso da evolugdo dogmética, da ciéneia penal. Como os factos sociais do passado nos chegam através de textos —& de textos que os filtram pelas categorias da grande tradigao dogmé- 291 tica europeia ~ esta tradig&o textual acaba por constituir uma chave indispensével para fazer a hist6ria dos Factos empiticos. Mas, mais do que isto, parece importante sublinhar como 0s tex- tos, em si mesmos, sio factas soviais ehistoridveiss. Como nio so apenas receptéculos neutros e dispontvcis de ideias ou de coisas, mas realidades internamente estruturadas, dotadas, por assim dizes, dos juristas letradas. Essa func pa- rece ser, em contrapautida, a de afirmar, também aqui, o sumo Poder do rei como dispensador, tanto da justiga como da graga, 1 nesta perspectiva que, # meu ver, deve ser lidoo dirito penal da coroa. Se 0 fizermos, nfo deixaremos de convir que, em termos de normago ¢ punigo efectvas, ele se earacteriza, mais do que por uma peesenea, por uma ausEncia, Vejamos como e porque ‘Comedemos pelos aspectosligados & efectivagio poitiva por as- sim dizer, da ordem real 298 Com esta se relaciona, desde logo, a questio da eficdcia confor- madora da mediagao dos juristas, ou seja, capacidade que os juristas tem, no sistema do ius commune, de estabelecer autonomamente 0 direito, No entanto, como esta questo nos ir sobretudo interessar rum ulterior momento, deixemo-Io por agora, Fixemo-nos, para jé, ‘no grau de aplicaggo prética da ordem penal legal. Os dispositivos de efectivagdo da ordem penal, tal como vinha na ei, careciam de eficiéncia, Primeiro, pela multiplicidade de jurisdigoes, origem de contli- tos de competéncia ~ descritos por muitas fontes como intermind- veis -, que dilatavam os processos e favoreciam fugas a0 castigo, Depois pelas delongas processuais ~ de que todas as fontes nos dio conta ~, combinadas com 0 regime generoso de livramento dos ar- ‘guidos, a que nos referiremos", Finalmente ~ e é este o tema que, agora, nos passa a interessar — pelos condicionalismos de aplicagio das penas, Condicionalismos de dois tipos. De natureza politica, isto & re- lacionados com © modo como a politica penal da corva se imtegrava ‘numa poltica mais global de diseiplina régia; ou de natureza priti- a, relacionada com as limitagdes dos meios institucionais, logisti- cos ¢ humanos na disponibilidade da coroa. Comecemos por estes ‘ltimos e, no final, concluiremos com os primeiros. ~~ ‘Tomemos para exemplo a pena de degredo, Quando aplicada pa- 4 0 ultramar, ela obrigava & espera, por vezes durante meses ou anos, de barcos para o local do exilio o réu ficava preso & ordem da justiga, nas cadcias dos tribunais de apelagdo, tentando um even- wal livramento, aquando das visitas do Regedor da Justiga”. De qualquer modo, uma vez executada a deportagio, faltavam os meios de controlo que impedissem a fuga do degredo"™, [As mesmas dificuldades existiam nas medidas, preventivas ow penais, que exigissem meios logisticos de que @ administraglo da justiga careci, Era o que se passava com a prisio ~ de resto, rara ‘mente aplieada como pena -, que obrigava a existencia de cer Seguros, A organizagio de operagbes onerosas de transporte de pre- 505 (as dias levas de presos),disponibiidade de meios de sus- 299 tento dos detidos, embora parte do cibo comesse & conta destes. AS sinicas penas facilmente executsveisesam as de apicacio momenta- nea, como as agoites, o cortamento de membro ou a morte natural Mas, como veremos de seguida, mesmo estas parece terem sido, por “razbes diferentes, raramente aplicadas. ‘Vejamos agora o que acontecia com a mais visfvel das penas ~ a pena de morte natural, prevista pelas Ordenagdes para um elevado numero de casos, em todos os grandes tipos penais, salvo, porventu- ra, nos crimes de dano™. Prevista tantas vezes que, nos fins do sée, XVIII, se conta que Frederico 0 Grande, da Priissia, ao lero livro V das Ordenacdes, teria perguntado se, em Portugal, ainda havia gente viva. Na pritica, todavia, os dados disponiveis parecem aconselhar uuma opiniio bem diferente da mais usual quanto ao rigorismo do sistema penal. Na verdade, ereio que a pena de morte natural era, em termos estatisticos, muito pouco aplicada em Portugal, ‘Como nao existem estudos empiricos sobre os modelos de puni- ‘80, nem sequer ao nivel dos tribunais da corte ~ por onde todos os ‘casos de penas superiores a de agoites tinham que passar em apela- ‘¢do™ —, temos que nos socorter de indicios dispersos e menos siste- méticos, Comecemos por uma fonte ~ uma relagio dos presos da cadeia da cidade de Lisboa, entre 1694 e 1696, a que nos referizemos mais detidamente nos parégrafos seguintes — que nos faculta dados re- lativos as medidas penais aplicadas a cerea de 300 (em geral, gran- des) ctiminosos; a ela se referem o Quaklro Te os Graficos Ta TIT do ‘Anexo. Por aise vé que a pena capital apenas foi usada em 3 casos, todos de homicfdio (um caso de homicidio do marido pela mulher, do carcereiro por um preso e «de hum rapazs). Mas escaparam com ‘outras penas (nomeadamente, de degredo): um «tenegado e traidor, ‘um falsificador de moeda, um salteador de estradas, quase todos os homicides (que eram 66, dos quais 57 condenades), todos os conde- rnados como ladies (57 condenados, em 112 casos), os adtiteros (3, ‘em 7), 08 sodomitas (1), os raptores (3, em 4), os violadores (1), 08 incriminados por masturbagio (2, em 6), et. (¥. Quad I, em anexo) 300 ‘Trata-se, é certo, de uma fonte situada num momento preciso do tempo, embora com um nimero significativo de casos. Mas outros {estemunhos pontuais apontam no mesmo sentido”. F itustrativo tentar completar esta perspectiva reportada a um ‘momento com uma outta, esta diverénica,relativa 8 aplicagio da pena de morte. Recorremos, para ist, as listagens das condenagies Amore, sobretudo aquela que foi feta, no século passado, por Hen- riques Seceo, completada pelos poucos casos referidos a litera- ‘ura especializada e que af no foram incluidos. Nao se trata, natu- ralmente, de uma lista euja exaustividade esteja garantida™ Mas, para 0 Sul do pas © para 0 perfodo que medeia entre 169% ¢ 1754, cla deve conter poucos lapsos, pois se baseia no rol dos condenados constantes clos eadermos dos padres que os acompanhavam ao lugar 4o suplici, em Lisboa, Sendo cero que, como veremos, 0 trbu- nais da corte eram instincius de recurso obrigatério para todas as jstigas do centro-sul do reno, nstes casos. © Grifico III resulta da aplicago da anilise factorial de corres- ondéncias® aos dados anteriores. A intengiio foi a de efectuar um agrupamento dos tipos criminais, a partir do tratamento de que eram objecto; e, a0 mesmo tempo, agrupar as medidas penais, de acordo, ‘com a gama de crimes a que eram aplicadas. No grifico, os pontos correspondentes as penas esto marcados com uma cruz ¢ os corres pondentes aos tipos penais com um quadrado, num caso ou noutro de tamanho proporcional ao peso da respectiva coluna ou linha da atria grfico documenta: 4) uma grande proximidade do tratamento pena ~ tendendo para 0 degredo ou para o livramento — dos crimes de adultério, also e in- jrias; 301 ANEXO, Crimes, condenagdeselivamentos dos press da cade da Relgo de Lishoa (1694 11696) (Fonte: Lembvangas dos erbminozos..) Degredo More| Gales) Tina. | Ate] pra | R&S faeor| Sotto | Tot Le Mag! 1 0 ry Vielencia? 2}6l@]r}ofitalula Rapto @/ol@!la}a aM] © Resist, ®) a @ | a ©) Outros @}o|@ ofa! @ Feigaria? 2] 2 Homies’! 3 | 1 | a7 | as} ar] | 6 9 | 6 Inj. comp? 6|mlo]@|@ 20 | 30 Chimes seu 1}4lalala 20 | 25 Esmpeo o} a ay} 0a Storia o a} Mastubog @ ofa 6) @ Outros o o Adulto 2]@ 1 alr Fort! 1 | 2 [@p}em) @| 3 ss] ut Fastest 4 | as) 3 i | a Drcaments o}@ ® fan Contraband} a} a Oficios 1 @ Outros o o} @ Polese rfta 2 | 10 Acmas 1}a ©] ® Outros 1 eo quis [3 [5 [aa [anfeol an] pa 294, " eRenegado waldo, "Incl easos de arrombamento deca, atslto a quintas, desis, fogo post, raplo, resisténcias, vandalism, pelo casos de supesico ede administago de beberagens. “ Inelui easos de homictdio duplo ov acumuludo com outros crimes, de infanticide de conjugiestio * Tnchit casos de agotes,(erimentos, tro, bofetads, brig, envenenamento, Sacadas, maus tates & miler * Vilagao. "Tela eaos de furtos, ura, artes, receplago de objects roubados, * Incl fasificages de chaves, de documentos, de paps, uso de nome fs, ‘so de hibits sem drcto a eles, eros de ici, contraband detec. 302 GRAFICOL Disrtuigéo dos mesmospresos por tpo deerme Dai porte pit [ reso dacs de isn, 16561696] [tii pores | ai Ft 78) ( sas 0 ime copa 109597 essen ne GRArICOT. Disubuigho por eondonaghes Pron da Repo de ison, 1341086 | ‘Gator csi | Galera (1.7%) Mose (1.0%) —Deporagso (41.9%) ‘sles (46,5) 303 GRAFICO mt ‘Tipos pensse pens upliadas val =| Legenda: Resta smor(geadeimrte) HOM homicio) opus tt 295 dee Sermo) LMG (ese mjesude) Velormaxin darelgio 4 des exten) FUR iw) alors derelagio 302 rol(iwmmeno) ADL (aleve) doco 2% teen FAL (fio) ‘edocino? 15% INS (ns) Seon 3 08 85 ‘VIO (violencia) SEX (cr. sexuais) POL (cr. de police) VEL (itary 304 bb) uma forte tendéncia para o livramento nos crimes sexuais e de policia; ©) um tratamento multifacetado do furto (cujo ponto se encontra muito perto da origem); = 4d) uma tendéneia forte para tratar 0 homicidio (e a lesa-majesta- de) com a pena de degredo; ~ ©) oposigio das penas de morte de degredo, por um lado, e, por outro, do livramento, cada qual no extremo de uma eseala pena que, de acordo com o gréfico, se poderia ordenar da seguinte forma: morte, degredo, galés e desterro (que, todavia, se opde no eixo se- cundsrio) ¢ livramento, caréeter dos dados e a dimensdo da amostra nfo permitem, no centanto, detalhar mais a andlise © Quadro Ile os Graficos IV e VII sintetizam 0s resultados do estudo estatistico feito com base nestes casos. Dele decorre, nome damente, 0 seguinte: 4) Entre 1601 ¢ 1800, uns anos pelos outros, foram feitas em Portugal (no Sul de Portugal?) cerea de 2 execugtes capitais por ano. b) Se a fonte tivesse sempre a mesma fiabilidade — e pensamos, apesar de tudo, que hd que distinguir, a este respeito, o periodo de 1601 a 1692 do que decorre entre 1693 e 1800 — teriamos que opor um séc. XVII relativamente pouco cruel (c. de uma condenagio ca- pital por ano) de um sée. XVII que aplicou, quase até ao seu termo (a fase chumanitarista»), com relativa frequéncia (c, de quatro vezes por ano) a pena dltima, ©) Ni insistindo demasiado neste aspecto, notemos a distribu ‘io tipoldgica das condenagdes (Grifico V): cerca de 50% das exe- ccugdes respondem a uma politica de salvaguarda de bens «pabli- cos» (crimes politicos, crimes religiosos, crimes morais) ", a res- tante metade corresponde & salvaguarda de bens eprivados» — a vi- dda, & honra e o patriménio. Mas 0 que € ainda mais esclarecedor & verificar a evolugio deste equilfbrio ao longo dos anos (Grafico VI), QUADRO IL Distribuigao das condenagdes & morte por tipos penais e periods cronolégicos (1601-1800) Vide sing. [Cong Homage a e| ; 3| ale al se R ‘Anos || 305 ramaQwa-SBSRIRERoRoa “67 [wo [ ela) ©) @ 1601-1800 306 307 GRéricoiv GRAFICO Vv Evolugo por tpn de rime (ois) ‘Composiio total (por tpos de crime) [Pear ae mane execndg, 1601-1800 (per deni | _Penas de mort exceutdas, 1601-1800] mo ——— = ona xm psi 40.8) ea 208) a 0089) GRAFICO VI _Byolugdo por tipo de crime (parcial) [Fen de ore exeewadas, 1601-180 (po ead] 1601 162% 1641 1661 1681 1701 1721 1741 1761 1781 ro — fiir er] 1611 1631 1651 1671 1691 1711 1731 1751 1771 1791 ° " z 0 0 40. 8 len i 1601 1621 1641 1651 1681 1701 1721 1741 1761 1781 4611 1631 1651 1671 1601 1711 1791 175.1771 1791 Ordem pottica Ml Reiigito SS wore EEE vee ZA Hooca RES Painonio 308 (0s dados disponiveis, sobretudo para os anos de que temos mais in- formagdo, apontam ineludivelmente para um deeréscimo progressi- vo da punico capital das ofensas aos valores «particulares» ao lon- go de toda a primeira metade do sée. XVIIT e.para um correspor -dente acréscimo da punicdo capital dos atentados aos valores «pi- ‘blicos», nomeadamente politicos.~ salvaguarda da ordem politica & ‘da ordem pablica —, decréscimo que caracteristicamente se acentua ‘com 0 advento do govern despético-iluminista do Marques de Pombal. €) 0 Grafico VII - que representa a projeegio das varias décadas e dos grandes tipos de crime num espago cartesiano, de acordo com a téeniea estatstica da andlise multifactorial (andlise das correspon- déncias) ~ oferece, a este propésito, resultados. muito impressivos. O espace aparece organizado de acordo com dois eixos de polariza- ‘gio. No primeiro eixo ~ aquele que explica numa percentagem mais levada (51%) a distribuigio dos pontos ~ pode-se dizer que se opde a criminalidade politica (Po), situada 2 esquerda, da criminalidade contra os valores particulares (vida [Vid patriménio [Pat] ¢ honta {Hon|; eujos pontos ~ representados por eruzes ~ se sitiam, prOxi- ‘mos uns dos outros, & dircita, No segundo cixo, de muito menor po- der explicativo (23%), opte-se a punigZo dos crimes religiosos e a dos crimes morais. E neste jogo de tensbes que se disttibuem os pontos (representados por quakirados) cortespondentes as d&cadas (a legenda refere-se ao primeiro ano de cada década). A situagio de cada uma delas no gritico caractriza, assim, por um lado, paren- {escoloposigao entre elas e, por outro, a proximidade em relagio a ritérios axiol6gicos estruturantes do campo. Assim, todas as déca- das de 1631 a 1660 (1661 a 1670 tem um comportamento atfpico), bem como as de 1741 a 1800 aparecem com uma maiz idéntia de aplicagio da pena capital, organizada em toro da puniclo de valo- es politicos; afinal,dicfamos nds, & €poca dos solavancos politicas «da Restauragio e da politica de disciplina social do Tluminismo, que. teve que reprimir nao apenas o$ atentados contra o sumo poder, mas ‘ainda sedigdes, tumultos e bandoleirismos, todos perturbadotes da _ordem pablica, Em contrapartida, de 1681 a 1700, a punigao organi- za-se em torno dos valores «privados»: € 0 perfodo de acalmia que decorre entre o fim da Guerra da Restauragao ¢ da consolidagio da 309 GRAFICO Vi Popul total 467 davwagio devida ao cixo 1504 Valor méximo daelagio a tolagio devida ap cixo2 23.9 Valor real da relagio S101 darelagso devida aos cixos 74.3 310 dinastia brigantina até & renovagio das relagdes Estadofsociedade do perfodo Tuminista, Como conclusio final, creio que legitimo afirmar que, pelo menos comparativamente com as previstes legais, a pena de morte 6 muito pouco aplicada durante o Antigo Regime. B, de facto, um autor que escrevia jf nos infcios do séc. XIX referia que em Portu- gal se passava «ano ¢ mais» sem se executar a pena de morte (ME- LO, 1816, 50). sta nto corespondéncia entre o que estavaestabelevido ne «05 estilos dos tribunais nao deixou de ser notado pelos jurists Conhecemse tenativas de, por via da interpretagio doutrinal, pir 0 _direito de acordo com os factos. Ua delas foi através da intnpre- taco da expresso «morra por ell utlzada nas Ordenagées. Jogando sobre o facto de que, para a teoria do direito comum, @ ‘morte podia ser «natural» e «civil» e que esta correspondia ao de~ jgredo por mais de 10 anos”, jf Manuel Barbosa entendia que tal expresso correspondia a exiio (perpétuo)®". A mesma era, expres sa em termos gerais, 2 opinio de Domingos Antunes Portugal ~ srogularmente, onde quer que a lei fale de pena capital, nfo se en- tende morte natural mas degredo»®, Ainda no séc. XVI, esta opi- nigo fazia curso, agora fundada numa opinigo do desembargador Manuel Lopes de Oliveira, que distinguia entre os easos em gue & Jei_utilizava a expressio «morra por ello» on pena de morte, sem coulro qualificaivo ~ que corresponderiam & pena de morte civil ~e “morte natural ~ que corresponderia & morte fisiea. Com base nis- to, este autor apelidva os jufzes que aplicavam indistintamente a pena de morte natural como «prdticas ignorantes» (imperiti Prag- ‘matici) e «carniceiros monstruosos» (inmanissini carnifices). OS angumentos do desembargador eram débeis e a sua opinigo, apesar de ter reunido alguns suirigios (nomeadamente de Paulo Rebelo, num Tractatus iure naturali manuserito) ¢ de ser cotada de «a mais pit», ndo chegou a triunfar™. Mas nio deixa de ser curioso que, na polémica gerada por esta opinio, ninguém acusou o desembarga- dor de laxismo ou a sua opinio de perigosa para a ordem social. Na verdade, o que ele tentava fazer era justificar com argumentos leguis uma pritica geral, por outros menos provocatoriamente fun- 31 dada no poder arbitrério do juiz de adequar a pena ds circunstincias do delito e do delinguente. Esta diversidade de justificacZo ntio era, em si mesma, dispicienda. Pois, como diremos, 0 segredo da espect- {fica eficdcia do sistema penal do Antigo Regime estava justamente ‘nesta «inconsequéncia» de ameagar sem cumprir. De se fazer te- ner, ameagando; de se fazer amar, no cumprindo, Ora, para que “este duplo efeito se produza, € preciso que a ameaga se mantenha e que a sua no coneretizagdo resulte da apreciagio conereta e parti- ar de cada caso, da benevolencia e compaixio suscitadas ao apli- ‘ear a norma geral a uma pessoa em particular. Por isso, qualquer so- lucdo que abolisse em geral a pena de morte ~ v. g., por meio de Juma interpretagio genérica dos termos da lei ~ comprometia esta estratégia dual de intervengao do direito penal da coroa™. Jutzes hravia, no entanto, que se gabavam de, em toda a vida, nunca terem condenado ninguém & morte, antes terem dela livrado muitos réus (SECCO, 1880, 672), (© que se passava com a pena de morte, parece ter-se passado — fem grau porventura diferente ~ com algumas outras penas corpo- sais, de que as fontes que utilizaémos também oferecem poucos tes- temunhos de aplicagio. Tais s0 0s casos dos agoites ¢ da marca que, no mesmo rol dos detides da cadeia de Lisboa, ndo sao mais aplicados do que a morte. A marea é utilizada em dois casos, um de roubo e outro de furto, cumprindo a conhecida fungao de «registo criminal» in corpore, em crimes em que era relevante, para efeito de punigdo, saber se o eriminoso era priméio, reincidente ou treinci- dente, Os agoites, por sua vez, aparecem em trés casos, um de en- trada violenta em casa de muller branca e dois de furto. O corta- mento de membro nunca aparece. Embora a eficécia probatéria das fontes nio soja de exagerar, os resultados da sondagem devem fazer problematizar muitas ideias recebidas sobre a frequéncia da aplicagio destas penas corporais. Como panorama global do modo como erum usados, na prética punitiva da justica real dos finais do séc. XVII, as varias penas, ela- borimos 0 Quadro I, baseado nos dados colhidos do jé citado ma- nuscrito Lembranca de todos os criminosos..., onde se faz uma lista dos 454 presos da cadeia da cidade, presentes ao Regedor da Jus- 312 tiga, aquando das visitas que regimentalmente devia fuzer & cadeia da corte™, A lista terd sido feita em 1694, conforme se 18 no rosto dos dois tomos; mas tem acrescentos, de outra mao, reportados a datas posteriores, até 1696. Em relagao a cada réu, regista-se em ge- ral, o nome, 0 crime de que vinha acusado, o lugar do crime, ha que ‘tempo estava preso, o estado da causa, o seu destino final e 9 nome do escrivao do processo, Hi casos em que falta algum destes dados. ‘Com indicago, tanto do crime de que vinha acusado, como da deci- io final, existem 294 casos ‘Com base nesta amostra ndlo se pode, evidentemente, fazer qual- quer estudo estatistico sobre a criminalidade da 6poca, néo tanto pe- In exiguidade do ndmero de casos, como sobretudo pelo carfcter rio representative da amostra, em relagdo ao universo da criminal dade, Mas pode ter-se uma ideia do modelo de punigio adoptado no tribunal da corte Os tragos deste modelo sio os seguintes (v. os Graficos Ta Il, em anexo).. Em primeiro lugar. Paticamente, os detidos ou eram soltos (489%) ou enviados para o degre, no ultramar (42%) ou no reino & Note de Attica 6 %). As mazes do liveamtento ~ por absolvigao, or perdo ou por fianga ~nfo se conhecem, Algumas vezes, parecs gue seria por falta de eulpas, as em muitos casos as expresses usadas para descrevero estado da eausa deixam supor que se tratava antes de ivamento ou por finga ou por perio, Nests iimos ca. $0s, nfo deinata de tr sido tido em conta o facto de os arguidos i haverem sofrido um por vezes longo, mas sempre duro (hi 14 ca- sos de morte na cadeia) ~perfodo de prisfo, Em segundo lugar, no que respeita As penas. A pena de morte foi rarissimamente aplicada (3 casos de homicidio, correspondendo a 1% do total e a 2% das condenagdes). Embora @ lista abunde (38%) em crimes a que corresponderia forgosamente @ pena capital (lesa rmajestade, violéncia, feitigaria, homicfdio, moeda falsa, estupro © violagio); contendo ainda muitos casos de furto (38%) alguns deles de objectos descritos como valiosos), a que também podia competir Pena de morte. Os agoites so aplicados em tr8s casos (arromba- 313, mento, dois furtos); sempre combinados com degredo on galés ‘A condenagio as galés aparece em cinco casos (dois arrombammen- tos, um furto, um homicidio e um easo de sodomia). A incorpora- «lo no exéreito, num caso (assalto a quintas). Finalmente, pelo que respeita & utilizagdo da prisio preventiva ‘como meio punitivo arbitrério. Encontram-se no poucos casos de indivfduos detidos & ordem de qualquer entidade (rei, um desembar- gador, 0 regedor, outros jufzes), sem qualquer acusagdo precisa (undo se sabe porqué>) ou por actos que, normalmente, no dariam lugar a puniglo, como adultério ou maus tratos & mulher. Teriam si- do apanhados nas devassas de estilo sobre os «pecados paiblicos»; em geral, acabaram por ser libertados; mas, entretanto, a prisdo fun- cionou como pena. Parece, em vista disto, que o leque das penas praticadas no plano do sistema punitivo régio ficava afinal muito reduzido e, sobretudo, ccarecido de medidas intermédias. No topo da escala, teoricamente, 2 pena de morte; mas, sobretudo, o degredo, com todas as dificulda- des de aplicagdo — e consequente falta de credibilidade ~ a que nos referimos. Na base, as penas de agoites ~ inaplicéveis a nobres e, em geral, aparentemente pouco usadas, pelo menos a partir dos fins do séc. XVII —e as penas pecunitirias, Assim, ¢ a0 contrério do que muitas vezes se pensa, a punigio no sistema penal efectivamente praticado pela justiga real no Antigo Regime — pelo menos até ao advento do despotismo iluminado do era nem muito efectiva, nem sequer muito aparente ou teatal Os maleficios, ou se pagavam com dinheiro, ou com um degredo de duvidosa efectividade c, muitas vezes, nflo excessivamente prejudi- cial para 0 condenado. Ou, eventualmente, com um longo ¢ duro cencarceramento «preventivo». Ou seja, mais do que em fonte de uma justiga efectiva e quoti- diana, 0 rei constitui-se em dispensador de uma justiga apenas — e, acrescente-se, cada vez mais ~ virtual. Independentemente dos me- ‘canismos de graga e da atenuagio casufstica das penas, que estuda- remos a seguir, 0 rigor das leis ~ visfvel na legislagao quatrocentista quinhentista (a legislagio manuelina tende @ agravar 0 rigor € 314 ‘crueldade da punigo) ~ fora sendo temperado com estilos de punir cada ver-mais brandos. Passemos, agora, ao pélo oposto da punigio: o pertio ou, mais em geral, as medidas que, na prética, traduziam a outra face dain fervengdo régia em matéria penal ~ 0 exereicio da graga. ‘Tem sido ultimamente destacado 0 cardcter massivo do perdi na prética penal da monarquia corporativa®. E tem sido mesmo estacado que 0 exereicio continuado do perdio destrufa 0 seu ca- rcter imprevisto e gracioso ¢ o transformara, pelo menos para cer- tos crimes, num esti ¢, com isto, num expediente de rotina No plano doutrnal, este regime complacente do perdio radia, Por unt lado, no papel que a doutrina do govern attibuf & clemén” cia e, por outro, no que a doutrina de justignatribufa a equidade, Quanto & cleméncia como qualidade essencial do rei, ela estava re- Jacionada com um dos tépicos mais comuns da legitimasao do po- der real ~ aquele que representava o principe como pastor e pai dos subditos, que mais se devia fazer amar do que temer. Embora consis umbén, am tpzo comet qs cemeais nomen Poderia ating ficenga, deixando impunidos os crimes Gustamente porque um dos deveres do pastor 6, também, perseguit os lobos)™, estabeleci-se como regra de ouro que, ainda mais frequentemente do que punir, devia 0 re ignorar e perdoar («principem non decere punire semper, nec semper ignoscere, pune tamen saepe, ac sae- pius ignorare officium regium esse; miscere clementin, & seveita tem pulehris esse»), nao seguindo pontualmenteo rigor do dre (0 (Ex praedicitisinfertur non esse sequendum regularter, quod praecipuit jus strictum... sammum ius, summam erucem [vel inj- riam»)**, Este dltimo texto aponta jé para um outto fundamento teérico da moderagéo da puniglo ~ ol seja, o contrast ente o rigor do diteito €a equidade de cada caso, Fundamento que, valendo para todos 0s juizes ~ pelo que reservams uma referéncia mais alargada pura o momento em que tratarmos dos fundamentostecricos do po- der arbitrétio dos juristas ~ vata ainda mais para juiz supremo que era ori ‘Tal quadro doutrinal ¢ ideol6gico tinha reflexos directos no pla- no institucional. Um dos tratamentos mais completos do regime do 315 Perdiio na doutrina portuguesa é 0 de Domingos Antunes Portugal”, onde se discutem os requisitos a que devia obedecer a sua conces. sto. Em primeiro lugar, é destacado o seu cardcter de regalia (mesmo de regalia maiora ow quoe ossibus principis adhoerent™), em segundo lugar, « necessidade de uma justa causa para a sua con. cessiio, embora logo se adiante que «justa, & magna causa est prin- cipis voluntas» (n.° 11); em terceiro, a precedéncia de perdio de parte (Ord. fi., I, 3, 9; IT, 29), embora se exceptuassem 08 casos «em que o perdi fosse concedidlo pro bono pacis (n.° 30) ou em que © principe exercitasse, com justa causa, a sua potestas absoluta (n.° 40 s8., maxime, n.2 47)", A doutrina, porém, atestava uma pratica do perdo mais permis- siva do que 0 faziam supor as determinagbes legais e, mesmo, dou- {rinais. Manuel Barbosa informa que era estilo comutar as penas mesmo sem o perdio da parte, decorrido um tergo do seu cumpri- mento", E que, embora Jorge de Cabedo aconselhe em contrétio, se perdoavam mesmo os crimes mais graves, recordando casos ‘corridos na sua terra de perdo de penas capitais, sem perdio de parte: «eu préprio vi, no entanto, perdoar a pena capital a um nobre de Guimaries, sem perdao de parte, e ouvi dizer que o mesmo acontecera a um certo homem de Mongtio, mas para isto deve ocor- Tet grave causa, pois o principe ndo pode facilmente perdoar contra 0 direito da parte lesadain™ © perdiio © comutagio da pena combinavam-se, de resto, com luma outra medida de aicance pratico semelhante ~ a concessio de alvarés de fianga (liberatio sub fideiussoribus), que permitiam aos ‘us aguardar em liberdade o julgamento ou o «livramento» por per~ «lio ou comutagio"™. Também aqui, o regimento do Desembargo do Paco procura estabelecer um maior rigor (ef, ibid., 24) para evitar ‘que tais alvaras «dém occasiao aos delinguentes commetterem os delictos tdo facilmente com speranga de haverem 0s ditos Alvarés para se livrarem soltos». Mas, na pritica, 0 regime parece ter conti. ‘nuado a ser bastante permissivo. No rol de réus presos & ordem da Casa da Suplicagio, a que j nos temos referido, quase metade (mais exactamente, 48%) daqueles de que se sabe o destino saem soltos, Por perdio, fianga ou, eventualmente, por falta de culpas; e, em rela. (20 a muitos outros, «corria livramenton por meios ordinsrios, = 316 Alm das cartas de perdio e dos alvards de fianea, existiam ain- da as cartas de seguro (securitatis ou assecurationis litterae), pas- sadas pelos corregedores e outros juizes, que garantiam 0 acusado ‘contra a prisio antes da conclusio da causa. Do relevo pritico deste insttuto na instaurago da permissividade criminal, diz-nos 0 testemunho de Manuel Mendes de Castro: «Digo-te que em nenh ‘ma oultza parte esiio em uso sendo neste reino, embora este costume portugues parega um tanto alucinado... Se 0 meu juizo vale algo, ‘penso que seria melhor aboli-las completamente, se fossem tomadas ‘outras medidas de que adiante falarei [refere-se ao alargamento da ccompeténeia para passar alvaris de fianga, baseado no direito co- ‘mum e no facto de os processos, em Portugal, se prolongarem mui- {o por malicia das partes; cf. ibid, app. Il)». Esta situagio de permissibilidade era incentivada pelo poder. O influente valido de D. Joo V recomendava rispidamente ao desem. >urgador Inécio da Costa Quintela: «Sua Magestade manda advertir V.M., que as leis sao feitas com muito vagar e socego, ¢ nunca de- vom ser executadas com aceleragdo; e que nos casos crimes sempre fameagam mais do que na realidade mandam [...] porque o legislador hhe mais empenhado na conservag20 dos Vassalos do que no castigo da Justiga, ¢ ndo quer que os ministros procurem achar nas leis mais rigor que ellas impdem» (MELO, 1816, 9), Concluindo, Pelos expedientes de graca tealizava-se 0 outro aspee- to de inculcagio ideolégica da ordem real, Se, ao amesgar punir (mas punindo, efectivamente, muito powco), rei se aflmava como just _ceiro, dando realizaglo a um t6pico ideoligico essencial no sistema ‘medieval e modemo de leitimagao do poder, ao perdoar, ele cumpria ‘um outro trago da sua imagem ~ desta vez como pastor ¢ como pai -» cessencial também 2 legtimagio. A mesma mao que ameagava com castgos impicosos, prodigalizava, chegado o momento, as medidas de graga Por esta dialéetica do teror e da cleméncia,o rei consitia- se, ao mesmo tempo, em senhor da Justga e mediador da Graga. Se investi no femor, nio investia menos no amor. Tal como Deus, ele desdobrava-se na figura do Pai jusicero edo Filho doce e amével. Assim, 0 perdéo e as outras medidas de graga, longe de contra riarem 0s esforgos de construgio positiva (pela ameaga) da ordem 37 16gia, corroboram esses esforgos, num plano complementar, pois es- tw ordem €o instrumento e a ocasifio pelos quais se afirma ideold cca e simbolicamente, em dois dos seus tragos decisivos — summum. jus, summa clementia — 0 poder real. Da parte dos stibditos, este modelo de legitimagao do poder eria tum certo habitus de obediéncia, tecido, ao mesmo tempo, com os lagos do temor e do amor. Teme-se a ira regis; mas, até & consumae ‘glo do castigo, nao se deséspera da misericondia, Antes e depois da pritica do crime, nunca se quebram os lagos (de um tipo ou de ou {o) com o poder. Até ao fim, ele nunca deixa de estar no horizonte de quem prevarica; que, se antes ndo se deixou impressionar pelas suas ameagas, se Ihe submete, agora, na esperanga do pero, Trata- -se afinal, de um modelo de exercicio do poder coercitiva que evita, até & consumagio final da punigtio, a «desesperanga» dos stibditos em relaga0 20 poder; © que, por isso mesmo, tem uma capacidade quase ilimitada de prolongar (ou reiterar) a obedi@ncia © 0 consen- 80, fazendo economia das meios violentos de realizar uma discipl 1a no consentida, Em comunidades em que_os meios duros de exercicio do poder escassos, modelos que garantissem ao méximo as condigées ‘de um exercicio consentido do poder eram fortemente funcionais, ‘Tudo combinado ~ no plano da estratégia punitiva, do funciona- ‘mento do perdio ou do livramento ¢ da escala de penas efectivamen- te aplicdvel e aplicada ~, 0 resultado era o de um sistema reaVoficial de puni¢ao pouco orientado para a aplicagio de castigos e, finalimen- ‘8, pouco crivel neste plano. O controle dos comportamentos e a cor respondente manutengio da ordem social s6 se verificava porque, na vordade, cla repousava sobre mecanismos de constrangimento situa- {dos num plano diferente do da ordem penal real A disciplina social baseava-se, de facto, mais,em mecanismos do discurso, Nele aparecem novos problemas e situa- es: 08 problemas da politica penal, a nova delinquéncia dos eri mes ede policia» ~ suscitada (constituida como objecto da ciéncia penal), quer por um projecto mais apertado de control social, quer pela criagio de instituigdes que a faziam emergir (v. g.,a Intendén- cia Geral da Policia -, ete; com 0 que se alteram as suas condigbes semAnticas. © mesmo se passa no plano sintéctico ~ grosso modo, ro plano da onganizagio interna -, onde também se manifestam no- vidades, desde a lingua uilizada, até & sistematizaca0, passando pe- Jo sistema de argumentagio e pelo universo das referencias teméti- as. Dissofalaremos dentro em pouco. Em todo 0 caso, 0 discurso nfo corta totalmente com a traliga0 {extual anterior. Uma nova linguagem no se inventa do nada, antes se produz pela recomposigiio (bricolage) de elementos das anterio- res, Por isso, sob © novo texto permanece ~ aflorando frequente- ‘mente, impondo pontualmente a sua I6gica, emprestando conceitos, terminologias e classificagées, reproduzindo maneiras de ver, de or- denar e de avaliar, constituindo-se em referéncia argumentativa ou mesmo autoritiria ~ 0 palimpsesto da tradigfo textual original. Como veremos, os fundamentos das novas solugées propostas contnuam a ser of textos da grande tradi juriicn europeia, no meadament, os textos de dieito romano, agora usados como forma de lexitimagio histrica das regras enaturis» ow aracionis» paten- teadas pela nova penalstica. Ou seja, embori tenham mudado as norma, 0 processo da sua legitimacao (ou fundamentagéo) no pla- ro do discurso nfo se modifcou ainda radcalmente; embora ganhe tum novo vigor a afimagio de que «nem sempre se podem acsitar ‘como boas as solugdes do passado>, a justificago encontrada para tal & ainda, um texto de Julians, no tit, De legibus do Digesto Won omni, quae a majoribus consituta sunt, ratio red potest D.,1,3, 20). B aeste balango do novo e do velho no discurso penal iluminista de Pascoal de Melo que dedicaremos os seguintes capitulos. 329 IV, O SISTEMA DISCURSIVO DO CODIGO CRIMINAL, «ARQUIVO» TEXTUAL E SISTEMATICA Na alntroducgo» ao Codigo, 0 proprio Pascoal de Melo fala da utagio do campo de referéneias do discurso penalista, ao analisar a literatura jurfdico-penal de que se socorrera. Insiste, em primeiro lugar, no facto de que a reforma do direito penal se deve fundar em bases te6ricas novas, naquilo a que ele chama uma «nova philoso- phia politica», cujos autores enumera: antes de todos, 0 Marqués de Beccaria, mas também Hugo Grécio, Locke, Montesquieu, um con- junto heterogéneo de juristas (criminalistas ou néo) do jusraciona- lismo alemio", uma série de publicistas, sobretudo franceses, das ‘quest6es penais, dos finais do séc. XVIII, além de um punhado de autores italianos de compéndios sisteméticos de direito penal™, Estas referencias iniciais™ sf confirmadas no decurso do trabe- Iho: as notas justificativas que acompanham o projecto esto cheias de remissdes para esta literatura. ‘Se se abre, desta forma, um novo contexto literério, fecham-se, paalelamente, contextos antigos. Na mesma «, pois «os homens nio foram pos: {os pata castigar, e vingar as offensas feitas a Deus» (ibid) Assim, a gravidade do crime no 6 avatiada pela magnitude espiritual ou teolégica da ofensa (deorum injurias dits cura), mas pela medida das perturbagies sociais provocadas (¥. g., a heresia sediciosa ou de ‘que resulte a criagdo de partidos, Cod., V, 6), pelo esefindalo causa- do (¥. ga blasfémia deve ser punida em Fungo do escandalo ou perturbaco pablica, Cod., «Provas», 24), ou pelo mal real provoce- do (0s feiticeiros, v. g., nfo so punidos senio pela malicia e sofri- ‘mentos fisicos a que as beberagens derem causa, ibid., 94-95; e os perjuros sio responsaveis pelos prejuizos provocados a terceiros flo pela ofensa feita a Deus, Cod., VI, 1. Se 0 carter criminal destas condutas passa a ser fundado na violagdo de valores sociais, ento, tanto a caracterizagto de cada ti- po (tipificacdo), como o sistema das penas, quer a competéncia ju- risdicional devem ser modificadas correspondentemente. ‘Um exemplo destas modificagdes, no plano da tipficarao,& for- necido pela nova caracterizagio da heresia, na qual se prescinde dos tragos que apenas tinham significado numa concepgo puramente religiosa (ou teolgica) do crime. Por exemplo, as distingdes entre herege confitens ou inconfitens, entre heresia, cisma e apostasia, tomam-se supérfluas; enquanto que sko introduzidas novas distin. es, estas relacionadas com a perigosidade social dos actos (v.g.. a distingdo entre heresia simples ¢ heresia sediciosa, Cod. V, 6)”. No plano da natureza e medida da pena, as consequéncias desta laicizagio» do conceito de crime religioso sfo também importan- tes. A pena deve corresponder, nio & magnitude da ofensa feita a Deus, mas & perturbaczo da ordem social estabelecida. «A raz [da proposta de atenuacao dristica das penas da heresia] ~ explica 0 au {or ~ € porque a pena e castigo deve ser & medida da perturbagiio ccausada na ordem social, ¢ tanto quanto quanto for necessério para conseguir € manter a tranguilidade piblica; e para esta se manter € conservat, no é necessério que © homem morra queimado» (Cod. ‘«Provas», 20). Por outro lado, o simbolismo religioso perde todo 0 sentido; a morte pelo fogo, que se ligava a uma antiga ideia de puri- ficagio, é agora considerada como cruel e sem proporgiio com 0 de- 338 lito, Por isso, vo ser propostas novas pens, no apenas mais bran- das mas, sobretudo, com uma nova simbologia, espethando a ofen- sa, no a Deus, mas g0s vinculos sociais. As penas vo, ent, ence- nat as consequéncias do delito, numa dramatizagao em que o erimi- rnoso & 0 protagonista, Ele, que pOs em risco 0s vinculos da socieda- de, vai ser objecto de uma dessocializagao, vai representar o papel do individuo ignorado pela ordem social: vai perder a consideragdo publica (infimia), a capacidade jurfdica (confisco, incapacidade sv- ccesséria, perda de oficios)¢, finalmente, vai ser expulso do convivio social (degredo), (Cod., V). Finalmente, no que respeita & compettncia jurisdicional, a seu laszagdo do conceto de crime religioso exige que o seu conbeci- mento compita aos tibunais scculares. f esta a solugio adopta- da no projecto, mesmo no caso de etesa: aos tins eclesisti- con apenas perience a qualifiagao da condita coma hertea, caben- do aos tribunals licos a matéria da prova ea fxagéo da pena™™, 2. Os crimes contra a ordem moral. Sob a rubtica de crimes «morais, redine Pascoal de Melo uma sétie de tipos que, na tradigZo doutrinal anterior, j4 apareciam, agru- pados com outros agora separados, no apartado dos crimes mix fo- ri, Os principais slo: 0 adullério, 0 estupro e os crimes «contra a na- tureza> (sobretudo sodomia, bestialidade, masturbagdo). A puniglo do adultério tinha obedecido a duas I6gicas diferen- tes, uma de direito romano ¢ outra de direito canénico. No direito romano, 0 adultério era considerado como uma violagdo da «lei conjugal» (thoro conjugalis: alieni thori seu matrimonii ivolato, co- mo dizem os juristas), ou seja, da exclusividade que a mulher dave ‘ao marido quanto as relagbes sexuais. O que estava em causa, fun- , Cod., XID, quer quando se atinjam as presrogativas do sobera- no (elesa-majestade>, tit, 14), Esta nova definiga0 do tipo alarga 0 universo das condutas nele compreendidas. As ofensas aos magistra- dos ~ pelo menos aos magistrados «comissérios> ~ tomam-se puni- veis nesta sede (Cod, XII, 13-14). Mas também os atentados graves contra a ordem piblica(sedigao,tumultos; Cod, XI, 11-13)", 4. Os crimes contra a ordem publica ~a violéncia. ‘A punigdo da violencia tinha uma longa tradigo textual, desde 08 titulos 48, 6, ad legem Cormeliam de vi publica, e 48, 7, ad le- ‘gem Corneliam de vi privata, do Digesto. No entanto, esta distingo entre vi publica e wi privara partia, ndo da qualidade das pessoas ou valores ofendidos, nem das intengdes da aegdo violenta, mas de cer- tas caracteristcas objectivas da acco (como, nomeadamente, a uti- lizagio de armas), Entre 0s casos de violencia piiblica estavam, por isso, arrumadas condutas tio diversas como o estupro, a violagao de ‘uma casa pela forga, a usurpagio violenta da posse, a convocagio 347 de homens armados para actos violentos, o abuso de poder por um magistrado. O trago comum de todos estes tipos parece residir na violagio do monopélio «estadual» da forga, como forma de garantit uma certa paz péblica; punindo todos os actos que a violavam ou a colocavam em risco grave, quaisquer que fossem 0 estatuto ou a in= tengiio dos autores. Assim, a tradigZo romana da punigio da violén: cia insinua uma matriz de classificagao em que 0s delitos de violén- cia contra pessoas privadas coexistem indistintamente com os deli- {0s contra pessoas paiblicas ou contra as fungdes do soberano e dos seus magistrados como «mantenedores» da paz. ‘A tradigio medieval portuguesa de punigo da violéncia baseia- -se, antes de mais, na legislagao (muita dela respondendo a capitu- los de cortes) que proscrevia a vindicta privada ou que reprimia os abusos dos senhores e dos clérigos (cf. Ord. af. V, 36; 45; 50; 66; ‘7617; 95IT; 106). Ao lado desta tradigao «pritica» existe também uma tradigio «letrada» — baseada no Cod. visigotico (VII, 1, de in vasionibus et direptionibus: diversos tipos de violagio do domicslio de esbulho violento) e nas Partidas (VII, 10: «fuerea») — que aadoptava a casuistica das fontes romanas 20 contexto politico-social medieval, dando um novo relevo aos tipos penais correspondentes as politicas régias de instaurago da paz e de monopélio da Forga le- aifima — proscri¢Z0 da violéncia nos juizos, repressio das «forgas» dos clérigos, dos senhores e dos oficiais (sobretudo fiscais), regula- ‘mentagio dos desafios, das tréguas e pazes. Em suma, o rei, como fonte da «justiga» (i.e, do equilbrio da ‘ordem social «espontaneamente estabelecida») impie a sua «paz; ‘ou seja, prosbe qualquer ofensa desta ordem, sobretudo por meios violentos. Em rigor, ele no imple a sua orden impde a sua paz. E impoe-a, sobretudo, contra os poderosos, aqueles que podiam wtili- zat os seus meios materiis para romper os equilibrios Socais. Nas Ondenagdes mais modernas, esta preeminéncia da paz. real cede o lugar & proeminéncia da ovdem real. Assim, entre as condu- tas puniveis como violentas, ganham relevo as ofensas aos oficiais (ef. maxime, Ord. af, V, 91; 104; Ord. man., V, 363 75; Ord. fil. Ys 48/51). Enquanto que as violncias contra as pessoas privadas, antes ppertencentes a este «campo», passam a ser tratadas noutros contex-

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