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© 2013 by Eugênio Cunha

Gerente Editorial: Alan Kardec Pereira Editor: Waldir Pedro Revisão Gramatical: Lucíola Medeiros
Brasil Capa e Projeto Gráfico: 2ébom Design Capa: Eduardo Cardoso Diagramação: Flávio Lecorny
Este livro foi revisado por duplo parecer, mas a editora tem a política de reservar a
privacidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C467a

Cunha, Eugênio
Autismo na escola: um jeito diferente de aprender, um jeito diferente de ensinar - ideias e práticas
pedagógicas/ Eugênio Cunha. 6 ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2020.
144p. : 21cm

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7854-237-5

1. Educação especial. 2. Crianças deficientes - Educação. 3. Inclusão escolar. 4. Educação inclusiva. I.


Título.

13-0671 CDD 371.94 CDU: 376.43

2020

Direitos desta edição reservados à Wak Editora


Proibida a reprodução total e parcial.

WAK EDITORA
Av. N. Sra. de Copacabana, 945 – sala 107 – Copacabana Rio de Janeiro – CEP 22060-001 – RJ
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Aos professores Waldeck Carneiro, Flávia
Monteiro de Barros Araújo e Fernando de
Souza Paiva.
Aos mestres Tarso Mazzotti e Alda Judith
Alves-Mazzotti.
Ao meu editor Waldir Pedro e aos amigos da
Wak Editora pelo inestimável apoio a este
projeto.
Aos pais, familiares e professores que trabalham
em prol dos direitos dos alunos com autismo.
Aos amigos da CNEC/FACNEC.
A Jesus, Mestre dos mestres, todo o mérito.
Sumário

Prefácio

Para iniciar nossa conversa

PRIMEIRA PARTE: Autismo e educação escolar

1 – Autismo: um olhar pedagógico

2 - Marcos históricos da educação inclusiva

3 – Formação e saberes para o trabalho docente

SEGUNDA PARTE: Ideias e atividades pedagógicas

4 – O primeiro passo do professor: conhecer seu aluno

5 – Autismo e práticas pedagógicas


6 – Afetividade em sala de aula

7 – Autismo e processos de aprendizagem

TERCEIRA PARTE: Lei n.º 12.764/12 – Institui a Política


Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do
Espectro Autista

Para concluir nossa reflexão

Referências
“Jamais existirão mudanças em nossa sociedade sem o envolvimento de Homens e
de Mulheres de bem. O que nos move é a certeza de que a vida é um presente, e o
que queremos escrever e/ou deixar para as futuras gerações é uma história que
mereça ser contada de lutas, batalhas pelo bem comum, e pelos valores que
enobrecem a nossa existência e a dignidade Humana. Ter autismo não é somente
ter uma deficiência, mas é ter também um grande DESAFIO...”.
Ulisses da Costa Batista (um dos autores da Lei Federal n.º 12.764, Lei Berenice
Piana).
“Atualmente, quando se fala de autismo AINDA como algo cercado de mistério e
as escolas recebem alunos com a síndrome, sem a capacitação necessária para
proporcionar-lhes o justo desenvolvimento, se faz urgente informar, instruir, e
fornecer material de práticas pedagógicas adequado visando à melhora de nosso
sistema educacional. Nossos educadores se encontram tão sedentos desse
conhecimento quanto as pessoas com autismo. Educação para todos, como eu
compreendo, só acontecerá na prática, quando levarmos capacitação para todos os
profissionais dessa área, desmistificando o estereótipo de que ‘autismo é assim
mesmo’. ‘Autismo é tratável’, diz nosso lema. É possível educar pessoas com
autismo, acrescento com segurança”.
Berenice Piana
Prefácio

É com prazer e admiração que prefacio esta obra de Eugênio Cunha, que vem
se consagrando como uma das principais referências nacionais no estudo do
autismo.

Conheço Eugênio pela convivência em nosso Grupo de Pesquisa em Políticas


Públicas de Educação (GRUPPE), na Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense (UFF), onde ele vem se destacando, desde que nele
ingressou, no ano de 2009, por sua capacidade intelectual, sua rigorosidade
acadêmica e sua paixão pelo tema de pesquisa que abraçou.
Neste livro, o arguto pesquisador se debruça sobre a questão do autismo no
contexto escolar, afirmando a possibilidade de professores e alunos autistas
interagirem pedagogicamente, de modo que se construam, na diferença e pela
diferença, alternativas frutuosas de ensino e de aprendizagem. Como diria Célia
Linhares, “ensinagens” e “aprendências” instituintes e emancipatórias também
podem ter lugar na escolarização de sujeitos autistas.
O autor privilegia aqui a abordagem pedagógica do autismo, levando em conta
apontamentos históricos importantes sobre o princípio da educação inclusiva e
enfatizando os desafios colocados à docência, em face do imperativo pedagógico,
político e social da escolarização de autistas.
Como pesquisador da prática, Eugênio também traz para a ribalta as
vicissitudes da prática pedagógica cotidiana na educação escolar de autistas.
Analisa o lugar da observação docente no processo de conhecimento do aluno,
reconhecendo esta dimensão como indispensável à intervenção pedagógica
mediadora, pela qual professores e professoras poderão efetivamente construir o
sucesso escolar do aluno autista.
Capaz de abordar, com profundidade, as questões históricas, epistemológicas e
pedagógicas que condicionam a educação escolar de autistas, Eugênio não deixa,
porém, de realçar o lugar da dimensão afetual, ou da amorosidade, conforme
queria Paulo Freire, como componente indispensável da prática pedagógica do
professor, no diálogo e na interação com o aluno autista.
O autor ainda encontra fôlego para tratar da recente legislação federal, que
dispõe sobre o autismo e sua caracterização como deficiência, o que abre
perspectivas de atendimento especializado do autista na escola, ainda que sob a
égide da inclusão. Eugênio ressalta, portanto, a mudança paradigmática que a Lei
Federal n.º 12.764/2012 representa, no tocante à abordagem pedagógica do
autismo no ambiente escolar.
“Autismo na Escola” certamente vai se constituir como leitura incontornável
para especialistas, professores e familiares, que enfrentam cotidianamente, nem
sempre com recursos adequados, o desafio da inclusão socioeducacional do aluno
autista. Com esta obra, Eugênio Cunha oferece mais uma substantiva
contribuição, não apenas ao estudo do autismo mas também à demarcação de um
campo do conhecimento, extremamente relevante, que suscita múltiplas
possibilidades de problematização científica.
Niterói, 4 de março de 2013
Waldeck Carneiro
Professor da Faculdade de Educação da UFF
Coordenador do GRUPPE (UFF/CNPq)
Para iniciar nossa conversa

O aluno aprende. O aluno com transtorno do espectro autista aprende. Essas


são as primeiras ideias que queremos enfatizar neste pequeno texto. A
aprendizagem é característica do ser humano. O ensino e a aprendizagem escolar
são dois movimentos que se ligam na construção do conhecimento. É uma
construção dialógica e não imperativa; expressão imanente da nossa humanidade,
que abarca também o aprendente com autismo.

Este livro é resultado dessa construção. Apesar de enfatizar as práticas


pedagógicas, não se propõe a ser um “vade mecum” com receitas de “como fazer”,
mas procura estabelecer um diálogo com o seu leitor, na missão de restituir, como
diz Pierre Bourdieu (1997), as contribuições de uma reflexão. Reflexão que veio
mediada por uma pesquisa, por uma prática. De fato, nasceu de ideias
pedagógicas aplicadas ao ofício docente, em sala de aula, na escola.
Há hoje, no Brasil, um crescente movimento em direção à organização de
espaços educativos que atendam às demandas da inclusão escolar. Documentos
nacionais e internacionais produzidos nos últimos anos reconhecem a educação
como direito humano, considerando as diferenças existentes entre as pessoas,
trazendo a necessidade de sensíveis mudanças nas relações sociais, em distintas
instituições, especialmente na escola. Vislumbra-se uma educação qualificada
pelas políticas inclusivas, como um valor para a superação das desigualdades, das
injustiças e para a democratização do ensino.
A atenção às diferenças ganha centralidade nas discussões. A igualdade e o
direito, muitas vezes preteridos no ensino das pessoas com deficiência ou com
transtornos comportamentais, entram na pauta iminente da educação, pela
necessidade da preparação dos espaços escolares e dos profissionais docentes, para
um ensino que contemple a diversidade. São esforços que têm no seu mote os
desafios impostos pelas questões que emergem da família, da sociedade, da cultura
e das minorias no contexto dos direitos do indivíduo.
Enquanto escrevíamos este livro, era publicada a Lei n.º 12.764, de 27 de
dezembro de 2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Trata-se de um avanço na
consolidação de políticas públicas inclusivas, sem preconceitos e distinções.
Acompanhei o desenvolvimento dessa luta como professor, desde o seu embrião;
desde os primeiros movimentos de pais e familiares até a sua culminância. Um
movimento de anos, não poucos. Certamente, uma vitória para aqueles que por ela
laboraram, principalmente pais e familiares.
O que significa a publicação da lei? Dentre outros benefícios, o autismo passa a
ser considerado uma deficiência. Destarte, milhares de pessoas com o transtorno
terão direito ao atendimento especializado na educação. Porém, reconhecer o valor
desse triunfo não nos desobriga do reconhecimento da realidade cotidiana na
educação em nosso País. Ao atentarmos para isso, vemos como é preciso ainda
trabalhar.
Há muito para conquistar, principalmente no campo filosófico, subjetivo e
representativo da inclusão escolar. Há educadores que não conhecem a legislação
educacional; há aqueles que a conhecem, mas trabalham como se ela não existisse;
há educadores que desejariam conhecê-la e, mais importante ainda, desejariam
aplicá-la, mas estão destituídos de estruturas mínimas para o seu exercício. Há
educadores que desejariam ser capacitados por instâncias formativas superiores.
Há outros, porém, que a capacitação representa mais enfado e mais canseira. Há
educadores sonhadores, idealistas e realistas otimistas. Porém, se há realistas
otimistas, há realistas pessimistas. Há também os cansados, estressados,
desesperançados, mas, por sorte, há sempre aqueles que jamais se entregam.
O professor é essencial para o sucesso das ações inclusivas, não somente pela
grandeza do seu ofício mas também em razão da função social do seu papel. O
professor precisa ser valorizado, formado e capacitado.
O trabalho na educação é uma construção que dependerá da compleição do
solo, do tempo, dos imprevistos, da qualidade do material que utilizaremos, das
pessoas com quem trabalharemos e, principalmente, dos arquitetos que a
projetarão e dos engenheiros que a edificarão. Estes dois últimos são papéis do
conjunto de professores sobre os quais recaem de maneira intensa a execução das
políticas da educação no Brasil. Particularmente, em nossa conversa, o exercício
da Lei n.º 12.764/12.
O sucesso de uma construção não depende exclusivamente daqueles que nela
trabalham. Ha fatores que não se podem controlar ou prever com precisão, como o
clima ou algum acidente natural. Entretanto, sabemos que quanto melhor forem a
formação e a capacidade daqueles que obram, maiores serão as possibilidades de
sucesso. Assim também ocorre na educação. Ainda que não possamos controlar
todos os fatores que interferem em nosso trabalho, quanto melhor for a nossa
formação, melhores serão os resultados dos nossos esforços.
Comumente dizemos que, na educação, não existe receita de bolo. Queremos
ponderar, todavia, que, se tal coisa existisse, o caminho para ela estaria na
formação do professor, na sua capacitação, na grandeza do seu ofício. Por conta
disso, trabalhamos na feitura deste livro, pois sabemos como é decisivo um
professor ou uma professora em sala de aula para que as políticas públicas de
educação tenham bom termo.
Certamente, todas as questões que se arrolam à educação implicam novas
responsabilidades para os docentes e desafios para as políticas que tratam da sua
formação, bem como para as suas práticas de ensino. Por outro lado, possibilitam
a oportunidade para a discussão, em âmbito nacional, das demandas suscitadas
pelas dinâmicas de ensino e de aprendizagem que desaguam na escola inclusiva.
Ao final desta leitura, poderemos concluir que os conceitos que fundamentam
essas ideias pedagógicas são comuns a qualquer nível ou modalidade de ensino; na
educação regular ou especial, a qualquer aluno, em qualquer idade, pois partem
do olhar docente sobre as características discentes. Partem dos caminhos que o
educando aponta, percebidos pelo professor, mediante o seu olhar sensível e
preparado.
Boa leitura!
PRIMEIRA PARTE:
Autismo e educação escolar

Ao falar sobre valores, podemos estar dizendo tantas


coisas e não estar dizendo absolutamente nada. O que
pode ser valor para um, poderá não ser para outro. Por
isso, a educação para alguns é tão estimada e, para outros,
nem tanto. Para alguns, ela é até dispensável, para outros,
ela é permanentemente essencial. Então, como podemos
garantir o valor da educação que acreditamos? Podemos
experimentar dois caminhos para descobrir: um ligado a
nós e outro ligado ao próximo. No caminho ligado a nós,
podemos dizer que há valor nas coisas que fazemos de todo
o coração, de toda a alma e de todo o entendimento. E no
caminho ligado a outrem, o que reputamos como valor nos
fará desejar para as pessoas o que desejamos para nós.
Colocar-nos-á no mesmo espaço de igualdade e de afetos.
São esses valores que constroem o ambiente educativo da
escola e o transformam em espaço inclusivo.
1 – Autismo: um olhar pedagógico

Um menino com transtorno do espectro autista, que chamaremos de Leo,


aprende em uma escola inclusiva. Anteriormente, fora uma criança não verbal,
com momentos de autoagressão e com pouquíssima interação social. Alguns
diziam que seu autismo era severo e que jamais poderia estudar em uma escola
regular. Mas seus pais não viam assim, nem seus professores. “Educação escolar,
terapêutica e alimentar”: foi o que disseram e fizeram. O quadro severo passou a
fazer parte do passado. Leo começou a frequentar uma sala do ensino regular,
aprendendo com os demais da sua idade. Hoje, sua interação em sala de aula é
tão natural que faz esquecer o transtorno.

Podemos ver a história de Leo como “autismo com sintomas revertidos”;


amplamente revertidos. Sabemos que não é sempre assim. Há casos cuja
severidade luta contra a nossa esperança e capacidade. Mas, ainda assim, o
trabalho poderá suscitar ganhos, e todo ganho será sempre um progresso. Não
acreditamos em educação inócua, infértil. Acreditamos em uma educação realista,
não conformada, ousada e possível.
Os resultados positivos no ensino de Leo só foram alcançados por causa da
parceria entre escola e família. Este é um ponto importante em toda a educação.
Muitos trabalhos não chegam a bom termo porque não há uma participação ativa
desses dois núcleos ou, em muitos casos, ocorre o rompimento dessa unidade
durante o processo de inclusão escolar.
É pertinente relatar um aspecto peculiar no aprendizado de Leo: inicialmente,
havia uma resistência para escrever. Pouco escrevia. Crianças que, nos primeiros
anos, aprenderam mecanicamente por estímulo e reforço podem nutrir nos anos
subsequentes aversão à escola, até ao ponto de desistirem de estudar. Era o que
acontecia ao menino: não queria escrever, não queria aprender a escrever, não
queria pegar o lápis.
Brincava com bonecos e interagia com os personagens que eles representavam.
Foi quando a professora lhe propôs que escrevesse uma carta para um daqueles
personagens que ele tanto gostava: tratava-se do cowboy Woody, do desenho “Toy
Story”. Foi o que ele fez com dedicação e assinatura, porque escrever, naquele
momento, passou a ser significativo.
Não precisamos de esquemas complexos ou mirabolantes para aplicar ideias
pedagógicas. O nosso cotidiano é feito de coisas simples. Quanto mais associamos
a prática escolar a conteúdos significantes, mais tornamos a experiência do
aprendizado profícua. A aprendizagem significante não somente generaliza o
aprendizado, mas faz igualmente o aluno generalizar a experiência escolar.
A leitura de mundo, como afirma Freire, precede a leitura da palavra. Isso
ocorre na educação especial ou na educação regular. Na verdade, poderíamos
dizer que não podemos incluir sem trazer para a sala de aula a leitura de mundo
do aprendente.
Obviamente, muitos alunos com autismo carecem, a princípio, da ratificação
sistemática do que foi apreendido, repetindo-se os mesmos exercícios e atividades
até o pleno domínio. Entretanto, tal procedimento deve prover o controle do
educando sobre o seu comportamento, não do professor sobre o aluno, trazendo-
lhe segurança e instrumentando a sua inclusão escolar e social. Mas, como lidar
com o autismo na escola? Essa é a primeira questão que queremos abordar.
O transtorno do espectro autista compreende um conjunto de comportamentos
agrupados em uma tríade principal:

1 - comprometimentos na comunicação;
2 - dificuldades na interação social;
3 - atividades restritas e repetitivas (uma forma rígida de pensar e
estereotipias).

Os sintomas variam muito de indivíduo para indivíduo. Em alguns quadros, há


o acometimento de convulsões, já que o transtorno pode vir associado a diversos
problemas neurológicos e neuroquímicos. Aparece desde o nascimento ou nos
primeiros anos de vida, proveniente de causas ainda desconhecidas, mas com
grande contribuição de fatores genéticos. Trata-se de uma síndrome tão complexa
que pode haver diagnósticos médicos abarcando quadros comportamentais
diferentes. Isto porque o autismo varia em grau de intensidade e de incidência dos
sintomas. Tal heterogeneidade tem levado a revisão das diretrizes para o seu
diagnóstico, inclusive com a mudança da nomenclatura para “Transtorno do
Espectro Autista”.
O diagnóstico precoce é o primeiro grande instrumento da educação. O que
torna o papel docente fundamental, pois é na idade escolar, quando se intensifica
a interação social das crianças, que é possível perceber com maior clareza
singularidades comportamentais. Será sempre pertinente o professor ou a
professora observar atentamente seu aluno, quando este apresentar algumas das
seguintes características comportamentais:

• retrair-se e isolar-se das outras pessoas;


• não manter contato visual;
• desligar-se do ambiente externo;
• resistir ao contato físico;
• inadequação a metodologias de ensino;
• não demonstrar medo diante de perigos;
• não responder quando for chamado;
• birras;
• não aceitar mudança de rotina;
• usar as pessoas para pegar objetos;
• hiperatividade física;
• agitação desordenada;
• calma excessiva;
• apego e manuseio não apropriado de objetos;
• movimentos circulares no corpo;
• sensibilidade a barulhos;
• estereotipias;
• ecolalias;
• ter dificuldades para simbolizar ou para compreender a linguagem
simbólica;
• ser excessivamente literal, com dificuldades para compreender sentimentos e
aspectos subjetivos de uma conversa.

A formação do educador e o seu conhecimento científico a respeito do assunto


tornam-se essenciais para a identificação da síndrome. Da mesma sorte, sua
capacitação pedagógica no exercício docente possibilitará uma educação
adequada. Apesar de níveis de comprometimentos dissimilares, é comum o aluno
com autismo apresentar algumas características mais marcantes que inicialmente
poderão interferir na sua aprendizagem: o deficit de atenção, a hiperatividade, as
estereotipias e os comportamentos disruptivos.
O que fazer diante delas? O primeiro passo a ser dado pelo professor será o de
conhecer seu aluno, seus afetos, seus interesses. Isso possibilitará a instituição de
exercícios, atividades e afazeres que ajudarão a canalizar a sua atenção. Com
efeito, a partir do princípio afetivo da atividade pedagógica, o professor encontrará
recursos para a superação do quadro de hiperatividade e de deficit de atenção.
Não se trata de uma regra, mas de um caminho, pois o afeto traz o interesse para
os movimentos de ensino e aprendizagem. Quais atividades o aluno gosta de
fazer? Como utilizá-las para desenvolver sua atenção? São perguntas que irão ser
respondidas nesse percurso.
Em alguns casos, dois minutos de atenção será um grande passo. Não importa
tanto o espaço de tempo, importa mais o desenvolvimento da capacidade de
concentração. Trabalhos artísticos estimulam o foco de atenção de qualquer
aprendente, pois demandam proficuamente a concentração, servindo como
mediação pedagógica. Na pintura, no desenho, nas atividades com massa ou na
música, os canais sensoriais são os melhores receptores da aprendizagem.
E quanto às estereotipias? Elas podem expressar alegria, emoções, ansiedades,
frustrações e momentos de excitação. Por outro lado, em razão delas, o indivíduo
priva-se de experiências motoras maturativas, ocasionando a regressão e o bloqueio
de habilidades. Diante disso, a observação das estereotipias deve ser feito com
todo o cuidado e sensibilidade. Evitando-se o cerceamento e a irritação, é
primordial inibir a constante recorrência aos movimentos estereotipados,
substituindo-os por movimentos adequados, de cunho simbólico e social, que
produzirão progressos na área cognitiva, motora e comunicativa.
Se o estudante demonstra sua alegria com flaps compulsivos, ele poderá
aprender a expressá-la com palmas, por exemplo. Trata-se de uma expressão
social. As estereotipias são regressivas. Há casos em que elas foram substituídas
totalmente.
No que tange aos comportamentos disruptivos, poder-se-á pensar que será
extremamente difícil – em um contexto de sala de aula repleta de alunos – um
docente conduzir todo o processo pedagógico solitariamente. Evidentemente que
será. Por isso, precisamos de formação profissional, capacitação humana e de
políticas públicas que deem condições práticas às escolas no exercício da educação
inclusiva.
Porém, o docente ainda terá algumas alternativas pedagógicas que poderão
ajudá-lo:

• não se alterar e não valorizar as reações excessivas;


• redirecionar a atenção e a ação do aluno;
• falar baixo, manter o mesmo tom de voz e o contato visual;
• corrigir ensinando, não reprimindo;
• disciplinar a atividade e não imobilizar o aluno; ele precisa confiar no seu
professor.

Ademais, será preciso investigar as atitudes disruptivas a fim de se descobrirem


suas causas. Quanto mais tempo elas durarem, mais difícil será lidar com elas.
Muitos são os fatores que as motivam, dentre os quais, o barulho, a mudança de
rotina e as frustrações. Será preciso incansável perseverança para redirecionar as
atitudes e ensinar uma maneira social de expressar sentimentos e desejos. A
percepção sensorial poderá ser um caminho para tal fim.
Como mencionamos no livro “Práticas pedagógicas para inclusão e
diversidade”, o aprendente com autismo cria formas próprias de relacionamento
com o mundo social. Em consequência do convívio, todos nós adquirimos uma
mente social, que nos possibilita fazer conexões apropriadas com o mundo ao
redor. Nossa razão consulta constantemente nossa memória social para direcionar
o comportamento. Frequentemente, chegamos a um local e percebemos de modo
global o ambiente, porque aprendemos a ver as coisas não isoladamente, mas
conectadas, em um contexto de relações. Dirigimos, consequentemente, nossas
ações de acordo com o que é socialmente adequado.
Todavia, na conduta autística, nem sempre isso ocorre. É comum fixação em
detalhes específicos, percebidos menos em razão do conhecimento social e mais
por causa do estímulo que o indivíduo recebe de determinado objeto ou situação.
Isto provoca comportamentos peculiares.
Assim, a pessoa com autismo passa a ter uma relação singular com tudo que é
externo. Fixa-se em rotinas que trazem segurança, não interage normalmente com
as pessoas, inclusive com os pais, nem manuseia objetos adequadamente, gerando
problemas na cognição, com reflexos na fala, na escrita e em outras áreas.
Aprende de forma singular. Há uma relação diferente entre o cérebro e os
sentidos, e as informações nem sempre geram conhecimento.
Os objetos podem exercer atração não em razão da sua função, mas em razão
do estímulo que promovem. Surge daí o manuseio estereotipado, por causa do
contato sensorial de pouca ingerência cognitiva. Percebe-se uma fragmentação dos
sentidos, em que as sensações sobrepõem à razão, causando a compulsão e a
repetição.
Em suma, podemos concluir que esse quadro de comprometimento pedagógico
requer práticas específicas, direcionadas à aquisição de habilidades necessárias
para a inclusão familiar, social e escolar do indivíduo. O aluno carece de uma
educação individualizada, com ênfase na mudança de alguns comportamentos e
aprendizado de outros. Por causa das dificuldades comunicativas, um dos fatores
que mais impede o seu aprendizado é o deficit de atenção à fala de alguém ou aos
processos de ensino.
Em muitos casos, não há autonomia para realizar coisas simples e cotidianas,
como escovar os dentes ou vestir-se. A vida social passa, então, a ter grande valor
pedagógico. A aprendizagem dos usos e costumes torna-se crucial. No entanto,
cada dificuldade poderá servir para inspirar o trabalho na escola, pois cada
dificuldade poderá ser uma habilidade a ser desenvolvida, uma conquista no
campo educacional.
De sorte que a tendência de se fixar em rotinas poderá ser usada, também, para
benefício do aprendente na organização do seu dia, estabelecendo-se horários de
café, almoço, jantar e banho. Ensinar rotinas e regras na família contribui para
orientar a inclusão em distintos espaços sociais. Isto porque cada espaço social
possui regras e normas próprias
Todavia, as rotinas precisam ser quebradas quando fomentam atitudes
prejudiciais. Ao mesmo tempo em que é importante mantê-las, é importante
também mudá-las, pois as mudanças fazem parte da vida cotidiana.
Esta constatação ficou notória quando trabalhamos em um projeto de
atendimento a crianças de famílias de baixa renda, com poucos recursos.
Conhecemos um menino de 10 anos, assíduo e profundamente interessado no
trabalho que era realizado naquele espaço. Normalmente dócil, o menino não
verbalizava adequadamente, gesticulava e apontava na maioria das vezes para
estabelecer comunicação.
Pelo relato da mãe, descobriu-se que jamais recebera uma educação escolar a
contento. Recusado por diferentes escolas, o mais das vezes, era atendido por
instituições especializadas, sem muitos recursos. Não aprendeu a ler, escrever e
falar corretamente. É um quadro muito comum, principalmente na população mais
carente.
A mãe o trazia sempre no início das atividades. Eram os primeiros a chegar.
Todo dia, o garoto entrava, abraçava os educadores e começava a trabalhar. Na
verdade, para ele, era não era trabalho, era brincadeira. Certa feita, por causa de
diversos imprevistos, todos nós que atendíamos naquele espaço nos atrasamos e
não havia nenhuma pessoa para abrir a sala. O menino chegou com a mãe, viu a
porta fechada e, por não conseguir entrar, sentiu grande aflição. A mudança e a
frustração pela mudança o levou a ter uma reação jamais vista até então: chutou a
porta, gritou, correu pela rua, mordeu-se, chegando ao extremo de profunda
tristeza e incontrolável choro.
Quando ali chegamos, foi possível controlar a situação e restabelecer o exercício
pedagógico, porém ficou evidente que a porta aberta significava ao mesmo tempo
uma segurança para aquele aluno e a necessidade de mudança de um quadro que
não poderia se perpetuar. Essas situações, com menores ou maiores proporções,
são corriqueiras no espaço escolar. Precisamos estar preparados para elas; o aluno
com autismo precisa aprender a lidar com elas. Como falamos no início deste livro,
trata-se de uma construção, uma construção dialógica no campo educacional.
Há estudantes que são tendentes a outros comportamentos, até positivos, como
é o caso de um aluno do ensino médio, ao qual chamaremos de Filipe. Ele sempre
gostou de ler sobre diversos assuntos, principalmente História Geral.
Independentemente de estímulos exteriores, desde mais novo, lia tudo que lhe
vinha às mãos. Na escola, porém, Filipe jamais se interessou em realizar as leituras
sugeridas nas aulas de História. Não tinha nada contra as aulas, apenas não via
sentido naquilo. Era reticente quando o professor ou a professora estabelecia os
textos da disciplina. Porém, ainda assim, mesmo não lendo ou lendo pouco,
conseguia tirar boas notas nas provas.
Um dia, ele explicou aos colegas o que fazia: por ter um conhecimento prévio
sobre diversos assuntos ligados à matéria, em decorrência do seu cabedal de
leitura, Filipe estabelecia relações com os textos sugeridos em aula. Então, por
exemplo, quando o professor sugeria uma leitura a respeito da Revolução de
1930, o garoto selecionava as frases mais importantes no texto e as relacionava
com seu conhecimento prévio. Seu saber era ratificado pelas descobertas
anteriores, sem precisar, contudo, ler todo texto. Assim, sobrava-lhe tempo para ler
as coisas que mais gostava, que, para ele, tinha alguma função ou sentido e que,
certamente, seriam arroladas com muitos conteúdos que ainda iria aprender na
escola.
Essas histórias pertencem a inúmeras experiências que ocorrem cotidianamente.
São características da diversidade que aporta no ensino de alunos com
necessidades educacionais especiais. Tais estudantes têm suscitado novas práticas
pedagógicas, necessárias ao movimento de inclusão.
Apesar de todos os avanços para uma educação mais justa e universal, os
professores ainda vivem sob a égide das contradições, com maior ou menor
intensidade, diante da imperiosa situação de educar para a diversidade, mas com
as consequências e os desdobramentos deste ato, em razão da complexidade da
sociedade contemporânea e, precipuamente, das carências da sua formação e do
seu espaço de trabalho.
No que tange ao ensino dos educandos com transtorno do espectro autista, o
quadro não se altera. Permanece trazendo dúvidas e insegurança ao professor,
podendo ainda interferir em sua prática. Decerto, a educação desses alunos não
tem sido efetivada sem conflitos e dificuldades.
Mas, de onde vêm as práticas escolares? Como surgiu o repertório de
conhecimento que hoje é aplicado no ensino do aluno com espectro autista? Ele
tem sido suficiente? Podemos melhorá-lo? E a formação docente? Esses
questionamentos abordaremos a seguir.
2 - Marcos históricos da educação inclusiva

As ações da sociedade para a inclusão de alunos com necessidades


educacionais especiais tornaram-se mais visíveis a partir da segunda metade do
século XX. Anteriormente, o ensino especializado era ministrado em escolas ou
classes especiais para as crianças e os jovens que não podiam ter acesso à escola
comum, pois se acreditava que elas não conseguiriam avançar no processo
educacional. Pensava-se que essa era a forma ideal para o melhor atendimento a
esses alunos, que estudavam em ambientes segregados. Tornou-se, então, a
educação especial um sistema paralelo ao ensino comum, muito em decorrência
dos estigmas e das questões morais vigentes na sociedade naquela época.

Porém, tais questões morais ajudaram a formar o ponto de partida para uma
série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetariam
a sociedade de uma maneira irreversível. Foram movimentos ecologistas,
feministas, das minorias e dos direitos humanos. Constituíram-se parte importante
na vida de jovens e de intelectuais, que fomentavam os movimentos da
contracultura e em favor da paz. Os movimentos pelos direitos humanos
sensibilizaram a sociedade quanto aos danos que a segregação e a marginalização
dos grupos minoritários traziam. Danos não somente morais para as minorias mas
também econômicos para os governos, pois era visível o elevado custo dos
programas segregados, no contexto das crises da economia mundial. Até então,
apenas os países considerados desenvolvidos haviam criado um sistema
educacional paralelo para as pessoas com deficiências. A partir da década de
1960, passou a ser também conveniente adotar o ideário da integração pela
economia que representaria para os cofres públicos. (MENDES, 2006)
Assim, tais contextos (social e econômico) ajudaram a alicerçar uma base moral
e argumentativa de que era direito inviolável de todas as crianças com deficiência a
participação em todos os programas educacionais. Além disso, achava-se que as
práticas integradoras traziam benefícios tanto para alunos com deficiência quanto
para aqueles sem deficiência. Dentre os consideráveis benefícios para alunos com
deficiências, estaria a oportunidade de se integrarem a ambientes de aprendizagem
mais desafiadores e viverem em contextos mais normalizantes e realistas, a fim de
alcançarem aprendizagens significativas. O que se pretendia era a integração dos
alunos no ensino regular, usando meios normativos para adaptá-los aos
comportamentos considerados normais.
O princípio normalizante, que ainda é seguido muitas vezes hoje em dia,
pressupunha um conjunto de normas comportamentais que deveriam atender a um
padrão considerado ideal, segundo critérios estabelecidos. Dessa forma, para o
aluno ser inserido no processo educacional, era necessária a sua adaptação a esses
padrões comportamentais.
No contexto da integração escolar, na década de 1980, já ficavam notórias as
diferenças nas interações dos professores com alunos da educação especial.
Percebia-se que os alunos com necessidades especiais, quando comparados aos
alunos da educação regular, tinham menos oportunidades para o desenvolvimento
mais efetivo nas atividades de ensino. (ALVES-MAZZOTTI, 1983)
Destarte, surgiram críticas a esse modelo, pois a passagem de alunos com
necessidades educacionais especiais para as turmas do ensino comum dependia
exclusivamente dos progressos discentes. Efetivamente, essas transições raramente
aconteciam, tornando o ambiente escolar segregante. Era preciso, portanto, que o
educando se adaptasse às práticas escolares. Diferentemente, o conceito de
inclusão pressupõe que as práticas, os espaços e os modelos de ensino se adaptem
ao aprendente.
A política de integração havia resultado em uma estrutura educacional
fragmentada, nem sempre acessível a todos. Em contrapartida, iniciavam-se
movimentos no mundo com ênfase na consciência e o respeito à diversidade,
produzindo mudanças no papel da escola que passou a responder melhor às
necessidades de seus estudantes. Começava a surgir o conceito de inclusão. Na
verdade, buscava-se aperfeiçoar a ideia de integração, com a ressalva de que a
escola necessitava se adaptar às mudanças. Essa ideia tomava forma e contornos
globalizantes, tornando-se, no final do século XX, a palavra de ordem na
educação. Tal modelo trazia em seu bojo o ingresso de todos os estudantes em
classes comuns, deixando, no entanto, abertas as oportunidades para os estudantes
serem ensinados em outros ambientes, atendendo a planos educacionais
individualizados.
Mendes (2006) apresenta a tese de que o movimento pela inclusão escolar de
crianças e jovens com necessidades educacionais especiais surgiu de forma mais
focalizada nos Estados Unidos. Por força da penetração da cultura desse país,
ganhou a mídia e o mundo ao longo da década de 1990. Uma evidência disso
pode ser constatada no fato de que, até meados da década de 1990, o termo
“inclusão” aparece mais especificamente na literatura produzida nos Estados
Unidos, enquanto os países europeus ainda conservavam tanto a terminologia
“integração” quanto a proposta de colocação seletiva nas escolas.
Surgem, a partir daí, duas propostas: de inclusão total, que defendia a
colocação de todos os alunos na classe regular, independentemente do grau de
comprometimento – eliminando o serviço de apoio da educação especial – e a
proposta da educação inclusiva, advogando a inclusão na classe regular, porém,
admitindo o apoio pedagógico em ambientes diferenciados, como, por exemplo,
em salas de recursos e em escolas especiais.
No contexto mundial, começava a tomar forma o consenso de que era preciso
concentrar esforços para atender às necessidades educacionais de todos os alunos,
o que culminou em duas conferências internacionais importantes: a Conferência
Mundial sobre Educação para Todos, em 1990, em Jomtien, Tailândia,
promovida pelo Banco Mundial, a UNESCO, o Fundo das Nações Unidas para
a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD). Contando com a participação de educadores de diversos países, a
Conferência aprovou a “Declaração Mundial sobre Educação para Todos”.
Posteriormente, no ano de 1994, realizou-se a Conferência Mundial sobre
Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade, em Salamanca,
Espanha, contando com a presença de 88 governos e 25 organizações
internacionais. O Brasil foi signatário do documento produzido em assembleia
denominado de “Declaração de Salamanca”, que influenciou de forma definitiva
as políticas inclusivas. Nesse mesmo ano, a Política Nacional de Educação
Especial passou a orientar o processo de integração instrucional, que condiciona o
acesso às classes comuns do ensino regular àqueles que possuem condições de
acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino
comum, no mesmo ritmo que os alunos típicos.
As influências chegaram à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –
LDBEN n.º 9.394/96 – que enfatizou a valorização da educação inclusiva,
afirmando que a educação especial deve ser oferecida preferencialmente na rede
regular de ensino, manifestando o propósito de incluir o aluno com necessidades
educacionais especiais, sempre que possível, nas classes comuns do ensino regular.
A lei salienta, no artigo 59, que os sistemas de ensino deverão assegurar os
recursos necessários para aprendizado escolar e consequente inclusão, o que
requer currículos, métodos e técnicas adequadas; recursos e organização;
professores especializados e capacitados para a inserção do estudante na vida em
sociedade, inclusive dando-lhe condições, sempre que possível, à capacitação para
o trabalho.
As políticas oficiais em nosso País têm reconhecido o processo de inclusão como
uma ação educacional que tem por meta possibilitar o ensino de acordo com as
necessidades do indivíduo. Buscam permitir o fornecimento de suporte de serviços
por intermédio da formação e da atuação dos seus professores.
Os Marcos Político-Legais da Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva ratificam que a educação especial precisa estar organizada para receber
alunos que necessitam do atendimento educacional especializado em escolas
regulares ou especiais. Durante muito tempo, perdurou o entendimento de que a
educação especial, organizada de forma paralela à educação comum, seria a forma
mais apropriada para o atendimento de alunos com deficiência ou que não se
enquadrassem à estrutura do sistema regular de ensino. Essa concepção exerceu
impacto duradouro na história da educação especial, resultando em práticas que
enfatizavam os aspectos relacionados à deficiência, em contraposição à sua
dimensão pedagógica. O que se pretende hoje em dia é um sistema de ensino
apontando para uma proposta inclusiva nas escolas regulares e especiais.
Com efeito, as demandas da educação na sociedade contemporânea só admitem
um tipo de escola: a escola inclusiva: todas as instituições de ensino devem ter esse
ideário. O ensino especial é inclusivo quando se ocupa da autonomia do aluno e o
capacita para o ensino regular, para a vida familiar e para a vida social. Da mesma
forma, o ensino regular cumpre seu papel quando atende à diversidade discente
com equidade, sem preconceitos, observando as especificidades de cada indivíduo,
buscando sua formação integral. Em razão disso, a educação inclusiva é o
resultado de uma prática pedagógica. A classificação das escolas seria apenas no
que tange à modalidade e metodologia de ensino e não no que concerne à filosofia
educacional ou à visão de mundo. O ensino inclusivo deve ocorrer em todas as
instituições, pois inclusiva é a forma de ensinar. Então, onde a pessoa com autismo
deverá estudar? Decerto, as suas condições pedagógicas e a estrutura da escola
trarão a resposta.
Porém, ainda que a legislação assinale para ações pedagógicas inclusivas,
historicamente, o ensino escolar sempre sofreu influência da Medicina. Durante
décadas, surgiram vários procedimentos na escola, com ênfase nas abordagens
comportamental e terapêutica que, evidentemente, influenciaram as práticas dos
professores. Sem dúvidas, antes dos educadores, foram os médicos os primeiros a
se preocuparem com as pessoas com transtorno comportamentais ou com
deficiências. Não se pode negar a importância da Medicina, da Psicologia, da
Psiquiatria e de outros campos de estudo. No entanto, por mais qualificados que
sejam, não cabe a profissionais desses campos o ensino em sala de aula. Cabe ao
professor.
É verdade, também, que as ações da Medicina não visavam apenas ao
atendimento médico-terapêutico, mas procuravam também dar algum suporte
pedagógico, principalmente às crianças. Nesse contexto, é pertinente lembrar o
trabalho de Maria Montessori. Quando visitava um asilo para pessoas chamadas
naquele tempo de “idiotas”, Montessori observou crianças reunidas em uma sala
despojada de qualquer material ou mobiliário, brincando com migalhas de pão,
deixadas ali depois da refeição. Enquanto lhe diziam que essas crianças se
comportavam como animais, ela disse a si mesma que, ao contrário, a brincadeira
revelava uma inteligência transbordante (DUBOC, 2010). Apesar de ser
professora e de ter seu papel na área da educação reconhecido, principalmente em
razão de uma rica produção de materiais pedagógicos sensoriais, utilizados até
hoje em escolas no Brasil e no mundo (inclusive na educação especial), Maria
Montessori também era médica, sendo a primeira mulher a se formar em
Medicina em seu país, a Itália.
O método montessoriano influenciou as teorias científicas e educacionais,
difundindo-se mundialmente, incorporando-se a muitas instituições e práticas
pedagógicas. Ainda assim, concomitante aos primeiros interesses da Pedagogia, a
Medicina continuou a se preocupar com a educação especial.
De fato, o behaviorismo, fundado no início do século XX por J.B. Watson,
influenciou decisivamente a concepção do ser humano e a maneira de educá-lo no
contexto escolar, inserindo-se amplamente nos conceitos de ensino e aprendizagem.
Das influências behavioristas, surgiram abordagens envolvendo a aquisição de
comportamentos socialmente aceitos, a memorização do conteúdo aprendido e a
aprendizagem seletiva mediante o estímulo e o reforço.
Essas ideias, que se multiplicaram sobre fortes influências das análises clínicas
das pessoas com autismo, ainda desaguam na educação, principalmente na escola
especial. Aí, talvez, esteja a gênese da resistência de alguns educadores – que
defendem a proposta da inclusão total – a instituições especializadas, quando se
fala de inclusão.
Como ressalta Mendes (2006), a história da educação inclusiva nos remete a
questionamentos acerca da melhor forma de educar nossos alunos. Não existe uma
resposta pronta, as ideias vão desde a inclusão total nas escolas regulares ao
ideário da educação pela diversidade, com apoio das instituições especializadas.
No Brasil, percebe-se que crianças e adolescentes com comprometimentos mais
brandos são aceitas mais corriqueiramente em escolas regulares, por vezes, ainda
dentro da concepção de integração. Tal situação reforça a grandeza do papel
inclusivo das escolas regulares e a perene necessidade de ações nas políticas de
educação, que fomentem a expansão e preparação do espaço escolar e a formação
do professor.
O Decreto n.º 7.611/11 dispõe sobre o apoio técnico e financeiro do Poder
Público às instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação
exclusiva em educação especial. Trata-se da valorização das instituições especiais,
públicas e privadas. Em contrapartida, sinaliza o MEC (BRASIL, 2010) que a
educação especial não pode ser organizada paralelamente à comum, como um
substitutivo. O desenvolvimento dos estudos no campo da educação e dos direitos
humanos vem modificando conceitos, legislações, práticas educacionais e de
gestão, em razão da necessidade de se promover uma reestruturação das escolas do
ensino regular e especial.
Portanto, estamos em um momento de transição em direção a uma educação
inclusiva. Por conseguinte, qualquer radicalismo poderá ser perigoso, pois a
realidade em nosso País tem mostrado que muitas escolas carecem de melhor
preparação para ensinar o aluno com necessidades especiais. É legítimo
discutirmos tudo o que se refere ao nosso ofício. Ao mesmo tempo, precisamos
educar. Certamente, há estudantes com espectro autista em instituições regulares e
especiais. Trabalhamos para que as práticas docentes sejam inclusivas nesses dois
espaços.

Breve comentário acerca das alterações na Lei n.º 9.394/96

A Lei n.º 12.796/13 alterou o artigo 58 da LDBEN n.º 9.394/96, que trata
da educação especial. Pela nova redação, entende-se por educação especial a
modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de
ensino, não mais para educando com necessidades educacionais especiais, mas
sim, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e
altas habilidades ou superdotação. Para o autista, não há mudanças, em razão da
Lei n.º 12.764/12, “Lei Berenice Piana”, que situa o autismo na condição de
uma deficiência. Porém, por causa da redação da nova Lei, alunos com TDAH,
dislexia, dispraxia e outros transtornos, que representam indubitavelmente
necessidades educativas especiais, podem ficar alijados de processos legais
inclusivos, já tão parcos no Brasil, fato que não gostaríamos que ocorresse e
lutamos para que não aconteça. Neste livro, utilizamos a expressão “necessidades
educacionais especiais” por ela representar melhor a diversidade discente quando
falamos de inclusão. Trata-se de um público muito heterogêneo, abarcando
dificuldades orgânicas e não orgânicas, deficiências e transtornos
comportamentais.
3 – Formação e saberes para o trabalho docente

Esse pequeno relato histórico introduz nossa preocupação com o trabalho do


professor, que se inicia, sem dúvidas, na sua formação. Nota-se uma grande
dificuldade de se constituirem práticas de ensino como alternativas para a
superação dos obstáculos quando se fala do acesso e da permanência de alunos
com dificuldades de aprendizagem na escola. Há a demanda por uma educação
de combate ao preconceito e com ações educacionais inclusivas, uma práxis para
extinguir definitivamente os contextos segregantes, historicamente impostos aos
alunos da educação especial.

Entretanto, como vimos, na educação desses aprendentes, percebem-se com


frequência abordagens de base comportamental com inspiração behaviorista.
Ainda que elas busquem minimizar os danos das limitações comportamentais,
procurando interferir precocemente para promover o desenvolvimento escolar, elas
não traduzem o retorno de pesquisas no campo das práticas pedagógicas, cujo foco
invariavelmente nos remete aos processos de ensino e aprendizagem, provenientes
das relações entre os atores da escola.
Vê-se que, na busca por respostas às questões geradas pela demanda da
inclusão, no que tange às práticas docentes, os professores ainda se apoiam nas
teorias tradicionais de ensino e aprendizagem, pois não há a consolidação de um
arcabouço teórico específico. Ademais, há carências quanto à formação docente. É
visível a fragmentação formativa, com diferentes abordagens em diferentes
instâncias formadoras.
Como afirma Tardif (2012), o saber dos professores parece estar assentado em
transações constantes entre o que eles são (incluindo as emoções, a cognição, as
expectativas, a história pessoal) e o que fazem. O ser e o fazer aparecem não como
dois polos separados, mas como resultados dinâmicos das próprias transações
inseridas no processo de trabalho escolar. Os professores não usam o saber em si,
mas saberes produzidos por esse ou por aquele grupo, oriundos dessa ou daquela
instituição, incorporados ao trabalho por meio de mecanismos sociais.
Tardif acrescenta que os professores em situação precária têm a sua
aprendizagem para o exercício docente mais dificultada, pois esta comporta
sempre certa distância em relação à identidade e à situação profissional de outros
professores.
Evidentemente, os docentes, antes de se formarem, já receberam influências
comportamentais nas salas de aula e nas escolas que frequentaram quando
discente, pois o professor de hoje foi o aluno de ontem. “Ora, tal imersão é
necessariamente formadora, pois leva os futuros professores a adquirirem crenças,
representações e certezas sobre a prática do ofício de professor, bem como sobre o
que é ser aluno”. (TARDIF, 2012, p.20)
Naturalmente, trazemos as impressões dos tempos de aluno quando iniciamos
nosso trabalho docente. Isso se torna mais evidente e crítico no campo da inclusão,
pois, em tempos passados, raro era haver em uma sala de aula da escola regular
algum aluno com necessidades educacionais especiais. Fica a impressão de que o
processo de inclusão escolar é um processo estranho, não familiar. Isto influencia
grandemente as representações sociais dos professores acerca do exercício
pedagógico.
Os saberes dos professores não provêm de uma fonte única, mas têm diferentes
origens. Partem de sua história pessoal e social, da sua subjetividade, dos seus
grupos de pertença, das suas crenças, da família, da mídia, da cultura e de tantas
outras fontes. A questão é descobrir como os docentes amalgamam esses
conhecimentos. Vejamos o quadro a seguir:
Saberes dos professores1:

Modos de
Saberes dos Fontes sociais de
integração no
professores aquisição
trabalho docente

Pela história de
A família, o ambiente
Saberes pessoais vida e pela
de vida, a educação no
dos professores socialização
sentido lato etc.
primária

Saberes A escola primária e


Pela formação e
provenientes da secundária, os estudos
pela socialização
formação escolar pós-secundários não
pré-profissionais
anterior especializados etc.

Saberes Os estabelecimentos Pela formação e


provenientes da de formação de pela socialização
formação professores, os estágios, profissionais nas
profissionais para o os cursos de reciclagem instituições de
magistério etc.
formação de
professores.

Saberes A utilização das Pela utilização


provenientes dos “ferramentas” dos das “ferramentas”
programas e livros professores; programas, de trabalho, sua
didáticos usados no livros didáticos, cadernos adaptação às
trabalho de exercícios, fichas etc. tarefas.

Saberes
provenientes de sua A prática do ofício na Pela prática do
própria experiência escola e na sala de aula, trabalho e pela
na profissão, na a experiência dos pares socialização
sala de aula e na etc. profissional.
escola.

Certamente, existem conflitos e contradições para a predominância de um ou


outro saber, principalmente o saber pedagógico. Tardif ressalta que, até agora, a
formação para o magistério esteve dominada, sobretudo, pelos conhecimentos
disciplinares, produzidos em uma redoma de vidro, sem nenhuma conexão com a
ação profissional, devendo ser aplicado, todavia, na prática. Para o autor, essa
visão disciplinar não tem mais sentido hoje, não somente no campo do ensino, mas
também nos demais setores profissionais.
O espaço de prática do professor torna-se um espaço onde ele procura aplicar
saberes distantes de seu cotidiano, porém, como assinala Tardif, os saberes
originários da experiência cotidiana de trabalho parecem constituir o alicerce da
prática e da competência profissionais, pois essa experiência é para o professor a
condição para a aquisição e produção de seus próprios saberes profissionais. Os
professores não colocam todos os saberes em pé de igualdade, mas tendem a
hierarquizá-los, em razão de sua utilidade no ensino. Assim, os saberes
construídos pela prática tornam-se os mais importantes, ainda que não possuam
fundamentos teóricos e que tenham origem no senso comum ou em representações
de grupos sociais.
Dessa forma, muitos trabalhos na educação de estudantes com espectro autista
têm sido instituídos. Também é notória uma aparência fabril na articulação desses
saberes. É possível constatar essa concepção que se estratificou na história, pois a
escola foi pensada de certa maneira como uma fábrica, como instituição que se
estabeleceu pelas influências da Revolução Industrial. Assim, os caminhos
pedagógicos que hoje surgem para traçar as veredas da inclusão podem ter origem
no antigo, “exatamente porque o antigo é reutilizado constantemente por meio dos
processos de aprendizagem” (TARDIF, 2012, p.36). Mas, os saberes antigos
não estão sozinhos. Eles se incorporam aos diferentes saberes que permeiam as
práticas escolares, como, por exemplo:

• saberes ideológicos, que impregnam a formação docente, produzidos em


grande parte pelas ciências da educação;
• saberes curriculares, que são incorporados ao trabalho do professor pelas
instituições educacionais;
• saberes experienciais, que são produzidos e desenvolvidos pelo próprio
grupo de professores.

Por isso, nota-se que há um grande movimento nas políticas públicas com vistas
a sobrepujar os problemas da formação e do trabalho docente. Mas, este
movimento gera outras perguntas, pois está articulado em múltiplos braços de
ação. Onde deve ser formado o professor? Como? Com quais conteúdos? Para
que devemos formá-lo? São perguntas que têm demandado distintas respostas.
Como resultado, a formação do professor tem sido extremamente diferenciada e
fragmentada. Há professores federais, estaduais e municipais; professores
concursados e não concursados; professores urbanos e rurais; professores das redes
pública e particular; das redes patronais profissionais e professores titulados e sem
titulação (SCHEIBE, 2010). Em decorrência, as dificuldades e os embates
continuam sendo inúmeros. É preciso dar continuidade às ações, corrigindo os
percursos e fomentando novas iniciativas com base na dinâmica social e no
trabalho em sala de aula.
Gatti (2010) corrobora o imperativo de uma verdadeira revolução nas
estruturas institucionais e nos currículos da formação, devido à fragmentação
formativa, sendo preciso integrar essa formação em currículos articulados e
voltados para a experiência cotidiana. Para ela, a formação de professores não
pode ser pensada a partir das ciências e seus diversos campos disciplinares, como
adendo destas áreas, mas a partir da função social própria à escolarização, isto é,
ensinar às novas gerações o conhecimento acumulado e consolidar valores e
práticas coerentes com nossa vida civil. A formação de professores profissionais
para a educação básica tem de partir de seu campo de prática.
A pouca literatura pedagógica ligada à prática na educação especial também
contribui para o estado das coisas. A maior parte da produção acadêmica vem da
área médica. O professor fica sem suporte específico para o trabalho docente. O
aluno da educação especial precisa dispor de uma série de condições educativas
em um ambiente expressamente preparado com metodologia, literatura e materiais.
Consequentemente, há na prática docente dificuldades para a elaboração de
atividades diante das necessidades desses educandos. O que é mais importante
fazer? É possível educar? É possível aprender? É possível incluir? São questões
que sempre emergem no quefazer pedagógico.
Ademais, as impressões históricas do atendimento a pessoas com autismo
remetem-nos aos estigmas existentes na educação, ainda carregada de
preconceitos. Com efeito, o preconceito também trouxe as dificuldades para
ensinar, criando barreiras e indiferenças. O aluno que é compreendido pela
ciência, nem sempre é compreendido e ensinado pela escola.
Ainda assim, como já falamos, vê-se um grande movimento nas políticas
públicas de educação. Porém, as políticas necessitam de apoio dos governos para
terem sucesso. Em decorrência da formação fragmentada, apontada neste texto, e
com base nos autores aqui mencionados, podemos dizer que é emergencial a
adoção de ações articuladas entre as diferentes instâncias de formação para a
docência, com qualidade e dentro do seu campo de prática.
No ensino do aluno com o espectro autista, não há metodologias ou técnicas
salvadoras. Há, sim, grandes possibilidades de aprendizagem, considerando a
função social e construtivista da escola. Entretanto, o ensino não precisa estar
centrado nas funções formais e nos limites preestabelecidos pelo currículo escolar.
Afinal, a escola necessita se relacionar com a realidade do educando. Nessa
relação, quem primeiro aprende é o professor e quem primeiro ensina é o aluno.

1TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012,
p.63.
SEGUNDA PARTE:
Ideias e atividades pedagógicas

O aluno com necessidades educacionais especiais não é


um ser solitário compondo uma música que só ele ouve.
Ele faz parte de uma orquestra, cujo maestro é o seu
desejo, pois é para este que ele sempre olha.
E o professor? O professor é o músico que dá vida ao
ritmo que sustenta a música até o final.
4 – O primeiro passo do professor: conhecer seu aluno

Queremos retomar aqui algumas ideias de ensino e aprendizagem introduzidas


em nosso livro anterior “Práticas pedagógicas para inclusão e diversidade”, diante
das seguintes perguntas:

Como pautar a nossa prática pedagógica diante da realidade do aluno com


autismo?
O que é importante descobrir para poder atuar?
Como atuar diante das descobertas?
Para tentar responder a essas perguntas, falaremos com mais detalhes de três
etapas que percorremos em nosso trabalho: a observação, a avaliação e a
mediação. Acerca dessas etapas, conversaremos agora.

Quando começamos a trabalhar essas ideias, lecionávamos para crianças com


autismo. Alunos que tinham extrema dificuldade para estabelecer comunicação,
com visível deficit de atenção, hiperativos, alguns com atraso cognitivo e motor.
Eram clássicos, todavia, não deixavam de ser aprendentes e receptivos ao afeto.
Nutriam curiosidades, às vezes, com interesses peculiares.
Então perguntamos: Por que não observá-los atentamente e buscar instâncias
que poderão servir de elementos comunicantes? Por que não tentar descobrir
canais sensoriais e afetivos? Afinal, tudo começa pelo afeto. Decerto, no contexto
do autismo, a qualidade do trabalho em sala de aula iniciar-se-á pela descoberta
do aluno: o que ele faz, deseja e como ele aprende. Portanto, haverá momentos em
que a melhor coisa que o professor poderá fazer será observar seu aluno, atentar
para as suas ações.
Nesse contexto, lembramo-nos de determinado aluno que desejava descobrir o
que aconteceria se deixasse escorrer um pouco de água entre as frestas do
revestimento cerâmico do piso da escola. Como aquele filete de água percorreria os
espaços entre as lajotas? Então, deixamos que ele o fizesse. Atentamente, ele
deixou seus pequenos dedos sentirem a água, olhou ao redor e sorriu. Certamente
foi um comportamento infantil, comum a qualquer criança, mas sem dúvida,
tratava-se de uma curiosidade científica: descobrir os movimentos das coisas.
Alguém já disse e com muita propriedade que o conhecimento nasce da
experimentação, da confrontação, das incertezas, das descobertas. Antes de
impedir que o aluno fizesse tal coisa, seria importante perscrutar o porquê da ação
e os seus resultados. Observar, avaliar e depois mediar as suas reações foi o início
do exercício pedagógico. São etapas concomitantes em nosso trabalho, porém,
para as entendermos melhor, queremos separá-las didaticamente, conforme a
seguir:

Observação:

Imaginemos a execução de uma obra musical. Parece intangível aos ouvidos


comuns a sua beleza e precisão; a clareza e harmonia dos acordes. Para os ouvidos
comuns, cada movimento particular representa a sublimação de um momento que
não se pode alcançar, que não se pode realizar, e que transmuta os pensamentos e
os desejos para os movimentos do instrumentista. Para os ouvidos comuns, o
encantamento é mais fácil, assim como os enganos. Isto porque a maioria das
pessoas não possui uma sensibilidade musical apurada, forjada por anos de
estudos, pelo conhecimento de obras musicais e técnicas de execução instrumental.
Por esta razão, nem sempre é possível perceber deslizes ou imperfeições nas
performances musicais. Fato que dificilmente ocorre com um músico de formação.
Ninguém conhece melhor as qualidades de uma obra musical ou as qualidades de
sua execução do que um bom músico. Ninguém conhece melhor as qualidades de
um aluno ou as qualidades do seu trabalho do que um bom professor.
O exercício de um bom professor começa pela observação. E, para observar, é
preciso saber o que observar. E, para saber o que observar, é preciso formação.
Como a percepção de um bom músico, será a percepção de um bom professor,
capaz de identificar detalhes comumente não notados.
A observação advém da necessidade de se conhecer o discente. Conhecer a
criança, conhecer o adolescente. Não raro, o professor é quem identifica
primeiramente o transtorno, quem primeiro dá o sinal de alerta com respeito ao
comportamento do educando. O olhar mais cuidoso pode levar ao
encaminhamento e diagnóstico precoce. Se o diagnóstico precoce torna-se
fundamental, devemos considerar ainda as possibilidades pedagógicas que se
abrem por meio de uma “avaliação precoce”. Já falamos da importância da
formação do professor. Sua preparação é fundamental para identificar algum
aspecto peculiar no comportamento do aluno. Isto poderá fazer toda a diferença,
permitindo, o quanto antes, maior independência e qualidade de vida em qualquer
grau de autismo. O espaço escolar é fundamental, pois se trata de um ambiente
extremamente favorável à observação.
A observação faz do professor um pesquisador, pois ele pode registrar o que vê,
com a isenção de preconceitos. Certamente, a observação o levará a conhecer o
educando, suas qualidades e, também, suas limitações. Inicia-se já na primeira
entrevista com os pais ou com o próprio estudante. Todavia, não são as
dificuldades que irão ter maior peso, mas as virtudes e possibilidades sobre as
quais virá o trabalho pedagógico. Poderá haver o registro (é bom que haja) para
que os dados não se percam.
Trata-se de uma atividade de pesquisa, onde os elementos são catalogados e
organizados para serem analisados. Fornece subsídios para melhor compreensão
do educando. Seus gostos, interesses, desejos, sonhos, movimentação em sala,
características pessoais e sociais; o que é mais pertinente aprender. A turma, a
equipe pedagógica, a escola, o espaço de aprendizagem, a família e os diferentes
ambientes que frequenta. Todo esse cabedal pode significar um rico patrimônio de
informações. É necessário ressaltar que sempre o comportamento é uma forma de
expressão, tendo significados que não podem ficar esquecidos.
Faz-se pertinente ainda perquirir a forma do aprendente com autismo pensar e
como ela interfere nas suas relações com o ambiente externo. Ele é comumente
afetado em suas sensações. Assim, os vínculos com os diversos ambientes, que são
comumente geridos por experiências sensoriais, poderão contribuir para a
construção da sua interioridade afetiva e social. Com efeito, torna-se decisivo
conhecer aspectos do seu pensamento para melhor entendimento do seu
comportamento.
Os sintomas relacionados à vida sensorial são consequências também do
isolamento, da dificuldade de interagir com os outros e de manter a atenção em
determinada atividade. Nasce, então, o interesse ou foco excessivo em uma única
ação ou objeto que não despertaria interesse em outros indivíduos da mesma
idade.
O nosso cérebro recebe informações, de imediato. Grupos de neurônios
importantes para os conteúdos emocionais reagem a esses impulsos, levando as
informações ao córtex cerebral, que pode equilibrar as reações ou não. Falando de
forma mais simples, seria a razão equacionando as emoções.
Assim, a pessoa com autismo, ao adquirir experiências peculiares no mundo
social, pode apresentar comportamentos estereotipados, singulares e até estranhos
para nós, pois o ambiente pode gerar estímulos diversos, traduzindo-se em reações
cuja gênese se dá mais pelos impulsos e menos pela gerência da razão.
Por que é preciso conhecer nosso aluno? Porque assim podemos estabelecer
prioridades. Um repertório de atividades escolares para ele inicia-se pela avaliação
para saber quais habilidades ele possui e quais necessita conquistar. A princípio,
dependendo do grau de comprometimentos, desenvolver-se-ão aptidões básicas,
motoras e acadêmicas. O mais das vezes, alguns detalhes nem sempre se avaliam,
como o contato ocular, interação espontânea, respostas a estímulos afetivos. Na
incidência do autismo, habilidades naturais precisam ser priorizadas.
O professor reconhece as habilidades que o estudante possui e as que devem ser
adquiridas. O estudante aprende a aprender. É preciso, para tanto, cativá-lo,
provocando o seu desejo. Em alguns casos, estabelecer o contato visual será o
início desse movimento. Trata-se de um movimento afetivo.
Sabemos que uma experiência emocional libera inúmeras conexões que marcam
a memória. Dependendo da intensidade, ela pode marcar profundamente e de tal
forma que surgem traumas, mágoas, rancor, ódio ou profundo amor. A qualidade
dessas emoções vai influenciar grandemente a qualidade da nossa vida. Quanto
maior e mais intensas forem as experiências, maiores serão as possibilidades de
afetarem nossa lembrança. Cargas de adrenalina são liberadas intensamente em
situações de muita emoção, para o nosso bem ou para o nosso mal. Certamente,
não é a qualidade das experiências, mas o nosso olhar para elas é que nos fará
mais felizes ou mais bem preparados para a vida.
A questão é que uma pessoa com autismo tem menor controle sobre seus
impulsos diante de estímulos exteriores, quando estes o afetam grandemente. É
preciso sempre propiciar oportunidades para que ela descubra propriedades (que
efetivamente há) para a superação desses desafios. E para encontrar as
oportunidades e revelar essas propriedades, será preciso observação.

Avaliação

Antes de ser apenas uma atribuição de valor, avaliar é uma ação objetiva para
compreender o comportamento do aprendente diante dos instrumentos de ensino e
aprendizagem. Torna-se, portanto, uma ação projetiva, um cálculo antecipado de
uma situação futura, com base em dados de caráter mediador e formativo. Na
prática, é a verificação do desempenho discente diante do trabalho pedagógico,
para se planejar o que se fará a seguir. A avaliação é início desse planejamento.
Despida de preconceitos, a avaliação direcionará os passos do professor no
caminho que se deve construir em parceria com o aluno. Trata-se de uma ação
mediadora. Com base nos escritos de Vygotsky, seria verificar como se comporta o
educando na zona de desenvolvimento proximal, diante da aprendizagem
potencial.
De fato, uma avaliação com esses atributos torna-se um mecanismo de melhoria
nas decisões que virão a seguir, pois tem como mote os objetivos e os passos que
serão dados. Existem instrumentos eficazes para essa verificação, que vão desde a
entrevista com os pais ou a anamnese aos recursos pedagógicos que muitos
professores conhecem muito bem.
É pertinente, todavia, que o professor avalie a si mesmo e os recursos que
possui, pois nem sempre o que se pressupõe ser instrumento de ensino é recurso
pedagógico. Os recursos utilizados no ambiente de aprendizagem precisam estar
vinculados às possibilidades do aprendente e não às características docentes.
Além dos quefazeres inerentes ao currículo escolar, que sempre são
instrumentos avaliativos, o professor poderá estabelecer outros, conforme a seguir:
Jogos:

verificar as relações cognitivas do educando mediante os desafios que a


atividade oferece;
possibilitar uma leitura de aspectos relacionados à função simbólica;
verificar conteúdos afetivos e emocionais, bem como habilidades para a
aprendizagem.

Desenhos:

verificar vínculos afetivos e interesses do aprendente relacionados ao espaço


escolar e familiar;
verificar maturidade emocional, aspectos motores e cognitivos por meio da
produção gráfica;
investigar aspectos ligados à subjetividade.

Pareamentos;

investigar modelos de aprendizagem interiorizados;


investigar esquemas lógicos de raciocínio;
investigar lateralidade e coordenação visório-motora.
trabalhar discriminação visual e gestalt.
A maneira como o aluno dispõe as peças geométricas sobre a mesa pode servir de parâmetro avaliativo para
melhor compreensão da organização do seu pensamento e da sua capacidade motora.

O processo avaliativo poderá responder a muitas perguntas, dentre elas: Quais


exercícios podem ser utilizados para o desenvolvimento sensorial, cognitivo ou
motor? Quais atividades o aluno apresenta maior dificuldade ou facilidade? Quais
temas ou assuntos despertam maior interesse? Quais são suas maiores habilidades
e dificuldades?
Ressalta-se, porém, que o aluno não deverá ser avaliado com base no
desenvolvimento de outro colega, mas com base no seu próprio desenvolvimento: o
que ela fazia, o que ele faz e o que ele poderá fazer.

Mediação

Mediar e servir de elo entre um estímulo e uma resposta. É provocar o estímulo


a fim de se obter a resposta. O mediador deve estar ativamente engajado nesse elo.
A mediação é o processo de intervenção na relação do aluno com o conhecimento.
É toda intervenção pedagógica que possibilita essa interação. A mediação é
consequência da observação e da avaliação. Mediar é transformar a intenção de
ensinar em prática docente e a intenção de aprender em aprendizagem.
A ação do mediador não é a de facilitar1, porque mediar processos de
aprendizagem é, sem sombras de dúvidas, provocar, trazer desafios, motivar quem
aprende. Um dos principais escopos da mediação é criar vínculos entre o
educando, o professor e o espaço escolar.
Na mediação, o professor utiliza as atividades que permitirão o melhor
desenvolvimento do aprendente, o que mais se afina ao seu perfil, atentando para
as qualidades, as dificuldades, as carências e os desafios. A mediação terá caráter
avaliativo, pois uma tarefa superada requer uma nova. Novas avaliações para
novos objetivos a serem conquistados.
A mediação é um movimento pedagógico que requer observação e avaliação.
Decerto, a prática pedagógica no ensino do aprendente com autismo revelará um
movimento conjunto dessas três ações.

1 Na educação especial, é comum a utilização do termo “facilitador” para indicar a pessoa que acompanha o
aluno na escola quando este apresenta dificuldades durante o processo de ensino e aprendizagem. Porém,
achamos que o termo “mediador” torna-se mais indicado nos casos de profissionais da educação, pois se trata
de um papel característico da docência.
5 – Autismo e práticas pedagógicas

Como podemos conhecer o nosso aluno?

O que devemos observar? Como avaliar e mediar o processo de ensino e


aprendizagem?
Para responder a essas perguntas, listaremos alguns aspectos ou questões no
processo de ensino e aprendizagem que poderão ajudar:
Motivação para o trabalho escolar: Qual a motivação do aluno? Por que
está motivado ou por que não está? Quais seus pontos de interesse em sala de
aula?
Sugestões para o professor: descobrir o que o aluno gosta de fazer. A
partir daí, traçar estratégias de ensino. Há sempre canais comunicantes que
podem ser conectados para colorir o trabalho pedagógico. Será sempre bem-vindo
o incentivo após o término das tarefas, inclusive estabelecendo atividades em que
já haja domínio para o permanente foco de interesse em toda a experiência escolar.
Perseverança na finalização das atividades: O aluno termina o que
começa? Quando termina? Quando não termina? O que se pode apreender com
as respostas?
Sugestões para o professor: primeiramente, é preciso salientar que as
atividades não poderão ser muito longas se o aprendente tem dificuldades para
manter o foco de atenção. Sugerimos que, aos poucos, o professor estabeleça um
tempo maior dentro das possibilidades, sempre buscando aumentar a capacidade
de concentração.
Quando o aprendente gosta do que faz e está motivado, o foco da mente torna-
se mais fácil, mesmo diante das dificuldades da tarefa. Quando conseguimos atrair
a sua atenção, ele cria oportunidades e ganhos no seu aprendizado. A atenção é
extremamente relevante na aprendizagem escolar. Os pensamentos não estão
separados das experiências exteriores, mas se conectam a elas e atuam em nosso
desenvolvimento cognitivo à medida que experienciamos situações cotidianas.
Essas situações, então, podem servir para criar o foco de atenção, principalmente
aquelas que tragam sentido ao trabalho escolar.
A concentração evita a desordem das informações e os pensamentos aleatórios;
organiza as elaborações cognitivas e auxilia a memória. O incentivo e o retorno
positivo do professor após a realização das atividades nutrem o interesse do aluno.
Atitude diante de erros e dificuldades: O estudante procura superar suas
dificuldades com criatividade? Demonstra desânimo diante dos erros?
Sugestões para o professor: trabalhar com os erros e não ignorá-los. Errar
faz parte do mundo social, faz parte da vida. Quem aprende a conviver com eles
desenvolve a capacidade de autoavaliar-se. Desenvolve o pensamento reflexivo e
crítico. Um dos grandes problemas da educação é a insistência em punir o erro e
não transformá-lo em mudanças, descobrimentos e saberes.
Há casos de alunos com o transtorno que se frustram grandemente quando não
conseguem fazer algo com correção. As reações são diversas: de um simples
desapontamento a ações disruptivas. Ensinar a lidar com essas situações é ensinar
o cotidiano, é ensinar a estar mais bem preparado para a vida.
Capacidade de atenção: Quais são as atividades com menor ou maior nível
de concentração? Por quê? O que fazer para aumentar a capacidade de atenção?
Sugestões para o professor: tudo que falamos no tópico sobre
Perseverança na finalização das atividades poderá ser aplicado também
aqui. A atenção orienta o aluno a ter respostas rápidas aos estímulos ambientais.
Existem algumas atividades que poderão ser usadas para esse fim.
Como sempre mencionamos, trabalhos artísticos estimulam o foco de atenção de
qualquer aprendente, pois demandam proficuamente a concentração, servindo
como mediação pedagógica. Pintura, desenho ou atividades com massa podem ser
receptores sensoriais que os ajudarão no ensino e na aprendizagem. Por eles, de
forma lúdica, o aprendente poderá desenvolver sua capacidade de concentração,
necessária para a aprendizagem em outras áreas, como a Matemática.
A música desenvolve habilidades que estão relacionadas à memória, à
representação geométrica e à leitura. Ademais, a música traz para o campo das
atividades escolares a expressão da subjetividade e a instrumentalização sensorial.
Por conta disso, a cognição e os movimentos no uso do instrumento musical
fomentam constante articulação psicomotora, além de os ajudarem no
desenvolvimento da linguagem. O uso de violão, flauta ou percussão, por exemplo,
por enfatizarem tempo, espaço, ritmo e postura corporal, ajuda-os na escrita, no
andar, na respiração e em outros aspectos importantes que se somam ao processo
de aprendizagem que estarão presente na assimilação de outros conteúdos
escolares.
Participação em grupo: Onde o aluno gosta de estar? Qual ambiente?
Quando gosta de estar? O que o faz procurar o grupo? O que o impede de
procurar o grupo? Quais características comportamentais são mais comuns nos
ambientes que ele frequenta?
Sugestões para o professor: atividades em que o estudante possa fazer com
que os demais alunos favoreçam o seu interesse e permanência no grupo. Em
muitos casos, ele necessita descobrir primeiramente as regras dos grupos sociais.
Acreditamos nas possibilidades de socialização que a instrução escolar permite a
qualquer aluno. Na família, inicia-se o desenvolvimento do seu equilíbrio
emocional e a construção dos seus valores sociais e afetivos, que trazem o respeito,
a solidariedade e a disciplina para a convivência.
Após isso, o espaço adequado de aprendizagem é, sem dúvida, a instituição
escolar. É na família que a criança aprende a reconhecer o papel do professor e a
considerar seus pares, porque reconhece a autoridade dos pais e os valores da
convivência que, indubitavelmente, começam a ser aprendidos no seio familiar.
Na escola, os jogos são propícios para a descoberta de limites e de valores
sociais. Estimulam a linguagem pela interação, nos momentos descontraídos e até
nos momentos quando discentes discutem regras para brincadeiras. Vemos isso nos
textos de Vygotsky. O brincar da criança projeta as atividades adultas da sua
cultura que pressupõem seus futuros papéis e valores. O brinquedo e a instrução
escolar criam, por meio da interação, o desenvolvimento de funções sociais ainda
não amadurecidas, mas que estão em processo de maturação, podendo ser
chamadas de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento.
Autonomia: O educando tem autonomia na vida prática? No campo
pedagógico? Qual a área mais carente? Como sua autonomia pode ajudar o
trabalho pedagógico? Ainda precisa de um mediador?
Sugestões para o professor: ainda que seja inevitável a presença de um
mediador, é conveniente que se busque a autonomia do aprendente, propiciando-
lhe condições para que sempre o seu desenvolvimento individual apareça. A
autonomia inicia-se quando o estudante já sabe o que fazer. Reconhece o ambiente
escolar, os materiais pedagógicos, os brinquedos e as atividades que deverá
realizar. Posteriormente, falaremos um pouco mais sobre a autonomia.
Comunicação: Como é o seu repertório verbal? Como o aluno estabelece
comunicação? Dirige-se a um colega para iniciar um contato? Utiliza-se de gestos
em lugar de palavras?
Sugestões para o professor: em todos os níveis de incidência, a
comunicação precisa possuir caráter afetivo e ser provida de expressões claras e
objetivas. Estabelecer o contato visual com o aluno, chamá-lo pelo nome,
identificar-se, nomear objetos, ajudá-lo a entender sentimentos, desejos, vontades e
necessidades são ações que sempre produzem bons resultados. É fundamental
para o funcionamento social da linguagem que o significado da palavra seja
percebido antes do seu uso, afetivamente. Isto favorece a compreensão simbólica
da língua.
Toda a postura do professor é relevante na estruturação das habilidades
linguísticas. Falar de maneira suave, sem pressa e claramente permite o
aprendizado natural e descortina os caminhos da comunicação com o mundo
exterior. Existe uma diferença crucial entre comunicar e transmitir. A transmissão
é passível de interrupções ou ruídos. A comunicação pressupõe uma proposição
acabada, uma ação intransitiva, que não precisa de complemento, pois se presume
que atingiu o seu fim. Por isso, transmitir não é o mesmo que comunicar.
O primeiro passo na comunicação com aluno será dado pelo professor em
conhecê-lo. Conhecê-lo para saber comunicar-se com ele. Comunicar uma ação
pedagógica, onde estarão entrelaçados os conhecimentos discentes e docentes. A
comunicação abarca efetivamente o mundo dos significados e afetos do aluno.
É necessário entender como o educando compreende a nossa fala. A partir daí,
poderemos criar exercícios, atividades, provocar situações estimulantes para a sua
socialização. No autismo, é comum indivíduos com extremas limitações na
linguagem. Será preciso criar mecanismos que facilitem a comunicação com eles.
Existem procedimentos pedagógicos que podem ser utilizados nesses casos: cartões
com imagens ou figuras, música, contatos sensoriais poderão ser de grande valia.
A linguagem na comunicação social demanda, em sua essência, a abstração e a
codificação. Por isso, haverá momentos em que ela deverá ser extremamente
simples, desprovida de muitos símbolos. Existem pessoas que têm dificuldades
para dar sentido a elaborações linguísticas mais complexas. É imprescindível
observar como falamos e se somos compreendidos.
Por outro lado, o desenvolvimento da linguagem está estreitamente ligado à
capacidade simbólica e à representação do objeto ausente. Por conta disso, a partir
do conhecimento do educando, surgem mecanismos para estimular o uso de
expressões mais elaboradas, propiciando condições para a construção de novos
significados.
Fizemos um trabalho com uma criança de oito anos. Ela pouco verbalizava e,
quando o fazia, não havia clareza nos fonemas, bem como as frases eram
extremamente simples. Começamos a trabalhar com fotos da sua vida familiar,
passeios, ambientes de sua casa e pessoas ligadas a ela. A partir do seu mundo
afetivo, planejamos trabalhos relacionados à sua vida cotidiana, como, por
exemplo, a formação da frase “o carro anda na rua”, pois ela sempre falava do
carro do seu pai. A partir daí, tornou-se possível o surgimento de mecanismos
para estimular o uso de expressões mais elaboradas, propiciando condições para a
construção de novos significados.
A partir do seu mundo afetivo, a criança começa a descobrir novas palavras e a elaborar expressões mais
complexas e contributivas para a comunicação.

Ações precedidas por palavras e palavras precedidas por ações colaboram para
a comunicação e oralidade. O estabelecimento da comunicação e da compreensão
da linguagem é um trabalho que requer sempre uma continuidade sistemática.
Vínculos afetivos: Constitui amizades em sala? Qual sua relação com a
família, os educadores e os colegas de turma?
Sugestões para o professor: propor atividades que estejam articuladas com
as dinâmicas sociais, com as dinâmicas dos grupos de pertença do aluno, com sua
cultura social, que reflitam seu cotidiano, seu vínculo familiar, fazendo conexões
ainda não experienciadas por ele em seus atributos afetivos, sociais e intelectuais.
Estabelecer atividades para serem realizadas pelos demais alunos da sala de aula.
Interesses: Para onde se dirige seus afetos? Do que gosta? O que o atrai?
Quais os canais de sua vida afetiva que poderão ser utilizados como propulsores
da aprendizagem? De que forma o seu desejo poderá ser provocado para o
trabalho pedagógico?
Sugestões para o professor: os interesses do aluno estão no campo dos
afetos. Em muitos casos, a afetividade é o único caminho para se estabelecer
contato com o aluno.
Certa vez, um aluno do ensino médio, desinteressado pelo trabalho escolar,
despertou-se pela proposta do seu professor: escrever um texto sobre capitais
brasileiras, suas características econômicas, históricas e culturais. O professor sabia
que seu aluno seria capaz de se interessar, pois conhecia detalhes de todas as
capitais brasileiras por causa do seu fascínio por futebol: ele fazia a relação do time
de futebol com a cidade de origem. A pesquisa foi feita e transformou-se em aula.
É claro que o objetivo não era conhecer o futebol brasileiro, mas por meio da
paixão do adolescente por esse esporte, adquirir os conhecimentos que, por
estarem sendo construídos em razão do interesse, poderiam ser guardados para
sempre. Uma prática simples, sem complicações e teorias, mas verdadeira, proveu
o aprendizado. Isto é legítimo em qualquer nível e modalidade de ensino, idade ou
nível social, em qualquer circunstância na educação.
Desenvolvimento emocional: Como educar as emoções do aluno com o
espectro autista? Quais aspectos poderiam ser utilizados para o trabalho
pedagógico?
Sugestões para o professor: a vida emocional é um campo com o qual
podemos lidar como outros campos do saber humano, com maior ou menor
habilidade, exigindo, igualmente, um conjunto específico de habilidades. Decerto,
os predicados dessas habilidades tornam-se fundamentais para sermos felizes,
obtermos sucessos e prosperarmos, não só em nossa vida afetiva mas, do mesmo
modo, em nossas relações sociais e atividades profissionais. As nossas emoções são
educáveis.
As nossas ações, condutas e pensamentos recebem permanente ingerência do
nosso ser emocional, isso porque não é possível utilizarmos razão e corpo sem
estarmos impregnados de propriedades afetivas.
Crianças e adolescentes com autismo nem sempre adquirem maturidade
necessária para que os mecanismos mentais controlem as emoções. São propensos
ao desequilíbrio por motivos aparentemente para nós insignificantes. É normal a
criança ou o adolescente sentir-se desconfortável e intimidado em um ambiente
novo, como o da escola. É normal buscar apoio nas coisas ou nos movimentos que
lhe trazem conforto emocional. É normal a reação diante da contrariedade. São
normais o medo e a raiva ganharem proporções significativas.
Toda a equipe pedagógica da escola, bem como funcionários e outros
profissionais precisam saber lidar com os aspectos emocionais do espectro. É
frequente crianças e adolescentes passarem mais tempo no ambiente escolar do que
efetivamente com os pais. Por essa razão, a educação emocional não pode estar
dissociada da ação pedagógica, a fim de se tornar uma habilidade a mais para o
aprendente; de propiciar maiores condições para a desenvoltura nos
conhecimentos acadêmicos.
A nossa cognição possui trânsito melhor quando aliada à aptidão emocional.
As emoções podem ser trabalháveis, tornando-se aparatos imprescindíveis para o
aprendizado. Por elas, percebemos melhor os mecanismos das dimensões pessoais
indispensáveis à vida em sociedade, como a tolerância, a compaixão, o compartir,
dentre tantos outros que fogem ao escopo racional. O aluno com o espectro autista
pode desenvolver essas propriedades na escola. Para tal, o amor é fundamental.
Nada inclui melhor o aluno do que a ação educativa do amor. Ao mesmo tempo
em que ele traz pertencimento afetivo, traz pertencimento social. Na comunicação
da ação pedagógica, busca-se também alcançar o amor do aluno.
Desenvolvimento motor: Como são os movimentos, o equilíbrio, a
lateralidade? Apresenta estereotipias? Quais e em que situações?
Sugestões para o professor: nos exercícios físicos na escola, ficarão
evidentes muitas características motoras. Dificuldades espaciais, de equilíbrio de
coordenação, dificuldades para avaliar distâncias e outras mais. Todavia, ainda
que sejam desafiadores, programas especiais podem permitir que muitas
dificuldades sejam superadas. Já mencionado por nós, o trabalho com música e
artes explorando disposição postural, lateralidade, respiração, ritmo, coordenação
motora e reversibilidade certamente trarão bons resultados.
Desenvolvimento cognitivo: O educando apresenta deficit cognitivo?
Quais são suas maiores habilidades e dificuldades? Qual a sua relação com a
linguagem? Como é a elaboração do seu pensamento? É muito literal? Consegue
simbolizar?
Sugestões para o professor: conforme Nunes (2006), os cognitivistas
entendem a mente como um conjunto de mecanismos de processamento de
informação. Nossos sentidos são responsáveis pela captação dessa informação,
introduzindo-a no sistema cognitivo, envolvendo a atenção, a memória, as emoções
e a linguagem. Nunes apresenta os subsistemas cognitivos envolvidos no
tratamento da informação, que podem ser assim descritos:
• linguagem: responsável pela transmissão da informação;
• percepção: responsável pela captação da informação;
• memória: responsável por retenção, codificação e armazenamento da
informação;
• pensamento: responsável pelo processamento e pela transformação da
informação em conhecimento;
• inteligência: responsável pelo uso do conhecimento na resolução de tarefas;
• aprendizagem: responsável pela modificação do organismo diante da
informação captada.
Em situações cotidianas, faz-se necessária a articulação desses subsistemas.
Quanto mais complexas for a situação, maior será o grau de sofisticação das
articulações cognitivas. Decerto, aspectos motivacionais e emocionais trarão novos
matizes organizacionais para o pensamento.
A esquematização didática apresentada acima poderá fornecer pistas ao
professor no que tange ao desenvolvimento cognitivo do seu aluno. Por exemplo, se
o aluno tem dificuldades cognitivas, poder-se-ão elaborar atividades para estimular
as áreas que apresentam maiores comprometimentos. Assim, para problemas na
conservação das informações, atividades que estimulem a memória seriam
adequadas.
É preciso ressaltar a estreita ligação que há entre cognição e linguagem. A
linguagem é essencial para haver elaborações cognitivas mais complexas. Uma
elaboração não mediatizada pela linguagem ou por outro sistema de signos
viabiliza apenas a comunicação mais primitiva e limitada. Então, quanto mais a
comunicação é permeada de signos, sofisticada em recursos da linguagem, superior
ela será. Diante disso, podemos afirmar que quanto maior for o repertório
linguístico do aluno, maiores serão as suas possibilidades cognitivas. Da mesma
forma, quanto mais complexas forem as suas articulações cognitivas, maiores serão
as suas possibilidades linguísticas.
Com efeito, cada palavra torna-se uma ação verbal do pensamento, uma ação
cada vez mais lógica a fim de detectar símbolos incutidos nas conversas, nas
interações sociais. Uma ação articulada com a nossa cultura e subjetividade, no
uso profícuo da generalização da palavra, e a palavra pressupõe a ação, o verbo.
O estímulo à leitura ou ao contato com o livro pode ser uma atividade profícua
para o desenvolvimento das habilidades cognitivas e da linguagem. O livro, porque
nos conecta a temas tão diversos, é uma excelente ferramenta para a generalização
da palavra. O ensino na escola precisa ser conectado com o todo, levando à
amplitude do conhecimento e não promovendo o isolamento entre os saberes.
Para o leitor, o livro representa a generalização da palavra; para o não leitor, representa a generalização do
pensamento.

Exercícios com blocos lógicos promovem elaborações cognitivas mais complexas, que afluirão posteriormente
na linguagem e na Matemática.

Ao planejar atividades para o desenvolvimento cognitivo, será pertinente o


professor observar os seguintes aspectos:
• propor atividades que façam sentido para o aluno;
• propor atividades que estimulem a classificação, a associação e a
generalização da palavra;
• propor tarefas que explorem ações verbais e cognitivas;
• estimular o aluno a pensar a palavra antes de dizê-la ou escrevê-la;
• privilegiar trabalhos curtos, realizando uma tarefa por vez;
• oferecer sempre ao aluno o retorno positivo sobre seu desempenho, para
mantê-lo focado na atividade escolar;
• estimular a comunicação;
• cooperar nas suas atividades;
• trabalhar em consonância com a família;
• permitir que o aluno dê sugestões;
• utilizar tecnologias que despertem o interesse e medeiem a comunicação;
• evitar tarefas monótonas e repetitivas;
• evitar tarefas extremamente longas;
• compartilhar tarefas e estimular trabalhos em grupo.
Desenvolvimento matemático: O aluno reconhece as operações matemáticas?
Conhece os numerais? Consegue sequenciá-los? Faz operações mentais complexas
ou simples? Utiliza-se sempre do concreto?
Sugestões para o professor: a Matemática é uma habilidade básica do cérebro
humano, pois os números aparecem naturalmente em nosso cotidiano, fazendo
parte de nossa vida. Nossas relações com os números intensificam-se a cada
momento, localizando-nos no tempo e no espaço. Crianças e adolescentes
convivem constantemente com essa realidade numérica exigida na escola e em
outros ambientes sociais.
Numerais, sequenciamentos, pareamentos, adições e subtrações são mais bem
apreendidos se estiverem ligados à vida social e afetiva do aprendente com
autismo. Tanto na Linguagem como na Matemática, ele aprende a generalizar,
classificar, organizar e sequenciar. Desta forma, é possível ainda trabalhar com
blocos lógicos, caixa de cores, barras coloridas que indiquem unidades numéricas e
encaixes geométricos, dentre outros materiais, para o desenvolvimento do
pensamento lógico-matemático.
Fazer sequências numéricas sem relacionar o ato de sequenciar ao mundo
afetivo e cotidiano poderá ser inócuo. O educando poderá não ver sentido em
contar os números:
1, 2, 3, 4, 5...
Mas, poderá encontrar sentido em contar estrelas, carros, brinquedos e tantas
outras coisas materiais e simbólicas, que estão em suas dimensões afetivas:
O professor poderá observar e avaliar melhor seu educando quanto ao nível de
desenvolvimento matemático verificando se ele é capaz de:
fazer pareamentos simples ou complexos;
visualizar objetos dentro de um conjunto maior;
conservar a quantidade e as relações de valor;
sequenciar números;
compreender sinais;
montar operações;
compreender medidas;
lembrar sequências para a realização de operações matemáticas;
contar sequencialmente.
A seguir, o professor poderá estabelecer atividades, observando os seguintes
critérios:
propor atividades baseadas no interesse do aluno;
usar linguagem objetiva;
utilizar o concreto e o lúdico, mesmo nos anos finais do ensino escolar;
utilizar abordagens sensoriais (estímulo visual, auditivo e cinestésico);
explorar o cotidiano;
utilizar jogos;
propor atividades que estimulem o pensamento lógico;
evitar atividades muito longas;
propor tarefas pequenas, mesmo que sejam diversas;
adaptar currículo, provas e avaliações;
incentivar sempre o aluno;
privilegiar os vínculos afetivos;
privilegiar as habilidades.
Desenvolvimento da leitura e da escrita: Quais são as características da
coordenação motora fina do estudante? Sua dificuldade na escrita provém de
aspectos motores ou cognitivos? Em que estágios encontram-se a sua leitura e
escrita?
Sugestões para o professor: os processos de aprendizagem da leitura e da
escrita de alunos com o espectro autista são semelhantes ao de qualquer aluno em
muitos aspectos, tais como: no letramento, na dimensão desejante, nas expectativas
do grupo social e familiar, no ensino e nas interações escolares.
A aprendizagem da leitura e da escrita como um conjunto de práticas sociais
em contextos simbólicos ligados ao sujeito é o que podemos chamar de letramento.
É a maneira como as pessoas utilizam a língua escrita e as práticas sociais de
leitura e de escrita nos diferentes ambientes de convivência. O letramento traduz
uma condição do sujeito: é o estado ou a condição que assume aquele que aprende
a ler e escrever. (BRASIL, 2007b)
Esse conceito traduz a ideia de que a leitura e a escrita resultam de experiência
social, cultural, cognitivas e linguísticas. A escola é, sem dúvida, um espaço
essencial para o letramento. Essa ideia ganha bastante relevância no ensino do
aprendente com autismo, independentemente do nível do comprometimento.
Porém, é preciso salientar que a ênfase dessa prática não pode estar centrada
somente no processo de aquisição de códigos alfabéticos e numéricos mas também,
acima de tudo, nas experiências e vivências socioculturais, familiar e escolar. Trata-
se da aprendizagem da leitura do mundo, como diz Freire.
O que o aluno deseja ler? O que deseja escrever? Quais são as suas
experiências pessoais que o impelem ao movimento da escrita e da leitura? O seu
processo de letramento desenvolver-se-á a partir do seu mundo afetivo. É preciso,
então, contextualizar o trabalho pedagógico com base nessa verificação.

No contexto específico acima, inicialmente o menino localiza a letra i na palavra que deseja ler.
Posteriormente, ele fará outras descobertas e relações que constituirão seu repertório verbal.

Evidentemente, haverá uma série de condições prévias, tanto cognitivas quanto


motoras, para o letramento. As condições cognitivas estão ligadas à atenção, à
memória e à linguagem, que falamos anteriormente. Quanto às condições motoras
necessárias para a escrita, devem ser observados possíveis comprometimentos ou
imaturidade na organização dos movimentos do estudante. A pega do lápis e
outros movimentos motores finos podem ser estimulados e refinados por meio de
exercícios específicos.
A maneira de segurar o lápis pode revelar dificuldades do aluno que vão desde a imaturidade motora aos
comprometimentos ligados a estereotipias, que poderão ser superados por meio de exercícios específicos.

Atividades que estimulem o movimento de pinça corroboram com o aperfeiçoamento motor na aquisição das
habilidades para a escrita.

Com base em “Atendimento educacional especializado” (BRASIL, 2007b),


podemos dizer que o desenvolvimento da escrita percorre as seguintes etapas:
Nível 1: o aluno busca reproduzir os traços típicos da escrita que vê. A sua
intenção subjetiva conta mais que as diferenças objetivas do resultado, isto é, o
professor precisa descobrir o que o aluno deseja escrever e não o que efetivamente
escreveu. Aparecem tentativas de correspondência entre a escrita e o objeto
referido; desenhar pode ser encarado como uma tentativa de escrever. As grafias
são variadas, e a quantidade de grafias é constante; a leitura do escrito é sempre
global.
Nível 2: o aluno entende que, para poder ler coisas diferentes, deverá haver
uma diferença objetiva nas escritas, como quantidade mínima e variação de
caracteres. Ele descobre que duas ordens diferentes dos mesmos elementos podem
dar lugar a duas totalidades diferentes, isto é, na tentativa de escrever uma palavra
composta, por exemplo, ele coloca no papel dois elementos gráficos diferentes. A
correspondência entre a escrita e o nome ainda é global, pois cada grafia vale
como uma parte e como um todo. No entanto, poderá haver um bloqueio (“não
posso, pois não sei o modelo”) e a utilização de modelos adquiridos para prever
outras escritas; adquirem-se certas formas fixas e estáveis.
Nível 3: o aluno procura dar um valor sonoro a cada uma das letras que
compõe. Já é superada a etapa de correspondência global; as exigências de
variedade e quantidade mínima de caracteres podem desaparecer
momentaneamente. A hipótese silábica se caracteriza pela noção de que cada
sílaba corresponde a uma letra. Essa noção pode acontecer com ou sem valor
sonoro. Na escrita de uma frase, ele utiliza uma letra para cada palavra.
Nível 4: passagem da hipótese silábica para a alfabética. Esse é um momento
de conflito, pois é preciso negar a lógica da hipótese silábica. Nesse momento, o
valor sonoro torna-se imperioso, o aprendente começa a acrescentar letras
especialmente na primeira sílaba da palavra. Para ajudá-lo na passagem para o
nível alfabético, é pertinente o professor organizar atividades que o auxiliem a
observar a escrita e a refletir sobre a lógica do sistema alfabético.
Nível 5: o estudante compreende a organização do sistema alfabético.
Demonstra conhecer o valor sonoro convencional das letras. Distingue letra,
sílaba, palavra e frase. Podem ocorrer problemas na segmentação entre as
unidades linguísticas que formam uma frase e erros naturais decorrentes do
processo de aprendizagem.
Para avaliar a evolução escrita do seu aluno, o professor pode utilizar diversas
proposições, tais como: escrita livre de palavras e frases, reescrita de atividades
vivenciais, reescrita de histórias lidas, produção com base em imagens. Os
registros dos aprendentes expressam o nível de evolução em que eles se encontram,
desde a escrita sem valor representativo até a escrita alfabética, com valor
representativo.
Avaliar o nível da escrita do aluno bem como compreender o seu esquema de
comunicação oral tornam-se indispensáveis para a proposição de atividades. A
linguagem é percepção, relação e classificação. Toda criança aprende a nomear,
categorizar e conceituar. Normalmente, a sua linguagem oral inicia-se com
predominância dos gestos. Posteriormente, ocorre um desenvolvimento contínuo
da oralização. O esquema abaixo procura ilustrar o que falamos:
1. linguagem gestual;
2. linguagem falada monossilábica: (comer = “mê”);
3. linguagem falada polissilábica com ênfase nas sílabas tônicas:
(cavalo = “valo”)
4. linguagem polissilábica com ênfase nas sílabas tônicas, mas com
reconhecimento das sílabas átonas e/ou subtônicas: (cavalo = cavalo).
Cada etapa conquistada deve representar um estímulo para a próxima. Todo
indivíduo elabora a sua fala mediante a sua subjetividade e interação com as
pessoas. É comum a criança nos primeiros contatos com a linguagem criar
nomeações próprias para pessoas ou objetos. São classificações que ela faz pela
mediação da sua subjetividade, com pouca inferência externa. Trata-se de uma
linguagem interior a partir do seu universo de significados. Nos esquemas
cognitivos e linguísticos do autismo, isso poderá ganhar grandes proporções. Por
isso, será essencial incentivar a interação com os demais alunos da escola, mais
contato social, maiores possibilidades de desenvolvimento verbal oral e escrito, que
incidirão na comunicação social.
Então, chegamos a este esquema:

Organização do material escolar: Como o aluno organiza seu material,


seu trabalho, seu dia? Seu comportamento se modifica? Há indícios de
hiperatividade ou deficit de atenção?
Sugestões para o professor: descobrir como o aprendente se organiza no
ambiente social pode dar algumas pistas preciosas quanto ao seu comportamento e
afetos. De certo modo, o ambiente externo pode ser desorganizador para quem
tem autismo. De sorte que, no contato com esse ambiente, a sua aparente
desorganização poderá ser uma tentativa de organizá-lo para que o espaço não seja
invasivo, ameaçador ou estranho. O professor poderá organizar o espaço para ele,
assim como poderá desorganizá-lo com o intuito de que o aprendente descubra
novas formas de organização. Poderá, ainda, explorar a própria predisposição
organizadora que muitas crianças e adolescentes com autismo têm para estimular
trabalhos pedagógicos, como na foto a seguir:
A criança organiza as peças, como é natural em muitas pessoas com autismo.

Habilidades para a vida diária: Qual é o nível de independência do aluno


no cotidiano familiar e social?
Sugestões para o professor: a educação no autismo requer um trabalho
multidisciplinar com especialistas de diversas áreas atuando junto com a escola. É
bom ressaltar que a aprendizagem transcende o campo escolar, porque os mesmos
mecanismos que estão presentes quando o sujeito aprende em sala de aula estão
presentes no cotidiano. Então, por que não recriar na escola situações que
representem o dia a dia?
É nosso papel educar para a vida e não somente para testes ou avaliações
pontuais. Isso se torna mais indelével quando educamos aprendentes com
necessidades especiais, uma vez que eles carecem de uma aprendizagem
integradora, relacionada à vida social.
O trabalho realizado no ambiente escolar ganha substancial qualidade quando
comporta objetivos diretos e indiretos, abrangendo a família. Com efeito, projeta
condições para a constituição e o desenvolvimento de distintas habilidades no que
concerne à autonomia e à vida cotidiana.
Um exemplo do que falamos encontra-se em algumas peças montessorianas
para o desenvolvimento da linguagem e vida prática, que são jarros e copos de
vidro contendo líquido colorido para serem manuseados como recursos
pedagógicos para diversas áreas do desenvolvimento motor e cognitivo. Elas visam
trabalhar a percepção da leitura, da escrita, o esquema corporal, o treinamento da
lateralidade, da direção e da noção espacial e temporal. Essas peças são
intencionalmente de vidro e não de plástico para desenvolver no estudante o
cuidado, a responsabilidade e o servir, não somente na escola mas também na vida
familiar e social.

Objetivos ligados à aquisição de habilidades para a vida cotidiana e ao desenvolvimento escolar.

O esquema motor, a direção, a noção espacial e temporal constituem um grupo de habilidades indispensáveis
não somente para vida diária mas também para a formação pedagógica do educando.
Atividades como esta contribuem para a melhoria da concentração e da motricidade fina, necessárias para o
trabalho escolar.

Para escrever ou fazer contas de matemática, o estudante precisa utilizar distintas áreas do cérebro, que
poderão ser estimuladas mediante diferentes atividades lúdicas, cotidianas e sensoriais.

Além do que já foi exposto, o professor poderá estimular a independência e


autonomia diária do aluno, por meio de atividades, jogos ou brinquedos que
representem e exercitem os seguintes aspectos da vida cotidiana:
• arrumação e manutenção na vida familiar;
• atitudes e responsabilidades;
• cuidados pessoais, autonomia e segurança;
• cuidados com objetos, animais, plantas;
• atividades típicas do lar;
• independência e autonomia nas refeições;
• autonomia na resolução dos deveres de casa oriundos da escola;
• interação social e participação na comunidade onde o aluno reside.
Além disso, as práticas de ensino poderão:
• relacionar-se com artes, esportes, jogos coletivos e individuais;
• estimular a coordenação ampla e fina, a lateralidade, o esquema corporal, o
espaço e tempo, os canais sensoriais, a comunicação oral e escrita, o
vocabulário, as formas gramaticais e a linguagem gestual;
• trabalhar a compreensão matemática, a contagem, os sequenciamentos, a
medição, as comparações, os pareamentos e promover o contato sensorial com
distintos materiais e formas.
Com base nessas sugestões, o professor poderá planejar ações que promovam
habilidades ou áreas da aprendizagem. Poderá fazer um plano de ensino,
coletando informações e avaliando seu aluno.
Sintetizando, temos as seguintes orientações para o exercício docente em cada
atividade proposta:
• penetrar nos afetos do aprendente;
• concentrar-se no contato visual;
• trazer sempre o olhar do aluno para as atividades que ele está fazendo;
• entreter-se com as suas brincadeiras;
• procurar sempre enriquecer a comunicação;
• mostrar a cada palavra uma ação e a cada ação uma palavra;
• tornar hábitos cotidianos agradáveis;
• fazer tudo com serenidade, mas com voz clara e firme;
• executar uma atividade de cada vez;
• trabalhar a função simbólica por meio de livros, contação de histórias,
música, artes e outros canais sensoriais;
• privilegiar os vínculos afetivos.
• corrigir ensinando e não reprimindo;
• disciplinar a atividade e não imobilizar o estudante;
• estimular uma boa alimentação.
• não se alterar diante de comportamentos disruptivos, mas redirecionar a
atenção e a ação do aluno; falar baixo, manter o mesmo tom de voz e o contato
visual.
É bom ressalvar que tão importante quanto propiciar as atividades é observar
como o aluno se comporta diante delas. Ademais, as tarefas em sala poderão
trazer conceitos subjetivos e objetivos para que o aluno aprenda de forma direta e
indireta, desenvolvendo distintas áreas da sua aprendizagem escolar, tais como:
• memória, concentração e equilíbrio: em atividades que estimulem a
organização do material de trabalho;
• socialização, direitos e deveres: em exercícios que trabalhem limites e
vida prática;
• organização do pensamento e da linguagem: na ordem de execução
das atividades;
• aprendizagem global: em atividades que tragam objetivos pedagógicos
diretos e indiretos;
• a internalização do papel de aprendente no aluno: em atividades
que valorizem a escola e os seus atores;
• socialização, alteridade, afetividade e inclusão: em atividades com a
participação do grupo discente, em atividades de vida prática e durante as
refeições com demais alunos.

Aprendizagem global: enquanto o educando sequência e faz o pareamento numérico, descobre os números
pares e ímpares.

Aprendizagem global: enquanto o aluno aprende a montar palavras no alfabeto móvel, descobre diferenças
entre vogais e consoantes pelas cores das letras.
Como exemplo do que falamos e com base no que vimos até aqui,
resumidamente, podemos planejar nosso trabalho, conforme a seguir:
• atividades para comunicação, cognição e linguagem: livros, jogos
coletivos, pareamento do concreto com o simbólico, música, desenho, pintura,
jogos e atividades que utilizem novas tecnologias digitais e estimulem o
raciocino lógico;
• atividades para desenvolvimento matemático: blocos lógicos,
pareamento do concreto com o simbólico, encaixes geométricos, jogos e
atividades que utilizem novas tecnologias digitais, atividades com temas do
cotidiano e que estimulem o raciocínio lógico-matemátco;
• atividades para desenvolvimento motor: exercícios que trabalhem as
funções motoras e sensoriais, encaixes diversos, colagem, recorte, atividades
físicas, atividades com música e de vida prática.
• atividades para socialização: atividades esportivas individuais e
coletivas; atividades pedagógicas em que o aluno possa compartilhar com a
turma o seu saber; atividades que possam ser realizadas por todos os alunos;
• atividades para desenvolvimento do foco de atenção: atividades e
pesquisas em distintas áreas do conhecimento sobre temas que o educando tem
interesse; atividades com novas tecnologias digitais, recortes diversos com
tesoura, música, artes, desenho, pintura e vida prática.
Encaixes com peças geométricas: elaborações cognitivas, coordenação motora e pensamento matemático.

O recorte ajuda a desenvolver a concentração, a coordenação visório-motora e a coordenação motora fina,


habilidades que serão necessárias na aprendizagem da Matemática e da Linguagem.
Fazer pareamentos ou sequenciamentos em materiais sensoriais contribui para o desenvolvimento do
pensamento lógico, atributo da Matemática e da Linguagem.
6 – Afetividade em sala de aula

Faz tempo que educadores valorizam as distintas habilidades de seus alunos


como forma de abrir caminhos para a aprendizagem. Tais habilidades são
grandemente influenciadas pelas cargas afetivas e são inerentes ao ser humano,
indissociáveis do seu caráter. Normalmente, gostamos de fazer o que fazemos bem.
Todos nascem com alguma aptidão e com a condição de desenvolver novas
habilidades e de melhorar as já existentes. Em muitos casos, na educação do aluno
com autismo, é mais premente desenvolver determinadas habilidades para lidar
com diferentes situações na vida.

As pesquisas no campo da Neurociência trouxeram maior clareza a respeito das


múltiplas habilidades ou múltiplas inteligências. Foram contribuições inegáveis
para os educadores. Confirmam o que durante anos foi objeto de estudo de
Piaget, Montessori, Vygotsky e outros. Howard Gardner disse que seus alvos
eram as influentes teorias de Jean Piaget, que via todo pensamento humano
lutando pelo ideal do pensamento científico. Certamente, todos reconhecem que a
inteligência humana é produto de uma carga genética, com influência também de
estímulos recebidos durante o desenvolvimento do ser. De fato, essa inteligência
nos leva a aprender e, inegavelmente, ela é grandemente estimulada por cargas
afetivas.
Quando amamos o que fazemos, nosso cérebro libera impulsos eletroquímicos
que produzem a sensação de prazer. Em momentos assim, ficamos naturalmente
mais aptos, para o bem-estar de nossas vidas. Biologicamente, esses impulsos
eletroquímicos resultam em funções mentais, pensamentos, sentimentos, alegria e
movimentos. O nosso interior liga-se à vida cotidiana transmitindo informações
que, posteriormente, transmutam-se em conhecimentos. Este mecanismo natural
da nossa inteligência possui um instrumento fundamental para o seu sucesso: o
afeto.
O afeto é científico: ao consumar o afeto, o cérebro recompensa o corpo por
meio da sensação de prazer e de alegria. Ser afetivo não é ser adocicado. Ser
afetivo é trabalhar com as qualidades, as emoções, os interesses e os sonhos que
possuímos.
Utilizar-se dos afetos naturais do aluno com autismo para educá-lo é canalizar
suas emoções para o processo pedagógico. É trazer para o campo da educação o
seu interesse e amor. As emoções deflagram mecanismos na memória que ajudam
a conservação do aprendizado escolar. Um aluno que ama aprender aprende
melhor; um professor que ama ensinar ensina melhor.
A inteligência é uma constante adaptação. As modificações anatômicas do
cérebro acontecem ao longo da vida. Ainda que exista severidade no quadro do
transtorno, é possível aprender e desenvolver habilidades. Isto se torna mais
notório mediante estímulos emocionais. As faculdades emocionais são
propriedades de todo aprendente e poderão ser desenvolvidas para auxílio do
trabalho escolar.
Pesquisas no campo científico romperam com a ideia tradicional de uma
inteligência única, possível de ser aferida apenas em testes de QI e nas avaliações
tradicionais aplicadas na escola, em uma noção limitada de inteligência, uma
noção sem ligação com a verdadeira gama de talentos e aptidões pertencentes à
vida.
Não por coincidência, o teste do QI surgiu na escola que objetivava saber
prematuramente quais os alunos que iriam ter sucesso e os que iriam fracassar nas
séries primárias. Isso ocorreu nos anos de 1900, em Paris. Todavia, quem atua na
educação de alunos com autismo, com deficiência, transtornos comportamentais ou
dificuldades de aprendizagem descobre que mesmo uma pessoa com limitações
(Quem não as tem? Todos têm!) não é desprovida de talento natural. E estimular
esse talento, desenvolvê-lo, fazer relações educacionais entre áreas carentes do
indivíduo e habilidades é papel da escola. Este é um ponto em que o trabalho
pedagógico se revela afetivo, pois naturalmente esses alunos são prodigiosos nas
habilidades que mais amam.
Entretanto, de quando em vez, a escola procura estipular por meio do currículo
as áreas a serem desenvolvidas, em razão do recorte que faz do que se deve
aprender. Lembrando os estudos de Maria Montessori, indagamos: Como pode a
mente de uma pessoa em crescimento continuar motivada se todo o processo de
ensino estiver focado em assunto particular e de escopo restrito e estiver limitado à
transmissão de detalhes tão insignificantes e desconexos para ela?
Não é de bom tom que a prática escolar seja orientada pelo conhecimento
medido em testes, em uma sistematização do passado com pouca inclinação à vida.
Uma pedagogia assim faz com que o prazer e a peculiaridade de cada um fiquem
em segundo plano, quando deveriam ter melhor destaque, porque são motores da
aprendizagem.
No entanto, há uma busca, ainda que de forma fragmentada, para se alcançar
uma educação que contemple mais as necessidades de quem aprende e menos os
conhecimentos de quem ensina. Na verdade, busca-se uma educação onde todos
ensinam e todos aprendem. Uma educação compartilhada, onde ninguém detém o
saber, mas todos dividem as experiências. Uma educação baseada no afeto, na
esperança e no trabalho de educador e educando.
Não é apenas utilizando computadores em sala de aula que garantiremos uma
educação conectada ao mundo contemporâneo. A educação permanecerá
tradicional, mesmo no universo da web. Devemos começar a mudança de dentro
para fora, isto é, começando por nós, educadores. Na educação especial ou
regular, o melhor modelo de ensino é o que parte do aluno. Parece algo paradoxal,
mas, se estivermos no lugar do discente, estaremos, a partir dele, começando a
mudança em nós. Considerando os afetos de cada um, o saber natural ou
adquirido e somando ao que aprendemos como professores, ao saber formador da
escola, construiremos um saber comum, um saber social.
Como exemplo, lembramos um fato ocorrido em uma escola do ensino
fundamental: uma aluna não queria participar das aulas de Educação Física.
Sentia-se desconfortável porque não conseguia acompanhar os outros alunos nos
exercícios. Não se sentia capaz. Sabemos que a inteligência cinestésico-corporal
denota a capacidade de usar o corpo ou parte dele em atividades motoras amplas
ou finas e, também, o manuseio criativo de objetos. Possuímos qualidades que nos
tornam mais capazes em determinadas matérias e em outras nem tanto. As
qualidades que caracterizam esta inteligência, como força, flexibilidade, equilíbrio,
controle, são diferentes em cada indivíduo.
A criança ou o adolescente, normalmente, gosta de praticar esporte,
principalmente quando pode executar movimentos nos quais demonstra ter
habilidade. Isso lhe traz prazer. Então, o professor perguntou a menina o que ela
gostaria de fazer: “Dar cambalhotas”, respondeu. Imediatamente, ele preparou
uma série de exercícios explorando essa particularidade, proporcionando o prazer,
em vez da frustração e exclusão. Foi simples, mas despertou o interesse,
principalmente porque esse fato nos foi contado com apreço pelo pai da menina.
Às vezes, o aluno não gosta da escola porque não sabe que irá amá-la. Não
sabe, pois ainda não descobriu que poderá explorar seus afetos no trabalho escolar.
Alunos com autismo, de quando em vez, desenvolvem resistência ao espaço
escolar, pois não se atraem por ele. A aluna em questão poderia ter uma relação
com as aulas de Educação Física de rejeição e não de amor. Acabaria se sentindo
excluída do grupo em razão da sua dificuldade. Devemos lembrar que a inclusão
não se refere apenas a pessoas com necessidades educacionais especiais. Refere-se
a todos nós, a toda educação. Os verbos educar e incluir são conjugados juntos.
Quando incluímos, não incluímos apenas aspectos pedagógicos do sujeito, mas
todo o ser humano. Quando incluímos, educamos e, quando educamos, incluímos.
O fato de a menina ter desenvolvido habilidades naquele tipo de exercício não
significa, necessariamente, que ela tinha aptidão para tal, mas sim que surgiu nela
um saber procedente dos seus afetos, para se correlacionar com outros saberes,
desenvolvendo atributos que ficariam esquecidos caso o professor não adaptasse
seu currículo. Independentemente do nível de comprometimento do nosso
educando, aprender e desenvolver habilidades são condições humanas,
pertencentes à natureza de aprendente. Para concluir a história, posteriormente, já
com confiança e elevada autoestima, a menina passou a realizar todas as atividades
propostas pelo professor, inclusive aquelas que não gostava de fazer.
Então, como funcionam os mecanismos afetivos em nossa inteligência?
Primeiramente, é preciso considerar que o aluno com o transtorno do espectro
autista precisa ser amado, aceito, acolhido. Isso já é uma ação pedagógica
inclusiva. Em segundo lugar, ele precisa ainda ser ouvido, compreendido em seus
desejos e curiosidades epistemológicas, que precisam ser estimulados.
Um terceiro aspecto é a percepção objetiva do estágio de desenvolvimento do
aluno; seu andamento específico, seu ritmo e nível de aprendizagem: sensório-
motor, pré-operatório, operatório concreto ou operatório formal. Um quarto fator é
o tempo de trabalho nas atividades pedagógicas que poderá ser mediado pelo
afeto. Quanto maior for o interesse do aluno, maior será o tempo dedicado.
Trazendo essa conversa para as práticas de ensino, podemos ter na Matemática
um rico campo de experiências afetivas. É evidente que todo conhecimento
científico é pertinente, a princípio, à vida cotidiana, mas, de quando em vez,
conflitamo-nos com a incongruência de, na tentativa de ensinarmos a prática,
teorizarmos somente. Com efeito, o aprendizado das operações matemáticas pode
ser municiado pelos canais afetivos, que se assentam no cotidiano. Dessa forma, o
aluno descobre a função da atividade, pois ela passa a ter sentido para ele. Assim,
como a Matemática, a linguagem pode ser um ponto de encontro com os afetos.
Como exemplo, lembramo-nos de um dos nossos alunos que tinha muita
dificuldade para dar sentido à linguagem escrita. Por conta disso, a partir do seu
mundo afetivo, elaboramos um conjunto de expressões, frases e palavras. De sorte
que foi possível o surgimento de mecanismos para estimular o uso mais sofisticado
da língua, propiciando condições para a construção de novas expressões. Aos
poucos, ele foi articulando palavras fora de seu círculo de significados, que
ganharam sentido, elaborando cognitivamente possíveis respostas ao que lhe era
perguntado.
Evidentemente, que este é um trabalho que requer sempre uma continuidade
sistemática, em virtude das limitações da memória de curto prazo, do deficit
cognitivo, do deficit de atenção, que podem interferir na aprendizagem dos
aprendentes com autismo.
Para ajudar a conservação das informações, o pareamento com materiais
concretos será sempre bem-vindo. Ademais, a vida cotidiana afetiva somada a
imagens concretas desse cotidiano permitem ao cérebro funcionar com sistemas
cooperativos para apreensão e conservação das informações. Na foto a seguir,
todas as palavras pertencem ao mundo afetivo da criança e são percebidas por
diversos canais sensoriais.

O aluno procura formar palavras a partir da sua vida cotidiana e afetiva.

Em qual estágio do desenvolvimento o aluno se encontra? Sensório-motor, pré-


operatório, operações concretas ou operações formais? Todo material concreto,
independentemente do estágio de desenvolvimento, é sempre de grande valor. Por
meio do material dourado, por exemplo, o aluno percebe com diferentes canais
sensoriais que, juntando dez unidades, obtém-se uma barrinha de uma dezena;
juntando-se dez barrinhas, obtém-se um quadrado com uma centena; e juntando-
se dez quadrados, chega-se a um cubo com mil unidades. Essa sequência lógica,
dentre outras coisas, possibilita operações cognitivas mais complexas.
No universo afetivo do educando, a sequência lógica proposta pelo material permite operações cognitivas cada
vez mais sofisticadas.

Torna-se evidente, na mediação afetiva, que o brinquedo pedagógico pode


representar exercícios graduados que vão dos mais rudimentares aos mais
refinados, incidindo na memória, na coordenação motora fina, na escrita, no
cálculo e na leitura. Pode-se, também, aprender Matemática e Geometria em
conexão com a Linguagem, a História e a Geografia. Isto porque a Linguagem é
sensorial.
O mundo sensorial é um mundo afetivo. É o mundo da Linguagem. A
educação sensorial visa refinar os sentidos, preparando o aprendiz para o
desenvolvimento pessoal e social, em articulação com diversos saberes. Por
exemplo, ele começa a perceber e a distinguir, pelo toque manual ou pelo contato
visual, diversos conceitos linguísticos mesmo em situações mais abstratas: liso e
áspero, alto e baixo. Poderá ainda fazer gradações: liso e menos liso; mais alto e
menos alto. Toda essa dinâmica enriquece o seu repertório de palavras e favorece
articulações cognitivas sempre mais apuradas.

Educação sensorial: olfato, enriquecimento da linguagem e novas elaborações cognitivas. O aluno generaliza e
classifica as informações para criar conceitos e articular uma frase: “O cheiro do café é mais agradável do que
o cheiro do cravo”.
À medida que o educando progride, gradualmente vai prescindindo do auxílio do concreto utilizando-se mais
da memória e da escrita.

No ensino de Geografia e História, o estudante aprende o tempo e o espaço.


Na complexidade do conhecimento, o saber é construído juntamente com o estudo
da natureza, dos cuidados com o ambiente, partindo do concreto para o abstrato.
Sendo assim, no ambiente da sala de aula, os materiais de desenvolvimento e os
mobiliários coadunam fisicamente com o educando, com a sua estatura, idade e
dinâmica. Vão da prática para a teoria, percorrendo o caminho inverso da
abstração de origem puramente teórica. Adiciona-se a esses elementos a postura
do professor. Haverá momentos em que a atenção do aluno com o espectro autista
será vivificada por um instigante tema ou por um espaço acolhedor. Trata-se da
afetividade em sala de aula.
O professor precisa sempre usar palavras de incentivo para os estudantes.
Também crer e fazê-los crer que são importantes. Ainda que seja imprescindível
em alguns momentos redirecioná-los, as palavras ganham cunho pedagógico
quando transmitem ânimo e confiança e não punição ao erro e às imperfeições. O
que é honesto, verdadeiro, puro e com virtudes transitam muito bem na fala do
professor.
Aprendizes de comportamentos disruptivos precisam ser depositários de
confiança. Geralmente se sentem ociosos, desmotivados. Nada melhor para
superar isso que comissioná-los, dar-lhes responsabilidades e incumbências. Ao
contrário do que eles poderiam esperar, a confiança poderá ser um estímulo para a
sua autonomia comportamental.
Um fato ocorrido em uma escola do ensino regular poderá ilustrar o que
falamos: um estudante, que realizava as atividades em sala de aula com
desenvoltura, tinha grande prazer em divertir os colegas com brincadeiras,
chamando a atenção de todos, menos por suas qualidades e mais pelas
brincadeiras que aprontava na hora da aula.
Dessa forma, além de se tornar o foco das atenções por causa do que fazia de
mais pitoresco, também interrompia as aulas, quebrando a concentração da classe.
Algumas crianças e adolescentes fazem isso porque, de algum modo, suas
qualidades não são suficientes para elas. Precisam de mais atenção. São carentes
e, de uma forma quase compulsiva, fazem de tudo para suprir suas necessidades.
Esse menino, em uma brincadeira usual, amarrava os cadarços dos tênis um ao
outro e assim, quando a professora ou o professor o chamava, tropeçava
propositalmente e caía no meio da sala para delírio da turma. Era inútil dizer-lhe
que não repetisse a brincadeira ou inibi-lo de alguma forma.
De quando em vez, o garoto ia para casa descalço, pois não conseguia mais
desamarrar os cadarços. Sabendo disso, o professor, em um certo dia, ajoelhou-se
aos pés do menino, para espanto, e começou a desatar-lhe os nós:

- Você acha que eu precisava estar fazendo isto?


- Não... Claro que não – disse o menino, um tanto que surpreso.

- Então, por que faço?

- Acho que é porque você gosta de mim...

Foi a última vez que o garoto agiu daquela maneira. Mas, não foi a última em
que ele e o professor se juntaram para desamarrar outros “nós” que se interpõem
na vida e que são desatados pelo respeito mútuo e pelo afeto.
A questão do afeto percorre todo o histórico da educação, sendo que não
podemos menosprezá-lo se realmente queremos educar. Ele pode estar no tema a
ser estudado ou no educador que irá transmiti-lo. Há momentos em que ouvimos
um aluno dizer: “Não gosto da matéria, mas gosto do professor”. Ou o inverso:
“Não gosto do professor, mas amo a matéria”. Em qualquer um dos casos, há
grande chance de o estudante prosseguir adiante nos estudos com sucesso, por
causa da relação afetiva existente. Mas, melhor será se houver amor e prazer pela
prática pedagógica, pelo conteúdo ensinado e pelo espaço de ensino. Isto nos leva
mais longe.
Todavia, queremos sempre lembrar que ser afetivo não é ser adocicado, mas dar
lugar ao interesse, ao amor, aos atributos da nossa humanidade que estabelecem e
solidificam as relações na escola. A grandeza humana do ofício docente leva o
professor a ser também um melhor profissional, pois o faz estudar e capacitar-se.
A grandeza humana do seu ofício também leva o aluno a estudar e a capacitar-se.
A grandeza humana do seu ofício não somente educa mas também inspira.
Lembrando as palavras de Freire: “A minha abertura ao querer bem significa a
minha disposição à alegria de viver. Justa alegria de viver, que, assumida
plenamente, não permite que me transforme em um ser ‘adocicado’ nem tampouco
em um ser arestoso e amargo”. (FREIRE, 2004, p.141)
Lembramo-nos de Freire e lembramo-nos de Orígenes Lessa, um grande nome
da literatura nacional. Foi membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu
para crianças, jovens e adultos. Um de seus livros mais lidos, “O feijão e o
Sonho”, foi adaptado para a televisão e virou novela. Em certa ocasião, estava ele
em um evento literário em uma cidade do Rio de Janeiro rodeado por uma
pequena multidão, quando um adolescente se aproximou com um exemplar de um
livro seu: “Memórias de um cabo de vassoura”. Disse o garoto que havia lido
aquele livro na escola quando ainda era criança e ficara fascinado com a história, o
que o levou a ler outros livros e não parar mais. Pensou, então, em agradecer ao
autor por ter plantado aquela paixão pela leitura.
O septuagenário escritor conteve a emoção naquele momento. Olhou para o
jovem e perguntou: “Qual a carreira que deseja seguir?”. “Não sei ainda” – disse
o rapaz –. “Bem, qualquer coisa que faça você escrever”, ponderou Lessa.
O adolescente se tornou adulto e jornalista. Manteve, a partir daquele dia, um
afetuoso relacionamento de leitor e amigo com o autor até a morte deste. “Por
muitas vezes, eu não pude responder se me tornara jornalista por amor à profissão
ou ao meu amigo escritor” – disse ele – “mas com certeza aquele livro que eu li na
infância foi de inequívoca importância e inspiração”.
O afeto é motor da amizade, que leva à cooperação e à interação social.
Quando existe a cooperação, existe a inclusão. A classe deixa de ser apenas uma
soma de indivíduos e passa ser uma sociedade. Consequentemente, a
autodisciplina, o controle pessoal e a alteridade são qualidades que surgirão a
seguir, fomentadas pelo envolvimento do estudante nas atividades pedagógicas.
Como mediador na aprendizagem do aluno com autismo, o professor pode
dispor efetivamente das atividades e dos materiais de desenvolvimento pedagógico
para estabelecer o que Freire chama de “relação dialógica”. O interesse e o afeto
suscitarão a atividade com a qual devemos trabalhar. Feito isso, todo processo de
correção dos exercícios poderá ser feito pelo próprio discente, caso este tenha
condições para tal. Isto ajuda a romper com a histórica separação entre “aquele
que ensina” e “aquele que aprende”. Democratiza a educação. É o primeiro passo
para a autoavaliação; traz segurança ao educando.
Quanto ao coletivo de alunos, é fundamental que todos aprendam a trabalhar
em grupo. A convivência desenvolve a sociedade. Vivemos em um mundo
tendente ao individualismo, que, muitas vezes, constitui as coletividades e as
formas de relacionamento. A coletividade da sala de aula é uma ferramenta de
ensino para o professor. É bom salientar que o educando com o espectro autista
precisa acreditar que o conhecimento que se busca será conquistado. Tal sensação
traz confiança.
Dentro do que falamos, o momento das refeições também pode se tornar uma
profícua oportunidade para a socialização de todo o grupo de alunos, além de
representar uma experiência de vida prática. Algumas escolas já constituíram esse
espaço na própria sala de aula. Nesse espaço, é indicativo uma alimentação mais
saudável. O lugar reservado para a convivência despe-se da sua formalidade
secular e ganha uma estimulante e colorida roupagem nova, capaz de intensificar
laços e estabelecer a cordialidade. Os alunos podem interagir durante as refeições,
normalmente como fazem em família, trocar experiências, desfrutar da convivência
pedagogicamente. O momento das refeições ter caráter educativo, pois faz parte
da dinâmica do dia a dia; não é estabelecido pela “hora do recreio”, mas pela
socialização espontânea dos educandos.
Outra dinâmica de ensino que poderá ser suscitada em sala de aula é a
pesquisa sobre temas diversos. A aprendizagem pressupõe a pesquisa. Todo
aquele que aprende poderá se tornar um pesquisador. A pesquisa nasce da
curiosidade científica, que efetivamente todos têm, inclusive pessoas com
deficiência ou transtorno comportamental. Os trabalhos de pesquisa desenvolvem
o gérmen do prazer, além de municiarem o desenvolvimento dos processos afetivos
que revelarão a generalização da aprendizagem.
Para alguns alunos com autismo, em uma pesquisa na área de Geografia, por
exemplo, a Linguagem poderá ser exercitada por meio de textos explicativos,
desenvolvendo a capacidade de leitura e da fluência verbal. Aprende-se o método
científico de pesquisa. Para outros alunos com maiores comprometimentos,
materiais mais simples, como o quebra-cabeça ou encaixes com diferentes temas,
poderão desenvolver concentração, sequência lógica, organização do pensamento,
controle motor e visório-motor, dentre outras habilidades.

Quebra-cabeças ou encaixes com temas diversos: desenvolvimento da curiosidade epistemológica, coordenação


motora, concentração, dentre outras habilidades.

Porém, é preciso perguntar o que o aprendente deseja pesquisar e aprender com


a pesquisa? O que desperta o seu interesse? O que ele deseja conhecer? Quais os
detalhes que lhe trazem estímulo e motivação para encontrar respostas? Os seus
desejos, os seus prazeres: sobre estes temas, principalmente, ele deve realizar a
pesquisa.
Os resultados das pesquisas poderão ser utilizados como material de sala;
depois de algum tempo, tornar-se-ão livros que servirão de base para outras
atividades e novas pesquisas. Por fim, teremos uma biblioteca com temas distintos
e importantes para trabalhos futuros. Além disso, outro enfoque é a visão da
perenidade que se adquire por meio do saber, com a permanência em sala de aula
dos trabalhos discentes. Ao contrário de muitas novidades na sociedade
contemporânea, efêmeras e fadadas ao esquecimento, a continuada exposição dos
trabalhos em sala de aula representaria o aprendizado na escola como algo
perdurável. Essas propostas, evidentemente, serão mais bem desenvolvidas por
educandos mais habilidosos, mas também podem ser experienciadas por aqueles
com maiores dificuldades, pois, afinal, são todos aprendentes.
É bom ressaltar, como diz Edgar Morin (2003), que é na infância e na
adolescência que a faculdade da curiosidade está mais expandida e viva, e a
inteligência geral pede o seu livre acesso. A educação certamente irá favorecer a
aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e estimular o
uso total da inteligência geral. Como mencionamos, os livros, porque possuem
temas tão diversos, são excelentes ferramentas para a aquisição da inteligência
geral.
Para alunos mais hábeis, o resumo da leitura pode ser exposto na biblioteca
para consulta. Seria literatura em forma de resenha, com linguagem peculiar de
um resumo, mas com a marca pessoal de cada autor. Perceberemos, então, que o
estudante participará também do processo de construção do saber: serão dele
muitos materiais de desenvolvimento. Todo o processo ganhará cores, pois todos
aprenderão e todos ensinarão.
A turma de alunos necessita compreender o ambiente de ensino em uma
perspectiva inclusiva, em que todos são participantes do grupo. O aluno que tem
autismo faz parte de grupo, pertence ao ambiente escolar. Todos os que estão ali
têm coisas parecidas e diferentes; todos são importantes; ninguém é insubstituível,
mas todos fazem falta. O professor pode propor atividades e formas de
comunicação que todos compartilhem. Adaptar currículo, práticas pedagógicas e
materiais de desenvolvimento poderá ser um bom caminho para tal fim.
7 – Autismo e processos de aprendizagem

Como docentes, necessitamos pesquisar e entender os mecanismos que estão


presentes quando nosso aluno com espectro autista adquire conhecimento. Como
ele aprende?

Após observá-lo para conhecê-lo melhor, podemos elaborar um conjunto de


atividades pedagógicas que lhe sejam funcionais, isto é, nas quais ele encontre
sentido para aprender.
Na vida cotidiana, podemos propor tarefas para serem executadas em perfeita
sintonia com a família, alcançando etapas previamente estabelecidas. Cada etapa
superada demanda uma nova. Poderemos começar pelos afazeres diários que
precisam ser realizados cotidianamente. Inicialmente, o que é mais importante
aprender para outorgar autonomia deverá ser privilegiado. Ainda que o aluno não
aprenda perfeitamente o que se busca ensinar, ele estará trabalhando sempre a
interação, a comunicação, a cognição, os movimentos e outras habilidades.

Como o professor poderá conduzir o processo de aprendizagem?

A sua fala precisa ser serena, explicita e sem pressa. A voz é o convite do
professor, é a identificação do objeto, é o exercício de comunicação oral. Ele está
propondo, nomeando e dando sentido ao trabalho em sala. Por isso, deve ser
objetiva e funcional. Nem sempre o aluno saberá o que fazer se o professor usar a
palavra “não”. O melhor será dar-lhe um objetivo, dizer-lhe o que poderá fazer;
dar-lhe alternativas de escolha.
A pessoa com autismo nem sempre aceita com naturalidade as mudanças. Nem
sempre sabe lidar com a contrariedade. Trabalhamos com um aluno que tal
característica era bem frequente. Aconteceu em uma escola do ensino
fundamental. O menino não podia ser contrariado. Além disso, não recebia bem
um “não”. Comumente interrompia o trabalho dos outros colegas, o que causava
sempre atritos.
Dizer que não deveria fazer aquilo, pois o trabalho era de outro aluno, gerava
reações intempestivas. Foi quando resolvemos lidar com a situação de outra forma.
Em vez de dizer-lhe “não”, resolvemos mostrar o que ele poderia fazer. Tal
estratégia pedagógica funcionou. A partir daí, aos poucos, o garoto foi dando
funcionalidade ao “não”: seria o sinal de que ele poderia escolher outras coisas
para fazer. Assim como fazemos na escola, no ambiente familiar, também
poderemos fazer. A melhor maneira de dizer não é mostrando um caminho
melhor.
Gostaríamos de lembrar que não há dois alunos iguais; não há dois aprendentes
com autismo iguais: o que funciona para um poderá não funcionar para outro. Os
exemplos suscitados pela nossa prática em sala de aula, que descrevemos aqui,
devem ser vistos acima de tudo como incentivo ao quefazer pedagógico. O
professor necessita aliar o seu conhecimento à sua sensibilidade humana. “Haverá
conquistas e erros, muitas vezes mais erros do que conquistas, mas o trabalho
jamais será em vão.” (CUNHA, 2012, p. 30)
É normal a pessoa com autismo tentar esquivar-se para fugir ou até irritar-se
para não fazer o que é pedido. É importante que a atitude do educador não
valorize essas reações, mas redirecione de forma lúdica e pacífica a situação. Toda
atitude que seja prejudicial deve merecer uma investigação para a descoberta dos
motivos que a desencadearam.
No caso de crianças, lidar com birras não é fácil, mas quanto mais tempo as
atitudes disruptivas durarem, mais difícil será contê-las. Muitos são os fatores que
as motivam, dentre os quais, o barulho, a mudança de rotina, o excesso de
estímulos, as incertezas, as ansiedades, os conflitos e as frustrações. Qualquer
criança quando descobre que determinada atitude funciona a seu favor, poderá
utilizar esse artifício para conseguir o que deseja. Com uma criança típica, uma
boa conversa poderá reverter essa tendência. Todavia, em um quadro de autismo,
as coisas não são tão simples. É preciso incansável perseverança para redirecionar
as atitudes e ensinar a forma adequada para a expressão de sentimentos e desejos.
No trabalho docente, a proposição curricular poderá abarcar de maneira
subjetiva alguns preceitos da aprendizagem, que poderão ser ensinados ao aluno
com autismo e também aos demais alunos:
a descoberta de que as pessoas ao redor são importantes;
a valorização da amizade;
afetividade e amor;
que o convívio com todos da escola ajuda-os na construção do
conhecimento;
que aprender as rotinas diárias poderá contribuir para a independência e a
autonomia;
que compartilhar sentimentos e interesses é uma forma de comunicação e
que faz parte dos processos inclusivos;

Ademais, o professor deve estimular a capacidade de concentração durante as


tarefas, pois, como já falamos, por causa das suas dificuldades comunicativas, o
que mais impede o aprendizado da pessoa com autismo na vida cotidiana é o
deficit de atenção à fala de alguém ou aos processos de aprendizagem.
Inicialmente, o aluno poderá atender aos seus próprios esquemas mentais ao
realizar as tarefas em sala. Porém, devido à convivência que estimula também a
função cognitiva, aos poucos, ele aprenderá a executá-las estimulado por outros
atributos da aprendizagem social. Assim, por exemplo, no contato com peças
sensoriais, ele passa a generalizar o conhecimento, mediante a classificação, a
nomeação e percepção das semelhanças e diferenças, visual e tátil. São aquisições
para construções cognitivas e motoras mais apuradas. O bom material leva o
aprendiz a exibir comportamentos e habilidades que vão variando até atingir
desempenhos mais refinados.
Ao montar o material montessoriano conhecido como “torre rosa”, por
exemplo, composto de cubos geométricos de distintos tamanhos, montados com
diferentes configurações geométricas, o aprendente, ainda que não perceba as
concepções científicas das peças, contudo, desenvolve a concentração, a
coordenação motora e o equilíbrio, aprendendo conceitos de perto, longe, atrás,
frente, alto, baixo, direita, esquerda, pequeno, grande, além de ter seus primeiros
contatos com os saberes que mais tarde ele conhecerá de forma mais aprofundada.
O bom material leva o aprendiz a exibir comportamentos e habilidades que vão variando até atingir
desempenhos mais refinados. Independentemente de sua simplicidade, o material poderá conter inúmeros
conceitos pedagógicos que serão empregados pelo professor nas atividades em sala.

A boa atividade pedagógica outorga a possibilidade de se descobrirem,


gradualmente, conceitos científicos de diversas áreas do conhecimento, além de
trazer para a escola o cotidiano da vida social. Nesse enfoque, os blocos lógicos
propõem a descoberta da Matemática, na percepção do formato em três dimensões
e no desenvolvimento da concentração. Estabelecem os primeiros contatos com
operações que exigirão maior complexão cognitiva, mas utilizando como base o
sensorial e o concreto. São recursos pedagógicos para atender à diversidade
discente.

Os blocos lógicos estabelecem os primeiros contatos com operações que posteriormente exigirão maior
complexão cognitiva, mas utilizando como base o sensorial e o concreto.
Em uma proposta inclusiva, as atividades podem ser realizadas por qualquer
aluno, da educação regular ou especial, em situações de dificuldades de
aprendizagem ou não. O material pedagógico não é o conteúdo curricular, mas o
instrumento que estimula o aluno, possibilitando que ele refine seu aprendizado
até atingir elaborações cognitivas e motoras mais elevadas. Certamente, os
exercícios podem ser cultivados ao invés de impostos.
Para que as práticas docentes cheguem a bom termo, dentre outras coisas, é
preponderante que as atividades tragam a gênese do interesse do estudante, para
que ele, ainda que por meio de pequenos passos, possa, de forma gradual e
constante, seguir adiante descobrindo novas experiências de aprendizagem.
Reafirmamos que materiais que possibilitem o contato com diferentes formas de
superfícies, com profundidade, largura, altura e peso dos objetos, e tantas outras
descobertas sensoriais, contribuem para novos esquemas cognitivos. Peças
tridimensionais, lápis de cor, giz de cera, aquarela, massa de modelar e argila, por
exemplo, cumprem objetivos pedagógicos e propiciam experimentos com sensações
e texturas diversas que servem ainda para a liberação de tensões.
Na área das artes, existem pessoas com autismo que conseguem reproduzir com
destreza as notas de um instrumento musical ou os traços de uma pintura. Ainda
que este não seja o caso da maioria, o desenvolvimento de trabalhos artísticos tem
um papel essencial na infância e na adolescência. Estimula a sensibilidade estética,
a criatividade e a capacidade de atenção e memorização. Quando trabalhamos
sobre movimentos criativos, mantemos um vínculo afetivo com o que produzimos.
A postura física para a execução das atividades precisa ser adequada ao
trabalho e ao corpo. As atividades devem ser realizadas por meio de movimentos
suaves, sem pressa, assim como o andar em sala, permitindo a observação e a
concentração. O aluno com autismo não é incapaz de aprender, mas possui uma
maneira singular de responder aos estímulos, culminando por trazer-lhe um
comportamento diferenciado, que pode promover grandes descobertas e
conquistas.

Cuidados na alimentação

Cada vez mais, uma boa educação alimentar torna-se parceira de uma boa
educação escolar. Pesquisas que buscam tratamentos biológicos para o autismo têm
apontado danos causados por alimentos que contêm caseína, glúten, açúcar e
alguns componentes químicos que se encontram em fármacos e vacinas.
Por que é importante uma boa alimentação? Porque muitos alunos têm erros
inatos de metabolismo. Assim os efeitos tóxicos de alguns alimentos podem alterar
acentuadamente o comportamento para as atividades na escola, causando tremor
muscular, irritabilidade excessiva, nervosismo, insônia, dor de cabeça, hostilidade,
diminuição da coordenação motora, perda de memória e agressividade. É
extremamente dificultoso educar um aluno com tais sintomas. Porém, desordens
metabólicas são tratáveis.
Ainda que o educando não apresente qualquer sinal de intolerância alimentar,
uma boa alimentação será sempre recomendável. Em nosso trabalho na escola,
muitos ficaram mais aptos para o aprendizado após a observância de uma
criteriosa rotina alimentar. A escola e a família precisam atentar para toda
prescrição médica a esse respeito.

Como o aluno com autismo aprende?

O seu processo de aquisição do saber é semelhante ao de qualquer outro


educando. Porém, como vimos enfatizando, no que tange à atenção, nem sempre o
foco estará naquilo que o professor apontar ou falar. Nesses casos, será sempre
preciso canalizar seus afetos para o processo de ensino. O afeto é o melhor
canalizador da atenção. Daí, também, a importância da observação, para
sabermos o que fazer.
A atenção é o resultado de diversos processos cognitivos diferentes. Quando
centramos nossa atenção em determinado objeto, limitamos nosso foco. Isto pode
ocorrer a partir de um treinamento, como acontece com determinados profissionais
– um músico ou um piloto de avião – ou de forma voluntária, em razão do nosso
interesse. É bem verdade que um músico ou um piloto de avião poderá focar a
atenção também em razão dos seus interesses e afetos, o que diminui o esforço
para se chegar à concentração.
O foco restringe a quantidade de informações que pode ser absorvida de uma
região do espaço visual. É um mecanismo natural e inteligente do nosso cérebro,
que a pessoa com autismo também possui. Porém, o professor poderá se
surpreender quando seu aluno com autismo atentar para detalhes que, para a
maioria de nós, seriam imperceptíveis, o que o leva a compartilhar menos as
experiências sociais e mais as suas próprias experiências.
Essas peculiaridades devem ser conduzidas em benefício do aprendente, pois
um objeto, ou um fato, ou uma pessoa que lhe chame a atenção pode servir de
condutor da aprendizagem escolar. Dependerá mais da preparação docente do que
da capacidade discente. Certamente, ao traçar estratégias pedagógicas, o educador
verá quão diferentes elas poderão ser de estudante para estudante. Assim, poderá
haver alunos para os quais alguns objetos da sala de aula trarão dispersão e
hiperatividade. Para outros, poderão trazer estímulo e aprendizagem.
Inicialmente, todos nós aprendemos de forma diretiva. Na escola, o professor
apresenta o objeto de conhecimento e comunica os procedimentos para alcançá-lo.
Após isso, espera-se que o aluno adquira autonomia para transitar criativamente
sobre o conhecimento, socializando-o.
No contexto do autismo, em termos práticos, podemos dizer que,
primeiramente, o professor reconhece as habilidades do educando e as que devem
ser adquiridas. É a constituição da aprendizagem no campo pedagógico. Em
muitos casos, trata-se do início da comunicação, da interação entre professor e
aluno. Ainda que seja apenas pelo olhar ou pelo toque, surgem as primeiras
respostas ao trabalho escolar. É relevante lembrar que, mesmo não havendo
verbalização, o comportamento é uma forma de expressão, com significados que
não podem ficar despercebidos.
Quando o estudante já domina o conhecimento e, por iniciativa própria, busca
progredir, ele adquire autonomia sobre suas ações. Dito de outra maneira, ele
executa as atividades com independência, por iniciativa própria. O professor pode
auxiliá-lo, porém o seu desejo é motor. Tal procedimento o conduz à autonomia.
Em muitos momentos, poderá participar naturalmente de atividades com outros
alunos em sala de aula. São, certamente, momentos criativos e colaborativos da
aprendizagem escolar que poderão ser experienciados ricamente.
É claro que os estágios da aprendizagem não são rígidos, principalmente no
espectro autista, em que há indivíduos com características extremamente distintas.
Entretanto, são parâmetros que dão suporte ao professor, que deverá contar com
sua sensibilidade para conduzir todo o processo.
Em suma, o nosso trabalho na escola tem revelado quatro estágios da
aprendizagem escolar, vivenciados por qualquer estudante, que são comuns
também a alunos com autismo: diretivo, autônomo, criativo e colaborativo.

Estágio Diretivo

Fazendo uma analogia com o desenvolvimento natural do ser humano, seria


comparável à fase em que ensinamos a nossos filhos, quando eles são ainda bem
pequenos e necessitam ser conduzidos para aprender todas as coisas. A criança
adquire conhecimentos com sua inteligência, absorvendo com a sua vida psíquica
as informações do mundo ao redor. Simplesmente vivendo, ela aprende. Em sala
de aula, o professor ensina as primeiras coisas. É o momento inicial da
aprendizagem e carecerá ser superado para o encontro com o próximo passo: a
autonomia. Isto ocorre em qualquer modalidade e nível de ensino.
Dentro do possível, o estágio diretivo precisa ser um momento transitório da
aprendizagem acadêmica ou social. A comunicação, a interação, os afazeres
cotidianos, a higiene pessoal, os trabalhos da escola, enfim, busca-se a autonomia
na vida pessoal, social e escolar. Ainda que ela não venha de maneira plena, a
busca produzirá avanços consideráveis. É o que acontece com todos nós.
Estágio Autônomo
O aluno tem capacidade de aprender novas habilidades por iniciativa própria.
Constrói suas escolhas. O desejo de aprender já o absorve na busca por novas
descobertas. É conquistado durante a aprendizagem, na interação com os atores
pedagógicos. Trata-se da apropriação das possibilidades para a produção pessoal
do conhecimento. A cristalização da curiosidade epistemológica. É possível ao
aluno estar em diversos ambientes pedagógicos por iniciativa própria. Na
educação inclusiva, a autonomia se torna essencial, uma vez que qualquer ganho
que esperamos abrangerá a conquista da independência intelectual e operacional.
Quantas famílias esperam que seus filhos tenham habilidades funcionais
desenvolvidas? Sabemos que poderá haver casos que demandarão muito esforço e
paciência, mas os resultados virão.

Estágio Criativo

No início deste livro, relatamos o caso de Filipe, aluno do ensino médio, que lia
tudo que lhe vinha às mãos e que descobriu uma forma criativa de memorizar os
conteúdos da aula de História. Trata-se de um saber criativo, construídos em
razão das circunstâncias e das necessidades, muitas vezes até por causa das
limitações, pois nossas necessidades educacionais especiais nos predispõem a
improvisações. Há em todos nós um potencial criativo que necessita ser explorado
em sala, pois limitações genéticas podem ser superadas pelos estímulos do
ambiente escolar.
A aprendizagem criativa é uma experiência consciente, manipulada e
transformadora. Não se restringe simplesmente a influências sobre os conceitos
existentes, mas abarca modificações operadas pelo aprendiz que vão traduzir-se em
uma nova forma de executar tarefas ou manusear materiais. Ademais, a
criatividade não é apenas trazer à existência algo novo, mas é também lançar um
olhar original. Não significa criar sempre o inédito, mas tornar interessante o
comum. Quantas vezes ouvimos uma música ou lemos um bom livro e suscitamos
viagens cognitivas a mundos ainda não imaginados?
Por vezes, a criatividade advém de uma resposta que traz consigo uma
instigante pergunta. É uma resposta diferente a um estímulo, ou um pensamento
divergente para a solução de um problema comum que torna a aprendizagem
modificadora. Uma pequena mudança pode remodelar padrões de ensino e criar
novas possibilidades de aprendizagem.

Estágio Colaborativo

Há aprendizes da educação especial e regular que possuem extremas


habilidades em determinadas áreas. Alguns demonstram facilidade para tocar
instrumentos, contar histórias, aptidões para esporte ou artes, trazendo novos
contextos à sala. Outros conseguem dominar determinado conteúdo curricular
ensinado pelo professor, como Filipe. Podem ser cooperadores, ajudando àqueles
que estão com dificuldades. Mas, quando isso ocorre, nota-se que eles não
ensinam do mesmo modo que o professor, pois têm uma forma de ensinar e uma
linguagem própria. Nesse ponto, penetram no estágio colaborativo.
O mundo colaborativo foi intensificado pelo mundo das tecnologias digitais.
Muitas pessoas com o espectro autista as utilizam com muita proficiência,
penetrando nas redes sociais da web, fazendo parte dos processos colaborativos
que elas fomentam. A Internet é um lugar onde muitos deles são mais habilidosos
do que os seus mestres da escola. É a tendência natural da contemporaneidade.
Dificilmente saímos de casa sem usar a Internet para fazer uma consulta, dirimir
uma dúvida, obter uma informação. Essa tendência tem se transferido para sala de
aula. Esse movimento epistemológico tem enfatizado contumazmente que todos
são capazes de aprender e de ensinar.
A educação escolar pressupõe um ensino colaborativo, movimentos que trazem
afetos e sonhos comunicantes, com produções individuais, com produções em
grupo, socializando o saber produzido. Percebe-se que se aprende melhor na
ausência do medo, com autonomia, criatividade e colaboração. São questões que
desembocam na sala de aula, com a nova geração de aprendentes.
O ato colaborativo é um ato socializante. Há no aluno a assimilação de hábitos
característicos do seu grupo social. O desejo de compartilhar o saber aprendido.
As ações não são vinculadas ao egoísmo, antes, permeadas pela solidariedade. Há
um ganho funcional na relação com o próximo. É um processo contínuo que nunca
se dá por terminado, realizando-se por meio da comunicação de crenças, valores e
cultura, sendo fundamental para a inclusão.
TERCEIRA PARTE:
Lei n.º 12.764/12 – Institui a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista

A educação não é uma questão institucional. É uma


questão humana. Não aprendemos pelo rigor das regras,
mas por uma condição biológica. Nascemos para aprender.
Restringir esse direito é violar a coerência da natureza; é
tentar cercear a inteligência humana.
LEI N.º 12.764, DE 27 DE DEZEMBRO DE 20122.

Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno


do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei n.º 8.112, de 11 de
dezembro de 1990.

Art.1º Esta Lei institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa
com Transtorno do Espectro Autista e estabelece diretrizes para sua consecução.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do espectro
autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada na forma dos seguintes
incisos I ou II:
I - deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da
interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e
não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência
em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;
II - padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades,
manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por
comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de
comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos.
§ 2º A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com
deficiência, para todos os efeitos legais.
Art. 2º São diretrizes da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa
com Transtorno do Espectro Autista:
I - a intersetorialidade no desenvolvimento das ações e das políticas e no
atendimento à pessoa com transtorno do espectro autista;
II - a participação da comunidade na formulação de políticas públicas voltadas
para as pessoas com transtorno do espectro autista e o controle social da sua
implantação, acompanhamento e avaliação;
III - a atenção integral às necessidades de saúde da pessoa com transtorno do
espectro autista, objetivando o diagnóstico precoce, o atendimento
multiprofissional e o acesso a medicamentos e nutrientes;
IV - (VETADO);
V - o estímulo à inserção da pessoa com transtorno do espectro autista no
mercado de trabalho, observadas as peculiaridades da deficiência e as disposições
da Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente);
VI - a responsabilidade do poder público quanto à informação pública relativa
ao transtorno e suas implicações;
VII - o incentivo à formação e à capacitação de profissionais especializados no
atendimento à pessoa com transtorno do espectro autista, bem como a pais e
responsáveis;
VIII - o estímulo à pesquisa científica, com prioridade para estudos
epidemiológicos tendentes a dimensionar a magnitude e as características do
problema relativo ao transtorno do espectro autista no País.
Parágrafo único. Para cumprimento das diretrizes de que trata este artigo, o
poder público poderá firmar contrato de direito público ou convênio com pessoas
jurídicas de direito privado.
Art. 3º São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
I - a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da
personalidade, a segurança e o lazer;
II - a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;
III - o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas
necessidades de saúde, incluindo:

a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;


b) o atendimento multiprofissional;
c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;
d) os medicamentos;
e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.
IV - o acesso:
a) à educação e ao ensino profissionalizante;
b) à moradia, inclusive à residência protegida;
c) ao mercado de trabalho;
d) à previdência social e à assistência social.

Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com


transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos
termos do inciso IV do art. 2º, terá direito a acompanhante especializado.
Art. 4º A pessoa com transtorno do espectro autista não será submetida a
tratamento desumano ou degradante, não será privada de sua liberdade ou do
convívio familiar nem sofrerá discriminação por motivo da deficiência.
Parágrafo único. Nos casos de necessidade de internação médica em unidades
especializadas, observar-se-á o que dispõe o art. 4º da Lei n.º 10.216, de 6 de
abril de 2001.
Art. 5º A pessoa com transtorno do espectro autista não será impedida de
participar de planos privados de assistência à saúde em razão de sua condição de
pessoa com deficiência, conforme dispõe o art. 14 da Lei n.º 9.656, de 3 de junho
de 1998.
Art. 6º (VETADO).
Art. 7º O gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de
aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência,
será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários mínimos.
§ 1º Em caso de reincidência, apurada por processo administrativo, assegurado
o contraditório e a ampla defesa, haverá a perda do cargo.
§ 2º (VETADO).
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
BRASÍLIA, 27 DE DEZEMBRO DE 2012,
DILMA ROUSSEFF
José Henrique Paim Fernandes
Miriam Belchior
A lei reafirma o ideário inclusivo, já visível na LDBEN n.º 9.394/96, e avança
ao destacar que a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa
com deficiência, para todos os efeitos legais e que tem o direito de estudar em
escolas regulares, tanto na educação básica quanto no ensino profissionalizante e,
quando necessário, com o apoio de um mediador especializado. Ficam definidas,
também, sanções aos gestores que recusarem a matrícula do aluno com o espectro.
Abraça o que está proposto no Plano Nacional de Educação (PNE 2014-
2024): o direito social inalienável dos cidadãos a uma educação de qualidade, na
perspectiva emancipadora, nas diferentes dimensões e espaços da vida. Trata-se da
democratização da educação por meio da garantia do acesso, permanência e
sucesso na sua dimensão pedagógica e institucional.
Corrobora, ainda, os movimentos de políticas públicas que advogam para a
pessoa com autismo a não submissão a tratamento desumano ou degradante, a não
privação da liberdade ou do convívio familiar, garantindo a proteção contra a
exclusão por motivo da deficiência. Movimentos que se ancoram na justiça social,
na diversidade e na igualdade, assegurando o respeito às diferenças e o combate a
toda forma de discriminação.
Vale lembrar que a lei coaduna com as propostas e as estratégias da meta
quatro do referido PNE, de universalizar o atendimento escolar aos estudantes
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou
superdotação na rede regular de ensino.
A formação do professor é comtemplada, ratificando o valor do seu papel nesse
processo inclusivo. O incentivo à formação e à capacitação de profissionais
especializados no atendimento à pessoa com transtorno do espectro autista bem
como o apoio a pais e responsáveis confirmam o imperativo da parceria entre
família e escola, fundamental na educação de todo aprendente com necessidades
educacionais especiais. Não podemos deixar de lembrar os princípios para uma
gestão democrática, com um projeto emancipador e transformador das relações
sociais, enfatizando o trabalho coletivo e interdisciplinar como processo educativo
do aluno.
Esperamos que essas ações comecem efetivamente a promover a valorização do
trabalho docente e a qualidade da sua formação inicial e continuada, a partir de
uma base nacional comum, com sólida concepção teórica e interdisciplinar,
fundamentada na unidade entre a teoria e a prática, na constituição do educador
pesquisador, seu ofício educativo, cognitivo e formativo. Mais do que boas
intenções, a lei precisa ser vista como um instrumento eficaz, legítimo e legal para
pôr em prática ações que irão superar os obstáculos e as limitações historicamente
impostas ao ensino do aluno com autismo.

2 Publicada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12764.htm, acesso em 02/02/12.
Para concluir nossa re exão

Os sistemas de ensino encontram-se diante das demandas da sociedade


contemporânea. Sem dúvida, sobre os professores, recaem as maiores exigências.
Estes, inegavelmente, necessitam de maior apoio dos governos, como forma de
viabilização das políticas educacionais. As reformas ocorridas nas políticas de
educação no Brasil nos últimos anos deram incontestável ênfase ao exercício
docente no que tange à formação e às práticas de ensino, na perspectiva de uma
educação inclusiva e para a diversidade.

Nosso objetivo neste pequeno texto foi discutir o trabalho do professor, diante
de questões fundamentalmente pedagógicas, apontando alguns caminhos. Faz-se
necessário ressalvar, entretanto, que qualquer esforço para situar as práticas de
ensino será de pouco efeito se não estabelecer vínculos com situações concretas da
escola. Vínculos, principalmente, com a condição discente. Afinal, educar o
aprendente com autismo é constituir uma relação dialógica; uma relação dialógica
que pressupõe um jeito diferente de aprender e um jeito diferente de ensinar.
Referências

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mainstreamed handicapped students and their non-handicapped
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BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editora, 1997.
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promulgada em 20 de dezembro de 1996. Apresentação Carlos Roberto Jamil
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______. Lei n.º 12.764, Institui a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o §
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http://www.planalto.gov.br/ccivil. Acesso em 02/02/13.
COSTA, Valdelúcia Alves da. Políticas públicas, educação e sociedade: desafios
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na escola e na família. 4 ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.
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