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SISTEMAS

LEGAIS MUITO
DIFERENTES
DO NOSSO
Sistemas Legais
Muito Diferentes do Nosso

David Friedman
Peter T. Leeson
David Skarbek

1ª Edição
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
David Friedman | Peter T. Leeson | David Skarbek
Editora Konkin, 1ª Edição
Email: contato@editorakonkin.com.br
Título Original: Legal Systems Very Different From Ours

Coordenação Editorial
Alex Pereira de Souza

Tradução e Revisão
Alex Pereira de Souza, Erick Kerbes, Gabriel Camargo, Gabriel Rezende,
Hiel Estevão, José Aldemar, Rafael Jesus.

Capa
Gabriel Teixeira Pereira

Diagramação
Alex Pereira de Souza

Licença
Os direitos autorais da edição em inglês pertencem aos autores. Todos os
direitos reservados. Todos os direitos de publicação deste livro, em língua
portuguesa, que pertencem à Editora Konkin, na forma da lei estão sendo, por
intermédio deste, cedidos publicamente, inclusive para venda, impressão e
eventuais alterações.

ISBN
978-65-999192-8-2 (versão impressa) | 978-65-999192-9-9 (versão digital)
Até que ponto, na formação das leis dos chineses, os fins da justiça
substancial são consultados, também deve haver, sem dúvida, alguma
variedade de sentimentos. Há certamente muitos pontos sobre os
quais essas leis são totalmente indefensáveis. Procuraremos em vão,
por exemplo, aqueles excelentes princípios do direito inglês, pelos
quais todo homem é presumido inocente até que seja provado
culpado; e nenhum homem é obrigado a se incriminar. Tais máximas
o sistema chinês não reconhece nem poderia reconhecer. Mas
dificilmente escapará à observação que existem outras partes do
código que, em um grau considerável, compensam esses e outros
defeitos semelhantes, são totalmente diferentes e talvez não sejam
indignos de imitação, mesmo entre as nações afortunadas e
esclarecidas do Ocidente. É suficientemente óbvio, de fato, que os
méritos intrínsecos de qualquer código de leis, que não se professa
ser o resultado das meditações de um filósofo, ou a teoria não testada
de um legislador, mas que, ao contrário, na verdade está em vigor,
forma a base do governo de uma nação e, como tal, foi devidamente
submetido ao importante teste da experiência, não devem ser
estimados por nenhum padrão imaginário de perfeição.
(Staunton, 1828)
Sumário
Introdução........................................................................ 9
1. Direito Imperial Chinês................................................. 11
2. Direito Cigano ............................................................... 53
3. Os Amish....................................................................... 77
4. Direito Judaico: Uma Breve Explicação ....................... 99
5. Direito Islâmico........................................................... 145
6. Quando Deus é o Legislador ....................................... 179
7. Direito Pirata ............................................................... 191
8. Direito dos Prisioneiros............................................... 211
9. Sistemas Integrados e Polilegais ................................. 225
10. Islândia do Período das Sagas ..................................... 243
11. Direito Somali ............................................................. 279
12. Direito Irlandês Antigo................................................ 301
13. Comanches, Kiowa e Cheienes ................................... 323
14. Direito de Disputas...................................................... 349
15. Inglaterra no Século XVIII.......................................... 365
16. Direito Ateniense: A Obra de um Economista Louco 421
17. Aplicando Regras ........................................................ 435
18. O Problema do Erro..................................................... 467
19. Fazendo o Direito ........................................................ 489
20. Vigiando o Vigia ......................................................... 507
21. Ideias que Podemos Usar ............................................ 517
Bibliografia.................................................................. 535
Introdução
Quase quarenta anos atrás eu me interessei pelo sistema
legal da Islândia do período das sagas, uma sociedade em que se
você matasse alguém, os parentes dele processavam você.
Tentar entender isso me ensinou coisas interessantes não apenas
sobre o sistema jurídico, mas também sobre a aplicação da lei
em geral. Cerca de quinze anos depois me interessei pelo direito
penal na Inglaterra do século XVIII, um sistema em que a
prossecução do crime era privada, geralmente exercida pela
vítima, onde todos os crimes graves eram capitais, mas apenas
uma minoria dos condenados por crimes capitais e uma pequena
minoria dos acusados foram realmente executados. Tais fatos
também foram interessantes.
Depois de mais ou menos dez anos, ocorreu-me que
valeria a pena fazer mais trabalhos em linhas semelhantes, então
inventei um seminário sobre sistemas jurídicos muito diferentes
dos nossos. Isso significava que eu tinha que aprender sobre
mais sistemas jurídicos. Com a ajuda dos bibliotecários da
minha universidade, consegui. Ao longo dos anos, expandi meu
conhecimento com a ajuda do Google, Amazon.com e os
trabalhos de meus alunos. Este livro é o resultado. A maior parte
é minha, mas inclui dois capítulos de outros autores, cada um
sobre o assunto da pesquisa do autor.
A ideia subjacente é simples. Todas as sociedades
humanas enfrentam os mesmos problemas. Elas lidam com eles
com uma interessante variedade de maneiras diferentes. Todas
elas são maduras — há poucas razões para acreditar que as
pessoas que criaram os sistemas jurídicos da China imperial, da
Atenas de Péricles ou da Islândia do período das sagas fossem

9
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

menos inteligentes do que os criadores do sistema jurídico dos


Estados Unidos. Todos os sistemas devem ser levados a sério,
cada um como uma forma pela qual uma sociedade humana lida
com seus problemas jurídicos.
As pessoas às quais descrevo o projeto costumam
perguntar qual é o melhor sistema jurídico. Duvido que haja um.
O que estou tentando fazer é entender um grande número de
sistemas jurídicos diferentes, como eles funcionavam, quais
problemas levantavam, como esses problemas eram tratados.
Estudar adequadamente até mesmo um sistema jurídico e
a sociedade em que ele está inserido é um grande trabalho,
possivelmente para uma vida inteira. Eu não posso fazer isso
para onze diferentes sistemas. Para lidar com esse problema,
tentei, para cada sistema, encontrar alguém que fosse um
especialista, enviar meu rascunho para ele e deixá-lo me dizer o
que eu havia errado. Este livro é dedicado àqueles que
responderam — nenhum dos quais é responsável pelos erros que
falhei em corrigir.

John Beattie, Jessie ByockkJoseph Dellapenna, Charlene Eska, Harold


Feld, Michael Gagarin, William Gelley, Paul Gowder, Kyle Graham,
Fergus Kelly, Daniel Klerman, Timur Kuran, David McConnell,
Thomas Meyers, Jón Viðar Sigurðsson, John M. Spear

Também é dedicado aos alunos cujos artigos de seminário,


ao longo dos anos, me apresentaram a muito mais sistemas
jurídicos do que os que abordo aqui.1 E, finalmente, aos
bibliotecários da faculdade de direito da Universidade de Santa
Clara.
David Friedman
1Alguns dos artigos dos alunos estão na rede em
http://www.daviddfriedman.com/Academic/Course_Pages/Legal_Systems_V
ery_Different_13/old_papers_lgl_systs.htm.

10
Direito Imperial Chinês

1
Direito Imperial
Chinês
O sistema jurídico chinês se originou há mais de 2.000
anos no conflito entre duas visões do direito, legalista e
confucionista. Os legalistas, que acreditavam em usar o interesse
próprio racional daqueles sujeitos à lei para fazê-los se
comportar da maneira desejada por aqueles que fazem a lei,
foram acusados por escritores posteriores de defender penas
severas para levar a taxa de criminalidade a quase zero.2 Eles
apoiavam um governo central forte e igualdade de tratamento
perante a lei. Os confucionistas defendiam a modificação do
comportamento não por recompensa e punição, mas pelo ensino
da virtude. Eles apoiavam o tratamento desigual com base tanto
no status desigual daqueles a quem a lei se aplicava quanto em
seus diferentes relacionamentos.
O conflito foi brevemente resolvido em favor dos
legalistas em 221 a.C. quando o reino de Qin derrotou todos os
rivais, criando o primeiro império chinês unido. A dinastia
entrou em colapso em 208 a.C. após a morte de seu fundador.
Foi sucedida pela dinastia Han, cujo sistema legal era
nominalmente confucionista, mas na prática um híbrido das
duas abordagens. O direito positivo continuou a ser aplicado por
meio de penalidades, mas a penalidade por uma transgressão

2A escavação em 1975 da tumba de um oficial menor de Qin em Shuihudi


produziu textos escritos que incluíam relatos de regras e procedimentos
legais para investigar crimes. Eles eram inconsistentes com as alegações de
extrema severidade, sugerindo que o relato convencional do legalismo de Qin
pode ter sido, pelo menos em parte, propaganda de seus sucessores.

11
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

dependia do status do transgressor, tanto o status absoluto


(funcionário, plebeu, escravo) quanto o status vis a vis à vítima.
O desacordo entre legalistas e confucionistas até certo
ponto se assemelha ao conflito entre as abordagens britânicas do
crime e da punição dos séculos XVIII e XIX. A visão dominante
no século XVIII via as penalidades criminais como forma de
dissuasão, com o propósito de tornar o crime não lucrativo. A
visão dominante no século XIX via os criminosos como vítimas
de sua própria ignorância e irracionalidade, o propósito das
penas era reformá-los, torná-los mais sábios e melhores. Essa
visão foi refletida em termos como “reformatório” e
“penitenciário” e práticas associadas. Ambas as abordagens
sobrevivem na teoria jurídica moderna e nos sistemas jurídicos
modernos.
Para o rascunho original deste capítulo, minha principal
fonte foi Law in Imperial China, de Derk Bodde e Clarence
Morris, um relato do sistema jurídico da última dinastia
imperial, a dinastia Qing,3 que governou de meados do século
XVII até o início do século XX. Algumas de minhas conclusões
tiveram que ser revisadas com base em livros posteriores
baseados em registros de casos de tribunais locais que se
tornaram disponíveis como resultado da abertura da China.
Concluí que, embora Bodde e Morris tenham interpretado
corretamente suas fontes, evidências documentais produzidas
pela elite confuciana, essas fontes deturparam seu próprio
sistema jurídico, descrevendo o que deveria ter sido idealmente,
em vez do que realmente era.

3Também conhecida como dinastia Ch'ing ou Manchu.

12
Direito Imperial Chinês

O Código Legal4
As leis originaram-se como estatutos proclamados pelos
imperadores e transmitidos de dinastia em dinastia; uma fonte
estima que quarenta por cento do código Qing veio do código
Tang, criado cerca de mil anos antes.5 Eles foram expandidos
pela adição de subestatutos baseados em decretos imperiais ou
em precedentes estabelecidos por funcionários de alto nível,
expandidos ainda mais por comentários oficiais impressos junto
com os estatutos, expandidos ainda mais por comentários não
oficiais. Embora alguns dos primeiros escritores tenham
argumentado contra a disponibilização pública do código legal,
essa política não parece ter sido seguida, exceto possivelmente
durante a dinastia Song.6 Mas em uma sociedade onde a maioria
das pessoas era analfabeta e onde qualquer pessoa que prestasse
aconselhamento ou assistência jurídica sem autorização oficial
corria o risco de sofrer penalidades severas, as pessoas comuns
dependiam em grande parte dos funcionários do governo e de
seus empregados para obter informações sobre regras legais.
Uma característica marcante dos casos em Bodde e
Morris, registros oficiais do equivalente a tribunais de apelação
de alto nível, é que eles não eram sobre se o réu era culpado —
os fatos de quem fez o que eram geralmente considerados
4Uma tradução em inglês dos estatutos, mas não dos subestatutos do código
Qing, publicada em 1810 por George Staunton, está na rede em
https://archive.org/details/TaTsingLeuLeeCode01. Há também duas
traduções francesas, uma de Philastre e outra, mais completa, de Boulais.
5Informações sobre códigos anteriores podem ser encontradas em fontes

como Van Gulik 2007, uma tradução com comentários de uma coleção de
casos do século XIII, Johnson 1979, uma tradução de parte do código Tang, e
Jiang 2005, uma tradução de todos os estatutos (mas não subestatutos) do
código Ming.
6Head e Wang 2005, 146.

13
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

conhecidos — nem, como em um tribunal de apelações no


sistema moderno dos EUA, sobre se o tribunal inferior agiu
corretamente ao condenar o réu, mas sobre qual punição era
apropriada. O código legal não era tanto um relato do que era
proibido, mas uma tentativa de especificar, para cada
transgressão possível, a punição adequada.
Esse não foi o caso dos casos de nível inferior descritos
em Bernhardt e Huang, que muitas vezes dependiam de
evidências documentais, incluindo provas de que documentos
foram falsificados, inspeção física de propriedades de terras em
disputa ou depoimento de testemunhas.7

Punindo Delitos
Nem a prisão nem as multas
faziam parte da lista normal de

7Os casos muito anteriores e possivelmente fictícios em van Gulik 2007 são
em grande parte relatos de como magistrados inteligentes deduziram com
sucesso o que realmente aconteceu.

14
Direito Imperial Chinês

punições,8 embora um réu pudesse ser preso por períodos


substanciais de tempo no processo de passagem pelo sistema
legal e o pagamento de uma multa às vezes era permitido como
substituto de uma pena mais grave ou como compensação a uma
família prejudicada por um crime. As punições iam desde a
condenação ao uso da canga,9 dispositivo cujo objetivo era em
grande parte humilhante, passando por vários números de golpes
com o bambu leve ou pesado, diferentes graus de servidão penal
ou exílio perpétuo,10 até penas nominalmente ou efetivamente
capitais.

8Allee, trabalhando com registros de um tribunal local no século XIX.


Taiwan, relata que um período prolongado de prisão, embora não esteja
previsto em nenhum lugar no código de leis, na prática era frequentemente
empregado como punição. (1994, 236-247). De acordo com Alabaster (1899,
72), escrevendo perto do final da dinastia final:

O encarceramento, no sentido comum, não existia como


punição até um período relativamente recente [...]. Foi
gradualmente introduzido como um modo de comutação ou
como uma punição inicial.
De uma multa pura e simples, onde uma quantia fixa
de dinheiro é estabelecida no Código como penalidade devida
pela prática de um delito, aparentemente não há instância. Os
legisladores chineses ficariam chocados com a ideia de que
uma violação da paz deva ser punida com uma multa de
quarenta shillings, ou que nenhuma outra penalidade deva ser
aplicada a delitos de maior atrocidade. (Alabastro 1899, 77).

9A canga era um dispositivo preso ao pescoço do condenado, às vezes


assumindo a forma de um quadrado achatado grande o suficiente para
impedir que suas mãos chegassem à boca e assim impedi-lo de se alimentar
sozinho. Pode conter uma descrição de seu crime, pode ser pesado o
suficiente para impedir seriamente o movimento. (Foto da Wikipedia. O
fotógrafo, John Thomson, morreu em 1921.)
10Em alguns casos especificados como uma província de malária ou para

servir como escravo militar, em alguns casos aparentemente sem nenhuma


restrição substancial além da localização.

15
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Uma estranheza das punições era que nem sempre eram


tudo o que afirmavam ser. Uma sentença de cinquenta golpes de
bambu leve na verdade significava vinte, devido a mudanças na
lei após a conquista Manchu, e da mesma maneira para todas as
sentenças de forma semelhante.11 Algumas sentenças
nominalmente capitais — decapitação após os assizes ou
estrangulamento após os assizes — terminaram na maioria dos
casos como graves, mas não capitais.12
Nos assizes anuais, os condenados com sentenças de
morte foram divididos em quatro categorias. Os condenados à
execução diferida geralmente tiveram sua sentença comutada
para servidão penal, às vezes após um atraso de dois anos para
que a sentença revisada fosse confirmada. Aqueles considerados
dignos de compaixão, seja porque eram jovens, velhos ou
porque havia circunstâncias atenuantes para seu delito, tiveram
sua sentença comutada para exílio ou servidão penal. O
condenado filho único que precisasse ficar em casa para cuidar
dos pais ou, estando os pais mortos, para cuidar do santuário
deles, poderia ter sua pena de morte reduzida para quarenta
golpes mais dois meses de canga.
Restava uma quarta categoria, condenados “merecedores
da pena capital”. De acordo com um relato, seus nomes eram
escritos em uma folha na qual o imperador desenhava um

11Uma possível explicação é que a diminuição do número de golpes decorreu


do aumento do tamanho dos bastões utilizados e era necessária “para que os
infratores não morressem com os espancamentos”. (Bodde e Morris 1967,
80-81).
12Este sistema foi introduzido durante a dinastia Ming (Meijer 1984, 2, 13),

por volta de 1459 de acordo com Bodde e Morris (1967, 135). Isso explica o
motivo da distinção entre punições antes e depois dos assizes não aparecer no
Grande Código Ming (Jiang 2005), criado no início do período Ming, mas
aparece no código Qing (Staunton 1810).

16
Direito Imperial Chinês

círculo, separando aqueles que seriam executados daqueles que


seriam detidos por mais um ano.13 Um réu culpado de crimes
contra um membro da mesma família ou clã que sobreviveu a
este processo duas vezes teve sua sentença comutada para
execução diferida; para outros crimes, demorou dez vezes. Uma
fonte sugere que uma única rodada do processo selecionou
menos de dez por cento dos nomes para execução. Dadas as
múltiplas saídas possíveis, parece provável que a maioria das
sentenças nominalmente capitais levou a punições sérias, mas
sem execução.
Meijer, que é cético em relação à história de “desenhar um
círculo”, descreve os assizes como uma abordagem racional
para problemas criados pela tentativa de especificar
completamente a punição para cada crime, permitindo que a
burocracia de alto nível ajuste as sentenças com base em
considerações não incluídas nos estatutos.14
Havia três sentenças que eram na verdade, e não apenas
nominalmente, capitais: estrangulamento antes dos assizes,
decapitação antes dos assizes e morte por fatiamento (“a morte
de mil cortes”). O estrangulamento era considerado uma
punição menos severa do que a decapitação, uma vez que a
mutilação do corpo era considerada como tendo consequências
post mortem indesejáveis.
Uma desconexão adicional entre sentenças nominais e
reais ocorreu durante o processo de redenção. O tribunal pode,
mas não precisa, permitir que um condenado substitua um
13Bodde e Morris 1967, 140. Eles atribuem o relato a Alabaster (1899, 28-
29), sugerem que um relato alternativo de outra fonte é mais provável, mas
ainda concluem que “é impressionante ver a longa progressão de
procedimentos altamente racionalistas em casos capitais, culminando em
uma cerimônia baseada na magia e na visão carismática do imperador”.
14Meijer 1984.

17
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

pagamento em dinheiro pela pena a que foi condenado; os


pagamentos parecem pequenos em relação às penalidades que
substituíram. Em alguns casos, como o de um médico que
acidentalmente matou seu paciente, a razão para permitir a
redenção parece bastante natural para o leitor moderno. Mas em
outros casos em que pareceria apropriado para nós, como um
filho matando o assassino de seu pai ou alguém que matou sem
querer um suposto estuprador no processo de impedir seu crime,
isso não foi concedido.
Por que um réu seria sentenciado à pena capital e depois
autorizado a comprar sua saída por uma quantia nominal, em
vez de ser condenado a uma pena muito menor? Uma resposta
possível é que o equilíbrio cósmico exigia o pagamento de uma
vida por outra, mas poderia ser uma vida nominal. Isso também
explicaria outra esquisitice na lei. Se várias pessoas fossem
conjuntamente responsáveis por um assassinato e uma delas
fosse condenada à morte, sua sentença poderia ser comutada
para algo não capital se um dos outros infratores morresse
enquanto o processo legal ainda estava em andamento —
presumivelmente porque o equilíbrio cósmico havia ficado
satisfeito. Uma estranheza final é que as execuções só podiam
ocorrer em certas épocas do ano, com os detalhes da restrição
variando ao longo do tempo, mas aparentemente ligados à
religião.
Essas regras e outras levantam a questão de até que ponto
o sistema legal foi baseado na religião amplamente definida, até
que ponto em considerações consequencialistas. Pode-se
interpretar sentenças nominalmente capitais como refletindo as
necessidades de equilíbrio cósmico, desde que se acredite que o
cosmos pode ser equilibrado por execuções puramente

18
Direito Imperial Chinês

nominais.15 Alternativamente, pode-se ver o padrão como


resultado da punição se tornar menos severa com o tempo em
um sistema com barreiras à mudança explícita. Ou pode-se ver
isso como uma forma de assustar criminosos em potencial16 e,
assim, dissuadi-los, preservando os condenados para servirem
como escravos do estado. A retórica do equilíbrio também pode
ser vista como uma forma de manter o respeito pela hierarquia
existente de status e autoridade.17 É mais difícil encontrar
explicações consequencialistas para algumas outras
características do código legal, como a exigência de que um
funcionário cujo pai morreu abandonar o cargo por 27 meses de
luto obrigatório (pelo código T'ang, reduzido a um ano pelo

15Um padrão semelhante ocorreu no início do direito romano, onde o


equilíbrio cósmico era mantido por uma pena nominalmente capital por
violações da lei religiosa, com a execução posteriormente convertida em
banimento.
16A mesma questão surge com o chamado código sangrento da Inglaterra do

século XVIII. Todos os crimes graves foram nominalmente capitais, mas


parece provável que apenas uma minoria dos condenados por crimes capitais
foi realmente executada. Veja o Capítulo 15 para detalhes.
17O capítulo 5 de Huang 1982 descreve a vida de Hai Jui, um oficial da

dinastia Ming que eventualmente se tornou o Censor-Chefe em Nanquim.


Hai acreditava firmemente que o sistema legal deveria ser usado para impor o
equilíbrio de poder na hierarquia social da China:

Sugiro que, ao devolver os veredictos a esses casos, é melhor


julgar o irmão mais novo do que o irmão mais velho, o
sobrinho do que o tio, o rico do que o pobre, e o teimosamente
astuto do que o desajeitado honesto. Se o caso envolve uma
disputa de propriedade, é melhor decidir contra um membro da
pequena nobreza do que contra o plebeu, de modo a aliviar o
lado mais fraco. Mas se o caso tem a ver com cortesia e status,
é melhor decidir contra o plebeu do que contra a nobreza: o
propósito é manter nossa ordem e sistema.

19
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Qing).18 Uma possível explicação é que sua função era impedir


que algum funcionário acumulasse muito poder, já que o
controle sobre um império burocrático poderia ser interrompido
a qualquer momento pela morte de um dos pais.19
Questões semelhantes são levantadas por outra
característica do sistema jurídico, o grau em que ele dependia
dos resultados, e não da culpabilidade. Era, por exemplo, um
crime particularmente grave matar vários membros da mesma
família. Em um caso, um réu considerado culpado de fazê-lo foi
condenado a punição severa, apesar do fato de que os homens
que ele matou atacaram ele e seus companheiros e um deles
havia acabado de matar seu pai. Em outro caso, um funcionário
foi considerado culpado de um crime grave porque os servos
carregando sua liteira a carregaram pelo portão de um templo
durante uma tempestade, em vez de colocá-la do lado de fora do
portão para que o funcionário pudesse entrar no templo da
maneira adequada.20

Sua falha em desmontar da liteira a tempo, embora


ocasionada pelo grande acúmulo de água da chuva no

18Bodde e Morris 1967, 39. Houve exceções:

Aqueles oficiais do governo, que ocupam cargos e comandos remotos e


importantes, não serão obrigados pelos regulamentos acima na chegada da
informação da morte de seus pais, pois a linha de conduta que eles devem
seguir em tais ocasiões sempre será determinada por ordens expressas do
Imperador. (Staunton 1810, 189)

19Essa possibilidade é sugerida pelo caso de Chang Chü-cheng, Grande


Secretário do imperador Ming, Wan-li, no século XVI, cujo controle sobre o
imperador e a burocracia foi posto em risco pela morte de seu pai. Chang
conseguiu fugir de sua obrigação de luto, mas ao fazê-lo enfraqueceu
gravemente sua posição com a classe de funcionários acadêmicos. (Huang
1982, 21-25).
20Bodde e Morris 1967, 276-8.

20
Direito Imperial Chinês

chão e pelo erro dos carregadores da liteira, constitui,


ainda assim, uma violação dos regulamentos
estabelecidos. Assim, ele deve ser condenado a 100
golpes de bambu pesado sob o estatuto de violação dos
decretos imperiais [...]. Porque ele já foi demitido de seu
cargo [...].21

Nesse e em outros casos, a intenção não era exigida para


responsabilidade criminal; o veredicto foi baseado no resultado,
não na motivação.22 Isso novamente poderia ser interpretado
como uma política motivada pelo medo de que, se o equilíbrio
não fosse mantido punindo alguém por uma violação das regras
cósmicas, o resultado poderia ser um risco aumentado de
catástrofes naturais. Por outro lado, o equivalente — torts23 de
responsabilidade estrita — também existe nos sistemas jurídicos
modernos, o que sugere que pode haver explicações,
possivelmente funcionais, que não dependem de peculiaridades
da cultura chinesa.24

21Bodde e Morris 1967, 277.


22Há alguma evidência de que, sob o regime legalista de Qin, as penalidades
dependiam de fatores subjetivos, como a intenção. (Sanft 2008).
23
N.T.: “Torts” no common law são delitos de natureza civil, inclui acidentes
e atos intencionais.
24Os torts de responsabilidade estrita podem ser justificados pela necessidade

de compensar as vítimas, as regras chinesas necessárias para compensar o


céu: “Crimes produzem discórdia; uma vez que um crime é cometido, a
harmonia é restaurada apenas por uma punição adequada.” “O castigo é
decretado não para ensinar que o crime não compensa, é cobrado para aplacar
o céu.” Um problema para todos os sistemas jurídicos é que podem surgir
custos que não são devidos à culpa de ninguém, mas ainda assim devem ser
arcados por alguém.

21
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Ligando os Pontos
O código da lei foi concebido para fornecer uma punição
específica para cada delito possível — a missão da comissão de
condenação dos EUA levada ao enésimo grau. Apesar do
tamanho e dos detalhes do código, ele falhou em fazê-lo. As
lacunas poderiam ser preenchidas por interpolação, com
veredictos do tribunal assumindo uma forma como “o crime é
semelhante a XYZ, para o qual a punição especificada no
código é o exílio perpétuo a uma distância de 2.500 Li da
província natal do infrator, mas um pouco menos grave. O réu é
condenado por analogia ao exílio a uma distância de 2.000 li.”25
Onde o delito não pudesse ser enquadrado em nenhuma
categoria do código, o tribunal poderia considerar o réu culpado
de fazer o que não deveria ser feito26 ou de violar um decreto
imperial — não um decreto real, mas um que o imperador teria

25“Da inviabilidade de prever todas as contingências possíveis, pode haver


casos a que não se apliquem com precisão leis ou estatutos; tais casos podem
então ser determinados, por uma comparação precisa com outros que já
foram previstos e que se aproximam mais daqueles sob investigação, a fim de
determinar posteriormente até que ponto um agravamento ou atenuação da
punição seria equitativo. (Staunton 1810, 43).
26“Quem praticar conduta imprópria e contrária ao espírito das leis, ainda que

não infrinja artigo específico, será punido, no mínimo, com 40 chicotadas; e


quando a impropriedade for de natureza grave, com 80 golpes.” (Staunton
1810, 419). “Em todos os casos de fazer o que não deveria ser feito, os
infratores serão punidos com 40 golpes de bastão leve. […] Se as
circunstâncias forem graves, a penalidade será de 80 golpes com o bastão
pesado.” (Artigo 410 do código Ming, Jiang 2005, 221).

22
Direito Imperial Chinês

feito se o assunto tivesse sido trazido à sua atenção.27 A


suposição subjacente era que as pessoas devem distinguir o
certo do errado sem a ajuda do código legal, que o imperador, e
por delegação de seus funcionários, tinha poder ilimitado,
portanto, era apropriado punir aqueles que cometeram erros,
mesmo que a ausência de uma regra legal específica contra o
que eles fizeram levantasse dificuldades para determinar a
punição apropriada.
Outro problema levantado por um código de leis que tenta
um mapeamento completo do crime à punição é que pode haver
casos em que a punição prescrita pelo código é claramente
muito dura para o que realmente ocorreu, onde o crime se
encaixa na letra, mas não no espírito da lei. Um exemplo pode
ser uma morte que, de acordo com a lei, exigia pena capital, mas
foi devida a um acidente envolvendo nenhuma culpa da pessoa
considerada responsável. Uma solução era considerar o infrator
culpado de um crime capital, mas permitir que a pena fosse
comutada por uma multa.28

27Ao longo de linhas um tanto semelhantes na common law anglo-americana,


“por uma construção equitativa, um caso que não está dentro da letra do
estatuto é às vezes considerado dentro do significado, porque está dentro do
dano para o qual um remédio é fornecido. […] A fim de formar um
julgamento correto se um caso está dentro da equidade de um estatuto, é uma
boa maneira supor que o legislador esteja presente e que você fez a ele esta
pergunta, você pretendia compreender este caso? Citado em Hart e Sacks
1994, 82, de Bacon’s Abridgment (Estatutos I, 5).
28Vários exemplos aparecem em Alabaster 1899, como o caso de Kao Ch'i-

kang na página 280.

23
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A Estrutura da Autoridade
A figura-chave na burocracia que governava a China era o
magistrado distrital. A população de seu distrito podia variar de
80.000 a mais de 250.000; o magistrado funcionava como o
único representante da autoridade imperial, uma combinação de
prefeito, chefe de polícia e juiz. Ele se qualificou para o cargo
com bom desempenho primeiro no teste para o serviço público e
depois em cargos administrativos de nível inferior. Ele era
auxiliado por uma equipe de funcionários, alguns de seus
próprios funcionários que se mudaram com ele de um lugar para
outro, alguns permanentemente localizados no distrito.
Um risco de colocar tanto poder em um par de mãos era
que os magistrados poderiam tirar proveito de sua posição para
construir apoio local e, assim, converter o império, em teoria
uma burocracia centralizada, em um sistema feudal de facto,
como tendia a acontecer na períodos de ruptura entre dinastias.
As precauções para evitar isso incluíam proibir um magistrado
de ser designado para qualquer distrito dentro de sua província
natal ou dentro de 165 milhas de seu distrito natal,29 mudar
magistrados de distrito para distrito a cada poucos anos e proibir
um magistrado de se casar com uma mulher de seu distrito ou
possuir terras nele. Além disso, o fato de o código legal
especificar em detalhes a punição devida para cada delito
restringia o arbítrio do magistrado e, portanto, limitava seu
poder.30

29Watt 1972, 20.


30“O juiz em questões criminais não tem latitude nominal. Ele deve
determinar quais são os fatos e com qual artigo do Código esses fatos
concordam. O Código, então, constitui por si só uma barreira inexpugnável a
qualquer expansão de autoridade [...].” (Alabaster 1899, LXIII).

24
Direito Imperial Chinês

O Império Otomano tinha uma abordagem um tanto


semelhante ao problema de manter o controle central. Depois de
conquistar o território, o padrão usual era nomear os membros
sobreviventes da dinastia derrotada como governantes locais em
alguma parte distante do império. O conhecimento de que a
derrota não privaria os perdedores da vida, riqueza ou status de
elite reduzia o incentivo para resistir à conquista, e um
governador sem laços locais dependia do sultão para sua
autoridade, portanto, provavelmente seria leal.
Como precaução final no sistema chinês, havia um
departamento da burocracia imperial, o censorado, encarregado
de investigar as más ações dos funcionários. Os funcionários
eram escolhidos entre aqueles que se saíam extraordinariamente
bem nos testes imperiais. Os censores eram escolhidos entre
aqueles que se saíam ainda melhor.

O Sistema de Testes: Um Enigma


Funcionários, incluindo magistrados, eram em grande
parte, mas não inteiramente, selecionados entre aqueles que
haviam passado com sucesso por uma série de testes ferozmente
competitivos.31 O primeiro nível dava a classificação de
licenciado, que carregava consigo status e o direito de fazer os
testes do segundo nível. A aprovação no segundo (“provincial”)
oferecia uma chance significativa de eventual nomeação para o
cargo, bem como a oportunidade de prestar o teste de terceiro
nível (“metropolitano”). Passar no terceiro nível era quase uma
garantia de nomeação oficial.

31Havia também caminhos indiretos pelo sistema incluindo, em alguns


momentos, a possibilidade de comprar classificação em vez de ganhá-la nos
exames. Para um relato muito mais detalhado, veja Watt 1972.

25
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

No início da dinastia final, havia cerca de meio milhão de


licenciados em uma população de várias centenas de milhões,
apenas cerca de 18.000 pessoas que alcançaram o próximo
nível. O exame provincial que separou os dois grupos teve uma
taxa de aprovação de cerca de um por cento. Era oferecido a
cada três anos e podia ser, e muitas vezes era, prestado várias
vezes. O exame metropolitano produzia de 200 a 300 diplomas
de até 8.000 candidatos a cada vez que era aplicado. Enquanto
alguns candidatos excepcionalmente talentosos conseguiram
passar antes dos vinte e cinco anos, a maioria estava na casa dos
trinta, alguns mais velhos.
Os exames não avaliavam a capacidade administrativa, o
conhecimento da lei, a perícia na resolução de crimes ou outras
habilidades com qualquer ligação óbvia com o cargo de
magistrado distrital ou a maioria dos outros cargos para os quais
os exames ofereciam qualificação.32

O conteúdo dos exames provinciais apresentava um


desafio exigente, especialmente para o noviciado. Seu
programa exigia composições sobre temas dos quatro
textos centrais do cânone neoconfucionista e mais cinco
ou mais clássicos, dissertações estendidas sobre os
clássicos, história e assuntos contemporâneos,
composição de versos e, em vários momentos, a
capacidade de escrever declarações e despachos
administrativos formais. Para ter esperança de sucesso, o
candidato deve ter lido amplamente a extensa literatura
histórica, digerido completamente os clássicos,
desenvolvido uma caligrafia fluente e dominado vários
estilos poéticos. Acima de tudo, ele deveria ter dominado

32Uma exceção era a capacidade de escrever declarações e despachos


administrativos formais.

26
Direito Imperial Chinês

o estilo de ensaio, conhecido como o ensaio de “oito


pernas” de seu formato de oito seções, que era o produto
peculiar do sistema de testes. (Watt 1972, 24-25)

Isso levanta uma questão óbvia: por quê? Por que exigir
que os homens mais capazes da sociedade passem um longo
período de tempo, muitas vezes décadas, estudando para passar
nos testes, em vez de aplicar suas habilidades para administrar o
império? Por que testar um conjunto de habilidades com pouca
conexão óbvia com os trabalhos que esses homens deveriam
fazer?
Uma explicação possível é que os exames eram
equivalentes a testes de QI, projetados para selecionar os
membros mais intelectualmente capazes (e diligentes) da
população para o serviço do governo. Mas é difícil acreditar que
não houvesse uma maneira menos dispendiosa de fazê-lo ou
nenhuma abordagem semelhante que tivesse testado habilidades
mais relevantes.
Uma explicação mais interessante enfoca o conteúdo do
que eles estavam estudando — literatura e filosofia
confucionista. Há duas características que se gostaria que os
funcionários tivessem. Uma delas é a capacidade de fazer um
bom trabalho. A outra é o desejo de fazer um bom trabalho —
em vez de encher os bolsos com subornos ou negligenciar os
deveres públicos em favor de prazeres privados. Pode-se
interpretar o sistema de testes como um exercício maciço de
doutrinação, treinando as pessoas em um conjunto de crenças
que implicava que o trabalho dos funcionários do governo era
cuidar bem das pessoas para as quais foram designados, ao
mesmo tempo em que eram adequadamente obedientes às
pessoas que os supervisionavam. Aqueles que internalizaram

27
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

totalmente esse modo de pensar seriam mais capazes de exibi-la


no contexto de alta pressão dos testes.
O conflito entre os confucionistas e os legalistas, pelo
menos conforme apresentado pelos primeiros, era em grande
parte sobre como levar as pessoas a fazer o bem em vez do mal.
A solução legalista consistia em incentivos, organizando o
mundo de modo que o bem fosse recompensado e o mal não o
fosse. A solução confucionista era educação e exemplo, fazendo
as pessoas quererem ser boas e ensinando-as como ser. O
imperador confucionista ideal nunca puniria ninguém por nada,
apenas daria um exemplo de comportamento virtuoso tão
perfeito que inspiraria todos abaixo dele. Visto desse ponto de
vista, fazia algum sentido estabelecer um sistema destinado a
produzir bons homens, colocá-los no poder e depois deixá-los
em paz.
Embora essa explicação se encaixe na teoria
confucionista, ela é inconsistente com a prática do estado
confucionista. No sistema como realmente existia, o crime era
inibido não pelo exemplo moral, mas por um elaborado sistema
penal. A mesma abordagem foi aplicada ao controle de
funcionários. Eles estavam sujeitos a regras detalhadas que
determinavam e avaliavam seu desempenho, com ameaças de
punições que iam desde uma marca negra em seu registro até
demissão e açoitamento.33
Talvez a seleção de oficiais não fosse o objetivo principal
do sistema. A julgar pelas taxas de aprovação no exame, para

33Watt (1972) descreve a situação na dinastia final em detalhes, mas parece


claro que a supervisão dos magistrados do centro remontava a muito antes.
Os estatutos Qing traduzidos por Staunton fornecem punições não apenas
para má conduta oficial deliberada, mas também para erros não intencionais,
assim como os estatutos Ming traduzidos por Jiang Yonglin.

28
Direito Imperial Chinês

cada aluno que avança o suficiente no sistema para ter uma


chance significativa de emprego, um grande número,
possivelmente várias centenas, estudava e falhava no primeiro
ou no segundo estágio. Alguém poderia interpretar isso como
um sistema para garantir que uma fração significativa da
população, particularmente de suas classes altas, fosse
doutrinada na ideologia confucionista.34

Vivo e Bem
Pode ter ocorrido a você que a China Imperial não é a
única sociedade cujos membros de elite são esperados a se
qualificar para cargos de alto status estudando e passando em
exames sobre assuntos que têm pouco ou nada a ver com os
cargos para os quais estão se qualificando. Pode até ter ocorrido
a você que você mesmo fez, talvez esteja fazendo atualmente,
quase exatamente a mesma coisa.
Na América moderna, um requisito a ser considerado para
a maioria dos melhores empregos, tanto no governo quanto no
setor privado, é um diploma universitário. Parte do que um
estudante universitário estuda e é testado pode ser relevante para
o trabalho para o qual ele se candidata, mas muito disso, no caso
de muitos empregos, não é. Nem a história americana, nem
Shakespeare, nem a geometria têm muita utilidade no trabalho

34No início do período Qing, havia cerca de meio milhão de licenciados,


outras 350.000 pessoas que compraram o direito de prestar os exames
provinciais e, portanto, presumivelmente estudaram para passar neles, para
um total de quase um milhão de pessoas que chegaram tão longe através do
sistema. Eu não vi nenhum número sobre a fração daqueles que fizeram o
primeiro exame, mas isso sugere que pelo menos um milhão de pessoas,
talvez vários milhões, dedicaram tempo e esforço substanciais ao estudo dos
clássicos confucianos. (Watt 1972, 24).

29
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

diário de um advogado, médico ou contador. Geometria e


álgebra serão úteis para um engenheiro, mas literatura, história
da arte e sociologia provavelmente não. No entanto, os alunos
que planejam seguir para esses empregos provavelmente
passaram boa parte de seu tempo nessas aulas, e suas
oportunidades de trabalho dependerão em parte das notas que
obtiveram nelas. O mesmo é, em um grau significativo,
verdadeiro também para as turmas do ensino médio.
Há evidências estatísticas abundantes de que alguém com
um diploma, em média, ganha substancialmente mais do que
alguém sem ele. Não está claro o porquê. Existem três teorias
populares, correspondendo pelo menos vagamente às teorias que
ofereci para o sistema chinês.
Uma delas é a teoria do capital humano, a ideia de que
uma educação universitária ensina coisas úteis. O problema com
essa explicação é que muito, sem dúvida a maior parte, do que
os estudos de pós-graduação típicos são irrelevantes para o
trabalho que ele acaba fazendo. Um outro problema é que há
uma boa quantidade de evidências indicando que muitos alunos
se formam na faculdade sabendo pouco mais do que sabiam
quando entraram. Como quase todo professor universitário já
deve ter observado, muitos alunos memorizam tudo o que
precisam para passar no exame final e depois esquecem a maior
parte o mais rápido possível.
Uma segunda teoria é a sinalização. Ao se formar na
faculdade, um aluno demonstra a possíveis empregadores que é
suficientemente inteligente e trabalhador, suficientemente
obediente às exigências de seus professores para executá-las.
Ele pode não estar mais qualificado do que antes, mas tem mais
evidências de suas qualificações. O problema com essa teoria é
que deveria haver maneiras muito menos dispendiosas de gerar

30
Direito Imperial Chinês

a mesma evidência. No que diz respeito à inteligência, alguns


dias de testes devem bastar. Para autodisciplina, vontade de
trabalhar, alguns anos de emprego produtivo devem fornecer
pelo menos tanta evidência.
Isso nos deixa com uma teoria final: doutrinação. A
reivindicação de uma educação em artes liberais é que ela
transforma o aluno em um homem educado, o tipo de pessoa
que leu Shakespeare, conhece as datas da conquista normanda e
da Guerra Civil americana, pode pelo menos fingir familiaridade
com as ideias de Adam Smith e Karl Marx, Aristóteles e Kant.
Por que os empregadores desejam essas características, no
entanto, é menos claro do que as razões pelas quais o imperador
chinês desejaria subordinados doutrinados na filosofia
confucionista.35
O sistema de exame Imperial está vivo e bem. Na
América.

Apelações e Acusações
Uma sentença de bambu poderia ser imposta pelo
magistrado distrital, mas deveria ser relatada um nível acima à
prefeitura e poderia ser apelada ao governador provincial. Os
casos que levaram a uma sentença de servidão penal eram
investigados pelo magistrado distrital, relatados à prefeitura,
decididos em nível provincial com o veredicto confirmado pelo
governador provincial e, em seguida, relatados em outro nível
até o conselho de punições em Pequim que, se insatisfeito com o
veredicto, poderia enviar o caso de volta para novo julgamento.
35Os leitores interessados no enigma da educação americana podem encontrar
uma breve introdução, com links úteis, em
https://www.econlib.org/archives/2015/04/educational_sig_1.html, uma
apresentação mais longa em Caplan 2018.

31
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Um caso de homicídio não capital foi tratado de forma


semelhante, exceto que o veredicto final foi do conselho. Os
casos capitais eram revisados pelo conselho, julgados em um
nível ainda mais alto pelos três Tribunais Superiores e exigiam a
confirmação do imperador, assim como qualquer caso
envolvendo um funcionário. Dado o tamanho da população e a
existência de apenas um imperador, a implicação é que os casos
nas duas últimas categorias eram raros36 ou que a maior parte do
que era nominalmente feito pelo imperador era de fato feita por
sua equipe. Possivelmente, o mecanismo de confirmação de
veredictos em um nível superior foi projetado para possibilitar o
ajuste fino de um sistema que, no Código, especificava uma
punição específica para cada delito.37
Um indivíduo privado poderia apelar de um veredicto para
um tribunal superior apresentando uma acusação que o tribunal
inferior havia se recusado a considerar ou protestando contra sua
decisão. O apelador estava sujeito a punição se fosse julgado
que não havia esgotado todas as opções de nível inferior ou feito
uma falsa acusação. Em um caso incluído em Law in Imperial
China, o tribunal considerou válida a acusação de um réu contra
o qual as acusações haviam sido rejeitadas, mas puniu o
36Dados da antiga dinastia Yuan sugerem que as execuções normalmente
ocorriam a uma taxa de apenas cerca de cem por ano. (Ch'en 1979, 44-45).
37“O procedimento para todos os casos, exceto os mais graves, foi retirado do

curso normal, e uma área foi aberta na qual apenas os altos funcionários da
província e do governo central gozavam de poderes mais amplos de arbítrio
por meio de classificação e poderiam aconselhar legalmente o imperador
sobre como reduzir a punição de forma rotineira. Aparentemente, a face da
lei foi salva dessa maneira, e os princípios sobre os quais o sistema foi
construído não foram infringidos.” (Meijer 1984, 15). “Mas deve-se sempre
ter em mente que poucas dessas sentenças são realmente executadas, pois em
quase todos os casos uma sentença capital deve, antes de ser executada, ser
submetida ao Conselho de Pequim para revisão.” (Alabaster 1899, LXVI).

32
Direito Imperial Chinês

acusador com muito mais severidade do que o acusado. O réu,


um médico cujo tratamento incorreto resultou na morte de seu
paciente, foi condenado a estrangulamento após os assizes, pena
então comutada para o pagamento de 12,45 onças de prata.38 O
acusador, pai da vítima, foi condenado a cem golpes de bambu
pesado por ter “adornado os fatos” em sua acusação. Em outro
caso, um tribunal superior concluiu que os tribunais inferiores
estavam deliberadamente interpretando mal uma lei para punir
aqueles que apelavam seus veredictos. Ambos os casos sugerem
que a oportunidade de apelar das decisões pode ter existido mais
na teoria do que na prática.

O Estado e a Família: Subcontratando a


Aplicação
Na lei Qing, como na lei das dinastias anteriores, as
consequências legais dependiam em parte do status das partes,
ambos status absoluto — as regras para funcionários do governo
e manchus39 eram diferentes das regras para plebeus comuns e,
por sua vez, diferentes das regras para grupos de status
especialmente baixo — e posição relativa dentro da família
estendida. Todos os parentes eram classificados como sêniores
ou juniores entre si. Para dois indivíduos no mesmo nível da
árvore genealógica, como irmãos ou primos de primeiro grau, o
parente sênior era o mais velho. Para dois indivíduos em níveis
38De acordo com Bodde e Morris, o salário de um funcionário do governo era
de pouco menos de uma onça por dia.
39Os manchus eram nômades que invadiram a China e estabeleceram a

dinastia manchu (Qing). Os descendentes dos invasores foram organizados


em oito regimentos, “bandeiras”, cuja filiação era hereditária. Havia também
oito bandeiras de mongóis e oito de chineses, descendentes daqueles que
haviam apoiado as conquistas manchus.

33
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

diferentes, como primos de primeiro grau afastados ou


tio/sobrinho, o sênior era aquele no nível mais alto da árvore;
um tio era sênior ao sobrinho, mesmo que o sobrinho fosse mais
velho.40 A proximidade da relação era definida pelas regras que
determinavam por quanto tempo alguém era obrigado a lamentar
a morte de um parente, o que dependia da relação — mais longo
para um dos pais, mais curta à medida que a relação se tornava
mais distante.41 O status do parentesco, por sua vez, afetava as
penalidades. Para um delito cometido por um parente júnior
contra um parente sênior, as penas eram aumentadas; para um
delito cometido por um parente sênior contra um júnior,
diminuídas.42
É comum incluir entre os crimes de políticas opressivas
forçar os filhos a delatar seus pais. A China Imperial tinha
precisamente a abordagem oposta. Era uma infração penal uma
criança acusar seu pai de um crime, mesmo que o pai fosse

40Um sistema de senioridade fornece uma maneira simples de classificar os


indivíduos. Um exemplo familiar em nossa sociedade é a antiguidade no
status do trabalho, com os funcionários menos seniores demitidos primeiro.
Um exemplo histórico é fornecido pela marinha britânica, onde a senioridade
de um capitão datava de receber o posto. Se dois ou mais navios comandados
por capitães estivessem trabalhando juntos, o comando do esquadrão ia para
o capitão sênior.
41Os detalhes da descrição aqui são baseados na prática Qing, embora o

padrão pareça datar da dinastia Han.


42“Em todos os casos de ataque e agressão, que ocorrem entre parentes do

mesmo nome, mas não dentro dos graus para os quais o luto é imposto, uma
distinção deve ser feita entre o júnior e o sênior; e o golpe desferido por um
júnior deve, portanto, ser punido um grau a mais, e aquele desferido por um
sênior um grau menos severo, do que um mesmo delito teria sido em casos
comuns entre iguais.” (Staunton 1810, 343).

34
Direito Imperial Chinês

culpado, uma infração capital se ele fosse inocente.43 Sob os


Han, a primeira dinastia confucionista,

Se um filho denunciasse o crime de seu pai às


autoridades, ele receberia a mesma punição que seu pai
porque o filho carecia de piedade filial e o pai de
reverência ao governo.44

Como algumas outras características do sistema jurídico, o


tratamento das relações dentro da família extensa pode ser visto
como uma expressão da ideologia confucionista45 ou como uma
característica de design funcional. Em meados do século XIX,
os Qing contavam com uma pequena burocracia de oficiais
43“Um filho acusando seu pai ou sua mãe; um neto seu avô ou avó paternos,
uma esposa principal ou inferior, seu marido, ou pai ou mãe de seu marido,
avô ou avó paternos, serão, em cada caso, punidos com 100 golpes e três
anos de banimento, mesmo que a acusação se prove verdade: os indivíduos
assim acusados por seus parentes, se se renderem voluntariamente e se
confessarem culpados, também terão, em cada caso, direito ao perdão. Em
qualquer um dos casos acima, se a acusação for parcial ou totalmente falsa, o
acusador morrerá por estrangulamento.” (Staunton 1810, 371-2).
Essencialmente, a mesma regra aparece na lei Ming (Jiang 2005, 198).
Houve, no entanto, algumas exceções, como para “aqueles que justamente
acusam seus parentes de traição, rebelião, ocultação de criminosos e
supressão ou transigência de qualquer um dos maiores crimes contra o
estado”. (Staunton 1810, 372) A regra não se aplicava na direção oposta.
“Um pai acusando falsamente seu filho; avô ou avó paternos ou maternos,
seu neto, ou esposa principal ou inferior do neto; um marido, sua esposa
inferior, ou um mestre, seu escravo ou empregado contratado, não serão, em
nenhum caso, puníveis. (Staunton 1810, 373).
44Windrow 2006, 277-278.
45O Duque de She disse ao Mestre Kong: “Na minha terra natal, existe um

homem apelidado de Corpo Correto. Quando seu pai roubou uma ovelha, ele
testemunhou contra ele.” Mestre Kong disse: “Na minha terra natal, as
pessoas corretas são diferentes deste homem: o pai esconde o filho e o filho
esconde o pai. A retidão está aí.” (Confúcio 1997 13:18, 136).

35
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

acadêmicos de elite para governar uma população de cerca de


quatrocentos milhões.46 Uma maneira de fazer isso era
subcontratar o máximo possível do trabalho para estruturas de
autoridade, como a família estendida.47 O viés das penalidades
criminais em favor dos membros mais antigos da família
reforçou a estrutura de autoridade familiar. Proibir as crianças
de denunciar seus pais eliminou uma ameaça que poderia ser
usada para miná-la.
Outras características do sistema jurídico serviram a
propósitos semelhantes. A desobediência repetida de uma
criança a seus pais poderia ser punida com o exílio. Era previsto
em lei que um pai pudesse bater em seu filho ou um marido em
sua esposa. Se espancar uma criança resultasse em sua morte e
não houvesse desculpa para espancar, a punição era um ano de
servidão penal. Se o espancamento fosse de um filho
desobediente, mas excessivamente severo, a penalidade era de
cem golpes de bambu pesado.48 Não havia punição para um
espancamento razoável de um filho desobediente que resultasse
em morte. Em alguns períodos, um pai podia obter aprovação
oficial para matar um filho desobediente.
Dois incidentes por volta do século XIII ou XIV ilustram a
tensão entre os requisitos da autoridade imperial e familiar:

Um membro da família, Hsu Kung-chu, estava sendo


levado ao escritório do magistrado para ser punido por
cometer incesto com sua sobrinha. O chefe tsu [patriarca

46Os funcionários eram auxiliados por escriturários e mensageiros, mas o


número de tais que o governo estava disposto a autorizar e pagar era
estritamente limitado.
47Havia também guildas comerciais.
48Esta foi uma punição nominal, convertida em uma punição real de 40

golpes.

36
Direito Imperial Chinês

da família] reconheceu que a natureza pública dos


procedimentos oficiais traria vergonha para a família,
então ele ordenou que Kung-chu fosse jogado no rio onde
ele se afogou. No entanto, o chefe tsu foi punido pelas
autoridades por assassinato.49

Em outro caso do mesmo período chegou-se a um


resultado diferente:

O filho mais velho de Wang ch'i, Wang ch'ao-tung


odiava seu irmão mais novo. Ao mesmo tempo, o
primeiro perseguiu o último, com faca na mão. O pai
pegou Wang ch'ao-tung, amarrou suas mãos e o
repreendeu. O filho respondeu de volta. Isso irritou tanto
Wang Ch'i que ele enterrou seu filho vivo.50 Ele foi
condenado pelo general de Chi-lin por matar seu filho de
forma desumana depois que o filho desobedeceu às
instruções. Mas o Ministro da Justiça sustentou que,
como o filho que repreendia o pai era punido com a
morte, o caso não deveria ser considerado no artigo que
tratava de uma criança que foi morta por desobedecer a
instruções. Como resultado, Wang Ch'i ficou impune.

Havia sérias penalidades por matar uma criança sem justa


causa, mas um marido que matasse sua esposa porque ela havia
batido ou insultado seus pais recebia apenas 100 golpes de
bambu pesado. A única reserva do tribunal nesses casos parece
ter sido a incerteza sobre se os pais estavam dizendo a verdade
ou mentindo para proteger o filho da pena por matar

49Chu 1961, 39. Nessas passagens e em outros lugares, uso a transliteração


das fontes que cito. No sistema atual (pinyin), “Hsu Kung-chu” seria “Xu
Gongzhu”, “tsu” seria “zu”, com mudanças semelhantes para outros nomes e
palavras.
50Chu 1961, 24.

37
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

arbitrariamente a esposa, que era nominalmente capital —


estrangulamento após os assizes.
Tanto no contexto familiar quanto em outros contextos,
levar alguém a cometer suicídio era tratado como um delito
grave.51 Um filho que levasse seus pais ao suicídio por roubo ou
atos de torpeza estava sujeito a estrangulamento imediato, uma
pena capital real, e não apenas nominal. Se o furto ou ato de
torpeza moral tivesse sido cometido por ordem dos pais, a pena
era reduzida para três anos de servidão penal. A desobediência
aos superiores familiares era um delito, o fato de um delito ter
sido cometido sob ordens de um superior familiar poderia, mas

51Para uma atitude semelhante em uma sociedade moderna, considere o caso


de 2010 de Tyler Clementi, que cometeu suicídio depois que seu colega de
quarto Dharun Ravi e outro aluno usaram uma webcam no computador do
colega de quarto para ver um encontro homossexual entre Clementi e outro
homem. Embora não houvesse evidências claras de que a espionagem foi a
causa do suicídio de Clementi, o incidente resultou em protestos públicos
prolongados, declarações públicas do presidente Obama e de outras figuras
do governo, legislação nos níveis estadual e federal e propostas online para
acusar os dois estudantes com homicídio culposo. Ravi foi indiciado por uma
série de acusações e condenado a 30 dias de prisão, 3 anos de liberdade
condicional, 300 horas de serviço comunitário, multa de $10.000 e
aconselhamento sobre cyberbullying e estilos de vida alternativos.

38
Direito Imperial Chinês

nem sempre, reduzir a punição.52 Esperava-se que um inferior


obedecesse às ordens de um superior para cometer um ato ilegal,
mas poderia ainda ser responsável por cometê-lo, sujeito a duas
estruturas de autoridade diferentes, familiar e legal, com
penalidades por desobedecer a qualquer uma delas, mesmo que
não houvesse como obedecer a ambas.
Outra forma de lidar com a desproporção entre a
população a ser controlada pelo sistema legal e os recursos
exigidos por esse sistema era desestimular o recurso à lei. Uma
maneira de fazer isso era tratar a maior parte da prática privada
do direito como criminosa. Os praticantes, “bastões de
processo”, eram vistos como encrenqueiros dispostos a provocar
conflitos desnecessários. Esperava-se que os indivíduos que
desejassem ajuda com seus problemas jurídicos a obtivessem do
52De acordo com a tradução de Staunton dos estatutos:

Quando várias pessoas são participantes de um delito, o autor


original do mesmo será considerado o principal e, como tal,
sofrerá a punição exigida pelas leis, em toda a sua extensão: os
demais que seguiram e também contribuíram para a
perpetração do mesmo, sofrerão a punição em grau seguinte,
sob a denominação de cúmplices. — Quando as participantes
no delito forem membros de uma mesma família, só o membro
sênior e chefe dessa família será punido; mas se ele tiver mais
de oitenta anos de idade, ou totalmente incapacitado por suas
enfermidades, a punição recairá sobre o próximo na sucessão.
Quando, porém, o delito for lesão direta à pessoa ou à
propriedade de qualquer indivíduo, os vários indivíduos serão,
como em todos os casos ordinários, punidos como principais
ou cúmplices na forma anteriormente indicada. (Staunton
1810, 32-33).

Para o equivalente Ming, veja Jiang 2005, 40. Exemplos onde a punição é
reduzida porque o ofensor estava agindo sob a autoridade de um superior são
dados em Alabaster 1899, 33 e 37-8. Bodde e Morris (1967, 385-388)
descrevem um caso em que dois membros de uma família afogam um
terceiro sob as ordens de um membro sênior e são condenados à decapitação
após os assizes. Isso viria sob a exceção que eu coloquei em itálico.

39
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

magistrado distrital e de sua equipe.53 Outra forma de


desencorajar o processo era tornando o envolvimento com o
sistema jurídico desagradável para todos os envolvidos.54 Era
permitido por lei torturar as testemunhas no processo de extrair
informações delas. Esperava-se que os participantes do processo
legal agissem como peticionários humildes, reconhecendo o
status muito superior dos funcionários com quem estavam
interagindo.
53Aatitude é sugerida por uma passagem de um caso do século XI incluído
em uma coleção do século XIII:

Shen K'uo diz em seu Pi-t'an: 'As pessoas em Kiangsi adoram


processos judiciais. Eles têm um livro chamado Teng-szu-
hsien que consiste inteiramente em modelos de documentos
usados em litígios. Começa ensinando como desacreditar as
pessoas por meio de documentos escritos. Se alguém não pode
prendê-los com isso, deve tentar tirar o melhor deles por
engano e calúnia. E se esse método também falhar, deve-se
induzi-los a cometer um delito e depois intimidá-los. (Van
Gulik 2007, 150).

Bodde e Morris (1967, 526-7) descrevem dois casos em que fornecer ou


oferecer aconselhamento jurídico foi severamente punido, apesar das
atividades não se enquadrarem nos termos do estatuto (“trapaceiros de
processos habituais que conspiram com funcionários do governo, enganam
camponeses ignorantes, ou praticam intimidação ou fraude”). Bernhardt e
Huang (1994) argumentam que os “trapaceiros de processos” forneciam
valiosos serviços jurídicos aos camponeses, mas que os magistrados os viam
como a fonte de sua sobrecarga de casos e alegavam que muitos dos casos
pelos quais foram responsáveis eram falsos.
54“Na maioria dos casos, os julgamentos eram pronunciados no local na

sessão do tribunal perante os litigantes prostrados.” (Bernhardt e Huang


1994, 154). Para imagens fictícias vívidas da interação, consulte os livros do
Juiz Dee, ficção policial de Van Gulik ambientada na China antiga. Aqui,
novamente, há um paralelo com o direito romano: “O processo deve ser
evitado como a peste”, aconselhava Cícero, mesmo quando a lei estava do
seu lado. (du Plessis 1015, 63).

40
Direito Imperial Chinês

Gritado e insultado pelo magistrado, rosnado e espancado


pelos policiais, a posição do acusado era realmente muito
desfavorável. Não é de admirar que ter que comparecer
ao tribunal fosse considerado pelo povo em geral como
um terrível infortúnio, uma experiência a ser evitada se
possível. […] Em geral, as pessoas tentavam resolver
suas diferenças tanto quanto possível fora do tribunal,
fazendo um acordo ou encaminhando o caso a um dos
antigos órgãos de justiça privada, por exemplo, o
conselho da família — ou os anciãos do clã, ou os líderes
de uma guilda.55
A lei era uma dor de cabeça para qualquer
magistrado situado como juiz. Entre o público, era
geralmente ruinosa para todos os envolvidos. As taxas
pagas aos mensageiros do yamen [apanhadores de
criminosos] podem levar tanto o autor quanto o réu à
falência. Consequentemente, o processo desempenhou
um papel bastante pequeno na sociedade chinesa dos
Qing. Editos imperiais até exortavam a população a
evitar os tribunais, em vez de se amontoar neles. O
preconceito contra ir a tribunal estendeu-se àqueles que
55Van Gulik 2007, 57-8. Allee, no entanto, relata, com base em casos do
Taiwan no século XIX, que “homens e mulheres ocasionalmente recorreram
aos tribunais para obter reparação quando sentiram que não havia outro
recurso ou quando outras opções pareciam menos prováveis de dar frutos”.
(Allee 1994, 147). De acordo com Bernhardt e Huang, o processo sobre
conflitos menores era comum, apesar das tentativas dos magistrados distritais
de desencorajá-lo, às vezes resultando em um grande acúmulo de casos. “Era
uma presunção comum em toda a sociedade Fujian que as disputas dos
litigantes não seriam automaticamente aceitas para resolução nos tribunais
oficiais.” (1994, 94), “Os juízes geralmente preferem que os casos civis
sejam resolvidos fora do tribunal. Isso pode implicar a recusa de aceitar uma
petição por razões técnicas […]. Às vezes, uma petição era recusada porque
não era adequado que a disputa específica em questão fosse transmitida em
público.” (1994, 139).

41
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

escreveram petições. Eles foram condenados por


fomentar processos. A profissão de jurídica não foi
reconhecida nesta terra sem advogados. Acima de tudo, a
lei era vista como um esteio das relações pessoais que
deveriam prevalecer na família e na linhagem. A lei
expressava as normas sociais confucionistas. Quando elas
estavam sendo devidamente observadas, o recurso à lei
deveria ser desnecessário.56

Tornar onerosa a interação com o sistema legal reduzia a


quantidade de trabalho exigida da burocracia, mas arriscava dar
a um indivíduo a oportunidade de ferir um inimigo acusando-o
de um delito. Se a acusação fosse considerada falsa, o acusador
estava sujeito à pena que teria sido imposta ao acusado se fosse
considerado culpado, risco que poderia ser evitado fazendo a
denúncia anonimamente. Esse problema foi tratado de forma
direta pela lei Qing: para um funcionário agir em uma acusação
anônima era uma ofensa criminal, para um indivíduo apresentar
uma acusação anônima uma ofensa capital.57 Sob um imperador,

56Fairbanks 1971, 24.


57“Qualquer pessoa que dirija e apresente uma informação e denúncia a um
oficial do governo, contendo acusações criminais diretas contra um indivíduo
em particular, sem ter inserido nela seu (do informante) nome próprio e
sobrenome, deverá, apesar das acusações se provarem verdadeiras, ser
punido com a morte, sendo estrangulado no período habitual. Sempre que
qualquer informação ou reclamação anônima for descoberta, será
imediatamente queimada ou destruída de outra forma; e se aquele que
acidentalmente encontrar tal documento, em vez de fazê-lo, apresentá-lo a
um magistrado ou a algum outro funcionário do governo, será punido com 80
golpes. Qualquer funcionário do governo que, no entanto, se encarregar de
agir sobre tais informações e reclamações anônimas, será punido com 100
golpes; […]” (Staunton 1810, 360). Essencialmente, a mesma regra aparece
no código Ming. (Jiang 2005, 193).

42
Direito Imperial Chinês

uma exceção foi feita para questões de grave preocupação para o


estado. No próximo, a exceção foi removida.58

Entre Civil e Criminal


Aquilo a que me referirei como casos civis eram, para os
tribunais chineses, apenas “assuntos menores” tratados
com procedimentos que diferiam apenas ligeiramente
daqueles usados em casos criminais.59

As fontes secundárias mais antigas que examinei pela


primeira vez retratam o sistema jurídico como inteiramente
criminoso, sem nenhum procedimento pelo qual uma parte
prejudicada possa entrar com uma ação. Isso refletia com
precisão a maneira como o sistema legal era visto pela elite
confucionista e retratado nos casos decididos em alto nível e
relatados. Mas quando os registros de casos de nível inferior se
tornaram disponíveis, eles mostraram um sistema criminoso na
forma, mas em um grau considerável civil na substância ao lidar
com o que considerava assuntos menores: terra, dívida,
casamento e herança.

58Bodde e Morris 1967, 189.


59Allee 1994, 5. Staunton fez praticamente o mesmo ponto duzentos anos
antes:

de fato, não há vestígios de tal distinção, como a de civil e


criminal, na jurisprudência dos chineses; mas é provável que,
como as causas que podem ser denominadas civis, sejam,
devido à posse ordinária da propriedade e outras
circunstâncias, de importância comparativamente pequena na
China, elas não são necessariamente submetidas à decisão dos
tribunais superiores e, portanto, geralmente falando, decidida
pelos oficiais dos distritos em que tais disputas se originam.
(Staunton 1810, 360n.)

43
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Considere, por exemplo, a obrigação de um devedor. O


estatuto relevante60 começou limitando a taxa legal de juros a
três por cento ao mês e estabelecendo a penalidade criminal para
o credor que a excedesse. O estatuto passou a exigir que o
devedor pagasse sua dívida e estabelecia as penalidades para
quem não o fizesse. Um credor que acusasse um devedor de
estar inadimplente estava acusando-o perante o magistrado de
violar essa parte do estatuto.
Se o magistrado considerasse a acusação válida,61 ele
exigiria que o devedor concordasse em pagar, renunciando
generosamente à punição criminal pela violação e, da mesma
forma, para outras disputas “menores”. Um devedor que não
concordasse em pagar poderia ser punido.62
O caso ainda era criminal na forma. As partes não tinham,
como em um processo civil moderno, o direito de encerrá-lo por
meio de um acordo extrajudicial. Eles poderiam, no entanto,
pedir humildemente ao magistrado que cancelasse a audiência.
Ele estava livre para recusar, mas, com uma agenda pesada de
casos não resolvidos, era improvável que o fizesse. A maioria
das disputas nas aldeias foi resolvida por mediação informal,
não envolvendo o tribunal ou barganha depois que as acusações

60No código Ming, artigo 168, parágrafo 4 (Jiang 2005, 105-6).


61A acusação tinha de ser feita de forma adequada. De acordo com Allee:
“Em circunstâncias em que o processo era indesejável ou existia uma
alternativa melhor, como a mediação externa, essa opinião foi anotada e a
petição rejeitada. A primeira petição da Sra. Zhou [...] não foi aceita por esse
motivo. Aceitar seu processo contra os irmãos de seu marido seria
‘prejudicial à tranquilidade’. O tribunal considerou que parentes de linhagem
não diretamente envolvidos deveriam mediar.” (Allee 1994, 160.)
62Veja Huang (1996, 106) para exemplos de subestatutos aplicando o direito

civil enterrados em estatutos nominalmente criminais.

44
Direito Imperial Chinês

foram apresentadas ao tribunal e o magistrado as comentou, mas


antes da sessão do tribunal.63
Um padrão semelhante se aplica a outros delitos menores,
ou seja, civis. O estatuto de divisão das propriedades da família
entre os filhos proibia isso enquanto os pais estivessem vivos.
Um subestatuto permitia isso com a permissão dos pais. A
prática habitual de divisão igualitária apareceu apenas no meio
de um subestatuto de outro estatuto que ostensivamente tratava
de uma questão diferente. Outros subestatutos implicavam a
aplicação de contratos, de direitos de propriedade sobre a terra,
de regras relativas ao casamento.64
Uma diferença entre o tratamento de casos civis nos
sistemas jurídicos ocidentais e o tratamento de assuntos menores
na lei imperial aparece em uma mudança na interpretação da lei
quando, no início do século XX, a dinastia final foi substituída
pela República Chinesa. O código legal imperial foi, em sua
maior parte, mantido inalterado. Os tribunais locais continuaram
a governar como antes. Mas a Suprema Corte, influenciada pelo
direito ocidental, tratou casos menores como disputas civis entre
as partes.
Um exemplo discutido em detalhes por Bernhardt foi o
procedimento para nomear um herdeiro para um homem que
morreu sem descendência masculina. A decisão, tanto sob a lei
imperial quanto republicana, foi tomada pela viúva e pelos
parentes do homem. O herdeiro tinha que ser parente do morto
da mesma geração que seu filho teria sido. Se nenhum parente
63Huang 1996, 13.
64“Apesar da ideologia oficial de poder absoluto para o governante e sua
administração, que nos levou à impressão de arbitrariedade, na prática o
sistema jurídico Qing protegia rotineiramente as reivindicações legítimas de
litigantes comuns a propriedade, contratos, herança e apoio à velhice."
(Huang 1996, 235.)

45
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

adequado estivesse disponível, um candidato com o mesmo


sobrenome, presumivelmente um parente distante, poderia ser
substituído.
Houve casos na República em que a viúva escolheu um
herdeiro que não preenchia esses requisitos e um dos parentes se
opôs. Um tribunal local confrontado com tal caso removeria o
herdeiro nomeado. Mas quando o caso foi apelado para a
Suprema Corte, se nem o autor nem seu filho ou neto fossem
qualificados como herdeiros, o tribunal decidiria contra o autor
por falta de legitimidade. Isso deixou a escolha da viúva em
vigor, embora o tribunal reconhecesse que ele não atendia aos
requisitos legais.
Como um tribunal americano moderno julgando um caso
de tort, a Suprema Corte estava fazendo justiça apenas entre as
partes. Um magistrado imperial, com visão mais ampla de suas
obrigações, teria providenciado a substituição do herdeiro
escolhido pela viúva por outro que cumprisse os requisitos
legais. Um magistrado imperial lidando com uma disputa de
propriedade suficientemente emaranhada pode resolvê-la
concedendo a donidade a nenhuma das partes, convertendo a
terra em propriedade do estado com sua renda dedicada a
alguma boa causa, como manter uma escola. Seu trabalho era
fazer justiça. O queixoso era apenas a pessoa que levara um caso
de injustiça à sua atenção.

Contrato sem Lei


Em 1895, como parte do Tratado de Shimonoseki, a China
cedeu a ilha de Taiwan ao Japão. O governo japonês desejava
manter o sistema legal existente. Para isso tinha que descobrir o
que ele era. Uma comissão acadêmica foi estabelecida. Seu

46
Direito Imperial Chinês

relatório nos fornece um retrato detalhado do sistema legal de


uma província da China Imperial no final de sua última
dinastia.65
Uma característica desse sistema era a combinação de
práticas contratuais elaboradas com uma quase total ausência de
direito contratual, pelo menos no nível imperial.66 O código
continha apenas um punhado de disposições que tratavam de
questões contratuais, algumas das quais, como o estatuto

65“A principal publicação na área de direito consuetudinário foi Taiwan


Shiho [o Direito Privado do Taiwan] (1910), uma obra de seis volumes que
reimprimiu e analisou documentos pertencentes ao direito fundiário, direito
familiar, propriedade pessoal e direito comercial […] volumes de materiais
de referência […].” (Brockman 1980, 130n1.)
66“Dos 346 estatutos do Código, apenas oito tratavam do que se costuma

chamar de direito comercial.” (Brockman 1980, 85). “As disposições do


Código relativas ao Direito Mercantil são singularmente poucas em número e
estreitas em alcance, e os casos publicados sobre o assunto não são muito
numerosos. (Alabaster 1899, 541). Por outro lado, Allee aponta que: “O
Código Qing, por exemplo, não fez nenhuma menção a contratos. […] Se
mudarmos nosso foco da legislação sancionada pelo governo central, a lei
pode ser considerada menos distante do comércio. Os compêndios dos
regulamentos do governo provincial são uma fonte de lei que merece um
exame mais aprofundado a esse respeito. Os de Fujian incluem amostras ou
modelos para vários tipos de contratos, bem como numerosas disposições
que regulam as transações comerciais.” (Allee 1994, 313n9). Fujian é a
província que incluía Taiwan, o que sugere que Brockman pode ter
subestimado o grau em que o sistema legal apoiava a prática contratual. Mas
nenhum dos casos discutidos por Allee, incluindo um que envolveu a divisão
de propriedade familiar e dependia de contratos escritos, mostra a decisão do
tribunal em termos de quaisquer regulamentos comerciais detalhados. O
tribunal tentou transferir a disputa para a arbitragem da família estendida e,
na falta disso, encontrar uma solução pacífica para o conflito, mesmo que
envolvesse elementos, como um pequeno pagamento a alguém sem uma boa
reivindicação legal, não justificada pela lei. (Allee 1994, capítulo 6).

47
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

especificando uma taxa de juros máxima, parecem ter sido


ignoradas na prática.
Estruturas hierárquicas não estatais forneciam um
mecanismo possível para resolver disputas contratuais dentro da
família, clã ou guilda. Mas os comerciantes em Taiwan se
envolveram em negócios extensos em larga escala que
abrangem todas essas categorias, comprando produtos agrícolas
a granel para enviar através do estreito para venda no
continente, importando produtos do continente para Taiwan e
muito mais.
O problema de resolver disputas comerciais fora dos
tribunais estatais foi resolvido na Europa medieval em parte
pelo desenvolvimento de tribunais privados nas principais feiras
comerciais, dirigidos por comerciantes e contando fortemente
com imposição reputacional.67 Nenhum equivalente parece ter
se desenvolvido na China, talvez devido à hostilidade imperial a
qualquer autoridade rival. Havia corretores e agentes marítimos
que funcionavam como intermediários entre compradores e
vendedores, mas eram oficialmente nomeados e mantinham
registros das transações em nome do governo. Era uma infração
penal desempenhar seu papel sem autorização do governo.68
No entanto, os comerciantes chineses desenvolveram um
conjunto elaborado de formas contratuais, incluindo uma
variedade de contratos de forma, dando suporte a uma extensa e
sofisticada rede de relações comerciais. Parte da explicação de
como eles fizeram isso foi presumivelmente a necessidade de
manter a reputação de uma empresa, parte da disponibilidade de
tribunais estaduais para lidar, quando tudo mais falhou, com
partes envolvidas em violações deliberadas e óbvias. Mas
67Benson 1998.
68Bernhardt e Huang 1994, 59-60.

48
Direito Imperial Chinês

grande parte da explicação está nos detalhes do direito


contratual privado que se desenvolveu dentro dessa estrutura —
um sistema de regras destinado a minimizar a dependência de
tribunais e de aplicação externa.
Um exemplo foi a regra que chamamos de caveat emptor.
Sob quaisquer circunstâncias, exceto fraude explícita — barras
de ouro que se revelaram ser chumbo folheado a ouro, por
exemplo —, um comerciante que aceitasse a entrega de
mercadorias não tinha recurso se elas fossem defeituosas. Outra
era a ligação entre posse, donidade e responsabilidade. As
mercadorias em meu depósito eram minhas, estivessem ou não
prestes a se tornar suas, e eu assumi o risco de qualquer dano
que ocorresse a elas.69 As regras parecem ter sido elaboradas,
sempre que possível, para permitir que uma perda ocorra onde
ela se aplica, eliminando a necessidade de ação legal para mudá-
la.
Surgem problemas com tal sistema se rescindir um
contrato e deixar tudo na posse de quem quer que o possua no
momento for vantajoso para uma das partes, uma situação que
encoraja a violação oportunista. Uma solução é reelaborar o
contrato de modo que o desempenho das duas partes esteja mais
próximo da sincronização, reduzindo o incentivo de qualquer
uma das partes a infringi-lo. Uma alternativa é confiar na
imposição reputacional, estruturando o contrato de forma que o
incentivo à quebra, se ocorrer, provavelmente recairá sobre a
parte que sofreria penalidades reputacionais pela violação.
Um exemplo no caso chinês são os contratos de compra
futura de mercadorias a um preço pré-estabelecido. Tais
contratos não eram considerados vinculativos até que houvesse
69Houve algumas exceções — mais notavelmente para uma tinturaria que
teria tecido para ser tingido.

49
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

pelo menos cumprimento parcial por uma das partes.


Normalmente, isso consistia em um depósito pago
antecipadamente pelo comprador. Ao ajustar o tamanho do
depósito, as partes poderiam levar em conta tanto o quão grande
o incentivo do vendedor para violar poderia se tornar,
dependendo do intervalo de prováveis mudanças de preço entre
a formação do contrato e a entrega, e quanto cada parte foi
obrigada a manter no negócio por reputação.
O comprador que violasse perdia seu depósito, resultado
que não exigia intervenção judicial, uma vez que o depósito
estava em posse do vendedor. Isso deixou um problema óbvio
— um vendedor que violou, mas manteve o depósito.
Presumivelmente, isso era impedido por alguma combinação de
reputação e a ameaça de que tal ato obviamente criminoso
forneceria ao comprador motivos suficientes para ir ao tribunal.
Elementos importantes para fazer o sistema funcionar
foram a existência de um sistema de
formulários escritos usando
terminologia padronizada compreendida
pelas partes e outros no comércio e o
uso de selos — chops — para fornecer
evidência clara de concordância com
um contrato. Desde que questões de fato
fossem simples, como se um
carregamento de grãos havia sido entregue e
aceito, mas não qual era sua qualidade exata,
isso tornava possível a terceiros determinar a
baixo custo qual parte de um contrato violou
seus termos. O terceiro pode ser outro
comerciante interessado em saber em quem se
pode confiar ou, em casos extremos, um magistrado distrital

50
Direito Imperial Chinês

interessado em saber quem cometeu um crime e deve ser punido


em conformidade.
Quaisquer que sejam os mecanismos responsáveis,70 os
comerciantes chineses, há mais de um século, conseguiram
manter um sofisticado sistema de contratos com pouco uso da
imposição estatal.

70Leitores
interessados podem encontrar um relato mais detalhado em
Brockman 1980.

51
Direito Cigano

2
Direito Cigano
O número total de romani, mais comumente conhecidos
como ciganos, é estimado em torno de três a quinze milhões.1 Se
os estudos atuais estiverem corretos, eles são descendentes de
uma população que deixou o norte da Índia há cerca de mil
anos.2 Eles aparecem pela primeira vez na história da Europa
Ocidental no século XV, na corte do Sacro Imperador Romano
Sigismundo, alegando serem do Pequeno Egito, na Grécia, em
peregrinação como penitência pelo abandono temporário do
cristianismo por seus antepassados.3 Vários relatos os

1
Weyrauch 2001, 28.
2
Ian Hancock (2010, capítulo 5) ofereceu uma engenhosa, embora um tanto
especulativa, história de detetive linguístico, deduzindo a história anterior à
chegada à Europa Ocidental do vocabulário cigano. Ele argumenta que o
grupo que originalmente deixou a Índia não eram agricultores e tinham
alguma conexão militar, uma vez que as palavras de relevância militar são
derivadas de línguas indianas, enquanto as palavras relevantes para a
agricultura são emprestadas de outras línguas, presumivelmente pegas no
caminho. Ele data sua partida da Índia em não antes do século XI, quando as
línguas indianas perderam seu gênero neutro, uma vez que os dialetos
ciganos não têm neutro e atribuem gênero a palavras que anteriormente eram
neutras no mesmo padrão que as línguas indianas. Mendizbata et. (2012), no
entanto, argumentam sobre a base de evidências genéticas para uma partida
da Índia por volta de 500 d.C.
3
Possivelmente a origem de "egípcio" e, portanto, "cigano [gypsy]" como
rótulos para os rom, embora outras explicações também tenham sido
oferecidas. "Pequeno Egito" pode ter sido uma região no Peloponeso
chamada Modon, governada por Veneza, onde havia uma comunidade
cigana. Alternativamente, poderia ter sido uma referência à Ásia Menor.

53
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

descrevem como viajando pela Europa com cartas de salvo-


conduto de Sigismundo dando-lhes autonomia judicial, o direito
de serem punidos apenas por suas próprias autoridades.
As cartas podem ter sido falsificações criadas por seus
portadores para protegê-las das autoridades policiais locais, mas
não precisam ter sido. Sistemas polilegais, sistemas em que
diferentes pessoas no mesmo país estavam sob diferentes
autoridades legais, existiam na Europa medieval e renascentista.
O status das comunidades judaicas na diáspora, discutido no
Capítulo 4, é um exemplo; o sistema de milheto do Império
Otomano é outro. É possível que os ciganos do século XV
tenham persuadido Sigismundo de que eles tinham direito a um
tratamento semelhante.
Quer os ciganos do século XV tenham ou não obtido uma
concessão de autonomia judicial de jure de um imperador do
século XV, as comunidades ciganas ao longo dos séculos têm
sido surpreendentemente bem sucedidas em manter a autonomia
de facto, permanecendo abaixo do radar do sistema legal oficial,
impondo suas próprias regras aos seus próprios membros.4

Ciganos x 3: Vlach Rom, Romnichal, Kalle


Ao longo dos mil anos desde que deixaram a Índia, os
ciganos se dividiram em várias comunidades, cada uma com
suas próprias instituições. Muitos falam variantes de sua língua
original contendo palavras emprestadas das terras pelas quais
viajaram; os diferentes dialetos nem sempre são mutuamente
compreensíveis. Outros falam um dialeto da língua local não-
romani, como inglês ou espanhol, com palavras emprestadas do
4
Marushiakova e Popov (2007, 76) descreve os ciganos na Moldávia no
século XVIII como tendo um grau considerável de autonomia legal.

54
Direito Cigano

romani. As regras que diferentes comunidades impõem a si


mesmas e os mecanismos pelos quais elas as aplicam são de
certa forma semelhantes, e de certa forma diferentes.
Começarei com os vlach rom, os descendentes dos ciganos
feitos de servos por quatro séculos na Romênia, e depois
descreverei as instituições um pouco diferentes dos romnichals,
o maior dos grupos ciganos britânicos, e dos kalle, os ciganos
finlandeses.

Vlach Rom
Depois que a servidão foi abolida na Romênia no século
XIX, muitos dos vlach rom emigraram. Seus descendentes estão
agora espalhados por todo o mundo, compondo a maior
população cigana. Minha principal fonte de informação sobre
eles é um livro de Anne Sutherland baseado em suas interações
com vlach rom americanos durante um período que terminou em
outubro de 1970, durante nove meses nos quais ela foi diretora
de uma escola cigana em Richmond, Califórnia. Embora suas
observações fossem de rom americanos, grande parte de sua
descrição provavelmente se aplica a grupos de vlach rom em
outros lugares; e uma parte dela, a outros grupos ciganos.5

Estrutura Social
A unidade básica é a familia: um casal, seus filhos adultos,
noras, filhas solteiras e netos. Acima da familia está a vitsa, um
grupo de parentesco maior, descendente de um ancestral de
algumas gerações atrás. Um indivíduo pode optar por ser

5
Outra fonte valiosa é Ronald Lee, um autor e ativista cigano canadense. A
imagem que ele dá dos ciganos canadenses é amplamente consistente com a
de Sutherland dos ciganos da Califórnia.

55
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

considerado parte da vitsa do pai ou da mãe; uma mulher pode


optar por se identificar com a vitsa de seu marido. Acima da
vitsa está a Natsiya, nação. Os vlach rom são divididos em
quatro natsiya: Machwaya, Lowara, Kalderasha e Churara.
O casamento é por compra, um pagamento da família do
noivo para a família da noiva. Os pagamentos são substanciais,
tipicamente vários milhares de dólares a partir de 1970. Embora
o consentimento dos noivos seja necessário, cabe aos pais de um
homem encontrar uma esposa e negociar com os pais dela. A
esposa mora na familia de seu marido; nos primeiros anos do
casamento, espera-se que ela faça grande parte do trabalho da
casa. À medida que ela produz filhos, seu status na casa
aumenta gradualmente. Seus pais mantêm a capacidade de
cancelar o casamento e recuperar sua filha; o desacordo sobre
quanto, se houver, do preço da noiva deve ser devolvido é uma
fonte frequente de conflito. O termo cigano para a nora, bori, é
usado não apenas pelos pais de seu marido, mas também por
outros membros da casa deles — ela é seu bori.
Familia, Vitsa e Natsiya são todas estruturas de
parentesco. A unidade geográfica acima da Familia é a
kumpania. O significado original parece ter sido o de um
acampamento, um grupo de famílias acampando juntas. No
contexto americano moderno, descreve uma unidade como o
assentamento cigano em Richmond. Uma Kumpania geralmente
tem um Rom Baro, um "Grande Homem", que desempenha um
papel importante nas interações tanto com autoridades, como a
polícia e o departamento de bem-estar, quanto entre os rom.
Uma Kumpania pode consistir em famílias de uma única
vitsa, com famílias de outras vitsa não sendo bem-vindas. Pode
conter núcleos familiares de várias vitsa, caso em que o seu líder
será provavelmente a figura principal de qualquer vitsa que

56
Direito Cigano

tenha mais núcleos familiares. Pode ser uma Kumpania fechada,


o que significa que as famílias ciganas precisam de permissão
para se mudar, provavelmente com base na associação vitsa e
parentesco com aqueles que já estão lá, ou pode ser uma aberta.
As restrições à entrada são tipicamente impostas pela influência
do Rom Baro junto das autoridades locais. Uma família
indesejada pode ser denunciada à polícia por crimes que
cometeu ou não, e ao departamento de bem estar por violações
que, de outra forma, não seriam relatadas. As restrições à
entrada servem, em parte, para proteger os residentes atuais
contra a concorrência em atividades de geração de renda, como
a adivinhação.

Sistema Legal
Romania, o sistema de regras, pode ser agrupado em duas
categorias. Uma consiste em regras jurídicas ordinárias que
abrangem as obrigações dos ciganos uns para com os outros,
incluindo extensas obrigações de ajuda mútua; especialmente,
mas não exclusivamente, entre parentes. Se um membro da
kumpania precisar de cuidados médicos e não puder pagar,
espera-se que outros membros façam uma arrecadação para isso.
Se houver uma festa para um dia de santos, um funeral, ou
alguma ocasião semelhante, é provável que seja financiado por
uma arrecadação semelhante. Se uma família empobrecida
chega a uma kumpania, presume-se que alguém irá alimentá-los
e fornecer-lhes um lugar para ficar.
As obrigações se aplicam aos companheiros rom, e não
aos de fora, os Gaje. Enganar ou roubar de um companheiro

57
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

cigano é uma ofensa a ser tratada e incomum,6 a fraude ou roubo


de um estranho é um assunto da Romania apenas na medida em
que cria problemas para outros rom. "Eles roubam demais, são
pegos demais e geralmente estragam uma área para os outros.”7
Como Sutherland explica, na língua cigana:

Rom refere-se a um homem cigano individual em


particular e romni a uma mulher cigana. Gadjo refere-se
a um homem que não é um cigano e gadji a uma mulher
não cigana. Não há palavra para todos os homens e
mulheres. Os seres humanos ou são Roma ou gadje.
(Sutherland 2017, p. 9)

É apenas um leve exagero dizer que os ciganos vêem a


população não cigana não como parte de sua sociedade, mas
como parte de seu ambiente. Ciganos de outras comunidades,
como os romnichals, têm um status um tanto ambíguo entre
Rom e Gaje.

6
De acordo com relatos de observadores, os ciganos raramente trapaceiam ou
roubam de seus companheiros ciganos. Veja fontes citadas em Leeson (2013,
284).
7
Sutherland (1975, 200), relatando sobre a visão de alto status que Vlach
Rom tinha de um grupo de baixo status. “Staley e Janet [uma funcionária do
bem-estar local] trabalharam juntas para que a comunidade parasse de furtar.
Eles haviam encontrado um lugar onde queriam ficar, e Staley e os outros
dois líderes, John Davis e George Lee, garantiram que ninguém infringisse a
lei. Qualquer um que o fizesse tinha que deixar a cidade.” (Sutherland 2017,
6). Para uma abordagem semelhante dos muçulmanos xiitas modernos:
“Q197: É permitido a um muçulmano roubar dos incrédulos em seu país
[Europa] ou enganá-los ao tomar suas propriedades, empregando meios que
são conhecidos por eles (os incrédulos)?" A: “Não é permitido roubar de suas
propriedades privadas e públicas, e da mesma forma danificá-las ou destruí-
las (propriedades), se isso manchar a reputação do Islã e dos muçulmanos em
geral.” (al-Seestani 2014). A resposta continua com restrições adicionais.

58
Direito Cigano

Marushiakova e Popov, que fizeram uma extensa pesquisa


entre as populações europeias de vlach rom, descrevem dois
casos em que um grupo de ciganos agiu de uma forma que
ofendeu os habitantes locais e depois partiu; os habitantes locais
responderam punindo um segundo grupo de ciganos pelas
ofensas do primeiro. A resposta do segundo grupo foi
reivindicar indenizações por meio de um kris, um tribunal
cigano, das partes responsáveis — não dos moradores locais que
os atacaram, mas do primeiro grupo de ciganos.8
A segunda categoria coberta pelo Romania é um sistema
elaborado de pureza e poluição, um judaísmo ortodoxo com
esteroides.9 Seu princípio central é que o corpo humano é limpo
da cintura para cima, impuro da cintura para baixo. Uma
consequência das regras é que diferentes banheiras de lavagem
devem ser usadas para roupas inferiores masculinas, roupas
superiores masculinas, roupas inferiores femininas, roupas
superiores femininas, roupas infantis e utensílios alimentares —
seis no total.10 O contato com o impuro é poluente — “marimé”
—, e a poluição é contagiosa. Alguém que está poluído verá
outros relutantes em se associar com ele, até mesmo em permitir
que ele toque em suas posses, fornecendo um mecanismo de
aplicação automática para as regras contra a poluição e um
incentivo para passar pelos rituais necessários para removê-la.
Assim, marimé é, na verdade, duas coisas: o estado de estar
poluído e o status de ostracismo devido a estar poluído.
Como a poluição é contagiosa e os Gaje não conhecem
nem seguem as regras para evitá-la, a associação com eles é
nitidamente limitada. Vlach rom na América, se têm que comer
8
Marushiakova e Popov 2007, 82
9
Para mais detalhes, veja Weyrauch 2001, 3-7, Hancock 2010, 105-113.
10
Sutherland 1975, 268. A descrição é dos vlach rom nos Estados Unidos.

59
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

em um ambiente não cigano, como um restaurante, preferem


pratos de papel; eles podem comer com os dedos em vez de
utensílios, por medo de que estes últimos possam estar poluídos.
A excreção e a reprodução, estando associadas à metade
inferior do corpo, são objeto de extensas regras e restrições.
Espera-se que uma mulher grávida coma sozinha, consuma
alimentos cozidos em suas próprias panelas e, após o parto,
destrua as roupas que usava durante a gravidez. Uma mulher
pode poluir um homem jogando saia — expondo seus órgãos
genitais —, obrigando a vítima a se envolver em procedimentos
dispendiosos de purificação. Crianças antes da puberdade e
idosos são vistos como puros, em grande parte livres das
restrições das regras de poluição.

Aplicação
Os mecanismos pelos quais as regras são aplicadas são a
disputa e a ameaça de ostracismo. Sutherland relata o caso de
uma rivalidade de John Marks, um de seus informantes:

Quando eu consegui uma [bori] para Danny [seu filho]


ela não dormia com ele como esposa, apenas como irmã.
Seu pai a havia incitado a fazer isso. Então entrei em
contato com o pai dela e disse que queria meu dinheiro
de volta. Ele disse que não, que eu estava tentando fazer
amor com minha nora, e se enganou ao dizer isso. Agora
eu sabia que ela havia cometido um crime antes e era
procurada por roubar $300 no bolso de um homem. Fui
até o xerife de lá e disse que a traria se ele trouxesse o pai
dela e lhe custasse muitos problemas e dinheiro. [...]

Da forma como Marks interpretou a situação, ele foi


vítima de uma fraude, uma tentativa de vender uma filha e
depois recuperá-la sem reembolsar o dinheiro. Ele estava

60
Direito Cigano

particularmente irritado com a desculpa oferecida pelo pai, uma


vez que um homem fazer avanços na esposa de seu filho era
considerado uma ofensa muito séria. Ele retaliou com uma
abordagem comum nas disputas vlach vom, usando as
autoridades gaje para impor custos ao seu oponente.
Normalmente, as acusações, verdadeiras ou falsas, são retiradas
quando o oponente concede.
Em uma sociedade onde a renda e o poder dependem em
grande parte da capacidade de manipular tanto as autoridades
externas quanto os membros da comunidade, essa capacidade e
a capacidade de se defender contra ela são habilidades
importantes para a vida. Como Sutherland relata:

Os rom muitas vezes mentem uns para os outros sobre


assuntos cotidianos, mas quase sempre mentem para os
gaje. Não há nenhuma vergonha particular ligada a
mentir um para o outro (exceto em circunstâncias
específicas, como quando alguém jura na frente do
"público" em um kris, jura sobre um parente morto...),
mas mentir para os gaje é certamente um comportamento
correto e aceitável, e até mesmo o avô morto de alguém
pode perdoar um juramento quebrado nesta circunstância.
Consequentemente, desde o início, decidi verificar
cruzadamente três vezes todas as informações que recebi,
não importa o quão trivial ou sem importância possa
parecer. Eu poderia desafiar várias pessoas em momentos
diferentes com a mesma informação ou tentar histórias
alternativas para testar suas reações, e geralmente as
contradições poderiam ser resolvidas e a solução mais
plausível obtida. [...] A maioria das pessoas estavam pelo
menos desatualizadas sobre as mentiras de outras pessoas
e, dessa forma, eventualmente, a maioria das coisas
vazou. [...]

61
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Minha técnica de verificação cruzada era ainda


mais aceitável uma vez que os rom empregam as mesmas
táticas uns com os outros. Eles raramente aceitavam uma
declaração minha ou de qualquer outro rom sem algum
tipo de corroboração de outra pessoa. Quando
"apanhados" desta forma, nunca vi ninguém mostrar
constrangimento. Eles gostavam quando uma boa história
era colocada sobre eles tanto quanto gostavam de colocar
uma sobre outra pessoa.

Quando uma das partes de um conflito é incapaz de forçar


a outra a ceder, uma abordagem alternativa é o afastamento. Os
ciganos são, por tradição, uma cultura nômade; mesmo aqueles
com um endereço fixo, como os habitantes de Richmond,
provavelmente passarão grande parte do tempo na estrada. Uma
familia incapaz de resolver um conflito de uma forma aceitável
tem a opção de deixar a cidade e evitar todo o contato com seus
oponentes, pelo menos até que ambos os lados tenham se
acalmado.11
Outra opção, a eventualmente usada por John Marks para
resolver o conflito sobre a esposa de seu filho, é um kris
Romani, um tribunal cigano. Os detalhes de como o kris
funciona variam entre os relatos e, provavelmente, entre as
comunidades, incluindo até que ponto o juiz ou juízes produzem
um veredicto e até que ponto eles funcionam como presidentes,

11
“Em geral, a maneira mais aceita e comum de resolver qualquer problema
que surja entre duas famílias é que as famílias deixem a kumpania até que
possam voltar em paz.” (Sutherland 1975, 50).

62
Direito Cigano

presidindo uma discussão aberta.12 O Kris que John Marks


descreveu, um incomumente grande, tinha dois juízes,
selecionados por sua reputação, e um júri de vinte e cinco
participantes. Juízes e jurados foram escolhidos entre um
número muito maior de participantes, idealmente vindos de
todas as partes dos Estados Unidos e incluindo um homem e
uma esposa de cada vitsa.
O veredito do kris é imposto às partes da disputa, se
necessário executado pela ameaça de ostracismo através de uma
sentença de marimé. O ostracismo também pode ocorrer, com
ou sem procedimento judicial, em decorrência da poluição
decorrente de violação, mesmo involuntária, das restrições do
marimé. Uma familia da qual um membro violou as regras, por
exemplo, fugindo para trabalhar por um ano no mundo gaje,
pode ser declarada marimé por algum tempo.

Os rom dizem que marime significa ser "rejeitado" do


rom como um grupo e estar "sujo" ou poluído. Por
enquanto, é o sentimento de rejeição que é mais
relevante. Quando uma pessoa é declarada marime
publicamente, seja por um grupo de pessoas (como
famílias na kumpania) ou mais formalmente em um kris
romani (julgamento), a ela é imediatamente negada a
comensalidade com outros rom. Qualquer coisa que ela
usa, toca ou usa pessoalmente é poluído (marime) para
outros rom, e essa pessoa geralmente é evitada
12
Para descrições, veja Sutherland 1975, 134-137, 292-297 e Lee 1997. A
primeira fonte descreve um padrão com um juiz ou juízes, um júri e
observadores. Como Lee descreve, há um único juiz principal acordado pelas
partes, ele seleciona juízes assistentes; todos os homens adultos podem
participar, mas a decisão final é do juiz principal aconselhado pelos juízes
assistentes. Para uma discussão das sociedades ciganas na Europa Central e
Oriental com e sem o kris, veja Marushiakova e Popov 2007.

63
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

pessoalmente, pois sua condição de marime pode ser


transmitida a outros. Marime no sentido de "rejeitado"
das relações sociais com outros rom é a punição final na
sociedade, assim como a morte é a punição final em
outras sociedades. Durante o período que durar, o marime
é a morte social.13

O ostracismo é uma maneira pela qual um sistema legal


integrado, que existe sob o domínio de um estado com recursos
de coerção muito maiores do que a comunidade possui, pode
funcionar. Recusar-se a se associar com alguém não é ilegal, de
modo que a pena de marimé pode ser aplicada sem entrar em
conflito com a lei estadual.

Status

A idade está diretamente correlacionada com poder e


respeito — quanto mais velho fica, mais poder e respeito
se é dado. A pessoa mais velha da família, que ainda é
física e mentalmente capaz, será a autoridade final em
todos os assuntos e decisões familiares.14

Dentro da familia, os pais têm autoridade sobre seus filhos


e netos, e os maridos sobre suas esposas. Dentro da kumpania,
os sexos são em grande parte segregados, os homens interagindo
com homens, as mulheres com mulheres. As questões políticas
estão principalmente nas mãos dos homens, embora as mulheres
idosas também possam desempenhar um papel. Embora homens
e mulheres possam trazer dinheiro, as mulheres são vistas como
as principais ganhadoras, muitas vezes através da adivinhação,
os homens como seus assistentes.

13
Sutherland 1975, 98.
14
Sutherland 1975, 150.

64
Direito Cigano

Fora da estrutura familiar, os ciganos são marcantemente


relutantes em se envolver em relações hierárquicas. Homens que
trabalham juntos em grupos fazem isso como parceiros, não
como empregador/empregado. Quando os ciganos acham
necessário trabalhar para os gajes, colhendo colheitas, por
exemplo, eles o fazem como um mero trabalho por diária, e não
como funcionários de longo prazo.

Legislação
Romania é uma combinação de lei, religião e crença
médica — a violação traz sanções sociais, mas também má sorte
e problemas de saúde. Não está escrito, existindo na memória do
indivíduo cigano, especialmente na do velho — uma das fontes
de seu status. Não há legislatura. Mas é possível, embora
incomum, que uma grande reunião de ciganos concorde com
uma mudança e que o acordo seja geralmente aceito.

No outono de 1969, foi convocada uma reunião de todos


os vitsi e todos os natsiya representados em Los Angeles
para discutir as "novas regras" sobre as seguintes
questões: preço da noiva, informar às autoridades gaje
sobre as pessoas que invadem uma kumpania, e os tipos
de sentenças de marimé que serão eficazes. Um homem e
uma esposa de cada vitsa eram obrigados a estar
presentes, uma vez que as regras não poderiam ser
efetivas a menos que aceitas por todos.15

Romnichals
Os romnichals, a maior das comunidades ciganas
britânicas, falam um dialeto do inglês com muitas palavras

15
Sutherland 1975, 203.

65
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ciganas, praticam o casamento por fuga,16 e funcionam em


famílias nucleares. Eles não têm kris.17 Como os vlach rom, eles
aplicam suas regras através de disputas, embora de uma forma
um pouco diferente.
Um romnichal que acredita que seus direitos foram
violados responde exigindo, com ameaças de violência,
indenização. Ambas as partes sabem que, se os direitos,
conforme definidos pelas normas dessa comunidade, tiverem
sido violados, os amigos do violador estarão relutantes em
apoiá-lo, e os amigos da vítima estarão dispostos a apoiá-lo. Isso
torna do interesse do infrator culpado oferecer uma indenização
ou, se não quiser ou não puder fazê-lo, retirar-se da vizinhança
da vítima, tal como, mil anos antes, um islandês em risco de
proscrição por não pagar a multa que lhe foi imposta por um
tribunal poderia considerar do seu interesse deixar a Islândia.
Como acontece com qualquer sistema de disputas que funcione
bem, enquanto o incentivo para obedecer às leis ou normas é
fornecido pela ameaça de violência privada, a violência real é a
exceção, e não a regra.

Kaale
Os kaale, os ciganos finlandeses, uma pequena população
isolada durante séculos, levam a atitude vlach rom em relação à
metade inferior do corpo ainda mais longe do que outros
ciganos, recusando-se a admitir abertamente os fatos da

16
O casamento por fuga ocasionalmente ocorre entre os vlach rom, mas é
fortemente reprovado. Sutherland 1975, 230-234.
17
Este relato é baseado no capítulo 3 de Weyrauch 2001, escrito por Thomas
Acton, Susan Caffrey e Gary Mundy. Para o sistema de disputas islandês,
veja o capítulo 10.

66
Direito Cigano

reprodução humana.18 Eles não têm instituição de casamento.


Espera-se que os casais que desejam se reproduzir primeiro
deixem a casa de suas famílias, fujam longe o suficiente para
que os parentes da mulher não possam encontrá-la e recuperá-la,
e retornem apenas quando seu filho for desmamado e, portanto,
não exigir mais uma associação visível com sua mãe. Ao
retornar, espera-se que o pai mostre a humildade apropriada a
alguém que violou as normas de sua sociedade, enquanto as
mulheres da geração da mãe contrabandeiam mãe e filho para a
casa, onde se espera que a criança trate todas as mulheres da
geração de sua mãe como igualmente mães.
Um resultado da rejeição kaale da sexualidade é eliminar
muitos dos tabus associados a ela entre outros grupos ciganos.
Não pode haver restrições associadas à menstruação, uma vez
que aplicá-las exigiria o reconhecimento do fato da
menstruação, e similarmente com a gravidez. Uma mulher kaale
que vive na casa de seus parentes ou na casa dos parentes de seu
parceiro esconde o fato da gravidez até pouco antes do parto e
organiza para que seu filho nasça em algum lugar fora da casa
— nos tempos modernos, em uma maternidade.
Para a disputa dos kaale, a unidade relevante é a família, e
não, como entre os romnichals, o indivíduo. Todas as famílias
são consideradas pares e não existe nenhum mecanismo acima
da família para resolver pacificamente as disputas. O conflito
dentro da família é resolvido internamente, em uma sociedade
em que a autoridade está centrada nos anciãos do sexo
masculino. A violação das regras do marimé leva a uma perda
de status e honra pelo grupo cujo membro é responsável,
fornecendo um incentivo para prevenir tais violações pela
18
Este relato é baseado em pesquisas feitas por Marti Gronforss,
principalmente de 1976-8, e relatadas no capítulo 7 de Weyrauch 2001.

67
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

aplicação das regras dentro da família. O mesmo é verdade para


os vlach rom no nível da vitsa.
O conflito entre indivíduos de diferentes núcleos
familiares, se suficientemente grave, conduz a duelos entre as
partes sob regras projetadas para reduzir o risco de morte ou
ferimentos graves. Se a morte ou ferimentos graves ocorrerem, o
resultado é uma vendeta familiar entre os grupos de parentes das
partes. A disputa pode ser buscada por qualquer membro do
grupo cujo membro foi morto ou ferido, contra qualquer
membro do outro grupo, embora, na prática, seja improvável
que mulheres ou crianças sejam alvo, e o indivíduo responsável
no outro grupo seja particularmente provável de ser visado. A
retaliação bem-sucedida troca a posição dos dois grupos de
parentesco. Não há equivalente aos procedimentos judiciais ou
acordos arbitrados que encerraram as disputas islandesas.
Embora essas regras possam levar a uma sucessão de
assassinatos, na prática, a disputa assume principalmente a
forma não de violência, mas de afastamento — de todos os
membros de cada grupo de parentes por todos os membros do
outro.
Como estes exemplos demonstram, os diferentes grupos
ciganos têm muito em comum. O que à primeira vista parece ser
uma diferença de tipo é, muitas vezes, apenas uma diferença de
grau. Todos os três grupos têm regras semelhantes de poluição,
diferindo em detalhes. Os vlach rom podem resolver suas
questões em um kris, mas eles as conduzem, como as questões
dos kaale e romnichals, em grande parte na disputa. O
casamento por fuga é a norma para romnichals e, de forma mais
pronunciada, para os kaale, e casamento por compra entre os

68
Direito Cigano

vlach rom, mas a fuga também existe para eles como uma opção
desfavorecida.19

Explicando as Diferenças
Quais são as razões para as diferenças entre os diferentes
grupos ciganos, todos provenientes da mesma população e
cultura originais? Vários estudiosos propuseram teorias; não
está claro quais, se alguma, estão corretas.
Thomas Acton, Susan Caffrey e Gary Mundy, os autores
do Capítulo 3 de Gypsy Law, cujo relato do sistema romnichal é
refletido na minha descrição acima, oferecem uma explicação
conjectural das diferenças entre os romnichals e os vlach rom.
Eles argumentam que o sistema de disputas depende em parte da
capacidade, quando tudo o mais falha, de uma parte de se afastar
do outro e da questão deles; na ausência da possibilidade de
evitação, o risco de violência grave torna-se demasiado grande.
Os ciganos foram, durante a maior parte de sua história, uma
população migratória. Mas, eles argumentam, houve pelo menos
uma grande exceção, o período de quatro séculos durante o qual
os vlach rom foram feitos de servos na Romênia. A servidão
significava a perda de mobilidade. Eles concluem que o sistema
de disputas representa a instituição original, o kris e as
instituições associadas uma adaptação às circunstâncias
19
“Se o sogro o quebrar, não há muito que as crianças possam fazer sobre
isso, exceto alguns casos no passado, em que os filhos fugiram para se casar,
fugiram umas com as outras e se perderam por um ano de ambos os pais de
ambos os lados e fizeram um casamento.” “Eles podem ter que desaparecer
por um tempo até que as coisas esfriem e eles tenham tido um bebê. Quando
o primeiro bebê nasce, os Xanamik [pais e avós do casal] fazem um esforço
maior para aceitar o casamento." (Sutherland 2017, 14, 61. A primeira
citação é de cigano John Marks, a segunda de Sutherland).

69
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

especiais de servidão que surgem entre os vlach rom e baseadas


nas instituições do campesinato romeno.
É uma conjectura engenhosa, mas Marushiakova e Popov,
que estudaram uma variedade muito maior de grupos ciganos,
descobrem que o padrão não se sustenta:

Alguns autores analisaram as tradições matrimoniais dos


ciganos, que estão ligadas ao seu modo de vida.
Alegadamente, as duas possibilidades são (a) o estilo de
vida nômade + fuga = sistema de disputas de vingança
privada, ou (b) modo de vida estabelecido + casamentos
arranjados = kris (Acton, Caffrey e Mundy 2001: 89—
100; Acton 2003: 646). No entanto, nossos dados refutam
esse modelo e mostram que a realidade é muito mais
complicada, não permitindo conclusões tão simplificadas.
"[...] é certo que a maioria dos ciganos (mas não
todos) que são ou costumavam ser nômades têm ou
tiveram um tribunal cigano, enquanto o tribunal não é
conhecido entre os grupos ciganos permanentemente
estabelecidos.20

Marushiakova e Popov argumentam que a servidão na


Romênia não necessariamente entrou em conflito com o
nomadismo, minando a explicação de por que eles tiveram que
desenvolver o kris. Alguns ciganos estavam ligados à terra, mas
outros permaneceram móveis, devendo taxas anuais ao seu

20
Marushiakova e Popov (2007, 72), discutindo a observação dos grupos da
Europa Central e Oriental.

70
Direito Cigano

proprietário,21 mas com um grau considerável de ambas


liberdade e autonomia legal.22
Uma questão semelhante surge na diferença entre a
disputa praticada pelos romnichals e a disputa como praticada
pelos kaale — mais geralmente, entre o individualismo dos
romnichals e a sociedade baseada na família dos kaale. Martti
Gronförss, em cujo relato da mina de kaale é baseado, sugere
que o padrão de vendeta familiar dos kaale é uma das razões
para os kaale não se casarem. O acasalamento entre os kaale é
exogâmico, a união dentro da casa é estritamente proibida. O
reconhecimento de uma relação estável criada pela parceria
sexual e pela reprodução criaria laços de parentesco entre as
famílias, subvertendo instituições baseadas em famílias
autônomas e coiguais. Sob instituições de não-casamento, um
parceiro reside na casa dos parentes do outro como uma espécie
de estrangeiro residente. A vendeta familiar envolvendo a
família de um parceiro não diz respeito ao outro ou a seus
parentes, nem como participantes nem como alvos em potencial.
Se uma vendeta familiar surge entre as famílias dos parceiros, o
resultado é o corte imediato e completo da conexão entre eles,
com aquele que estava morando na casa dos parentes do outro
retornando à casa de seus próprios parentes.

21
Marushiakova e Popov 2007, 75-77. Veja também Fraser (1995, 50-51)
para instituições em outros lugares em que um senhor feudal tinha direito a
receitas dos ciganos locais.
22
“Considere, por exemplo, o decreto real do príncipe moldavo Michael
Sutsu, datado de 25 de março de 1793: ‘[...] todo tipo de briga entre eles [os
ciganos, os escravos do príncipe] e seu julgamento para dar e executar a
sentença está no poder de seus líderes, que devem encontrar a justiça de
acordo com seus próprios velhos costumes [sic], e os governadores e outros
dignitários não devem interferir, a menos que haja um caso de morte.’ (Potra
1939: 327—31).” (Marushiakova e Popov 2007, 76).

71
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Peter Leeson oferece uma explicação diferente das


diferenças entre os grupos ciganos, no seu caso entre os kaale e
os vlach rom.23 O sistema de aplicação da lei vlach rom depende
de uma característica crucial das regras do marimé: o contágio.
O fato do marimé ser contagioso faz com que seja do interesse
privado de cada rom individual evitar qualquer pessoa infectada
com ele. Isso torna menos provável que os membros da
sociedade quebrem barreiras para aproveitar as oportunidades de
interação com alguém que foi ostracizado.
Uma vez que todos os não rom são portadores de marimé,
o fato de que ele é contagioso também bloqueia a interação com
os não rom e, portanto, torna o rom individual dependente de
sua capacidade de se associar com seu companheiro rom.
Assim, o marimé contagioso resolve, para os vlach rom, alguns
dos problemas de impor regras de comportamento intra-rom. É,
no entanto, uma solução dispendiosa. Cada indivíduo deve ter o
cuidado de obedecer às elaboradas regras de poluição da
Romania. Cada indivíduo deve monitorar aqueles ao seu redor
para evitar associar-se com alguém que violou essas regras e
que, portanto, está poluído.
Há, argumenta Leeson, duas grandes fontes de conflito
intra-rom entre os vlach rom — relações matrimoniais, em
particular disputas sobre o retorno do preço da noiva quando um
casamento falha, e associações econômicas além da familia, a
família estendida. Nenhum dos dois existe entre os kaale. Sem
instituição de casamento não há questão de preço da noiva. Com
a interação econômica quase inteiramente dentro das famílias,
não entre elas, há poucas oportunidades para disputas entre as
famílias. A versão Kaale do marimé não é contagiosa e não pode
ser pega de não ciganos. Os homens kaale são livres para ter
23
Leeson 2013, 285-286.

72
Direito Cigano

relações sexuais com mulheres não ciganas e não têm obrigação


de escondê-las. Para o homem vlach rom, tais relações seriam
poluentes e admiti-las abertamente resultaria em ostracismo. Os
kaale, com menos necessidade de mecanismos para impor
regras fora da família, não têm instituição de kris.
Uma questão levantada pelo sistema marimé é até que
ponto ele é apoiado pela crença religiosa/mágica, até que ponto
é apoiado pela convenção. Na medida em que as pessoas
acreditam que a poluição traz má sorte e doenças, as regras são,
de fato, autoaplicáveis. Por outro lado:

Em privado, uma mulher pode passar por cima das


roupas de seu marido, passar na frente dele ou tocá-lo
com suas saias, mas ela teria muita vergonha de fazer
isso em público, e se ela caísse em sua conduta várias
vezes, seu marido correria o risco de se tornar marimé.24

Não é assim que você esperaria que os modernos


tratassem uma doença contagiosa. A mesma questão é levantada
por outras sociedades e sistemas jurídicos que analisaremos nos
capítulos posteriores. Lembre-se do comentário de George
Orwell de que "nunca, literalmente nunca, nos últimos anos,
conheci alguém que me deu a impressão de acreditar no
próximo mundo tão firmemente quanto ele acreditava na
existência, por exemplo, da Austrália".25

Estratégia Defensiva
Uma maneira pela qual um sistema integrado pode se
defender contra o sistema em que está integrado é usar o

24
Sutherland 1975, 266.
25
Orwell 1944, 122.

73
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

controle sobre a informação para substituir o controle sobre a


força física. Comecei este capítulo relatando uma série de
estimativas para a população mundial de ciganos. Que as
estimativas variam em quase uma ordem de magnitude não é um
acidente. Os ciganos não querem ser controlados pelos gaje. É
difícil controlar as pessoas se você não pode contá-las e é difícil
contar as pessoas quando não há uma correspondência entre
pessoa e nome.26 Os ciganos, pelo menos os vlach rom, o maior
e mais estudado grupo, tratam um nome usado para lidar com
pessoas de fora como fungível, pertencente à família estendida
para ser usado por qualquer membro que o considere útil. Por
essa tática e outras, os ciganos modernos tornaram difícil para
os estados que reivindicam autoridade sobre eles monitorá-los e
controlá-los.27 Isso pode explicar o fato de que, embora os
nazistas tenham almejado os ciganos tanto quanto os judeus para
o extermínio, eles parecem ter sido consideravelmente menos
bem-sucedidos no primeiro caso. Tanto o número total de
ciganos europeus quanto o número de mortos são incertos, mas
estima-se que cerca de três quartos dos ciganos sobreviveram.28

26
Para uma discussão muito mais extensa desta questão no contexto dos
problemas enfrentados pelos governos que tentam controlar as suas
populações, veja Scott 1998.
27
Para uma descrição mais detalhada das maneiras pelas quais as
comunidades ciganas restringem as informações sobre si mesmas e controle
sobre elas pelos estados em que vivem, veja Weyrauch 2001, 52-3. Para um
exemplo diferente de uma comunidade que aplica suas regras em violação da
lei estadual, às vezes por força letal, veja o relato de como os Khap
Panchayet, autoridades comunais, impõem regras conjugais restritivas entre
os Jat em Haryana, na Índia moderna, em Chaudhry 2014.
28
A Enciclopédia do Holocausto contém um relato detalhado do holocausto
cigano.

74
Direito Cigano

Logo ficou claro que essas são pessoas que, através de


séculos de experiência em evitar as perguntas curiosas de
pessoas de fora, aperfeiçoaram suas técnicas de evasão
para uma arte sem esforço. Eles se deleitam em enganar
os gajo, principalmente por uma boa razão, mas às vezes
apenas por diversão ou para manter a prática.29
O anonimato e a invisibilidade, combinados com o
intenso sigilo, são chaves para a capacidade dos rom de
se adaptarem e sobreviverem em uma cultura estrangeira.
A maioria não é registrada no nascimento, na escola, em
um censo ou em um conselho de alistamento militar. Fora
dos registros policiais e departamentos de previdência
social, eles não existem oficialmente. Mesmo quando
eles têm um nome oficialmente registrado, geralmente
não é o seu, e eles podem alegar ser mexicanos, indianos
ou qualquer outra coisa além de cigano.30

Essa abordagem tornou-se mais difícil à medida que


estados cada vez mais burocráticos têm feito esforços crescentes
para acompanhar seus residentes, aproveitando uma variedade
de tecnologias modernas.31

29
Sutherland 1975, 21.
30
Sutherland 1975, 26.
31
Sutherland 2017, 31.

75
3
Os Amish1
As comunidades amish não são relíquias de uma época
passada. Em vez disso, são demonstrações de uma forma
diferente de modernidade. (Hostetler 1980)

Os amish são uma seita protestante que se separou dos


anabatistas suíços no final do século XVII; a partir de meados
do século XVIII, muitos deles se estabeleceram na América. Ao
longo do século passado, sua população se expandiu
rapidamente, devido à combinação de alta taxa de natalidade,
medicina moderna e alta taxa de retenção; havia cerca de 5.000
Amish em 1920 e cerca de 249.000 em 2010.2 Eles são notáveis
por suas vestimentas modestas e sua rejeição seletiva de muitos
dos dispositivos da tecnologia moderna, como automóveis e
telefones. A opinião deles não é que a tecnologia moderna seja
profana, mas que algumas tecnologias específicas
provavelmente perturbarão seu sistema social e devem ser
rejeitadas por causa disso. Assim, os Amish usam dispositivos
movidos a bateria, mas se recusam a se conectar à rede elétrica,
permitem (em algumas afiliações) tratores, mas apenas se
tiverem rodas de metal em vez de borracha e, portanto, não
sejam adequados para o transporte rodoviário; em alguns casos,
usam enfardadeiras de feno elétricas arrastadas pelos campos em
carroças puxadas por cavalos.

1Este capítulo foi inspirado por um artigo sobre o assunto de Kelly Baxter,
escrito para meu seminário.
2Os números são para os amish da antiga ordem, da Wikipédia.

77
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Embora sujeitos, com algumas poucas exceções, às leis


dos Estados Unidos e do Canadá,3 os amish conseguiram manter
seus próprios sistemas de regras (Ordnung) e aplicá-los a seus
membros, em última análise, pela ameaça de excomunhão e
exclusão (Meidung). Os detalhes sobre quais tecnologias podem
ser usadas, e de qual maneira, dependem do Ordnung da
congregação em particular.

A Congregação
A unidade básica de uma comunidade amish é a
congregação, composta geralmente de vinte e cinco a quarenta
famílias; não há nível superior dentre tais congregações que
tenha autoridade sobre a congregação individual. Uma vez que
os amish não estão dispostos a construir igrejas ou casas de
reunião, o número de famílias em uma congregação é limitado
ao número que caberá em uma grande casa de fazenda ou num
celeiro.4 Cada congregação tem sua própria versão do Ordnung.
Algumas congregações adotam versões mais rígidas do Ordnung
e outras adotam versões menos rigorosas. As congregações
cujos Ordnungen são quase similarmente rigorosos podem estar
em comunhão entre si, tornando-as parte de uma única afiliação.

3Os grupos amish europeus praticamente desapareceram, em grande parte


pela fusão com grupos menonitas locais, até 1900; o último grupo com
algumas práticas distintamente amish (tais como as práticas da lavagem dos
pés e o uso de ganchos e presilhas em vez de botões) fundiu-se com uma
congregação menonita em 1937. No momento, as congregações amish
existem apenas nos Estados Unidos e no Canadá. (Hostetler 1980, 68).
4As casas amish costumam ser projetadas para possibilitar a acomodação de

um grande número de pessoas. (Egenes, 63). “Eles se reúnem em uma casa


de fazenda, no porão de uma casa mais nova ou em um galpão ou celeiro”
(Kraybill 1993, 10).

78
Os Amish

Os potenciais cônjuges são em grande parte, mas não


totalmente, da mesma afiliação. É improvável que um membro
banido de uma congregação seja aceito por outra congregação
da mesma afiliação, embora um membro banido de uma
congregação particularmente rígida (“baixa”) por violar seu
Ordnung pode ser aceito numa congregação menos rígida
(“superior”).5 Um assentamento, um grupo de congregações na
mesma área geográfica, pode consistir em uma única afiliação
ou em várias afiliações diferentes;6 uma afiliação pode ser
limitada a um assentamento ou dispersa por vários deles.7

5“Baixo” ou “inferior” porque os Amish consideram a humildade uma


virtude importante. Uma das questões sobre as quais os Schwartzentruber
Amish se separaram foi a opinião de que uma congregação não deveria
aceitar alguém que foi banido pela congregação na qual foi batizado até que
ele retornasse à sua congregação original e fizesse uma confissão apropriada.
(Kraybill e Olshan 1994, 55).
6O assentamento de Lancaster County, o mais antigo dos grandes

assentamentos amish, consiste em apenas uma afiliação dos Amish da Antiga


Ordem, embora também existam congregações de dois grupos separados,
Beachy Amish e New Amish. A definição exata de quais grupos contam ou
não como amish é arbitrária; para os fins deste capítulo, não estou incluindo
grupos que permitem coisas proibidas pela maioria dos grupos Amish. Os
Beachy Amish, por exemplo, permitem a propriedade de automóveis e, para
meus propósitos, são classificados com os menonitas e outros grupos
relacionados, mas não exatamente Amish. O capítulo 13 de Hostetler 1980
fornece uma descrição detalhada da história das divisões em uma área
durante um período de cerca de um século, resultando em doze grupos amish
e/ou menonitas diferentes.
7Nolt e Meyers 2007, 7.

79
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A congregação típica tem um bispo,8 dois ministros e um


diácono, todos os quais normalmente servem por toda a vida e
nenhum deles tem qualquer treinamento formal. Eles não são
pagos por seus serviços. Os ministros e diáconos são
selecionados por sorteio de um grupo de homens nomeados pela
congregação; os membros da igreja sussurram o nome de um
candidato ao diácono. A nomeação requer dois (em alguns
distritos três) votos.9 O bispo é escolhido por sorteio entre os
ministros.10
Quando uma congregação se torna grande demais para
caber em uma casa, ela se divide, geralmente ao longo de
alguma fronteira conveniente, como uma estrada ou riacho.

O Ordnung
O Ordnung especifica as regras que os membros da
congregação devem cumprir. Normalmente, eles incluem
proibições de atividades como entrar com uma ação judicial,
servir em um júri ou ingressar em uma organização política,
juntamente com o uso de tecnologias modernas vistas como

8No assentamento de Lancaster, é comum um bispo presidir duas


congregações (Kraybill 1989). Em outros lugares, isso parece acontecer
apenas durante o período de transição para uma nova congregação que ainda
não escolheu um bispo ou uma congregação que perdeu seu bispo e ainda não
escolheu um substituto.
9Hostetler 1980, 112. Kraybill 1989, 110.
10Hostetler 1980, 111-113.

80
Os Amish

capazes de perturbar o sistema social amish;11 os detalhes do


que é proibido, e como se procede tal proibição, variam
estritamente de uma congregação para outra.
Assim, por exemplo, o Ordnung de uma congregação
amish da antiga ordem proibirá os membros de possuir ou dirigir
automóveis ou ter um telefone em casa. Ambas as regras
encorajam uma estrutura social centrada em si mesma, com
pessoas interagindo principalmente com outras pessoas
próximas a elas. Para um exemplo em menor escala da mesma
abordagem:

Uma jovem explicou por que a igreja desaprova os


sistemas de aquecimento central: “Um aquecedor na
cozinha mantém a família unida. Aquecer todos os
quartos levaria todos a irem para seus respectivos
quartos.”12

Pode-se argumentar que a existência de tais regras torna os


amish mais modernos do que o resto de nós, não menos, já que
eles estão tomando decisões deliberadas acerca de quais
tecnologias modernas se encaixam ou não em sua estrutura
social.
O Ordnung também especificará características do
vestuário, novamente variando de acordo com a congregação.
Botões podem ser totalmente proibidos ou permitidos apenas em

11“As escolhas amish são, portanto, baseadas em uma avaliação prática e


mundana que se assemelha mais à engenharia social do que ao ascetismo.
Eles não limitam o uso de automóveis, eletricidade, telefones e tratores para
buscar sofrimento e redenção por meio das privações. Em vez disso, as
decisões sobre a aceitação de conveniências modernas são baseadas no efeito
previsto que um novo produto pode ter na comunidade.” Robert L. Kidder
em Kraybill 1993, 217.
12Kraybill 1989, 92.

81
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

roupas de trabalho, cores vivas são em sua maioria proibidas.


Prescrevem-se penteados masculinos e femininos (cabelos sem
corte para mulheres, cabelos até o lóbulo da orelha, barba e sem
bigode para homens casados). Possuir uma televisão, frequentar
a faculdade, usar maquiagem ou jóias ou voar em um avião
provavelmente serão proibidos. A morte de parentes exige que
as mulheres usem preto por um período de tempo dependendo
da proximidade da relação.13 O princípio oferecido para
justificar muitas das regras é que os indivíduos devem ser
humildes, evitando qualquer coisa associada ao orgulho, como
roupas extravagantes. Por razões semelhantes, os amish
geralmente não querem ser fotografados. Um efeito das regras é
a criação de limites claros entre endogrupo e exogrupo, uma vez
que os membros se distinguem dos não membros pelo vestuário
e pela aparência.
Duas vezes por ano, todos os membros da congregação se
reúnem para comungar. Duas semanas antes, cada um é
questionado “se ele está de acordo com o Ordnung, se está em
paz com a irmandade e se algo ‘está no caminho’ de sua entrada
no serviço de comunhão”. A comunhão não ocorre até que todos
os membros concordem. Isso dá aos membros a oportunidade de
expressar abertamente seu desacordo com o Ordnung atual —
mas, via de regra, os membros aceitam a posição dos líderes do
clero.
O Ordnung é específico para a congregação, que não tem
legislatura. O que muda o Ordnung é a prática dos membros e a
resposta a ela por parte da liderança. Se gente o suficiente

13Um ano para uma morte na familiares próximos, seis meses para um avô,
três meses para um tio ou tia, seis semanas para a morte de um primo.
Compare com os períodos semelhantes, além dos requisitos de luto mais
severos existentes sob a lei imperial chinesa.

82
Os Amish

ultrapassar os limites das regras existentes, e não houver


reclamação, é provável que as regras mudem. Chegar a um
consenso pode levar vários anos e pode ser impossibilitado se os
líderes desaprovarem determinada mudança. Em alguns casos, a
congregação mantém uma regra, como a proibição de possuir
freezers ou telefones, mas reduz a inconveniência resultante ao
permitir que os membros usem freezers ou telefones de seus
vizinhos não amish. Em alguns outros casos, a liderança pode
decidir que algo que foi permitido por vários anos foi um erro e
exigir que os membros cessem tal prática.

Aplicação
Se o bispo ou os ministros souberem que um membro está
violando o Ordnung, o primeiro passo é visitá-lo. Se ele
expressar arrependimento, a ofensa será ignorada; isso é o que
Kraybill descreve como uma punição de “nível um”.
Se a violação continuar, os ministros realizam uma
reunião no próximo culto de domingo — os cultos são
realizados em domingos alternados — no qual o bispo
recomenda uma punição. Isso é seguido por uma audiência
pública na presença dos membros da congregação na qual o réu
pode apresentar sua versão da controvérsia. Ele é então
convidado a sair e, se sua defesa não mudou a conclusão do
bispo, o bispo propõe a punição à congregação, que, por sua
vez, vota.14 Para que a punição seja imposta, ela deve ser aceita
por unanimidade pela congregação — e geralmente assim
ocorre.

14Em alguns grupos amish, o ministro pode tomar a decisão sem primeiro
colocá-la à congregação, mas essa é a prática da minoria. (Nolt e Meyers
2007, 69).

83
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Para uma pequena ofensa — usar jóias ou ingressar em


um time de beisebol público — uma confissão “sentada”
(nível dois) pode ser feita. Para ofensas mais sérias —
como viajar de avião ou alugar um carro aos domingos
— a pessoa pode ser solicitada a fazer uma confissão
“ajoelhada” (nível três) na frente da congregação e
prometer seguir o Ordnung no futuro.
A forma mais severa de punição (nível quatro) é
um banimento de seis semanas. Durante esse tempo, a
congregação evita contato social com a pessoa rebelde.
[…] No final da proibição, os infratores são convidados a
fazer uma confissão “ajoelhada” em uma reunião de
membros. São feitas duas perguntas: você acredita que a
punição foi merecida? Você crê que seus pecados foram
perdoados pelo sangue de Jesus Cristo? Aqueles que
confessam seu pecado e prometem “trabalhar com a
igreja” são reintegrados a ela. A reunião termina com
algumas palavras de conforto adequadas.15

Se o membro desobediente não estiver disposto a


confessar seus pecados e parar de violar as regras, a punição
final, depois que as sanções mais brandas falharam, é a
excomunhão, exclusão, Meidung. O indivíduo excomungado
não é obrigado a deixar a comunidade, mas é estritamente
limitado em sua interação com outros amish. Um jovem adulto
pode continuar morando com seus pais e frequentando a igreja,
mas não pode sentar-se à mesa de jantar com adultos batizados e
deve eventualmente sair de casa para que seus pais possam
comungar novamente. A esposa de um membro que está sendo
excluido deve comer em uma mesa separada de seu marido e
abster-se de relações sexuais com ele; nesses casos, o cônjuge
pode solicitar a excomunhão para que o casal não tenha que se
15Kraybill 1989, 112-113.

84
Os Amish

afastar. Um membro que conscientemente come com alguém


que é evitado provavelmente também será evitado, mas não se o
fizer sem saber. “Embora a interação com pessoas expulsas seja
severamente restrita, ela não é totalmente encerrada. Conversas
sociais limitadas são permitidas, mas os membros da igreja são
aconselhados a não lidar diretamente com os párias ou aceitar
qualquer coisa que venha deles. Por exemplo, os membros não
aceitarão uma carona no carro de um ex-membro que se juntou
aos menonitas. Os membros evitam fazer negócios com aqueles
que estão 'sob o banimento'. Se um membro vende algo para um
pária, o membro não aceita pagamento diretamente da mão da
outra pessoa. Às vezes, um terceiro cuidará de uma transação
comercial ou social necessária. Em outros casos, a pessoa
estigmatizada coloca o dinheiro em uma mesa ou balcão, após o
que o membro da igreja o pega” (Kraybill 1989, 116).
Um membro excomungado que está disposto a confessar
seus pecados e se arrepender normalmente será readmitido na
congregação, geralmente dentro de algumas semanas.
A exclusão pode ser usada não apenas contra violações
dos termos do Ordnung, mas também, como com os vlach rom,
contra um membro da comunidade que se recusa a aceitar o
acordo da congregação para uma disputa com outro membro.16

16“Se surgir um conflito entre os membros amish, a comunidade tenta


cooperar para encontrar um acordo pacífico. Se a comunidade da igreja tomar
uma posição, qualquer membro que resista corre o risco de ser excomungado
e excluído." Robert L. Kidder em Kraybill 1993, 215. Em linhas semelhantes,
Yoder refere-se ao Prozess, ou tribunal congregacional, lidando com uma
falência em Kraybill 1993, 38.

85
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Juventude
Espera-se que as crianças Amish ajudem o resto da família
com as tarefas dentro de sua capacidade — sendo babá dos
irmãos mais novos, ajudando a capinar, ordenhando — desde
tenra idade. Elas vão à escola, mas apenas até a oitava série,
tendo os amish persuadido primeiro as autoridades estaduais e
depois a Suprema Corte a conceder-lhes uma isenção parcial das
leis de escolaridade obrigatória. Após a oitava série, eles são, na
verdade, aprendizes de adultos da comunidade, mais comumente
de seus pais, aprendendo a administrar uma fazenda e uma casa
e, em alguns casos, aprendendo um ofício.
O Ordnung só se torna aceito e obrigatório pelos membros
da congregação quando, como adultos, eles são batizados. Há,
portanto, um período de cerca de dezesseis até vinte anos ou
mais quando um jovem adulto é, até certo ponto, dependendo da
congregação, livre para agir de maneiras normalmente
proibidas, um período referido como Rumspringa. Isso pode
incluir ir à cidade para ver um filme, frequentar festas, trabalhar
na cidade em empregos que de outra forma seriam vistos como
inadequados, até mesmo (disfarçadamente) obter uma carteira
de motorista e dirigir um carro.17 Isso oferece uma oportunidade
para os jovens compararem a vida fora da comunidade amish
com a vida dentro da comunidade antes de tomar sua decisão
final. Na maioria das vezes, no entanto, os jovens amish em
Rumspringa estão interagindo apenas com outros jovens amish.
Essa decisão final é aceitar o batismo e se submeter ao
Ordnung. Antes da cerimônia, os ministros oferecem ao jovem a
oportunidade de desistir, dizendo-lhe que “é melhor não fazer

17Kraybill(1989, 137-140) fornece um quadro bastante detalhado do


Rumspringa no assentamento de Lancaster County.

86
Os Amish

um voto do que fazer um voto e depois quebrá-lo …” Uma


grande maioria, por uma estimativa de quatro em cinco, escolhe
fazer o voto.
O período de Rumspringa também é a época da vida em
que os jovens amish estão cortejando suas futuras companheiras.
O processo é aceito, mas nominalmente secreto. O jovem rapaz
se dirige para a reunião social do grupo com sua irmã à luz do
dia, retorna à noite já tendo uma namorada e se refere a ela
como “ela” em vez de explicitar o seu nome; o fato de quem ele
está cortejando só se torna público quando eles estão prestes a se
casar. Para casar dentro da comunidade amish, o casal deve
primeiro ter sido batizado, o que pode ser o incentivo para
finalmente decidir sobre esse compromisso. O intercasamento é
permitido entre congregações que estão em comunhão umas
com as outras; um indivíduo de um grupo menos rígido pode se
casar com um grupo mais rígido apenas se o casal estiver
disposto a adotar as regras do último grupo.

Democracia ou Ditadura Competitiva?


As decisões tomadas pela congregação, considerada como
um estado em miniatura, são a punição e conteúdo do Ordnung.
O controle sobre essas decisões implica controle sobre os
membros da entidade política e o conteúdo de seu sistema
jurídico. Na maioria das congregações — as exceções são
alguns dos grupos mais extremos ("mais baixos"),18 nos quais o
poder está nas mãos do bispo — ambas as decisões exigem o
consentimento unânime dos membros, portanto, pode-se ver a
congregação como uma democracia muito pequena.
Alternativamente, observando que os membros quase sempre
18Em particular, os Amish Swartzentruber.

87
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

apoiam a decisão do bispo, pode-se descrever a congregação


como uma ditadura de facto, com um ditador escolhido em parte
por acaso e governando por toda a vida.
Se é uma ditadura, é uma ditadura competitiva. Um
membro que está suficientemente insatisfeito com o Ordnung de
sua congregação, conforme interpretado por seu clero, é livre
para mudar para uma congregação próxima mais adequada aos
seus gostos. Algumas congregações são, de fato, soberanias
territoriais, de modo que mudar de congregação requer uma
mudança geográfica. Em outras comunidades, especialmente
onde há congregações, com Ordnungen substancialmente
diferentes, próximas umas das outras, pode ser possível mudar
de lealdade sem mudança de residência.19 Um bispo cuja
interpretação dos Ordnungen de sua congregação está em
desacordo com o que os membros desejam não está sujeito ao
impeachment ou a uma eleição revogatória, mas poderia
concebivelmente encontrar-se sem filiação.
No caso de uma grande divisão dentro dos amish, como
ocorreu no assentamento de Lancaster em 1910 e novamente em
1966, os membros iniciais do grupo mais liberal (“superior”)
não estão sujeitos à excomunhão e exclusão pelos mais
tradicionais ("inferior"). Mas se o grupo superior aceitar

19Baseado principalmente na comunicação pessoal com Thomas J. Meyers,


que descreve a situação no norte de Indiana, onde há mais de 130
congregações em uma afiliação comum com Ordnungen quase idênticos,
como aquele em que a congregação é, de fato, uma soberania territorial. A
mesma situação parece existir no assentamento de Lancaster County. Mas
Meyers descreve uma comunidade diferente, contendo 5 afiliações distintas
que não estão em parceria umas com as outras e, em alguns casos, até mesmo
sobrepondo distritos de eclesiásticos. E pode haver variações significativas
de Ordnung entre os distritos da mesma afiliação. (Nolt e Meyers 2007, 53).

88
Os Amish

membros que estão banidos e não confessaram, qualquer um que


se juntar a ele será banido.20
Tal sistema pode ser visto como um mercado competitivo
de regras legais, restringido, como outros mercados
competitivos, a produzir o produto que os clientes desejam.21 A
ditadura competitiva é o mecanismo que usamos rotineiramente
para controlar hotéis e restaurantes; os clientes não têm voto
sobre a cor das paredes pintadas ou sobre o menu, mas um voto
absoluto sobre quais desses empreendimentos eles patrocinam.
O assentamento principal mais antigo, em Lancaster
County, desenvolveu um nível semiformal de governo acima do
nível da congregação, uma reunião bianual de bispos para
discutir questões como mudanças no Ordnung. Embora a
reunião não tenha autoridade formal sobre as congregações
individuais, as opiniões dos bispos seniores têm um peso
considerável, de modo que uma decisão de (por exemplo)
proibir alguma prática controversa provavelmente será
implementada pela maioria das congregações. Reuniões
semelhantes de bispos e outros clérigos ocorrem anualmente em
alguns outros assentamentos.22 Pode-se ver isso como um
primeiro passo na direção da criação de um nível de governo
acima da congregação.

20De acordo com Kraybill (1989), 274n26.


21“As famílias começaram a se mudar para outros assentamentos ou se
reagrupar com base em uma disciplina mais rígida ou branda.” Hostetler
(1980, 64), descrevendo eventos no final do século XVIII.
22Kraybill 1989, 83-85.

89
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Relações com os “Ingleses”23


De certa forma, como a manutenção de suas próprias
regras e a imposição da ameaça de exclusão, os amish se
assemelham aos ciganos descritos no capítulo anterior. Uma
diferença é a relação com não membros. Os ciganos na maioria
dos lugares foram sujeitos à hostilidade de forasteiros, e os
próprios ciganos consideravam os forasteiros como ignorantes e
impuros. Os amish, ao contrário, parecem se dar bem com seus
vizinhos de forma recíproca. Os não amish podem considerá-los
pitorescos, mas na maioria das vezes sem hostilidade e até com
alguma admiração.
Talvez por essa razão, os amish tenham se saído
surpreendentemente bem em suas relações com o governo dos
Estados Unidos. Em 1955, a Seguridade Social passou a ser
obrigatória para os trabalhadores autônomos. Os amish se
opuseram a participar, em parte com base no fato de acreditarem
que eram religiosamente obrigados a cuidar uns dos outros e não
deveriam transferir essa obrigação para o estado, em parte com
base nos programas de seguro, que a Seguridade Social pelo
menos pretendia ser (“Seguro de Velhice e Sobreviventes”),
sendo considerados como “jogos de azar que buscam planejar e
proteger a própria fortuna, em vez de entregá-la à vontade de
Deus”.24 Muitos se recusaram a pagar os impostos da
Seguridade Social, o que fez com que o IRS finalmente
começasse a apresentar penhoras sobre animais de fazenda e
outros ativos. O conflito só terminou em 1965, quando a
legislação federal isentou os amish autônomos do pagamento de
impostos da Seguridade Social, isenção posteriormente

23O termo amish usual para os não amish.


24Kraybill 1989, 219.

90
Os Amish

estendida aos funcionários amish em empresas pertencentes aos


amish.
Os amish, que são pacifistas, geralmente recebem o status
de objetor de consciência pelo Sistema de Serviço Seletivo.25
Como objetores de consciência, eles foram obrigados a se
envolver no serviço civil, como esvaziar comadres em hospitais
urbanos. Isso significava passar dois anos fora da cultura amish,
morando com colegas de quarto não amish, possivelmente
namorando, e até se casando, com enfermeiras não amish, com o
resultado de que apenas cerca de metade deles optou por
retornar às suas comunidades quando o serviço foi feito e não
todos aqueles escolheram se unir à igreja.26

Muitos garotos partem com boas intenções, mas por


terem tanto tempo ocioso, se envolvem em diversões,
com as enfermeiras ou de outras maneiras, e são
desviados a ponto de, quando puderem voltar para casa e
se tornarem membros da igreja, são tantos que não mais
preferem essa opção, ou estão em uma posição em que
acham que dificilmente podem fazê-lo, talvez com uma
enfermeira de uma fé diferente como esposa ou
circunstâncias semelhantes.27

Parte da resposta amish foi o Comitê Diretivo Nacional


Amish, cuja função principal era negociar com o governo dos
EUA sobre questões em que suas regras colidissem com os

25“De todos os jovens rapazes Amish que foram convocados durante a


Segunda Guerra Mundial, apenas 4% foram para o serviço militar.”
(Hostetler 1980, 293).
26Kraybill 1993, 69.
27Old Order Amish Steering Committee 1972:1.

91
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

requisitos da religião amish.28 As negociações do Comitê com o


Sistema de Serviço Seletivo resultaram em colocar muitos amish
objetores de consciência em fazendas administradas por amish
ou menonitas, cultivando alimentos como seu trabalho de
guerra.29
Outro conflito foi sobre a escolaridade. No século XIX, a
maioria dos amish frequentava escolas públicas rurais,
geralmente escolas de uma sala; muitos dos alunos eram amish,
o resto de famílias rurais não muito diferentes em sua cultura e
atitudes. As crianças normalmente frequentavam a escola apenas
até a oitava série, depois seguiam auxiliando seus pais.
No decorrer do século XX, a idade de escolaridade
obrigatória foi elevada por lei estadual e os distritos escolares
foram consolidados, substituindo as escolas rurais compostas de
uma única sala por escolas urbanas muito maiores para as quais
as crianças tinham que ser transportadas de ônibus. O resultado
foi considerado intolerável pela maioria dos amish, tanto porque
seus filhos seriam mantidos fora da fazenda por muito tempo
quanto porque frequentariam escolas dominadas por atitudes
culturais muito diferentes das de seus pais.

28Formado em 1966-7 para persuadir o Serviço Seletivo a aprovar apelos de


objetores de consciência amish que queriam trabalho agrícola em vez do
trabalho hospitalar para o qual foram designados. O Comitê passou a discutir
em nome dos amish com vários departamentos dos governos federal e
estadual sobre uma variedade de questões. Para detalhes, veja Olshan 1990.
29“Em alguns casos, as decisões do conselho local foram revertidas no

mesmo dia em que foram tomadas por rápida intervenção de autoridades


nacionais em resposta a ligações de líderes amish. Um líder descreveu vários
episódios em que ‘uma ligação rápida em um telefone público para meu
amigo General Hershey’, o diretor do Serviço Seletivo, produziu resultados
no mesmo dia.” Robert L. Kidder em Kraybill 1993, 224-5.

92
Os Amish

O medo primordial oculto sob todas as outras


preocupações era que a educação moderna levaria os
jovens amish para longe da fazenda e da fé e minaria a
igreja. A sabedoria do mundo, disseram os sábios amish,
“deixa você inquieto, querendo saltar e pular, sem saber
onde vai pousar”.30

Muitos pais amish se recusaram a enviar seus filhos para


escolas grandes e consolidadas ou para qualquer escola após a
oitava série. Alguns foram para a prisão como resultado. Na
Pensilvânia, onde ficava o assentamento de Lancaster County, o
conflito começou em 1937 e foi finalmente resolvido em 1955
por uma reinterpretação do código escolar.

No programa vocacional, um professor amish dava aulas,


três horas por semana, para cerca de uma dúzia de
crianças de quatorze anos em uma casa amish. Os jovens
enviaram diários de suas atividades de trabalho na
fazenda e em casa e estudavam inglês, matemática,
ortografia e assuntos vocacionais. […] em essência, as
crianças estavam sob a orientação de seus pais durante a
maior parte da semana […].31

Finalmente, em 1972, a Suprema Corte, em Wisconsin v.


Yoder, decidiu a favor do direito amish de que seus filhos
abandonassem a escola após a oitava série.
Os amish lidaram com o problema criado pela
consolidação escolar construindo e contratando pessoal para
suas próprias escolas locais. Surgiram problemas com a
regulamentação estatal de escolas e professores particulares —
as escolas eram tipicamente compostas de uma única sala sem
30Kraybill1989, 131.
31Kraybill 1989, 120-129. Compromissos semelhantes foram feitos em
alguns outros estados.

93
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

aquecimento central ou água encanada, a maioria dos


professores amish tinha formação apenas até a oitava série —
mas esses problemas, em sua maioria, acabaram sendo
resolvidos.
Os conflitos entre os amish e o estado sobre a Seguridade
Social, escolaridade, conscrição e uma variedade de outras
questões acabaram sendo tratados de uma forma aceitável para
os amish.32 Em parte, isso pode ter sido devido à tendência dos
não amish de ver os amish sob uma luz favorável — como um
remanescente da virtude rural idealizada do século XIX
sobrevivendo até o século XX.
Da parte dos amish, o relacionamento é amigável também.
Eles frequentemente têm amigos não amish e frequentemente se
envolvem em transações comerciais com não amish. Alguns não
Amish operam “serviços de táxi amish”, fornecendo transporte
de automóvel ou van para amish quando eles precisam ir mais
longe do que cavalos e charretes podem carregá-los
convenientemente. Amish em algumas afiliações usam
rotineiramente os telefones de vizinhos não amish quando há
necessidade urgente de comunicação.

32Kraybill oferece uma lista de áreas onde a modernidade capitulou para os


amish em vez dos amish capitularem a ela: alternativas para objetores de
consciência, isenção de frequência escolar, isenção de requisitos de
construção escolar, isenção de requisitos de salário mínimo para professores,
isenção da Seguridade Social para autônomos, isenção de compensação
trabalhista para autônomos, isenção de seguro-desemprego para autônomos,
renúncia à regulamentação de capacetes, alteração dos regulamentos de
zoneamento (por municípios), viagens a cavalo em vias públicas, escusa da
coleta de leite aos domingos. (Kraybill 1989, 245). Algumas delas eram
concessões em nível federal, algumas estaduais ou locais; o último item da
lista era uma concessão de empresas privadas.

94
Os Amish

Em um capítulo anterior, sugeri que na América do Norte


a tolerância poderia acabar destruindo o status dos ciganos como
comunidades autogovernadas, tornando muito fácil para
membros infelizes ou condenados ao ostracismo desertarem
para a comunidade circundante. Em linhas semelhantes, pode-se
argumentar que a emancipação dos judeus europeus, a partir do
final do século XVIII, foi responsável pelo declínio das
comunidades judaicas como entidades efetivamente
autogovernantes. No entanto, os amish mantiveram sua
identidade, cultura e Ordnung, reforçando o último pela ameaça
de ostracismo, apesar da falta de qualquer barreira clara para
impedir que membros infelizes ou excomungados desertassem.
Essa deserção é facilitada pela existência de comunidades
menonitas, semelhantes aos amish, mas menos rígidas, às quais
os desertores amish podem e às vezes se juntam.
Um crítico dos amish pode argumentar que sua educação,
com escolaridade terminando na oitava série, deixa potenciais
desertores desqualificados para a vida no mundo moderno. A
resposta óbvia é que há muitos empregos no mundo moderno
para os quais a vontade de trabalhar e o treinamento produzido
por um aprendizado a partir dos quatorze anos são qualificações
melhores do que um diploma do ensino médio. Como alguma
evidência da adequação da educação amish, os amish parecem
se sair muito bem ao iniciar e administrar seus próprios negócios
de pequena escala.33
Alguém poderia sugerir, de maneira mais plausível, que
um sistema social no qual o cortejo de seu futuro cônjuge pode
começar aos quatorze anos deixa muitos jovens presos a um
futuro casamento bem antes do ponto em que eles precisam
decidir se devem ou não se comprometer com o estilo de vida
33Kraybill e Olshan 1994, capítulo 9 (por Kraybill e Nolt).

95
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

amish — e é um futuro casamento com um cônjuge criado como


amish. Seria interessante saber se, quando os amish decidem sair
antes do batismo, eles geralmente o fazem um a um ou em
casais.
Pode-se também argumentar que os laços estreitos das
famílias amish criam uma forma de aprisionamento. A exclusão
se aplica apenas àqueles que juraram obedecer ao Ordnung e
foram batizados, mas falharam em cumprir seu compromisso.
No entanto, dado o quanto a vida dos amish é determinada por
sua religião e cultura, recusar-se a se comprometer deve criar
uma barreira substancial entre aqueles que abandonam a religião
e aqueles que não a abandonam. A barreira é ainda maior para
aqueles que foram batizados e, portanto, enfrentariam a exclusão
se deixassem a igreja.34
Finalmente, pode-se interpretar a baixa taxa de deserção
como evidência de doutrinação bem-sucedida na visão negativa
mantida pelos amish sobre a vida levada pelos não-amish.35
Lendo livros sobre os amish, todos positivos, todos escritos por
simpatizantes,36 ficamos impressionados por quão escura é sua
imagem do mundo exterior. É um mundo onde as pessoas
gastam a maior parte de seus esforços em empenhos e exibições
competitivos no intuito de acompanhar os vizinhos, onde as
vidas são divididas entre os círculos quase totalmente separados

34“Quando perguntado sobre a capacidade da igreja de manter seus membros,


uma pessoa disse: ‘Isso é fácil de responder, é o Meidung. Se não fosse pela
exclusão, muitos de nosso povo partiriam para uma igreja mais progressista,
onde poderiam ter eletricidade e carros.’” (Kraybill 1989, 117).
35“Uma vida amish é fundida por laços informais ancorados em redes

familiares, tradições comuns, símbolos uniformes e uma desconfiança


compartilhada do mundo exterior.” (Kraybill 1989, 93).
36Hostetler, que escreveu extensivamente sobre os amish, cresceu como

amish, mas optou por não se filiar à igreja quando adulto.

96
Os Amish

de trabalho, família e igreja, onde pouco de significativo


acontece ou pode acontecer, um mundo de tédio e alienação.37
Há, é claro, uma outra possibilidade. Talvez os amish
estejam corretos ao acreditar que têm um estilo de vida superior,
conforme julgado pela maioria daqueles que o viveram e
observaram a alternativa — embora superior apenas para
aqueles que tiveram a sorte de serem criados nele.

37Pergunteia um autor com quem me correspondia se essa visão refletia o


fato de que os autores eram sociólogos, com tendências políticas que os
tornavam desconfiados da América moderna. Sua resposta foi que o
verdadeiro motivo era que todos eles eram anabatistas e, portanto,
compartilhavam, de uma forma um tanto mais fraca, a visão amish da
corrupção mundana.

97
4
Direito Judaico: Uma
Breve Explicação
O direito judaico pode ser o sistema legal mais bem
registrado na história do mundo; existem centenas de milhares,
talvez milhões, de páginas de fontes primárias sobreviventes
cobrindo cerca de dois mil e quinhentos anos. Elas incluem
escrituras, compilações de regras legais, tratados e responsa —
o equivalente a casos.1 Este capítulo fornece apenas uma breve
explicação, baseada principalmente em uma fonte medieval, a
Mishné Torá de Maimônides, e uma fonte moderna, Jewish
Law: History, Sources, Principles de Menachem Elon.

História
A dinastia dos reis de Israel, dos quais Salomão e Davi são
os mais famosos, terminou e o primeiro Templo foi destruído
pelos babilônios em 586 a.C. Após o fim do cativeiro
babilônico, Israel estava sob domínio persa e depois grego
(selêucida), com o poder local nas mãos de sucessivos pares de
autoridades religiosas. A revolta dos macabeus contra os
selêucidas, 167-160 a.C., restabeleceu Israel como um reino
independente com seu próprio rei.
Após a conquista romana em 63 a.C. o reino de Israel
deixou de existir como um estado independente, tornando-se
1Responsa eram respostas de juristas, inicialmente os geonim, os chefes das
academias babilônicas, a perguntas enviadas a eles. Elon cita uma estimativa
de que várias centenas de milhares sobreviveram.

99
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

sujeito primeiro ao domínio romano indireto e depois direto. O


segundo Templo, que desempenhava um papel importante em
questões legais e religiosas, foi destruído pelos romanos em 70
d.C. A revolta de Bar Kochba de 132-136 d.C. resultou na morte
de muitos judeus, emigração ou venda como escravos,
encerrando o papel de Israel como o centro efetivo do judaísmo.
Posteriormente, até o estabelecimento do Estado de Israel no
século XX, a população judaica consistia em comunidades
dispersas vivendo sob a autoridade de governantes não judeus.2
Tais comunidades eram sujeitas de tempos em tempos a
perseguições ou mesmo expulsão. Mas, em sua maioria,
gozavam de autonomia judicial. Governantes gentios, cristãos e
muçulmanos, acharam conveniente subcontratar o trabalho de
governar — e taxar — seus súditos judeus para as autoridades
judaicas locais. O governante estabelecia a carga tributária total
a ser imposta à comunidade, cabendo às autoridades locais
distribuí-la entre os moradores e resolver as disputas entre os
membros da comunidade. Assim, os judeus na diáspora viveram
em grande parte sob a lei judaica.
Em alguns casos, a delegação de autoridade parece ter
sido levada a extremos extraordinários. Sob a lei judaica,
informar, dar aos gentios informações sobre um companheiro
judeu que o ofendeu, era um crime. Em alguns momentos e
lugares, denunciar três vezes era um crime capital. Alguém
condenado por um crime capital era executado pelas autoridades
mundanas. Segue-se, se o relato de Elon sobre a situação na
Espanha estiver correto, que sob algumas circunstâncias as
autoridades gentias estavam dispostas a executar um judeu pelo

2Uma exceção pode ser o reino de Khazar, onde se diz que a realeza e a
nobreza se converteram ao judaísmo em algum momento entre 740 e 920
d.C.

100
Direito Judaico

crime de revelar informações sobre outros judeus. Traindo-o,


presumivelmente, para as autoridades gentias.

Se a culpa do informante for provada por duas


testemunhas, ele receberá cem chicotadas pelo primeiro
crime e será banido do local do crime, de acordo com a
decisão do rabino, dos juízes e dos líderes comunitários;
para um terceiro crime, o Rabino da Corte pode ordenar
que ele seja condenado à morte, de acordo com a lei
judaica, por meio dos oficiais legais do rei.3

Essa situação terminou com a emancipação, a libertação


dos judeus europeus das restrições legais, iniciada na Europa no
final do século XVIII. Cada vez mais, os habitantes judeus dos
estados europeus eram tratados como cidadãos comuns, sujeitos
às mesmas leis que todos os outros. A lei judaica permaneceu
relevante para questões como casamento, divórcio e regras
dietéticas, mas tornou-se cada vez mais irrelevante para a
maioria dos assuntos comuns do direito civil e penal.

3Das promulgações de Valladolid (1432). Elon 1994, 2:803. “Como vimos, o


centro judaico espanhol desfrutou de ampla jurisdição criminal — incluindo
até mesmo o poder de infligir a pena de morte — durante um longo período;
e por um tempo limitado tal jurisdição existiu também na Polônia [...].” (Elon
ibid, 697). Veja também Kaufman 1896. Isso se assemelha a uma
característica da lei chinesa. Relatar os crimes do pai às autoridades imperiais
resultava na punição do filho — pelas autoridades imperiais. Minha
interpretação, em ambos os casos, é que a autoridade de nível superior estava
disposta a abrir mão de parte de seu poder direto para manter o poder da
autoridade de nível inferior, a família estendida chinesa ou a comunidade
judaica.

101
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Problemas da Lei Divina


A lei judaica era, em teoria, baseada em uma única fonte
imutável — a Torá, também conhecida como Pentateuco, os
cinco primeiros livros do Antigo Testamento. Basear a lei dessa
maneira, e não no costume, precedente ou legislação, levantava
dois problemas compartilhados com outros sistemas jurídicos de
base semelhante, incluindo o Fiqh (jurisprudência islâmica) e o
direito constitucional americano.
Um deles era o problema da uniformidade legal: se os
juízes, que também eram estudiosos jurídicos, discordavam
sobre o significado do texto possivelmente ambíguo, como suas
discordâncias seriam resolvidas? Em um sistema que vê a lei
como a criação de uma legislatura, rei ou tribunal de última
instância, a mesma autoridade que fez a lei pode resolver
divergências sobre ela. Isso não funciona para um sistema
jurídico visto não como criado, mas como descoberto, deduzido
de fontes divinamente inspiradas. Nenhum cientista acredita que
a veracidade de uma teoria científica pode ser determinada pelo
voto da maioria, que se um número suficiente de cientistas
tivesse discordado de Newton, as pedras teriam caído para cima
em vez de para baixo. Da mesma forma, um estudioso jurídico
islâmico não pode acreditar que a veracidade e legitimidade de
um hadith, uma tradição do profeta, seja determinada pelo voto
da maioria dos estudiosos da tradição ou um sábio judeu manter
uma crença correspondente com relação a uma interpretação da
Torá. No entanto, para que um sistema legal funcione, deve
haver alguma maneira de determinar o que é a lei.

102
Direito Judaico

Um segundo problema era como mudar a lei. Se as


autoridades legais4 concluíssem que algumas das regras
divinamente inspiradas eram erros ou haviam se tornado
obsoletas devido a mudanças nas circunstâncias, como poderiam
ser revisadas? A história do direito judaico é em grande parte a
história das soluções para esses dois problemas.

O Problema da Uniformidade Jurídica


A solução inicial para o problema da uniformidade
jurídica era simples. A verdade não é determinada pelo voto da
maioria, mas a lei pode ser. Baseando seu ponto de vista em um
versículo da Torá aconselhando as pessoas a aceitarem o ponto
de vista da maioria, caso houvesse divergências sobre questões
jurídicas difíceis, os estudiosos jurídicos assumiram a posição
de que a interpretação a ser seguida pelos juízes era determinada
pela visão do maioria dos estudiosos jurídicos. A partir de 191
a.C., essa doutrina foi implementada por meio do Grande
Sinédrio, uma legislatura combinada/suprema corte composta
por um número fixo de autoridades legais. Questões de direito
controversas chegavam a ela através de uma série de tribunais
inferiores para serem decididas pelo voto da maioria de seus
membros. Os juízes que discordavam eram livres para continuar
a defender sua posição, mas obrigados a julgar os casos de

4Estou usando “autoridades legais” para o que Elon chama de “autoridades


haláquicas”, indivíduos considerados especialistas na lei judaica. O termo
não se limita àqueles com uma posição oficial, embora muitas, talvez a
maioria, autoridades haláchicas fossem juízes, membros do Grande Sinédrio,
sumos sacerdotes ou rabinos. Como ficará claro, boa parte da lei judaica,
especialmente após a destruição do Templo e do Reino de Israel, surgiu de
um sistema de reputação e não de um sistema de autoridade formal.

103
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

acordo com a opinião da maioria.5 Com o fim do Grande


Sinédrio — seu último julgamento oficial foi dado em 358 d.C.
— a doutrina de que a lei estava de acordo com os pontos de
vista da maioria foi implementada por meio de mecanismos de
reputação menos claramente definidos.
Definir o direito pelos pontos de vista da maioria atual —
uma parte da doutrina conforme se desenvolveu era que o direito
estava de acordo com os pontos de vista das autoridades
posteriores, portanto, no limite ainda vivo — criou uma tensão
entre o direito e a religião. Se um estudioso jurídico discordasse
da opinião da maioria sobre o que tornava o alimento puro ou
impuro, ele era obrigado a consumir alimentos oferecidos que, a
seu ver, Deus o proibia de comer? Destruir alimentos que, a seu
ver, eram totalmente kosher?

Raban Gamliel aceitou o testemunho de testemunhas a


respeito de quando a Lua Nova do mês de Tishrei
aparecia. R' Yehoshua e R' Dosa, observando a Lua Nova
na noite seguinte, rejeitaram o estabelecimento de R'
Gamliel de quando o mês de Tishrei começou. Como
resultado, isso teria levado os seguidores dos rabinos
dissidentes a observar os grandes feriados em dias
5Maimônides (1949b, Livro XIV, Tratado 3, capítulo 3, 143-150) discute a
questão do ancião rebelde, uma autoridade legal que insiste em julgar os
casos de acordo com sua visão da lei depois de ter sido rejeitada pela
maioria. Ele argumenta que quase qualquer decisão equivocada pode levar
uma pessoa inocente a violar a lei judaica, por exemplo, casando-se com uma
mulher que foi prometida em casamento com dinheiro concedido em um
julgamento equivocado, ganhando o dinheiro, daí o noivado, daí o
casamento, daí a relação sexual com a esposa suposta, mas não real,
ilegítima. Ele conclui que praticamente qualquer recusa em aceitar o ponto de
vista da maioria pode ser tratada como um crime capital. Diferentes
autoridades discordaram sobre se o tribunal era obrigado a executar o ancião
rebelde ou se tinha a opção de não fazê-lo.

104
Direito Judaico

diferentes dos seguidores do calendário oficial. R


Gamliel ordenou que R' Yehoshua aparecesse perante ele
no dia em que R' Yehoshua julgou Yom Kippur com seu
cajado, usando sandálias de couro e carregando sua bolsa
de dinheiro, isto é, tratar publicamente o dia em que R'
Yehoshua proclamou Yom Kippur como um não-feriado.
R' Yehoshua aceitou o veredicto e compareceu perante R'
Gamliel conforme especificado. R 'Gamliel sai e o abraça
e o chama de “Meu mestre e meu discípulo, Meu mestre
em sabedoria, mas meu discípulo pois você deve aceitar
minhas palavras”.6

É mais importante que haja uma única resposta do que a


resposta esteja correta e é a visão da facção majoritária —
Gamliel era o chefe do Grande Sinédrio — que prevalece.
Esse caso envolveu um desacordo factual. A mesma
questão para desacordos legais surgiu nas disputas entre as
escolas de Hillel e Shammai, dois proeminentes estudiosos
jurídicos que, no primeiro século a.C., ensinavam diferentes
interpretações da lei, um desacordo continuado por seus alunos
por várias gerações.
Por algum tempo, as duas escolas, enquanto debatiam em
profundidade seus pontos de vista — às vezes uma persuadindo
a outra, às vezes não — mantiveram relações amigáveis. Os
membros de cada uma estavam dispostos a comer nas casas dos
membros da outra escola e a se casar com suas filhas, apesar dos
problemas potenciais com visões divergentes sobre pureza
ritual, a lei do casamento e do divórcio e questões semelhantes.
Tanto o colapso final da tolerância quanto a política de
preferir a uniformidade jurídica à verdade religiosa são

6Relatode Harold Feld (comunicação pessoal) baseado no Talmude, Rosh


Hashaná, capítulo 2:8-9.

105
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

resumidos no relato talmúdico do debate sobre o forno de


Akhnai entre o rabino Eliezer, uma figura importante vista como
simpatizante da escola de Shammai, e os sábios, liderado pelo
rabino Joshua. Um objeto de barro, como um forno que havia
sido tornado impuro, poluído por algum agente, como o contato
com um cadáver, poderia ser purificado ao ser quebrado. A
questão era se um forno de barro que havia sido quebrado e
depois remontado com areia entre as peças era ritualmente puro
ou impuro.7
Depois que R. Eliezer apresentou vários argumentos para
sua posição sem persuadir seus oponentes, ele finalmente lançou
a questão para Deus. “Se a Halakhah está de acordo comigo, que
esta alfarrobeira o prove.” A alfarrobeira prontamente se
desenraizou e foi movida 100 côvados de distância — segundo
algumas fontes, 400 côvados. A resposta de R. Joshua?
“Nenhuma prova pode ser trazida de uma alfarrobeira.”
O debate continuou e R. Eliezer produziu mais dois
milagres em apoio à sua posição; R. Joshua permaneceu não
convencido. Finalmente, Eliezer clamou por mais apoio direto, e
uma voz celestial respondeu: “Por que você debate com Rabi
Eliezer, visto que em todos os assuntos a Halakhah está de
acordo com ele.”
R. Joshua respondeu: "Não está no céu." Sua posição foi
resumida por outro rabino como: “A Torá já foi dada no Monte
Sinai. Não damos atenção a uma voz celestial porque Tu já
escreveste na Torá no Monte Sinai: 'Siga a Maioria'.” A lei
havia sido confiada aos cuidados do homem. Não era mais a
visão de Deus que importava, mas a visão dos sábios humanos,
não a verdade objetiva, mas uma regra de decisão humana. A

7A história é discutida em Elon 1994,1:261-3, 3:1068-9.

106
Direito Judaico

visão de Deus pode determinar o que é verdade, mas a visão dos


homens, autoridades haláquicas, determina o que é lei.
Um terceiro rabino, querendo ver a história do outro lado,
perguntou ao profeta Elias o que Deus estava fazendo no céu
durante o debate. “Ele sorriu, dizendo: 'Meus filhos me
superaram. Meus filhos me superaram.'“
Os sábios, não convencidos por argumentos ou milagres,
baniram Eliezer e o excomungaram. No relato talmúdico, a
proibição de R. Eliezer tem consequências catastróficas. Um
terço da safra de trigo, um terço da safra de cevada e um terço
da safra de oliveiras são destruídos, seguidos por sinais
adicionais da ira divina. Uma onda gigantesca quase afunda o
navio que transportava o rabino Gamliel, chefe do Grande
Sinédrio e líder da facção majoritária; ele se salva informando a
Deus que o que foi feito em relação a R. Eliezer não foi para sua
própria honra ou de seus parentes, mas para preservar o povo de
Israel.
A esposa de R. Eliezer é irmã de R. Gamliel. Ela proíbe o
marido de cair de cara no chão em oração petitória.
Eventualmente, quando ela está distraída, ele o faz — e Gamliel
morre imediatamente.8
Uma segunda história descreve como o conflito entre as
duas escolas finalmente terminou — por uma voz celestial que

8Precisamente qual é a implicação desta parte da história não está claro, pelo
menos para este leitor. Uma explicação mais detalhada e discussão pode ser
encontrada em http://daviddfriedman.blogspot.com/2010/07/furnace-of-
akhnai-story-and-puzzle.html.

107
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

disse “as palavras de ambos são as palavras do Deus vivo, mas a


lei está de acordo com a escola de Hillel”.9
Vista de dentro do sistema de crenças, a história do forno
de Akhnai sofre de um problema de consistência: por que os
sábios não aceitaram a palavra de Deus para qual lado do
argumento estava certo e mudaram seus votos de acordo? Vista
de fora, porém, a história pode ser interpretada como a solução
para um grave perigo. A base da lei judaica deveria ser a
autoridade divina transmitida por meio do profeta Moisés. O que
impediu um líder carismático que afirmava falar em nome de
Deus de se estabelecer como uma nova autoridade final na lei?
Milagres reais são escassos, mas milagres aparentes podem não
ser. Portanto, a história pode ser vista não apenas como
justificativa para a supressão da escola de Shammai, mas
também como uma medida profilática para evitar futuras
divisões devido a líderes carismáticos.10
Há um paralelo interessante entre o conflito entre as duas
escolas de lei judaica, terminando com a vitória de uma delas, e
o desenvolvimento da lei muçulmana quase mil anos depois.
Nos primeiros séculos do Islã, os estudiosos jurídicos sunitas se
dividiram em quatro escolas de direito com o nome e, até certo
9Isso aparece tanto no Talmude da Babilônia quanto no Talmude de
Jerusalém. Pode ocorrer àqueles que desconfiam da história escrita pelos
vencedores — os Talmudes foram produzidos após o triunfo de Hillel sobre
Shammai — se perguntar como é que uma voz divina em apoio a Eliezer é
rejeitada com "não está no Céu", mas uma voz divina em favor de Hillel
resolve o assunto. Os tosafistas explicaram a contradição com base no fato de
que uma voz divina não poderia mudar a lei, uma vez que era determinada
pela maioria, mas poderia confirmar uma interpretação dela. Isso não explica
por que a maioria não mudou seu voto e, portanto, a lei, em resposta ao
conselho divino. Elon defende o resultado final alegando que ele produziu
uniformidade no que era a lei, mas preservou múltiplas opiniões sobre o que
deveria ser, permitindo assim melhorias futuras. (Elon 1994, 3:1067).

108
Direito Judaico

ponto, com base no ensino de quatro dos primeiros estudiosos


jurídicos. As escolas diferiam em detalhes de interpretação
legal, mas se consideravam mutuamente ortodoxas — e ainda o
fazem.
Enquanto o Grande Sinédrio funcionava, ele fornecia um
mecanismo para resolver disputas sobre a lei. Por alguns séculos
depois disso, o prestígio das academias babilônicas foi

10Os exemplos judaicos incluiriam Shabbatai Tzvi no século XVII, que


afirmava ser o Messias judeu, e o Ba'al Shem Tove, fundador do movimento
chassídico no século XVIII. Uma figura islâmica semelhante, vista por
alguns como um santo, por outros como um charlatão, foi Hallaj (Husayn ibn
Mansur 858 - 922 DC). Para uma visão complacente, veja Schroeder 1955,
522-554. Para um relato dele como uma fraude, veja Margoliouth 1922, 91-
93. Para um comentário muçulmano do século XIII sobre o assunto:

Quando vemos alguém nesta Comunidade que afirma ser capaz


de guiar outros a Allah, mas é omisso em apenas uma regra da
Lei Sagrada — mesmo que ele manifeste milagres que
confundem a mente — afirmando que sua falha é uma dispensa
especial para ele, nem mesmo nos voltamos para olhar para
ele, pois tal pessoa não é um xeique, nem está falando a
verdade, pois a ninguém é confiado os segredos de Allah
Altíssimo, exceto aquele em quem as ordenanças da Lei
Sagrada são preservadas. (Muhyiddin ibn al-Arabi,
Jami'karamat al-awliya', citado em Al-Nawawi 2009, 164.)

Maimônides:

Se surgir um homem, seja dentre os gentios, seja entre os


judeus, e fizer um sinal ou milagre e disser que Deus o enviou
para acrescentar ou suprimir um mandamento ou para dar a
algum dos mandamentos uma interpretação que não ouvimos
de Moisés […], ele é um falso profeta. (Citado em Elon 1994,
264 da Mishné Torá, Tesodei ha-Torá 9:1.)
A sifra comenta o seguinte sobre o último versículo do
Livro de Levítico (a saber, “Estes são os mandamentos que o
Senhor deu a Moisés para o povo israelita no Monte Sinai”):
“Estes são os mandamentos” — um profeta não é mais
autorizado a introduzir qualquer coisa nova. (Elon 1994,
1:243).

109
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

suficiente para fornecer um substituto. Como isso diminuiu, o


problema reapareceu.
Uma solução para o problema da diversidade jurídica foi o
desenvolvimento de escolas geográficas. Os juízes na França
seguiam principalmente a opinião legal de quem era atualmente
o estudioso jurídico mais proeminente entre os judeus franceses,
e da mesma forma nos outros centros. Muitas autoridades legais
produziram livros resumindo seus pontos de vista; juízes de uma
área podem decidir aceitar as conclusões de um desses livros
como seu direito, juízes de outra área decidem aceitar outras.
Eventualmente, uma divisão mais ampla se desenvolveu entre os
asquenazes, principalmente na Europa, e sefarditas,
principalmente, após a expulsão da Espanha em 1492, no norte
da África e no Oriente Médio.
Tal livro pode, como a Mishná, citar argumentos para
interpretações alternativas da lei de uma variedade de sábios,
possivelmente dando a opinião do autor sobre qual deve ser
preferido, deixando o juiz livre para escolher entre eles. Pode,
como a Mishné Torá de Maimônides, dar a cada pergunta
apenas uma resposta, deixando um juiz aceitar essa resposta ou
pesquisar pontos de vista alternativos por conta própria. O
argumento para fazê-lo dessa maneira era que poucos juízes
tinham as habilidades necessárias para extrair uma resposta da
enorme e desorganizada massa de estudos haláquicos. O
argumento para relatar múltiplas opiniões era que Maimônides
não era mais uma autoridade do que outros grandes estudiosos
do passado, então um juiz deveria olhar para todas as opiniões
deles, não apenas a sua.
A solução final foi fazer as duas coisas. Joseph Caro
escreveu um volume, o Bet Yosef, que fornecia vários
argumentos de diferentes autoridades e um segundo e mais curto

110
Direito Judaico

volume, o Shulhan Arukh, a “Mesa Posta”, que dava apenas as


conclusões.11 Um juiz poderia procurar a resposta para qualquer
problema legal no Shulhan Arukh e, se estiver insatisfeito com
ele, ir ao Bet Yosef para ver as opiniões variantes de outras
autoridades.
Para chegar às conclusões apresentadas no segundo livro,
Caro deveria, com tempo e conhecimento infinitos, ter
examinado toda a literatura relevante para cada questão legal e
elaborado por si mesmo a resposta certa para cada uma.
Reconhecendo que fazer isso estava além de seus poderes, ele
pegou um atalho. Ele selecionou três estudiosos que considerava
as principais autoridades, Maimônides entre eles. Em qualquer
pergunta em que pelo menos dois dos três concordassem em
uma resposta, ele a aceitava. Onde nem dois concordavam, ele
estendeu sua busca a algumas autoridades de nível ligeiramente
inferior e baseou sua conclusão nas opiniões deles também.12
Duas das três autoridades com as quais Caro contava
eram, como Caro, sefarditas. Moses Isserles escreveu um
suplemento ao Shulhan Arukh dando as conclusões das
autoridades asquenazes onde elas diferiam das dos sefarditas.
Ele a chamou de Mappah, a “toalha de mesa” da mesa de Caro.
As duas obras, juntamente com alguns comentários adicionais
sobre o Shulhan Arukh, eventualmente se tornaram e ainda
permanecem as fontes padrão da lei rabínica para a maior parte
da diáspora. Não resolveu totalmente o problema da
uniformidade jurídica, tanto porque algumas áreas não aceitaram

11Uma tradução parcial do Shulchan Arach pode ser encontrada em


http://www.shulchanarach.com/.
12Elon 1994, 3:1317-19.

111
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

a obra de Caro13 quanto porque ainda era possível para um juiz


rejeitar a conclusão de Caro em favor do ponto de vista de uma
das autoridades que ele havia rejeitado. Mas forneceu uma única
fonte que, para a maioria das perguntas, deu respostas que a
maioria dos juízes estava disposta a aceitar.
Um problema levantado pela diversidade jurídica,
começando por volta do século XIII, era um argumento que
poderia ser oferecido pelo réu em um processo civil — um apelo
Kim Li. Para que o tribunal decidisse contra ele, tinha que ter
certeza de que ele era culpado. Mesmo que os fatos do caso
fossem claros, poderia haver incerteza jurídica. Enquanto pelo
menos duas das autoridades reconhecidas, vivas ou mortas,
apoiassem uma leitura da lei segundo a qual o réu era inocente,
haveria dúvida razoável, portanto ele não poderia ser
condenado.14

Isso pode ser visto na resposta de Samuel Di Medina, um


rabino otomano do século XVI e um dos primeiros a
empregar o apelo Kim Li: “é linguagem comum do
decisor contemporâneo que, onde há desacordo entre os
rabinos, um o réu civil pode dizer 'eu defendo' (Kim Li)
como X (decisor), mesmo que seja uma visão minoritária
[…] uma vez que a lei é incerta e mantemos o ônus da
prova de quem pretende extrair de outro, e uma vez que
não pode aduzi-lo, já que não existe ninguém nesta
geração que possa (conclusivamente) decidir, portanto o
dinheiro deve ficar onde está […]”15

13“Em poucos anos, Bet Yosef, juntamente com o Shulhan Arukh, tornou-se o
código oficial e obrigatório da Halakhah em toda a diáspora oriental, exceto
no Iêmen, onde a comunidade judaica geralmente seguia a lei estabelecida
por Maimônides.” (Elon 1994, 3:1373)
14Elon 1994, 3:1282-3.
15William Gelley, comunicação pessoal.

112
Direito Judaico

A necessidade de resolver esse problema foi um


argumento a favor de registrar e ensinar a lei na forma de um
relato inequívoco do que eram as regras, em vez de um relato de
argumentos a favor e contra interpretações alternativas.

O Problema da Legislação
Um segundo problema enfrentado por um sistema baseado
em um texto legal fixo e autoritário é como alterar regras
inadequadas às condições atuais ou adicionar novas regras para
lidar com questões não contempladas no original. A resposta
bíblica é clara: nenhum mandamento deve ser removido,
nenhum mandamento deve ser adicionado,16 a lei deve
permanecer como Deus a fez.
A primeira e mais simples solução para este problema foi
a interpretação (Midrash). Muito do texto era indiscutivelmente
ambíguo, então os estudiosos podiam interpretá-lo e o
interpretaram para se adequar ao que eles acreditavam que devia
dizer. Uma vez que o próprio texto autorizava os estudiosos a
resolver a ambiguidade por maioria de votos, eles poderiam
razoavelmente alegar que não estavam modificando a Torá, mas
obedecendo-a. Com o tempo, desenvolveram-se regras
elaboradas de interpretação, algumas das quais tornaram
possível ler em detalhes o texto das ordens adicionais dos
versículos bíblicos.
O apoio para esta prática foi fornecido pela doutrina da
Torá oral. Afirmava-se que isso era um suplemento da Torá
escrita transmitida por Deus a Moisés no Monte Sinai e de
Moisés em uma cadeia de transmissão oral até estudiosos
16Bal tigra (“não tirarás”), a proibição de tirar, Bal tosif (“você adicionarás”)
a proibição de acrescentar aos mandamentos (mizvot) estabelecidos na Torá.
Ambos em Deut. 4:2, 13:1.

113
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

posteriores. A Torá oral fornecia, entre outras coisas,


interpretações do texto da Torá escrita. Portanto, os estudiosos
poderiam defender com base em suas interpretações que não
poderiam ter sido plausivelmente derivadas da linguagem real
do texto.17
Considere o caso do filho desobediente. A Torá prescreve
a morte por apedrejamento para um filho que desafia seus pais.
Algumas autoridades legais optaram por ler no texto do
versículo bíblico requisitos que não poderiam ser satisfeitos na
prática — por exemplo, que a mãe e o pai que trazem a acusação
devem ter vozes idênticas e ser idênticos na aparência.
Maimônides argumentou que um menino com menos de treze
anos não poderia ser responsabilizado, que um menino de treze
anos poderia engravidar uma mulher, fato que seria conhecido
em mais ou menos três meses, ponto em que ele seria pai, não
filho, portanto, que a prescrição só poderia ser aplicada a um
menino com mais de treze anos e menos de treze e um quarto.18
Em sua opinião, apoiada por uma passagem do Talmude
Babilônico, o efeito combinado das restrições que podem ser
lidas na passagem bíblica foi que a regra declarada nunca foi e
nunca seria aplicada.19

17Os saduceus rejeitaram a ideia da Torá oral, sustentando que a lei era
derivada apenas do texto escrito. Eles perderam para os fariseus,
desaparecendo por volta de 70 d.C. Sua posição foi posteriormente revivida
pelos caraítas.
18Maimônides 1949b, Tratado 3, capítulo 7, 157-161.
19“Nunca houve um menino declarado filho desobediente e rebelde, e nunca

haverá. Por que então a lei foi escrita? Para que você possa estudá-lo e
receber uma recompensa [...].” (Talmude da Babilônia: Sinédrio 71A).

114
Direito Judaico

O próximo passo era interpretar a Torá20 como


autorizando não apenas a interpretação, mas também a
legislação rabínica, incluindo legislação permitindo atos
proibidos pela Torá ou proibindo atos permitidos, até mesmo
exigidos, pela Torá. Uma variedade de argumentos foi oferecida
para a adequação de tal legislação. Eles incluíam a alegação de
que proibições adicionais construíam uma cerca em torno da
Torá, impedindo as pessoas de fazer coisas que se
aproximassem do que era proibido e, assim, tornavam os atos
proibidos menos prováveis. Também o argumento da
necessidade, de que “é melhor [uma letra da] Torá ser arrancada
para que a Torá [inteira] não seja esquecida por Israel”.
Também a alegação de que a legislação em questão era apenas
temporária.21 A proibição de adicionar ou subtrair das regras da
Torá foi considerada apenas como implicando que outra
legislação estava em um nível inferior, não reivindicando a
mesma autoridade bíblica que a lei da Torá. Tal legislação,

20Deuteronômio 17:8-11. “Agirás de acordo com as instruções que lhe foram


dadas e a decisão que lhe foi dada; você não deve se desviar do veredicto que
eles anunciam a você, nem para a direita nem para a esquerda.” Aqui “eles”
são considerados os sábios, as autoridades haláquicas. Uma resposta a um
argumento semelhante usado para justificar a legislação comunal no século
14 foi distinguir entre o poder de interpretar a ambigüidade na Torá e o poder
de anular uma regra da Torá. Foi um bom ponto, dado que a Torá proibiu
explicitamente a última atividade, mas surgiu cerca de 1.500 anos depois.
21Hora'at sha'ah (“uma diretriz para o momento”) uma medida legislativa

temporária que permite uma conduta proibida pela Torá quando tal legislação
é uma precaução necessária para restaurar as pessoas à observância da fé.
Algumas legislações originalmente adotadas ou justificadas como medida
temporária tornaram-se parte estabelecida da lei judaica.

115
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

entretanto, poderia e autorizou a realização de atos proibidos


pela lei bíblica22 e a omissão de atos exigidos por ela.23
Sob a lei bíblica, todas as dívidas deveriam ser canceladas
a cada sete anos. Isso levantou um problema para alguém que
queria pedir dinheiro emprestado no sexto ano de um credor que
não esperava receber de volta. O problema foi reconhecido no
texto original, que exortava os credores a emprestar aos seus
congêneres ainda no sexto ano. Foi finalmente resolvido por
Hillel, que construiu uma forma legal, Prosbul, que permitia a
criação de uma dívida imune ao cancelamento no sétimo ano.24
A Torá proíbe os judeus de emprestar a outros judeus com
juros. As formas contratuais foram projetadas para fugir dessa
restrição em substância, ao mesmo tempo em que a obedecem
na forma. As regras sobre a divisão de lucros entre parceiros,
um dos quais contribuiu com capital e outro com trabalho,
foram desenvolvidas em parte na tentativa de controlar tais
evasões.25
O resultado desses desenvolvimentos foi um sistema legal
baseado em teoria na Torá, mas na verdade em grande parte em
interpretações rabínicas da Torá, muitas delas distantes do

22Le-migdar milta (“salvaguardar o assunto”) o princípio que autoriza as


autoridades haláquicas, como medida de proteção, a adotar decretos no
campo do direito penal que prescrevem ações proibidas pela Torá.
23Shev ve-al ta'aseh ("sente e não faça") uma categoria de legislação que

determina que um preceito afirmativo, obrigatório de acordo com a lei


bíblica, não seja cumprido.
24Elon 1994, 2:511-513, 561.
25Veja Maimônides 1951, capítulos VI e VII. Uma descrição de algumas das

formas de contornar a restrição e tentativas de limitá-las pode ser encontrada


em https://en.wikipedia.org/wiki/Loans_and_interest_in_Judaism.

116
Direito Judaico

significado literal do texto,26 e legislação rabínica, algumas


delas em violação direta do texto.27
Embora a lei existisse na Torá escrita e no ensino e escrita
de estudiosos jurídicos, não havia nenhum código escrito, pelo
menos nenhum que conhecemos, até a produção da Mishná em
cerca de 200 d.C. Ao contrário de um código de lei moderno, a
Mishná não dizia o que a lei realmente era. Em vez disso,
oferecia argumentos atribuídos a sábios do passado para
interpretações alternativas da lei, como um livro de casos
moderno. Estudiosos posteriores acreditaram que o rabino Judah
haNasi, o autor da Mishná, indicou qual das interpretações ele
considerava corretas pela maneira como se referia a elas.28
A Mishná foi seguida por vários séculos de estudos e
debates, principalmente nas academias babilônicas, mas também
em centros de aprendizado judaico em outros lugares,
especialmente em Israel, sobre seu significado e implicações. O
registro desses debates, junto com a própria Mishná, compôs os
dois Talmudes — o Talmude da Babilônia, produzido nas
academias da Babilônia, e o Talmude de Jerusalém, mais curto,
menos completo e menos autoritativo.
Pode-se esperar que vários séculos de discussão sobre o
significado de um código de leis resultem em algum grau de

26Por exemplo: “É hora de agir para o Senhor, pois eles violaram sua Torá”.
(Salmos 119:126) foi interpretado como autorizando a violação da Torá
quando era necessário agir para o senhor. A melhor defesa de tal
interpretação que já vi, de dentro do sistema de crenças, foi fornecida por um
correspondente online: “O Perfeito que fez a Lei também fez as brechas”.
27Muito disso é paralelo aos desenvolvimentos posteriores no direito

islâmico. Lá também um código legal nominalmente construído sobre um


texto imutável, o Alcorão e o Hadith, foi o produto de extensa interpretação
suplementada por regras criadas por autoridades seculares.
28Elon 1994, 1057-1072, em particular 1060.

117
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

esclarecimento, mas o resultado real foi o oposto. A Mishná é


ambígua porque relata as diferentes visões de diferentes sábios.
O Talmude acrescenta ambiguidade adicional ao apresentar
interpretações variantes desses pontos de vista.
Considere a questão da responsabilidade de tort quando
alguém tropeça em uma jarra deixada em via pública.

Mishná: Aquele que deixa uma jarra em domínio público


e outra pessoa aparece, tropeça nela e a quebra — [aquele
que a quebrou] está isento.29
Talmude da Babilônia: Eles disseram na casa de
Rab em nome de Rab: “Nós lidamos com um caso em
que todo o domínio público estava cheio de barris.”
Samuel disse: “Nós lidamos com um caso em que
os jarros estavam em um local escuro.”
R. Yohanan disse: “Nós lidamos com um caso em
que o jarro estava em um canto.”30

Todos os três concluem que o viajante normalmente é


responsável pelo dano, em contradição direta com a linguagem
simples da Mishná, que eles interpretam como aplicável apenas
a um caso especial.
Uma vez que o Talmude foi concluído, a erudição legal
era construída em cima de três camadas. A primeira era a Torá.
Isso era seguido pela legislação rabínica e comentários e
interpretações baseadas na Torá, culminando na Mishná. Isso
era seguido por comentários sobre a Mishná, culminando no
Talmud. A partir de então, os estudos consistiam principalmente
em comentários sobre o Talmude, que tinha as duas camadas
anteriores incorporadas a ele, junto com legislação adicional.
Outras camadas foram adicionadas à medida que um ou outro
29 Mishná. Baba Qamma 3:1. Neusner 1988, 506.
30 Talmude da Babilônia, Tractate Bava Kamma 27a-b. Neusner 1992, 114.

118
Direito Judaico

trabalho baseado nessas fontes — o Mishné Torá de


Maimônides é um exemplo — tornou-se o assunto de
comentários adicionais.

Autoridade Comunal
Com o tempo, uma outra questão surgiu nas comunidades
da diáspora — a legislação comunal. Tanto a lei bíblica quanto a
rabínica se aplicavam a todos os judeus em todos os lugares. Se
as circunstâncias especiais de uma comunidade exigissem regras
legais especiais, como elas deveriam ser produzidas? Se a
comunidade não contivesse um número suficiente de indivíduos
instruídos na lei, quem as produziria?
A solução foi sustentar que as autoridades comunais
poderiam funcionar tanto como um tribunal quanto como uma
legislatura. Uma base para isso foi o ditado talmúdico
sustentando que o judiciário tem o direito absoluto de transferir
e anular a donidade e outros direitos monetários.31 Embora isso
fosse limitado ao tribunal superior ou à maior autoridade da
geração, argumentava-se que cada comunidade era seu próprio
tribunal superior para as questões pertinentes a si mesma. Outra
base era a ideia de que a comunidade poderia ser considerada
como uma parceria legal, portanto, poderia determinar as
questões, assim como as disputas entre os parceiros poderiam
ser resolvidas por maioria de votos.32

31Hefker Beit Din Hefker.


32Elon oferece uma terceira base, o argumento de que a comunidade havia
herdado a autoridade do não mais existente rei de Israel, mas Gelley
argumenta que a fonte que ele fornece se referia à lei de Noé, lei que se
aplicava a todos os descendentes de Noé, não à lei judaica. (Comunicação
pessoal de William Gelley).

119
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Uma justificativa final e talvez a mais reveladora era que


os regulamentos comunais eram necessários para a
sobrevivência da comunidade judaica em um ambiente muito
diferente daquele em que a lei religiosa havia se desenvolvido.
Até que ponto o argumento foi levado variou de tempos
em tempos e de lugar para lugar. De acordo com uma versão, se
houvesse pelo menos um jurista na comunidade, as autoridades
comunais só poderiam legislar com sua aprovação.33 Se não
houvesse nenhum, eles tinham carta branca.
Uma outra distinção tinha a ver com quais eram os limites.
Argumentou-se que as autoridades comunais tinham carta
branca em relação a mammon, leis que tratam da relação entre
homem e homem, como tort, crime e contrato. As regras de
mammon podiam ser modificadas por si mesmas pelas partes de
um contrato, portanto, se a comunidade fosse considerada
vinculada por uma espécie de contrato social aceito por
unanimidade, ela também poderia modificar essas regras para
seus membros. Mas os humanos não tinham poder para
modificar suas obrigações para com Deus, portanto a
comunidade não era livre em relação à issur, lei religiosa.34
Algumas autoridades legais sustentavam que as
autoridades comunais podiam proibir o que a lei religiosa
permitia, mas não podiam permitir o que proibia ou proibir o
que exigia. Na prática, pelo menos em questões de mammon,
essa restrição era frequentemente violada. Assim, por exemplo,
os tribunais que impunham regras seculares podiam aceitar
testemunhas inaceitáveis sob a lei religiosa,35 como aquelas
relacionadas a um juiz ou a uma das partes — indiscutivelmente

33Elon 1994, 2:714.


34Elon 1994, 2:707-8.
35Elon 1994, 2:737-9.

120
Direito Judaico

necessárias em uma pequena comunidade onde praticamente


todos eram parentes uns dos outros. Os tribunais eram
autorizados a impor a pena de morte sem satisfazer as condições
extremamente restritivas da lei religiosa, como a exigência de
que, para que o réu seja passível de pena de morte, ele deve ter
sido informado, independentemente por duas pessoas diferentes,
de que o que ele estava prestes a fazer era um crime capital.36 Os
tribunais tinham permissão para prender devedores por não
pagarem suas dívidas, algo explicitamente proibido pela lei
religiosa. O resultado final foi adicionar, além do Talmude e sua
interpretação por estudiosos jurídicos, uma camada final de
direito comunal, variando de comunidade para comunidade.
As tentativas das autoridades comunais de revisar a lei de
casamento fornecem um exemplo dos problemas decorrentes da
natureza limitada de sua autoridade. Sob a lei bíblica, o
casamento exigia apenas o consentimento das partes, duas
testemunhas, um contrato por escrito e a entrega de um anel ou
símbolo semelhante pelo noivo à noiva.37 Em muitas das

36Maimônides (1949b, tratado 5, capítulo 3, 214) argumenta que tudo isso


estava sob o poder do rei de Israel.
37Em vez de dar uma aliança, o casamento poderia ser realizado por meio de

relações sexuais, uma opção geralmente desfavorecida — e levantava um


problema para a abordagem adotada por algumas autoridades comunais e
descrita abaixo. Para sua abordagem para lidar com isso, e a questão
issur/mammon de forma mais geral, veja Elon 1994, 2:851-2. O casamento
sob a lei judaica envolvia duas etapas. O primeiro, geralmente traduzido
como “noivado” ou “esposal”, era um acordo vinculativo efetuado por um
mandado, dinheiro ou relação sexual, após o qual o casal era considerado
casado e a separação exigia um get, uma certidão de divórcio. Esperava-se
que a esposa permanecesse na casa do pai e não tivesse relações sexuais com
o marido até o casamento, que ocorria quando ela entrava na câmara nupcial
da casa dele e tinha relações sexuais com ele. Para detalhes veja Maimônides
1972, Tratado 1.

121
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

comunidades da diáspora, esses requisitos eram considerados


inadequados. A solução foi complementar os requisitos da lei
bíblica com requisitos adicionais da lei comunal.
Isso levantava um problema. Suponha que ocorreu um
casamento legal sob a lei bíblica, ilegal sob a lei comunal. As
autoridades comunais sustentavam que a noiva não estava
casada e, portanto, livre para se casar com outra pessoa. Mas sob
a lei bíblica ela estava casada; para ela se casar com outra
pessoa era uma violação do Issur, lei religiosa, que as
autoridades comunais não tinham poder para mudar.
Uma solução era argumentar que, embora o casamento
fosse Issur, a aliança, sendo uma propriedade, era mammon. Se
um casamento fosse celebrado sem satisfazer os requisitos das
autoridades comunais, o anel era negado para eles. Como o
noivo não possuía o anel, os requisitos do casamento bíblico não
foram satisfeitos, portanto a noiva não estava casada e estava
livre para se casar com outra pessoa.
O que acho interessante nessa solução, além de sua
engenhosidade e lógica um tanto duvidosa, é a relutância das
autoridades comunais que a ofereceram em seguir na prática sua
teoria jurídica. Com o tempo, cada vez menos pessoas
sustentavam que era uma solução apropriada para os casamentos
que desaprovavam.38 Uma possível razão era que a lei do
casamento levantava questões que perpassavam as
comunidades. As autoridades comunais poderiam, nesta teoria,
anular um casamento entre dois membros de sua própria
comunidade, mas não um casamento entre uma mulher de sua
comunidade e um homem de uma comunidade diferente, pois
eles não teriam autoridade sobre sua propriedade.

38Elon 1994, 2:676-7, 712, 846-8, 859, 878.

122
Direito Judaico

Talvez para evitar esse problema, as autoridades comunais


recorreram a uma solução indiscutivelmente mais consistente
com a lei bíblica. Um casamento em condições que violassem as
regras comunais ainda era um casamento, mas, como quase
qualquer outro casamento, poderia terminar com o divórcio. Um
divórcio exigia o consentimento do marido, mas esse
consentimento poderia ser forçado por prisão, açoitamento e
métodos semelhantes.39 Uma vez concedido o divórcio, a esposa
estava livre sob a lei bíblica para se casar em qualquer
comunidade. A mesma solução possibilitou que os tribunais
decidissem que o divórcio poderia ser requerido tanto pela
esposa quanto pelo marido. A esposa não poderia se divorciar
do marido, mas poderia persuadir um tribunal a obrigar o
marido a se divorciar dela.

Controlando com Quem Sua Filha se Casa: Dois


Sistemas Legais
Por que as autoridades comunais estavam tão interessadas
em expandir os requisitos bíblicos para o casamento? Responsa
refere-se a mulheres casadas por trapaça ou fraude, mas uma
explicação alternativa é sugerida por alguns dos relatos
sobreviventes:

[…] mas o que não é bom são as histórias espalhadas


pelo povo de Deus, e suas fofocas e reclamações contra o
jovem, Naḥshon, a respeito de quem há rumores se
espalhando pela comunidade judaica de que ele se casou
com ela na calada de uma noite escura na presença de

39Estou simplificando um pouco. Um divórcio forçado, como um contrato


sob coação, não era legítimo e, portanto, não surtia efeito. Mas isso era
considerado não aplicável à compulsão legal.

123
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

duas testemunhas idôneas e com o consentimento


daquela jovem mulher. […]
Ela mesma declarou ao tribunal durante seu
interrogatório que, olhando pela janela, viu dois ou três
homens com Naḥshon, o noivo […] Sendo assim, ela se
casou na presença de duas testemunhas […]
Consequentemente, sua alegação de que ela estava
apenas brincando não é crível, porque não é uma questão
frívola baixar um cordão carmesim da janela para obter o
anel, considerando o teor do que eles estavam dizendo no
momento em que isso foi feito.
Visto que o primeiro homem negociou um
casamento com ela, talvez a menina tenha concordado
com o casamento, embora mais tarde ela tenha jogado
fora o anel por ordem de sua mãe; […] (Resp. raban, IH,
III, P. 47b (ed. Jerusalém), século XII, citado em Elon
1994, 848-9)

Ambos os relatos e a forma de algumas das restrições


comunais sugerem que as restrições visavam aumentar o
controle dos pais sobre o casamento de suas filhas. Existem
razões óbvias pelas quais os pais desejariam tal controle. As
regras bíblicas, que estabeleciam doze anos e seis meses mais
sinais de puberdade40 como a idade da maioridade feminina e
não exigiam nada além de duas testemunhas, consentimento e a
transferência de algum item de valor do noivo para a noiva com

40Sinaisde puberdade foram definidos como dois pêlos pubianos, embora


houvesse formas alternativas de evidência. Uma menina tornava-se uma
naara, donzela, não mais criança, mas ainda não com plenos direitos legais
de maioridade, aos doze anos e um dia (e sinais de puberdade). Seis meses
depois ela se tornava adulta (bogeret). Seu pai não tinha mais o direito de
desposá-la ou aceitar uma proposta de casamento em seu nome.

124
Direito Judaico

as palavras apropriadas, não lhes forneciam nenhuma maneira


de obtê-lo.
A questão me pareceu interessante em parte porque eu a
havia encontrado antes no contexto muito diferente da common
law anglo-americana. Cito do meu Law’s Order:

Alguns anos atrás, enquanto investigava a história dos


danos punitivos, me deparei com um trecho estranho e
interessante da lei do século XIX. Tanto na Inglaterra
quanto na América, quando um homem descobre que sua
filha foi seduzida, ele pode processar o sedutor — mesmo
que a filha seja adulta. O motivo pelo qual ele processava
era que ele, o pai, havia sido privado dos serviços da
filha. Processos por sedução eram, portanto, tratados
como um caso especial da doutrina sob a qual um mestre
poderia processar por danos a seu servo.
Em um caso, um juiz considerou que era base
suficiente para a ação se a filha ocasionalmente atuasse
como anfitriã nos chás de seu pai. Uma vez que o pai
tivesse legitimidade para processar como um mestre
privado dos serviços de seu servo, ele poderia basear sua
reivindicação não no valor real dos serviços, mas nos
danos à reputação sofridos pela família como resultado
da sedução.
A pergunta óbvia é por que, dado que a sedução
era considerada um ato ilícito, a lei adotou uma
abordagem tão indireta para lidar com ela? A explicação
que encontrei na literatura jurídica foi que uma parte de
um ato ilegal não pode processar outra por danos
associados ao ato. Se você e eu roubarmos um banco e
você deixar cair o saque na saída, não tenho direito de
receber indenização por sua negligência. A fornicação era
ilegal, assim uma mulher seduzida fazia parte de um ato
ilegal, portanto ela não poderia processar por danos.

125
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Assim, a lei substituiu a ficção jurídica do pai


processando como um mestre privado dos serviços da
filha.
Ocorreu-me na época que havia outra explicação,
talvez mais plausível. Nas sociedades tradicionais,
incluindo a Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, os pais
tentam controlar com quem suas filhas se casam. Uma
tática disponível para uma filha que discorda da escolha
de seu pai é deixar-se “seduzir” pelo homem com quem
ela quer se casar, na expectativa de que seu pai, diante de
um fato consumado e possivelmente de uma gravidez,
dará seu consentimento. Essa tática aparece
explicitamente nas Memórias de Casanova, que fornecem
um relato vívido e detalhado em primeira mão da vida na
Europa do século XVIII.41
Uma doutrina legal que desse à filha o direito de
processar tornaria a tática da filha menos arriscada ao
permitir que ela punisse um sedutor que se recusasse a
casar com ela. Uma doutrina legal que dava ao pai o

41Casanova 1970, 3: 271.

126
Direito Judaico

controle sobre a ação dava a ele uma ameaça que poderia


ser usada para desencorajar pretendentes inaceitáveis.42

Explicações do Que Pode Não Ser Óbvio


Há uma série de características do sistema jurídico que
podem parecer intrigantes para um leitor moderno. Elas
incluem:

O Ônus da Prova e o Papel dos Juramentos


O ônus da prova é uma questão familiar em nosso sistema
jurídico, mas o direito judaico acrescenta uma complicação
adicional na forma de juramentos. O padrão aparece em muitos
lugares; o seguinte é um exemplo.
Jacó diz: "Sinto falta de uma vaca e suspeito que Isaque a
roubou." Isaque nega roubá-lo e não há testemunhas ou outras
evidências. O caso de Jacó é rejeitado pelo tribunal.
Jacó diz: “Sinto falta de uma vaca e vi Isaque roubá-la”.
Isaque nega ter roubado; novamente não há outras testemunhas.

42Para o mesmo problema na Inglaterra medieval:

Enquanto os recursos de estupro eram interpostos apenas pela


própria mulher lesada, as ações de violação eram interpostas
por maridos, pais e senhores. Violação era o delito de
sequestrar e/ou estuprar uma mulher, e tais alegações se
tornaram comuns por volta da virada do século XIV. Esses
processos às vezes surgiam do casamento de uma mulher
contrário à vontade de seu pai ou de sua deserção do marido
para fugir com um amante. Em tais situações, atribuir o direito
de instaurar ações de violação a pais e maridos dava aos
homens poder adicional sobre as mulheres. Em contraste, a
exigência de que a vítima do sexo feminino interponha um
recurso de estupro tornou quase impossível que um recurso
fosse usado para frustrar sua escolha de marido ou amante.
(Klerman 2002, 313).

127
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Ainda é um caso “ele diz/ele disse”, mas Jacó agora está


fazendo uma afirmação certa em vez de uma afirmação incerta;
se Jacó é um homem honesto, Isaque é um ladrão, o que não era
verdade no caso anterior. A regra desta vez é que Isaque pode
“jurar e ser perdoado”. Se ele estiver disposto a jurar sua
inocência na forma prescrita, o caso de Jacó é arquivado. Se, no
entanto, Isaque não está disposto a jurar, Jacó prevalece; Isaque
é considerado culpado e deve uma indenização.43
Mude os fatos para tornar o caso de Jacó um pouco mais
forte, e agora é Jacó quem jura e toma. Se ele estiver disposto a
jurar que o que diz é verdade, ele ganha o caso. Se ele não está
disposto a jurar, ele perde. Mude ainda mais os fatos, talvez
acrescentando duas testemunhas ao ato, e Jacó prevalece mesmo
sem jurar. Uma complicação adicional, em alguns, mas não em
todos os casos, é a parte que é obrigada a jurar ter a opção de
alterar o juramento. Em vez de Jacó jurar a verdade de suas
alegações, ele exige que Isaque jure a verdade das dele. Se
Isaque fizer isso, ele prevalecerá.
Uma parte suspeita, alguém que é conhecido por ter jurado
falsamente no passado ou por ter violado qualquer uma das
várias regras da lei religiosa, não tem permissão para jurar e,
portanto, perde em um caso em que seu juramento é necessário

43Estou ignorando a distinção entre um juramento bíblico e um juramento


rabínico e entre uma situação em que o réu perde seu caso por não querer
jurar e outra em que ele é punido por se recusar a jurar, mas não perde o caso.

128
Direito Judaico

para que ele prevaleça — desde que a outra parte está disposta a
jurar.44
Isso sugere uma maneira pela qual requisitos como as
regras kashrut, regras que determinam o que um judeu religioso
pode ou não comer, podem servir a um propósito secular. A
observância cuidadosa de tais regras é prova de que o
observador acredita na religião, uma vez que está disposto a
arcar com custos substanciais para se conformar a seus
requisitos. O fato de ele acreditar na religião significa que ele
estará relutante em jurar falsamente, por medo de punição
sobrenatural. Portanto, os requisitos fornecem aos tribunais um
detector de mentiras, muito útil para resolver disputas.
O tratamento desses casos em Maimônides sugere duas
coisas. Primeiro, as partes relutam em jurar falsamente, então a
disposição de jurar fornece alguma evidência da veracidade do
que juram. Segundo, as partes podem relutar em jurar até
mesmo o que acreditam ser verdade, talvez porque temam que,
se cometerem um erro, estarão sujeitas a punição sobrenatural
ou que, se o tribunal concluir erroneamente que eles estavam
mentindo, eles não terão a opção de jurar em algum caso
posterior e mais importante.45 Os juramentos também
desempenham um papel semelhante em outros sistemas

44“Aquele que é suspeito em relação a um juramento não pode ser submetido


a um juramento […]. […] Também, aquele que for incompetente como
testemunha em razão de uma transgressão que cometeu, seja a incompetência
pentateutica, como no caso dos usurários, aqueles que comem carne de
animais não abatidos de acordo com as regras do ritual, ou ladrões, ou se a
incompetência for rabínica, como no caso de jogadores de dados ou criadores
de pombos, é considerado suspeito em relação a um juramento e não pode ser
submetido a ele.” (Maimônides, 1949a, Tratado 4, capítulo II, 196).
45Eles também podem relutar em jurar porque isso é uma invocação frívola

do nome de Deus.

129
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

jurídicos, incluindo os direitos islâmico, cigano e indígena das


planícies.

A parte principal é a enumeração de todos os terríveis


infortúnios que recairiam sobre um perjurador e toda a
sua família caso ele deixasse de dizer a verdade.
(Marushiakova e Popov 207, 89, descrevendo juramentos
entre os ciganos)

Inércia Legal: Deixando o Dinheiro Ficar Onde Ele Cai


Às vezes, a resolução justa de uma disputa legal não é
clara. Um autor de tort deve uma indenização à sua vítima, mas
não é certo se o caso pertence a uma categoria que implica
metade da indenização ou um quarto da indenização. O
documento que descreve o valor de um empréstimo é redigido
de forma ambígua devido a uma redação descuidada. O que o
tribunal deve fazer?
O tribunal concede a quantia menor, com base na teoria de
que não tem o direito de forçar alguém a desistir de algo, a
menos que tenha prova clara de que é obrigado a isso, portanto,
pode obrigar o réu a pagar um quarto, mas não a metade, o
devedor pagar apenas o menor valor compatível com o
documento. Se, porém, o queixoso tiver penhorado bens do réu
no valor de metade da indemnização ou o credor tiver
apreendido bens correspondentes à leitura do documento que lhe
seja mais favorável, o tribunal não o obrigará a restituir.
Isso parece estranho para um leitor moderno, mas faz
sentido lógico. O tribunal não tem certeza se o réu deve mais de
um quarto, então não o forçará a pagar mais de um quarto. O
tribunal não tem certeza se o queixoso tem direito a menos da
metade, portanto, se ele pegou metade, o tribunal não o obrigará

130
Direito Judaico

a devolver nada. Não é mais ilógico do que um tribunal


moderno que está confiante de que um ou outro dos dois
suspeitos é culpado de um crime, mas absolve ambos com base
no fato de que nenhum deles pode ser considerado culpado além
de uma dúvida razoável.
Essa característica da lei sugere que as regras que vemos
podem ter sido construídas sobre um sistema no qual as partes
reivindicavam seus próprios direitos, em vez de depender de
tribunais para fazer isso por elas, o que descrevo no capítulo 14
como um sistema de disputa.

Garantindo Dívidas e Donidade Incerta


Uma dívida pode ser garantida com um penhor — a
prática moderna de penhorar propriedades. Pode ser hipotecário,
garantido com o equivalente a uma hipoteca sobre uma
propriedade específica. Mas a regra padrão é que uma dívida é
garantida por todos os bens do proprietário, inicialmente apenas
seus bens imóveis, mas em leis posteriores também bens
móveis.
O efeito dessa regra atravessa partes substanciais da lei.
Abraão pede cem zuz emprestados de Rueben. Abraão
posteriormente vende um campo que possui para Isaque.
Quando a dívida vence, Abraão diz a Rueben que não tem
dinheiro para pagá-la. Rueben vai ao tribunal para reivindicar a
propriedade de Abraão no valor de cem zuz, apenas para
descobrir que a propriedade restante de Abraão vale apenas
cinquenta. Ele afirma isso e, além disso, reivindica de Isaque o
campo que Abraão lhe vendeu, ou pelo menos cinquenta zuz
dele. O campo estava sobrecarregado pela dívida de Abraão,
portanto, Abraão não podia dar a Isaque o título claro sobre ele.

131
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Isaque, tendo perdido o campo pelo qual pagou a Abraão,


agora tem o direito de exigir seu dinheiro de volta. Mas ele não
conseguirá se, como a sequência indica, Abraão neste ponto não
tiver dinheiro nem propriedades.
Uma implicação é que importa quando o dinheiro foi
emprestado e quando a terra foi vendida. A terra que foi vendida
antes da dívida ser contraída não é onerada; o terreno vendido
depois é onerado. Outra implicação é a oportunidade de o credor
putativo e o devedor putativo entrarem em conluio para enganar
um terceiro comprador.
Abraão vende seu campo para Isaque e depois esconde
seus bens. Rueben alega que Abraão anteriormente lhe devia
dinheiro. Rueben não tem provas documentais da dívida — mas
Abraão não a contesta. Se o tribunal acreditar na alegação,
Rueben agora pode confiscar o campo que Abraão vendeu a
Isaque, deixando Rueben e Abraão juntos na posse do campo e
do dinheiro pago por ele.
Devido a essas possibilidades, o tribunal pode relutar em
aceitar a existência de uma dívida não documentada, mesmo que
tanto o credor putativo como o devedor putativo a apóiem.
Uma fraude um tanto semelhante ocorre na lei moderna da
Internet. Paul coloca uma página da web crítica de Eugene.
Eugene, ou uma empresa de gerenciamento de reputação agindo
em seu nome, inicia uma ação legal por difamação, nomeando
Alexander como réu. Alexander concorda com uma liminar que
o proíbe de difamar Eugene. O tribunal, sem saber que a página
foi colocada por Paul e não por Alexander, emite a liminar.
Eugene, ou uma empresa agindo em seu nome, mostra essa
liminar ao Google e pede que ele desindexe a página que

132
Direito Judaico

supostamente contém a difamação. O Google faz isso.46 Alguém


que usa o Google para pesquisar informações sobre Eugene não
as encontrará mais.

Substância Legal
Este capítulo até agora concentrou-se quase inteiramente
em como a lei se desenvolveu e foi justificada. Os leitores
interessados na substância da lei podem encontrar um relato
detalhado na Mishné Torá de Maimônides. O volume 4 cobre a
lei do casamento, os volumes 11 a 14 cobrem outros tópicos de
um código de direito moderno, incluindo direito de torts,
criminal, contratual e de propriedade, evidências e punições. A
maior parte dos outros volumes lida com a lei religiosa. As
seções a seguir esboçam algumas partes da lei.

Momsers e Bastardos
O hebraico “momser” às vezes é traduzido como
“bastardo” e tem esse significado em alguns contextos
modernos. Na lei judaica, entretanto, significava alguém cujos
pais não apenas não eram casados, mas também não podiam ser.
Um exemplo seria o filho de uma união incestuosa. Outro seria
uma criança produzida pelo adultério de sua mãe. Seu pai não
poderia ter se casado com sua mãe porque ela já era casada; a lei
judaica permitia várias esposas, mas não vários maridos. Um
terceiro seria filho de um homem com a irmã de sua esposa; a
lei não permitia que um homem se casasse com duas irmãs. Um
bastardo que não era um momser, filho de um casal que não era
46Minha descrição simplifica e mescla elementos de duas versões da fraude,
uma inicialmente relatada no blog Volokh Conspiracy, a outra objeto de uma
ação judicial contra os perpetradores.

133
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

casado, mas poderia ter sido, tinha os mesmos direitos legais


que o filho de um casal casado.

Eu Posso Ter uma Esposa em Algum Lugar Por Aqui


Você nomeia um agente para encontrar uma esposa
adequada a fim de desposá-la.. Ele sai, não volta, acaba
morrendo. Agora você tem um problema. Ele pode ter
completado sua missão e, nesse caso, você agora está noivo,
mas não sabe com quem. Um noivado é, na verdade, um
casamento ainda não consumado e só pode ser encerrado por
morte ou divórcio.
Por que isso é um problema? A lei judaica permitia que
um homem se casasse com mais de uma esposa, mas não com
duas esposas que fossem irmãs ou mãe e filha. A solução,
supondo que uma investigação mais aprofundada não localize
uma esposa putativa nem demonstre que não existe uma, é
simples. Você é livre para se casar, mas apenas com uma mulher
que não tenha irmã, mãe ou filha com quem você possa, pelo
que você sabe, já estar casado.47
E se você acha que é um problema estranho para se
preocupar, dê uma olhada nas elaboradas discussões de
Maimônides sobre as implicações legais das circunstâncias em
que não está claro qual filho pertence a qual mãe.

Se cinco mulheres, cada uma tendo um filho garantido, se


dirigem juntas para o mesmo lugar secreto e ali dão à luz
outros cinco filhos, que então se confundem; e se esses
filhos confusos crescerem, tomarem esposas e morrerem,
[…].48

47Maimônides 1972, Tratado I, capítulo IX, parte 6, 53.


48Maimônides 1972, Tratado III, capítulo VIII, parte 10 pp. 322-323.

134
Direito Judaico

O contexto é o casamento levirato, a exigência de que a


viúva de um homem que morreu sem descendência se case com
um de seus irmãos para que ele possa ser pai de uma criança a
ser considerada filho de seu primeiro marido. Evitar a exigência
requer uma cerimônia especial para liberar os irmãos da
obrigação.
Se alguém morre e não se sabe qual dos cinco homens é
seu irmão,…

Tort
A lei judaica classifica os torts por analogia a quatro
exemplos: o boi escornador, o boi pastando, o buraco, o fogo.49
Considere um boi que escorna outro animal. Em
circunstâncias normais, o dono do boi deve metade dos danos
causados ao animal ferido até ao valor do animal que escornou;
a suposição é que o proprietário não poderia ter antecipado o ato
e, portanto, não é totalmente responsável. Se, no entanto, o boi
escornou repetidamente no passado, o proprietário foi avisado
do perigo e, portanto, é responsável pelo valor total dos danos
— o equivalente a negligência no common law anglo-
americano. E há cinco espécies, entre as quais o lobo e o leão,
para as quais o proprietário é considerado automaticamente
advertido, pelo que é sempre responsável pela totalidade dos
danos. O equivalente moderno é a responsabilidade estrita por
atividades ultraperigosas — como manter um leão de estimação.
Se o boi causar dano ao pastar na plantação de outra
pessoa ou pisar na propriedade de outra pessoa e feri-la, o
proprietário é responsável pelo valor total do dano; essas são
49Em cada um desses casos, Maimônides fornece uma discussão detalhada
cobrindo uma ampla gama de situações variantes; estou relatando apenas a
versão mais simples das regras relevantes.

135
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

coisas que os bois normalmente fazem, portanto, o proprietário é


automaticamente advertido. Isso não se aplica se o boi estiver na
propriedade de seu dono, na via pública ou em um pátio usado
por ambas as partes. Mas, mesmo nesses lugares, o dono é
responsável se o boi escornear, chutar ou morder — por metade
do dano se não for advertido, dano total se for.
Um buraco, ao contrário de um boi, é um perigo fixo. A
regra da responsabilidade do proprietário depende da
previsibilidade do dano sofrido pela queda em um buraco. Não
há responsabilidade se um animal cair em um buraco raso e de
alguma forma morrer, mas há responsabilidade por ferimentos
devido à queda em tal buraco.
A quarta categoria é o fogo, um perigo que se espalha. Se
o incêndio começar em sua propriedade, a regra básica, como
em grande parte do direito de torts moderno, é a negligência;
você não é responsável se tomou precauções que deveriam ser
adequadas. Por outro lado, se você for responsável por atear
fogo na propriedade de outra pessoa, será responsável pelos
danos, independentemente de ter sido negligente ou não.

Furto e Assalto
A lei judaica distingue entre furto (tomada discreta) e
assalto (tomada flagrante). O ladrão deve à vítima o dobro do
valor do que foi levado,50 salvo se confessar voluntariamente,
caso em que apenas é obrigado a pagar o valor.

50A menos que seja uma ovelha, tomada e abatida, pela qual ele deve quatro
vezes o valor, ou um boi, pelo qual ele deve cinco vezes — em ambos os
casos devido ao texto da Torá. O menor de idade ou o escravo que rouba
deve apenas o valor do que roubou e o menor que rouba alguma coisa e a
perde não deve nada. Tanto o menor quanto o escravo, porém, estão sujeitos
a castigos corporais.

136
Direito Judaico

A rouba algo de B, vende para C. Quando o furto é


descoberto, quem tem quais direitos sobre a propriedade?
A resposta simples é que B recebe a propriedade de volta,
mas deve compensar C pelo que pagou por ela; cabe então a B
processar A para obter seu dinheiro de volta. Isso não se aplica
se A for um ladrão notório, presumivelmente porque C deveria
ter percebido que estava comprando uma propriedade roubada.
Nesse caso, B recupera a propriedade de C e cabe a C processar
A para tentar reaver seu dinheiro. Também não se aplica se o
proprietário tiver perdido a esperança de recuperar sua
propriedade; nessa situação, o comprador obtém o título de
propriedade da propriedade roubada. Se o ladrão for notório, o
comprador deve indenizar o proprietário original pelo valor da
propriedade, mas não de outra forma.
Uma característica interessante dessas regras é que o
ladrão deve indenização, mas não recebe nenhuma outra
punição, exceto no caso especial em que é menor de idade ou
escravo. Além de não haver punição adicional, Maimônides
descreve situações em que o ladrão melhorou o bem roubado e
tem direito a uma indenização por isso.
Talvez mais surpreendente do ponto de vista moderno, a
pena para um assaltante é apenas a obrigação de devolver o que
ele levou; ao contrário do ladrão, ele não precisa pagar o dobro
do valor.51 Isso tem uma possível desvantagem; em uma leitura
estrita da lei bíblica, um assaltante que roubou uma viga e a
construiu em um prédio deve demolir o prédio para devolver a

51Uma explicação pode ser que a probabilidade de prender o ladrão é menor,


portanto, a punição deve ser maior para dissuadir. Alternativamente, o fato de
algo ter sido levado abertamente pode implicar que o tomador acreditava ter
direito a ele, tornando o caso uma disputa sobre a donidade, em vez de um
roubo deliberado.

137
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

viga ao seu dono. A lei rabínica modificou essa regra “para o


benefício dos penitentes” para permitir que o assaltante, nesse
caso, simplesmente reembolsasse o valor do que levou.

Ferir
Maimônides inicia o capítulo “Sobre Ferimentos e Danos”
listando cinco efeitos de uma lesão que requerem compensação:
dano, dor, tratamento médico, ociosidade forçada e humilhação.
Ele então explica em que circunstâncias a pessoa responsável
pelo ferimento deve uma compensação por algumas ou todas
essas categorias e como a compensação deve ser calculada. Por
exemplo:

Como são determinados os danos? Se alguém corta a


mão ou o pé de outro, determinamos — como se fosse
um escravo sendo vendido no mercado — quanto valia o
ferido anteriormente e quanto vale agora. O infrator deve
então pagar a quantia pela qual diminuiu o valor do outro,
pois quando a escritura diz, olho por olho [...] sabe-se da
tradição que a palavra traduzida por significa pagamento
de compensação monetária.

E, numa passagem que antecipa em sete séculos o


princípio do valor subjetivo na economia moderna:

Como é avaliada a dor no caso em que alguém privou o


outro de um membro? Se alguém cortar a mão ou o dedo
de outro, estimamos quanto mais uma pessoa de seu
status estaria disposta a pagar por ter seu membro
removido por meio de uma droga do que por tê-lo
cortado com uma espada, caso o rei decretasse que sua
mão ou seu pé seja cortado. A diferença assim estimada é
o que o infrator deve pagar pela dor.

138
Direito Judaico

Maimônides também considerou a situação em que o todo


era menor que a soma das partes. Se um homem sofresse uma
sequência de ferimentos para cada um dos quais fosse devida
indenização, o total era limitado ao valor de sua vida.
A diferença entre lesão intencional e lesão acidental, crime
e tort em nosso sistema,52 parece ter sido apenas de importância
secundária para Maimônides. Lesão intencional torna a parte
responsável por todos os cinco efeitos, mas também algumas
(mas não todas) formas de lesão acidental. O que consideramos
punições criminais aparecem apenas quando, por algum motivo,
o pagamento de danos não é devido. Assim, “se alguém der a
outro um golpe que não o prejudique na extensão de um pěrutah
(uma moeda de pequeno valor), ele incorre em açoitamento,
pois não há compensação neste caso (para isentá-lo pelos
fundamentos) que o mandamento negativo é retificado por
compensação monetária”.

Assassinato
O assassinato comum é um crime capital não remissível
por um pagamento em dinheiro, mas há possíveis complicações.
Alguém que mata indiretamente, por exemplo, contratando um
assassino, não está sujeito à pena de morte sob a lei religiosa,
embora um rei de Israel possa condená-lo à morte por decreto

52Um tort pode ser intencional, mas geralmente tratamos um ataque


deliberado que fere como um crime. Maimônides o inclui no mesmo livro
como um ferimento devido a um boi perdido ou o ferimento causado por um
homem que é jogado de um telhado pelo vento e fere alguém ou danifica algo
como resultado.

139
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

real para o bem da sociedade ou do tribunal como medida de


emergência.53

Se o rei não os matar, e as necessidades da época não


exigirem sua morte como medida preventiva, é, no
entanto, dever do tribunal açoitá-los quase até a morte,
aprisioná-los em uma fortaleza ou prisão por muitos
anos, e infligir-lhes todos os castigos a fim de assustar e
aterrorizar outras pessoas más, para que tal caso não se
torne uma cilada e uma armadilha, seduzindo alguém a
dizer: “Vou providenciar para matar meu inimigo de
maneira indireta, assim como Fulano de Tal; então serei
absolvido.”54

Uma das minhas partes favoritas da lógica jurídica diz


respeito a alguém que morre de uma doença orgânica fatal.
Maimônides começa dizendo que o assassino de tal pessoa está
legalmente isento — embora, é claro, seja preciso ter muita
certeza de que a doença é incurável e fatal. Ele prossegue
acrescentando que, se alguém que sofre de tal doença mata, deve

53O tratado contém uma extensa discussão sobre os direitos do (na época de
Maimônides e inexistente no milênio anterior) rei de Israel. Maimônides
escreve: “[…] para que este compêndio inclua todas as leis da Torá de
Moisés, nosso professor, tenham ou não relevância prática neste tempo de
exílio.” (Maimônides 1971, Introdução, 1b). “Maimônides aspirava restaurar
o alcance da Halakhah à sua antiga glória — como na Mishná — e incluiu
em seu código (a Mishné Torá) todo o corpus juris do direito judaico. Seu
trabalho, no entanto, continua sendo um esforço isolado; tanto antes quanto
depois dele, a codificação foi limitada às partes da lei que têm relevância
prática.” (Elon 1994, 3:1095). Algumas passagens antecipam explicitamente
o reavivamento do reino de Israel. (Maimônides 1949b, tratado 5, capítulo
11, 238-40).
54Maimônides 1954, 199-200.

140
Direito Judaico

ser condenado à morte, desde que seja tão atencioso a ponto de


matar na presença de um tribunal.
E se ele não o fizer? Condená-lo, então, depende de
testemunhas. As testemunhas só podem ser confiáveis em um
caso capital se elas mesmas correrem o risco de punição se seu
depoimento for falso. Nesse caso, conspirar para usar falso
testemunho para condenar alguém que é inocente não resultaria
em penalidade legal, pois a vítima seria alguém morrendo de
uma doença orgânica fatal e não há penalidade por matar tal
pessoa. Uma vez que as testemunhas não correm o risco de
serem condenadas à morte se o seu testemunho for falso, o seu
testemunho não pode ser confiado. Como seu testemunho não é
confiável, não há como condenar o assassino. Assim, alguém
morrendo de uma doença orgânica fatal pode cometer
assassinato impunemente, desde que tome cuidado para não
fazê-lo no meio do tribunal.
Pessoalmente, depois de ler como o tribunal deve lidar
com um tipo diferente de advogado de regras,55 acho que não
tentaria.
Há um paralelo interessante no direito chinês:

Os maiores de oitenta ou menores de dez anos, os


enfermos totais e incuráveis, e as mulheres, em todos os
casos, estão impossibilitados de apresentar e processar
quaisquer informações, exceto […]. — Sobre quaisquer
outros assuntos, as informações de tais pessoas devem ser
rejeitadas, porque em todos os casos ordinários elas têm o
direito de se redimir da punição por multa e, portanto,
não se dissuadem de fazer falsas acusações pela

55N.T.: Em inglês rules lawyer, significa alguém que é um participante de um


ambiente baseado em regras que tenta usar a letra da lei sem referência ao
espírito, geralmente para obter uma vantagem nesse ambiente.

141
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

apreensão das consequências a que, sob as mesmas


circunstâncias, outras pessoas seriam responsabilizadas.

Maimônides continua descrevendo com alguns detalhes as


regras associadas ao vingador de sangue, o herdeiro da vítima de
um assassino e as cidades de refúgio — das quais, como os reis
de Israel, não havia nenhuma por mais de mil anos. O assassino
deveria ir a uma das cidades de refúgio, ser levado de lá ao
tribunal da cidade onde ocorreu o assassinato, julgado e, se
culpado de assassinato deliberado, condenado à morte pelo
vingador de sangue. Se considerado culpado de assassinato não
intencional, ele deveria ser enviado de volta à cidade de refúgio
para permanecer lá até que o sumo sacerdote, também
inexistente na época de Maimônides, morresse. No caminho
para ou da cidade de refúgio, ele poderia ser morto pelo
vingador de sangue sem penalidade.56
Isso parece um resquício de um sistema de disputa pré-
existente, desordenadamente integrado ao seu substituto.57
Veremos algo semelhante no próximo capítulo, quando
examinarmos como o assassinato é tratado pela lei islâmica.
Outra semelhança com a lei islâmica posterior está no
tratamento de não-judeus sob o domínio judaico. A lei rabínica
especifica com algum detalhe quais leis são ou não obrigatórias
para eles. Se dois pagãos forem ao tribunal e ambos solicitarem
que sua disputa seja julgada sob a lei judaica, isso será feito.
Mas se algum deles preferir, o caso é decidido sob a lei pagã.

56Estou simplificando demais; havia três tipos diferentes de assassinos não


intencionais e a regra que descrevi se aplicava a apenas um deles.
57Outro exemplo: “Porque uma vez que a sentença de morte foi dada a ele,

ele é considerado morto, e aquele que o mata não é responsável.”


(Maimônides 1949b, tratado 4, capítulo 7, 160). Isso parece ilegal no sistema
islandês.

142
Direito Judaico

Algumas restrições que se aplicam aos judeus não são


obrigatórias para os pagãos, algumas outras restrições são
obrigatórias apenas para os pagãos. Um pagão e um judeu não
podem se casar. Ao contrário da situação na lei islâmica, a
restrição se aplica tanto a uma mulher judia que se casa com um
homem não judeu quanto a um homem judeu que se casa com
uma mulher não judia. Assim como na lei islâmica, a conversão
não é exigida, mas é irreversível.58

58Para detalhes, veja Maimônides 1949b, 230-238.

143
Direito Islâmico

5
Direito Islâmico
A primeira e mais importante coisa a perceber sobre a lei
islâmica é que, vista em seus próprios termos, é a lei de Deus,
não do homem. Nenhuma sociedade desde a morte de Maomé
poderia impor a Shari'a porque, estando ausente a inspiração
divina, nenhum ser humano tinha conhecimento completo e
correto de seu conteúdo. Estritamente falando, o que os tribunais
islâmicos tradicionais impunham não era a Shari'a, a lei de
Deus, mas fiqh, jurisprudência, a imperfeita tentativa humana de
deduzir de fontes religiosas o que a lei humana deveria ser.1
Esse fato ajuda a explicar como o islamismo sunita foi capaz de
manter quatro diferentes, mas mutuamente ortodoxas, escolas de
direito. Só poderia haver uma resposta correta para o que Deus
queria que os humanos fizessem, entretanto, poderia haver mais
de um palpite razoável. De acordo com uma tradição
amplamente aceita, um Mujtahid, um estudioso do direito que
deduziu a lei do Alcorão e as tradições a partir do que Maomé
fez e disse, recebia duas recompensas no céu se acertasse, uma
se errasse.
Isso também explica a natureza da divisão quíntupla dos
atos na lei islâmica. Um ato obrigatório é um ato que Deus
1“Alguns, em particular os estudiosos muçulmanos mais jovens, tendem a
usar 'Shari'a' como um nome para a vontade divina como só Deus a conhece;
uma lei divina abstrata apenas percebida por Ele. […] o que os juristas
formularam com base nesta Revelação, embora sua razão seja apenas ‘lei’
como ciência, fiqh.” (Vikør 2005, 2). É assim que uso os termos neste
capítulo, já que me parece a melhor maneira de entendê-los. Como Vikør
deixa claro, nem todos os estudiosos muçulmanos concordam.

145
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

recompensará você na vida após a morte por realizar, e o punirá


por não realizar. Um ato recomendado é aquele que Deus irá
recompensá-lo por realizar, mas não irá puni-lo por não o
realizar. Um ato permissível é aquele pelo qual Deus não o
recompensará nem o punirá. Um ato ofensivo é aquele que você
será recompensado por abster-se, mas não será punido por
executá-lo. Um ato ilegal é aquele pelo qual você será punido
por realizar, e recompensado por evitar. Do ponto de vista de
um muçulmano crente, embora nenhum sistema legal da
sociedade imponha a Shari'a, a Shari'a foi aplicada em todas as
sociedades em todos os tempos e lugares — por Deus, não pelo
homem.
Em muitos casos, cometer um ato ilegal ou abster-se de
um ato obrigatório pode resultar em punição legal, bem como
punição divina, mas não é isso que define o ato como ilegal ou
obrigatório.2 Para colocar a questão de outra forma, a lei
islâmica é mais próxima a um sistema de moralidade do que um
sistema de direito, uma vez que suas regras descrevem
principalmente como alguém deve agir, apenas secundariamente
descrevem as consequências legais da ação. É um sistema
jurídico apenas de um ponto de vista que considera Deus, não o
sistema jurídico humano, como o juiz e executor finais.
Para ver melhor a distinção entre Shari’a e fiqh, considere
os dois significados diferentes de “constitucional” em nosso
sistema legal. Para um professor de direito que ensina direito
constitucional a seus alunos, o que é constitucional é definido
por quais decisões a Suprema Corte tomou no passado ou quais
decisões ele espera que ela tome no futuro. Não há
inconsistência em sustentar que o programa agrícola do New
2Por exemplo, cobrar juros (riba) é proibido, mas os estudiosos discordam
sobre se isso é punível por lei ou apenas por Deus na vida após a morte.

146
Direito Islâmico

Deal era inconstitucional em 1936, quando a Suprema Corte


decidiu contra ele, mas constitucional depois de 1942, quando a
Suprema Corte aprovou uma versão revisada — uma mudança
devido, sem dúvida, não a mudanças na legislação, mas na
posição da Corte.
Essa é uma visão natural do que significa “constitucional”
do ponto de vista de um professor de direito, mas não do ponto
de vista de um juiz da Suprema Corte. A questão para ele não é
como ele e seus colegas votarão ou votaram, mas como ele deve
votar. Ao decidir se algo é constitucional, ele precisa voltar a
tudo o que vê como as fontes do direito constitucional, seu
equivalente ao Alcorão e ao hadith, para se envolver no que um
estudioso muçulmano descreveria como ijtihad, deduzindo a lei.
O direito constitucional do professor de direito corresponde ao
fiqh, o do juiz à Shari'a.
Como fiqh foi deduzido e aplicado? O estudioso começou
com as fontes do conhecimento revelado — o próprio Alcorão e
as palavras e atos de Maomé e seus companheiros conforme
relatado em hadith, tradições. A partir dessa informação, um
estudioso religioso suficientemente instruído, um mujtahid,
deduzia regras legais. Com o tempo, os estudiosos se separaram
em quatro escolas, cada uma composta por várias gerações de
estudiosos que se fundamentam nas obras de seus predecessores,
cada escola (madhab) identificada com o nome do erudito
considerado seu fundador. As escolas eram geralmente
semelhantes, mas diferiam nos detalhes de suas abordagens de
interpretação e nas regras que deduziam; cada uma considerava
as outras como ortodoxas.
À medida que os estudos se acumulavam, mais e mais
perguntas podiam ser respondidas olhando para a obra das
gerações anteriores de estudiosos. Alguns historiadores

147
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

modernos argumentam que o resultado, por volta do século X,


foi o fim do processo pelo qual a lei era deduzida, o fechamento
dos portões do ijtihad. Na opinião de outros, embora os esforços
possam ter mudado gradualmente do ijtihad para o estudo das
obras das gerações anteriores de estudiosos, nunca houve um
momento em que a pesquisa original desapareceu
completamente, mesmo porque novas circunstâncias às vezes
traziam novas perguntas a serem respondidas.3
A dedução da lei envolvia uma série de problemas
diferentes. Para começar, nem sempre ficou claro o que o
Alcorão ordenava. Um versículo poderia ser tomado como um
exemplo de um princípio geral ou como o próprio princípio
legal a ser seguido. Em alguns casos, como as regras relativas ao
vinho, os versos posteriores eram inconsistentes com os

3Schacht (1986, capítulo 10, 69-75) defende o fechamento dos portões, mas
sua posição foi contestada por Wael Hallaq em Hallaq 1984 e sua visão de
que o fechamento completo nunca aconteceu parece agora ser geralmente
aceita. Pelo relato de Hallaq, era geralmente aceito em algum momento do
século IV/X que não seriam fundadas mais escolas de direito, não havendo
mais mujtahids com a habilidade dos fundadores de mesmo nome, mas
restaram muitos mujtahids capazes de fazer ijtihad dentro das quatro escolas
existentes. Em algum momento no final do século V/XI, início do século
VI/XI, começou a ser debatido se os mujtahids poderiam ser extintos e o
ijtihad, portanto, impossível, e nos séculos posteriores alguns estudiosos
argumentaram que isso aconteceu, enquanto outros o negaram.

Após o século IV/X, a doutrina jurídica atingiu um nível


requintado de detalhes e sofisticação, e seria difícil encontrar
um caso totalmente sem precedentes. No entanto, os juristas
precisavam da teoria jurídica depois dessa época não menos do
que antes. Assim como muitos de seus elementos foram
empregados para construir o direito antigo, ele foi convocado
em períodos posteriores para julgar entre os muitos pareceres
jurídicos que ele mesmo produziu ao longo do tempo. (Hallaq
2009, 76).

148
Direito Islâmico

anteriores. Para resolver essas questões, os estudiosos


desenvolveram regras elaboradas de interpretação, variando um
pouco entre as escolas.4
Deduzir regras legais do hadith apresentou outro conjunto
de problemas. As tradições foram inicialmente transmitidas
oralmente, só depois escritas. Cada um veio com seu isnad, sua
genealogia, uma lista da cadeia de transmissores começando
com a pessoa que primeiro viu ou ouviu o que foi feito ou dito.
Era necessário decidir para cada hadith quão certo poderia ser
que não foi inventado por alguém em algum ponto abaixo da
suposta cadeia, nem impreciso devido a um erro na transmissão.
A regra básica aceita por todas as escolas era que, se
houvesse um número suficiente de cadeias independentes
apoiando o mesmo hadith, ele poderia ser aceito como genuíno
com certeza. Além disso, a confiabilidade de cada hadith
dependia do número de cadeias independentes e da
confiabilidade dos transmissores em cada cadeia. Parte do que
era necessário para ser um mujtahid era um amplo
conhecimento não apenas do hadith, mas também das
informações necessárias para avaliá-los, incluindo a genealogia
de cada um e a reputação de confiabilidade de seus
transmissores. Eventualmente, várias coleções de hadith
autenticadas foram produzidas por estudiosos que passaram por
um número muito maior, eliminando aqueles que consideravam
insuficientemente bem fundamentados.

4Al-Nawawi 2009 é uma tradução moderna de um resumo da lei do século


XIII com notas destinadas aos leitores muçulmanos modernos. O capítulo 8,
no processo de explicar por que deduzir a lei do Alcorão e do Hadith é um
problema difícil que requer experiência acadêmica, fornece exemplos de
como o material de origem pode ser interpretado e mal interpretado.

149
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Além do Alcorão e do hadith, havia mais uma fonte de


informação sobre a lei divina — o consenso. De acordo com
várias tradições, o Profeta havia dito em algum momento que
seu povo nunca concordaria com um erro. Embora não houvesse
um número suficiente de tradições idênticas para esse efeito, foi
acordado pelos estudiosos de todas as quatro escolas que havia
tradições diferentes suficientes com a mesma implicação para
atender ao requisito, portanto, poderia ser considerado certo que
o Profeta havia feito tal declaração. Seguiu-se que, se em algum
momento todos os estudiosos concordassem em uma questão,
essa questão seria permanentemente resolvida. O que significava
exatamente que todos os estudiosos deveriam estar de acordo,
quer fossem todos os estudiosos qualificados de todas as escolas
ou de apenas uma, quer fosse necessário que todos expressassem
concordância positiva com uma proposição ou apenas que
nenhum expressasse desacordo, eram questões sobre as quais
diferentes estudiosos tinham opiniões diferentes. Mas todos
concordaram que, uma vez estabelecido o consenso, ele fornecia
uma fonte adicional de autoridade.

A Separação da Lei e do Estado


A lei, em teoria, não foi feita pelo governante, mas
deduzida por estudiosos do direito. Na opinião de pelo menos
alguns estudiosos modernos, isso também era verdade na
prática. Após os primeiros séculos e até a ascensão dos
otomanos, a autoridade política no mundo islâmico estava
fragmentada. Os governantes locais eram frequentemente
estrangeiros para as populações que governavam, muitas vezes
príncipes turcos que haviam feito a transição de mercenários a
serviço de dinastias árabes para governantes de facto. O que eles

150
Direito Islâmico

queriam dos estudiosos do direito era apoio para sua


legitimidade. Embora eles pudessem ocasionalmente se
intrometer em alguma questão legal de relevância imediata para
eles, eles estavam dispostos a deixar o sistema legal nas mãos
dos estudiosos. Eles estavam até dispostos a subsidiar os
estudiosos, doando mesquitas e madrissahs, faculdades que
forneciam emprego para estudiosos do direito. Pense no sistema
resultante como o que a common law anglo-americana seria se
os professores de direito governassem o mundo, a lei definida
não pelos precedentes estabelecidos pelos juízes, mas pelo
equivalente medieval dos artigos de revisão do direito.5
Entre os estudiosos que deduziram a lei e os tribunais que
a aplicaram, havia uma camada adicional — os muftis. Um mufti
era um especialista jurídico que oferecia conselhos sobre
questões jurídicas a quem quisesse. Parece ter sido
originalmente uma posição não remunerada definida pela
reputação em vez de nomeação pelo governante, como o

5“O papel fundamental do jurisconsulto [mufti] na construção e reposição do


corpo de direito substantivo e processual é enfatizado pelo fato de que os
teóricos jurídicos insistiram ao longo dos séculos em equiparar o mujtahid ao
jurisconsulto, não ao juiz. É verdade que, ao contrário da decisão do
magistrado, a opinião legal do jurisconsulto não era obrigatória, mas sua
opinião, em virtude de ter emanado de uma autoridade altamente qualificada,
tornou-se parte e, de fato, definia a lei. Era a percepção comum na profissão
jurídica de que a decisão do juiz é particular (juz'i) e que sua importância não
transcende os interesses das partes em disputa, enquanto a fatwā dos
jurisconsultos é universal (kulli) e se aplica a todos os casos semelhantes que
possam surgir no futuro.” (Hallaq 1997, 154).

151
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

jurisconsulto romano.6 Alguém que desejasse uma opinião sobre


uma questão legal poderia fazer a pergunta a um mufti local e
receber um fatwa, uma opinião jurídica aconselhativa.
Inicialmente, esperava-se que o mufti fosse um mujtahid, um
estudioso qualificado para derivar regras de suas fontes
originais. Mas por volta do século XIII tornou-se aceito emitir
fatwas por alguém que estava familiarizado com a doutrina de
uma escola jurídica, mas não fosse ele mesmo um mujtahid
capaz de derivá-la.7
O fatwa pode equivaler a um conselho moral, uma opinião
sobre a ação correta a ser tomada. Pode ser um conselho legal
em nosso sentido, uma declaração das implicações legais da
situação descrita. Não cabia ao mufti descobrir o que realmente
havia acontecido, apenas relatar quais seriam as implicações
legais dos fatos que lhe foram descritos.
O agente final no progresso da revelação divina para um
sistema judiciário funcional era o qadi, o juiz. Ao contrário de
todos acima dele na cadeia, ele era nomeado e pago pelo
governante. Embora fosse desejável que ele fosse um
especialista na lei, isso não era essencial, pois ele poderia
depender para a lei de fatwas apresentados a ele pelos litigantes
ou fornecidas a seu pedido por um mufti em resposta a perguntas
sobre a lei relevante.

6“A primeira nomeação governamental de um mufti parece ter sido feita em


Damasco com a criação de Dar al-'Adl, Casa de Justiça, na última parte do
século VII/XIII, ou na primeira parte do século VIII/XIV." (Makdisi 1981,
199). “À medida que o Estado se fortalece, começa a nomear muftis para
determinados tribunais. […] Sabemos que os mamelucos, que de muitas
maneiras foram intermediários entre os períodos medieval e otomano,
nomearam muftis em algumas das principais mesquitas, enquanto o resto do
país ainda tinha muftis 'autonomeados'. (Vikør 2005, 145).
7Hallaq 1997, 145.

152
Direito Islâmico

Do ponto de vista do direito americano moderno, os dois


estágios finais do processo se parecem como nosso sistema,
porém invertido. No nosso sistema, o tribunal de primeira
impressão aplica a lei aos fatos e produz um veredito. Se o caso
for apelado, o tribunal de apelações considera os fatos como já
decididos e emite uma segunda opinião oficial sobre a lei. Em
seu sistema, a opinião sobre a lei vinha primeiro, fornecida pelo
mufti, seguida pela aplicação da lei pelo qadi aos fatos como ele
os via. Na maioria das circunstâncias, não havia como apelar o
veredito do qadi.

Uma Visão Alternativa


O que descrevi até agora é o relato tradicional de como o
direito islâmico, fiqh, foi derivado. Vários estudiosos modernos,
dos quais o mais influente foi Joseph Schact,8 argumentaram
que esse relato é em grande parte fictício. Ele apontou um
grande número de casos em que os companheiros do Profeta,
que certamente estariam familiarizados com as regras legais que
ele seguia, tomaram decisões que pareciam inconsistentes com
as regras posteriormente deduzidas do hadith. Sua conclusão foi
que todos ou quase todos os hadith, incluindo os autenticados,
eram falsos, inventados nos primeiros séculos ao longo de
conflitos sobre a lei. Em sua opinião, a lei muçulmana era na
verdade um amálgama de regras legais árabes pré-existentes,
regulamentos administrativos criados pela primeira dinastia
muçulmana e regras legais derivadas das regras das províncias
conquistadas. Uma vez que surgiram disputas entre diferentes
escolas de direito, a autoridade do Profeta forneceu a evidência

8Schacht 1986 Capítulos 4-11. O argumento foi feito anteriormente por


Ignatz Goldziher.

153
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

mais decisiva disponível, então ambos os lados de tais disputas


inventaram tradições para apoiar suas posições. Estudiosos que
defendiam derivações da lei não baseadas na revelação divina
acabaram perdendo para aqueles com a posição oposta.
Estudiosos posteriores criticaram partes do argumento de
Schacht, mas a maioria, pelo menos entre os estudiosos
ocidentais não-muçulmanos, parece aceitar muito de sua tese.9

9Assim, Wael Hallaq critica Schacht enquanto defende uma posição que
parece, pelo menos para este observador não especialista, diferir da dele
apenas em detalhes:

No entanto, o panorama das pesquisas recentes, preocupadas


com as origens históricas de relatórios proféticos individuais,
sugere que Goldziher, Schacht e Juynboll têm sido
excessivamente céticos e que vários relatórios podem ser
datados antes do que se pensava, até mesmo tão cedo quanto o
Profeta. Essas descobertas, juntamente com outros estudos
importantes que criticam a tese de Schacht, mostram que,
embora um grande volume de relatórios proféticos possa ter se
originado muitas décadas depois da Hijra, existe um corpo de
material que pode ser datado da época do Profeta. (Hallaq
1997, 2-3).

Para contextualizar, al-Bukhari, uma das autoridades em hadiths


autenticados, lista 7.275 deles, supostamente selecionados entre 600.000
candidatos. Outra autoridade, muçulmana, incluiu 9.200, selecionados de
300.000. Em um trabalho posterior, Hallaq escreve:

O aumento dramático na autoridade profética na virada do


século II/VIII envolveu a projeção em Maóme sunan pós-
profético também. Práticas legais e doutrinas originárias de
várias vilas e cidades na terra conquistada, e amplamente
baseadas no modelo dos Companheiros, começaram a
encontrar uma voz representacional na Sunna Profética. A
projeção do modelo dos Companheiros de volta ao Profeta foi
realizada por um longo e complexo processo de criação da
narrativa do hadith. (Hallaq 2009, 45).

O que soa próximo à posição de Schacht.

154
Direito Islâmico

As Escolas de Direito
As escolas de direito nas quais os estudiosos jurídicos
sunitas se dividiram foram associadas a obra de um único
estudioso de quem tiraram seu nome: Maliki, Hanbali, Shafi'i e
Hanafi.10 Eles concordaram com o esboço geral da lei, porém
discordaram quanto aos detalhes. Assim, por exemplo, a
punição por beber vinho era de oitenta chicotadas de acordo
com três das escolas, quarenta de acordo com a quarta (Shafi'i).
Três escolas interpretam a regra como proibindo o consumo de
qualquer embriagante, uma (Hanafi) como proibindo apenas o
consumo de vinho e embriaguez. A escola Shafi'i exige que o
zakāt, o imposto religioso, seja distribuído igualmente entre as
oito categorias de destinatários, enquanto a escola Hanafi
permite que seja distribuído para todos, alguns ou apenas uma
categoria.11
Embora as escolas diferissem em detalhes, elas se
consideravam mutuamente ortodoxas.12 Nesse aspecto, como em
outros, a história da lei islâmica tanto se assemelha quanto
difere daquela da lei judaica. As escolas de Hillel e Shammai
toleraram uma à outra por várias gerações, mas eventualmente a
escola majoritária suprimiu a minoritária. No caso islâmico
paralelo, as quatro escolas da lei sunita continuaram sua
tolerância mútua até os dias atuais.
Os dois grandes ramos do Islã são os sunitas e os xiitas,
divisão que remonta a uma disputa pela sucessão do califado
10Houve várias outras escolas sunitas que acabaram extintas.
11Para obter detalhes, veja Donaldson 2000, 60-63.
12A situação em relação às escolas de direito xiitas é mais complicada.

Alguns estudiosos jurídicos sunitas consideram os xiitas hereges e, da mesma


forma, na outra direção. Também existem divisões substanciais entre os
xiitas.

155
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

após a morte do profeta. Os xiitas acreditam que Ali, primo e


genro do Profeta, deveria ter sido o primeiro sucessor e que a
sucessão deveria ter percorrido seus descendentes. Os sunitas
apoiam a sucessão que de fato ocorreu, com Abu Bakr, um dos
companheiros mais próximos de Maomé, escolhido para ser seu
sucessor, seguido por Umar, Othman e, finalmente, Ali. A
divisão tornou-se permanente quando Muawiya, sobrinho do
terceiro califa e governador da Síria, recusou-se a aceitar a
sucessão de Ali no califado, iniciando a primeira guerra civil
muçulmana e eventualmente estabelecendo a primeira dinastia
islâmica.
As quatro escolas de direito são todas sunitas; os xiitas
têm suas próprias escolas e regras legais, em muitos aspectos
semelhantes. Embora escolas diferentes fossem dominantes em
áreas diferentes, uma cidade muçulmana medieval poderia ter
tribunais separados para as quatro escolas sunitas, a xiita e as
outras religiões toleradas.13 Era um sistema polijurídico; as
disputas dentro de cada comunidade iriam para os tribunais
daquela comunidade. Os não-muçulmanos tinham que usar os
tribunais muçulmanos para casos criminais, mas podiam
escolher a lei para questões civis. Em pelo menos algumas
épocas e lugares, as partes que criavam um contrato, uma
parceria, um casamento podiam escolher em qual sistema legal
da escola desejavam criá-lo e estariam sujeitas às regras desse
sistema legal em qualquer disputa futura. O que aconteceu em
uma disputa entre as partes que aderiram a diferentes sistemas

13O Alcorão estabeleceu três religiões toleradas além do Islã: o judaísmo, o


cristianismo e uma terceira geralmente considerada como sendo os sabeanos,
habitantes de um reino semita no que hoje é o Iêmen, mencionados tanto na
Bíblia quanto no Alcorão. Após a conquista da Pérsia, o zoroastrismo foi
geralmente considerado uma religião adicional tolerada.

156
Direito Islâmico

jurídicos não é totalmente claro e provavelmente variou no


tempo e no espaço. De acordo com pelo menos uma autoridade,
a regra mais comum era que a disputa fosse para o tribunal do
réu.14
Embora a lei fosse, em teoria, independente do estado, na
prática, na maioria das sociedades islâmicas históricas, as regras
criadas pelo estado desempenharam um papel significativo.
Cabia ao governante nomear o qadi e impor seus julgamentos. O
governante poderia, por seu controle sobre a jurisdição,
determinar a qual tribunal um caso iria. Sob os abássidas, a
segunda dinastia islâmica, a polícia (shurta) começou a

14“A situação mais normal é que, se o queixoso e o réu pertencem a madhabs


diferentes, eles devem usar o do réu. No entanto, a parte vencida pode tentar
levar seu caso ao tribunal de um madhab diferente, se houver um na cidade.
Mas como isso poderia levar a um conflito de competência entre os tribunais
das escolas, na maioria dos casos seria difícil conseguir que um juiz de uma
escola aceitasse um caso que já havia sido decidido por um colega de outra.
[…] Em vez disso, a parte vencida poderia ir a um mufti e perguntar se o
veredito estiver correto. O mufti não pode, então, avaliar as evidências do
caso [...] mas pode dar sua opinião sobre a forma como a lei foi usada e
declarar que tal forma foi errônea. Isso não levaria a nenhuma reversão
automática ou reabertura do processo, mas seria um bom argumento para a
parte procurar outro juiz para esse fim. Essa nova avaliação só deve ocorrer
quando o primeiro juiz morreu [ou foi deposto] […] mas também pode
ocorrer que casos antigos sejam retomados em novos tribunais enquanto o
primeiro juiz ainda estiver no cargo.” (Vikør 2005, 151).
“[…] a doutrina que proclama a revisão judicial e a revogação total de uma
decisão legal existente como válida quando pode ser provado que a decisão
viola os ditames das escrituras e/ou do consenso. […] Parece que o único
outro motivo para revogar uma decisão anterior é descobrir que ocorreu um
erro na determinação das evidências com base nas quais a decisão foi
tomada.” (Hallaq 1997, 156). Ambos estão sendo distinguidos de um
desacordo sobre ijtihad, a derivação de regras legais de fontes textuais, que
não é passível de apelação.

157
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

investigar, julgar e punir os infratores fora dos tribunais fiqh. O


inspetor do mercado (muhtasib) criava e aplicava regulamentos
comerciais. Os tribunais mazalim foram criados para investigar
a má conduta de funcionários, incluindo qadis, mas com o
tempo se expandiram para assumir a jurisdição sobre áreas
adicionais. Finalmente, o governante tinha o direito de criar
regulamentos administrativos para implementar fiqh ou
preencher lacunas na lei por meio do mecanismo de siyasa,
criando regras adicionais e até mesmo até certo ponto
contraditórias às regras do fiqh.15 Em teoria, todos esses
tribunais funcionavam em Siyasa Shari'a, o espírito geral da
Shari'a, mas eles não estavam vinculados às regras específicas
do fiqh, assim como os tribunais comunais judaicos deveriam
ser fiéis ao espírito da lei judaica, mas nem sempre eram
consistentes com a lei rabínica.
Uma razão para o desenvolvimento de tribunais estatais
paralelos pode ter sido o desejo do governante de manter o
controle. A segunda razão era que o fiqh tinha sérios limites
como sistema legal. Fornecia regras explícitas apenas para um
conjunto limitado de delitos e seus padrões probatórios eram em
alguns contextos muito difíceis de cumprir e em alguns, talvez,
muito fáceis. Para a maioria das controvérsias, a prova exigia o
testemunho ocular de dois homens muçulmanos adultos e
competentes do mesmo ato ilegal; uma vez que seu bom caráter
foi estabelecido, o testemunho não poderia ser impugnado por
interrogatório ou outros meios.
15Em teoria, a lei islâmica, como o direito penal inglês do século XVIII
descrito no capítulo 15 não prevê nenhum procurador público; todo
muçulmano tem o direito de atuar como procurador privado e os casos
podem ser resolvidos fora do tribunal sem nunca envolver o qadi. Mas os
tribunais Siyasa Shari'a tornaram possível algo mais parecido com o direito
penal comum, com casos iniciados por autoridades indicadas pelo estado.

158
Direito Islâmico

Outra característica do fiqh ecoa um padrão que vimos


anteriormente na lei judaica, o papel dos juramentos. Em alguns
casos, o juramento de uma das partes pode substituir uma das
duas testemunhas exigidas. Além disso, depois que o qadi
decidiu a favor de uma das partes, essa parte ainda teve que
prestar juramento sobre a veracidade de sua posição. Se ele não
o fizesse, a outra parte tinha a opção de jurar a veracidade de seu
relato e, se o fizesse, ganhava o caso.

O que Aconteceu com o Direito Islâmico?


Wael Hallaq, um dos mais proeminentes estudiosos
modernos, argumenta que o sistema jurídico islâmico funcionou
melhor do que a maioria dos sistemas modernos, fornecendo
serviços jurídicos gratuitos para todos, defendendo os pobres e
impotentes contra os ricos e poderosos. Embora os governantes
desempenhassem algum papel, influenciando o sistema a seu
próprio favor ou preenchendo suas lacunas, suas regras eram
principalmente a criação de estudiosos que faziam uma tentativa
honesta e bem informada de aprender e implementar a vontade
divina. Os estudiosos mantinham sua independência em parte
por meio da existência de waqfs,16 o equivalente medieval de
fundações ou trust funds, proporcionando às mesquitas e
madrassas uma renda permanente, parte da qual poderia ser
usada para sustentar estudiosos do direito. Embora os fundos
originais frequentemente se originassem de um governante ou
parente próximo de um governante, sendo essas as pessoas com
16Os waqfs que discuto aqui eram trust funds dedicados a propósitos
religiosos. Havia também waqfs dedicados a fins de bem-estar secular, como
a manutenção de chafarizes públicos, e outros que eram fundações familiares,
dinheiro fornecido por uma geração para ficar sob o controle e gasto em
benefício de seus descendentes.

159
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

maior probabilidade de ter grandes somas disponíveis para esse


fim, as doações anteriores estavam fora do controle do
governante atual. E os governantes, na maioria das vezes mais
interessados em manter o apoio dos estudiosos do direito do que
no conteúdo da lei, estavam dispostos a deixar este último
principalmente nas mãos dos estudiosos.
Na visão de Hallaq, foi o colapso desse sistema nos
séculos XIX e XX, devido à ascensão do estado-nação sob
influência ocidental, que destruiu o sistema tradicional. Em
territórios islâmicos sob domínio colonial, como Índia,
Indonésia e Argélia, os governantes coloniais substituíram o
sistema tradicional de lei descentralizada independente do
estado por um sistema de lei estatutária incorporando elementos
da lei tradicional, em alguns casos, elementos interpretados de
maneira favorável ao poder dominante. Após o fim do período
colonial, os novos estados independentes seguiram o mesmo
caminho. Assim, em sua opinião, os “islamistas” modernos que
se veem como desejando reinstituir a Shari'a estão propondo
algo bem diferente e menos desejável, um sistema centralizado
de lei feita pelo estado com regras até certo ponto modeladas no
fiqh tradicional.17
Um problema com a tese de Hallaq de que a destruição do
sistema tradicional foi devida ao colonialismo ocidental é o caso
do Império Otomano.18 Ele nunca foi colonizado, mas também
nele o sistema tradicional de direito independente e
descentralizado foi substituído pelo direito estatal centralizado.
17A Arábia Saudita moderna é, até certo ponto, uma exceção a esse padrão,
com legistas independentes. Existe uma escola de direito dominante
(Hanbali), mas algumas opções para que as controvérsias sejam julgadas sob
as regras de outras escolas.
18Minha descrição das instituições otomanas é baseada principalmente em

Gerber 1994.

160
Direito Islâmico

Hallaq atribui essa mudança à pressão ocidental indireta, e


a vê como uma resposta dos otomanos no século XIX ao
crescente poder dos estados cristãos da Europa. Mas a mudança
começou muito antes. Os otomanos deram à escola de direito
Hanafi um monopólio legal dentro das áreas centrais do império
e uma posição superior em áreas onde outras escolas haviam
sido dominantes antes da conquista otomana. Qadis das outras
escolas estavam subordinados ao qadi Hanafi, que poderia
reverter julgamentos que se afastavam muito da doutrina Hanafi.
Com o tempo, cada vez mais juristas dessas áreas desertaram
para a escola Hanafi, onde o dinheiro, os empregos e o poder
eram encontrados.
Os sultões otomanos reivindicaram o direito, quando o
ensinamento Hanafi permitia interpretações alternativas da lei,
de dizer aos juízes o que eles deveriam seguir. E os sultões
proclamaram suas próprias regras legais, kanun, em teoria em
apoio ao fiqh, mas na prática às vezes inconsistentes com ele.
Assim, o fiqh, de acordo com as quatro escolas, proibia
empréstimos com juros. Kanun previa uma taxa de juros
máxima.
A interferência das autoridades não se limitou aos
tribunais. Sob os otomanos, havia um Grande Mufti nomeado
pelo sultão com autoridade final sobre a nomeação de qadis e a
administração de mesquitas e madrassas. Embora Hallaq possa
estar correto em sua visão da independência dos legistas fora do
Império Otomano, dentro dele essa independência havia sido
eliminada muito antes do início do século XIX, numa época em
que o Império Otomano era uma grande potência sem razão nem
inclinação para aprender com seus vizinhos ocidentais.
O colapso do sistema jurídico tradicional pode, como
argumenta Hallaq, ser devido à ascensão do estado-nação, mas a

161
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

conexão entre isso e o imperialismo ocidental é acidental, não


essencial. As causas que levaram ao surgimento do estado-nação
no Ocidente,19 a substituição do feudalismo pela monarquia
absoluta, também ocorreram no mundo islâmico, principalmente
no Império Otomano. A anexação dos waqfs pelas autoridades
otomanas é paralela ao confisco anterior das terras dos
mosteiros por Henrique VIII. O resultado em ambos os casos foi
a eliminação de instituições que competiam com o estado por
poder e recursos.

O Conteúdo do Fiqh
As partes da lei religiosa islâmica que lidam com delitos
criminais reconhecem três categorias, definidas pela natureza da
punição. Os delitos Hadd, principalmente derivados das regras
do Alcorão, têm punições fixas. Os delitos Ta'zir têm punições
definidos a critério do juiz. Os delitos Jinayat, homicídio e
lesões corporais, têm resultados determinados em parte por lei,
em parte por decisões tomadas pela vítima ou seus parentes, e
parecem basear-se nas regras da disputa de sangue árabe pré-
islâmica.

Hadd
Há cinco delitos hadd: relação sexual ilegal (zina), falsa
acusação de relação sexual ilegal (kadhf), beber vinho (shurb),
roubo (sariqa) e roubo na estrada (qat'al-tariq), que inclui
assalto à mão armada de uma casa. Todos são considerados
ofensas contra Deus, embora em alguns casos também contra
uma vítima humana, e por isso não podem ser perdoados.
19Não estou oferecendo nenhuma resposta para a interessante questão de
quais foram essas causas.

162
Direito Islâmico

Zina é definida como relação sexual voluntária com


qualquer pessoa que não seja seu cônjuge legal ou concubina. A
punição é a execução por apedrejamento, para um infrator que já
teve relações sexuais lícitas, ou cem chicotadas (cinquenta para
um escravo — metade do número de chicotadas para um
escravo é um padrão comum e não vou me preocupar em anotá-
lo daqui em diante) para quem não teve. A prova do delito
requer quatro testemunhas oculares do mesmo ato sexual, todas
as quatro devem ser muçulmanos adultos idôneos, de boa
reputação, ou confissão; a gravidez de uma mulher que nunca
casou também pode ser tomada como prova suficiente. A
confissão é retratável; de acordo com algumas autoridades, uma
tentativa de fuga se qualifica como retratação e, portanto, anula
a condenação e a punição. As testemunhas devem estar
presentes no julgamento e na execução. No caso de
apedrejamento, se não atirarem as primeiras pedras a punição
não é executada.20
Esses requisitos severos de prova sugerem que a
fornicação e o adultério seriam, na prática, quase impossíveis de
provar, mas isso se aplica apenas ao delito hadd.21 As relações
sexuais ilegais também podem ser processadas como um delito
Ta'zir, com padrões de prova mais fracos e punições menos
severas.
Kadhf é definido como uma falsa acusação de zina, onde
“falso” é interpretado como “não comprovado”, tornando
perigoso o papel de testemunha de zina. Se, por exemplo, uma
das quatro testemunhas for menor de idade, as outras três podem

20Schacht 1986, 176.


21De acordo com Ibn Taymiyah, escrevendo no final do século XIII ou início
do século XIV, até sua época Zina, a relação sexual ilegal nunca havia sido
provada pelas quatro testemunhas exigidas.

163
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ser acusadas de kadhf. A acusação deve ser feita pela pessoa


falsamente acusada. A pena é de oitenta chicotadas. Uma falsa
acusação de ilegitimidade também conta como kadhf.
O caso de um marido acusar sua esposa de adultério,
diretamente ou contestando a paternidade de seu filho, está
sujeito a um conjunto especial de regras. O marido que não
puder provar a acusação pode se proteger de ser acusado de
kadhf jurando quatro vezes por Allah que está falando a verdade
e uma vez lançando uma maldição sobre si mesmo se estiver
mentindo. A esposa pode se defender da acusação pela mesma
série de juramentos. Se ela não quiser fazê-lo, isso é considerado
uma confissão tácita de culpa, sujeitando-a à pena de zina.
Shurb é estritamente definido como beber vinho ou
embriaguez, mais amplamente como o consumo de qualquer
embriagante, com a definição detalhada variando entre as
diferentes escolas de direito. A punição é de oitenta chicotadas
(quarenta, na visão de uma determinada escola). A prova é por
confissão retratável ou depoimento de duas testemunhas adultas
muçulmanas.22
O crime hadd de sariqa é definido como roubo, mas roubo
que atende a uma variedade de requisitos. O ladrão deve ser um
adulto apto. O roubo deve ser intencional, realizado
furtivamente, subtraindo um item de valor superior ao mínimo
especificado. O item deve ser protegido por seu dono, então
roubar um animal pastando a uma distância de seu celeiro não se
qualifica como tal, nem roubar de uma casa onde você é um
convidado. O furto de alimentos perecíveis não conta porque se
presume que o furto é por fome e por isso é permitido. Se o
ladrão pensou que a propriedade era pelo menos parcialmente
22Estarestrição aplica-se apenas aos muçulmanos. Os não-muçulmanos têm
permissão para fazer, transportar e consumir vinho.

164
Direito Islâmico

dele, corretamente ou não, isso não contava como roubo. Pode-


se argumentar que o roubo de propriedade pública nunca foi
contabilizado, uma vez que todos os muçulmanos eram, de certa
forma, proprietários conjuntos. A vítima do roubo deve
comparecer ao julgamento e à punição.23
Muito possivelmente, a lista de requisitos é tão extensa
porque estudiosos jurídicos, como muitos comentaristas não-
muçulmanos, consideraram a punição, amputação da mão
direita, excessiva. Como a punição era do Alcorão, ela não
poderia ser alterada, mas poderia ser cercada com qualificações
suficientes para que fosse improvável que fosse aplicada — a
mesma abordagem que os estudiosos jurídicos judeus aplicaram
à regra sobre o apedrejamento de um filho desobediente. Um
roubo que não atendesse aos requisitos para o crime hadd ainda
poderia ser processado e punido sob ta'zir.24
Qat'al-tariq é definido como roubo de viajantes longe de
ajuda ou como invasão armada em uma casa particular com a
intenção de roubá-la. A punição é a amputação da mão direita e
do pé esquerdo. Se combinado com assassinato, a punição era a
morte pela espada;25 se o roubo não foi apenas tentado, mas
consumado e combinado com assassinato, a punição era a

23Schacht 1986, 176.


24“Há uma forte tendência para restringir a aplicabilidade das punições hadd
tanto quanto possível, exceto o hadd por falsa acusação de relações sexuais
ilegais, mas isso, por sua vez, serve para restringir a aplicabilidade do hadd
para relações sexuais ilegais em si. O meio mais importante de restringir as
punições hadd são as definições restritas. Importante, também, é a parte
atribuída a shubha, a ‘semelhança’ do ato que foi cometido com outro, lícito,
e portanto, subjetivamente falando, a presunção de bona fides do acusado.”
(Schacht 1986, 176).
25De acordo com Vikør, “um assalto na estrada que não levou a um

assassinato é tratado como roubo”. (Vikør 2005, 283).

165
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

crucificação. Ao contrário do caso de homicídio processado sob


jinayat, a punição era obrigatória; a vítima ou os parentes da
vítima não tinham a opção de cancelá-la ou de aceitar dinheiro
de sangue.

Ta’zir
Para delitos ta'zir, a punição cabia ao juiz, com opções
que iam desde uma repreensão particular até a morte, mas
limitada, na visão da maioria das escolas, a menos do que a
punição que seria imposta (de acordo com alguns em um
escravo, para alguns em um homem livre) pelo delito hadd
correspondente. A prova é pelo depoimento de duas
testemunhas, uma das quais pode ser mulher, ou por confissão
não retratável; alguns estudiosos do direito sustentaram que o
juiz poderia agir com base em seu próprio conhecimento,
mesmo sem tal prova.
A maior parte dos delitos criminais no fiqh são tratados
como delitos ta’zir, incluindo delitos não-hadd e delitos hadd
que, por uma razão ou outra, não atendem aos padrões rígidos
de hadd. Kadhf é apenas um crime hadd se cometido contra um
muçulmano, mas ta'zir pode ser usado para proteger não-
muçulmanos contra acusações não comprovadas de relações
sexuais ilegais.

Jinayat
A parte do fiqh que se aplica ao homicídio ou lesão
corporal é chamada de jinayat e parece ser baseada nas regras
pré-islâmicas da disputa de sangue árabe. A acusação é
apresentada pela vítima, se estiver viva, ou pelo parente mais
próximo, se estiver morta. A punição é retaliação ou dinheiro de

166
Direito Islâmico

sangue (diya). A retaliação ocorre apenas a pedido da vítima, se


viva, de seus parentes mais próximos, se a vítima estiver morta,
e deve ser infligida pela vítima ou por parentes. No caso do
homicídio, a retaliação significa a morte, no caso da lesão
significa impor uma lesão idêntica. Quando a retaliação é uma
das opções, a vítima ou seu parente mais próximo pode exigir
dinheiro de sangue ou negociar um acordo extrajudicial. Jinayat,
como o direito de tort moderno, baseia-se na ação privada; não
há funcionário responsável por iniciar o caso.26 Mas se a vítima
não tiver parentes vivos, o direito de retaliação recai sobre o
estado.
A fórmula para o dinheiro de sangue é baseada no diya
pesado — cem camelos fêmeas, divididos igualmente entre
crianças de um, dois, três e quatro anos — ou no diya mais leve,
oitenta camelos fêmeas novamente divididos igualmente em
idade mais camelos machos de vinte e um anos; também pode
ser 1.000 dinares ou 10.000 dirhams.27 O dinheiro de sangue
para homicídio consiste no diya completo, pesado ou leve,
dependendo das circunstâncias. Para lesões, o pagamento é
escalado por uma fórmula simples, embora um tanto arbitrária
— meio diya pela perda de algo do qual a vítima tem dois, como
mão, braço, pé ou perna, um décimo de diya pela perda perda de

26Schacht 1986, 177-8. Além de tornar um assassino sujeito a diya ou


retaliação, o homicídio também cria a obrigação de libertar um escravo
crente ou jejuar por dois meses. Para um relato detalhado das regras de
Jinayat, veja https://law.jrank.org/pages/667/Comparative-Criminal-Law-
Enforcement-Islam-Homicide-bodily-harm-jinayat.html.
27Schacht 1986, 185. Vikør estima que 1.000 dirhem correspondiam a cinco a

dez anos de renda em um nível médio, não muito longe de minha estimativa
para o wergeld islandês no capítulo 10 (Vikør 2005, 289). Na Arábia Saudita
moderna, o diya por um assassinato deliberado custa mais de cem mil
dólares.

167
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

um dedo. Isso tem o estranho resultado de que o pagamento pela


perda de um nariz, do qual a vítima tem apenas um, é um diya
completo, o dobro do pagamento pela perda de um braço ou
perna. Quando tal fórmula não for aplicável, o pagamento é a
porcentagem de um diya completo correspondente à
porcentagem pela qual o valor de um escravo seria reduzido
pelo mesmo dano.28
A lei distingue entre graus de homicídio. No caso de
homicídio doloso — sem justificativa legal, intencional e
cometido com uma arma que normalmente causa a morte — o
parente mais próximo da vítima tem o direito de exigir
retaliação ou o diya mais pesado. A maioria das escolas inclui
como homicídio falso testemunho no julgamento que resulta em
morte.29 Quando o homicídio foi acidental ou o assassino
acredita estar agindo legalmente, a retaliação não é uma opção e
a pena é o diya mais leve. Em todos os casos, a condenação é
por confissão ou depoimento de duas testemunhas adultas do
sexo masculino.30
Em alguns casos, o pagamento do dinheiro de sangue é,
em teoria, compartilhado entre o infrator e seu 'Akila,
correspondendo ao grupo de pagadores de dia31 do direito
somali descrito no capítulo 11. Segundo Schact, “toda a
instituição caiu em desuso em uma data anterior”.

28Schact 1986, 186. Uma fórmula semelhante aparece em Maimônides,


embora nesse caso seja a quantia pela qual o valor da vítima seria reduzido se
ela fosse vendida como escrava. (Maimônides 1954, Tratado IV, Capítulo 1).
29Também a regra judaica, a julgar pela análise de Maimônides sobre o

problema de condenar um assassino que sofre de uma doença fatal.


30Testemunhas não-muçulmanas são aceitáveis contra um réu não-

muçulmano, mas não contra um réu muçulmano.


31Eu uso a romanização “diya” neste capítulo, “dia” no capítulo somali, em

cada caso seguindo o uso de minhas fontes.

168
Direito Islâmico

Essa afirmação é aparentemente equivocada, fato que


descobri quando um grupo de estudantes sauditas do LLM fez o
curso do qual este livro se desenvolveu, fornecendo-me fontes
primárias em sala de aula. Cada um era membro de um ‘Akila,
que eles traduziram como “clã”. Como um deles explicou em
um artigo escrito para o curso, seu ‘Akila seria responsável por
um terço do diya devido por um homicídio ou lesão acidental.32

32“O ‘Akila consiste naqueles que, como membros do exército muçulmano,


têm seu nome inscrito na lista […] e recebem pagamento, desde que o
culpado pertença a eles; alternativamente, dos membros masculinos de sua
tribo (se seus números não forem suficientes, as tribos relacionadas mais
próximas são incluídas); alternativamente, dos colegas de trabalho em seu
ofício ou seus confederados; […]. Esta instituição teve suas raízes no direito
consuetudinário pré-islâmico dos beduínos, onde o culpado poderia ser
resgatado de retaliação por sua tribo, […]. […] toda a instituição caiu em
desuso em uma data anterior.” (Schacht, 186) “[…] o princípio é que nenhum
indivíduo deve ser solicitado a pagar mais do que quatro dirhem, portanto, se
ocorrer uma morte, 2.500 colegas pagantes devem ser encontrados. Se isso
não for possível, o estado pode intervir ou a pessoa que cometeu o
assassinato acidental terá que arcar com a perda, afinal.” (Vikør 2005, 289).
De acordo com meus alunos sauditas, os membros de um ‘Akila
compartilham um sobrenome comum e, como os membros dos grupos de
parentesco irlandeses discutidos em um capítulo posterior, descendem de um
ancestral comum na linhagem masculina. Como os somalis, os sauditas
conhecem sua genealogia de linhagem masculina há muitas gerações — dez
no caso de um de meus alunos a quem fiz a pergunta. O tamanho do clã é
tipicamente de alguns milhares de machos, semelhante ao tamanho de um
grupo de pagantes de dia. Um artigo de um estudante sobre o 'Akila pode ser
encontrado em
http://www.daviddfriedman.com/Legal%20Systems/Alasmi%20AKILA.docx
.

169
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Ridda
Há um crime que não se encaixa claramente nas categorias
que listei — ridda, apostasia, o crime de abandono da religião
Islã. Alguns vêem isso como um crime hadd, outros como um
crime a ser tratado sob siyasa, regulamentos administrativos
criados pelo estado.
A visão usual é que a apostasia é um crime capital, uma
posição baseada na suposta prática de Maomé. Algumas
autoridades sustentam que pode ser punido sem julgamento,
outros que o apóstata tem direito a um julgamento e uma escola
que o apóstata deve ter três dias para se arrepender e retornar ao
Islã. Mulheres apóstatas devem ser presas e, de acordo com
algumas escolas, espancadas até que se retratem.
O Alcorão condena o apóstata ao inferno, mas não
prescreve nenhuma punição. Alguns estudiosos argumentam que
a pena de morte era uma punição não por abandonar o Islã, mas
pelo crime (historicamente intimamente relacionado) de se
rebelar contra ele, e que a crença por si só não deveria ser
punida. Por outro lado, uma escola afirma que não apenas a
apostasia do Islã é proibida, mas também a apostasia de
qualquer uma das outras religiões do livro.33

Lei do Casamento
Sob a lei islâmica, o casamento é tratado como um
contrato. Marido e mulher são legalmente distintos, cada um
com o direito de possuir propriedades. A propriedade da esposa
inclui o dote acordado como parte do contrato de casamento.

33“Paraa escola Shafi’i mais casuística, qualquer ato de apostasia era fatal,
mesmo, digamos, do judaísmo ao cristianismo.” (Forte 1999, 161). Mas isso
claramente não se aplica à conversão ao Islã.

170
Direito Islâmico

Parte dela é paga no momento do casamento, mas parte, às


vezes uma grande parte, pode ser devida apenas após o divórcio
ou a morte do marido. Assim, embora o marido seja livre para se
divorciar da esposa, isso pode custar caro. A esposa não tem o
direito de se divorciar do marido, mas pode barganhar pelo
divórcio oferecendo-se para abrir mão de parte do que ele
deveria a ela como resultado. Em alguns momentos e lugares, a
esposa também pode solicitar que o tribunal, por justa causa, aja
em nome do marido para se divorciar dela. E o contrato de
casamento poderia incluir condições como o direito da esposa
de se divorciar se o marido tomasse uma segunda esposa.
A esposa deve ao marido obediência e acesso sexual, o
marido deve à esposa relações sexuais adequadas e apoio em um
nível adequado à sua posição, definida pelo status de sua
família.

Tributação
Os dois impostos do Alcorão são jizya, um imposto anual
por cabeça pago por não-muçulmanos sob domínio muçulmano,
e zakāt, um imposto sobre propriedades produtivas pertencentes
a muçulmanos.34 Supõe-se que este último vá para um conjunto
específico de categorias de destinatários. O pagador de imposto
pode pagá-lo ao governante para distribuir por ele, a um
intermediário que recebe uma parte para lhe pagar pelo trabalho
de distribuir o dinheiro ou às próprias categorias de destinatários
designadas. Na lei do xiismo duodecimano, o pagamento vai
34O zakāt consiste principalmente em um imposto sobre a riqueza de 2,5%
sobre o ouro, prata e mercadorias para comércio, um imposto de renda de
10% sobre as culturas cultivadas em terras naturalmente irrigadas e de 5%
sobre as culturas cultivadas em terras irrigadas. (Al-Nawawi 2009, Capítulo
4).

171
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

para o estudioso religioso de alto nível cuja interpretação da lei


o pagador de impostos individual escolheu seguir, para ser
distribuído por ele.
Além desses dois, os estados islâmicos impuseram uma
variedade de impostos religiosamente duvidosos para financiar
suas atividades.

Direito Islâmico e Direito Judaico:


Similaridades
Estudando os dois, fiquei impressionado com o quanto
eles tinham em comum. Por exemplo:
A lei islâmica permite a um homem apenas quatro
esposas. De acordo com a lei da Torá: “um homem pode se
casar com várias mulheres, mesmo com uma centena delas, seja
ao mesmo tempo ou uma após a outra, [...] desde que seja capaz
de fornecer a cada uma delas a comida, roupas e direitos
conjugais devidos a ela.” No entanto, Maimônides relata que:
“Os Sábios, portanto, ordenaram que um homem não deve se
casar com mais de quatro esposas, mesmo que tenha muito
dinheiro, para que o cronograma com cada esposa ocorra pelo
menos uma vez por mês.”35
Aqui, o “cronograma” é de relações sexuais com o marido,
os “direitos conjugais devidos a ela”. Maimônides oferece um
relato detalhado de quantas vezes um homem é obrigado a
dormir com sua esposa, dependendo de suas circunstâncias.
“Para os homens que são saudáveis e vivem em condições
confortáveis e prazerosas, sem ter que realizar trabalhos que
possam enfraquecer suas forças, e não fazem nada além de
comer e beber e sentar-se ociosamente em suas casas, o
35Maimônides 1972, Tratado 1, Capítulo XIV, 87.

172
Direito Islâmico

cronograma conjugal é todas as noites. […] para marinheiros,


uma vez a cada seis meses; para os discípulos dos sábios, uma
vez por semana, porque o estudo da Torá enfraquece suas
forças.”
De acordo com o fiqh, pelo menos uma versão Shafi'i:
“Deve-se fazer amor com a esposa a cada quatro noites, como é
mais justo, já que o número de esposas que se pode ter é quatro
[...] embora se deva fazer amor com ela mais ou menos do que
essa quantidade, de acordo com a quantidade que ela precisa
para permanecer casta e livre de carência, uma vez que é
obrigatório para o marido permitir que ela se mantenha casta.”36
Na lei islâmica, um homem tem o direito de ter relações
sexuais com sua esposa, desde que não haja um bom motivo,
como menstruação ou problema médico, para não permitir o ato.
Na lei judaica, uma esposa que recusa relações sexuais com o
marido é uma “esposa rebelde”.37 Ela não pode ser compelida,
mas seu marido deve se divorciar dela e ela perde seu ketubah, o
dinheiro que normalmente iria para ela quando divorciada ou
viúva.38 Um homem que não deseja ter relações sexuais com sua
esposa é obrigado a divorciar-se dela e pagar-lhe ketubah. As
regras em torno do casamento são semelhantes, mas não
idênticas, de várias outras maneiras entre os dois sistemas.39

36Al-Misri 1991 m5.2, 525.


37Maimônides IV, Tratado 1, Capítulo XIV, 89.
38De acordo com o direito consuetudinário cigano (Capítulo 2), se uma

esposa recusar relações sexuais com seu marido, os parentes do marido têm o
direito de devolvê-la a seus parentes e exigir o reembolso do dote de
casamento pago por ela. “[…] ela não dormiria com ele como esposa, apenas
como irmã. […] Então, entrei em contato com o pai dela e disse que queria
meu dinheiro de volta.” (Sutherland 1975, 293).
39Ambos, por exemplo, assumem que o casamento e as relações sexuais às

vezes ocorrerão antes da puberdade e discutem as implicações legais.

173
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Assim, “ele não pode, no entanto, obrigá-las a residir no mesmo


pátio, mas deve deixar cada uma residir sozinha. […]”40 E “é
ilegal que um homem abrigue duas esposas no mesmo
alojamento, a menos que ambas concordem”.41
As regras do casamento não são os únicos pontos de
semelhança. Uma fonte importante da lei islâmica é a Sunna do
Profeta, a prática de Maomé conforme relatada no hadith. Na lei
judaica, o ato de uma pessoa de reconhecida eminência como
autoridade haláquica pode ser a base de uma norma legal.42
Ambos os sistemas às vezes permitem juramentos como parte
do processo legal. Uma visão do papel do costume na lei judaica
é que ele não tem força independente, mas sua existência é
evidência da existência de uma regra legal agora perdida.43
Estudiosos do direito islâmico adotam uma abordagem
semelhante aos atos de Maomé que não parecem ser com base
no texto do Alcorão — que implicam a existência de partes
perdidas do texto.
Outra semelhança está na fonte da lei. A lei judaica é
baseada na Torá escrita e na Torá oral, esta última baseada em
regras de lei e interpretação que se acredita terem sido reveladas
a Moisés e transmitidas oralmente através das gerações até
finalmente escritas na Mishná. A lei islâmica é baseada no
Alcorão escrito e no hadith, declarações e práticas de Maomé
que se acredita terem sido baseadas na revelação e transmitidas
oralmente de geração em geração até serem finalmente escritas.
Duas diferenças são que o hadith foi transmitido oralmente por
um século ou dois antes de ser escrito, a Torá Oral por mais de

40Maimonides 1972, 87.


41Al-Misri1991, 538.
42Elon 1994, 946.
43Elon 1994, 883-5.

174
Direito Islâmico

um milênio, e que cada hadith é acompanhado por uma cadeia


de transmissores de volta à sua origem, enquanto as regras da
Torá oral são citadas apenas com a autoridade dos transmissores
posteriores.
Durante o período em que havia duas escolas de lei
judaica, algumas autoridades sustentavam que se podia escolher
uma delas, mas então devia seguir todas as suas regras, tanto
brandas quanto rígidas, em vez de se sentir livre para escolher.44
Uma posição semelhante é defendida por algumas autoridades
muçulmanas em relação às quatro escolas da lei sunita.
Estudiosos judeus posteriores enfrentaram o problema de
escolher entre opiniões divergentes de diferentes estudiosos
eminentes do passado. A solução escolhida por Joseph Caro
para o Bet Yosef foi basear sua posição na opinião da maioria
das três mais eminentes autoridades. Estudiosos muçulmanos
criaram regras semelhantes para decidir qual, entre as opiniões
divergentes dos estudiosos de uma escola, deveria ser
considerada a doutrina da escola.
Ambos os sistemas tiveram que aceitar a capacidade
limitada daqueles que aplicam a lei, rabinos, muftis, qadis, de se
engajar na elaborada erudição pela qual a lei foi derivada de
fontes religiosas e apresentou soluções semelhantes: permitir a
confiança nas conclusões alcançadas anteriormente por
autoridades consideradas competentes para produzi-las.

44Elon 1994, 1064.

175
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Apêndice: Duas Histórias

Uma Tradição Conveniente


Dez tradicionalistas, Ghiyath ibn Ibrahim entre os demais,
foram convocados para uma audiência. Ora, Mahdi gostava
muito de corridas de pombos; e quando Ghiyath foi apresentado,
e alguém disse: Por favor, recite alguma tradição para o Príncipe
dos Verdadeiros Crentes, Ghiyath recitou: Fulano de tal nos
disse que ele tinha dito de Fulano pela autoridade de Abu
Hurayra que o Apóstolo de Deus (que a paz e a oração de Deus
estejam com ele!) disse: Não deve haver apostas exceto em um
casco ou uma flecha ou uma ponta de lança; e então Ghiyath
acrescentou: ou em uma asa.
Mahdi imediatamente ordenou a ele uma recompensa de
dez mil dirhams; mas quando Ghiyath levantou-se curvando-se
para agradecê-lo, exclamou: Por Deus, a sua nuca parece a nuca
de um mentiroso — juro que você inseriu essas últimas
palavras! E ele deu ordem imediatamente para que todos os seus
pombos de corrida fossem mortos.45

Contornando a Lei de Deus


O poeta ibn Harma se apresentou para o Príncipe dos
Muçulmanos e o Califa ficou tão encantado com sua
performance que disse “diga sua recompensa”.
O poeta respondeu: “a recompensa que desejo do Príncipe
dos Muçulmanos é que ele envie instruções aos seus oficiais na
cidade de Medina, ordenando que quando eu for encontrado

45Schroeder 1995, 281-2.

176
Direito Islâmico

morto de bêbado na calçada e trazido pela guarda da cidade, eu


seja dispensado da punição prescrita para esse delito.”
“Essa é a lei de Deus, não minha; Eu não posso mudar
isso. Cite outra recompensa.”
“Não há mais nada que eu deseje do Príncipe dos
Muçulmanos.”
Al-Mansur pensou um pouco, então enviou instruções a
seus oficiais em Medina ordenando que se alguém encontrasse o
poeta ibn Harma morto de bêbado na calçada e o trouxesse para
punição, ibn Harma deveria receber oitenta chicotadas como
manda a lei. Mas quem o trouxesse deveria receber cem.
E sempre depois, quando alguém via o poeta morto de
bêbado na calçada, ele se voltava para o companheiro e dizia
“cem por oitenta é um mau negócio” e ia embora.46

46Khawam 1980, 153-154, não literalmente.

177
6
Quando Deus é o
Legislador
Dois dos sistemas jurídicos que examinamos afirmam ser
baseados em regras estabelecidas por Deus — a lei judaica na
Torá, a lei islâmica no Alcorão e a prática divinamente inspirada
do profeta Maomé. Essa afirmação levanta problemas menos
graves em sistemas jurídicos baseados nas decisões de um
governante ou legislador. Problemas semelhantes ocorrem com
um sistema como o direito constitucional dos Estados Unidos. A
Constituição não afirma ser divinamente inspirada, mas é
frequentemente tratada na cultura jurídica como se fosse.
Embora seja possível alterá-la por meio da ação humana, o
processo é complicado.
Um problema ocorre quando Deus erra, quando os
humanos que implementam o sistema legal relutam ou não
querem seguir alguns de seus mandamentos. Considere as
instruções em Deuteronômio (21:18-21) para lidar com um filho
desobediente:

Se um homem tem um filho obstinado e rebelde, que não


obedece à voz de seu pai, nem à voz de sua mãe, e que,
quando o castigam, não lhes dá ouvidos: então seu pai e
sua mãe o tomarão e o levarão aos anciãos da sua cidade
e à porta do seu lugar; e dirão aos anciãos da sua cidade:
Este nosso filho é teimoso e rebelde, não dará ouvidos à
nossa voz; ele é um glutão e um bêbado. E todos os
homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra: […]

179
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A punição parece um pouco exagerada não apenas para os


sentimentos modernos, mas também para os antigos. Se, no
entanto, é uma ordem de Deus, o que se deve fazer?
Uma questão semelhante é levantada para os muçulmanos
pelo Alcorão 5:38, que estabelece a punição para o crime Hadd
de roubo.
“Quanto ao ladrão, seja homem ou mulher, corte a mão
como castigo de Deus pelo que havia feito”1
Um problema semelhante no direito constitucional dos
EUA é levantado pela Segunda Emenda,2 que sustenta que:

Uma Milícia bem regulamentada, sendo necessária para a


segurança de um Estado livre, o direito do povo de
manter e portar armas, não deve ser infringido.

Além disso, a Décima Quarta Emenda sustenta (entre


outras coisas) que:

Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei que


restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos
Estados Unidos; […].

Isso é interpretado3 como impondo as restrições da Carta


dos Direitos tanto aos estados quanto ao governo federal. Na lei

1Há alguma controvérsia quanto ao significado exato das palavras usadas,


mas esta é a leitura usual. Questionar o significado exato das palavras é uma
tática para contornar esses pontos fixos.
2As primeiras dez emendas, comumente chamadas de carta dos direitos,

foram aprovadas em 1789, dois anos após a ratificação da Constituição.


3Tem havido disputa sobre quanto da Carta dos Direitos é incorporada.

McDonald v. Chicago, 561 U.S. 3025, 130 S.Ct. 3020 (2010) foi o primeiro
caso em que a Suprema Corte considerou que a Segunda Emenda foi
incorporada por meio da 14ª Emenda e, portanto, aplicada aos governos
estaduais, bem como ao governo federal.

180
Quando Deus é o Legislador

dos EUA, cidades e condados são criações do governo estadual,


então as restrições também se aplicam a eles. Parece que
qualquer lei em qualquer nível do governo dos EUA que proíba
ou restrinja a propriedade individual de armas de fogo — ou,
contestavelmente, tanques, aviões de combate ou armas
nucleares — é inconstitucional.
Para um tipo diferente de exemplo, considere a exigência
da lei da Torá de que todas as dívidas sejam canceladas a cada
sete anos, o que converte qualquer empréstimo que expira após
o sétimo ano em um presente. Um problema menos extremo foi
criado pela doutrina na lei judaica, islâmica e cristã que proíbe
empréstimos com juros.4
As autoridades de todos os três sistemas jurídicos
encontraram maneiras de contornar o ponto fixo criado pela
regra nominalmente autoritativa. Os estudiosos haláquicos
fizeram isso primeiro. Maimônides, baseando sua opinião na
obra de autoridades anteriores, escreve sobre o filho
desobediente:

Ele não é responsável pelo apedrejamento até que roube


de seu pai e compre carne e vinho por um preço barato.
Ele deve então comê-lo fora do domínio de seu pai, junto
com um grupo que está todo vazio e vil. Ele deve comer
carne crua, mas não totalmente crua, cozida, mas não
totalmente cozida, como é o costume dos ladrões. Ele
deve beber o vinho à medida que é diluído como os
alcoólatras bebem. Ele deve comer uma quantidade de
carne pesando 50 dinarim de uma só vez e beber meio
log deste vinho de uma só vez. […]

4No caso da lei judaica, a proibição só se aplicava a empréstimos a outros


judeus.

181
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

[…] De acordo com a Tradição Oral, aprendemos


que esta lei diz respeito a um jovem de treze anos entre o
momento em que crescem dois pelos pubianos e o
momento em que todo o seu órgão masculino é cercado
por pelos pubianos. Depois que todo o órgão masculino é
circundado por pelos pubianos, ele é considerado
independente e não é executado por apedrejamento.
Se seu pai deseja convencê-lo e sua mãe não
deseja, ou sua mãe deseja e seu pai não deseja, ele não é
julgado como um “filho desobediente e rebelde”,
conforme implícito em Deuteronômio 21:19: “Seu pai e
sua mãe o tomarão.”
Se um dos pais teve o braço amputado, era coxo,
mudo, cego ou surdo, o filho não é julgado como “filho
desobediente e rebelde”. Esses conceitos são derivados
da seguinte forma: “Seu pai e sua mãe o tomarão” — isso
exclui os pais com braços amputados — “e o levarão” —
isso exclui o coxo. “Eles dirão” — isso exclui o mudo.
“Este nosso filho” — isso exclui os cegos. “Ele dá
ouvidos à nossa voz” — isso exclui o mudo.5

Era uma questão de debate se alguém já satisfez todas as


condições e foi apedrejado.
Os estudiosos islâmicos seguiram uma estratégia
semelhante, embora menos extrema, conforme descrito no
capítulo anterior. Para se qualificar como um crime Hadd, um
roubo tinha que atender a uma longa lista de requisitos. Um
roubo que não atendesse a qualquer um deles ainda poderia ser
punido pela lei tazir, mas não exigia a punição Hadd de
amputação.

5Esta
é apenas uma lista parcial das condições exigidas fornecidas em
Maimônides 1949b, Tratado 3, Capítulo 7.

182
Quando Deus é o Legislador

Nos Estados Unidos, vários argumentos foram usados para


limitar o efeito da Segunda Emenda. A referência a uma milícia
poderia ser interpretada como uma restrição de direito aos
membros da Guarda Nacional, desde que se quisesse ignorar o
sentido mais amplo de milícia desorganizada, composta, quando
a Constituição foi escrita, por todos os homens adultos, e
também o fato de que a referência foi colocada como um
motivo, não como uma restrição. Pode-se argumentar que, como
o objetivo era manter a milícia, apenas as armas adequadas para
uso militar contavam. Com base nisso, sustentou-se que uma lei
que proibia espingardas de cano serrado não violava a emenda.6
Enquanto a maioria dos membros da Suprema Corte fosse a
favor de restrições à posse de armas de fogo, sempre era
possível encontrar alguma base para justificá-las.
Uma questão semelhante surgiu durante o New Deal com
a restrição da constituição ao poder do governo federal. A
décima emenda diz:

Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela


Constituição, nem proibidos por ela aos Estados, são
reservados aos Estados, respectivamente, ou ao povo.

Isso parece fazer do governo federal um dos poderes


enumerados, permitido apenas fazer as coisas que a Constituição
especifica. Isso criou um problema para um governo que queria
fazer coisas que não pareciam se encaixar em nenhuma das
categorias enumeradas, como impor restrições à produção
agrícola para aumentar seu preço. A solução foi encontrada na
cláusula de comércio interestadual da Constituição, que
estabelece que: “O Congresso terá poder […] para regular o
comércio […] entre os vários estados […].” Em Wickard v.
6United States v. Miller, 307 U.S. 174 (1939).

183
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Filburn, o governo federal argumentou que um agricultor que


plantava para alimentar seu próprio gado estava
substancialmente envolvido no comércio interestadual, pois se
não tivesse cultivado essas safras, teria que comprar ração para
animais, o que teria afetado o preço da ração no mercado
interestadual. A Suprema Corte, recentemente ameaçada de
interferência se continuasse a bloquear as políticas do New
Deal, aceitou o argumento. Casos desde então — mais
recentemente Gonzales v. Raich, que sustentou que a cláusula de
comércio interestadual justificava uma proibição federal da
maconha produzida e consumida dentro de um único estado —
quase revogou a décima emenda, já que quase tudo o que o
governo federal deseja fazer pode ser justificado perante um
favorável Supremo Tribunal como uma regulamentação do
comércio interestadual.7
Um exemplo moderno dos problemas que podem ser
levantados pela tentativa de contornar uma regra inconveniente
de origem divina é fornecido pelo caso dos momsers no direito
israelense moderno. De acordo com a lei religiosa, um momser,
alguém cujos pais não apenas não eram, mas não poderiam ter
sido casados, como o filho de uma mulher casada por um pai
diferente de seu marido, não pode se casar. A fim de evitar que
essas crianças sejam legalmente identificadas como momsers e,
portanto, proibidas de casamento religioso, o Ministério da
Justiça de Israel instruiu os tribunais a se recusarem a autorizar
testes de evidências de paternidade em disputa. Isso levantou um

7Uma exceção foi United States v. Lopez, que sustentou que a cláusula de
comércio interestadual não era base suficiente para uma lei federal que
tornava ilegal para qualquer indivíduo possuir intencionalmente uma arma de
fogo em um local que ele soubesse ou tivesse motivos razoáveis para
acreditar que era uma zona escolar.

184
Quando Deus é o Legislador

problema para as mães que buscavam pensão alimentícia dos


pais dessas crianças.8
Esses exemplos demonstram a capacidade dos estudiosos
jurídicos em três sistemas jurídicos diferentes de contornar
regras legais que desaprovam, mas não podem mudar. Em cada
caso, a solução foi a interpretação. Nenhum conjunto de normas
legais é suficientemente completo para responder a todas as
questões e eliminar todas as ambiguidades, ponto ilustrado pela
falha do corpo de estatutos do sistema imperial chinês, muito
mais extenso e detalhado do que as regras da Torá, do Alcorão,
ou a Constituição, para fazê-lo. Quando há duas ou mais leituras
plausíveis da implicação de uma regra, alguém deve decidir qual
aceitar.
Uma vez estabelecido esse ponto, o próximo passo é
encontrar alguma base no conjunto original de regras para
justificar não apenas a interpretação particular, mas o poder
irrestrito de interpretar. No caso da lei judaica, a Torá
explicitamente ordenou que, quando a lei não fosse clara, a
opinião da maioria, interpretada como a maioria dos estudiosos
haláquicos, mais especificamente do Sinédrio, deveria
prevalecer. Alguém poderia objetar que, uma vez que se
aplicava apenas quando a lei não era clara, não poderia superar
um comando tão explícito quanto aquele que exigia que um
filho desobediente fosse apedrejado. Essa objeção foi

8Descrito em uma notícia: http://www.haaretz.com/print-


edition/features/better-to-be-a-mamzer-or-to-grow-up%20%20-without-
%20a-father-1.196149

185
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

respondida pela doutrina da Torá oral.9 A interpretação dos


estudiosos haláquicos pode parecer implausível, mas foi baseada
no que Deus disse a Moisés no Monte Sinai transmitido na
tradição oral aos estudiosos dos dias atuais e assim o mesmo
status de autoridade que a regra original.
A lei islâmica baseava-se não apenas no Alcorão, mas
também na prática (sunna) do Profeta, conforme revelada nas
tradições do que ele e seus companheiros faziam e diziam.
Quais tradições deveriam ser confiáveis era uma questão a ser
resolvida pelo estudo, um processo que poderia ser tendencioso
em favor de tradições que sustentassem as interpretações que os
estudiosos desejavam. De acordo com várias tradições, Maomé
sustentava que os muçulmanos nunca concordariam com um
erro. Pela interpretação adequada disso, os estudiosos obtiveram
a doutrina de ijma, segundo a qual, uma vez que houvesse um
consenso em favor de uma interpretação, o assunto estava
resolvido.

91 Todos os mandamentos que foram dados a Moshe no Sinai foram dados


juntamente com sua interpretação, como está escrito “e eu te darei as Tábuas
de Pedra, e a Lei, e o Mandamento” (Êxodo 24,12). “Lei” é a Lei Escrita; e
“Mandamento” é sua interpretação: Fomos ordenados a cumprir a Lei, de
acordo com o Mandamento. E este Mandamento é o que se chama de Lei
Oral.
2 Toda a Lei foi escrita por Moshe, Nosso Mestre, antes de morrer, de
próprio punho. Ele deu um rolo da Lei para cada tribo; e ele colocou outro
pergaminho ao lado da Arca como testemunha, como está escrito “toma este
livro da Lei, e coloca-o ao lado da Arca da Aliança do SENHOR teu Deus,
para que esteja ali como testemunha contra ti” (Deuteronômio 31,26).
3 Mas o Mandamento, que é a interpretação da Lei — ele não o escreveu,
mas deu ordens a respeito aos anciãos, a Yehoshua e a todo o resto de Israel,
como está escrito "toda esta palavra que eu vos ordeno, que tereis cuidado de
fazer […]” (Deuteronômio 13,1). Por esta razão, é chamada de Lei Oral.
(Maimônides 2011 — a introdução à Mishné Torá)

186
Quando Deus é o Legislador

Nos estudos constitucionais dos Estados Unidos, o poder


da Suprema Corte de interpretar a Constituição, até mesmo de
indeferir o Congresso se considera-se que o Congresso estava
violando a Constituição, originou-se com Marbury v. Madison,
uma decisão da Suprema Corte. Tornou-se plausível pela óbvia
necessidade de alguém interpretar ambiguidades. Uma vez
estabelecida, poderia ser gradualmente convertida na doutrina de
que a Constituição era o que a Corte dissesse que ela era.
Uma segunda solução para o problema de contornar regras
que não podem ser alteradas é impor um conjunto diferente de
regras por meio de um mecanismo diferente. As autoridades
rabínicas inventaram uma forma legal, Prosbul, que tornava
possível criar uma dívida que não seria cancelada no sétimo ano.
Os estudiosos haláquicos defenderam o direito das autoridades
comunais na diáspora de fazer coisas proibidas pela Torá e/ou
pela lei rabínica como uma autoridade herdada dos reis de
Israel, que aplicaram sua própria lei de uma forma às vezes
inconsistente com as restrições da lei religiosa. Os governantes
islâmicos criaram seus próprios tribunais separados dos
tribunais da Shari'a e os usaram para aplicar regras
inconsistentes com a Shari'a, por exemplo, condenando réus
sem o testemunho ocular de dois muçulmanos. Um equivalente
na lei dos EUA é o uso dos regulamentos das agências
executivas para criar e aplicar suas próprias regras legais sem
exigir autorização do Congresso.
Todas essas soluções tiveram que ser implementadas por
juízes ou estudiosos jurídicos. Outra abordagem é que as
pessoas sujeitas às regras descubram, possivelmente com a
ajuda de estudiosos jurídicos, maneiras de obedecer à letra da lei
enquanto fogem do espírito. Isso descreve como as pessoas
dentro dos sistemas judaico, cristão e muçulmano lidaram com a

187
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

proibição de juros comum a todos os três sistemas. Uma


maneira era estabelecer um contrato de parceria em que um
parceiro fornecia capital, um trabalho e eles compartilhavam o
lucro resultante. Outra era estruturar um contrato de empréstimo
para tornar o retorno incerto, por exemplo, tomando emprestado
em uma moeda e concordando em pagar em outra. Os valores
podem ser configurados para gerar um retorno esperado que
implique juros, mas não um retorno garantido.
A questão ainda existe na Arábia Saudita moderna,
provavelmente o estado mais próximo do sistema jurídico
islâmico tradicional. Uma solução é um banco combinar um
empréstimo sem juros com uma segunda transação na qual o
mutuário compra algo, como um carro, do banco e depois o
revende a um preço mais baixo.
O judaísmo ortodoxo fornece outros exemplos. Os judeus
são proibidos de carregar coisas no Sabbath fora dos limites de
seu pátio. Um pátio é definido pela parede que o rodeia. Uma
parede ainda é uma parede, mesmo que tenha entradas. Dois
postes telefônicos com um fio entre eles podem, com um pouco
de esforço, ser interpretados como uma entrada. Amarre fio
suficiente de poste a poste ao redor de sua vizinhança e toda a
vizinhança pode ser interpretada como um único pátio, um eruv,
tornando legal carregar coisas ao redor dele no Sabbath.
A igreja católica não permite o divórcio. Pode, no entanto,
ser possível para um casal que deseja se separar obter uma
anulação com base no fato de que o casamento original era
defeituoso de alguma forma. Uma maneira de fazer isso na
aristocracia medieval, que era fortemente intercasada, era
encontrar na genealogia de um casal evidências de que eles eram
parentes próximos o suficiente para desencadear as regras de
incesto amplamente definidas pela igreja.

188
Quando Deus é o Legislador

Todas essas foram e ainda são maneiras pelas quais os


indivíduos poderiam contornar restrições inconvenientes de leis
imutáveis.
Um problema é lidar com casos em que Deus errou. Outra
é manter a uniformidade judicial. O que acontece se dois
estudiosos haláquicos, ambos juízes, discordarem sobre a
interpretação da Torá? O que eles discordam não é sobre o que a
lei deveria ser, mas sobre o que ela é — e a verdade não é
determinada pelo voto da maioria. Se cada um seguir sua
interpretação, o resultado é um sistema legal onde o resultado
que você obtém depende de qual juiz você vai.
A solução para esse problema é, como muitos
concordariam, parte do objetivo da história do forno de Akhnai.
A instrução na Torá para lidar com questões ambíguas aceitando
o ponto de vista da maioria foi interpretada como significando
que, embora a verdade não fosse determinada pelo voto da
maioria, a lei era. Um juiz que sustentasse uma interpretação
minoritária depois que o Sinédrio a rejeitasse poderia continuar
a defender sua posição, mas era obrigado a julgar de acordo com
a opinião da maioria.
Essa solução dependia da existência de um corpo de
autoridades bem definido para decidir as disputas legais. O
Sinédrio deu sua última decisão em 358 d.C. A partir de então, a
uniformidade legal dependia dos juízes da diáspora
concordarem sobre quais autoridades eles estavam dispostos a
aceitar. O resultado final foi a quebra da uniformidade legal,
com diferentes comunidades aceitando as doutrinas de
diferentes estudiosos e muitas leis feitas pelas autoridades
comunais locais. Esse problema foi amenizado pelo fato de que
a maioria das controvérsias legais eram intracomunitárias,
portanto, sob um único conjunto de regras.

189
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A lei islâmica nunca teve uma doutrina de governo da


maioria; diferentes interpretações coexistiram e, na forma das
quatro escolas ortodoxas de direito sunita, ainda coexistem. Mas
a doutrina do consenso forneceu uma base para a alegação de
que certas questões haviam sido resolvidas e não poderiam ser
reabertas.
O direito constitucional dos EUA não precisa ser, muitas
vezes não é, consistente em todos os circuitos federais, mas as
inconsistências vistas como problemáticas podem ser eliminadas
por uma decisão da Suprema Corte.
Como mostram esses exemplos, tanto os problemas da lei
divinamente inspirada quanto as soluções são semelhantes em
uma gama considerável de sociedades e sistemas jurídicos.

É, talvez, um fato provocador de alegria amarga que a
Carta dos Direitos tenha sido projetada para proibir para
sempre dois dos crimes favoritos de todos os governos
conhecidos: a apreensão de propriedade privada sem
compensação adequada e a invasão da liberdade do cidadão
sem causa justificável […]. É um fato que provoca alegria
ainda mais amarga que a execução dessas proibições tenha sido
colocada nas mãos dos tribunais, ou seja, nas mãos de
advogados, ou seja, nas mãos de homens especificamente
educados para descobrir questões legais. desculpas para atos
desonestos, desonrosos e anti-sociais. (Mencken 2006, 180-2)

A Natureza, vemos, ensina aos mais Iletrados a Prudência


necessária para sua Preservação, e o Medo opera
Mudanças que a Religião perdeu o Poder de realizar.
— (Johnson 1726-1728, 527)

190
7
Direito Pirata
Os piratas caribenhos do início do século XVIII (c. 1716-
1726) são os criminosos mais notórios da história. Suas fileiras
incluíam Barba Negra, cujo nome verdadeiro era Edward Teach,
Black Bart Roberts, que conquistou mais prêmios do que
qualquer outro pirata da era de ouro, e Calico Jack Rackam, que
inspirou o personagem de Johnny Depp, Jack Sparrow, na
franquia de filmes Piratas do Caribe de Walt Disney. Apenas a
máfia se aproxima da celebridade criminosa dos piratas
caribenhos, mas um grande número de crianças não se veste de
mafioso para coletar doces no Halloween.
A pirataria do Caribe era conjuntamente produzida. Um
navio pirata de um homem teria dificuldade em desatracar, sem
falar um sufocante navio mercante armado. A pirataria bem-
sucedida necessitava da cooperação de uma tripulação pirata
considerável. O navio pirata do Caribe era tripulado por 80
homens, e as maiores tripulações consistiam em muitas
centenas. Isso levanta a questão de como piratas, que, como
criminosos, não podiam depender do governo para prover a lei e
ordem de sua tripulação e não havia compunção em matar e
roubar por ganho próprio, conseguiram cooperar um com o
outro para envolver-se na pirataria.1

1Para responder a essa pergunta, escrevi vários artigos e um livro sobre


piratas e suas leis (Leeson 2007b, 2009a, 2009b, 2009c, 2010a, 2010b). Este
capítulo é baseado nesse trabalho.

191
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Um Aviso sobre as Fontes


A principal fonte histórica para o início da pirataria do
Caribe no século dezoito é A General History of the Pyrates de
Captain Charles Johnson, publicado em dois volumes, o
primeiro em 1724 (revisado em 1726) e o segundo em 1728. Em
um momento, era amplamente acreditado que Johnson era nom
de plume de ninguém senão Daniel Defoe, autor de Robinson
Crusoe. Nos anos 80, estudantes literários destruíram
completamente a teoria de Defoe, deixando a identidade de
Johnson como um mistério.2
Alguns acreditam que Johnson talvez tenha sido um
trabalhador marítimo, outros, um jornalista e, ainda outros, um
pirata. Independentemente de quem ele era, ninguém duvida que
ele “tinha conhecimento de primeira mão extensivo da pirataria”
(Konstam 2007, p. 12), e enquanto A General History of Pyrates
continha muitos erros e relatos apócrifos, “Johnson é
amplamente respeitado como uma fonte altamente confiável de
informação factual” sobre os piratas caribenhos (Redliker 2004,
180).
Muitas outras fontes históricas, que corroboram e
expandem na informação de Johnson, fornecem insight
adicional na pirataria caribenha no início do XVIII. Esses
incluem obras de cativos de piratas; relatos publicados de
julgamentos de piratas; reportagens de jornais modernos acerca
da pirataria; e correspondência de governadores coloniais e
outros oficiais do governo negociando com piratas.

2Veja Cordingly 2006.

192
Direito Pirata

Problemas Piráticos
Os piratas eram foras da lei. Os governos os rotularam de
hostes humani generis — inimigos de toda a humanidade — e
negaram-lhes as proteções legais à vida e à propriedade de que
gozavam os cidadãos legítimos. Um pirata “não pode reivindicar
a Proteção de nenhum Príncipe, o privilégio de nenhum País, o
benefício de nenhuma Lei”, declarou um oficial colonial
britânico. “A ele é negada a humanidade comum e os próprios
direitos da natureza, com quem nenhuma fé, promessa ou
juramento deve ser observado, nem deve ser tratado de outra
forma, do que uma besta feroz & selvagem, que todo Homem
pode legalmente destruir” (The Trials of Eight Persons 1718, 6).
A inabilidade dos piratas em depender da lei criada pelo
governo apresentava um problema crucial para suas tripulações,
do qual a capacidade de pilhar embarcações mercantes dependia
da habilidade de seus membros para viver e trabalhar juntos por
períodos estendidos no mar. Se a inclinação dos piratas para o
roubo e violência se estendesse para suas interações um com o
outro, a cooperação entre suas tripulações seria impossível,
fazendo a pirataria bem-sucedida impossível também.
A natureza dos lugares de vivência e trabalho dos piratas
— navios piratas — exacerbavam esse problema. Navios piratas
eram navios mercantes convertidos, que se diferenciavam de
suas prévias encarnações em dois aspectos importantes: eles
carregavam aproximadamente seis vezes mais homens e
quantidades vastamente maiores de armas e pólvora. Portanto,
navios piratas eram altamente explosivos, dentro dos quais
velhos marujos eram apertados como sardinhas. Nesse
ambiente, um conflito a bordo entre dois piratas que terminasse

193
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

em bacamartes atirando ou até o choque de sabres, posava um


risco ao navio e outros membros da tripulação.
A pirataria era um negócio perigoso. A presa dos piratas
era armada, e mesmo que a maioria se rendesse pacificamente,
nem toda vítima se submetia sem uma luta. As tripulações
mercantes tinham menos homens, mas suas armas e espadas
eram tão letais quanto.
Um pirata poderia evitar muito perigo ficando para trás
pessoalmente em confrontações violentas entre sua tripulação e
suas vítimas. Se um pirata corresse gritando abaixo do convés
na visão dos adversários de sua tripulação, seus colegas
provavelmente iriam perceber. Mas se ele se desviasse de
situações de maior risco no combate corpo a corpo, eles
provavelmente não iriam; no combate corpo a corpo, seus
colegas estavam absortos em desviar da espada e tiros de seus
adversários.
Isso causava outro problema para a cooperação de uma
tripulação pirata. Tirando o capitão, que dirigia a batalha, o
sucesso ou falha de uma tripulação pirata em confrontos com
mercadores não dependia significativamente da participação de
qualquer membro individual da tripulação, que, portanto,
esperava receber a mesma soma se lutou bravamente ou mal
lutou. Isso dava aos membros individuais da tripulação a ficar
para trás em confrontos. Mas se muitos membros da tripulação
fizessem isso, tripulações piratas não poderiam pegar prêmios.
Certas decisões no navio pirata, como quando o navio
deve perseguir ou fugir, como manobrar ao se aproximar de uma
presa, e quando disparar à través,3 necessitavam de tomadas de
decisão imediata e diretiva unilateral. Um pirata com o poder de
fazer tais decisões em nome da tripulação era indispensável.
3N.T.: Um dos lados da embarcação.

194
Direito Pirata

Outras decisões importantes em um navio pirata eram menos


sensíveis temporalmente, mas também se beneficiavam de ter
um pirata no comando. Provisões, por exemplo, as quais eram
extremamente importantes para homens que gastavam meses no
mar, tinham de ser racionadas e distribuídas; alguém precisava
dividir os espólios de pilhagens entre a tripulação; e se regras
fossem criadas para regular a conduta dos membros da
tripulação, piratas precisariam de uma autoridade para exercê-la.
A necessidade de tais administradores criou um
problema adicional para os piratas. Um tripulante dotado de
autoridade sobre tarefas importantes poderia abusar de seu
poder, usando-o contra outros tripulantes para benefício pessoal.
As consequências do abuso de oficiais eram mais do que
hipotéticas para os piratas, muitos dos quais haviam
anteriormente navegado a serviço de navios mercantes cujos
capitães, alegavam os piratas, os enganavam no pagamento,
roubavam seus alimentos e usavam o poder disciplinar para
acertar contas pessoais. Se os piratas não pudessem controlar os
oficiais que exerciam autoridade sobre decisões semelhantes em
seus navios, não valeria a pena unir seus esforços para a
pirataria.

Soluções Piráticas, Parte I: O “Código Pirata”


Incapazes de confiar na lei criada pelo governo para
regular seu comportamento, mas pelo menos com tanta
necessidade de regulamentação quanto os cidadãos legítimos, os
piratas criaram sua própria lei “para a melhor Conservação de
sua Sociedade e para fazer justiça uns aos outros” (Johnson
1726- 1728, 210). Os piratas de Hollywood chamam isso de
“código pirata”; piratas reais chamavam isso de seus “artigos”.

195
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Cada tripulação desenhava e fixava seus próprios artigos,


mas como os problemas enfrentados pelas tripulações piratas
eram similares, seus artigos também eram similares. Os
seguintes artigos, que governavam a tripulação pirata a bordo do
Royal Fortune, capitaneado por Bartholomew Roberts,
exemplificam os elementos chaves da lei pirata:

I. Todo Homem tem um Voto nos Assuntos do Momento;


tem Título igual às provisões frescas, ou Licores fortes, a
qualquer Momento adquiridos, e pode usar eles à
Vontade, a menos que uma Escassez faça necessário,
para o Bem de todos, votar um Corte.
II. Cada homem deve ser chamado de forma justa,
por sua Vez, por Lista, a bordo dos prêmios, porque,
(além de sua parte adequada) eles estavam nessas
ocasiões autorizados a uma Muda de Roupas: mas se eles
fraudaram a Companhia no Valor de um Dólar, em
Pratos, Jóias ou Dinheiro, o Abandono em uma ilha era
seu castigo. Se o Roubo fosse apenas um entre os outros,
eles se contentavam em cortar as Orelhas e o Nariz
daquele que era Culpado, e o colocavam na Costa, não
em um Lugar desabitado, mas em algum lugar onde ele
certamente encontraria Dificuldades.
III. Nenhuma pessoa deve jogar Cartas ou Dados
por Dinheiro.
IV. As Luzes e Velas devem ser apagadas às oito
em Ponto a Noite;: se qualquer um da Tripulação, após
essa Hora, permanecer inclinado a Beber, devem fazer no
Convés aberto.
V. Manter sua Parte, Pistolas e Alfanges limpos e
aptos para o Serviço
VI. Nenhum Menino ou Mulher devem ser
permitidos entre eles. Se qualquer Homem for achado

196
Direito Pirata

seduzindo alguém do último Sexo, e carregá-la para o


Mar, disfarçada, ele deve sofrer a Morte.
VII. Desertar o Navio, ou Alojamentos em Batalha,
deve ser punido com Morte ou Abandono em ilha
deserta.
VIII. Não se deve atacar um ao outro a bordo, mas
todas as Brigas dos Homens devem terminar em Terra, na
Espada e na Pistola.
IX. Nenhum Homem deve falar em quebrar seu
Modo de Vida, até que cada um compartilhasse 1000 l.4
Se, para isso, qualquer Homem perdesse um Membro ou
se tornasse um Aleijado em seu Serviço, ele deveria ter
800 Dólares, fora do Estoque público, e para Danos
menores, proporcionalmente.
X. O Capitão e o Quartel-mestre devem receber
duas Partes de um Prêmio: o Mestre, Contramestre e
Armeiro, uma Parte e meia e outros Pficiais uma e um
Quarto.
XI. Os Músicos podem Descansar no Dia do Sabá,
mas nos outros seis Dias e Noites, não sem Favor
especial. (Johnson 1726-1728, 211-212).

Evidentemente, embarcações piratas não eram a bagunça


caótica retratada na ficção pirata popular. Longe disse: os navios
piratas eram altamente regulados, e as leis que suas tripulações
designavam proviam uma regulação que era uma estranha
mistura do progressista e do puritano.
O Artigo I estabelece uma democracia como a regra de
tomada de decisão coletiva da tripulação em assuntos
importantes; mais sobre isso abaixo. Todos os membros da
tripulação eram permitidos à participação na democracia pirata,

4I.e., libras.

197
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

incluindo piratas negros, que compunham uma parte substancial


de muitas tripulações. Um pirata, um voto.
Os Artigos II e VIII proíbem o furto e regulam a violência
entre tripulantes. O Artigo VIII também prevê a resolução de
disputas entre tripulantes. Quando um conflito não podia ser
resolvido pacificamente, as partes em conflito duelavam em
terra, protegendo o resto da tripulação e seu navio. Johnson
elabora:

quando as Partes não chegam a alguma Reconciliação,


[um tripulante] acompanha eles à Costa com a
Assistência que ele achar adequada, e vira os Disputantes
Costa a Costa, a muitos passos de Distância: Na Palavra
de Comando, eles se viram e atiram imediatamente […]
Se ambos errarem, eles recorrem aos seus sabres, e é
declarado vitorioso aquele que tira primeiro o sangue de
seu adversário. (Johnson 1726-1728, 212)

Os artigos III e VI proíbem apostas e trazer a bordo


companheiros sexuais — comportamentos que provavelmente
levariam a conflitos entre membros da tripulação.
Os artigos IV, V, VII, e IX regulam comportamentos
geradores de externalidades, que, se desregulados, afetariam
negativamente toda a tripulação. Portanto, beber até tarde era
permissível apenas acima do convés, permitindo aos piratas
cansados o seu sono; a manutenção adequada de sua arma era
mandatória, tornando os tripulantes sempre prontos para o
combate; e a saída da companhia era proibida até que a
tripulação tivesse se apoderado de butim de valor suficiente,
evitando que piratas que tivessem uma mudança de coração à
meia-viagem de esgotar a mão de obra de sua tripulação.
Com espírito semelhante, um dos artigos que regia a
tripulação pirata a bordo do Revenge, capitaneado por John

198
Direito Pirata

Phillips, regulamentava o ato de fumar: “Aquele que [...] fumar


Tabaco no Porão sem Tampa no Cachimbo […] sofrerá a
mesma Punição no Artigo anterior” (Johnson 1726-1728, 342-
343). A tripulação do Revenge não criou essa lei para poupar
seus membros não fumantes dos efeitos atualmente imaginados
do fumo passivo; fez isso para evitar que seus membros fossem
feitos em pedacinhos. O porão era a parte de seus navios onde
os piratas armazenavam a pólvora.
Os Artigos IX, X e XI estipulam os termos materiais do
emprego pirático dos tripulantes. O Artigo X trata do
pagamento: além dos oficiais da tripulação, que recebiam um
pouco mais, cada membro tinha direito a uma única parte do
butim apreendido. O Artigo XI trata dos dias de férias: os
músicos da tripulação, que proporcionavam entretenimento aos
piratas no mar, tinham direito a um dia de folga por semana.
O Artigo IX trata do seguro-emprego. Os piratas não eram
sindicalizados. No entanto, eles conseguiram estabelecer uma
política pela qual os sindicatos comumente reivindicam crédito:
a compensação dos trabalhadores. Os piratas indenizaram os
tripulantes feridos no trabalho com o “estoque público”. Após a
apreensão de um prêmio, mas antes de pagar as cotas, as
quantias especificadas eram retiradas do topo e distribuídas aos
piratas feridos de acordo com os danos sofridos. Perder o braço
direito, por exemplo, pode dar direito a um pirata a uma
compensação maior do que perder o esquerdo, refletindo o
maior valor do primeiro para os piratas, a maioria dos quais
presumivelmente eram destros. Tal seguro reduzia o incentivo
dos membros da tripulação a ficar para trás em confrontos
violentos com a presa.
Artigos piratas estipulavam punições para tripulantes que
infringiam as leis de sua tripulação. As punições eram

199
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

geralmente corporais e variavam de altamente indesejáveis a


extraordinárias. Abandono, mutilação corporal e execução eram
penalidades comuns para infrações legais, cada uma das quais é
encontrada nos artigos do Royal Fortune. Outras tripulações
piratas penalizavam as ofensas legais com chicotadas, ou “lei de
Moisés”, como os artigos do Revenge a chamavam; “passar pela
quilha”, que envolvia arrastar um infrator através do casco do
navio fortemente cravejado; e a perda de uma parte do butim.
Os artigos de uma tripulação não previam e não podiam
prever ou abordar de forma inequívoca todas as questões legais
que ela pudesse encontrar. A solução dos piratas para esse
problema foi a interpretação judicial: “Caso surja alguma
Dúvida sobre a Construção dessas Leis e permaneça uma
Disputa se a Parte as infringiu ou não, um Júri era nomeado para
explicá-las e trazer um veredicto sobre o caso em dúvida”
(Johnson 1726-1728, 213). Da mesma forma, para infrações
legais cujas punições seus artigos não especificavam, as
tripulações piratas invocavam uma regra que seus artigos
especificavam — tomada de decisão democrática, o infrator
“sofre a Punição que o Capitão e a Maioria da Companhia
considerarem adequada” (Boston News-Letter de 1º de agosto a
8 de agosto de 1723).5

Soluções Piráticas, Parte II: A Democracia Pirata e


Poder Dividido
Leis que não podem ser aplicadas são pouco úteis para
regular o comportamento. Para impor as leis e os artigos nelas
contidos, os piratas criaram o cargo de quartel-mestre. Como
Johnson descreveu esse cargo:

5In Baer 2007.

200
Direito Pirata

Para a punição de pequenas Ofensas […] há um Oficial


principal entre os Piratas, chamado de Quartel-mestre,
que os próprios Homens escolhem, que reivindica toda a
Autoridade dessa Maneira, (tirando em Momentos de
Batalha): se eles desobedecerem seu Comando, são
brigões e rebeldes um com os outros, abusam de
Prisioneiros, pilham além da sua Ordem e, em particular,
se eles são negligentes com suas Armas, que ele reúne à
critério, ele os pune ao próprio julgamento sem incorrer
ao Chicote de toda a Companhia do Navio: Em resumo,
esse Oficial é um Provedor para o todo, é o primeiro à
bordo de qualquer Prêmio, separando para o Uso da
Companhia, a próprio critério, e retornando o que ele
acha justo para os Donos, exceto Ouro e Prata, que eles
votaram como não retornável. (Johnson 1724-1728, 213)

Adicionalmente, o quartel-mestre distribuía o butim e


provisões pelos termos dos artigos de sua tripulação e mediava
conflitos entre membros da tripulação que brigavam, agindo
como “um Tipo de Magistrado civil à bordo de um Navio
Pirata” Johnson 1726-1728, 213).
Sob a lei dos piratas, o quartel-mestre era eleito
democraticamente por sua tripulação, que também poderia depô-
lo popularmente por qualquer motivo. Ser convocado
democraticamente muitas vezes resultava em mais do que a
perda do cargo. Quando o segundo em comando do capitão
pirata John Gow, James Williams, ficou violento e
indisciplinado, sua tripulação “carregou-o com Grilhões” e
“resolveu colocá-lo a Bordo” de um navio capturado “com
Instruções para o Mestre para entregá-lo a Bordo da primeira
Caravela inglesa que eles encontrassem, a fim de que ele fosse
enforcado” (An Account of the Conduct and Proceedings of the
Late John Gow 1725, 23).

201
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Em conjunto com seus artigos, a democracia pirata


restringia muito o escopo para os quartéis-mestres abusarem de
sua autoridade. Ao especificar comportamentos legalmente
proibidos e penalidades para aqueles que os praticassem, os
artigos dos piratas esclareceram se a punição de um quartel-
mestre a algum membro da tripulação era justificada ou, em vez
disso, um abuso de cargo. Armados com esse conhecimento, os
piratas podiam usar a recompensa da eleição e a ameaça de
deposição para garantir que os quartéis-mestres executassem
fielmente os deveres de seu cargo — e nada mais.
A democracia não apenas mantinha os quartéis-mestres
honestos; ela incentivava a seleção dos tripulantes mais
qualificados para aquele cargo. Os aspirantes a quartel-mestre
tinham que competir pelos favores dos tripulantes. Os piratas
que exibiam qualidades superiores para o trabalho, como
imparcialidade e habilidade na mediação, eram os mais
prováveis de serem eleitos.
Eu enfatizei os poderes que os contramestres exerciam nos
navios piratas, dando pouca atenção para o poder dos capitães.
Assim também faziam os piratas. Apenas enquanto as
tripulações piratas estavam “em Perseguição, ou Batalha” seus
capitães tinham autoridade especial, quando, “por suas próprias
Leis”, “O Poder do Capitão é incontrolável” (Johnson 1726-
1728, 139, 214). Em todos os outros momentos, a lei pirata
tratava o capitão como outro membro qualquer da tripulação.
O escopo modesto da autoridade dos capitães piratas era
intencional. Para evitar repetir suas infelizes experiências como
marinheiros mercantes, os piratas dividiam a autoridade
tradicionalmente concentrada no cargo de capitão entre esse
cargo e o cargo de quartel-mestre, “tão diligentes eram para
evitar colocar muito poder nas mãos de um homem” (Hayward

202
Direito Pirata

1735, 42). A ideia dos piratas era agora familiar: para restringir
a autoridade, é útil dividir a autoridade, permitindo que um
cargo “pese e contrapese” o outro.
Preocupados em evitar quaisquer invasões que pudessem
privá-los de sua autoridade, os quartéis-mestres tinham um forte
incentivo para monitorar o comportamento dos capitães e resistir
aos abusos ilegais dos capitães. Como resultado, observou
Johnson, “o Capitão não pode empreender nada que o Quartel-
mestre não aprove. Podemos dizer que o Quartel-mestre é uma
humilde imitação do Tribuno Romano do Povo; ele fala e cuida
do Interesse da Tripulação” (Johnson 1726-1728, 423).
O papel do quartel-mestre a esse respeito era realmente
uma abordagem de melhor prevenir do que remediar, pois a lei
pirata fornecia aos tripulantes um mecanismo mais direto para
controlar seus capitães — o mesmo que fornecia para controlar
seus quartéis-mestres: eleições democráticas. Os tripulantes
elegiam popularmente seus capitães e podiam, e o fizeram,
depô-los popularmente “conforme Interesse ou Humor
adequado” (Johnson 1726-1728, 194). Portanto, cabia aos
capitães piratas cumprir as promessas feitas a suas tripulações,
como a que o capitão pirata Nathanial North fez após sua
eleição para fazer “Tudo o que pode conduzir ao Bem público”
(Johnson 1726-1728, 525).
Dizer que os capitães piratas enfrentavam limites severos
em sua autoridade não é dizer que eles eram membros sem
importância das tripulações piratas. Os capitães eram de vital
importância. Sua importância, no entanto, derivava da
necessidade de um comandante militar habilidoso para uma
pirataria bem-sucedida, e não de qualquer tipo de status real.
Um capitão pirata excessivamente tímido correria muito pouco
risco ao atacar prêmios em potencial; um excessivamente

203
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

agressivo correria muito. A pirataria lucrativa exigia capitães


apropriadamente ousados. Também exigia capitães
estrategicamente inteligentes que soubessem como encurralar
navios mercantes cautelosos com piratas. Os piratas chamavam
essas qualidades de “Conhecimento superior e Ousadia, à Prova
de Pistola” (Johnson 1724-1728, 214).
A democracia ajudou os piratas a encontrar capitães “à
prova de pistola”. Se o primeiro capitão eleito por uma
tripulação se mostrasse inapto para a tarefa, a tripulação não
ficava presa a ele, como poderia acontecer se a capitania fosse
um cargo autocrático. Nesse caso, os tripulantes poderiam retirar
seu capitão e eleger um novo em seu lugar, exatamente o que
fizeram.

Precedente Pirático para o Sistema


Americano de Governo
As características institucionais da lei pirata devem soar
familiar. Elas são mais ou menos aquelas do sistema americano
de governo: democracia constitucional, poderes separados e
pesos e contrapesos.
As razões pelas quais os piratas introduziram essas
instituições em seus navios também devem soar familiares. São
mais ou menos as razões que os Pais Fundadores dos Estados
Unidos deram nos Federalist Papers para a introdução de tais
instituições no governo americano: a necessidade de capacitar as
autoridades para facilitar a proteção da vida e da propriedade e a
necessidade simultânea de restringir as autoridades para que não
abusem de seu poder.
A diferença mais notável entre a lei pirata e o sistema
americano de governo não é sua substância, mas quando foram

204
Direito Pirata

criados e por quem. A lei pirata foi criada por principalmente


criminosos violentos e analfabetos no início do século XVIII. O
sistema americano de governo foi criado pelos europeus mais
instruídos e respeitados de sua época, mais de meio século
depois. Talvez os Pais Fundadores tenham roubado de piratas.
Ou talvez o capitão Charles Johnson fosse o nom de plume do
espírito do ainda não nascido James Madison.

O Direito Pirata foi Bem-Sucedido?


A lei pirata deve ter sido pelo menos um pouco bem-
sucedida em governar os piratas ou a pirataria caribenha do
início do século XVIII não teria existido. Deixados sem solução,
os problemas cooperativos que os piratas enfrentavam teriam
impedido a pirataria. Mais do que simplesmente existir, no
entanto, por um breve período, pelo menos, a pirataria caribenha
floresceu, para grande desgosto e consternação vociferante dos
governos da Europa e da comunidade comercial internacional.
Uma forma de avaliar o sucesso da lei pirata em governar
os piratas é avaliar o sucesso das tripulações piratas. É
impossível saber quanto ganhava o pirata médio do início do
século XVIII, e os escassos números disponíveis devem ser
interpretados com cautela: certamente as maiores capturas de
piratas eram as mais prováveis de serem registradas. Ainda
assim, esses números sugerem que pelo menos algumas
tripulações piratas foram incrivelmente bem-sucedidas.
Os membros da tripulação pirata do início do século
XVIII, capitaneada por John Bowen, por exemplo, ganhavam
£500 por homem em uma única navegada — o equivalente a 20
anos de renda para um marinheiro experiente médio do início do
século XVIII. Os membros da tripulação pirata comandada por

205
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Thomas White se saíram melhor ainda: cada um ganhou £1.200


de sua expedição. Em 1720, os piratas comandados por
Christopher Condent ganharam £3.000 cada. E em 1721, os
comandados por John Taylor e Olivier Levasseur ganharam
surpreendentes £4.000 por homem.
Muitos piratas, é claro, não tiveram tanta sorte. No
entanto, aqueles cujas tripulações tiveram a sorte de encontrar
prêmios notavelmente ricos só puderam aproveitar sua fortuna
porque conseguiram cooperar por longos períodos no mar. E
eles só conseguiram fazer isso por causa da lei pirata.

Estratagemas Piráticos
Não é de surpreender que criminosos espertos o suficiente
para antecipar o sistema de governo americano fossem espertos
de outras maneiras. Veja, por exemplo, a chamada “imprensa
pirata”. Como a maioria dos fãs de ficção sobre piratas sabe, as
tripulações piratas eram compostas predominantemente por
marinheiros pressionados — recrutas piratas. Exceto que elas
não eram. Como muitos outros mitos de piratas, a percepção
popular de que as tripulações de piratas pressionavam a maioria
de seus membros para seu serviço é resultado de um ardil pirata
— uma campanha astuta de imagem pública para melhorar a
lucratividade da pirataria.
Os governos do século XVIII puniam a pirataria com
enforcamento. Interessados em evitar esse destino se capturados,
os piratas descobriram uma brecha legal: os tribunais não
condenariam as pessoas que os piratas forçassem a se juntar às
suas tripulações. O banditismo em alto mar era criminoso, mas
ser feito prisioneiro por pessoas que praticavam banditismo em

206
Direito Pirata

alto mar e eram forçadas a cumprir suas ordens sob a ponta da


espada não era.
Os piratas exploraram essa brecha fingindo recrutar
marinheiros que se juntaram voluntariamente às suas fileiras.
Como os piratas realmente obrigavam alguns homens a
ingressar em suas empresas, a defesa do recrutamento era
plausível — desde que a pessoa que a reivindicasse pudesse
fornecer evidências convincentes de que havia sido coagida.
Tal evidência não foi difícil de inventar. Depois que os
piratas dominaram seu navio, os marinheiros mercantes que
queriam se juntar chamariam o capitão pirata ou contramestre e
o informariam de seu desejo de entrar na companhia. Os piratas
então fariam um espetáculo ao obrigar o serviço dos marinheiros
a convencer aqueles que não desejavam se juntar a eles de que
seus camaradas haviam sido recrutados.
“[A] Restrição fingida”, como disse Johnson, era de fato
“um Compromisso entre Partes igualmente dispostas” (Johnson
1726-1728, 248). Se uma tripulação pirata fosse posteriormente
capturada, seus membros poderiam chamar testemunhas
confiáveis que observaram sua suposta impressão para fornecer
testemunho convincente em seus julgamentos.
Alguns piratas levaram essa ideia um passo adiante. Eles
fizeram com que testemunhas de seu recrutamento ostensivo
publicassem anúncios declarando-o em jornais populares.
Depois de ser “forçado a embarcar” em um navio pirata
comandado por Bart Roberts, Edward Thornden, por exemplo,
“desejava que um de seus Companheiros [...] tomasse
conhecimento disso e o publicasse na Gazette”.6
A manobra de recrutamento dos piratas estava longe de ser
perfeita. Os tribunais ficaram sabendo disso, e muitos piratas
6Anon 1723, 14.

207
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

que afirmavam ter sido recrutados foram mesmo assim


condenados. Ainda assim, alguns conseguiram escapar da forca
por causa desse ardil.
Uma manobra pirata muito mais conhecida é a infame
bandeira dos piratas: Jolly Roger. Semelhante aos seus artigos,
cada tripulação pirata tinha sua própria bandeira, mas as
bandeiras eram semelhantes. A insígnia pirata típica era preta e
apresentava um homem, ou alguma parte dele, muitas vezes em
forma de esqueleto. A variação favorita dos piratas de
Hollywood retrata uma caveira e ossos cruzados.
A maioria dos bandidos não anuncia sua presença para
suas vítimas e, potencialmente, para as autoridades, exibindo
publicamente um logotipo distintivo de bandido. No entanto, foi
isso que os piratas fizeram. De longe, os navios piratas
ostentavam cores legítimas — as bandeiras de várias nações
européias — para não alertar suas presas prematuramente.
Assim que estivessem mais perto, eles iriam içar o Jolly Roger,
tornando conhecida sua identidade de pirata.
Essa identificação era muito importante para os piratas.
Seus navios não eram as únicas embarcações hostis que os
mercadores do século XVIII poderiam encontrar no mar. Navios
da guarda costeira comissionados pelo governo em busca de
“intrusos” — navios que negociam violando as proibições
mercantilistas — também espreitavam as rotas percorridas pelos
navios mercantes. Os guardas costeiros apreendiam cargas
supostamente contrabandeadas de navios mercantes que
paravam, o que suas licenças permitiam. Frequentemente,
porém, seu comportamento se transformava em pirataria — ou
pelo menos era assim que parecia da perspectiva dos mercadores
abordados e de seus governos.

208
Direito Pirata

Como navios comissionados pelo governo, os navios da


guarda costeira eram limitados em como poderiam responder às
tripulações mercantes que resistiam a eles. Uma guarda costeira
não poderia matar marinheiros em fuga a sangue frio se os
alcançasse. Consequentemente, os navios mercantes muitas
vezes estavam dispostos a resistir aos guardas costeiros.
Diante de um invasor pirata, o cálculo dos mercadores era
diferente. Os piratas tinham uma merecida reputação de
impiedade para com os resistentes, que eles conquistaram
aderindo a uma política simples: render-se ou morrer. Os piratas
adotaram essa política para minimizar o custo de tomar prêmios.
Confrontos violentos com presas eram caros. Eles podem ferir
ou matar tripulantes piratas, danificar o navio pirata ou danificar
o prêmio. A pirataria mais pacífica era, portanto, uma pirataria
mais lucrativa, garantida, ironicamente, pela promessa dos
piratas de massacrar os resistentes.
Piratas condenados enfrentavam a mesma punição —
execução — quer matassem vítimas resistentes ou não, e a mão
de obra e o poder de fogo superiores dos piratas favoreciam
fortemente sua vitória em conflitos violentos com presas. Assim,
a promessa mortal dos piratas era crível e eles a cumpriram,
anunciando esse fato à comunidade marítima, libertando cativos
que espalharam a notícia de seus feitos. Consequentemente, a
maioria dos mercadores não estava disposta a resistir aos piratas.
Para lucrar com esse fato, os piratas precisavam garantir
que suas vítimas soubessem quando estavam sendo abordadas
por piratas e não por guardas costeiros. Uma vítima não
conseguia discernir a identidade de seu atacante pela aparência
de seu navio; piratas e guardas costeiros usavam as mesmas
embarcações. Mas eles não usavam as mesmas bandeiras. Com

209
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

poucas exceções, apenas piratas hasteavam o Jolly Roger, e é


exatamente por isso que o faziam.
Os guardas costeiros evitavam hastear o Jolly Roger,
apesar de sua capacidade de obter a obediência dos navios
mercantes porque, para a maioria deles, fazer o contrário era
correr um risco inaceitável. Os piratas não tinham comissões
governamentais válidas que os licenciassem a abordar navios
mercantes. Se as autoridades capturassem uma tripulação
envolvida em tal atividade sem uma comissão válida, seus
membros eram julgados como piratas. Os guardas costeiros, no
entanto, tinham tais comissões, que os protegiam de serem
processados por pirataria, a menos que se envolvessem em
flagrante comportamento de pirataria — como hastear o Jolly
Roger. Nesse caso, as comissões da guarda costeira não os
protegiam mais, e eles também poderiam ser julgados como
piratas
Por causa disso, não havia almoço grátis para imitadores
de piratas. Agir como um pirata era potencialmente enfrentar a
penalidade legal por pirataria. Aqueles realmente engajados na
pirataria já enfrentavam essa penalidade. Mas para quem só
queria imitar piratas, a diferença pode ser o laço do carrasco.
Assim, os piratas hasteavam o Jolly Roger, e a maioria dos
guardas costeiros não.

210
8
Direito dos
Prisioneiros
Como você ficaria seguro na prisão? Você pode esperar
que os funcionários da prisão garantiriam sua segurança.
Certamente é o trabalho deles fazer isso, e muitos homens e
mulheres trabalham muito duro para fazer exatamente isso. Os
procedimentos formais, vigilância e arquitetura da prisão
fornecem alguma segurança. As mesmas barras que o
manteriam trancado em sua cela à noite também impediriam a
entrada de prisioneiros predadores. No entanto, em todos os
períodos da vida na prisão que conhecemos, descobrimos
consistentemente que os funcionários fornecem apenas parte —
e às vezes muito pouco — da segurança que os prisioneiros
desejam. Na verdade, os prisioneiros desenvolveram um sistema
legal próprio para ordenar a sociedade dos cativos.
Existem três razões pelas quais os presos não dependem
apenas dos funcionários da prisão para fazer isso. A primeira é
que muitos presos se sentem fisicamente inseguros. Isso é,
talvez, compreensível. Como você se sentiria vivendo cada hora
do dia cercado por estupradores e assassinos? Na margem, você
provavelmente gostaria de gastar algum tempo e energia para
tornar-se menos suscetível de ser vítima de roubo ou violência
de outros prisioneiros.
Em segundo lugar, a natureza das prisões da Califórnia é
que há muitos recursos que são mantidos em comum. As barras
de pull-up, mesas e bancos, quadras de handebol e de basquete

211
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

são livremente abertas a todos os presos, pelo menos


oficialmente. Na realidade, porém, há muito mais demanda para
usar esses recursos do que oferta disponível. Um prisioneiro
explica o problema, observando: “Alguém quer controlar esta ou
aquela quadra de basquete. Ou este banco de peso ou aquele
banco de peso. O AP [O agente penitenciário] não tem nada a
ver com isso. Isso é entre os internos, os condenados. Às vezes
você pode talvez conversar, resolver isso sem violência. Às
vezes você tem que trazer a violência.”1 Um preso associado a
uma gangue do hispânica do Norte explica: “Se abrir um novo
pátio, você vai lutar por aquela quadra de handebol, você vai
lutar por algumas mesas… Se você não for um nortista e entrar
nessas áreas, você será apunhalado.”2 Seja por palavras ou
ações, os prisioneiros precisam encontrar maneiras de racionar
esses recursos escassos.
Finalmente, os presos não podem confiar em funcionários
para regular a economia clandestina. Alguns presos desejam ter
álcool, tabaco, drogas, telefones celulares e outros itens
proibidos. A natureza ilícita dessas trocas significa que eles não
podem contar com instituições legais oficiais para fazer valer os
direitos de propriedade e julgar e resolver disputas comerciais.
Como lamenta um preso brasileiro, “se eu vender uma pedra de
crack e o cara não soltar o dinheiro, não tenho juiz para reclamar
ou nota promissória para reivindicar.”3 Os presos precisam
encontrar maneiras de superar esses problemas.
Por todas essas três razões, em quase todas as prisões que
os estudiosos estudaram, descobrimos que os presos criam
instituições legais paralelas e informais.
1
MSNBC 2005.
2
MSNBC 2007.
3
Varella 1999, 141.

212
Direito dos Prisioneiros

A natureza oculta desse regime jurídico dificulta seu


estudo e opera de maneira diferentemente em diferentes tempos
e lugares. Para obter um vislumbre desse submundo, baseio-me
em relatos de uma ampla variedade de fontes, incluindo ex-
prisioneiros,4 estudiosos da vida na prisão,5 relatos jornalísticos
e uma ampla gama de outros documentos e fontes usadas em
meu livro.6 Essas fontes variadas permita-me entrar neste
mundo misterioso e às vezes perigoso para entender quem faz a
lei para os bandidos.

Código dos Prisioneiros


Na Califórnia, antes da década de 1960, os prisioneiros
contavam com um sistema descentralizado conhecido como
Código dos Prisioneiros, ou simplesmente Código. O código
continha as normas de comportamento aceitas para interagir
com outros prisioneiros. Alguns de seus princípios fundamentais
eram:
 Nunca denuncie outro condenado
 Não seja intrometido
 Não fofoque
 Não minta
 Não roube
 Pague suas dívidas
 Não seja fraco
 Não reclame
Os prisioneiros que aderiram a essas normas eram
conhecidos como “condenados” — prisioneiros em boas
4
Irwin 1980.
5
Trammell. 2009, 746-771.
6
Skarbek 2014.

213
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

condições. Aqueles prisioneiros que consistentemente violavam


essas normas, por outro lado, eram conhecidos como meros
“internos”.
Os condenados estimavam aqueles presos que respeitavam
o código nas interações com outros condenados. Isso se devia
em parte ao fato de encorajar um comportamento que não
causava conflito. Violar o código — roubando, mentindo e
fofocando sobre outras pessoas -- provavelmente causaria
problemas. Na medida em que um condenado seguisse essas
normas, ele teria o respeito de seus companheiros condenados.
O respeito deles significava que era menos provável que ele
fosse vítima de violência.
Por outro lado, um preso que violasse regularmente o
código não teria o apoio ou a ajuda mútua de outros. Por causa
de seu isolamento e baixo status, era mais provável que outros
prisioneiros o vitimizassem.
Um prisioneiro desviante estava sujeito a uma série de
punições possíveis. A fofoca e o ostracismo forneciam uma
penalidade relativamente leve, mas importante. Fofoca e
ostracismo sinalizam para outros presos sobre quem pode ser
agredido sem repercussão. Diz aos predadores quais prisioneiros
não têm amigos. Os infratores do código também podem ser
espancados, esfaqueados ou mortos.
Essas imposições não eram dirigidas centralmente. Cabia
aos condenados individuais seguir o Código, optar por aplicar os
desvios do Código e optar por fazer cumprir a meta-norma de
outros condenados aplicando o Código.
O Código não era um documento escrito distribuído aos
novos presos. Não era formalmente discutido e acordado. Não
havia um órgão central encarregado de monitorar e aplicar o
código. Era um sistema jurídico emergente totalmente

214
Direito dos Prisioneiros

descentralizado. Havia pouca organização, nenhum grupo


claramente delineado e permanente, e nenhum líder destacado
entre os prisioneiros.
O Código era um guia de como tratar outros condenados,
portanto, atacar meros internos não era normalmente visto como
uma violação do Código. Semelhante ao direito cigano, os
condenados podem atacar forasteiros sem as mesmas
ramificações que surgiriam se o fizessem contra os de dentro.
Relacionado a isso, no coração desse sistema, eram as ações e a
posição do indivíduo que importavam. Cada homem, para o bem
ou para o mal, era julgado por seus méritos.
Curiosamente, durante esse período, os presos não se
segregavam estritamente por raça e etnia. Os presos tendiam a
se associar com outros presos de sua própria origem racial, com
aqueles que compartilhavam interesses culturais e com pessoas
que conheciam antes do encarceramento. Mas não havia regras
explícitas sobre com quais prisioneiros uma pessoa poderia
interagir e de que maneira.
Edward Bunker, que cumpriu pena na prisão de San
Quentin na década de 1950 e posteriormente, explica que
“embora cada raça tendesse a se congregar com a sua, havia
pouca tensão ou hostilidade racial aberta. Isso mudaria na
próxima década […] o que eu fiz por um amigo negro em
meados dos anos 50 é algo que eu nunca teria considerado uma
década depois.”7

O Código Desaba
Para que o Código funcionasse de forma eficaz, os presos
tinham que saber a reputação de outros presos. Se os
7
Bunker 2000, 132, 145.

215
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

prisioneiros não pudessem conhecer facilmente a reputação de


outra pessoa, a violação do código não seria evitada tão
facilmente. Um prisioneiro condenado ao ostracismo poderia
simplesmente interagir com outros prisioneiros que não
conheciam sua má posição. Da mesma forma, os presos são
mais propensos a pegar carona na aplicação do Código em
populações maiores. Nos primeiros 50 anos de existência do
sistema prisional da Califórnia, sua população carcerária sempre
foi inferior a 5.000 internos e a população carcerária média era
de cerca de 1.000 pessoas, portanto, era possível conhecer a
reputação de outras pessoas.
Embora o Código do Prisioneiro tenha funcionado
relativamente bem durante esse período, ele começou a
desmoronar devido às mudanças na demografia dos prisioneiros.
A partir do final da década de 1950 e durante a década de 1960,
a população carcerária começou a crescer mais rapidamente do
que nunca e atingiu um nível sem precedentes. Até 1970, tinha
aumentado cinco vezes. Até a década de 2000, a população
carcerária da Califórnia havia crescido para mais de 170.000. Da
mesma forma, o número de prisões aumentou de cinco para 35
prisões. Uma vez que hoje um prisioneiro geralmente cumpre
sua pena em várias prisões, o crescimento no número de prisões
aumenta ainda mais a população relevante com a qual um
prisioneiro precisa interagir.
Isso foi agravado pelo fato de que a população carcerária
estava se tornando muito mais étnica e racialmente
diversificada. Enquanto em 1951 costumava haver dois
prisioneiros brancos para cada prisioneiro negro ou hispânico,
essa proporção se inverteu em 1980. A heterogeneidade mina os
sistemas jurídicos descentralizados porque confunde o consenso.
Há menos concordância sobre o que constitui um

216
Direito dos Prisioneiros

comportamento aceitável, o que constitui um desvio desse


comportamento e qual é a punição aceitável para tal desvio.
Coincidindo com essas mudanças, houve um aumento
significativo da violência entre presos. As disputas não eram
evitadas e, quando surgiam, não eram resolvidas de forma
pacífica. Em resposta a esse ambiente cada vez mais caótico, os
prisioneiros se voltaram para grupos que hoje muitas vezes
assumimos serem as fontes de desordem — gangues de prisão.

Gangues de Prisão como Fonte de Lei


Desde a década de 1960, houve um aumento dramático no
número de gangues de prisão, membros de gangues prisionais e,
talvez o mais importante, um aumento de sua influência sobre
outros prisioneiros. Nas prisões da Califórnia, as gangues são
uma influência dominante na vida cotidiana dos prisioneiros.
Gangues prisionais são grupos de prisioneiros que operam
na prisão (e às vezes na rua), cujos membros são restritivos,
permanentes e mutuamente exclusivos, e normalmente têm uma
entidade corporativa que existe em perpetuidade. Cada uma
dessas características é cara para produzir e manter, mas esses
atributos ajudam a promover os sistemas jurídicos informais que
as gangues agora administram.
As gangues operam em um sistema de responsabilidade
comunitária. Cada prisioneiro precisa ter uma afiliação com um
grupo, e cada grupo é responsável pelas ações de cada membro.
As gangues prisionais são os grupos desse tipo mais importantes
na Califórnia hoje, mas não são os únicos. Outros prisioneiros
seguem as ordens dessas gangues, mas podem manter uma
afiliação relativamente limitada com base em sua raça ou etnia.
Da mesma forma, outros presos que compartilham a mesma

217
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

religião às vezes formam grupos, com esses grupos atuando


como a comunidade-chave dentro do sistema de
responsabilidade mútua.
Embora todos os presos precisem se afiliar a um grupo,
nem todos o fazem na mesma extensão. Relativamente poucos
prisioneiros se tornam membros “feitos” das gangues prisionais
mais antigas e estabelecidas, grupos como a Irmandade Ariana,
Família Guerrilha Negra, Nuestra Família e a Máfia Mexicana.
Os presos que desejam menos influência dentro da gangue
podem se filiar a grupos subordinados. Nesses casos, os presos
simplesmente seguem as regras da gangue decididas pelos
líderes da gangue, que os presos chamam de “shot callers”. Isso
permite que eles se encaixem no sistema de responsabilidade
comunitária porque outros presos sabem qual grupo é
responsável por eles, mas não exige o mesmo nível de
dedicação.
As gangues prisionais geralmente têm constituições
escritas para ordenar seu funcionamento interno. Os novos
prisioneiros frequentemente recebem listas de regras que
delineiam o comportamento aceitável e inaceitável ao interagir
com outros prisioneiros. Existem estruturas de liderança
claramente estabelecidas, e algumas dessas posições são
preenchidas por meio de eleições democráticas por membros de
uma gangue. Líderes de gangues autopoliciam seus membros
para garantir o cumprimento das regras.
Quando surgem conflitos sociais e econômicos entre
gangues, os líderes de gangues rivais se reúnem para discutir o
conflito e buscar uma solução. Na prática, isso ocorre de várias
maneiras. Por exemplo, se um membro de uma gangue é
inadimplente em uma dívida de drogas com outro grupo, toda a
gangue desse prisioneiro é responsável por isso. Ele pode ser

218
Direito dos Prisioneiros

forçado a entrar em contato com a família do lado de fora para


pagar. A gangue pode reunir seus recursos para pagá-lo. A
gangue pode forçar o prisioneiro a trabalhar para pagar a dívida
para a outra gangue; ele pode ter que agredir um guarda da
prisão ou um inimigo da quadrilha a que deve. Finalmente, a
própria gangue pode agredir seu próprio membro na medida em
que satisfaça o shot caller do outro grupo de que uma mensagem
foi enviada de que esse comportamento não é aceitável.
Um shot caller fornece uma descrição de tal sistema em
ação. Ele explica: “Precisamos manter os meninos na linha. Se
um de nossos caras é um cabeça quente ou algo assim e está
sempre falando besteira, isso pode causar problemas a todos.
Não queremos um confinamento, não queremos um tumulto,
então tive que bater nos meus próprios caras para controlar o
quadro geral. Se um dos meus caras está bagunçando, então nós
o oferecemos aos outros caras ou nós mesmos o derrubamos.
Como se eu tivesse um cara que tinha uma grande dívida com
drogas, ele devia dinheiro para os Woods [gangue de skinheads
de Peckerwood] e eu tive que entregá-lo a eles. Eles o levaram
para uma cela e realmente desceram o cacete nele. Nós tivemos
que fazer isso. Se não, então todos lutam, o que é ruim para os
negócios e ruim para nós.”8
Um prisioneiro explica os incentivos enfrentados pelos
membros de gangues e as consequências positivas e negativas
de sua influência. Ele diz: “Olha, há muitos problemas causados
pelas gangues, sem dúvida. O problema é que elas também
resolvem problemas. Você quer uma estrutura e quer alguém
para organizar os negócios para que as gangues tenham suas
regras. Você não fica com uma dívida de drogas, não começa
uma briga no pátio e tal. As gangues são um problema, mas nós
8
Trammell 2009, 763-764.

219
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

cuidamos dos negócios. Existe um código de silêncio, você não


fala sobre tudo isso com os outros, os policiais dividem as
gangues se houver um grande problema, então nos mantemos
sozinhos e tendo isso em nossa mente, cuidamos dos nossos
negócios.”9 Essa citação também sugere o motivo pelo qual
gangues governam a prisão. Quando motins ou atos graves de
violência ocorrem abertamente na prisão, os funcionários a
fecham. Quando os internos ficam trancados em suas celas o dia
todo por semanas a fio (“separados”, como diz o prisioneiro), é
muito mais difícil ganhar dinheiro na economia clandestina.
Essa responsabilidade grupal também se aplica às
interações sociais. Um prisioneiro afro-americano que era novo
na prisão ficou um pouco surpreso com as repercussões quando
insultou um prisioneiro branco. Ele explica “a próxima coisa
que sei é que me disseram para acertar as coisas com ele. Eu
tenho que ser homem e cuidar da minha merda. No começo eu
pensei, você deve estar brincando comigo. De jeito nenhum vou
dizer a esse cara que sinto muito. Então eles me disseram que eu
não tenho escolha. Essa é a regra, você faz o que mandam. Eles
argumentaram muito bem sobre como eu preciso entrar na linha.
Ok, então fiz as coisas direito.”10
Às vezes, esse pode ser um método brutal de aplicar as
regras, mas é bem-sucedido porque coloca o custo da imposição
naqueles que podem fazê-lo com o menor custo —
companheiros de gangue. A governança baseada em gangues
supera o Código do Prisioneiro porque requer menos
informações sobre a reputação de outras pessoas. É mais fácil
conhecer a reputação de um grupo do que conhecer a reputação

9
Trammell 2009, 755.
10
Trammell 2009, 766.

220
Direito dos Prisioneiros

de cada membro desse grupo. Isso é crucial na grande população


carcerária que agora existe na Califórnia.
Entender as gangues prisionais como uma fonte de
governança ajuda a resolver dois quebra-cabeças. O primeiro
enigma é que as pessoas muitas vezes atribuem a promoção da
violência como a raison d’être da existência das gangues. Um
oficial penitenciário de alto escalão diz que as gangues têm uma
“agenda de violência”. Mas, ao contrário, a violência nas prisões
estaduais caiu drasticamente nos últimos quarenta anos. Como
mostra a Figura 1, houve um declínio de quase 90% nos
homicídios de prisioneiros de 1973 a 2012 (não há dados
disponíveis de 1974-1979). Durante grande parte da década de
2000, a taxa de homicídios na prisão era realmente menor do
que fora da prisão. Se as gangues se formam para promover a
violência, devemos ver mais violência durante sua ascensão ao
poder, não menos. Reconhecer que as gangues fornecem
governança reconcilia essas tendências aparentemente
contraditórias.
Essa explicação também resolve um segundo quebra-
cabeça: apesar de um declínio dramático no mundo livre no
preconceito racial desde a década de 1940, a vida na prisão é
significativamente mais segregada hoje.11 Chuveiros, telefones,
quadras de handebol e até mesmo áreas no pátio para sentar-se
são reivindicados por diferentes grupos raciais e outras raças
não têm permissão para usá-los. Membros de diferentes raças
não podem compartilhar cigarros ou refeições juntos, ou mesmo
viver na mesma cela de prisão.

11
Bunker 2000, 56.

221
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Figura 1
Parece que o declínio do preconceito racial no mundo
exterior corresponderia a um declínio do preconceito racial
dentro da prisão, mas não é o caso. O quebra-cabeça se explica
quando se considera o aumento da população carcerária. Em
uma sociedade de estranhos, a maneira menos custosa de
identificar a qual grupo uma pessoa se afilia é a cor de sua pele.
Ver uma pessoa é o suficiente para ter uma boa ideia sobre a
quem reclamar sobre seu comportamento. Essa capacidade de
saber qual grupo é responsável pelas ações de um preso sem
saber que ele facilita o sistema de responsabilidade comunitária.
Em uma época de pequenas populações carcerárias, era muito
mais fácil conhecer outros presos, então a segregação estrita não
era necessária como forma de economizar nos custos de
informação.

Conclusão
As gangues não fornecem esses serviços jurídicos por
causa de suas boas intenções. As gangues impõem sua própria

222
Direito dos Prisioneiros

lei porque prisões organizadas são lucrativas. Um preso explica


que os shot callers se esforçaram para evitar confinamentos,
porque “as gangues não podem vender suas coisas, drogas e
outras coisas. Eles não querem um confinamento, isso é
verdade. [...] Os líderes ficam chateados se houver um
confinamento e não tivermos tempo de pátio, eu odiava isso. [...]
É melhor lidar com as coisas discretamente. Ninguém precisa de
tumulto.”12 Interrupções na vida dos prisioneiros perturbam a
economia clandestina que é uma importante fonte de receita
para os líderes de gangues. Não é pela benevolência das gangues
que eles governam o submundo, mas pela consideração de seus
próprios interesses.
O sistema legal operado pelas gangues prisionais é eficaz
em facilitar as interações sociais e econômicas dentro de uma
sociedade de estranhos cativos, mas está longe de ser o ideal. A
participação em gangues aumenta a reincidência. Falta-lhe um
sistema robusto de responsabilidade e está muito longe do
império da lei. Além disso, canaliza poder e dinheiro para
pessoas que a maioria de nós preferiria que tivessem menos de
ambos. Com a falta de opções de saída (seja das gangues ou da
prisão), há pouco controle sobre o comportamento predatório
das gangues. No entanto, elas cumprem o objetivo de fornecer
lei para pessoas que não podem contar com o estado para fazê-
lo.

12
Trammell 2009, 763.

223
9
Sistemas Integrados e
Polilegais
A maioria dos sistemas jurídicos com os quais nós
estamos familiarizados foram aplicados pelos governos, mas
não todos. O direito cigano, o direito amish e, na maior parte
dos últimos dois mil anos, o direito judaico, são sistemas
jurídicos integrados. Sistemas que impõem suas próprias
regras sobre seu próprio povo apesar de estar sob o sistema
jurídico de um governo com muito mais acesso à força.1
Outros exemplos seriam os sistemas jurídicos da igreja dos
Santos dos Últimos Dias (mórmons) e a Nação do Islã
(muçulmanos negros) na América dos dias atuais, a Máfia
Siciliana, e as gangues da prisão descritas no capítulo 8.
Um sistema jurídico integrado enfrenta os mesmos
problemas dos outros sistemas jurídicos, mas alguns
adicionais também. Ele precisa encontrar maneiras de
implementar regras sobre sua população apesar do fato de que
as maneiras pelas quais as regras jurídicas são geralmente
aplicadas, seja pela força ou pela ameaça de força, podem
violar as regras do sobregoverno. Se deseja dar permissão
para atividades proibidas pelas regras do sobregoverno, ele
deve, de alguma forma, impedir que o último conjunto de
regras seja imposto contra sua população. Se os indivíduos
são livres para sair da população controlada pelo sistema
integrado, deve encontrar alguma maneira de dificultar sua
saída ou torná-la indesejável.
1
Alguns sistemas jurídicos, como o da Somália, são não governamentais, mas
não integrados, uma vez que não há nenhum governo acima deles com o
poder de impor suas regras.

225
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A diáspora das comunidades judaicas encontrou a mais


simples solução para esses problemas: persuadir o
sobregoverno a delegar às autoridades comunais a soberania
jurídica sobre sua população. Como descrito no capítulo 4,
governantes gentios, cristãos e muçulmanos, acharam
conveniente terceirizar o trabalho de governar, e taxar, seus
súditos judeus para as autoridades comunais judaicas. A essas
autoridades foi permitido a imposição de suas regras como
regras jurídicas são convencionalmente impostas, pelo uso da
força ou pela ameaça da mesma, em alguns casos a força era
fornecida pelo sobregoverno.
Os ciganos encontraram um diferente conjunto de
soluções. Os vlach rom aplicaram suas regras pela ameaça de
ostracismo, uma punição que, diferente de multas, prisão, ou
execução, não viola as leis dos estados em que eles viviam.
Eles também, a julgar pela evidência histórica das cartas que
carregavam no século XV, supostamente, talvez realmente, do
Sacro Imperador Romano, em alguns lugares e épocas
alegaram ter autoridade legal delegada a eles. Parece muito
provável que, onde esses métodos eram inadequados, eles às
vezes fizeram uso de força furtiva.
Os romnichals e os kaale confiaram nessa abordagem
final — usar força ilegal enquanto fugiam da observação e da
autoridade legal do sobregoverno. Tanto a violência privada
dos romnichals quanto as disputas e duelos violentos dos
kaale eram ilegais, embora os kaale reduzissem o problema ao
conduzir a maior parte de suas disputas principalmente por
evasão legal em vez da violência ilegal. Em ambos os casos, o
risco de interferência do governo foi aplacado pela relutância
dos ciganos em reclamar às autoridades quanto as atividades
de outros ciganos.2 Os vlach rom na América, ao contrário,
usaram o sistema legal gaji como uma arma, acusando seus
2
Alguns relatos históricos, no entanto, dão a impressão de que, no início,
alguns tentaram recrutar forasteiros para suas disputas mortíferas (Weyrauch
2001, 142-145).

226
Sistemas Integrados e Polilegais

oponentes de crimes, reais ou inventados, acusações que


seriam retiradas caso as disputas fossem resolvidas.
As gangues da prisão descrita no capítulo 8 fornecem um
exemplo contundente de um sistema integrado que impõe
suas regras pela força ilegal. Não apenas elas estão fazendo
coisas, tais como agressões e assassinatos, que são ilegais,
elas estão fazendo-nas dentro de uma prisão, onde poderia-se
esperar que a imposição da lei governamental fosse
particularmente efetiva. O código de condenação anterior foi
aplicado pela ameaça de ostracismo em um contexto em que o
ostracismo produzia uma vulnerabilidade maior à violência.
O ostracismo é uma punição que um sistema jurídico
integrado pode impor sem violar as regras do sistema jurídico
em que está integrado. Outra punição é a excomunhão,
recusando-se permitir a participação em rituais religiosos.
Ambas são efetivas por causa de características especiais da
subpopulação.
A efetividade da ameaça de ostracismo depende de quão
facilmente o cigano exilado pode atuar fora de sua
comunidade. Os gaje, não ciganos, não conhecem as regras
do marimé e então não as obedecem, nem podem obedece-las.
Disso se segue que eles estão todos poluídos, impuros,
portadores de uma doença espiritual contagiosa e talvez
também de doenças físicas, são pessoas que nenhum rom em
sã consciência estaria disposto a se associar de boa vontade;
quando e se tal associação for inevitável, ela deve ocorrer
com grande cuidado.3 A visão cigana quanto aos gaje,
reforçada pela visão gaje acerca dos ciganos como ladrões e

3
Sutherland 1975, pp. 259-260. “Quando devem estar em locais não ciganos,
os ciganos geralmente evitam tocar o máximo possível de superfícies
impuras, mas, é claro, a ocupação prolongada de um local não cigano, como
um hospital ou prisão, significa certa impureza. Nesse caso, a pessoa tenta
diminuir o risco usando copos, pratos e toalhas de papel descartáveis — ou
seja, coisas não usadas por não ciganos.” (Sutherland 2017, 72).

227
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

vigaristas rudes e ignorantes e,4 eliminava a opção de saída e


então fortaleceu o kris a aplicar a lei cigana pela ameaça de
exclusão da única sociedade humana tolerável. Era uma
ameaça particularmente poderosa em uma cultura onde a
interação social desempenha um papel muito importante na
vida individual.
Parte da dor de ser negado o contato com seu próprio
povo, seja em uma cela, em um hospital ou em um
trabalho, é a de estar sozinho. Estar entre um grupo de
rom é o contexto cotidiano natural dentro do qual uma
pessoa vive, aprende e expressa sua personalidade; estar
entre um grupo de gaje é estar sozinho. Para onde quer
que ele viaje ou onde quer que viva, um rom raramente
está sozinho. Muito frequentemente ele está cercado por
um grande número de parentes e amigos.5

A sobrevivência do sistema integrado depende da


manutenção de suas características especiais. Tanto os
ciganos quanto os amish tem uma histórico de tentativas de
manter o controle sobre a educação de suas crianças, como
descrito nos capítulos anteriores. Parece claro que a
preocupação principal dos pais amish era que o ensino médio,
ou o ensino primário em uma grande escola onde os
professores e a maioria dos estudantes não eram amish,
enfraquecesse a conexão de suas crianças com sua religião e
cultura. Questões semelhantes foram levantadas pela
interação dos amish com o sistema de Serviço Seletivo
durante e após a Segunda Guerra, e novamente foram
resolvidas.
Os ciganos também estiveram relutantes em pôr suas
crianças no sistema educacional comum. Uma escola dirigida

4
Para a versão moderna, consulte Sutherland 2017, 51. Para evidências de
que a visão não é totalmente injustificada, 86-94.
5
Sutherland 1975, 99.

228
Sistemas Integrados e Polilegais

pelos gaje não seguirão as regras ciganas de pureza.6 Crianças


que passam uma parte considerável de seu tempo sendo
ensinadas e interagindo com estrangeiros podem fracassar em
ser inseridas na cultura de seus pais.7 As garotas podem ter
sua reputação prejudicada ao se associar livremente com os
garotos após a idade em que tal associação é aceitável na
cultura cigana.
O problema não era sempre insolúvel:
Exigências das autoridades da escola para que os pais
mandem seus filhos para a escola, [...] geralmente são
resolvidas por um êxodo da família pelo tempo que for
necessário.
É surpreendente o quão bem essa técnica funciona. Um
inspetor de absenteísmo diligente não tem autoridade ou
preocupação com uma família depois que eles saem da
cidade, e quando eles retornam, ele geralmente tem que
começar tudo de novo, aplicando pressão à família antes
de ameaçar com um processo. Uma vez feita a ameaça, a
família parte novamente. (Sutherland 1975, 50)

Apesar da quantidade dos ciganos na América do Norte

6
As regras não se aplicam a crianças antes da puberdade, então isso seria um
problema principalmente para crianças mais velhas.
7
Para obter detalhes, veja Hancock 2010, 134-5. Para o colapso gradual das
instituições vlach rom, veja Sutherland 2017.

229
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ser por volta do dobro da quantidade dos amish,8 eles têm


sido muito menos bem sucedidos em estabelecer suas próprias
escolas. Uma escola cigana em Richmond, Califórnia,
inicialmente sem financiamento e sustentada por voluntários,
mais tarde financiada com dinheiro do estado, durou sete
anos. Vários outros projetos, todos dependentes do
financiamento do estado de uma forma ou outra,
sobreviveram por períodos mais curtos de tempo.9 Ainda mais
recentemente, os ciganos da Califórnia tiraram proveito do
controle frouxo do estado sobre a educação em casa, enviando
as crianças para uma escola pública até os doze anos de idade
e depois educando-as em casa, em parte pra evitar que a
reputação das garotas fosse manchada pelo contato com os
garotos após a puberdade. Isso resolve parte do problema
posto pela escolaridade compulsória, mas não o risco de
contaminação das crianças com a cultura não cigana que os
cerca.
Quanto mais difícil for para os membros saírem da
subpopulação, menos efetivo é o ostracismo como uma
sanção. Porém, quanto mais difícil for para os membros
desertarem, maiores serão os problemas internos causados por
membros insatisfeitos com as regras do sistema integrado,
mas que não querem sair. O conflito é muito bem ilustrado

8
Hancock (2010, 128-129) estima um milhão no total, cerca de dois terços
deles vlach rom, mais rígidos em manter distância social de outros do que
outros grupos ciganos, portanto menos dispostos a arriscar poluição ou
aculturação enviando seus filhos para escolas não ciganas. Os principais
dialetos vlach rom são mutuamente inteligíveis, ao contrário de alguns outros
dialetos do romani, então o vlach rom parece ser o grupo mais capaz de
imitar a solução amish para o problema. Os romnichals, o próximo maior
grupo, falam uma língua que não é mutuamente inteligível com os dialetos
vlach, inglês com muitas palavras emprestadas do romani. Os grupos ciganos
menores estão, em grande parte, geograficamente concentrados, o que deve
facilitar o estabelecimento de escolas (Hancock 2010, 130-131).
9
Hancock 2010, capítulo 9.

230
Sistemas Integrados e Polilegais

pela experiência amish. Uma das linhas pelas quais as


congregações amish se divide é a divisão entre exclusão forte
e fraca. Sob a regra da exclusão forte, streng Meidung, a
exclusão de um membro somente termina quando ele é aceito
de volta na sua congregação de batismo, normalmente como
resultado de ter confessado seu erro, corrigido seus modos, e
ter sido perdoado. Sob a regra mais fraca, a aceitação de um
membro excluído em qualquer congregação amish ou
menonita provavelmente resultará na suspensão da proibição
de associação com ele. Essa é uma grande diferença para
alguém que considera fazer coisas que podem levá-lo a ser
banido, visto que as pessoas obrigadas a evitá-lo
provavelmente incluem a maioria de seus parentes e sua
esposa.
Pelo relato de Meyers e Nolt, as congregações suíças,10
descendentes da onda de imigração do século XIX,
geralmente incluem a exclusão estrita em seu Ordnung, assim
como os Amish Schwartzentruber, a filiação mais baixa (mais
conservadora) da ordem antiga. Ambos os grupos têm taxa de
deserção abaixo da média, com noventa por cento ou mais de
seus filhos escolhendo permanecer na congregação. Mas os
suíços também tem a reputação de mais dissensões internas e
cismas mais frequentes do que os amish alto-alemães, os
descendentes da imigração do início do século XVIII, muitos
(mas não todos) de cujas congregações praticam a rejeição
fraca. E embora apenas uma pequena fração das crianças
Schwartzentruber deserta da sua congregação, aquelas que
desertam tendem a fazê-lo bastante remotamente, terminando,
ao contrário dos desertores das afiliações mais moderadas,

10
Os amish suíços falam um dialeto alemão relacionado ao
Schweizerdeutsch, enquanto os amish alto-alemães falam o alemão da
Pensilvânia, um dialeto alemão que se desenvolveu na Pensilvânia a partir de
vários dialetos de imigrantes.

231
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

fora de todo o espectro dos grupos amish e menonitas.11

O Destino dos Ciganos Americanos


Quanto mais fácil for para os indivíduos atuarem na
cultura circundante, mais fraca é a ameaça de ostracismo e,
portanto, mais fraca é a autoridade do sistema jurídico
integrado. A América moderna é uma sociedade
extraordinariamente tolerante. Isso é uma vantagem do ponto
de vista do rom individual, mas é uma ameaça para a cultura e
o sistema jurídico cigano.
O primeiro livro de Sutherland, baseado numa pesquisa
feita entre 1968 e 1970, descreveu uma cultura na qual os
anciãos tinham quase um controle completo sobre os filhos e
netos, os casamentos eram arranjados pelos pais e avós, as
barreiras entre os ciganos e os gaje eram estritamente
mantidas, o kris atraiu um grande número de ciganos como
observadores e jurados e o seu veredito foi quase
invariavelmente obedecido. Era uma sociedade na qual as
regras da Romania, o sistema de lei e tabu, foram aplicadas e
obedecidas, uma vez que uma sentença de marimé por sua
violação resultou em morte social para pessoas cujos contatos
humanos eram quase inteiramente com companheiros
ciganos. Esse era um sistema cujos membros apoiavam uns
aos outros por meio de um sistema fortemente unido de
parentesco e obrigações mútuas, ao mesmo tempo em que
fugiam com sucesso das regras da sociedade em que estavam
integrados, manipulando as autoridades dessa sociedade para
seus próprios propósitos e ganhando a vida com seus
membros.

11
“Embora muito poucos em número, jovens amish desertores nas fileiras
“mais baixas” tendem a fazer mudanças abruptas, como ingressar no
exército.” (Hostetler 1980, 290). O contexto é uma discussão de grupos que
variam de baixo a alto em uma única comunidade na Pensilvânia.

232
Sistemas Integrados e Polilegais

Seu segundo livro, escrito mais que quarenta anos mais


tarde, pinta um quadro muito diferente. Para a maior parte dos
vlach rom, o sistema de parentesco, o vitsa, praticamente
desapareceu. O funeral de uma personalidade proeminente
não traz mais membros do vitsa de todo o país. As
autoridades mais velhas estão nitidamente reduzidas, as mais
jovens frequentemente estão escolhendo seus próprios
parceiros de casamento desafiando a autoridade parental.12 As
igrejas dos Evangélicos Ciganos fornecem novas fontes de
autoridade, o ministro e Jesus, minando a autoridade dos
anciãos e dos Grandes Homens. A sentença de marimé ainda
é imposta, mas “as pessoas estão escolhendo obedecer ou não,
então a pessoa banida terá muitos parentes e amigos que
ignoram a decisão de marimé”13 Os conflitos que antes teriam
ido para um kris geralmente vão para o sistema judicial. “O
kris não é mais representativo dos vários grupos e, dessa
forma, sua autoridade para aplicar suas regras está
enfraquecida. Se for principalmente duas famílias de dois
vitsi; os membros do vitsa ficam do lado de seu familiar, e
não há uma contingência maior de roma para exercer
autoridade sobre o vitsa.”14 Os casamentos, feriados, e
funerais cada vez mais seguem o padrão da sociedade
circundante. A geração mais jovem é fluente em inglês, e
menos fluente em romani. “As mulheres que se converteram
[às igrejas evangélicas ciganas] não têm mais a adivinhação
como forma de contribuir para a renda familiar [porque as
igrejas ensinam que é pecaminoso] e, assim, perderam seu
poder econômico. Era esperado que elas ficassem em casa e
criassem os filhos em famílias nucleares, obedecessem a seus
maridos, e se comportassem modestamente.”15
12
“Os jovens fogem juntos quando querem se casar e essas questões de
pureza e moralidade nunca são levadas a um kris.” Sutherland 2017, 103.
13
Sutherland 2017, 99.
14
Sutherland 2017, 45, citando uma comunicação de Ian Hancock.
15
Sutherland 2017, 104.

233
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Sutherland finaliza sua descrição das mudanças:


Eu vejo um forte e duradouro senso de identidade como
roma, apesar das rápidas mudanças nas práticas culturais.
[...] Não sei que outras mudanças podem ocorrer, mas a
identidade roma sobreviverá. Ela sempre sobreviveu.16

Ambos os quadros que ela pinta é de uma sociedade


incorporada entrando em colapso gradualmente na
assimilação. Nas palavras de um correspondente que havia
sido um aluno na escola que ela dirigiu por um breve período
em Richmond, que agora é avô:
Uau, Anne. Aquelas foram as melhores épocas — quando
os roma se davam bem e cuidavam uns dos outros. Se
alguém estava doente eles vinham ao hospital até que os
guardas falassem para eles saírem. Quando alguém
morria, todos os roma que estavam na cidade visitavam a
família e faziam companhia o tempo todo para não deixá-
los (os falecidos) sozinhos. Eu sou tão feliz, Anne, por ter
vivido essa época. Muita coisa mudou, e para pior. Eles
se esqueceram suas origens — nossos modos, nossa vida,
pelo que lutamos, quando nosso povo batalhou para não
mudar nossa maneira de viver. Nossa liberdade.17

O Governo como Ameaça


Outro problema em potencial para um sistema jurídico

16
Sutherland 2017, 105.
17
Sutherland 2017, 8. Sete anos antes da publicação do segundo livro de
Sutherland, publiquei uma postagem no blog argumentando que a tolerância
das sociedades norte-americanas era uma ameaça à manutenção da cultura
cigana: http://daviddfriedman.blogspot.com/2009/12/toleration-vs-
diversity.html

234
Sistemas Integrados e Polilegais

integrado é a pressão sobre suas instituições criadas pela


necessidade de interagir com o sobregoverno. Aqui,
novamente, os amish fornecem um exemplo. Questões como
o tratamento dos objetores de consciência amish, requisitos de
escolaridade, a relutância amish em participar do sistema de
Seguridade Social, requisitos para marcar os buggies amish
como veículos lentos, tudo exige negociação entre um
governo estadual ou federal e alguém que pode falar pelos
residentes amish do estado ou da nação — uma requisição
difícil de satisfazer, visto que os amish não reconhecem
nenhuma autoridade acima da congregação individual.
Para resolver esse problema, organizações como o
Comitê Diretivo Nacional Amish e comitês educacionais
estaduais amish foram formados.18 O Comitê Diretivo teve
êxito ao negociar com o sistema de Serviço Seletivo tanto
para assegurar aos convocados amish o status de objetor de
consciência quanto para canalizá-los para o serviço de guerra
agrícola que os manteria conectados à cultura amish.
Posteriormente, isso foi fundamental nas negociações de
soluções em outros conflitos entre os amish e o governo.
A criação de tais estruturas de congregação
supranacionais trouxeram consigo uma ameaça à natureza
descentralizada das instituições amish. O Comitê Diretivo não
tinha autoridade formal sobre as congregações, mas a
disposição dos governos em tratá-lo como uma voz dos amish
conferiu-lhe poderes que poderiam ter sido convertidos em
autoridade de facto.
Uma das coisas que o comitê fez foi produzir um
conjunto de recomendações para as escolas, concebidas para
impedi-las de serem dirigidas de formas que ameaçariam os
entendimentos com as autoridades estaduais que tornaram
possível as escolas amish terem professores não certificados.
18
Para um relato detalhado das estruturas supracongregacionais no
assentamento de Lancaster, o mais antigo dos grandes assentamentos, ver
Kraybill 1989 pp. 86-90.

235
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Se o comitê tivesse se sentido suficientemente forte sobre a


importância de ter essas recomendações seguidas,19 as
congregações que ignoraram as recomendações poderiam ser
ameaçadas com uma recusa pelo comitê em ajudar seus
convocados a reivindicar o status de objetor de consciência.
Por meio dessa e outras táticas — o Comitê também tem
assumido um papel na garantia de isenção de impostos da
Seguridade Social para funcionários amish — o Comitê
poderia ter pego emprestado o poder do governo federal e
tentado usá-lo para controlar as congregações.
Talvez isso não ocorreu, até onde sabemos, devido ao
comprometimento ideológico dos membros do Comitê, eles
mesmo sendo amish, ser muito forte para permitir que isso
acontecesse.20 Mas o fato de que isso poderia ter ocorrido
sugere um problema enfrentado por um sistema jurídico
integrado baseado, como é o sistema jurídico dos amish, em
instituições descentralizadas.21
As estruturas de parentesco ciganas, como o natsiya
(“nação” ou “tribo”) vlach rom podem conter centenas de
milhares de indivíduos, mas a estrutura política de mais alto
nível é a kumpania,22 geralmente liderada por um Rom Baro,
um “Grande Homem”. Seu poder é provavelmente baseado
tanto no parentesco com as várias famílias na kumpania
19
“É preocupação definitiva do Comitê que um pequeno grupo não perturbe o
sistema escolar geral apreciado por muitos e aprovado pela Suprema Corte
dos Estados Unidos.” (Old Order Amish Steering Committee 1980, 42).
20
“Algumas pessoas podem pensar que o Comitê está tentando administrar as
igrejas, mas não deveria ser assim. O Comitê é apenas a voz das igrejas
combinadas” (Old Order Amish Steering Committee 1972, 58; ênfase no
original).
21
Para uma extensa discussão sobre a história do Comitê Diretivo e a tensão
entre sua estrutura, hierárquica e burocrática, e a descentralizada cultura
amish, veja Olshan 1990.
22
Embora não haja estrutura política acima da kumpania, o kris pode ser e é
usado para resolver disputas que atravessam as fronteiras da kumpania.

236
Sistemas Integrados e Polilegais

quanto nos laços percebidos com os gaje e a influência sobre


os mesmos. Uma conexão com o chefe de polícia local ou
fiscais de benefícios sociais, simbolizada pela sua presença
próxima ao Rom Baro em um banquete, é um importante
recurso político. Sutherland menciona um caso em que uma
família, encontrando um atraso temporário na qualificação de
seus benefícios sociais, erroneamente interpretou esse fato
como uma evidência de que o Rom Baro local não aprovava.23
A disposição das autoridades locais em crer nas acusações
criminais feitas de um rom contra outro pode ser uma arma
potente em uma disputa.
Nos EUA, tais negociações com as autoridades gaje
apoiam o poder central no nível local, mas ainda não no nível
nacional. O motivo pode ser a dificuldade em combinar a
organização nacional que pretende falar por todos os rom com
as táticas discretas usada para fugir da autoridade do governo.
Em outros lugares, entretanto, tais tentativas às vezes
ocorrem.24 No nível internacional, a União Romani
Internacional existe e fornece a seus representantes alguma
revindicação para falar pelos ciganos:
Eu estava periodicamente envolvido com advogados em
Toronto para ajudar em casos de refugiados porque eu
era o representante canadense da União Romani
Internacional, uma ONG das Nações Unidas, e era
reconhecido pelas autoridades governamentais
25
canadenses como tal. (Ronald Lee).

23
Sutherland 1975, 12, 110-113.
24
“Anteriormente, durante nosso trabalho de campo na década de 1980 na
Eslováquia (entre os lovari e bougešti), testemunhamos tentativas de tal
institucionalização quando os respeitados líderes de clãs regionais tentaram
governar suas comunidades aceitando o papel de representantes roma diante
das autoridades majoritárias […].” (Marushiakova e Popov 207, 86-87).
25
Sijercic 1999, uma entrevista com Ronald Lee, Diretor de Advocacy na
Comunidade Roma e Advocacy Centre, Toronto.

237
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Sistemas Polilegais
Até agora estive considerando os sistemas jurídicos
inequivocamente sob a autoridade de um sobregoverno.
Questões um tanto diferentes são levantadas por sistemas
polilegais em sociedades onde diferentes pessoas estão sob
diferentes regimes jurídicos, nenhum dos quais tem status
superior aos outros. Um exemplo seria o islamismo sunita,
com quatro diferentes e, em alguns momentos e lugares,
escolas de direito coiguais existindo na mesma cidade. Outros
exemplos existiram na Idade Média. Durante a Reconquista
na Espanha, não era incomum que uma vila muçulmana
passasse para o domínio cristão, mas fosse permitida
permanecer por um tempo considerável sob a lei muçulmana.
Durante o período em que os comerciantes alemães estavam
expandindo suas atividades para as áreas eslavas ao longo da
costa do Báltico, os governantes locais às vezes permitiam
que os alemães sob seu domínio estivessem sob a lei alemã.
Sob o sistema de millet do Império Otomano, diferentes
comunidades étnicas, não apenas judeus, mas também vários
grupos cristãos, receberam poderes de autogoverno, sujeitos a
quaisquer requisitos que o Império lhes impusesse.26
O País de Gales durante os séculos antes de sua união
com a Inglaterra fornece um caso interessante. Desde os
períodos anglo-saxões, os príncipes galeses viam o rei inglês
como o rei supremo a quem deviam lealdade, mas não
homenagem.27 Os normandos que detinham terras no País de
Gales por direito de conquista reivindicavam um semelhante
status quase-régio, devendo a lealdade ao rei da Inglaterra,
mas livres para aplicar uma mistura de leis e costumes galeses
26
Como este exemplo sugere, a linha entre sistemas integrados e polilegais é
difusa; as comunidades judaicas da diáspora com autoridade legal delegada
poderiam ser classificadas de ambas maneiras.
27
Isso significava que, enquanto os príncipes eram leais ao rei, suas terras não
eram retiradas dele, portanto, não sob a lei inglesa.

238
Sistemas Integrados e Polilegais

e ingleses às terras que governavam. Ao longo do tempo, o


território galês, seja mantido por príncipes galeses ou
senhores normandos, gradualmente ficou sob a autoridade
jurídica da coroa inglesa, um processo concluído pelos Atos
de União sob Henrique VIII.
Até então, em alguns casos e para alguns, mas não todos
os propósitos legais, o inglês estava sob a lei inglesa, o galês
sob a lei galesa.28 Um único senhorio poderia incluir
Welsheries, áreas onde a lei galesa se aplica a questões como
herança, e Englisheries onde a lei inglesa se aplicava.29
Quando Llewellyn ap Iorwerth, governante do reino nortenho
jurou fidelidade e homenagem ao rei João, o rei “permitiu que
a lei inglesa ou galesa fosse utilizada para resolver disputas
nas terras de Llewellyn, dependendo se eram de senhores
galeses ou ingleses". No final do período, os galeses às vezes
eram recompensados ​pelo serviço à coroa recebendo o status
de cidadão, tornando-se ingleses honorários. Sob Henrique
VII, o status de cidadania às vezes era dado a áreas inteiras ou
senhorias.30
Um sistema polilegal não levanta nenhum problema
especial desde que as disputas em a que se aplica sejam
intracomunitárias, e na maioria de tais sistemas a maior parte
das disputas provavelmente o eram. O problema surge quando
um sistema polijlegal deve lidar com casos cruzados, disputas

28
“[…] a divisão racial entre os galeses e os ingleses permaneceu
significativa em relação a qual procedimento deveria ser usado em certas
ações pessoais, em relação a se a propriedade deveria ser herdada e em
relação a se as terras eram livremente alienáveis, […].” (Watkins 2007, 113).
29
“As áreas sob a jurisdição das leis normandas eram frequentemente
divididas em Englishries, onde os costumes normandos eram obtidos, e
Welshries, onde a população continuava a viver de acordo com suas leis
nativas, pelo menos no que diz respeito aos direitos e deveres de direito
privado, como os relacionados a assuntos fundiários, sucessórios e familiares,
estavam em causa.” (Watkins 2007, 81).
30
Watkin 2007, 118-119, 121-2.

239
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

entre (digamos) um autor maliki e um réu shafi'i.


Uma solução possível é que um sistema, talvez o sistema
do governante, tenha jurisdição sobre tais casos, mas existem
outras. A regra, poderia, por exemplo, ser que um caso
sempre fosse levado para o sistema jurídico do réu.31 Cada
par de sistemas jurídicos poderiam ter um acordo
especificando o tribunal ao qual as disputas entre eles iriam,32
embora isso ainda levante problemas para uma disputa com
várias partes aderindo a mais de dois sistemas. No caso
islâmico, as disputas entre um muçulmano e um cristão ou
judeu podiam ser levadas a um tribunal muçulmano.
A mesma questão existe atualmente na lei dos EUA, que
é, de sua própria maneira, polilegal. Cada estado nos EUA
tem sua própria lei. A maioria das disputas tem uma
localização inequívoca em um determinado estado, mas não
todas; considere o caso de um cliente na Califórnia que
compra um produto produzido em Massachusetts de um
vendedor no Texas. Qual tribunal tem que decidir a disputa de
responsabilidade do produto resultante? A teoria jurídica dos
EUA inclui um conjunto elaborado de regras para resolver
tais casos de conflito de leis.
Uma dessas regras é a jurisdição de diversidade. Um
processo civil que normalmente estaria sob a lei estadual pode
ser ouvido por um tribunal federal se o autor e o réu forem de
estados diferentes — uma versão moderna da regra que envia
casos cruzados ao tribunal do governante. A resposta não é
simplesmente que a lei federal controla — em alguns
contextos é função do tribunal federal resolver o caso de
acordo com o que considera ser a lei estadual relevante.
31
Esta parece ter sido a regra em algumas políticas muçulmanas. Em um
contexto inglês análogo, o queixoso decidia a que tribunal uma disputa iria.
A renda dos juízes provinha do julgamento de casos, dando-lhes um
incentivo para serem pró-queixosos a fim de atrair processos. (Klerman
2007).
32
A abordagem usada no sistema legal hipotético descrito em Friedman 1972.

240
Sistemas Integrados e Polilegais

O mesmo problema aparece, de facto se não de jure,


dentro do sistema federal, visto que a interpretação da lei
federal é principalmente feita pelos tribunais de apelação dos
doze circuitos federais. Existe, portanto, uma lei do circuito e,
assim como no caso da lei estadual, pode haver ambiguidade
quanto a qual circuito tem jurisdição sobre o caso. Somente
quando a Supremo Corte concorda em ouvir um caso é que
uma regra é produzida e se torna obrigatória em todos os
circuitos. O conflito entre as opiniões do circuito é uma das
razões para a Suprema Corte aceitar um caso.

241
10
Islândia do Período
das Sagas1
A Islândia é conhecida pelos homens como uma terra de
vulcões, gêiseres e geleiras. Mas não deve ser menos
interessante para o estudante de história como o berço de
uma brilhante literatura em poesia e prosa, e como o lar
de um povo que manteve por muitos séculos um alto
nível de cultivo intelectual. É um exemplo quase único de
uma comunidade cuja cultura e poder criativo
floresceram independentemente de quaisquer condições
materiais favoráveis e, na verdade, sob condições no mais
alto grau desfavoráveis. Tampouco deve ser menos
interessante para o estudante de política e leis por ter
produzido uma Constituição diferente de qualquer outra
da qual existem registros e um corpo de leis tão
elaborado e complexo que é difícil acreditar que existiu
entre os homens cuja ocupação principal era para matar
um ao outro.
(Bryce 1901, 263)

Há cerca de quarenta anos, George Stigler e Gary Becker,


dois proeminentes economistas da Universidade de Chicago,
1Nas notas deste capítulo, Sturlungasaga I é McGrew 1970, o primeiro
volume da tradução de McGrew de Sturlungasaga. Sturlungasaga II é
McGrew 1974, o segundo volume. Gragas I é Dennis et. al. 2007, o primeiro
volume da tradução de Gragas, Gragas II é Dennis et. al. 2014, o segundo
volume. Citações de Gragas são rotuladas por seção, como K§24, e página
na tradução. Sagas I-V é Hreinsson 1997, The Complete Sagas of Icelanders,
volumes I-V.

243
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

publicaram um artigo que apontava um problema com o sistema


convencional de aplicação do direito pernal.2 Gosto de resumir o
argumento deles com uma breve história.
Eu sou um policial, você é um criminoso. Tenho as
informações sobre você, as evidências que irão mandá-lo para a
cadeia. O custo de ser condenado e preso é, para você, o
equivalente a uma multa de cem mil dólares. O benefício para
mim de conseguir que você seja condenado é uma estrela
dourada em meu boletim, um impulso para minha carreira que
aumentará minha renda vitalícia em dez mil dólares. Visto da
perspectiva de Dragnet, o resto da história é óbvio: eu entrego
as evidências ao promotor, você vai para a cadeia. Visto da
perspectiva da economia, também é óbvio. Tenho algo que vale
dez mil dólares para mim e cem mil para você. Os mercados
existem para mover ativos para seu uso mais valioso. Você me
paga cinquenta mil dólares e eu queimo as provas.
Para evitar que isso aconteça, para fazer o sistema
funcionar conforme planejado, precisamos de uma segunda
camada de policiais vigiando a primeira camada — e talvez uma
terceira camada vigiando-os. Isso aumenta o custo e a
complicação do sistema. Becker e Stigler sugeriram uma
alternativa simples: substituir o salário do policial por uma
recompensa. Quando você paga uma multa de cem mil dólares
ou recebe a sentença de prisão equivalente, eu recebo cem mil
dólares. Agora, o único suborno que estaria disposto a aceitar é
de pelo menos cem mil dólares, o que imporia a punição
adequada a você, economizando o custo de um julgamento.
Dois proeminentes estudiosos jurídicos, Richard Posner e
William Landes, também da Universidade de Chicago,
responderam, apontando questões que o primeiro grupo de
2Becker & Stigler 1975.

244
Islândia do Período das Sagas

autores não conseguiu lidar, incluindo a questão de quem tinha o


direito de pegar um criminoso e coletar a recompensa.3 Uma
solução possível era torná-la um direito de propriedade da
vítima, uma reivindicação contra o criminoso. Nesse ponto,
como Landes e Posner apontaram, Becker e Stigler
reinventaram o sistema de tort. Sob o direito de tort, como sob a
versão hipotética do direito penal, a vítima tem uma
reivindicação contra o ofensor, coletada por uma condenação
judicial ou acordo extrajudicial.4
Fiquei interessado e adicionei dois artigos à troca. Um
oferecia uma solução para um problema técnico com um sistema
de direito penal processado privadamente que Landes e Posner
haviam apontado.5 O outro descrevia um sistema jurídico real
semelhante ao imaginário que eles estavam discutindo. Na
Islândia do período das sagas, mil anos atrás, se você matasse
alguém, os parentes dele o processavam. Estudar esse sistema
foi o que primeiro me interessou pelo assunto mais amplo deste
livro. Este capítulo é uma versão amplamente revisada desse
artigo.

O Problema de Fontes
Nosso conhecimento do sistema jurídico islandês é
baseado em fontes de dois tipos: as sagas, histórias e romances
históricos escritos nos séculos XIII e XIV, muitos dos quais são
3Landes & Posner 1975.
4Isso levou à interessante questão de por que, em nosso sistema jurídico,
alguns delitos são tratados como torts, a serem processados pela vítima,
outros como crimes, a serem processados pelo estado. Os leitores
interessados em meus pontos de vista sobre essa questão os encontrarão no
capítulo 18 de Friedman 2000.
5Friedman 1984.

245
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ambientados e podem ter sido compostos nos séculos X e XI, e


Gragas, uma coleção de textos legais escritos na segunda
metade do século XIII. Quando tentei entender o sistema pela
primeira vez, Gragas ainda não havia sido traduzido para o
inglês; como não lia nórdico antigo, baseei meu artigo nas sagas
e na literatura secundária.6 Voltando ao assunto mais de trinta
anos depois, uma das primeiras coisas que fiz foi ler Gragas,
agora disponível em inglês. Concluí que partes dele eram
inconsistentes tanto com meu antigo relato do sistema quanto
com as sagas nas quais aquele relato se baseava.
Para verificar a última conclusão, li todas as sagas
ambientadas na Islândia.7 Concluí que, embora meu artigo
estivesse equivocado sobre alguns detalhes legais significativos,
na maior parte descrevi corretamente o sistema conforme

6Friedman 1979.
7Algumas sagas são recontagens de material de outros lugares, como
Volsungasaga, a versão islandesa do alemão Niebelungenlied. Outros são
relatos de eventos na Noruega, como Heimskringla, a história da saga de
Snorri Sturluson sobre os reis noruegueses. Como eles fornecem poucas
informações sobre o direito islandês, não os incluí. Isso deixou cerca de
2.500 páginas de The Complete Sagas of Icelanders, ambientadas
principalmente na Islândia, cobrindo eventos desde o assentamento em 870
até o século XI, além de quase mil páginas de Sturlungasaga, a coleção de
sagas focada no período final de colapso no século XIII e os eventos que o
levaram.

246
Islândia do Período das Sagas

mostrado nas sagas.8 Gragas era inconsistente não apenas com


as sagas familiares, escritas dois ou três séculos depois dos
eventos que descreveram, mas também com as sagas de
Sturlung, cujos autores descreviam eventos muitos dos quais
ocorreram durante sua vida, alguns dos quais eles foram
participantes.9
A inconsistência mais importante tinha a ver com acordos
extrajudiciais. De acordo com Gragas, uma ofensa para a qual a
penalidade legal era totalmente proibida poderia ser resolvida
em termos menos severos apenas com a aprovação do Lögrétta,

8Eu acreditava que um assassinato só levava à proscrição se o assassino não


estivesse disposto a pagar wergeld. Isso descreve o que geralmente acontece
nas sagas como resultado de um acordo extrajudicial, mas, de acordo com
Gragas, um processo bem-sucedido resultou em proscrição, mesmo que o réu
estivesse disposto a pagar. Eu também acreditava que um bandido tinha um
período em que estava livre para deixar a Islândia antes que fosse legal matá-
lo. Essa, novamente, não foi uma descrição correta da regra legal para a
proscrição total, conforme descrito em Gragas. Uma vez que o tribunal de
confisco foi realizado na propriedade de um fora da lei, ele era um alvo fácil
e era ilegal ajudá-lo a deixar a Ilha. Mas descreve os termos geralmente
acordados em acordos, bem como os termos de proscrição menor.
9Íslandinga saga foi escrita por Sturla Þórðarson, um participante ativo em

muitos dos eventos que descreve. Prestssaga Guðmundar góða foi escrito
por Lambkár Þorgilsson, amigo e secretário do Bispo Guðmund, sua figura
central.

247
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

o conselho jurídico.10 A maioria desses casos nas sagas foi


resolvida por acordo,11 mas não encontrei nenhum exemplo de
acordos descritos como aprovados pelo Lögrétta ou bloqueados
por sua falha em aprovar. Além disso, muitos acordos ocorreram
quando o Althing não estava em sessão e, portanto, o Lögrétta,
que se reunia apenas no Althing, não existia para aprová-los ou
desaprová-los.
De acordo com Gragas, uma vez que alguém foi acusado
de um delito grave, era ilegal para qualquer um abrigá-lo — dar-
lhe comida ou abrigo. Igualmente estranho, pelo menos para as
sensibilidades modernas, era ilegal para ele comparecer a
qualquer assembléia, inclusive aquela em que seria julgado.12
Sua defesa tinha de ser conduzida por outra pessoa em sua

10“Por todos os assassinatos que já contei e também por ferimentos graves, os


homens não devem resolver sem a autorização prévia da Assembleia Geral.
Proscrição menor é a penalidade se os homens resolverem casos que não
deveriam ser resolvidos sem autorização prévia.” (Gragas I K§98, 174). Uma
passagem em Gragas pode ser lida como implicando que um acordo foi
aprovado se ninguém com assento no Lögrétta, ou seja, nenhum goði ou
bispo, o desaprovasse (Gragas I K§117, 212-13). Mas a passagem prossegue
descrevendo os procedimentos para fornecer substitutos temporários para os
goðar ausentes do Lögrétta, o que implica que se refere a eventos no Althing.
Se algum goði tivesse o direito de vetar qualquer acordo, seria de se esperar
que tais incidentes aparecessem nas sagas.
11Sigurðsson classificou os casos em um grupo de sagas de acordo com a

forma como foram resolvidos e descobriu que apenas cerca de dez por cento
foram resolvidos no tribunal (Sigurðsson 160-161). Ele cita um cálculo de
Andreas Heusler cobrindo todos os casos nas sagas dos islandeses com um
resultado semelhante (Sigurðsson 1999, 154).
12Gragas I K§86, 145, 148, 149; K§99, 174-5; K§105, 181. De acordo com

outra regra, alguém acusado de uma ofensa que compareça a uma assembleia
pode escapar da punição mostrando que foi acusado não porque era culpado,
mas para mantê-lo fora da assembleia (Gragas I K§99, 175). Isso é paralelo a
um caso ateniense mencionado no capítulo 16.

248
Islândia do Período das Sagas

ausência. Encontrei apenas uma passagem nas sagas em que


alguém foi penalizado por abrigar um assassino antes de ser
julgado e condenado e isso fazia parte de um acordo, não de um
veredicto do tribunal.13 Os réus frequentemente, mas nem
sempre, comparecem à assembleia em que serão julgados.
Gragas especifica atos pelos quais alguém perde sua
imunidade, pode ser morto sem consequências legais. Isso
incluía qualquer ataque, mesmo um golpe que não acertasse, e
se aplicava não apenas ao perpetrador, mas também aos
companheiros que sabiam ou ajudaram no ataque pretendido.

Prescreve-se que o homem lesado tem o direito de se


vingar, se assim o desejar, até o momento da Assembleia
Geral, na qual é obrigado a apresentar ação pelas injúrias;
e o mesmo se aplica a todos os que têm o direito de
vingar um assassinato. Aqueles que têm o direito de
vingar um assassinato são os principais em um caso de
assassinato. O homem que infligiu a lesão se enquadra
em imunidade perdida nas mãos de um principal e nas
mãos de qualquer um de sua companhia, embora também
seja lícito que a vingança seja tomada por outros homens
dentro de vinte e quatro horas.

13Sturlungasaga II 161-2 The Saga of Guðmund Dýri. Ingimund, que matou


Helgi, é então morto. O acordo do caso desencadeia a morte de Ingimund e a
multa de Eyjólf por abrigar um assassino contra o assassinato de Helgi.
Como Ingimund não foi julgado, isso parece apoiar a regra em Gragas. Por
outro lado, o fato de que os danos são devidos pela morte de Ingimund parece
inconsistente com o relato de Graga sobre imunidade perdida. Em People of
Laxardal (Sagas V, 14), Thorolf matou Hall e pede proteção a sua parenta
Vigdis. Ela responde que “qualquer um que lhe ofereça proteção o faz com
risco de sua própria vida e propriedade, porque homens tão poderosos estarão
em seu encalço”. A implicação é que abrigar um assassino que ainda não foi
julgado pode causar problemas, mas não está claro se isso é uma questão de
lei ou apenas de poder.

249
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

O padrão legal nas sagas é mais complicado. Há passagens


em que um atacante é considerado enquadrado em imunidade
perdida.14 Há uma que parece implicar que a imunidade é
perdida apenas se alguém do outro lado for morto ou ferido.15
Há outras em que o ataque é tratado como um tort separado,
com danos a serem compensados com aqueles devidos pela
morte dos agressores.16 Mas na maioria dos casos em que há um
ataque inequívoco de uma pessoa ou grupo contra outro, a regra
de imunidade perdida é ignorada, com mortes de cada lado
compensadas contra mortes do outro lado e wergeld (o
pagamento por danos por um assassinato) ou proscrição devida
por qualquer excesso de mortes.17
De acordo com Gragas, quase qualquer coisa de natureza
sexual entre pessoas não casadas era uma ofensa grave.

Se um homem beijar uma mulher em particular, sem


ninguém mais presente e com o consentimento dela,
então ele incorre em uma penalidade de três marcos, e o
caso recai sobre o mesmo homem como ocorreria em
caso de relação sexual. Mas se ela se ofender com isso,
então o caso cabe a ela e a pena é menor de proscrição.
Se um homem dá um beijo secreto na esposa de outro
14Sagas I 279 The Saga of Bjorn, Champion of the Hitardal People, III 85
Njal's Saga, III 246 The Saga of Finnbogi the Mighty.
15Sagas III 78-9 Njal’s Saga.
16Sagas IV 281-2 The saga of the People of Reykjadal and of Killer-Skuta, V

130 Bolli Bollason’s tale


17Exemplos são Sagas II 429 Viglund’s saga, III 68 Njal’s saga, III 86 Njal’s

Saga, III 286 The Saga of the People of Floi. A história árabe pré-islâmica
fornece um exemplo paralelo. A guerra entre as tribos de 'Abs e Dhubyân
terminou quando dois chefes de Dhubyân concordaram em pagar dinheiro de
sangue em camelos pela diferença entre o número de mortos por seu lado e
por seus oponentes. A história é registrada no século XX c. d.C. Book of
Songs de Abu ’l-Faraj al Isbahānī.

250
Islândia do Período das Sagas

homem, a penalidade por isso é de proscrição menor,


quer ela permita ou proíba, […] Se um homem pede a
uma mulher para dormir com ele, a penalidade por isso é
de proscrição menor. (Gragas II K§155, 69)

Mas Gragas também dá regras para herança que dão como


certa a existência de filhos ilegítimos. Em alguns casos, as mães
podem ter sido vagabundas, às quais as mesmas regras não se
aplicam, ou escravas,18 ou o pai pode ter sido criminoso. Mas
um dos bispos da Islândia era ilegítimo e sua mãe era irmã do
bispo anterior, claramente não uma escrava ou vagabunda.19 Nas
sagas de Sturlung, praticamente todo homem importante tem
uma amante; um chefe está na cama entre suas duas amantes
quando os atacantes aparecem.20 As amantes são descritas como
filhas de fazendeiros respeitáveis.21 Ser amante de um homem
importante era visto por alguns como melhor do que ser esposa
de alguém menos importante. Há casos em que alguém é

18De acordo com Gragas II K§156, 70, “Se um homem se deitar com uma
escrava, ele está sob pena de três marcos por isso, […]”
19O pai era um importante proprietário de terras. O casal vivia junto

abertamente, impossibilitado de se casar porque seu relacionamento estava


dentro do alcance muito amplo da proibição do incesto.
20Sturlungasagas I 189-194. O chefe é Þorvald.
21“O principal em um caso [de relação sexual] é primeiro o marido da mulher

se ele nascer como herdeiro legítimo. Então o pai dela. Então um filho
nascido como herdeiro legítimo, com dezesseis invernos ou mais. […]”
(Gragas II K§156, 70). Portanto, possivelmente o pai poderia ter processado,
mas optou por não fazê-lo, pois sua filha se tornou amante com seu
consentimento.

251
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

acusado de delito sexual, mas, com poucas exceções, são casos


em que o ato sexual levou à gravidez.22
O que explica os conflitos entre Gragas e as sagas? Vejo
pelo menos quatro alternativas:
1. As sagas estão erradas. Elas não descrevem com
precisão como o sistema jurídico funcionou no período que
cobrem.
2. Gragas está errado.
3. Gragas descreve o sistema como existia no final do
período, as sagas como existiam no primeiro século e meio.
4. Gragas descreve o sistema jurídico como existia no
papel, mas não como existia na prática.
A primeira alternativa nos leva a uma velha controvérsia
acadêmica. As sagas familiares descrevem eventos do final do
século IX ao início do século XI, mas seus textos escritos datam
dos séculos XIII e XIV. Uma possibilidade é que elas tenham
sido compostas logo após os eventos que descrevem,
transmitidas oralmente por vários séculos e depois registradas
por escrito. Uma alternativa é que elas foram compostas pelas
pessoas que as escreveram, com base em fragmentos da
tradição. Se o último estiver correto, sua imagem das
22Gravidez levando a acusações legais é mencionada na saga de Njáll (Sagas
III, 76), People of Laxardal (V, 81), Sturlungasaga I, 64, Sturlungasaga I,
238. Gravidez aparentemente não levando a acusações legais em Cairn
Dweller (Sagas II, 443) e People of Fljotsdal (IV, 395). Assuntos que não
levam a acusações legais são mencionados em Sworn Brothers (Sagas II,
354), The Saga of the Icelanders (Sturlungasaga, 120). Há um caso em que
um homem se oferece para pagar uma indenização ao marido da mulher com
quem ele está dormindo (The Saga of Guðmund Dýri, Sturlungasaga II, 168-
9) e um caso em que um homem deve uma compensação por beijos (Kormak,
Sagas I, 219). Há também um caso em que um homem está flertando com
uma mulher e escreve seus versos de amor. Seu pai o leva ao tribunal, mas o
processo é interrompido violentamente (People of Vatnsdal, Sagas IV, 50).

252
Islândia do Período das Sagas

instituições legais do período anterior pode não ser mais


confiável do que a imagem do Velho Oeste nos faroestes
modernos ou da Europa medieval em romances históricos
ruins.23
Um argumento contra a teoria da tradição oral é que as
sagas são em prosa e não em verso, portanto, mais facilmente
mutantes na transmissão.24 Por outro lado, os autores de muitas
delas viveram sob o sistema legal em que foram ambientadas,
mesmo que uma versão posterior — as principais mudanças
ocorreram depois de 1263, quando os islandeses entregaram a
autoridade ao rei da Noruega.
Muitos anos atrás, Jesse Byock, um dos principais
estudiosos americanos das sagas, publicou uma peça engenhosa
de evidência na Scientific American. Ele demonstrou que uma
coleção de detalhes aparentemente não relacionados sobre Egil
Skallagrimsson, a figura central em Egil Saga, e seu pai e avô se
encaixam na teoria de que eles sofriam da doença de Padget,
uma doença hereditária identificada pela primeira vez no século
XIX.25 Isso faz sentido se a saga foi composta numa época em

23“A chamada teoria do livro de prosa dos estudos de saga considerava as


sagas familiares islandesas basicamente como ficção, o que tornava os
historiadores da Islândia primitiva fortemente dependentes do código legal,
Grágás, para tudo que não pudesse ser baseado em evidências arqueológicas.
Ao longo das últimas duas décadas, os estudiosos, no entanto, começaram a
usar as sagas familiares historicamente novamente, apoiando suas conclusões
tiradas delas com estudos antropológicos sobre partes remotas da terra.”
(Karlsson 2001).
24Snorri Sturluson comenta na introdução de Heimskringla que as fontes mais

confiáveis de informações históricas são os poemas skáldicos escritos na


época, em parte porque a forma do verso torna menos provável a mudança
aleatória.
25Byock 1995.

253
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

que os detalhes relevantes ainda estavam na memória viva,


menos sentido se foi criada duzentos ou trezentos anos depois.
A visão de Byock é que, embora os detalhes do enredo da
saga possam ser recriados cada vez que são contados, as
histórias foram baseadas em um contexto histórico e
institucional conhecido tanto pelo narrador quanto pelo
público.26 Eventualmente, alguém fez isso mais uma vez por
escrito. Isso sugere que eles devem ser confiáveis como fonte de
informação sobre instituições, se não sempre sobre detalhes
históricos. Sigurdsson assume uma posição semelhante.27
Quer as sagas de família possam ou não ser tomadas como
documentos históricos confiáveis, é geralmente aceito que as
sagas de Sturlung, lidando com eventos muito mais próximos de
sua composição, podem ser. Portanto, onde uma regra em
Gragas contradiz as sagas de Sturlung, acho que podemos estar
razoavelmente confiantes de que ela não descreve o código legal
real, pelo menos na prática.
A segunda alternativa nos leva à natureza de Gragas. Foi
reunido a partir de dois longos relatos da lei e vários fragmentos,
todos presumivelmente compilados por particulares para uso
próprio. O relato anterior foi escrito por volta de 1260, pouco
antes do fim do período de independência da Islândia, o último
por volta de 1280, depois que a Islândia caiu sob o domínio
norueguês. Uma regra incluída é que, em caso de conflito entre
relatos escritos da lei, os textos pertencentes aos bispos têm
prioridade, o que implica que os relatos escritos da lei
diferiam.28 Portanto, os textos de Gragas podem representar
uma mistura do que a lei era, o que a pessoa que o escreveu

26Byock 2001, 144-145.


27Sigurdsson 1999.
28Gragas I K§117, 213.

254
Islândia do Período das Sagas

pensou que era e o que a pessoa para quem foi escrito queria que
fosse.29
A terceira alternativa, que a lei mudou ao longo do tempo,
é verdadeira em pelo menos um aspecto. A Islândia tornou-se
cristã no ano 1000. Gragas contém uma longa seção que trata de
igrejas, coisas que você é proibido de fazer em um dia sagrado e
as penalidades por fazê-las e questões relacionadas. Mas a
comparação das sagas de Sturlung com as sagas familiares
sugere que, embora a lei na prática mudasse à medida que o
sistema se desintegrava, a lei em teoria, com exceção dos
acréscimos cristãos, permanecia praticamente a mesma.
A quarta alternativa me parece uma explicação plausível
no caso de ofensas sexuais. Mesmo que a sedução fosse um
crime que o pai da mulher pudesse processar, seria mais
prudente não fazê-lo, especialmente se não houvesse gravidez.
Em um caso, somos informados de que o sedutor respondeu à
reclamação do pai oferecendo-se para casar com sua amante —

29“É duvidoso que Gragas represente uma coleção oficial de leis. Em vez
disso, deve ser considerado uma coleção privada de leis adotadas pelo
Conselho Jurídico e escritas por indivíduos, ou um 'livro de direitos'
contendo notas sobre disposições legais que podem não ter sido
necessariamente adotadas por lei. Não há indicação de que Gragas tenha sido
consultado como uma autoridade na assembleia geral”. (Karlsson 2001).
Gragas inclui uma fórmula elaborada para pagamentos de vários parentes de
um ofensor aos parentes correspondentes da vítima. Não aparece nas sagas,
aparece no direito galês mais ou menos contemporâneo: “A compensação a
pagar, na verdade o crime de homicídio ilegal, foi denominada galanas. Era
pagável pela família do assassino à do morto, e havia regras elaboradas
relativas à distribuição da responsabilidade e benefício entre os dois grupos,
respectivamente. […] Os dois terços restantes das galanas tiveram que ser
pagos pelos parentes mais remotos do assassino, estendendo-se até os bisavós
e colateralmente até os primos de quinto grau; ao todo, nove graus de
relacionamento.” (Watkin 2007, 66-67).

255
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

e assim o fez.30 Essa alternativa também é uma explicação


possível, mas um tanto menos plausível, do conflito entre as
penalidades impostas, segundo Gragas, a um réu antes de seu
julgamento e o comportamento dos réus nas sagas. Isso é mais
um problema para as sagas familiares do que para as sagas de
Sturlung, já que no período de Sturlung o desafio à lei por
indivíduos poderosos tornou-se comum.
Há uma inconsistência adicional entre Gragas e as sagas,
em particular as sagas de Sturlung, que apóiam a ideia de que
Gragas é em parte uma lista de desejos. Nas sagas de Sturlung,
as partes em disputas legais frequentemente chegam ao Althing
com centenas de apoiadores — quanto maior a força, maiores as
chances de um resultado favorável. Um padrão comum é que
partes neutras, às vezes lideradas por um dos bispos,
intervenham para encontrar algum compromisso aceitável a fim
de evitar uma batalha.
De acordo com Gragas, nenhum litigante pode levar mais
de dez homens ao tribunal.31
Concluo que a alegação em Gragas de que o acordo exigia
o consentimento do Lögrétta é inconsistente com evidências
maciças tanto nas sagas familiares quanto nas de Sturlung,
portanto quase certamente falsa. Considero as regras sobre
imunidade perdida e ofensas sexuais como existentes de alguma
forma, mas não aplicadas de forma consistente. Onde Gragas
não é contrariado por eventos nas sagas, tomo suas regras legais
como um palpite razoável das regras em vigor.

30Sagas, 5:350, Hrumund the Lame.


31Gragas I K§28, 53. É possível que trazer um exército para o Althing não
conte como trazer homens para o tribunal, já que o tribunal era apenas parte
do que está acontecendo no Althing. Era, no entanto, a parte para a qual o
exército estava sendo trazido.

256
Islândia do Período das Sagas

História e Instituições
Na segunda metade do século IX, o rei Haroldo Cabelo
Belo unificou a Noruega sob seu governo. Um número
substancial de habitantes, descontentes com a mudança, partiu;32
muitos foram diretamente para a Islândia, que havia sido
descoberta pelos nórdicos alguns anos antes, ou indiretamente
por meio de colônias nórdicas na Inglaterra, Irlanda, Orkney, as
Hébridas e as Ilhas Shetland. O sistema político que
desenvolveram ali era baseado nas tradições norueguesas33 com
uma importante inovação: não havia rei.
Na base do sistema ficavam o goði (pl. goðar) e o goðorð
(pl. goðorð). Os goðar originais parecem ter sido líderes locais
que construíram templos pagãos e serviram como seus
sacerdotes. Um goði recebia as taxas do templo e fornecia em
troca serviços religiosos e políticos. O goðorð era sua
congregação. A relação entre o goði e seus thingmen
(thingmenn) era contratual e não territorial. O goði não tinha
direito à terra do thingman e o thingman era livre para transferir
sua lealdade.
Sob o sistema de leis estabelecido em 930 d.C., esses
líderes locais foram combinados em um sistema nacional. Em
960, a Islândia foi dividida em quatro quarteirões, cada um
contendo nove goðorð agrupados em grupos de três chamados
de things. Em 965 mais três goðar foram adicionados no
Quarteirão Norte e em 1005 mais três “novos goðar” cada um
nos bairros sul, leste e oeste. Os novos goðar tinham assentos no

32Algumas estimativas o colocam em cerca de 10%.


33BharathiGudmundsson argumenta que os colonos eram em grande parte
dinamarqueses que colonizaram a Noruega e, assim, trouxeram instituições
dinamarquesas com eles para a Islândia (Gudmundsson 1967).

257
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Lögrétta e desempenhou um papel na nomeação de juízes para o


quinto tribunal, mas não para os tribunais de quarteirão.34
O único funcionário permanente desse sistema era o
lögsögumaður ou orador da lei; ele era eleito a cada três anos
pelos habitantes de um quarteirão, quarteirão que estava sendo
escolhido por sorteio. Seu trabalho era memorizar as leis, recitá-
las uma vez durante seu mandato, aconselhar sobre pontos
jurídicos difíceis e presidir o Lögrétta, a legislatura.
Os membros do Lögrétta eram os goðar, novos e antigos,
para cada um desses dois conselheiros, mais, depois que a
Islândia se tornou cristã em 1000, os dois bispos. As decisões
foram tomadas por maioria de votos, sujeitas a tentativas de
primeiro alcançar a unanimidade.
As leis aprovadas pelo Lögrétta eram aplicadas por um
sistema de tribunais, também baseado nos goðar. O tribunal do
thing ou Vorþing era realizado na Assembleia de primavera de
cada quarteirão. Os juízes35 eram escolhidos doze cada um pelos
três goðar do thing, perfazendo trinta e seis ao todo. A seguir
vinha o thing do quarteirão para disputas entre membros de
things diferentes dentro do mesmo quarteirão; estes parecem ter
sido pouco usados e não se sabe muito sobre eles.36 Acima deles
estavam os quatro tribunais de quarteirão do Althing (alþingi)

34Os doze goðar no Quarteirão Norte nomearam apenas nove juízes para os
tribunais do quarteirão. Minha descrição do sistema é aceita pela maioria dos
estudiosos. Jón Viðar Sigurðsson argumenta que é uma retroprojeção de
contas posteriores, que o sistema real no período inicial era
consideravelmente menos organizado.
35Os juízes islandeses correspondem mais de perto aos jurados do nosso

sistema, uma vez que cabia a eles determinar a culpa ou a inocência. Não
havia equivalente ao nosso juiz, embora especialistas em direito pudessem
ser consultados pelo tribunal.
36Conybeare 1877, 48.

258
Islândia do Período das Sagas

ou assembleia nacional, uma reunião anual de todos os goðar,


cada um trazendo consigo pelo menos um nono de seus
thingmen. Havia procedimentos pelos quais uma parte em um
processo poderia vetar seu acordo no Vorþing, forçando-o a
recorrer ao tribunal de quarteirão apropriado. Acima dos
tribunais de quarteirão, após as reformas creditadas a Njal,
ficava o quinto tribunal. Os casos indecisos em qualquer nível
do sistema passavam para o nível seguinte. Em todos os níveis,
os juízes foram nomeados pelos goðar, cada tribunal de
quarteirão e o quinto tribunal tendo juízes nomeados pelos goðar
de toda a Islândia.37 O quinto tribunal chegava à sua decisão por
maioria de votos; os outros tribunais parecem ter exigido que
não houvesse mais de seis (de trinta e seis) votos dissidentes
para que um veredicto fosse dado.38
Um sistema judicial requer alguma forma de determinar os
fatos do caso, o que se torna mais difícil em uma sociedade onde
a maioria das pessoas é analfabeta. Os islandeses fizeram uso de
um sistema de painéis de tamanhos variados. Em alguns
contextos, o painel consistia nos nove vizinhos mais próximos
do local de um evento, como um assassinato. Em outros,
consistia em testemunhas de um ato legal exigido. Havia
requisitos para quem poderia estar em um painel e

37Embora esta seja a visão geralmente aceita, alguns argumentaram que os


juízes de um tribunal de quarteirão eram nomeados apenas pelos goðar
daquele quarteirão. (Johnson 1930, 64, Bryce 1901, 274).
38Embora não houvesse nada estritamente equivalente ao nosso sistema de

apelações, as alegações de que um caso havia sido tratado ilegalmente em um


tribunal poderiam ser resolvidas em um tribunal superior. Em um caso
famoso na Saga de Njáll, o réu engana a promotoria para que o processe no
tribunal errado, mudando secretamente seu goðorð e, portanto, seu quarteirão
para poder processar os promotores no quinto tribunal.

259
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

procedimentos para demitir membros não qualificados, como


qualquer pessoa muito próxima do queixoso ou réu.
O próprio goðorð era duas coisas diferentes. Era um grupo
de homens — os homens específicos que concordaram em
seguir aquele goði, para serem membros daquele goðorð.
Qualquer homem poderia ser desafiado a nomear seu goðorð e
era obrigado a fazê-lo, mas ele era livre para escolher qualquer
goði dentro de seu bairro que o aceitasse e mudar para um
goðorð diferente à vontade (mas apenas em um determinado
momento do ano).39 O goðorð também era um pacote de
direitos, incluindo o direito de se sentar no Lögrétta e nomear
juízes para certos tribunais. Talvez o mais importante seja o
direito de ser a pessoa por meio da qual os agricultores comuns
se conectam ao sistema legal. O fazendeiro que era o thingman
de um goði devia a ele um imposto de thing anual, usado para
pagar as despesas daqueles thingmen que acompanhavam o goði
ao Althing. O valor do imposto de thing era negociado entre
goði e thingman.40 O goðorð nesse segundo sentido era uma
propriedade comercializável. Poderia ser doado, vendido,

39“Só é lícito a um homem ter um vínculo de assembleia em um Quarteirão


diferente daquele em que vive se o chefe em questão tiver permissão em
Lögberg para aceitar alguém de fora do Quarteirão como um homem de seu
terceiro da assembleia.” (Gragas I K§83, 141). Esta regra parece
inconsistente com o truque na Saga de Njáll, onde Glosi transfere seu goðorð
para seu irmão e se torna o thingman de um goði em um quarteirão diferente,
mudando em qual tribunal ele deve ser processado (Sagas III, 179), mas é
possível que a regra foi estabelecida mais tarde, talvez em resposta a tal
truque. Um homem podia declarar de que goði ele era o thingman no Althing
ou no Vorþing.
40“Os homens devem pagar taxas de participação na assembleia na taxa que

acordarem com o chefe em cada terceiro da assembleia.” (Gragas I K§23,


44).

260
Islândia do Período das Sagas

mantido por uma sociedade, herdado. Os assentos no corpo


legislativo estavam literalmente à venda.
Descrevi os ramos legislativo e judiciário do sistema
islandês, mas omiti o executivo. Os islandeses também. A
função dos tribunais era emitir veredictos sobre os casos que
lhes eram apresentados. Feito isso, o tribunal estava encerrado.
Para ofensas graves, a condenação significava total proscrição.
A propriedade do bandido era confiscada, parte como
indenização à vítima ou seus herdeiros, parte para sustentar os
dependentes do bandido. Se houvesse mais disponível, o goði
encarregado do tribunal de confisco recebia uma vaca ou um boi
de quatro anos. O restante foi dividido entre o procurador e os
homens do bairro se ele fosse proscrito no Althing, os homens
da assembléia do distrito onde o tribunal de confisco era
realizado se ele fosse proscrito no Vorþing, para ser gasto no
cuidado dos dependentes do bandido e, se sobrasse, de outros
itinerantes. Era legal matar um bandido, ilegal alimentá-lo,
abrigá-lo ou ajudá-lo a deixar a Islândia. Para ofensas um pouco
menos graves, a condenação significava desacato menor à lei.
Um bandido menor tinha o direito de deixar a Islândia41 e
poderia retornar em três anos. Para ofensas ainda menos graves,
a punição era uma multa. Se não fosse paga, a pena seria
desacato menor à lei se a multa fosse paga no tribunal de
confisco, maior se não fosse.
O processo cabia à vítima ou a seus parentes. Se eles e o
infrator chegassem a um acordo, o assunto estava resolvido. A
maioria dos casos nas sagas foram resolvidos fora do tribunal,
geralmente por danos monetários, às vezes por desacato menor à
lei ou maior com permissão para deixar a Islândia. Muitos foram
41Eleestava imune ao homicídio até partir, desde que permanecesse dentro de
uma área limitada atribuída a ele.

261
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

resolvidos por arbitragem, incluindo os dois conflitos mais


sérios que surgiram antes do período final de colapso no século
XIII. Cálculos de dois estudiosos diferentes sugerem que apenas
cerca de um décimo dos casos chegou a um julgamento final
pelo tribunal.
Onde um confronto resultava em mortes de ambos os
lados, eles geralmente eram colocados um contra o outro, às
vezes ponderados pela importância do homem morto, com o
excesso pago em wergeld ou desacatos. Em alguns casos, parte
do pagamento pela morte de um homem foi o cancelamento do
desacato imposto a outro em um conflito anterior. Algumas
passagens sugerem que o promotor que colocou um homem
proscrito tinha o poder de posteriormente suspender a sentença
de sua proscrição.42
O direito islandês distinguia entre matar e assassinar —
assassinato secreto. Depois de matar um homem, era preciso
anunciar o fato imediatamente:43

É prescrito que, quando os homens seguem apenas um


caminho para um assassinato, o assassino deve publicar o
assassinato como seu trabalho nas próximas doze horas;
mas se ele estiver na montanha ou no fiorde, deve fazê-lo
dentro de doze horas após o retorno. Ele deve ir à
primeira casa onde achar que sua vida não corre perigo
por causa disso e dizer a um ou mais homens que residam

42“Þorkel Flosason, declarado fora da lei no verão anterior, fez uma visita a
Þorvarð e, colocando a cabeça na mesa diante dele, aguardou sua decisão.
Þorvarð concedeu-lhe o perdão e disse-lhe para ir em paz para onde
quisesse.” (Sturlungasaga II, 100).
43“Está prescrito que se um homem matar outro homem, a pena é proscrição.

E é assassinato se um homem o esconde ou oculta o cadáver ou não o


admite.” (Gragas I K§87, 154). Uma obrigação semelhante aparece nas
regras do sistema de feudo do norte da Albânia. (Fox 1989, 164.)

262
Islândia do Período das Sagas

legalmente lá e declarar desta forma: "Houve um


encontro entre nós", ele deve declarar, e nomeie o outro
homem e diga onde estava. “Eu publico essas feridas
como meu trabalho e todo o dano feito a ele; Eu publico
feridas se feridas forem o resultado e matar se matar for o
resultado.” (G1 K87, 153-4)
Está prescrito que se ele publicá-lo de alguma
outra maneira que não a contada agora, então é
considerado assassinato, com o resultado de que não
pode ser alegado que o outro homem, não importa o
crime que ele possa ter cometido, morreu com imunidade
perdida, e nenhum fundamento de defesa deve ser aceito.

O assassinato custou ao assassino a capacidade de levantar


defesas legais, como o fato de sua vítima ser um fora da lei ou
ter perdido sua imunidade ao atacar. A tomada oculta em
algumas circunstâncias tinha uma penalidade mais severa do que
a tomada aberta.44 Além disso, matar secretamente (assassinato)
ou tomar secretamente (roubo) era visto como vergonhoso.45

44Proscrição total era a penalidade por roubar comida, independentemente de


seu valor (Gragas II K§228, 179). Também era a penalidade por roubar
qualquer outra coisa que valesse mais de meia onça-unidade se qualquer
tentativa fosse feita para ocultar o roubo (Gragas II K§227, 162).
45Na saga de Njáll, Halgerd envia um escravo para roubar comida do

armazém de um vizinho. Quando seu marido, Gunnar, descobre, ele a


esbofeteia e se oferece para compensar o vizinho. Em uma passagem em
Egilsaga, Egil e seus companheiros escapam de seus captores com uma
quantidade considerável de tesouros roubados. Egil, sendo um homem
honrado, insiste em voltar sozinho para contar aos donos quem levou seu
tesouro — e depois matá-los. No direito galês, a ocultação de um assassinato
dobrava o pagamento dos danos devidos (Watkin 2007, 66).

263
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Hreppur
Além do sistema jurídico baseado em goði e goðorð, havia
um sistema que consistia em grupos de famílias chamado
Hreppur. Ao contrário do sistema legal, era baseado
geograficamente, consistindo em grupos de vizinhos, pelo
menos vinte domicílios em cada um. Suas funções incluíam
coordenar o pastoreio de verão, fornecer um sistema de seguro
mútuo para os membros, atribuir responsabilidades aos órfãos e
indigentes locais e fornecer um fórum para disputas locais. Os
Hreppur eram autônomos. Não se sabe muito sobre sua estrutura
interna.46

Análise
Uma possível objeção a um sistema de aplicação privada
da lei é que os pobres ou fracos seriam incapazes de fazer valer
seus direitos. O sistema islandês lidou com esse problema
tornando transferível o direito da vítima à indenização. A vítima
poderia entregar seu caso a outra pessoa, gratuitamente ou em
troca de um pagamento.47 Um homem que não tivesse recursos
suficientes, em riqueza ou aliados, para processar um caso ou
impor um veredicto poderia vendê-lo a outro que esperasse
lucrar tanto em dinheiro quanto em reputação ao vencer o caso e
receber a multa. Isso significava que um ataque até mesmo à
vítima mais pobre poderia levar a uma eventual punição. Um
homem pode se oferecer para assumir um caso não por dinheiro,

46Byock 2001, 137-8.


47Para exemplos, veja Sagas III Njal Saga, 25, 27, 76.

264
Islândia do Período das Sagas

mas para ganhar status ou porque o ofensor era um inimigo que


ele desejava prejudicar.48
Uma segunda objeção possível é que os poderosos
poderiam cometer crimes impunemente, já que ninguém poderia
fazer valer uma sentença contra eles. Onde o poder está
suficientemente concentrado, isso pode ser verdade; esse foi um
dos problemas que levou ao eventual colapso do sistema legal
islandês no século XIII. Mas enquanto o poder era
razoavelmente disperso, como parece ter sido nos dois primeiros
séculos após o estabelecimento do sistema, esse foi um
problema menos sério. Um homem que se recusasse a pagar
suas multas ou oferecer um acordo razoável e, como resultado,
fosse declarado fora da lei provavelmente não seria apoiado por
tantos de seus amigos quanto o autor que busca executar a
sentença, já que em caso de conflito violento seus defensores se
encontrariam legalmente no erro. Se o infrator se defendesse
pela força, cada lesão infligida aos partidários do outro lado
resultaria em outro processo e cada recusa em fazer um acordo e
pagar atrairia mais pessoas para a coalizão contra ele.
Há uma cena na Saga de Njáll que fornece evidências
impressionantes da estabilidade do sistema. O conflito entre dois
grupos tornou-se tão intenso que uma luta aberta ameaça
estourar durante o Althing. O líder de uma facção pergunta a um
neutro benevolente o que ele fará por eles em caso de luta. Ele
responde que colocará seu povo, armado, de um lado. Se os
homens do líder estiverem perdendo, eles podem recuar para
trás dele, encerrando a luta. Se eles estiverem ganhando, ele
primeiro bloqueará o outro lado da melhor posição defensiva
disponível e então interromperá a luta antes que os vencedores
48Como acontece na Saga de Hrafnkel. O mesmo padrão aparece no sistema
comanche, conforme mencionado no Capítulo 13.

265
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

matem mais homens do que podem pagar.49 Mesmo quando o


sistema parece tão perto de quebrar, ainda é assumido que todo
inimigo morto deve eventualmente ser pago. Cada homem
morto terá amigos e parentes que ainda são neutros e
permanecerão assim se e somente se o assassinato for
compensado por um wergeld apropriado.
Um padrão semelhante se mantém mesmo no período final
de colapso, quando as coalizões estão engajadas em uma guerra
civil efetiva. Depois que fica claro qual lado venceu a batalha, a
maioria dos perdedores sai ileso, com exceção de qualquer um
contra quem os vencedores tenham um rancor particularmente
sério. Quando um lado consegue um ataque surpresa bem-
sucedido na casa do líder adversário, eles o matam, presumindo
que ele esteja presente e não consiga fugir, mas deixam ir quem
não foi morto no processo, novamente com a mesma exceção.
Se ele estiver ausente, eles podem danificar a casa, mas é
improvável que massacrem os habitantes.
Há duas explicações para a moderação no que, de outras
formas, era um conflito bastante desenfreado. Uma delas é que
você pode querer se aliar no próximo ano com a facção que está
lutando atualmente. Adquiri-los como aliados pode exigir
primeiro o pagamento de suas dívidas, incluindo dívidas de
pessoas mortas. A outra é que as pessoas que você acabou de
derrotar têm parentes, e nem todos estão na coalizão inimiga.
Para mantê-los neutros ou, melhor ainda, amigáveis, pode ser
necessário pagar por aqueles que você matou.

49Sagas III, 177, Njal’s Saga. Em uma passagem anterior na mesma saga, 84,
Gunnar responde à sugestão de seu irmão Kolskegg de que eles persigam
seus atacantes derrotados: “Nossos bolsos estarão vazios o suficiente quando
os que já estão mortos forem compensados.”

266
Islândia do Período das Sagas

Depois de um ataque em que uma casa foi incendiada, os


agressores finalmente concordaram em pagar indenização pela
maioria dos mortos dentro dela, mas insistiram que não deviam
nada por um homem, pois não apenas ofereceram a ele a
oportunidade de sair, mas também se ofereceram para pagá-la.50
É uma das muitas cenas nas sagas de Sturlung em que as
pessoas acabam concordando em pagar indenizações por
aqueles que mataram.
Para que um ofensor potencial seja dissuadido, ele precisa
acreditar que alguém está comprometido antecipadamente a agir
contra aqueles que prejudicam sua vítima potencial. Na Islândia
isso foi feito por um sistema de coalizões existentes, alguns
deles goðorð, alguns grupos de amigos e parentes. Se um
membro de tal coalizão fosse morto, era do interesse dos outros
membros coletar wergeld para ele, mesmo que o custo fosse
maior do que a quantia que seria coletada; sua própria segurança
dependia em parte de sua reputação de fazê-lo. Se o matador não
estava disposto a pagar, era do interesse deles levar o caso para
desacato à lei e então fazer o possível para matar o bandido,
mesmo com algum risco para eles mesmos.
Uma dificuldade com multas ou pagamentos de danos é
que os criminosos podem ser à prova de julgamento, incapazes
de pagar o suficiente para fornecer dissuasão adequada. O
sistema islandês lidou com isso de três maneiras. Primeiro, a
maioria das ofensas eram aquelas cuja detecção era quase certa,
portanto, o custo imposto aos infratores não precisava ser
aumentado para compensar a baixa probabilidade de ter que
pagá-lo.51 Segundo, a sociedade oferecia arranjos de crédito

50SturlungasagaII, 184.
51Uma vez que ocultar o crime era considerado vergonhoso e, se
malsucedido, impunha consequências legais adicionais.

267
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

eficazes. As mesmas coalizões mencionadas acima forneciam a


seus membros dinheiro para pagar multas pesadas.52 Terceiro,
uma pessoa incapaz de cumprir sua obrigação financeira poderia
ser reduzida a um estado de escravidão temporária, servidão por
dívidas, até que pagasse sua dívida. Infratores condenados
tinham um forte incentivo para encontrar alguma forma de pagar
por seus crimes, uma vez que a alternativa era a servidão ou a
proscrição.

Causas do Colapso do Sistema


Uma das causas do colapso do sistema islandês parece ter
sido o aumento da concentração de riqueza e, portanto, de
poder. No período de Sturlung, havia muitas áreas onde todos ou
a maioria dos goðorð eram mantidos por uma família, reduzindo
ou eliminando a capacidade do homem individual de escolher
seu goði e criando uma forma de fato, embora imperfeita, de
soberania territorial.
Por que o poder se tornou mais concentrado?
Possivelmente porque uma coalizão controlando vários goðorð
poderia levantar uma força maior em apoio a reivindicações
legais. Além disso, uma vez que uma coalizão controlando
vários goðorð na mesma área estaria sujeita a menos competição

52A divisão de pagamentos foi definida antecipadamente por contrato entre


membros de uma coalizão no sistema descrito no capítulo 11, por lei entre
membros de um 'Akila no sistema islâmico descrito no capítulo 5. O sistema
islandês era informal, mas existem casos nas sagas em que uma grande multa
imposta a um líder em um acordo extrajudicial é paga em grande parte por
doações voluntárias de seus seguidores. Gragas refere-se em vários lugares a
pagamentos obrigatórios de salva-vidas dos parentes do ofensor aos parentes
correspondentes da vítima, mas não encontrei nenhum exemplo disso nas
sagas.

268
Islândia do Período das Sagas

por thingmen, ela seria capaz de obtê-los em condições mais


favoráveis. Essas vantagens seriam contrabalançadas, como no
caso somali a ser discutido no próximo capítulo, pelo aumento
dos problemas de conflito interno dentro de uma coalizão maior.
O período de Sturlung é assim chamado em homenagem à
família Sturlung, que desempenhou um papel importante em
seus conflitos — frequentemente com um membro principal
lutando contra outro.
Outra possível fonte de concentração de riqueza e poder
foi a introdução do cristianismo. Uma igreja estava sob o
controle do proprietário de terras local que doou seu terreno e
pagou por sua construção. Fazendeiros individuais deviam
dízimos à igreja, parte dos quais poderia acabar nas mãos de seu
proprietário.53 Isso fornecia o equivalente a impostos, uma fonte
de receita para sustentar o poder de homens ambiciosos.54
Uma segunda causa relacionada ao colapso foi a
introdução na Islândia de uma ideologia estrangeira — a
monarquia. No final do período de Sturlung, os chefes não
estavam mais brigando sobre quem devia quais indenizações a
quem, mas sobre quem deveria governar a Islândia. O rei
norueguês deu a pelo menos um dos líderes islandeses o título
de Jarl,55 junto com instruções para assumir o controle da

53Cada agricultor pagador de impostos devia um por cento de sua riqueza a


cada ano como dízimo. Um quarto foi para o Hreppur para manutenção dos
pobres. Um quarto foi para o bispo. Um quarto ia para a pessoa que
controlava a manutenção da igreja, um quarto para o padre — que poderia ser
o proprietário, um membro de sua família ou um de seus servos. Assim, até
metade do dízimo poderia acabar indo para o proprietário que cedeu o terreno
para a igreja.
54Byock 2001, 328-9.
55Jarl Gizur. De acordo com alguns relatos, Snorri Sturluson também recebeu

o título.

269
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Islândia em seu nome e coletar tributos. Muitos dos goðorð


foram transferidos por seus donos para o rei. Várias das figuras
importantes, quando fora da Islândia, geralmente como
resultado de um acordo que incluía proscrição temporária,
tornaram-se lacaios do rei, em princípio obrigados a obedecer às
suas ordens. Um deles, Snorri Sturluson, foi morto na Islândia
por ordem do rei como punição por retornar à Islândia sem
permissão real.

Conclusão
As sagas são percebidas por muitos como retratando uma
sociedade violenta e injusta atormentada por rixas constantes. É
difícil dizer se tais julgamentos estão corretos. As sagas foram
escritas durante ou após o período de Sturlung, o violento
colapso final do sistema islandês no século XIII, e seus autores
podem ter projetado elementos do que viram ao seu redor nos
períodos anteriores que descreveram. Além disso, a violência
sempre foi um bom entretenimento, e os escritores da saga
podem ter selecionado seu material de acordo. Mesmo em uma
sociedade relativamente pacífica, os romancistas podem
encontrar, ao longo de trezentos anos, conflito suficiente para
um corpo considerável de literatura.
A qualidade da violência, em contraste com outras
literaturas medievais, é de pequena escala, intensamente pessoal
(cada vítima geralmente é nomeada) e relativamente direta. Nos
raros casos em que um atacante incendeia a casa do defensor,
mulheres, crianças e empregados têm a oportunidade de sair.

270
Islândia do Período das Sagas

Estupro e tortura são incomuns,56 o assassinato de mulheres


quase inédito.57 De acordo com um cálculo feito por um
estudioso que passou pelas sagas de Sturlung contando corpos,
durante mais de cinquenta anos de colapso violento do sistema
tradicional, o número de pessoas mortas ou executado a cada
ano, em uma base per capita, foi aproximadamente igual à taxa
de assassinato e homicídio culposo não negligente nos Estados
Unidos em 1975.58

Apêndice: Salários e Wergelds


Para comparar as penalidades no sistema islandês com
aquelas em sistemas jurídicos mais familiares, precisamos de
alguma medida do valor do dinheiro em que as penalidades

56Existem exemplos de tortura na saga de Hrafnkel. Em uma das sagas de


Sturlung, Sturla engana Órækja em seu poder e diz-se que o cegou e castrou.
Mas mais tarde na saga ele parece ainda ser capaz de ver, um fato nunca
explicado. Possivelmente a pessoa realmente responsável por sua mutilação
apenas fingiu fazê-lo. Um incidente envolve o estupro ou estupro planejado
da esposa e filha de um homem (Sturlungasaga II, 34, The Saga of Thorgils
and Haflithi), outro o rapto de uma mulher com a intenção de se casar com
ela. Ela é devolvida quando fica claro que ela não pode ser persuadida a
concordar (Sturlungasaga I, 207-8).
57Os únicos casos que encontrei em que uma mulher é morta deliberadamente

envolvem a execução de bruxas. São vários os incidentes nas sagas em que


uma mulher ataca um homem, em um caso tentando esfaqueá-lo com a
espada do irmão que ele ajudou a matar, no outro golpeando um homem no
rosto com a bolsa de prata com a qual ele subornou seu marido para trair um
parente dela (Sagas V, 17, The Saga of the People of Laxardal). Em ambos,
nenhuma ação é tomada em retaliação.
58Sveinsson 1953 em 72 dá uma estimativa de trezentos e cinquenta mortos

em batalha ou executados durante um período de cinquenta e dois anos


(1208-1260). A população da Islândia era de cerca de 70 mil, dando uma taxa
anual de 9,6/100.000.

271
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

eram pagas. Duas moedas diferentes eram de uso comum na


Islândia medieval — prata e vaðmal, tecido de lã. A prata era
medida em onças (aurar) e em marcos; o marco continha oito
onças. Waðmal tinha uma largura padrão de cerca de um metro e
medido em ells islandeses (alnar) de cerca de 56 centímetros.59
Durante os séculos XII e XIII, o valor de uma onça (eyrir) de
prata variou entre 6 e 7 1/2 ells.60 A “onça legal” foi fixada em 6
ells;61 isso parece ter sido um dinheiro de conta, não uma
tentativa de fixação de preços.
Gragas contém uma passagem estabelecendo salários
máximos,62 possivelmente uma tentativa de impor um acordo de
cartel monopsonístico dos proprietários de terras thingmen
contra seus empregados. Porkell Johannesson estima a partir da
passagem que o salário do trabalhador rural, líquido de
hospedagem e alimentação, equivalia a cerca de um marco de
prata por ano e cita outro escritor que o estimou em cerca de três
quartos de um marco. Johannesson também afirma que os
salários líquidos de hospedagem e alimentação parecem ter sido
baixos ou nulos na época do estabelecimento, mas aumentaram
um pouco na segunda metade do século X.
Esses números nos dão apenas uma ideia muito
aproximada dos salários islandeses. A existência de legislação
salarial máxima sugere que o salário de equilíbrio era superior
ao salário legislado. Mas os salários, como aponta Þorkell
Johannesson, devem ter variado consideravelmente com os anos
bons e ruins; a legislação pode ser uma tentativa de manter os

59Hoffman 1964, 213.


60Gjerset1924, 206.
61Magnusson e Palsson 1960, 41. Também Johannesson 1933, 37.
62Gragas I K§78, 129-130.

272
Islândia do Período das Sagas

salários nos anos bons em um nível abaixo do equilíbrio do ano


bom, mas acima do salário médio.
Para uma segunda estimativa de salários, aproveitei o fato
de que uma das duas mercadorias monetárias era o tecido de lã,
um material cuja produção é altamente intensiva em mão-de-
obra. Se soubéssemos quantas horas são necessárias para fiar e
tecer um ell de vaðmal, poderíamos estimar um limite superior
para o salário de mercado; se leva y horas para produzir um ell,
então o salário por hora das mulheres que fazem tecido,
incluindo o valor de qualquer pagamento em espécie que
recebam, deve ser menor do que l/y ells de vaðmal.
Estimei y de duas maneiras — a partir de números
fornecidos por Hoffman para a produtividade dos tecelões
islandeses usando a mesma tecnologia em períodos posteriores63
e de estimativas dadas por Geraldine Duncan, que trabalhou ela
mesma com um tear de urdidura e um fuso, o ferramentas
usadas pelos tecelões islandeses medievais.64 Ambos os métodos
levam a resultados imprecisos, o primeiro porque os relatórios
discordam e as fontes são vagas sobre se o tempo dado é apenas
para tecer ou para tecer e fiar, o segundo porque a Sra. Duncan
não conheça as características precisas do vaðmal ou como a
habilidade dos fiandeiros e tecelões islandeses medievais se
compara com a dela. Minha conclusão é que demorava cerca de
um dia para fiar e tecer uma ell de vaðmal; esta estimativa
poderia facilmente estar errada por um fator de dois em qualquer
direção. Se presumirmos que, em uma sociedade relativamente
pobre como a Islândia, uma parcela considerável da renda de um
trabalhador comum fosse para hospedagem e alimentação, esse
valor é consistente com o salário máximo em Gragas.
63Hoffman 1964, 215-16.
64Comunicação privada.

273
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Uma verificação aproximada dessas estimativas de


salários é fornecida pelo fato de que o lögsögumaður recebia um
salário anual de 240 ells de vaðmal65 mais uma parte das multas
por certas infrações menores. Embora sua posição não fosse de
tempo integral, envolvia mais do que apenas as duas semanas do
Althing; ele era obrigado a dar informações sobre a lei a todos
os visitantes. Uma vez que o homem escolhido para o cargo era
um indivíduo extraordinariamente talentoso, não parece
despropositado que a parte fixa de seu salário (que, ao contrário
dos salários discutidos anteriormente, não incluía hospedagem e
alimentação) correspondesse a cinco anos de salário ou a uma
quantia de vaðmal, que levaria cerca de dez meses para ser
produzido. Portanto, esse número não é inconsistente com
minha estimativa anterior de salários.
Durante o período de Sturlung, quando a riqueza se tornou
relativamente concentrada, os homens mais ricos tinham um
patrimônio líquido equivalente, segundo minha estimativa, a
trezentos a quatrocentos anos de produção de vaðmal ou cerca
de mil vacas. Usando os salários para convertê-lo em seu
equivalente moderno, o primeiro valor corresponde a cerca de
doze milhões de dólares. Usando o gado, este último
corresponde a apenas algumas centenas de milhares — os
salários subiram consideravelmente mais, no último milênio, do
que o preço do gado.
A Tabela 1 fornece valores para várias coisas em onças,
ells, anos de produção de vaðmal e anos de salários. Presume-se
que a onça valha seis ells, a produção anual de vaðmal seja
trezentos ells (trezentos dias a um ell/dia) e o salário anual seja
um marco de quarenta e oito ells.

65Gragas I K§116, 209.

274
Islândia do Período das Sagas

Wergeld para um escravo, o preço de um escravo e o


preço de alforria de um escravo eram todos iguais, como era de
se esperar. O preço de um servo presumivelmente representa o
valor capitalizado de sua produção líquida de hospedagem e
alimentação. A princípio, parece surpreendente que isso
represente apenas um ano e meio de salário (também líquido de
hospedagem e alimentação), mas devemos lembrar que os
salários, de acordo com Thorkell Johanneson, eram mais baixos
no período inicial, quando a servidão era comum. A servidão
desapareceu na Islândia no início do século XII, a maior parte de
Gragas data do final do século XIII.
O wergeld para um escravo era muito menor do que para
um homem livre. O valor de um escravo para seu mestre seria o
valor capitalizado de seu produto líquido. Mas o valor de um
homem livre para si mesmo e sua família inclui não apenas seu
produto líquido, mas também o valor para ele de estar vivo.
Comida e comida são despesas para o dono de um escravo, mas
consumo para um homem livre. E os custos do escravo para o
proprietário incluiriam custos de guarda e supervisão que não se
aplicariam ao cálculo do próprio valor do homem livre. Em uma
passagem em Njalsaga, um membro confiável da família,
presumivelmente um escravo, pede a Njal que prometa que, se
ele for morto, será pago pelo preço de um homem livre e Njal
concorda.66

66Sagas III, 45, Njal saga.

275
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Tabela 1
Onças Ells Produçã Salários Fonte
o Anual Anuais s
de
Waðmal

Preço normal 12 72 0,24 1,5 Willia


do escravo ms
homem 1937,
29

Preço de 12 72 0,24 1,5 Johns


manumissão on
do escravo 1930,
225

Wergeld pelo 12 72 0,24 1,5 Id.


escravo

Wergeld pelo 100 600 2 12,5 Magn


homem livre usson
e
Palss
on
1960,
108

Wergeld pelo 400 2400 8 50 Id.


homem
livre67

67Uma de minhas fontes interpreta a onça pela qual as compensações são


medidas como provavelmente significando “uma onça de prata não refinada
[...] valendo quatro onças legais” (Magnusson e Palsson 1960, 63). Outro a
interpreta como a onça legal (Williams 1937, 31).

276
Islândia do Período das Sagas

Wergeld pelo 200 1200 4 25 Id.


homem em
importante 255.

Wergeld pelo 800 4800 16 100 Id.


homem
importante68

Salário do 240+ 0,8+ 5+ Graga


orador da lei sI
K‡11
6 209

Riqueza do 120.0 400 2500 Svein


homem 00 sson
muito rico 1953,
(Período de 45
Sturlung)

Riqueza do 96.00 320 2000 Id.


homem 0
muito rico
(Período de
Sturlung)

Preço da 90-96 0,3-0,32 1,9-2 Id.


vaca (c. 1200 em 56
d.C.)

Se interpretarmos a onça da Saga de Njáll como uma onça


legal, os wergelds usuais para homens livres novamente
parecem um tanto baixos, variando de 12 1/2 anos de salário
para um homem comum ao dobro disso para um homem de

68Veja a nota anterior.

277
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

alguma importância.69 Aqui novamente devemos lembrar que há


uma incerteza considerável em nossos números salariais. Doze
anos e meio de salário podem ser uma estimativa razoável do
valor de um homem para sua família, assumindo uma taxa de
juros de mercado entre 5 e 10%, mas dificilmente parece incluir
muito subsídio para seu valor para si mesmo. Se aceitarmos a
interpretação de Magnusson e Palsson70 da onça em que os
wergelds da Saga de Njáll são pagos como uma onça de prata
não refinada, no valor de quatro onças legais, os números
parecem mais razoáveis.

69Ao comparar esse número com os atuais níveis de condenação por


assassinato ou homicídio culposo, deve-se lembrar que matar, na lei
islandesa, era distinguido de assassinato pelo fato do matador se entregar.
Assim, mesmo que a sentença média cumprida pelo assassino condenado em
nossa sociedade fosse tão alta quanto 12 anos e meio, a punição esperada
correspondente seria maior no caso islandês.
70Magnusson e Palsson 1960, 63.

278
11
Direito Somali
Poucas sociedades podem carecer tão visivelmente dos
procedimentos judiciais, administrativos e políticos que
estão no cerne da concepção ocidental de governo. O
sistema político tradicional do norte da Somália não tem
chefes para administrá-lo e nenhum judiciário formal
para controlá-lo. Os homens são divididos entre unidades
políticas sem qualquer hierarquia administrativa de
funcionários e sem cargos de liderança instituídos para
dirigir seus negócios. (Lewis 1961, vii)

A Somália foi criada em 1960 a partir das colônias da


Somalilândia Britânica (norte) e da Somalilândia Italiana (sul).
As potências coloniais existentes estabeleceram um governo
central democrático, possivelmente não a melhor opção para
uma sociedade cujas instituições tradicionais eram
descentralizadas e sem estado. A democracia durou nove anos,
seguidos pelo assassinato do presidente, um golpe militar e a
ditadura de Siad Barre. Ele foi deposto em 1991, o governo
central se desintegrou e os somalis voltaram ao seu sistema
tradicional.
Com duas diferenças. Em primeiro lugar, a experiência de
um governo central passado e a expectativa de um futuro
governo encorajaram alguns, especialmente perto da capital de
Mogadíscio, a se envolverem em uma luta pelo poder destinada
a se colocar no papel lucrativo de governantes, em vez do papel
não lucrativo de governados. Em segundo lugar, poderes
externos, agindo por meio da ONU na crença de que o país

279
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

precisava de um governo central, tentaram restabelecê-lo,


usando força militar fornecida principalmente pela Etiópia, o
inimigo tradicional da Somália. O resultado foi um longo
período de violência e caos, especialmente dentro e perto da
capital, por grupos que agem fora do sistema legal tradicional, e
muitas vezes em violação dele.1
Em outros lugares, especialmente no que havia sido a
Somalilândia britânica e agora se autodenomina República da
Somalilândia,2 o sistema tradicional de direito consuetudinário
se restabeleceu. Embora a Somalilândia tenha um governo —
sem dúvida criado em parte como uma tentativa até agora
malsucedida de persuadir os estados estrangeiros de sua
legitimidade — é um governo baseado em instituições
tradicionais com uma câmara superior de anciãos de clãs e que
parece, em sua maior parte, submeter-se a o direito

1Um breve período de paz no sul foi criado por uma aliança de tribunais
islâmicos (a UTI, “União dos Tribunais Islâmicos”) apoiados por milícias de
clãs locais. No final de 2006, esse período terminou quando as tropas etíopes,
agindo com o apoio dos EUA e da ONU em aliança com a ONU, criaram um
“Governo Federal de Transição”, invadiram a Somália e finalmente tomaram
Mogadíscio. Lewis 2008, 87-91. Para a visão de Lewis sobre a situação na
Somália nos últimos anos, veja Lewis 2004. Leeson 2007a oferece evidências
de que a Somália estava, em geral, melhor como resultado do colapso do
governo de Barre, que após um breve período de violência generalizada a
situação em grande parte do país tornou-se razoavelmente pacífica.
2Não incluindo a Puntlândia no canto nordeste, cujo governo se considera

uma província da nação da Somália, mas atua em grande parte de forma


independente.

280
Direito Somali

consuetudinário aplicado privadamente da maneira tradicional, a


mesma política seguida anteriormente pelos oficiais britânicos.3
Este capítulo baseia-se principalmente no trabalho de I.M.
Lewis, um antropólogo britânico que começou a estudar os
somalis na década de 1950, especialmente na descrição
detalhada das instituições pastoralistas do norte da Somália em
seu A Pastoral Democracy: A Study Of Pastoralism And Politics
Among The Northern Somali Of The Horn Of Africa. Minha
outra fonte é The Law of the Somalis, escrito por Michael Van
Notten, um estudioso jurídico holandês que se casou com uma
somali e viveu como parte do clã Samaron do noroeste da
Somalilândia por doze anos até sua morte em 2002. O livro foi
editado e publicado por Spencer MacCallum, um antropólogo
social com interesse em sociedades sem estado. Como Van
Notten deixa claro, sua descrição se aplica em detalhes apenas à
área onde ele viveu (Awdal), mas a lei tradicional em outros
lugares é geralmente semelhante.4
Ambas as minhas fontes estão preocupadas principalmente
com os pastores do norte da Somália e é seu sistema legal que
irei descrever. As instituições no sul, onde o pastoreio de
camelos foi substituído em grande parte pela agricultura,
parecem basear-se um pouco menos no parentesco e mais na

3“Os ‘governos’ na Puntlândia e na Somalilândia não têm o monopólio da lei


ou sua aplicação legítima. Embora existam algumas leis e tribunais públicos,
em ambas as regiões, o sistema jurídico funciona principalmente com base no
direito consuetudinário privado e nos mecanismos de execução.” (Leeson
2007a, 700).
4Estou usando os primeiros nove capítulos e o Apêndice A; o restante do

livro avalia os pontos fortes e fracos do sistema legal tradicional e propõe


maneiras pelas quais ele pode ser melhorado e aplicado.

281
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

geografia.5 As observações de Van Notten foram feitas entre


1990 e 2002; Lewis baseou seu relato detalhado em observações
feitas na década de 1950, quando o norte da Somália ainda era
um protetorado britânico. Os relatos são bastante semelhantes,
permitindo a diferença nos períodos de tempo e o fato de Van
Notten estar lidando com uma área mais restrita.
Há, no entanto, uma importante diferença terminológica
entre as duas fontes. Van Notten interpreta a terminologia de
parentesco em termos absolutos, enquanto Lewis argumenta que
os termos descrevem a posição relativa na árvore genealógica.
Ele escreve:

Os quatro termos, qabiil, qolo, jilib e reer, que são


comumente usados para se referir a diferentes níveis de
agrupamento e que têm sido consistentemente mal
interpretados pela maioria dos escritores sobre a Somália,
podem legitimamente ser aplicados à mesma unidade
genealógica e política em diferentes contextos. De um
modo geral, além de seu uso restrito para designar os
descendentes de um homem vivo, reer significa linhagem
em sentido amplo. Assim, o clã Dulbahante é uma
linhagem (reer) do clã-família Daarood e unidades
menores dentro do Dulbahante são linhagens (reers) do
clã Dulbahante, e assim por diante até a unidade mínima
que consiste em um homem e seus filhos. A palavra
árabe emprestada, qabiil, é geralmente restrita em uso às

5Sobre os Sab, agricultores somalis do sul, Lewis escreve (1961, 13): “A


estrutura política de conquista deles, se não a de um estado tribal, é
certamente mais formalizada e mais hierárquica do que o sistema político dos
nômades do norte. [...] As tribos Sab — pois aqui existem comunidades
jurídicas e políticas territorialmente definidas — não parecem basear suas
relações políticas no parentesco, mas no que Maine chamou de contiguidade
local.”

282
Direito Somali

unidades maiores, como clãs, subclãs e grupos de


linhagem primários. Mas aqui, novamente, seu uso é
totalmente relativo. O que, em relação a uma unidade
menor é chamado de qabiil, em relação a uma unidade
maior é chamado de qolo ou jilib. Se um homem do
Dulbahante, referindo-se a suas relações com outros
membros de seu clã, descreve seu qabiil como
Dulbahante, seu qolo como Barkad (um grupo de
linhagem primário) e seu jilib como uma linhagem menor
de Barkad, ele pode, em outra situação, referir-se para
Daarood como seu qabiil, seu qolo como Harti (veja a
genealogia no final do texto) e finalmente seu jilib como
Dulbahante. Nenhum desses termos pode receber
qualquer significado preciso ou fixo, exceto por
referência a outras unidades. Todos são termos relativos
dentro da hierarquia de segmentação baseada na conexão
agnática.6

Estrutura Política
As instituições por meio das quais os somalis impõem
direitos e resolvem disputas são baseadas em dois princípios:
parentesco, principalmente parentesco agnático (definido pela
linha paterna) e contrato. Todo somali memoriza quando criança
sua genealogia através da linha paterna de muitas gerações, uma
informação importante, pois define seu relacionamento com
todos os outros somalis. Um clã, que pode chegar a centenas de
milhares, consiste em indivíduos que se acredita serem todos
descendentes de um ancestral comum na linha paterna,

6Lewis (1961, 133).

283
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

possivelmente vinte ou trinta gerações acima.7 Quanto mais


estreita a ligação entre dois somalis — quanto menor o número
de gerações de um ancestral comum — mais provável é que
sejam aliados.8 “Como os próprios somalis colocam, o que o
endereço de uma pessoa é na Europa, sua genealogia é na
Somalilândia.”9
O sistema de alianças por meio do qual o sistema legal
funciona é fluido em dois sentidos. Para começar, as coalizões
são criadas pelo parentesco agnático em vários níveis. Se, para
simplificar consideravelmente, houver um conflito entre dois
indivíduos cujo tataravô comum na linha paterna teve dois
filhos, o grupo que se compromete do lado de cada um será o
dos descendentes do filho de quem ele descende. Se surgir um
conflito envolvendo um membro de um desses grupos contra
alguém cuja genealogia esteja ligada à sua no topo da árvore
genealógica, os dois grupos que eram inimigos no primeiro
turno podem se aliar. No caso de um conflito entre indivíduos de

7Existe uma exceção parcial para as mulheres; a esposa de um homem é, em


alguns aspectos, classificada pela genealogia de seu marido, em alguns
aspectos pela dela própria.
8“Quanto mais distantes estiverem as unidades genealogicamente, maior a

probabilidade de conflitos prolongados entre as unidades maiores das quais


são segmentos. Assim, o conflito entre um segmento do Dulbahante e um
segmento do Habar Tol Ja'lo tem mais probabilidade de levar a uma luta
entre o Dulbahante como uma unidade oposta ao Habar Tol Ja'lo como uma
unidade, do que um conflito entre um grupo de Faaraḥ Garaad e um
segmento de Maḥamuud Garaad para uma guerra geral entre esses dois
segmentos do Dulbahante. [...] Quanto menor uma unidade, maior é sua
coesão, e quanto maior uma unidade, mais provável é que ela se divida em
grupos hostis seguindo as linhas de clivagem genealógica.” (Lewis 1961,
152).
9Lewis 1961, 2.

284
Direito Somali

clãs diferentes, todos de cada clã são, em princípio, se não


sempre na prática, aliados em apoio a seu membro.10
As coalizões não são definidas inteiramente pelo
parentesco. A coisa mais próxima de uma unidade bem definida
e estável abaixo do nível do clã é o que Lewis, seguindo a
prática dos administradores britânicos, chama de “grupo
pagador de dia” (“dia” ou “diya” é o termo árabe para dinheiro
de sangue, o wergeld islandês; o termo somali é mag). O grupo
pagador de dia é responsável por pagar pelas ofensas de seus
membros, cobrar por delitos contra seus membros e, neste
último caso, usar a força ou ameaça de força para obter o
pagamento.11 Também lida com conflitos entre seus membros.

10“Em princípio, dentro do clã, grupos pagadores de dia se opõem a grupos


pagadores de dia, grupos de linhagem primária, grupos de linhagem primária,
e dentro do clã-família, clãs se opõem a clãs. Mas o modelo simples de
segmentação agnática com unidades equilibradas em todos os níveis é
distorcido pelo reconhecimento do crescimento irregular e pela importância
dada à distribuição desigual de mão-de-obra e potencial de combate. Essas
desigualdades são contrabalançadas em parte por laços uterinos que atuam
como um mecanismo de compensação embutido, e em parte por alianças
(gaashaanbuur) fora do parentesco.” (Lewis 1961, 159). Evans-Pritchard
descreve um padrão semelhante entre os Nuer. “Uma característica de
qualquer grupo político é, portanto, sua tendência invariável à fissão e à
oposição de seus segmentos, e outra característica é sua tendência à fusão
com outros grupos de sua própria ordem em oposição a segmentos políticos
maiores do que ele.” (Evans-Pritchard 1940, 137).
11Semelhante ao 'Akila na lei islâmica Jinayat (Capítulo 5), presumivelmente

derivado da prática beduína pré-islâmica.

285
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A membresia do grupo de pagadores de dia e as regras


internas são definidos por contrato explícito.12 Na maioria dos
casos, é constituído por vários grupos pagadores de jiffo, cada
um dos quais pode consistir de descendentes na linha paterna de
um único ancestral comum ou de vários semelhantes. Dentro do
grupo de pagadores de dia, os grupos separados de pagadores de
jiffo têm responsabilidade especial pelos delitos de seus
membros definidas pelo contrato do grupo, geralmente pagando
todo o custo até certo limite, geralmente um terço do pagamento
por um assassinato.13 A divisão dos custos acima desse ponto
entre os componentes do grupo maior também é definida por
contrato, geralmente em proporção ao número de homens em
cada grupo de pagadores de jiffo ou à sua riqueza em gado.
Os grupos separados que pagam jiffo dentro de um grupo
que paga dia podem ou não estar ligados por parentesco
agnático. Se grupos menores não tão ligados assim desejarem se
unir para esse propósito, eles podem tirar proveito de laços por
parentesco materno para fazê-lo, produzindo uma aliança
uterina, e da mesma forma para coalizões em outros níveis do
sistema. Às vezes, as coalizões são formadas sem vínculos
agnáticos ou uterinos como justificativa; tais são referidos como

12Sob a administração britânica, os contratos eram feitos por escrito com


cópias arquivadas com as autoridades britânicas; um exemplo é mostrado no
final deste capítulo. Lewis sugere que antes disso eles eram normalmente
orais, mas às vezes podem ter sido por escrito e depositados com o guardião
do santuário de um santo proeminente. (Lewis 1961, 176).
13De acordo com a lei islâmica, o 'akila paga parte do que um membro deve

por um ferimento, desde que o valor seja mais de um terço do pagamento que
seria devido por um assassinato.

286
Direito Somali

gaashaanbuur, que significa literalmente “pilha de escudos”,14


uma vez que são feitos para adquirir força de combate
suficiente.
Pelo relato de Lewis, o tamanho de um grupo de pagantes
é limitado na extremidade inferior, cerca de 300 homens, pela
necessidade de recursos suficientes para pagar sangue quando
necessário, sem um ônus indevido para qualquer indivíduo e por
poder militar suficiente para executar reivindicações de
pagamento de dinheiro de sangue. É limitado na ponta, cerca de
3.000 homens, pelos problemas de conflito interno — muitos
candidatos a líderes capazes e ambiciosos, situações em que um
dos grupos componentes sente que está sendo injustamente
sobrecarregado por pagamentos por delitos de membros de
outros grupos e problemas semelhantes. Grupos componentes
podem e se dividem para formar seu próprio grupo de pagantes
de dia ou para se juntar a um grupo diferente. E se as
circunstâncias forçarem uma aliança entre múltiplos grupos de
pagantes de dia, eles podem se constituir temporariamente como
um único grupo.
Os somalis distinguem entre leis gerais que se aplicam a
todos os membros do clã e leis especiais que se aplicam a
membros de um determinado grupo, em particular um grupo que
paga dia. Leis especiais são estabelecidas por contrato
explícito,15 lei geral vista como um conjunto de princípios
14Lewis 1961, 156. O somali usou o mesmo termo para descrever a
Comunidade Britânica ou a aliança ocidental contra os soviéticos (Lewis
1961, 189).
15“É pelo menos revigorante confrontar as várias teorias hipotéticas do

contrato social com um caso de contrato onde esta instituição é


sistematicamente empregada, dentro de um ambiente de parentesco, na
formação e definição de unidades políticas, em uma extensão que, até onde
eu sei , é inigualável a outros lugares.” (Lewis 1961, xiv).

287
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

amplos cuja aplicação cabe ao juiz particular; assim não há, em


princípio, situações em que a lei seja omissa. As decisões devem
ser baseadas na prática habitual. Um número suficiente de
decisões consistentes pode fazer com que uma regra seguida por
juízes seja tratada como lei; nesse sentido, é um sistema de
jurisprudência informal.16 Dentro de um clã, as diferenças
significativas entre os juízes tendiam a desaparecer com o
tempo, mas tais diferenças entre a jurisprudência de diferentes
clãs podem persistir.
Os juízes não são funcionários com um cargo e salário,
mas árbitros aceitos pelos disputantes.17 Um juiz não tem
direitos especiais,18 como o direito de convocar ou interrogar
uma testemunha. Tampouco o juiz é visto como uma fonte
autoritativa do direito. Seu trabalho é resolver conflitos
aplicando as regras que as pessoas da comunidade normalmente
observam. Um juiz que produz veredictos que encontram
desaprovação geral provavelmente não será chamado para julgar
casos no futuro. Citando Van Notten:

16Esta descrição é de Van Notten. Schacht (1986, 7-8), descrevendo a lei


beduína pré-islâmica, escreve: “Se a negociação prolongada entre as partes
não levasse a nenhum resultado, o recurso era normalmente feito a um árbitro
(ḥakam) […]. […] as partes eram livres para nomear […] qualquer pessoa
com quem eles concordaram, […]. A decisão do ḥakam, que era final, não
era uma sentença executável (a execução tinha de ser garantida pela
segurança), mas sim uma declaração de direito sobre um ponto controverso.
Portanto, tornava-se facilmente uma declaração autoritativa do que a lei
consuetudinária era ou deveria ser; a função de árbitro fundiu-se com a de
legislador, […].
17Para um padrão análogo para resolver disputas em uma sociedade diferente:

“Os juízes nos tribunais ciganos da região são nomeados ad hoc para cada
nova sessão do tribunal”; (Marushiakova e Popov 2007, 80).
18Os juízes têm o dever especial de cumprir a lei e, portanto, estão sujeitos a

multas mais pesadas do que as pessoas comuns, caso não o sejam.

288
Direito Somali

Um juiz somali é livre para desenvolver seus próprios


princípios de direito e suas próprias doutrinas. O teste
para saber se tais princípios e doutrinas são aceitáveis
para a comunidade ocorre assim que ele dá seu veredicto
sobre um conflito. Se um veredicto se desvia do que a
comunidade considera razoável e justo, há poucas
chances de que seu autor seja chamado novamente para o
cargo de juiz.19

A sabedoria popular inclui “pode-se mudar de religião;


não se pode mudar a lei” e “entre religião e tradição, escolha a
tradição”.
Uma exceção notável à separação entre lei e religião é que
as questões de casamento e herança são geralmente levadas a
um juiz que aplica a lei alcorânica, sendo quase todos os somalis
muçulmanos.20 Uma segunda exceção é que um juiz que precisa
saber a extensão do dano de uma vítima de agressão pedirá a um
líder religioso que investigue a questão e testemunhe sobre ela.
A tabela de pagamentos de dinheiro de sangue por morte ou
lesão é baseada na lei islâmica, modificada por costume e
contrato, com a quantia às vezes maior ou menor, dependendo
da relação entre criminoso e vítima. O contrato para um grupo
de pagadores de dia pode especificar um custo menor para

19Os juízes são normalmente os anciãos dos jilibs das partes.


Presumivelmente, o ponto da passagem é que um juiz cujas decisões são
geralmente desaprovadas perde sua posição como presbítero. Von Notten
menciona que um indivíduo insatisfeito com o ancião de seu jilib pode deixar
sua família extensa e começar uma nova, possivelmente juntando-se a outros
indivíduos insatisfeitos de outros jilibs, ou pode tentar convencer os outros
membros de sua família a substituir seu ancião.
20Aderindo à escola Shafi'ite. Mas a prática de herança representa uma

mistura de lei islâmica e tradicional; os camelos, por exemplo, são herdados


apenas pelos homens.

289
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

lesões de um membro do grupo por outro, uma quantia maior


pode ser paga por morte ou lesão a uma vítima particularmente
respeitada ou ocorrendo em circunstâncias especialmente feias,
e os grupos às vezes concordam em aumentar a quantia para
reduzir a violência entre grupos.
As instituições políticas somalis no nível do clã existem,
mas são limitadas. Tradicionalmente, a maioria dos clãs tinha
um chefe titular, nomeado vitalício, cujas funções eram
principalmente cerimoniais. A posição aparentemente não é
essencial, já que nos últimos anos vários clãs não escolheram
nenhum substituto para alguém que morreu.21
Cada clã também tem uma assembleia (Guurti), composta
pelos chefes das famílias mais importantes. Tem o poder de
declarar guerra ou paz com outros clãs, mas não de recrutar ou
contratar soldados. Pode recomendar mudanças na lei
tradicional, mas não tem poder para legislar sobre elas.22 Se
chegar à conclusão de que alguns membros ainda se opõem, eles
não têm obrigação de ajudar a implementá-la.

Mecânica
A mecânica do julgamento e da aplicação da lei, conforme
descrita por Van Notten, é direta. Quando surge uma disputa
entre membros de diferentes grupos de pagantes de dia, os

21No caso do clã Samaron, com o qual Von Notten se casou, o último chefe
titular morreu em 1954 e não havia sido substituído até 2002, quando Von
Notten morreu.
22Segundo Van Notten as decisões são por consenso, fazendo com que as

reuniões possam durar meses. Lewis descreve a tomada de decisões, não


apenas para um clã, mas para grupos em todos os níveis, como feito em uma
reunião aberta a todos os homens adultos com decisão por maioria de votos.

290
Direito Somali

anciãos (oday) de cada lado23 formam um tribunal com eles


mesmos como juízes, pedem às partes que exponham seus
casos, ouçam testemunhas e estabeleçam um veredito. Os juízes
podem, antes de concordar em julgar uma disputa, exigir que as
partes concordem, às vezes por escrito, em obedecer a seu
veredito. Se a força for necessária para fazer a parte perdedora
obedecer ao veredito em uma disputa intraclã, os juízes podem
recrutar todos os aldeões masculinos fisicamente aptos para esse
fim; quem se recusar é considerado parceiro do réu e deve multa
à família do queixoso. No caso de uma disputa interclã, no
entanto, a execução cabe ao clã da vítima.
E se nenhum tribunal chegar a um acordo a tempo ou o
oday da família de uma das partes se recusar a participar
(particularmente provável se as partes forem de clãs diferentes)
ou se o tribunal não der um veredito? Nessa altura, a vítima e a
sua família têm direito à autopunição, impondo-se a restituição
ou compensação pela força. Se a outra parte acreditar que força
excessiva foi usada ou compensação excessiva extraída, ela tem
o direito de processar por compensação.
Assim, o sistema somali é, em última análise, um sistema
de disputas, no qual a lei é aplicada pela aplicação privada da
força ou pela ameaça de força, mas um sistema de disputas com
instituições para evitar a violência por meio de mecanismos
amplamente respeitados para arbitrar disputas.24 Parte do que o
faz bem sucedido, de acordo com Van Notten, é que as famílias
são obrigadas a ajudar a defender seus parentes, mas não a

23Em partes do relato de Van Notten, ele parece estar descrevendo um


sistema em que cada grupo de pagadores (seu Jilib) tem um único ancião
(oday).
24A julgar pela descrição de Lewis, as disputas dentro de um clã normalmente

são resolvidas pacificamente. Disputas entre clãs podem ou não ser.

291
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ajudar a atacar seus oponentes, com o resultado de que os


conflitos armados provavelmente levarão ao impasse e daí à
arbitragem.25
A condenação pelo que consideraríamos um delito civil ou
criminal geralmente resulta em uma multa, tradicionalmente
declarada em camelos. O grupo pagador de dia do infrator
(como a fine irlandesa26) é o fiador do pagamento da multa. Nas
disputas entre clãs, o clã é o fiador. Se um indivíduo viola
repetidamente a lei e não consegue pagar as multas resultantes,
seu grupo de pagantes de dia pode anunciar publicamente que
não é mais responsável por ele. Como agora não há ninguém
para garantir suas multas, mas também ninguém para defendê-lo
ou ameaçar com a força em defesa de seus direitos, ele é

25Um padrão semelhante de normas para a sociedade nórdica está implícito


em uma passagem em Egilsaga onde Kveldulf, o avô de Egil, diz que se o rei
Harald, que estava no processo de unificação da Noruega, invadisse
Fjordane, Kveldulf poderia ser considerado obrigado a ajudar a defendê-la,
mas ele não tem obrigação de ajudar o rei de Fjordane a atacar Harald.
26Von Notten não é totalmente claro sobre a membresia do juffo (seu termo

para o que Lewis chama de grupo pagador de jiffo) e jilib (grupo pagador de
dia). A certa altura, o primeiro é definido como todos os descendentes na
linha paterna de um bisavô comum e o último como um grupo de juffos cujos
membros são parentes. Em outro ponto, o jilib é definido como “todos os
descendentes vivos de um determinado bisavô paterno ou ancestral distante”.
A fine no direito irlandês antigo, discutida no Capítulo 12, é composta por
todos os descendentes na linha paterna de um bisavô comum. Pela descrição
de Lewis, soa como se o juffo (seu grupo pagador de jiffo ou “seção
terciária”) fosse definido por parentesco paterno, o jilib (grupo pagador de
dia ou “seção secundária”) por contrato entre os juffos membros, geralmente,
mas não sempre aqueles que têm um ancestral paterno comum. Descrevendo
a lógica das alianças de parentesco, ele escreve: “As seções terciárias se
apoiam contra as secundárias, as secundárias contra as primárias, e todas se
unem na solidariedade da tribo quando esta é ameaçada ou atacada de fora.”
(Lewis 1955, 108).

292
Direito Somali

efetivamente um fora da lei e provavelmente deixará o território


para o de outro clã. Em situações menos extremas, o grupo de
parentesco, tendo que pagar pelo delito de seu membro, pode
restringi-lo de maneiras destinadas a prevenir a reincidência do
delito, por exemplo, proibindo-o de andar armado.
Tanto o queixoso quanto o réu têm o direito de recorrer de
um veredicto, com o número de recursos permitidos dependendo
das regras de seu clã. O tribunal de apelações deve ter mais
juízes do que o tribunal que produziu o veredito original,
provenientes de um grupo mais amplo de famílias ou clãs; se
uma das partes se recusar a aceitar o recurso, a família da outra
tem direito à autopunição.
No decurso de um julgamento, um fato controverso é
admitido como prova apenas no depoimento de três
testemunhas. As partes podem convocar especialistas e
testemunhas de caráter para apoiar seu caso. Cada parte pode
expor seu caso ou ter um representante para fazê-lo, convocar
testemunhas e apresentar evidências; testemunhas não são
normalmente sujeitas a interrogatório. Em alguns casos, o juiz
do réu pode simplesmente concordar, em nome de seu clã ou
grupo de parentesco, em pagar a indenização exigida. Como em
alguns outros sistemas jurídicos, os juramentos às vezes são
exigidos como parte do processo legal. Se um fato for
contestado ou apoiado por menos de três testemunhas, as partes
podem ser obrigadas a fazer um dos vários juramentos
diferentes sobre a veracidade de sua posição. Um desses
juramentos consiste no jurador jurar por seu casamento; se mais
tarde descobrir que seu juramento era falso, o casamento é
dissolvido. Se o queixoso não conseguir estabelecer seu caso, o
réu ainda deve jurar sua inocência antes que o caso seja
arquivado.

293
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Conteúdo da Lei
Se o réu condenado se recusar a pagar no prazo estipulado,
ele está sujeito a penalidades que vão desde multa em mel até
ter um de seus animais abatido, cozido e comido pelos aldeões
todos os dias.
Assim como no jinayat árabe, as penalidades são
calculadas em camelos — no caso da Somália, camelos fêmeas
saudáveis com idade entre três e seis anos. Pode ser pago em
outros animais a uma taxa fixa habitual ou em dinheiro por
acordo entre as partes. O pagamento vai para a vítima se viva,
sua família se ele estiver morto, e pode ser compartilhado por
outros membros de seu grupo de pagantes de dia.27 Existe uma
tabela padrão de multas para lesões corporais não intencionais.
A família da vítima pode, e muitas vezes aceitará, aceitar
menos, possivelmente como um gesto de boa vontade. Para uma
lesão intencional, as multas são dobradas.
Para homicídio doloso, a pena é de uma vida por uma
vida; se o assassino conseguir fugir para o exterior, um membro
de sua família de status igual pode ser condenado à morte em
seu lugar, uma regra que dá à família um forte incentivo para
não o ajudar a escapar. Na maioria dos casos, a família da vítima
pode optar por aceitar dinheiro de sangue em uma taxa de 100
camelos para um homem e 50 para uma mulher, embora se o
assassinato for suficientemente ultrajante, o tribunal pode
insistir na execução do assassino. Se o assassino e a vítima são
de clãs diferentes, é menos provável que a família da vítima

27Veja, por exemplo, o contrato no apêndice deste capítulo.

294
Direito Somali

aceite dinheiro de sangue;28 se o assassino escapar, sua família


deve duas vidas em vez de uma.
As multas no direito somali são baseadas nas multas
especificadas no jinayat, no qual o sistema somali se baseia,
embora as regras difiram em detalhes. As regras da Somália não
tratam, e as regras do jinayat sim, a perda de uma parte do corpo
da qual a vítima tem apenas uma como equivalente à perda da
vida. De outro modo, os padrões são semelhantes, mas não
idênticos.29
As regras legais da Somália para lesões corporais têm
outra característica interessante. Se um homem fere gravemente
outro, sua família deve levar a vítima para sua casa e cuidar dela
até que recupere a saúde — a mesma exigência do direito
irlandês antigo.
A regra para danos acidentais à propriedade, incluindo
animais, é a mesma do direito de tort moderno. O responsável
deve indenizar a vítima, repondo a propriedade ou seu valor. A
pena por roubar um animal, entretanto, é a devolução de dois, a
mesma que a pena por roubo na lei judaica.
O direito consuetudinário da Somália também abrange
assuntos como quebra de contrato e difamação. As regras legais
com relação à propriedade são complicadas pelo fato de que
nem todos os tipos de propriedade podem ser de propriedade
privada. A terra de pastagem é tratada como um recurso comum
com uma regra de primeiro a chegar, primeiro a ser servido —
uma vez que um rebanho está pastando em um determinado
28Entre os nuer, que estão divididos em várias tribos, o dinheiro de sangue é
devido por homicídio dentro da tribo, mas não fora dela e, da mesma forma,
por indenizações por torts menores. (Evans-Pritchard 1940, 121-122).
29Os somalis seguem a escola Shafi'i; algumas diferenças entre suas regras e

as listadas no Capítulo 5 podem corresponder a diferenças entre as escolas de


direito sunita.

295
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

pasto ou bebendo em um poço de água, ele tem donidade


temporária. Quando a água é escassa, as pastagens e as fontes de
água no território de um clã são tratadas como posses do clã que
outros devem usar apenas com permissão. A definição do
território do clã é baseada na prática passada e imprecisa. Pelo
relato de Lewis, soa como se a especificação imprecisa das
fronteiras entre os clãs e a falta de direitos de propriedade bem
definidos para pastagem dentro dos clãs resultassem em muitos
conflitos.
A maioria das pessoas na área estudada por Von Notten
eram pastores nômades, mas também havia populações parcial
ou totalmente sedentárias que reconheciam a propriedade
individual de pequenas parcelas de pastagens, com a restrição de
que só poderiam ser vendidas dentro do clã e emprestadas ou
alugadas apenas para membros do clã ou estranhos com algum
vínculo com o clã, como casamento com um membro do clã. As
terras agrícolas em áreas onde os habitantes locais praticam a
agricultura também estão sujeitas a uma forma restrita de
donidade. Algumas terras também pertencem a grupos ou a um
clã inteiro e podem ser divididas e alocadas a membros
individuais apenas com o consentimento de todos os membros
masculinos do grupo.
Uma característica estranha do direito consuetudinário da
Somália é que um homem rico é obrigado, com regras legais
detalhadas, a compartilhar sua riqueza com vizinhos e parentes.
Visto de um ângulo, isso pode ser visto como uma forma de
seguro social, de outro, como um desincentivo à criação de
riqueza.

296
Direito Somali

Apêndice:
Lidando com Forasteiros: Um Caso
O estado da Etiópia tratado como um clã: em 1992, um
ano depois que os tigrínios assumiram o controle do governo
etíope, alguns soldados federais mataram arbitrariamente um
comerciante somali perto da aldeia de Sheddher. A razão deles
era que ele havia se recusado a dar-lhes algumas de suas
mercadorias, que por acaso eram qhat. Uma hora depois, a
família da vítima matou dois soldados federais que passavam
pela vila. O comandante militar da região da Somália então
ordenou uma expedição punitiva e enviou um pelotão inteiro
para Sheddher. Em sua chegada, os soldados souberam que os
aldeões poderiam ter matado vários outros soldados federais
naquele dia, mas não o fizeram. Eles agiram de acordo com sua
lei consuetudinária, que estipula que quando alguém de outro clã
assassinar um membro do clã, dois membros desse outro clã
serão mortos. Pouco tempo depois, um incidente semelhante
aconteceu no mesmo território, na aldeia de Lafaissa, onde um
soldado federal havia buscado refúgio em um acampamento
militar após matar arbitrariamente um somali. A família da
vítima foi a um acampamento militar na aldeia vizinha de
Herigel e matou dois soldados federais. O comandante militar
em Harar optou por não tomar nenhuma ação contra o clã e
informou a seus soldados que doravante eles deveriam respeitar
a lei consuetudinária. Como resultado, não ocorreram mais
assassinatos no território. (Van Notten, 181-182)

297
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Um contrato para um grupo pagador de dia30


Hassan Ugaas são atualmente estimados em cerca de
1.500 homens. Eles compreendem quatro segmentos principais
(jilibs) que atuam como grupos pagadores de jiffo.
Uma petição entregue ao comissário distrital e datada de 8
de março de 1950, declara seu heer como o seguinte:
1. Quando um homem de Hassan Ugaas é assassinado por
um grupo externo, vinte camelos de sua riqueza de sangue (100)
serão levados por seu “parente mais próximo” (ou seja, seus
filhos, irmãos, pai e possivelmente tios) e o restantes oitenta
camelos compartilhados entre todos os Hassan Ugaas.
2. Se um homem do Hassan Ugaas for ferido por um
forasteiro e seus ferimentos forem avaliados em trinta e três
camelos e um terço (uma taxa padrão para ferimentos não fatais,
mas bastante graves),31 dez camelos serão dados para ele e o
restante para seu grupo de jiffo.
3. Homicídio entre membros do Hassan Ugaas está sujeito
a indenização de trinta e três camelos e um terço, pagável
apenas aos parentes mais próximos do falecido. Se o culpado
não puder pagar total ou parcialmente, ele será assistido por sua
linhagem.
4. Em casos de assalto dentro do Hassan Ugaas para os
quais uma compensação até o valor de trinta e três camelos e um
terço é pagável (ou seja, de acordo com a Shari'ah), apenas dois
terços serão pagos.

30Lewis 1961, 177-178.


31“Isto é conhecido como jaa' ifo (diferente de jiffo) e é qualquer ferimento
não fatal, mas bastante sério, para o qual a compensação é da ordem de trinta
e três camelos e um terço, mas pode ser mais.” (Lewis 1961, 177n1).

298
Direito Somali

5. Haal de 150 shillings (da África Oriental) é pago à


pessoa atacada32 quando um homem de Hassan Ugaas se junta a
outro para lutar com um terceiro.
6. Se um homem do Hassan Ugaas insultar outro em um
conselho Hassan Ugaas (shir), ele deverá pagar 150 Shs. à parte
ofendida.
7. Se um homem do Hassan Ugaas se casar com uma
garota já prometida em casamento a outro homem do grupo, ou
uma viúva com quem é costumeiro o direito de outro se casar,
ele deverá pagar um haal de cinco camelos à parte
prejudicada.33
8. Se os Hassan Ugaas matarem um homem de outro
grupo, eles pagarão sua riqueza de sangue em partes iguais
(entre as quatro linhagens) por “contagem de pênis” (qoora
tiris).34
9. A compensação por ferimentos graves avaliados em
trinta e três camelos ou mais, devido a uma pessoa de outro
grupo, será paga coletivamente por todos os Hassan Ugaas por
“contagem de pênis”.
10. Este heer cancela todos os acordos anteriores do
Hassan Ugaas.

32“Quando dois homens atacam outro do mesmo grupo, isso é conhecido


como hiill ou tuuto e a compensação por insulto é paga regularmente. Esta é
uma disposição comum em tratados de pagamento de dia.” (Lewis 1961,
177n2).
33“Isso se refere à prática somali de herança de viúva (dumaal), em que os

filhos pertencem ao novo marido e não ao irmão falecido ou parente paterno


próximo. Normalmente, paga-se uma riqueza de noiva reduzida.” (Lewis
1961, 177n3).
34Partes proporcionalmente ao número de homens em cada linhagem.

299
12
Direito Irlandês
Antigo
O direito irlandês, em particular, pode parecer estranho e
inacessível para aqueles que a abordam recém-saídos da
leitura de um código civil moderno. O que sobrevive hoje
é um desconcertante conglomerado de velho e novo,
texto e comentário, prosa simples e verso ofuscante.
(Stacey 1994, 15)

A Irlanda no início do século V era um país pagão com


uma rica literatura oral e um elaborado sistema jurídico, também
oral. A posterior conversão ao cristianismo possibilitou a
composição de textos jurídicos escritos. Alguns estudiosos
acreditam que os autores eram escritores seculares criando uma
versão escrita da lei tradicional para equilibrar o sistema
concorrente do direito canônico, outros atribuem os textos legais
a autores clericais tentando criar uma síntese viável do antigo e
do novo.1
Quem quer que fossem os autores, eles mostraram um
forte viés conservador, registrando não apenas regras legais
ainda em prática nos séculos VII e VIII, quando os textos foram

1Para uma discussão de evidências para as visões alternativas, veja Kelly


2009, 232-237.
2Como o conteúdo dos textos sobreviveu apenas como passagens citadas em

manuscritos muito posteriores, a datação é baseada principalmente em


evidências linguísticas.

301
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

escritos,2 mas também regras mais antigas.3 Sua escrita,


portanto, fornece uma janela um tanto confusa no sistema
jurídico pré-cristão, que pode ter preservado instituições que
remontam a muito mais tempo, possivelmente até o período
anterior à separação das diferentes línguas indo-europeias. A
evidência para essa conjectura é em parte linguística, palavras
semelhantes em diferentes línguas indo-europeias conectadas
com as mesmas instituições legais/políticas, e em parte
comparativas, características que o antigo sistema legal irlandês
compartilhava com o antigo direito indiano.1
Nenhum dos textos legais sobreviveu em sua forma
original. O que temos são manuscritos que datam
principalmente dos séculos XIV a XVI que citam trechos das
obras anteriores, junto com extensos comentários. A partir deles
é possível reconstruir muito, mas não todo, do original, com
risco de erros de transmissão ao longo dos séculos. Os textos
citados podem ser datados por idioma, tendo o irlandês mudado

3“Os juristas irlandeses, assim como os hindus, eram ‘retrospectivos’ —


homens com profundo respeito pela antiguidade. Quanto mais antigo um
costume, mais venerável ele se tornava aos olhos deles, e o fato de que há
muito era obsoleto na prática era totalmente irrelevante; longe de ser
descartado, foi reservado religiosamente, muitas vezes lado a lado com a
regra posterior que o substituiu.” Binchy 1970, 1. “Assim, nos tratados
'canônicos' que receberam sua forma definitiva durante os séculos VII e VIII,
lado a lado com as regras contemporâneas redigidas em irlandês antigo
clássico, encontramos passagens que são mais arcaicas tanto na linguagem
quanto no conteúdo, e que sem dúvida remontam ao ensino oral das escolas
de direito pré-cristãs. (Binchy 1972, 365).
1Como D. A. Binchy, um dos principais estudiosos do direito irlandês antigo

do século XX, colocou isso no contexto de uma dessas instituições: “Sugiro,


então, que a lei irlandesa de fiadoria pode muito bem refletir os vários
estágios do desenvolvimento dessa instituição em todo o mundo indo-
europeu.” (Binchy 1972, 372).

302
Direito Irlandês Antigo

ao longo do tempo, mas os autores às vezes podem ter usado


linguagem deliberadamente arcaica. O comentário, começando
no século IX e continuando depois disso, fornece informações
adicionais, mas em muitos casos os comentaristas podem ter
entendido mal as regras originais em suas tentativas de explicá-
las e justificá-las. Também temos textos não jurídicos, como as
sagas irlandesas,2 biografias de santos e textos de sabedoria,
juntamente com relatos de instituições irlandesas na Irlanda sob
domínio inglês, alguns dos quais podem ser remanescentes do
período anterior.
Nossas fontes apresentam uma imagem muito imperfeita
do que deve ter sido um sistema jurídico elaborado. A descrição
que se segue é baseada em interpretações das evidências feitas
por estudiosos do século XX. Não podemos ter certeza de quais
regras legais foram aplicadas quando e onde, uma vez que as
fontes sobreviventes combinam material de pelo menos quatro
séculos, possivelmente mais. Aparentes inconsistências podem
representar diferentes instituições existentes ao mesmo tempo,
regras de diferentes épocas, diferentes visões da lei tradicional
sustentadas por diferentes estudiosos ou erros na transmissão.

Túath e Fine: Reino e Grupo de Parentesco


A Irlanda descrita nos livros de leis era dividida em um
grande número de pequenos reinos (túath, plural túatha);
estudiosos modernos estimam que havia cerca de uma centena
deles, com uma população de alguns milhares em cada um. Um

2Como as sagas islandesas, esses são relatos parcialmente históricos,


principalmente em prosa. Os ciclos mitológicos Feniano e de Ulster são
definidos consideravelmente mais cedo do que as sagas islandesas, o ciclo
Histórico, que cobre um período de tempo muito longo, sobrepõe-se a eles.

303
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

rei pode reconhecer a soberania de outro rei mais poderoso. Um


rei que é senhor de três ou quatro túatha é referido como um
grande rei, aquele que é senhor de um grande número de túatha,
o rei provincial das sagas irlandesas, é um rei de grandes reis.
Embora existisse a ideia de um grande rei de toda a Irlanda e o
título fosse às vezes reivindicado, tal rei é mencionado apenas
raramente nos textos legais e ninguém parece ter tornado a
posição uma realidade, tinha domínio efetivo sobre toda a ilha,
antes de a conquista normanda da Irlanda no século XII.3
Na maioria das vezes, um indivíduo tinha direitos legais
apenas dentro de seu próprio reino, embora algumas categorias
especiais, como poetas e eremitas, tivessem direitos em outros
lugares. Uma exceção ocorreu quando o súdito de um rei foi
morto pelo súdito de outro, ambos reconhecendo um suserano
comum; o procedimento para cobrança da multa pelo
assassinato foi iniciado pelo rei da vítima fazendo um refém,
presumivelmente um súdito do rei do assassino, na corte de seu
senhor. Outra ocorreu quando os habitantes de dois túatha
receberam direitos um contra o outro por meio de um tratado.
Dentro do túath, os indivíduos eram divididos em grupos
de parentesco (fine), definidos como os descendentes na linha
masculina de um ancestral comum. O mais importante foi o
derbfine, um grupo de parentesco de quatro gerações,
descendentes de um bisavô comum. As terras agrícolas eram em
grande parte, embora não inteiramente, mantidas pelo derbfine,
3“Podemos então considerar o 'Grande Reinado' como uma reivindicação
afirmada muito cedo pelos propagandistas de Uí Néill, como Adamnán, mas
nunca realizada na prática por nenhum monarca dessa raça, nem mesmo
(como o professor Byrne justamente insiste) pelo 'usurpador ' Biran Bóruma
ou qualquer um daqueles reis provinciais que durante os séculos XI e XII
lutaram pelo que era então pelo menos uma monarquia nacional im Werden.”
(Binchy 1976, 19).

304
Direito Irlandês Antigo

alocadas para seus membros adultos do sexo masculino; um


indivíduo poderia vender parte de sua parte apenas com o
consentimento de seus parentes.4 Ele poderia obter terras
adicionais com renda de sua parte da terra dos parentes, caso em
que um terço seria inteiramente seu, dois terços adicionados à
sua parte da terra do grupo de parentesco. Se a compra foi feita
com renda de seu próprio esforço, metade era inteiramente dele,
se renda de suas atividades profissionais — ferreiro, poeta,
médico ou similares — dois terços. Se o grupo de parentes foi
extinto, sua terra era redistribuída dentro de um grupo de
parentes mais amplo, descendentes de um ancestral comum mais
acima na árvore genealógica.
O derbfine, como o grupo de pagadores de dia muito
maior no sistema somali, era responsável por fazer valer os
direitos de seus membros, se necessário por disputa,
compartilhando o pagamento de indenizações por seus membros
e o recebimento de indenizações a seus membros. Um resultado
dessa rede de obrigações mútuas era limitar a capacidade de um
indivíduo fazer contratos que pudessem impor custos ou
obrigações aos outros membros de seu grupo de parentesco ou
reduzir sua capacidade de cumprir suas obrigações para com
eles.
A lei de casamento reconhecia uma gama de
relacionamentos possíveis, dependendo tanto dos recursos que
cada parte trouxe para o casamento quanto do grau em que o
4Um padrão semelhante aparece em um código de lei sueco sobrevivente do
século XIII: “Ninguém pode vender terras a menos que surja uma
necessidade premente. Então ele deve informar os parentes mais próximos e
os paroquianos e membros da família, e eles devem testar a necessidade. Mas
quem der dinheiro por terras sem este teste, perderá seu dinheiro e deverá
pagar uma multa de doze marcos às autoridades e outros doze aos parentes
próximos, que invalidam o acordo.” (Peel 2009, 41).

305
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

casamento foi ou não aprovado pelos parentes da mulher.5


Quanto maior o grau em que o casamento foi aprovado pelos
parentes da esposa, mais fracos seus laços subsequentes com
eles, conforme refletido em quem ficou com quanto de seus
bens quando ela morria e quem tinha o direito de receber quanto
da multa se ela fosse morta ou obrigado a pagar quanto da multa
por seus delitos. Um homem normalmente teria uma esposa
principal, mas também poderia ter uma esposa secundária ou
concubina.
Uma mulher estava sob a autoridade primeiro de seu pai,
depois de seu marido, depois de seus filhos, e tinha direitos
muito restritos. Ela não poderia, com algumas exceções
estreitas, servir de testemunha, jurar, fazer contratos ou servir
como fiadora para garantir os contratos de outros, e ela tinha
apenas direitos limitados em relação ao controle de propriedade.
A adoção de crianças era uma prática comum que
estabelecia uma forma de pseudo-parentesco; o pai adotivo de
um homem tinha direito a uma fração do dinheiro de sangue se
seu filho adotivo fosse morto e responsabilidades relacionadas.

Status e Preço da Honra


O sistema jurídico descrito nos textos sobreviventes
incluía um elaborado sistema de status refletido no preço da
honra de cada indivíduo. O preço da honra de um indivíduo
determinava o que lhe era devido por ofensas contra ele, mas
também os limites de sua capacidade legal, incluindo o valor
pelo qual ele poderia contratar por conta própria e o peso de sua
evidência em uma disputa legal.

5Variando do casamento onde a esposa foi prometida por seus parentes até o
casamento proibido por seus parentes.

306
Direito Irlandês Antigo

As principais categorias de status eram nemed (nobres),


homens livres não nobres e não-livres. Dentro de cada uma
havia uma série de subcategorias. A classe nemed incluía reis,
senhores, clérigos e poetas — o preço de honra de um bispo ou
abade de um mosteiro importante era o mesmo da categoria
mais alta de rei. Uma categoria especial de nemed era o
hospitalário (Briugu), um homem livre suficientemente rico para
assumir a obrigação de oferecer hospitalidade ilimitada a todos
os visitantes. Fontes descrevem a posição como exigindo de
duas a cem vezes os recursos de um lorde comum.
Nemeds tinham uma variedade de privilégios legais,
limitando o grau em que os direitos legais poderiam ser
aplicados contra eles e os mecanismos para fazê-lo. Assim, o
procedimento ordinário de penhora, discutido abaixo, não
poderia ser empregado contra um nemed, embora o mecanismo
alternativo de jejum contra ele para impor uma obrigação
pudesse ser. Uma consequência das vantagens jurídicas das
pessoas de alto status, tanto pelo alto preço da honra quanto pelo
seu status de nemed, era tornar arriscada a contratação com elas,
uma vez que poderia se tornar impossível a execução do
contrato, problema apontado nas fontes da época.
A categoria de senhor dependia da posse de clientes,
homens livres que concordavam com uma relação em que o
senhor dava um adiantamento de terras e/ou ações ao cliente em
troca do cliente fornecer ao senhor aluguel de comida e alguns
serviços. Os detalhes variavam tanto com a forma de clientela,
básica ou livre, quanto com o status do cliente.
A distinção entre clientes básicos e livres, juntamente com
o status do cliente, determinava os termos do contrato, incluindo
os deveres devidos e se o feudo eventualmente se tornava
propriedade do cliente com a morte do senhor (sim se básico,

307
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

não se livre). Em todos os casos, o relacionamento pode ser


encerrado por acordo mútuo. Se um senhor desejasse demitir um
cliente básico, ele deveria compensá-lo com metade de seu
preço de honra mais o que lhe era devido pelo aluguel e
serviços; se fosse o cliente básico que desejasse rescindir, ele
devia uma penalidade substancialmente maior ao senhor. No
caso de um cliente livre, qualquer uma das partes pode encerrar
o relacionamento sem penalidade. O status do senhor dependia
do número e tipo de seus clientes.
Além de clientes livres e clientes básicos, um senhor
também pode ter dependentes de status inferior (fuidir), que não
podem fazer nenhum contrato legal sem a permissão de seu
senhor. O senhor era obrigado a sustentar o cliente, a pagar as
multas por quaisquer crimes cometidos por ele ou sua família e
o direito de cobrar as multas por crimes cometidos contra ele. O
fuidir era obrigado a realizar quaisquer tarefas que lhe fossem
atribuídas pelo senhor. Ele era, portanto, uma espécie de escravo
temporário e voluntário, livre para partir a qualquer momento,6
desde que entregasse dois terços de sua produção e não deixasse
dívidas ou obrigações para trás. Após três gerações de clientela
de um senhor, no entanto, o fuidir torna-se um senchléithe, um
cliente vinculado à terra e transferido com a terra.
A principal divisão entre os homens livres era entre o
pequeno agricultor e o agricultor forte, tendo este último
propriedades mais extensas e um preço da honra mais alto do
que o primeiro. Neste caso, como em muitos outros, não
sabemos exatamente como as categorias foram definidas. Os
textos descrevem em detalhes implausíveis quantos animais de
que tipo, que tamanho de casa e que outras posses cada
6Não é verdade, no entanto, de uma categoria inferior de fuidir, o dóerḟuidir
ou “fuidir básico”.

308
Direito Irlandês Antigo

categoria deveria possuir, mas não nos dizem quais eram os


requisitos reais.
Os dependentes, como a esposa ou os filhos de um
homem, tinham um preço da honra baseado no do homem livre
de quem eram dependentes — normalmente metade de seu
preço de honra, de acordo com pelo menos um dos textos. Um
filho que cultivava independentemente, mas nas terras de seu
pai, era algo entre um homem livre e um dependente, com seu
próprio preço da honra, mas limites à sua capacidade legal.
Entre os não-livres, as principais divisões eram entre os
semi-livres (ou “inquilinos à vontade”), que não tinham terra
própria e nenhum preço da honra independente, o servo
hereditário, que estava vinculado à terra, e o escravo. Os
escravos podem ser prisioneiros feitos na guerra, estrangeiros
apanhados por traficantes de escravos, pessoas que não pagaram
uma dívida ou multa e foram escravizadas ou os descendentes
de tais. Eles não tinham direitos legais. O mestre era responsável
pelas ofensas de seu escravo e recebia compensação por ofensas
contra seu escravo.
A classificação era em grande parte, mas não inteiramente,
hereditária e fixa. Pelo menos em teoria, um nemed que não
cumprisse suas obrigações, como um rei que exibia covardia em
batalha, poderia ser reduzido ao status de homem livre, assim
como um senhor que não conseguia manter o número necessário
de clientes. Um homem livre poderia, ao adquirir riqueza e
clientes, alcançar um status intermediário e um preço de honra
mais alto; se o filho e o neto mantivessem o cargo, o neto
poderia entrar na classe de nemed.

309
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Direito Privado
As fontes legais descrevem mecanismos para fazer e
impor contratos que não parecem depender dos tribunais reais
ou de qualquer mecanismo centralizado de julgamento e
imposição. Mas também há referências ao que parece ser ao
direito curial, lei aplicada na corte de um rei.

Contrato, Fiadores, Fianças e Penhora


O direito contratual privado dependia de um sistema de
fiadores, terceiros com direitos e obrigações vinculados ao
contrato.7 Se você me emprestar dinheiro, parte do
procedimento é concordarmos com um fiador naidm, alguém
que é testemunha do contrato e concordou em me obrigar, se
necessário pela força, a cumprir minha obrigação.8 Podemos
ainda concordar em um fiador ráth, alguém que concordou em
reembolsá-lo, com uma multa adicional de um terço do valor
devido, se, apesar do naidm, eu inadimplir — ponto em que
devo ao ráth o dinheiro que ele pagou em meu nome mais
adicionais danos. O ráth não pode ser fiador por uma quantia
maior do que seu preço da honra. Também podemos concordar
com um aitire, um fiador de refém, alguém que concorda em se
entregar a você se eu não pagar e eventualmente resgatará a si
7“Um contrato sem garantias é normalmente inexequível. No entanto, os
textos fornecem um número considerável de exceções a esta regra geral.”
(Kelly 2009, 162-3). Fiadores na lei beduína funcionam como fiadores na lei
irlandesa (Bailey 2009, 40). Sutherland (1986, 136, 295-6) descreve o uso de
garantias pelos ciganos.
8“As três funções de um naidm são definidas como 'tendo em mente [a

dívida] pela qual ele é invocado como fiador, para que nada seja acrescentado
ou subtraído dela, jurando-a sem reservas e executando-a sem negligência'”
(Binchy 1972, 361).

310
Direito Irlandês Antigo

mesmo fazendo o pagamento mais um pagamento de resgate


adicional, momento em que devo a ele por ambos mais uma
penalidade adicional que inclui o preço da honra do aitire.
Não está claro exatamente como o aitire se encaixava no
sistema, com algumas fontes sugerindo que ele era um fiador
permanente, alguém que tinha essa obrigação em relação a
pessoas específicas, como membros de seu grupo de parentesco,
em vez de alguém nomeado para ser um fiador para um contrato
específico, como parece ter sido o caso do naidm e do ráth.9
Também foi sugerido que o fiador de refém pode ter sido
associado principalmente a acordos entre reinos em vez de
acordos privados comuns.10
Além dos fiadores para garantir o cumprimento da minha
metade do contrato, são necessárias garantias adicionais para
garantir o cumprimento da sua parte, por exemplo, para evitar
que você reclame que não o paguei quando na verdade o paguei
ou, mais geralmente, para forçar você cumpra sua parte de um
contrato que envolve obrigações mútuas, como muitos fizeram.
Outro mecanismo utilizado para garantir o cumprimento
dos contratos era a entrega de fianças, reféns inanimados. Se a
parte que recebeu a fiança alegasse que a outra estava
inadimplente e a outra não estava disposta a concordar com a

9Thurneyson pensava que um giall era um fiador de refém permanente para


todas as controvérsias, originalmente para seu túath em controvérsias entre
túaths e talvez mais tarde também para seus parentes, enquanto um aitire era
um fiador de refém designado para uma única transação. (Stacey 1994, 83).
10Stacey argumenta que o Giall pode ter sido quase exclusivamente para

disputas inter-túath e poderia ter sido uma pessoa importante como o tanist, o
herdeiro do rei, e que o papel exato do aitire não é claro. Se ele era fiador de
contratos privados, pode ter sido como fiador permanente, não nomeado para
a transação específica, talvez para lidar com coisas como processos de tort
por ferimentos. (Stacey 1994, 82-111).

311
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

arbitragem, a fiança seria perdida. Exatamente o que conta como


um acordo legítimo de arbitragem não é claro. Pode ter sido
definido como concordar em aceitar alguém considerado
qualificado para ser um juiz, que era uma profissão reconhecida.
A mesma questão surge no contexto da penhora, discutido
abaixo, onde as consequências legais novamente dependiam de
uma parte aceitar ou não a arbitragem.
Em alguns casos, um contrato era vinculado por uma troca
mútua de fianças. Isso levanta um quebra-cabeça; se você
alegasse que eu havia ficado inadimplente e confiscado minha
fiança, eu poderia responder confiscando a sua? Uma resposta
possível é que, como no caso de reféns em geral,11 a fiança era
algo de mais valor para a pessoa que a deu do que para a pessoa
que a detinha, portanto, a perda mútua poderia deixar ambas as
partes em pior situação. Isso se encaixa em algumas descrições
nas fontes de que tipo de coisas eram adequadas para fianças,
mas não todas. Possíveis fianças incluíam uma arma de campeão
e uma agulha de bordadeira, mas também gado, cavalos, chifres
de beber,…
A liberdade de contrato dentro do sistema era limitada
pela rede de obrigações mútuas. Já vimos uma situação
semelhante no contexto da lei judaica — um devedor cuja terra
garantia sua dívida não estava totalmente livre para vender a
terra, pois se ele não pagasse, o credor poderia cancelar a venda
e confiscar a terra. No sistema irlandês, restrições semelhantes
aparecem em vários casos. Um filho era obrigado a sustentar seu
pai idoso, então um pai poderia, em algumas circunstâncias,
cancelar um contrato feito pelo filho que poderia reduzir sua
capacidade de fazê-lo. Por razões semelhantes, um filho
obediente poderia rescindir os contratos desvantajosos de seu
11Discuto o uso de reféns para imposição de contratos em Friedman 2005.

312
Direito Irlandês Antigo

pai. Marido e mulher tinham obrigações mútuas que davam a


cada um o direito de rescindir alguns contratos pelo outro, com
os detalhes dependendo em parte da natureza de seu casamento.
Se fosse um casamento em bens comuns, o que significa que
marido e mulher haviam contribuído com quantias comparáveis
dos bens que sustentavam o casal, qualquer um dos cônjuges
poderia rescindir os contratos do outro, com exceção de um
contrato que fosse claramente benéfico e, portanto, não
representasse nenhum risco para o outro parceiro. Se fosse um
casamento na propriedade do marido, o marido poderia cancelar
os contratos de sua esposa, sua esposa principal poderia cancelar
seus contratos desvantajosos, uma esposa de status inferior
apenas seus contratos relativos a alimentos, roupas, gado e
ovelhas. Se fosse um casamento na propriedade da esposa, a
situação jurídica se invertia.
As obrigações mútuas dentro do derbfine impunham um
conjunto semelhante de restrições. Um contrato que pudesse
ameaçar a propriedade do grupo de parentesco, como adoção
por parentes ou doação de terras, poderia ser anulado pelo grupo
de parentesco.12 Um contrato que não ameaçasse diretamente a
propriedade, mas pudesse impor obrigações aos parentes,
poderia ser contestado , após o que os parentes não seriam
responsáveis pelos pagamentos devido à inadimplência do
principal.13 Na ausência de tal objeção, os parentes
funcionavam, até certo ponto, como fiadores ráth involuntários;
uma situação semelhante poderia existir entre senhor e cliente.

12Não está claro como as decisões para o grupo de parentes foram tomadas,
possivelmente por um indivíduo selecionado de alguma forma para
representar os outros membros.
13Stacey 1994, 67.

313
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Da mesma forma, parentes e senhores podem, em algumas


circunstâncias, funcionar como fiadores naidm não nomeados.
Se uma parte acabasse com uma obrigação não cumprida
para com outra, havia um procedimento formal, penhora, pelo
qual ela poderia ser forçada a cumpri-la. O requerente entrou na
propriedade do réu com testemunhas adequadas para anunciar
sua reivindicação. O réu então tinha um prazo fixo para
responder cumprindo a obrigação ou concordando com a
arbitragem. Se não o fizesse, havia uma segunda entrada e,
depois de mais algum tempo, uma terceira. Nesse ponto, o
requerente tinha o direito de apreender o gado do réu e movê-lo
para um local seguro. Se a reivindicação não fosse satisfeita e a
arbitragem não acordada, o gado seria perdido um a um ao
longo do tempo.14
Havia um procedimento diferente se o réu fosse um
nemed: jejum, que parece ter sido uma espécie de greve de fome
ritualizada. Os detalhes não são claros, mas aparentemente o
queixoso jejuava fora da casa do nemed, possivelmente do pôr
do sol ao nascer do sol, o que cobriria a refeição principal da
noite. Enquanto o jejum continuasse, o nemed não tinha o direito
de comer até que tivesse satisfeito a reivindicação, dando uma
fiança ou nomeando um fiador ráth; se ele comesse sem fazê-lo,
devia uma indenização em dobro. Nesse caso, em algum
momento após o jejum, o requerente tinha o direito de penhorar
propriedades para satisfazer sua reivindicação.

14Esteé um relato simplificado — os detalhes da penhora variavam de acordo


com as circunstâncias e havia diferentes mecanismos usados para impor uma
obrigação a um profissional, como o de impedi-lo simbolicamente de exercer
sua profissão até que a obrigação fosse cumprida. Veja Kelley 2009, 177-
182.

314
Direito Irlandês Antigo

Crimes, Pagamento por Danos e Disputas


O sistema irlandês para lidar com crimes como roubo,
assalto ou assassinato era, como o sistema islandês, baseado em
disputass e pagamentos por danos. Em ambos, esperava-se que
os crimes fossem abertos e não ocultos.15 Na Islândia, o
assassinato secreto era considerado vergonhoso e eliminava
possíveis defesas legais; na Irlanda, dobrava o pagamento por
danos devidos.
Assim como na Somália, havia uma coalizão preexistente
responsável tanto por perseguir disputas em nome de um
membro prejudicado quanto por auxiliar no pagamento de danos
devido por um membro — no caso irlandês, o grupo de
parentesco. O wergeld islandês, como o diya na lei muçulmana e
somali, era uma quantia fixa pela morte devida aos herdeiros da
vítima. No sistema irlandês, a multa era uma quantia fixa pela
vida da vítima, a mesma quantia para todos os homens livres,16
mais pagamentos a seus parentes baseados em cada caso no
preço de honra do parente e na proximidade do relacionamento.
O pagamento ia para os parentes paternos e maternos e também
para os adotivos, não se limitando ao derbfine. Até e a menos
que o pagamento fosse feito, os parentes da vítima tinham o

15Verdadeiro também para o sistema de disputa do norte da Albânia,


conforme descrito em Fox 1989, 164.
16Isso ia para os parentes, exceto que um terço dele poderia ir para alguém de

fora dos parentes cuja assistência havia sido necessária para cobrar a
reivindicação, como um senhor intervindo em nome de um cliente incapaz de
fazer valer sua reivindicação por conta própria.

315
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

direito de manter o assassino prisioneiro aguardando o


pagamento, matá-lo ou vendê-lo como escravo.17
Outra característica que o sistema irlandês compartilhava
com o somali era a instituição de assistência de doentes. De
acordo com a lei irlandesa, a parte responsável por uma lesão
ilícita era obrigada a manter a vítima no estilo a que seu posto
lhe dava direito, incluindo uma comitiva apropriada de
atendentes, para fornecer serviços médicos e fornecer-lhe um
ambiente adequado para um inválido — sem barulhos altos ou
crianças brincando em casa. A obrigação começava nove dias
após a lesão, até o momento em que ele era cuidado por seus
parentes, e continuava até que ele fosse curado. De acordo com
pelo menos uma fonte, a prática foi abandonada bem cedo em
favor de uma penalidade monetária. Além disso, a pessoa
responsável pela lesão devia um pagamento por danos com base
na gravidade da lesão e no preço da honra da vítima.
Os celtas, ao longo de sua história, ocuparam muitos
lugares diferentes, mas é difícil acreditar que chegaram até o
chifre da África, de modo que as semelhanças entre as
instituições irlandesas e somalis são presumivelmente exemplos
de evolução legal paralela — ou, apenas possivelmente,
descendência comum de algum sistema legal no passado muito
distante. Para uma terceira semelhança, considere que um
esporte favorito de ambas as culturas parece ter sido o lace de
gado — no caso da Somália, camelos.

17Gragas descreve um sistema semelhante de pagamentos pelos parentes de


um infrator aos parentes correspondentes da vítima, mas não consegui
encontrar nenhuma referência a ele nas sagas islandesas e pode não ter feito
parte da lei real na prática.

316
Direito Irlandês Antigo

Justiça Curial
A discussão até agora tem se concentrado no sistema de
direito privado. Fica claro pelas referências no texto que os reis
tinham tribunais e que alguns casos iam para esses tribunais,
embora não esteja claro quais casos foram para lá ou em que
grau a divisão de autoridade mudou ao longo do tempo. É
possível que o tribunal do rei fosse apenas para casos em que o
rei era parte ou que fosse o tribunal de um rei superior
resolvendo disputas entre os reis súditos a ele ou entre seus
súditos. Alternativamente, as referências podem refletir uma
mudança ao longo do tempo de mecanismos privados para
curiais para a aplicação da lei.
A partir de fontes não jurídicas, parece que, na época em
que os livros de direito foram escritos, houve uma mudança
substancial de autoridade dos reis locais do túath para os reis
provinciais, uma mudança amplamente ignorada no material
jurídico. O material de direito privado pode ser um resquício de
um período anterior retido devido à natureza conservadora da
erudição jurídica, que frequentemente incluía no texto versos
mais antigos sobre a lei. Robin Stacey sugeriu que as
declarações sobre procedimentos judiciais podem ter
representado uma tentativa de colocar os procedimentos de
direito privado existentes sob a autoridade da classe jurista,
possivelmente associados ao aumento do poder real.18

Procedimento do Tribunal
Havia juízes profissionais e advogados profissionais,
ambos desempenhando um papel em um julgamento. De acordo

18Stacey 1994, capítulo 5.

317
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

com uma descrição detalhada de um tribunal, os participantes


incluíam rei provincial, reis superiores, bispo, poeta principal,
fiadores, reféns, testemunhas, juízes, litigantes e advogados.
Esta não pode ser uma descrição de todos os julgamentos, já que
a maioria não incluiria um rei provincial e reis superiores e
mesmo em um reino de três mil pessoas, o rei e todas as pessoas
importantes ao seu redor não estariam presentes em todos os
julgamentos. Pode ser uma versão idealizada do processo
judicial mais elaborado que o autor poderia imaginar. Mas
sugere que houve um procedimento envolvendo um juiz e um
rei, embora não deixe claro qual o papel do rei na determinação
do veredito.
Tanto juiz quanto advogado eram profissões reconhecidas;
embora cada rei devesse ter um juiz, não há nenhuma sugestão
de que cada juiz estivesse ligado a um rei. Pode ser que alguns
tipos de julgamentos fossem realizados em um tribunal real com
a participação do rei e do juiz do rei, enquanto outros envolviam
apenas o juiz (ou juízes — para um caso importante, poderia
haver mais de um), fiadores, testemunhas e espectadores.
O primeiro passo em um caso legal era o queixoso
anunciar publicamente que um delito havia sido cometido. Uma
vez iniciado o caso, cabia ao advogado contratado do queixoso
decidir qual dos vários procedimentos legais possíveis seguir.
O próximo passo era o queixoso e o réu darem a cada um
uma fiança ou um fiador, dependendo do caminho escolhido,
para garantir que ele cumpriria o veredito. O juiz também era
obrigado a dar uma fiança — cinco onças de prata — em apoio
ao seu julgamento e devia uma multa de oito onças se deixasse
um caso indeciso. Um juiz que agisse injustamente, por
exemplo, dando um veredicto depois de ouvir apenas um lado
do caso, perdia seu preço da honra e sua posição como juiz; tal

318
Direito Irlandês Antigo

erro de justiça também deveria trazer punição sobrenatural para


o túath onde ocorreu.
O advogado de cada parte ofereceria então o argumento de
seu lado; presumivelmente, testemunhas também
testemunhariam nesse ponto. Cada advogado poderia então
refutar os argumentos do outro, após o que o julgamento seria
dado e anunciado publicamente.
Como na lei judaica e islâmica, o procedimento legal pode
incluir juramentos; em algumas circunstâncias, alguém acusado
de um delito poderia se defender jurando afastar a acusação. Da
mesma forma, esperava-se que as testemunhas apoiassem seu
depoimento por meio de juramento e um juiz era obrigado a
jurar dizer a verdade.
Na lei irlandesa, a força de um juramento estava ligada ao
preço da honra da pessoa que o jurava; um indivíduo de status
mais alto poderia jurar por cima de um indivíduo de status
inferior. Isso parece implicar que uma acusação juramentada por
um inferior contra um superior poderia ser cancelada pelo
superior que a jurasse por cima, que no caso oposto a acusação
do superior permaneceria apesar do juramento do inferior em
contrário, e que um superior poderia refutar o testemunho de um
inferior em um caso contra um terceiro juramento por cima. Se
essa leitura estiver correta, não é de surpreender que a literatura
contenha advertências sobre o risco de emprestar dinheiro ou de
outras formas contratar com alguém de status superior,
especialmente um rei.
Era possível que o juramento de uma das partes em um
caso fosse suportado pelo juramento de outra pessoa, até o valor
de seu preço da honra. Não está claro se os preços da honra dos
dois juramentos eram adicionados, tornando possível para duas
pessoas de status inferior jurar por cima de um de status

319
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

superior, ou se o juramento combinado tinha o peso do preço da


honra de qualquer um dos dois de status superior. Alguém que
prestasse falso testemunho em um caso deveria perder seu preço
da honra; não está claro como sua culpa seria determinada.
Os direitos das mulheres, neste contexto como em outros,
eram severamente limitados. Seu juramento era aceitável apenas
para assuntos dos quais elas eram a única testemunha provável.
Assim, por exemplo, um item na pensão por doença pode ser
que a parte lesada tenha se separado de sua esposa durante seu
período fértil, portanto incapaz de permitir que ela concebesse; o
testemunho da esposa seria aceito quanto ao período fértil dela.
Isso é semelhante à restrição de mulheres como testemunhas na
lei islâmica, mas provavelmente mais restrita.
Se o juiz em um caso fosse incapaz de determinar qual
parte estava certa, talvez porque não houvesse testemunhas ou
os juramentos de ambos os lados estivessem equilibrados, o
veredito poderia ser produzido por um processo aleatório ou por
uma provação. Se, por exemplo, se soubesse que um dos
animais de um rebanho provocou um dano, mas não qual desses
animais, um deles seria selecionado aleatoriamente e seu dono
seria responsabilizado pelos danos. Como em outros sistemas
jurídicos antigos, alguém acusado de um delito podia se oferecer
para provar sua inocência submetendo-se a uma provação, como
mergulhar a mão em água fervente. Se depois disso a mão
mostrasse marcas de queimaduras, o réu era considerado
culpado, se não, inocente.19
Uma disputa também podia ser resolvida por um duelo
formal, análogo ao holmgang nórdico. Os termos tinham que ser
acordados por ambas as partes e confirmados por fiadores de

19Veja Leeson 2012a.

320
Direito Irlandês Antigo

ambos os lados. Como no caso nórdico, o duelo não tinha que


ser até a morte.20
Uma fonte descreve cinco procedimentos diferentes pelos
quais um caso podia ser processado, com diferentes casos
alocados, por motivos não totalmente explicados, a diferentes
procedimentos. Não está claro se a descrição se aplicava a todos
os casos, alguns casos, ou se era um padrão que o autor estava
tentando impor a um sistema estruturado com menos precisão.

Conclusão
Como espero que este breve relato deixe claro, a
legislação irlandesa antiga era um sistema elaborado e
sofisticado sobre o qual temos informações muito imperfeitas.
Seu principal interesse para mim é a forma como os contratos
foram executados e os delitos tratados em um sistema de justiça
descentralizado e privado. Um de seus enigmas é a relação entre
esse sistema e o sistema de justiça curial, administrado sob a
autoridade de pelo menos reis locais.

20Para uma discussão sobre o holmgang, veja Radford 1989.

321
13
Comanches, Kiowa e
Cheienes: Os Índios
das Planícies
Os modernos costumam ver as sociedades primitivas
como tendo seguido o mesmo padrão de vida século após
século. Se eles fossem capazes de mudar, certamente teriam
progredido, se tornado mais parecidos conosco, deixado de ser
primitivos. Os índios das planícies fornecem um notável
contraexemplo. Seu estilo de vida imemorial era uma invenção
totalmente nova quando os europeus entraram em contato
substancial com eles.
A razão pela qual foi uma nova invenção é que caçar
búfalos a cavalo requer cavalos. Não havia cavalos na América1
até que os espanhóis os trouxessem e nenhum disponível para os
índios norte-americanos até que tivesse passado tempo
suficiente para que os cavalos que escaparam dos espanhóis se
multiplicassem na selva e se espalhassem pelo Norte.
Diante de uma súbita oportunidade de progresso, a chance
de parar de cavar a terra como agricultores primitivos e se
transformar em nobres selvagens caçando búfalos, vivendo em
tipis e provando sua masculinidade fazendo guerra umas contra
as outras, as tribos indígenas que vivem nas ou perto das
Grandes Planícies aproveitaram a oportunidade. O resultado foi
1Os cavalos foram extintos junto com uma série de outras megafaunas do
Novo Mundo há cerca de 10.000 anos, possivelmente devido à caça
excessiva por humanos.

323
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

o desenvolvimento, no século XVIII, de uma cultura material


comum compartilhada por tribos de origens bastante diferentes.2
Dependia do cavalo, mas também fazia bom uso do rifle, tendo
sido os rifles inicialmente fornecidos pelos ingleses às tribos
dispostas a lutar contra as tribos aliadas aos franceses e pelos
franceses às tribos dispostas a lutar contra as aliadas dos
ingleses.
Neste capítulo, discutirei o que se sabe sobre os sistemas
jurídicos de três das tribos. Minhas principais fontes são um
capítulo de E. Adamson Hoebel3 cobrindo todas as três, dois
livros sobre os cheienes, um de Karl Llewellyn e Hoebel4 e um
de George Bird Grinnell,5 e um livro sobre os comanches de
Ernest Wallace e Hoebel.6

Comanches
“Uma vez havia um bando de comanches procurando
encrenca.”7

Começo com os comanches; seu governo é o mais simples


das três para descrever, já que eles não tinham um. Um chefe de
guerra comanche era simplesmente um empresário, um
2Meu relato é um tanto simplificado. O explorador espanhol Francisco
Vásquez de Coronado descreveu o apache que observou em 1541 como tendo
algumas das características das tribos das planícies posteriores, incluindo
tipis, embora ainda não tivessem adquirido cavalos.
3Hoebel 1954.
4Llewellyn e Hoebel, 1941.
5Grinnell 1923.
6Wallace e Hoebel 1952. Também examinei dois relatos muito anteriores dos

comanches, Lee 1859 e Neighbours 1853.


7O início usual de um relato por um informante comanche, de acordo com

Hoebel.

324
Comanches, Kiowa e Cheienes

guerreiro que anunciava sua intenção de roubar cavalos dos


mexicanos, americanos ou de alguma outra tribo e convidava
qualquer pessoa interessada a acompanhá-lo. Dentro do grupo
de guerra ele tinha domínio absoluto, mas qualquer um que
estivesse insatisfeito com a situação era livre para sair.8 Um
chefe de paz comanche era simplesmente um indivíduo que os
outros estavam dispostos a seguir. Se ele escolhesse ir para um
lado e o resto do bando para outro, ele não era mais um chefe de
paz.
Além dos chefes de paz e chefes de guerra, havia também
um conselho. Conforme descrito por Wallace e Hoebel:

Em teoria, pelo menos, o conselho era supremo, mas suas


decisões muitas vezes eram indefinidas. Geralmente a
maioria fazia pouco esforço para impor sua vontade à
minoria, pois, como na maioria das tribos indígenas,
pensava-se que o acordo deveria ser unânime. O
“conselho” era composto por todos os velhos da tribo que
haviam demonstrado habilidade excepcional como
guerreiros, líderes ou guias. Assim como na seleção dos
chefes, não havia procedimento formal de admissão; um
indivíduo “assumiu tal posição" por causa de sua
conquista.9

Os comanches, em outras palavras, eram anarquistas. Seu


sistema social incluía instituições de coordenação no nível do

8Os comanches também usavam o termo “chefe de guerra” para o indivíduo


dentro de cada bando reconhecido como o “chefe de guerra líder”. (Wallace e
Hoebel 1952, 216).
9Wallace e Hoebel 1952, 213.

325
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

bando individual, mas nada que reconhecêssemos como um


governo sobre o bando ou sobre toda a tribo.10
Um dos problemas que preocupa os anarquistas modernos
é como defender uma sociedade anarquista contra estados
adjacentes, dada a dificuldade de formar e financiar um exército
sem convocação, impostos, obrigações feudais ou algo
parecido.11 Os comanches inverteram a situação, levantando o
problema de defender estados adjacentes, e qualquer outra
pessoa na vizinhança, deles. Eles expulsaram os apaches das
planícies do sul, invadiram os mexicanos em busca de cavalos e
escravos e, apesar da desvantagem de menor tecnologia e
população menor, bloquearam a expansão americana no Texas
por décadas, ganhando o título de espartanos das planícies.
Enfrentando um inimigo esmagadoramente superior, eles

10“Nenhuma ação individual é considerada crime, mas todo homem age por
si mesmo de acordo com seu próprio julgamento, a menos que algum poder
superior, por exemplo, o de um chefe popular, exerça autoridade sobre ele.”
(Neighbors 1853, 131). “O homem cujo conselho foi seguido com mais
consistência era um chefe de paz de seu grupo.” Como disse um informante
comanche, em resposta à questão de como os chefes de paz foram escolhidos:
“Ninguém o nomeou como tal; ele simplesmente assumiu tal posição.”
(Wallace e Hoebel 1952, 211). Lee, que foi cativo por três anos, descreve um
sistema um tanto mais organizado, escrevendo (1859, 70) sobre seu primeiro
dono: “Ele era o chefe civil distinto do chefe guerreiro e, consequentemente,
o cabeça da tribo. Essa dignidade trazia consigo o privilégio de possuir
quatro esposas, sendo permitido ao índio comum apenas uma, aos oficiais
subordinados duas e ao chefe de guerra três.” Mas Neighbors escreve que “a
poligamia é praticada em grande escala, alguns chefes tendo mais de dez
esposas, […].” Presumivelmente, Lee estava generalizando a partir de suas
observações de um ou mais dos bandos em que participou. Não está claro se
ele aprendeu a língua comanche; ele pode ter se comunicado com seus
captores em espanhol, um idioma que alguns deles provavelmente sabiam.
11O problema é discutido em Friedman 2014, capítulos 34 e 56.

326
Comanches, Kiowa e Cheienes

acabaram sendo derrotados, mas somente depois de uma luta


impressionante.
Parte do motivo, visto da perspectiva de um economista, é
que eles transformaram a guerra em um bem privado e não
público. Durante a maior parte de sua história, o incentivo para
lutar não foi o bem-estar da tribo, mas do guerreiro individual.
Incursões bem-sucedidas produziam saques valiosos. Lutas
heroicas e bem-sucedidas produziam status.
Uma maneira de obter status era roubar cavalos de
forasteiros. Outra era enfrentar outro guerreiro comanche. A
oportunidade de fazê-lo foi proporcionada pela prática comum
de roubo de esposas.
O vínculo mais forte dentro da tribo era entre irmãos que,
entre outras coisas, compartilhavam suas esposas e tinham o
poder de casar suas irmãs.12 Do ponto de vista do irmão, o
cunhado ideal era um guerreiro rico e bem-sucedido. A irmã
pode preferir alguém no início de sua carreira, mais jovem e
mais bonito — e, se tiver oportunidade, deixar o marido
escolhido para ela por seus irmãos para fugir com um deles. O
incentivo do ladrão de esposas era menos a posse da esposa do
que a oportunidade de enfrentar o marido.
O roubo de esposas era feito abertamente, então a culpa
não era um problema. A compensação era. Esperava-se que o
marido confrontasse o ladrão de esposas e exigisse uma
compensação generosa, sendo o valor uma função crescente da
riqueza do ladrão e da bravura do marido, uma função
decrescente da bravura do ladrão. Não havendo governo para
aplicar a lei (não escrita), a ameaça que respaldava a demanda
era o uso privado da força. Pague ou eu vou te matar.
12De acordo com Hoebel, mas Neighbors escreve: “Os pais exercem total
controle ao dar suas filhas em casamento, […]” (Neighbors 1853, 132).

327
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A execução dessa ameaça não era desejada nem provável,


pois se o marido matasse o ladrão (ou vice-versa), os parentes da
vítima se vingariam matando o assassino.13 O resultado
pretendido da ameaça era iniciar o jogo que os economistas
chamam de monopólio bilateral, um jogo de barganha em que as
partes têm um interesse comum na resolução de sua disputa,
mas um conflito sobre os termos, neste caso sobre quanto será
dado em compensação ao marido injustiçado.
E se o ladrão fosse claramente o homem mais perigoso
dos dois — o que não é improvável, já que um homem prudente
em busca de status preferiria não roubar de um marido muito
capaz? O marido tinha a opção de chamar seus irmãos ou outros
parentes para apoiar suas ameaças. O ladrão, tendo
desencadeado o conflito para provar seu status, não tinha essa
opção — pedir ajuda seria admitir que ele havia mordido mais
do que podia mastigar e, além disso, ele estava no que todos
viam como o lado errado da lei. Então, nesse ponto, o ladrão
recua e concorda em pagar danos substanciais, indo não para o
marido, mas para seus ajudantes.
E se o marido não tivesse irmãos? Sua opção então era
encontrar um campeão, um guerreiro valente, generoso e bem
pensado, disposto a assumir o caso e enfrentar o ladrão. Desta
vez, o pagamento dos danos ia para o marido. O pagamento do
campeão era o status conquistado por sua disposição de se
arriscar na defesa do certo e seu sucesso em obrigar outro
guerreiro a recuar. O mesmo padrão aparece em algumas das

13“Os laços de consanguinidade são muito fortes, não apenas no que diz
respeito às suas relações de sangue, mas estende-se às relações por
casamento, etc., que são considerados e geralmente chamados de ‘irmãos’ —
todas as ofensas cometidas contra qualquer membro, são vingadas por todos,
ou qualquer membro relacionado com a família.” (Neighbors 1853, 131).

328
Comanches, Kiowa e Cheienes

sagas islandesas, onde um valentão que confia demais na força


dele e de seus amigos para deixá-lo violar os direitos dos
homens mais fracos é derrubado por alguém ainda mais
formidável para estabelecer seu próprio status.14
Além dos casos de roubo de esposas, também houve casos
de adultério. O padrão era o mesmo, exceto que poderia haver
uma questão de culpa. Se o réu negasse, o caso era encerrado, a
menos que houvesse prova de culpa disponível.
Casos de roubo de esposas e adultério parecem ter sido a
coisa mais próxima de disputas legais entre os comanches. No
que diz respeito aos conflitos entre marido e mulher, mais
prováveis de ocorrer quando o marido suspeitava de adultério, o
marido tinha carta branca, até matar a esposa ou torturá-la para
torná-la sua amante. Uma resolução possível era a esposa jurar
pela terra e pelo céu que ela era inocente, momento em que o
marido aceitava o juramento na crença de que se ela estivesse
mentindo, a terra e o céu acabariam por matá-la. A mesma
abordagem foi usada para resolver algumas outras disputas,
como divergências sobre qual membro de um grupo de guerra
contou com golpe em um inimigo ou capturou um determinado
cavalo e, da mesma forma, em alguns casos em que um homem
acusado de sedução o negou. No que diz respeito a roubos
menores, os comanches, como as outras duas tribos que
discutirei, consideravam tais assuntos como abaixo da atenção
de um guerreiro. Como diria um cheiene, “se você tivesse
pedido, eu teria dado a você”.

14A Saga de Hrafnkel fornece um exemplo. “Muitas pessoas ficaram


satisfeitas, apesar de Hrafnkel ter acabado sendo humilhado. Eles se
lembraram de que Hrafnkel tratou muitas pessoas injustamente.” (Hreinsson
1997, 5: 272).

329
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Essa atitude, bem como outras características do


comportamento dos índios das planícies, sugere uma
característica importante dessas sociedades — em seus próprios
termos, eles eram ricos. Os homens frequentemente tinham mais
cavalos do que eles próprios precisavam e, portanto, eram livres
para usar o excedente para provar sua generosidade, doando
alguns. Em um ambiente incerto, eles corriam o risco de morrer
de fome durante o inverno. Mas a forma mais importante de
riqueza portátil, na verdade autoportátil em quatro pernas, era
abundante.15
E quanto ao assassinato? Como já mencionado, uma
primeira morte exigia uma segunda, do assassino pelos parentes
de sua vítima. Nesse ponto o assunto acabou. A segunda morte
foi justificada pela primeira e, portanto, não exigia mais
vingança.16 Para esses propósitos, matar um cavalo favorito,
considerado como tendo uma alma, contava como assassinato e
assim justificava a morte do humano responsável por vingança.
Uma exceção à regra de uma vida por uma vida ocorreu
no contexto da feitiçaria. Esperava-se que todo homem
comanche em algum momento partisse em uma jornada de
iluminação e acabasse com algum tipo de poder mágico,
normalmente restrito por um tabu cuja violação poderia custar
sua vida. Na maioria das vezes, esse poder era usado para o bem
da tribo e do indivíduo, mas havia “curandeiros cruéis”,
indivíduos com uma parcela maior do que o normal de poder
mágico e uma inclinação para usá-lo mal, às vezes letalmente.

15“Pela liberalidade com que dispõem de seus bens em todas as ocasiões do


gênero, induziria à crença de que adquirem bens meramente com o propósito
de doá-los a outros.” (Neighbors 1853, 134).
16Wallace e Hoebel 1952, 233.

330
Comanches, Kiowa e Cheienes

O primeiro recurso se alguém estava morrendo de


feitiçaria era conseguir um bom curandeiro para curá-lo. Se isso
falhasse, o próximo passo era confrontar o feiticeiro considerado
responsável e tentar fazê-lo parar o que estava fazendo. Se isso
falhasse, no entanto, não havia obrigação de matar o feiticeiro,
possivelmente porque fazê-lo era visto como muito perigoso,
possivelmente porque nesse caso, ao contrário de um assassinato
comum seguido de vingança, poderia haver um sério risco de
culpar o homem errado.

O feiticeiro que manteve sua inocência, quando


ameaçado com a força, em cada caso registrado
imediatamente evitou outras medidas legais ao entregar
todo o caso para julgamento sobrenatural. Ele jurou sua
inocência com uma maldição condicional. Se ele fosse
culpado, seria morto pelo poder do Sol e da Terra. Se ele
sobrevivesse, sua inocência era aceita como provada.
(Wallace e Hoebel 1952, 239)

E se se acreditasse que um determinado curandeiro ruim


era responsável por várias mortes? Nesse ponto, os comanches
fizeram uso da coisa mais próxima que sua sociedade tinha do
direito penal. O resto da tribo se reunia, concluía que o
indivíduo culpado deveria morrer e o matava ou o enganava
para que violasse seu próprio tabu e morresse.

Os Kiowa
Os kiowa, embora em alguns aspectos semelhantes aos
comanches, tinham algo um pouco mais próximo de um governo
e muito mais próximo de um sistema de classe/ranque bem
definido. Este último consistia em quatro classes. Os onde eram
os guerreiros de alto status, suficientemente altos para não

331
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

precisarem demonstrar mais sua coragem ou destreza; estima-se


que tenham sido no máximo dez por cento dos homens. Os
ondegupta eram os aspirantes a onde, os agressivos guerreiros
promissores tentando estabelecer sua reivindicação à categoria
superior. Não é de surpreender que os ondegupta fossem a
principal fonte de conflito dentro da tribo, pois eles, como seu
equivalente comanche, tentavam ganhar status. Abaixo deles
estavam os homens comuns e abaixo destes os dapom, a escória
da sociedade, funcionando como parasitas dos kiowa mais
importantes e pequenos ladrões tolerados.
Os bandos kiowa tinham chefes reconhecidos, quase todos
de ranque onde, que na prática tomavam decisões importantes
para o bando. Os chefes de guerra kiowa, como os chefes de
guerra comanche, eram os líderes dos grupos de guerra.
Além desses, havia dez guardiões de feixes de remédios,
amuletos tribais com poder mágico e um guardião do amuleto da
Dança do Sol, como tal, o grande chefe nominal da tribo, todos
os quais desempenhavam um papel importante na resolução de
disputas. Um ondegupta que alegava ter sido injustiçado por
outro fez um grande show de ameaça de uma resposta violenta,
enquanto se deixava ser impedido pelos espectadores de
realmente fazer qualquer coisa até que um dos dez portadores de
pacotes de remédios aparecesse com seu cachimbo, pedindo-lhe
para aceitar um acordo pacífico com compensação adequada.
Normalmente a oferta era aceita. Caso contrário, um segundo
portador do pacote de remédios apareceria e, se necessário, um
terceiro e um quarto. Acreditava-se que a recusa do quarto
significava morte por ação sobrenatural.
Ambos tentavam demonstrar sua coragem e determinação,
com o risco de que o blefe se tornasse realidade. Se alguém
fosse morto, o assassino poderia ser morto em retaliação pelos

332
Comanches, Kiowa e Cheienes

parentes de sua vítima ou eles poderiam aceitar uma


compensação, o equivalente ao wergeld islandês ou os
pagamentos que expiavam a morte sob a lei islâmica ou entre os
somalis. Acredita-se que o homem que matou se tornava
azarado como resultado, tal como um assassino na antiga
Atenas, mas sua presença não poluía a tribo, como acontecia
com os cheienes.
Além dos guardiões dos pacotes de remédios, os kiowa
tinham fraternidades militares, mais ou menos semelhantes às
dos cheienes.

Os Cheienes
Das três tribos, talvez de todos os índios das planícies, os
cheienes foram os que mais se aproximaram de um governo —
parte do ano. A tribo inteira, possivelmente até quatro mil
pessoas, reunia-se em um único acampamento no verão, quando
a comida era abundante. Durante o inverno, a tribo se separava
em bandos muito menores e se dispersava em busca de caça.
O acampamento de verão era o local do Conselho dos
Quarenta e Quatro, o governo, ou talvez o governo nascente, da
tribo. Era um corpo que se autoperpetuava; como os membros
originais foram escolhidos não é conhecido. A cada dez anos, o
Concílio era renovado. Cada membro existente escolhia um
sucessor, geralmente de seu próprio bando. Um chefe não
poderia suceder a si mesmo, mas poderia ser mantido no
Conselho se outro chefe estivesse disposto a nomeá-lo como seu
sucessor.
Havia quatro chefes sacerdotes entre os quarenta e quatro,
cada um associado a um poder sobrenatural, e além dos quarenta
e quatro havia um guardião do doce remédio, o mais importante

333
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

dos amuletos tribais. Quando o conselho era renovado, cada


chefe dos sacerdotes escolhia seu sucessor.17 Se um chefe dos
sacerdotes morria, seu sucessor era escolhido pelos outros. Os
quarenta chefes restantes, de acordo com Grinnell, consistiam
em quatro de cada um dos dez bandos em que a tribo estava
dividida. Não está claro como a autoridade era dividida entre os
quatro chefes sacerdotes e os quarenta chefes ordinários,
17De acordo com Llewellyn e Hoebel (1941, 78), ele normalmente não
escolheria seu filho como sucessor. De acordo com Grinnell (1923, 340), por
outro lado, “qualquer um dos quatro principais chefes da tribo pode, no final
do período de dez anos, escolher seu próprio sucessor e, assim, nomear seu
próprio filho para acompanhá-lo ao final de seus dez anos de mandato. […].
Assim, em certo sentido, o cargo de chefe principal era hereditário.” De
acordo com Llewellyn e Hoebel (1941, 75), o sucessor era escolhido entre os
chefes do conselho que estavam se aposentando. No entanto, eles também
escrevem: “Mas um chefe soldado nunca teve permissão para ser um chefe
tribal ao mesmo tempo. Quando um chefe soldado foi selecionado pelo
Conselho tribal para ocupar o lugar de um chefe falecido […]”, o que implica
que alguém que não um dos quarenta poderia ser selecionado para ser um dos
quatro chefes principais. De acordo com Grinnell (1915, 341): “Se, como
frequentemente acontecia, um chefe principal morresse ou renunciasse e não
nomeasse alguém para ocupar seu lugar, seu sucessor poderia ser escolhido
entre os quarenta e quatro chefes, mas era tão provável de ser selecionado
entre os bravos da tribo que não pertenciam a este conselho.” Ele não diz se
um chefe principal que escolhia seu próprio sucessor ficava restrito a
escolher entre os chefes existentes. Dorsey (1905, 14) escreve: “Depois disso,
um dos quatro curandeiros, o profeta dos velhos tempos, dirige-se aos
quarenta chefes recém-nomeados. Ele diz algo assim: “Agora, vocês que
estão aqui foram designados como chefes para cuidar do bem-estar de todos
os homens, mulheres e crianças, mas para se comportarem de maneira
ordenada, vocês, novos chefes, devem selecionar quatro homens dentre esses
chefes antigos para serem seus conselheiros e líderes. Esses quatro ex-chefes
que você nomeará serão seus conselheiros.” Seus “quatro curandeiros” ou
“quatro ex-chefes” são o que minhas outras fontes chamam de quatro
sacerdotes-chefes, “ex-chefes” porque foram selecionados entre os quarenta
que se aposentaram. Ele é a primeira das três fontes.

334
Comanches, Kiowa e Cheienes

possivelmente porque não havia uma regra claramente


definida.18
Além do Conselho existiam também as sociedades de
soldados, seis delas, fraternidades militares que existiram
inicialmente como grupos sociais, mas com o tempo assumiram
algumas responsabilidades governamentais. Uma das
sociedades, os cães soldados, constituía seu próprio bando e
assim existia como uma única unidade durante todo o ano. Cada
um dos outros tinha membros dispersos entre os bandos,
reunidos apenas durante o acampamento de verão. Cada uma
das sociedades de soldados tinha dois chefes, atuando como
chefes de guerra, e dois “servos”, chefes de nível inferior
responsáveis por uma parte particularmente perigosa da defesa
contra atacantes. Um grupo de guerra poderia, no entanto, como
nas outras duas tribos, ser formado e liderado por qualquer índio
guerreiro que conseguisse que outros o seguissem.
O conselho era responsável por tomar decisões sobre
guerra ou paz com outras tribos, decidir casos de homicídio ou
permitir a readmissão de um assassino exilado e decidir os
movimentos da tribo em busca de caça. Parece ter sido um
processo de consenso. Um chefe pode decidir que a tribo deve
se mover em alguma direção. Ele tomaria conselho com vários
outros, eles eventualmente convocariam todos os chefes do
conselho, conferenciariam e teriam a conclusão anunciada para
18“Os quatro chefes principais da tribo eram iguais em autoridade, e os outros
dos quarenta e quatro chefes eram realmente conselheiros, cuja autoridade
como chefes não se estendia além de seus próprios seguidores imediatos. No
entanto, suas posições como conselheiros impunham respeito e levavam o
povo a ouvir os conselhos que davam.” (Grinnell 1923, 340). Mas também:
“Os quatro chefes principais […] possuíam, em assuntos de peso, pouco mais
autoridade real do que outros membros do conselho, […].” (Grinnell 1923,
337).

335
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

a tribo. Em alguns contextos, como decidir sobre um tratado de


paz com outra tribo, o processo envolveria muitas idas e vindas
entre o Conselho e uma ou mais das sociedades de soldados. O
Conselho tinha o direito de tomar a decisão. Mas, na prática,
teve que ser feito em consulta com outros, obviamente aqueles
que realmente o implementariam.
Outra responsabilidade do Conselho era controlar a caça
ao búfalo, um esforço em massa de toda a tribo conduzido sob a
autoridade de uma das sociedades de soldados selecionadas para
esse fim. A regra básica era que ninguém deveria atacar um
búfalo até que a ordem fosse dada, momento em que a linha de
caçadores atacaria o rebanho, com as pontas da linha enroladas
para encerrá-lo totalmente.
A regra às vezes era violada, talvez tipicamente por jovens
guerreiros tentando provar que podiam se safar dela. O seguinte
relato é de um dos informantes citados por Hoebel e Llewellyn:

Todos os caçadores saíram em linha com os Soldados de


Escudo na frente para segurá-los. No momento em que
eles estavam subindo uma longa crista na direção do
vento, de onde os batedores haviam relatado o rebanho,
eles viram dois homens no vale cavalgando entre os
búfalos. Um chefe de Soldados de Escudo deu o sinal a
seus homens. Eles não deram atenção ao búfalo, mas
atacaram em uma longa fila os dois infratores das regras.
Velhinho gritou para que todos os chicoteassem:
“Aqueles que falharem ou hesitarem levarão uma boa
surra”.
Os primeiros homens a chegar ao local atiraram e
mataram os cavalos sob os caçadores. À medida que cada
soldado alcançava os malfeitores, ele os golpeava com
seu chicote de montaria. Então alguns pegaram as armas
dos dois e as esmagaram.

336
Comanches, Kiowa e Cheienes

Quando a punição terminou, o pai desses dois


meninos apareceu. Era Duas Bifurcações, um membro da
tribo Dakota, que vivia com os cheienes há algum tempo.
Ele olhou para seus filhos antes de falar. “Agora você
agiu errado. Você falhou em obedecer a lei desta tribo.
Você saiu sozinho e não deu chance aos outros. Isso é o
que aconteceu com você.”
Então os chefes dos Soldados de Escudo
começaram a falar. “Agora você sabe o que fazemos
quando alguém desobedece a nossas ordens”, declararam.
“Agora você sabe que queremos dizer o que dizemos.”
Os meninos não disseram nada.
Depois disso, os chefes cederam. Não ocorreu só
isso pelo fato de os culpados serem Dakotas. Eles
chamaram seus homens para se reunirem. “Olha como
esses dois meninos estão aqui no meio de nós. Agora eles
não têm cavalos nem armas. O que vocês homens querem
fazer sobre isso?”
Um dos soldados falou. “Bem, eu tenho alguns
cavalos extras. Eu darei um deles a eles.” Então outro
soldado fez a mesma coisa.
Urso De Pé no Cume foi o terceiro a falar. “Bem”,
ele anunciou, “nós quebramos aquelas armas que eles
tinham. Eu tenho duas armas. Eu lhes darei uma.”
Todos os outros disseram: “Ipewa, bom”.19

O relato possui várias características interessantes,


consistentes com outros relatos desse tipo. Para começar, a
punição dos infratores consistia em açoitá-los e destruir seus
bens. À primeira vista, o último parece uma forma de punição
desperdiçadora. Por que não substituir a destruição por uma
multa, confiscando a propriedade e usando-a para o bem da tribo

19Llewellyn e Hoebel 1941, 112-113.

337
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ou talvez da sociedade militar que, no caso, estava aplicando as


regras?
Uma resposta possível é que tornar a punição lucrativa
convida a punições excessivas ou injustificadas,20 o mesmo
problema que a lei ateniense tentou resolver combinando uma
punição lucrativa com uma penalidade por processo mal
sucedido, a ser descrito no capítulo 16. Pode ser um risco
particularmente sério em um sistema tão desestruturado como o
cheiene. Caçar muito cedo violava uma regra bem
compreendida, mas decidir quais eram as consequências cabia
às pessoas que detectavam o delito e puniam o transgressor.
Costumes que permitem aos executores atirar em cavalos, mas
não os confiscar, tornam a punição não lucrativa e, portanto,
reduzem o risco de que ela seja excessiva.
A segunda característica interessante, e para nós estranha,
da história é a substituição dos cavalos mortos e uma das armas
destruídas pelos executores. Ao não tentar escapar da captura,
oferecer argumentos em sua defesa ou resistir à destruição de
sua propriedade, os dois meninos estavam implicitamente
concedendo a autoridade da regra tribal que haviam violado.
Uma vez que eles tivessem feito isso, eles eram, de fato,
readmitidos à respeitabilidade — e como os jovens obviamente
não podiam ser deixados na pradaria, pouco antes do início da
caçada, sem cavalos ou armas, cavalos e uma arma foram
generosamente doados por membros do mesmo grupo que havia
imposto a punição. Não está claro até que ponto as regras que
controlam a caça ao búfalo foram projetadas para matar o búfalo
da forma mais eficaz possível, até que ponto estabelecer a
autoridade das regras tribais.
20Parauma discussão da mesma questão em um contexto moderno, veja
Friedman 1999.

338
Comanches, Kiowa e Cheienes

Nesse caso, os Soldados de Escudo estavam agindo para


impor a regra contra a caça prematura, tendo sido nomeados
para essa tarefa pelo Conselho dos Quarenta e Quatro, embora
os detalhes da aplicação fossem de sua própria invenção. Além
de monitorar a caça real, os membros das sociedades de
soldados selecionados também poderiam investigar acusações
de caça prematura, insistindo em revistar o tipi do acusado. Se
fosse encontrada carne fresca de búfalo, uma punição provável
(como para algumas outras ofensas) era destruir o tipi.
Em outros casos descritos pelos informantes, membros das
sociedades de soldados agiram para aplicar outras regras, em
alguns casos envolvendo-se em legislação de facto, resolvendo
um problema particular e proclamando uma regra geral para
cobrir tais situações no futuro. Assim, por exemplo:

“Enquanto Lobo Deitado estava fora, um amigo levou um


de seus cavalos para cavalgar para a guerra. Este homem
trouxe seu arco e flecha e os deixou na cabana do dono
do cavalo. Quando Lobo Deitado voltou, ele sabia por
esta segurança simbólica quem estava com seu cavalo,
então ele não disse nada.
Um ano se passou sem o retorno do cavalo, e então
Lobo Deitado convidou os chefes dos Soldados Alces
para sua cabana, porque ele estava em sua sociedade.
[Ele pergunta o que deve fazer. Os chefes concordam em
enviar alguém para trazer de volta o mutuário ou uma
palavra dele. Eventualmente, o mensageiro retorna com
o mutuário, levando dois cavalos. Ele confirma que
pegou o cavalo emprestado, mas demorou mais do que
planejava, e se oferece para devolver o cavalo que pegou
emprestado e dar a Lobo Deitado dois outros cavalos e
seu arco e flecha.]

339
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Em seguida, falou Lobo Deitado. “Fico feliz em


ouvir meu amigo dizer essas coisas. Agora me sinto
melhor. Vou levar um daqueles cavalos, mas vou dar a
ele aquele que ele pegou emprestado para manter. De
agora em diante, seremos amigos íntimos.”
Os chefes declararam […].
“Agora vamos fazer uma nova regra. Não haverá
mais empréstimos de cavalos sem pedir. Se algum
homem pegar os bens de outro sem pedir, iremos lá e os
pegaremos de volta para ele. Mais do que isso, se o
pegador tentar ficar com eles, daremos uma surra nele.”21

Quando a tribo se dividiu em bandos separados, nem o


Conselho nem as sociedades de soldados completos (exceto os
Soldados Cachorros, que eram seu próprio bando) estavam
disponíveis para lidar com os assuntos. Os chefes do conselho
funcionavam como chefes de paz em seus bandos individuais,
líderes com poderes imprecisamente definidos. Até certo ponto,
os membros das sociedades de soldados agiram para impor as
decisões do grupo, por exemplo, impedindo que uma minoria do
bando que discordasse de uma decisão sobre o caminho a seguir
se separasse abertamente. Em todos os momentos, esperava-se
que os chefes do Conselho fossem exemplos de moderação e
bom comportamento, mesmo quando injustiçados, e modelos de
generosidade — se alguém pedisse algo emprestado, a resposta
adequada do chefe era dar a ele. Um cheiene que não pensasse
que poderia viver de acordo com o padrão esperado de um chefe
do conselho poderia recusar o cargo por causa disso. Como
disse Rua do Sol:

Quando um cachorro está correndo atrás de uma cadela


no cio — se minha esposa é perseguida por outro
21Llewellyn e Hoebel 1941, 127-128.

340
Comanches, Kiowa e Cheienes

homem, posso enfraquecer e abrir a boca. Então seria


bom se outro tivesse o remédio e não eu.

Em uma sociedade guerreira onde é comum que


aplicadores semioficiais punam aqueles que consideram
violadores de regras chicoteando-os ou atirando em seus
cavalos, há um risco óbvio de que alguém vá longe demais e o
aplicador ou aplicado acabe morto. O cheiene tinha uma solução
simples e elegante para esse problema. Bater em outro cheiene
era entre você e ele. Matar outro cheiene significava o exílio da
tribo.
A razão, segundo eles, não era punição, mas higiene.
Matar um companheiro cheiene poluíam as flechas medicinais
que eram um dos amuletos tribais; sangue aparecia
misteriosamente em suas penas. Também poluía o assassino; ele
cheirava a morte e a poluição era contagiosa. Até que as flechas
fossem cerimonialmente renovadas e o assassino exilado, não se
poderia esperar sorte na caça ou na guerra.
O exílio não era letal; havia outras tribos amigas nas
planícies. O exílio durava nominalmente cinco ou dez anos, às
vezes menos na prática.22 Em algum momento durante o período
de exílio, o homem exilado poderia solicitar sua readmissão na
tribo, possivelmente trazendo consigo um cavalo carregado de
tabaco para demonstrar seu arrependimento. Se os parentes de
sua vítima quisessem, ele poderia ser readmitido, sujeito às
condições que eles impusessem. Mas pelo resto de sua vida,
ninguém iria compartilhar seu cachimbo ou comer de sua tigela.
O cheiro da morte pode ter diminuído o suficiente com o tempo
22Em uma ocasião, um homem foi readmitido após dois anos, em outra
ocasião após três. (Llewellyn e Hoebel 1941, 12, 80-1). A vontade de
readmitir parece ter dependido em parte de quão desculpável o assassinato
parecia ter sido.

341
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

para permitir sua presença na tribo, mas a poluição ainda era


contagiosa.
Embora o exílio fosse o resultado usual de um assassinato,
havia exceções. O caso mais claro é o de uma mulher que matou
o pai ao se defender de ser estuprada por ele. As flechas tiveram
que ser renovadas, mas ela não era exilada. Vários outros casos
são mencionados em que o assassino não foi ou pode não ter
sido exilado, mas as flechas tiveram que ser renovadas.23
Llewellyn e Hoebel veem a combinação de exílio
temporário e poluição permanente como uma substituição bem-
sucedida da disputa, evidência da superioridade das instituições
cheienes em relação às de outras sociedades primitivas. Mas,
pelo relato de Grinnell, parece ter sido no máximo uma
substituição parcial.

Se um homem matasse um membro da tribo, muitas


vezes era obrigado a fugir, pelo menos por um tempo,
pois era provável que fosse morto por algum parente
próximo do homem morto. Se ele se salvasse fugindo, o
conselho considerava o caso, e o chefe chamava os
parentes do morto e deles sabia quanto custaria para
indenizá-los pela perda. Os parentes do assassino foram
então convocados e a pena declarada a eles. Quando eles
pagassem essa multa aos parentes do morto, o assassino

23Coiote Vagante matou Cavalo Branco, que havia roubado sua esposa, e não
parece ter sido exilado como resultado. Mais tarde, ele foi morto por
Winnebago, que não é descrito como exilado, mas aparece na conta oito anos
depois, momento em que ele mata outro homem, desta vez em legítima
defesa. O exílio não é mencionado, mas quando Winnebago é mencionado
novamente, ele está vivendo com outra tribo. Ele acaba sendo morto por
Fogo Ascendente, que novamente não é descrito como sofrendo exílio. Cada
matança parece ter sido seguida por uma cerimônia para renovar as flechas,
no entanto.

342
Comanches, Kiowa e Cheienes

poderia retornar ao acampamento. Quer o assunto tenha


sido resolvido ou não, o homem que havia cometido o
assassinato era condenado ao ostracismo por seus
companheiros, temporariamente expulso do
acampamento e perdia toda a posição na tribo, que nunca
recuperava. Ele era obrigado por um tempo a acampar
longe da tribo principal, e muitas vezes ele se afastava do
acampamento e passou um ano ou mais com alguma
outra tribo.24

Isso parece uma combinação do padrão convencional de


disputa — ameaça de retaliação evitada por compensação —
com o que Llewellyn e Hoebel consideravam o sistema novo e
aprimorado. Pelo relato deles, em contraste, a compensação era
oferecida, se é que era, no momento em que um exilado
peticionou por readmissão e ia para a tribo em geral, em pelo
menos um caso com os parentes da vítima recusando uma parte.
A permissão dos parentes parece ter sido necessária para que o
assassino fosse readmitido na tribo, mas não comprado.25

Uma Nota Sobre as Fontes


Um problema, neste capítulo e em outros, é descobrir até
que ponto minhas fontes podem ser confiáveis. Isso se torna
mais difícil pelo fato de que três delas são de autoria ou
coautoria da mesma pessoa, Hoebel, e assim pode-se esperar
que compartilhem quaisquer preconceitos que ele trouxe para
seu estudo dos índios das planícies. Tentei lidar com esse
problema em parte complementando esses livros com relatos

24Grinnell 1923, 353-354.


25Llewellyn e Hoebel 1941, 166-8.

343
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

anteriores e mais próximos de primeira mão, em parte tentando


permitir vieses revelados por evidências internas nas fontes.
Considere o contraste entre dois livros sobre os cheienes,
Grinnell 1923 e Llewellyn e Hoebel 1941. Grinnell visitou os
cheienes pela primeira vez em 1890, pouco mais de dez anos
depois de terem entrado na reserva, e regularmente depois disso,
ambos os bandos norte e sul, pelo menos até 1923, quando seu
livro foi publicado. O livro de Llewellyn e Hoebel é baseado em
dois verões de investigação, principalmente entrevistando
membros da banda do norte na reserva, em 1935 e 1936, bem
como fontes secundárias, incluindo Grinnell. Eles se concentram
nas instituições legais e políticas, que ocupam apenas um
capítulo de vinte e duas páginas em Grinnell.
Ambos os livros são partidários. Mas enquanto Llewellyn
e Hoebel discutem principalmente as virtudes das instituições
legais cheiene e a maneira como elas foram empregadas, o de
Grinnell é um partidarismo mais amplo. Ele está descrevendo
pessoas que conhecia bem, algumas delas amigos íntimos, e
quer que seus leitores acabem compartilhando sua alta opinião
sobre eles. Portanto, quando encontro um elemento de seu
sistema que um leitor moderno desaprova veementemente, a
raríssima prática de “colocar uma mulher na pradaria”, estupro
coletivo como punição, descrito apenas no último livro,26
suspeito que sua a omissão de Grinnell foi deliberada.
Mas onde as duas fontes discordam sobre detalhes do
sistema legal e político, estou inclinado a confiar em Grinnell.
Llewellyn e Hoebel estão trabalhando a partir de relatos do
sistema cheiene tradicional coletados quase sessenta anos depois
que os cheiene se renderam aos EUA, Grinnell de um ponto
muito mais próximo do sistema tradicional.
26Llewellyn e Hoebel 1941, 202-210.

344
Comanches, Kiowa e Cheienes

Dorsey, uma terceira fonte menos informativa, baseou seu


relato em entrevistas com um único informante cheiene
realizadas por volta de 1901.
Questões semelhantes surgem no caso dos comanches. Seu
sistema tradicional foi encerrado por tratado em 1868, após o
qual eles foram restritos a uma reserva que representava uma
pequena fração da área anteriormente sob seu controle. As
entrevistas nas quais Wallace e Hoebel confiaram foram
realizadas de 1933 a 1945, época em que um comanche que era
um jovem adulto na época da rendição teria mais de oitenta
anos.
Além de entrevistas conduzidas por eles mesmos e por
estudiosos contemporâneos, eles fizeram uso de material escrito
sobrevivente de muito antes, mas ainda há um problema. Os
comanches com os quais Wallace e Hoebel interagiram eram os
sobreviventes de uma nação derrotada cuja cultura havia sido
amplamente destruída, objetos naturais de simpatia. Os
comanches cujas instituições estou tentando entender eram um
povo arrogante e poderoso que, por cento e cinquenta anos,
travou com sucesso uma guerra contra espanhóis, mexicanos,
texanos, americanos e outras tribos indígenas. Embora os
autores possam relatar e relatam os fatos do período anterior,
seus relatórios são coloridos por sua observação do estado
posterior da tribo.
Como no caso de Grinnell e os cheienes, a evidência mais
clara é o que eles não dizem. É razoavelmente claro pelas fontes
anteriores que os comanches matavam rotineiramente a maioria
dos cativos adultos do sexo masculino, muitas vezes torturando-
os até a morte, frequentemente mutilando seus cadáveres.
Cativas adultas eram sujeitas a estupro coletivo, seguido de
escravidão, seguida de casamento forçado em uma sociedade

345
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

onde as esposas tinham direitos muito limitados.27 Essa imagem


aparece apenas de forma silenciosa no relato de Wallace e
Hoebel — a única referência de índice a "estupro" aponta para a
frase "estupro, exceto em cativos, ocorreu com pouca frequência
e não fazia parte do padrão geral". Suas referências à tortura
implicam que era incomum.28
Claro, também pode haver vieses nas fontes anteriores. O
relato de Lee inclui uma descrição de ruínas impressionantes
mostradas a ele por seus captores que, embora provavelmente

27As crianças cativas, por outro lado, parecem ter sido criadas como
comanches e adotadas pela tribo.
28“Embora não fosse seu costume torturar inimigos desafortunados, às vezes,

quando os comanches ficavam extraordinariamente irritados, eles recorriam a


formas extremas de barbárie em busca de vingança.” (Wallace e Hoebel
1952, 259). Compare isso com o relato de Lee. Ele fazia parte de um grupo
cujos membros foram mortos ou capturados em um ataque surpresa dos
comanches, sem matar ou ferir nenhum dos atacantes. Dos quatro cativos,
dois foram torturados até a morte em sua presença, um foi levado para outro
lugar, Lee suspeito de ter sido torturado até a morte, e o próprio Lee
sobreviveu como escravo aproveitando-se do espanto de seus captores com
os ruídos feitos por um relógio de alarme que ele estava carregando.

346
Comanches, Kiowa e Cheienes

baseadas em ruínas reais de Pueblo, não se encaixam nelas de


perto.29
Além de querer fazer uma boa história de sua provação,
Lee também tinha dois outros objetivos — persuadir seus
leitores de que o exército dos EUA deveria invadir o território
comanche para desencorajar os ataques comanche e que o
governo deveria ter uma política de resgate de cativos de volta
dos comanches. Ambos tenderiam a influenciar seu relato na
direção oposta da tendência que acho que vejo em Wallace e
Hoebel. Mas sua imagem do tratamento dos cativos é apoiada
por Neighbours (1853, 132), que escreve “os homens nunca são
feitos prisioneiros por eles em batalha, mas mortos e
escalpelados em todos os casos. As mulheres às vezes são feitas
prisioneiras, caso em que sua castidade é uniformemente não
respeitada”.

29Lee foi capturado em um local que ele descreve como cerca de 350 milhas
a noroeste de Eagle Pass, o que o colocaria no canto sudeste do que hoje é o
Novo México. Chaco Canyon, no noroeste do Novo México, contém uma
coleção impressionante de ruínas Pueblo, das quais esta pode ser uma
descrição um tanto distorcida. Vi, com infinito espanto e surpresa, as ruínas
dilapidadas de uma grande cidade. No meio das paredes desmoronadas de um
grande número de edifícios, que, em alguma época remota, sem dúvida,
ladeavam ruas espaçosas, estava o que parecia ter sido uma igreja ou
catedral. Suas paredes de pedra talhada, com sessenta centímetros de
espessura e, em alguns lugares, quinze pés de altura, incluíam um espaço
medindo duzentos pés de comprimento e, talvez, cem de largura. A superfície
interna das paredes em muitos lugares era adornada com trabalhos esculpidos
elaborados, evidentemente o trabalho de uma mão de mestre, e no extremo
leste havia uma enorme plataforma de pedra que parecia ter sido usada como
palco ou púlpito. (Lee 1859, 141).

347
14
Direito de Disputas
Como veremos, o que geralmente acontece em nossas
primeiras fontes medievais é que, quando um grupo
social, geralmente uma família ou parente, mas
ocasionalmente uma instituição como um mosteiro, é
prejudicado, ele faz uma grande exibição de sua raiva, do
fato de que foi injustiçado e do fato de que tem o direito
de se vingar dos malfeitores. A pressão é assim exercida
sobre os agressores originais para que façam reparações,
seja informalmente ou por meio dos oficiais da lei locais,
ou às vezes por meio da mediação da igreja. Quando a
compensação não é paga, a parte prejudicada às vezes
realiza um ataque de retaliação. Se os procedimentos
corretos forem seguidos, uma morte por vingança bem-
sucedida é considerada bastante legal e encerra a disputa.
Há pouca concepção de que os destinatários do ataque de
retaliação tenham qualquer direito de se sentir lesados, ou
que eles estariam justificados em responder
violentamente a ele.
(Halsall 1999, 10)

A maioria dos modernos tem como certo que a lei é, e


precisa ser, aplicada pelo estado. Infratores criminosos são
detectados e presos pela polícia, processados por procuradores
do governo, julgados em tribunais do governo e punidos pelo
governo. A Inglaterra do século XVIII tinha uma versão
modificada desse sistema, com criminosos, como autores de
torts em um sistema moderno, detectados e processados em
particular, mas julgados e punidos pelo estado.

349
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Já vimos várias sociedades nas quais a aplicação da lei era


privada e descentralizada.1 Esse padrão, embora estranho para
nós, é historicamente comum.2 Parece provável que em muitas,
talvez na maioria das sociedades, era o sistema legal original
sobre o qual os sistemas posteriores foram construídos. Eu o
chamo de direito de disputas.3 Sua lógica é simples. Se você me
prejudicar, ameaço prejudicá-lo, a menos que você me
compense.
Para funcionar, ele precisa resolver quatro problemas
diferentes.

Os Requisitos do Direito de Disputas


1. Minha ameaça de prejudicá-lo deve ser mais crível se
você me prejudicou do que se não o fez.

1Descrevê-lo como privado levanta a questão de como se distingue entre um


governo e instituições privadas para aplicar direitos, comumente
considerados como uma função governamental. Para minha resposta, veja
Friedman 2014, Capítulo 52.
2Os sistemas de disputas que examinamos são a Islândia do período saga, o

norte da Somália, os índios comanches e os ciganos — diferentes versões


para os vlach rom, romnichals e kaale. Outros que conheço incluem o sistema
beduíno descrito em um artigo de um de meus alunos
(http://www.daviddfriedman.com/LegalSystems/Papers/Bedouin_Law.htm),
o Nuer descrito por Evans-Pritchard e o sistema do norte da Albânia descrito
em Fox 1989.
3Um sistema de disputas [feud system] não um sistema feudal [feudal

system]. As duas palavras soam semelhantes, mas não estão relacionadas em


significado e etimologia. “Feudal” vem do latim medieval “feodum”, que
significa feudo ou taxa, do franco fehu (gado, owndom, propriedade, taxa)
possivelmente do protogermânico “fehu” (gado) do indo-europeu *peḱu-,
gado. “Feud” vem de “fede” (“inimizade, ódio, hostilidade”), em última
instância, da raiz proto-indo-européia *peig- “malvado, hostil”.

350
Direito de Disputas

2. Deve haver maneiras de tornar provável que eu cumpra


minha ameaça, apesar dos riscos.
3. Deve haver formas de aplicar os direitos não apenas dos
fortes, mas também dos fracos.
4. Deve haver maneiras de acabar com a disputa, evitando
o padrão de violência contínua que a palavra sugere ao ouvido
moderno.
Todos esses problemas devem ser resolvidos para que a
disputa forneça um mecanismo adequado para aplicar a lei.
Todos foram resolvidos em sistemas de disputas do mundo real.

1. O Certo faz a Força


Se minha ameaça for igualmente eficaz,
independentemente de você ter me prejudicado ou não, ela
funciona tanto para extorsão quanto para aplicação da lei. Um
sistema de disputa requer algum mecanismo que torne a ameaça
mais crível quando você me prejudicou do que quando não o
fez.
A Islândia do período das sagas mostra uma maneira de
resolver esse problema. Se eu acredito que você me prejudicou,
eu o levarei ao tribunal. O tribunal dá um veredito: você me
deve cinquenta onças de prata. Você paga ou não paga. Se você
não pagar, você está fora da lei, tornando legal eu matá-lo,
sendo ilegal que qualquer um o alimente, abrigue-o, ou o
defenda. Amigos que possam querer defendê-lo sabem que
qualquer confronto levará a novos processos judiciais nos quais
eles estarão do lado perdedor. Se eles se recusarem a pagar os
danos, os parentes de qualquer um que eles prejudicarem serão
atraídos para a coalizão contra eles. O sistema judiciário é o
mecanismo através do qual o certo, conforme definido pelo
código legal existente, faz a força. Os romanichals atingem o

351
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

mesmo objetivo de uma forma menos formal. Em vez de um


código de leis, há um sistema de normas comunitárias. Se você
me prejudicou conforme julgado por essas normas e não
conseguiu me compensar, meus amigos me apoiarão no conflito
resultante, seus amigos não o apoiarão.
O sistema legal da Somalilândia está em algum lugar entre
os dois. O direito é consuetudinário — ao contrário do caso
islandês, não há legislatura. Os tribunais que resolvem disputas
são ad hoc, formados para a disputa. Mas eles têm legitimidade
suficiente aos olhos dos vizinhos e potenciais aliados de ambos
os lados para dar peso ao seu veredito.
Quando li pela primeira vez sobre o direito Romani,
interpretei o sistema legal dos romanichals como um sistema de
disputa, o dos vlach rom como um sistema de controle comunal
operando através do kris. Um relato mais detalhado4 dos vlach
rom na América, no entanto, deixou claro que eles também
tinham um sistema de disputas, com rixas travadas em grande
parte pela manipulação das autoridades gaje para impor custos
aos oponentes. O kris dos vlach rom não é mais um governo do
que o tribunal dos somalis. Ambos são, como o tribunal
islandês, mecanismos para resolver brigas em um sistema de
disputas, envolvendo membros da sociedade que não fazem
parte da disputa, usando juízes ad hoc em vez de profissionais.5

4Sutherland 1986.
5“O objetivo principal é aproximar as partes opostas e, por meio de um
compromisso, permitir que o consenso seja alcançado. Depois que os juízes
decidem que uma posição comum foi estabelecida até certo ponto, eles
realizam consultas (eles também podem se aposentar), formulam uma
decisão no caso que seja aceitável para todos os envolvidos e a declaram
publicamente.” Marushiakova e Popov 2007, 87, descrevendo o kris na
Europa Oriental e Central.

352
Direito de Disputas

Os detalhes variam de um sistema para outro, mas a lógica


básica é a mesma.

2. Compromisso
Quando ameaço feri-lo, você responde que, se eu o fizer,
retaliará, tornando a troca uma perda para nós dois. Para que o
sistema funcione, preciso de alguma forma de me comprometer,
fazendo com que seja do meu interesse cumprir minha ameaça
apesar do risco, do seu interesse recuar e me compensar.
Uma solução é anterior à nossa espécie — o
comportamento territorial.6 Um membro de uma espécie
territorial, geralmente pássaros ou peixes, de alguma forma
marca o território que está reivindicando. Fazer isso ativa uma
mudança metafórica em seu cérebro, obrigando-o a lutar cada
vez mais desesperadamente contra um invasor quanto mais
longe em seu território o invasor chega. A menos que o agressor
seja muito mais forte que o defensor, uma luta até a morte é uma
perda para ambos. Assim, uma vez claro o compromisso, é do
interesse do transgressor recuar.
O mecanismo correspondente em humanos é a vingança.
Quando alguém o prejudica, você deseja muito se vingar dele,
mesmo com algum risco para si mesmo. Considerada ex post,
após o fato, parece uma paixão irracional, que pode facilmente
levar você à morte. Considerada ex ante, pode muito bem ser
uma estratégia de compromisso racional, incutida em nós pela
evolução. O fato de você se vingar de qualquer um que o

6Veja Alcock 2013. Um relato disponível em


http://people.eku.edu/ritchisong/birdterritories.html.

353
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

prejudique, mesmo a um custo considerável para si mesmo, é


uma razão para não o prejudicar.7
As sociedades humanas também fornecem outras
estratégias de compromisso, mais obviamente reputação e
status. Seu fracasso em cumprir sua ameaça, em se vingar de
alguém que o prejudicou e se recusou a pagar uma
compensação, marca você como um covarde. Ser conhecido por
ser um covarde diminui seu status. Também marca você como
um alvo seguro para erros futuros.
Deixar de vingar os erros cometidos contra si mesmo custa
status. Obrigar o responsável por um delito a pagar uma
indenização ganha status, mesmo que o delito fosse contra outra
pessoa. Isso explica o executor voluntário, alguém que enfrenta
um agressor em nome de uma vítima fraca demais para fazer
isso sozinho, um padrão que observamos nas sagas islandesas e
nos relatos de conflitos entre os índios comanches.
E se o mal que você sofrer o deixar morto, incapaz de
ameaçar ou executar vingança? Para impedir a matança, você
precisa de uma estratégia de compromisso que dure além da
morte. Os sistemas de disputas do mundo real fornecem isso.
De acordo com a lei islandesa, matar-me dá aos meus
parentes uma reivindicação contra você, o direito de cobrar uma
indenização em dinheiro e, se não for compensado de forma
aceitável em um acordo extrajudicial, transformá-lo em fora da
lei. Os parentes têm um duplo incentivo para impor essa
reivindicação. Pode deixá-los coletar uma quantia considerável
de dinheiro. Também dá a qualquer um que queira matar um
deles uma razão para não o fazer. O mesmo mecanismo, uma

7Para mecanismos de compromisso usados para definir e impor direitos,


considerados não como regras legais ou morais, mas como um padrão de
comportamento humano, veja Friedman 1994 e Friedman 2014, Capítulo 52.

354
Direito de Disputas

reivindicação por danos herdados pelos vivos, existe em outros


sistemas de disputas, como o somali.

3. Protegendo os Fracos
Uma luta até a morte entre dois pássaros pode ser uma
perda para ambos, mas uma luta até a morte entre um homem
idoso sem aliados e um agressor apoiado por meia dúzia de
amigos provavelmente será uma perda para apenas um. Para que
a disputa faça um trabalho adequado de proteção de direitos, ela
precisa de algum mecanismo que funcione tanto para os fracos
quanto para os fortes.
Os islandeses resolveram esse problema tornando os
pedidos de indenização transferíveis. O homem idoso que sabe
que, se tentar processar sua reivindicação sozinho,
provavelmente será espancado no caminho para o tribunal,
transfere a reivindicação para um amigo ou vizinho que pode
aplicá-la. Se aplicá-lo não for muito difícil, eles dividem o
dinheiro. E por mais que a indenização seja dividida, pelo
menos o agressor pagou pelo seu crime.
Os somalis tinham um sistema diferente. O indivíduo é
membro de um grupo de pagantes de dia, uma coalizão formada
antecipadamente. Se ele for prejudicado, os demais membros do
grupo têm direito a parte da indenização. Assim como acontece
com o grupo de parentes islandeses, isso lhes dá um duplo
incentivo, dinheiro e reputação, para garantir que sejam pagos.

4. Terminando a Disputa
A maneira mais simples de acabar com uma disputa é um
lado compensar o outro pelo dano causado, de preferência na
primeira etapa. Uma razão para não fazer isso é a crença do

355
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

agressor inicial de que ele pode se safar recusando, de que o


outro vai recuar. Outra é a crença de que ele não deve nada, que
está certo. Se ele estiver certo e pagar de qualquer maneira, isso
o marcará como um covarde, um alvo fácil para extorsão.
Melhor responder à força com força e esperar que a outra parte
recue.
A solução islandesa foi a arbitragem. Encontre alguém
proeminente, respeitado, poderoso. Faça com que ambas as
partes concordem em aceitar sua solução para a disputa. Pagar o
que ele diz que você deve não o marca como um covarde.
Recusar-se a fazê-lo não apenas faz com que você pareça mal e
torna o acordo mais difícil em qualquer disputa futura, mas
também lhe dá um novo e poderoso inimigo. Uma abordagem
semelhante foi usada por pelo menos algumas outras sociedades
com sistema de disputas, incluindo os romani.

Quando surge um problema, inicialmente, tenta-se


resolver o problema na hora para evitar a convocação do
tribunal. Isso geralmente é feito quando as partes
envolvidas em uma disputa abordam alguma pessoa
respeitada (ou vários membros respeitados da
comunidade) para assistência, que então fazem seu
pronunciamento no local.8

O sistema somali também oferece uma solução diferente.


Quando a quantidade de assassinatos atingir um nível
inaceitável, aumente o preço — faça com que os clãs cujos
membros tenham brigado concordem em aumentar o dia, o
pagamento por danos por matar.

8Marushiakova, Elena e Popov 2007, 78, descrevendo a resolução de


conflitos entre os romani.

356
Direito de Disputas

O Primeiro Sistema Legal


Nenhum estado moderno usa um sistema de disputas para
resolver conflitos entre seus cidadãos, embora alguns grupos
dentro de estados modernos, como os romanichals ou os kaale,
continuem a fazê-lo. Mas vários sistemas jurídicos existentes
mostram evidências de terem sido construídos sobre sistemas de
disputas pré-existentes.
O exemplo mais claro é o common law anglo-americano.
Ele evoluiu a partir do direito anglo-saxônico. O direito anglo-
saxônico, pelo menos antes de seu último século, era
essencialmente o direito islandês mais um rei. O rei alegava que
algumas infrações eram violações da paz do rei, portanto, os
infratores deviam indenizações a ele e à vítima. Expanda essa
abordagem o suficiente e, eventualmente, a exceção engole a
regra, convertendo todos os crimes em delitos apenas contra a
coroa.
Para outro exemplo, considere o direito judaico. As regras
para matar, descritas no Capítulo 4, colocam a tarefa de executar
um assassino cujo crime é considerado capital no Vingador de
Sangue, o herdeiro da vítima. Eles também lhe dão o direito de
matar um assassino cujo crime não é considerado capital se ele
puder interceptá-lo no caminho de volta para sua cidade de
refúgio. A regra de Avid Inish Dina Lenafshei (um homem pode
fazer justiça com as próprias mãos) na lei judaica é mais uma

357
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

prova.9 Da mesma forma, a lei islâmica atribui a tarefa de


processar um assassino aos parentes da vítima, dá-lhes o direito
de retaliação se o assassinato for capital e de coletar diya,
wergeld, de um assassino não capital ou um assassino capital
contra quem eles optam por não retaliar.
O direito romano, no qual se baseia o direito civil europeu,
é um caso menos claro. Sua forma mais antiga conhecida, a Lei
das Doze Tábuas, sobreviveu apenas em fragmentos deduzidos
de outros documentos. Tem características que sugerem um
sistema de disputas pré-existente, como referências às
circunstâncias em que a vítima de um crime tem o direito de
matar o criminoso. O direito romano posterior preservou
extensos elementos de ação privada, obrigando o queixoso a
levar o réu ao tribunal, se necessário pela força, e dando ao
queixoso bem-sucedido em alguns contextos o direito de matar
o réu ou vendê-lo como escravo. O roubo no início do direito
romano era tratado como um tort, só mais tarde também como
um crime.10
O direito chinês permite que um marido que flagre sua
esposa em adultério mate a esposa e/ou o amante e, da mesma
forma, para alguém enfurecido pelo assassinato de um dos pais
ou avós ou alguém que encontre um estranho entrando em sua
casa à noite sem motivo legal, mas em cada caso apenas se o

9“Uma pessoa pode fazer justiça com as próprias mãos, se tiver força para
fazê-lo. Como ele está agindo legalmente, ele não precisa se preocupar em
comparecer a um tribunal, mesmo que não haja perda se seu processo for
adiado.” (Maimônides, Sinédrio 2:12). “Se uma pessoa vê sua propriedade
nas mãos de outra, ela pode tirá-la dela, e se a outra parte estiver em seu
caminho, ela pode espancá-la até que ela ceda […]” (Shulchan Arukh,
Choshen Mishpat 4).
10Friedman a seguir.

358
Direito de Disputas

assassinato ocorrer imediatamente após a descoberta.11 Não


consegui encontrar boas evidências, entretanto, de que começou
como um sistema de disputas.
Sob a lei hitita, registrada a partir do segundo milênio
a.C.:

Quem comete assassinato. tudo o que o herdeiro do


homem assassinado disser (será feito): se ele disser:
“deixe-o morrer”, ele morrerá; se ele disser “deixe-o
fazer uma compensação”, ele fará uma compensação. O
rei não terá nenhum papel na decisão.12

Disputa no Mundo Moderno


Os sistemas jurídicos formais modernos baseiam-se na
aplicação pelo estado, mas grande parte da aplicação informal
segue a lógica do direito de disputas. Normas privadas de
comportamento são aplicadas por ação privada, pelo menos
algumas das quais envolvem a ameaça de retaliação —
verdadeiro escândalo hostil e às vezes mais. Robert Ellickson,
em sua descrição do sistema de normas de comportamento de
vizinhança no atual Shasta County, Califórnia,13 dá um
exemplo. Se um vizinho que repetidamente deixa seu gado se
perder no campo de outro e danificar suas plantações não se
desculpar e ajudar a desfazer o dano, a vítima pode responder
levando o gado para fora de sua propriedade e a alguma
distância na estrada na direção longe da fazenda de seu dono.
Grande parte do crime em uma sociedade moderna pode
ser interpretado como execução privada. Um assassinato

11Staunton 1810, 327 (adultério), 372 (assassinato), 317 (intruso).


12Roth 1997, 215.
13Ellickson 1994.

359
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

retaliatório no curso de um conflito entre gangues urbanas é um


exemplo, um marido que descobre outro homem na cama com
sua esposa e atira é um outro exemplo. Donald Black
argumentou que “a maioria dos homicídios intencionais na vida
moderna é uma resposta à conduta que o assassino considera
desviante”.14

Hatfields e McCoys, A Disputa que


Provavelmente não Era
De acordo com um conto popular, os Hatfields e McCoys,
duas famílias de caipiras dos Apalaches que vivem em lados
opostos de Tug Fork, a fronteira entre Kentucky (McCoys) e
West Virginia (Hatfields), começaram a se matar antes do fim
da Guerra Civil. e continuou a fazê-lo através de uma longa
série de assassinatos por vingança, cada um inspirando o
próximo, por algumas décadas depois disso.
A história real é mais curta e menos dramática. Asa
McCoy se voluntariou para o Exército da União, foi invalidado,
voltou para Tug Valley e foi morto, um assassinato que muitas
vezes se afirma ter sido o primeiro na rivalidade. Não há, no
entanto, nenhuma evidência de que sua morte tenha algo a ver
com uma disputa familiar e seu assassino nunca foi descoberto.
Praticamente todos no Tug Valley, exceto Asa, tanto Hatfields
quanto McCoys, eram pró-confederados, fornecendo um motivo
óbvio para sua morte.

14Black 1986. “Assim como os assassinatos em sociedades tradicionais


descritos por antropólogos, a maioria dos homicídios intencionais na
sociedade moderna pode ser classificada como controle social,
especificamente como autotutela, mesmo que seja tratada por autoridades
legais como crime.”

360
Direito de Disputas

O primeiro conflito definitivo entre Hatfields e McCoys


ocorreu 13 anos depois, quando Old Ranel, o patriarca do clã
McCoy, suspeitou que Floyd Hatfield havia roubado um de seus
porcos. Em vez de pegar seu fuzil e dizer a seus rapazes para
buscarem o deles, no entanto, Ranel levou suas suspeitas ao Juiz
de Paz mais próximo. Floyd Hatfield foi julgado e absolvido.
Um ano e meio depois, dois sobrinhos de Ranel brigaram com
Bill Staton, um parente de ambas as famílias que havia sido
testemunha do lado de Floyd Hatfield no julgamento, e o
mataram. Eles foram presos, julgados e absolvidos em legítima
defesa — no lado de Hatfield do rio por um juiz de Hatfield.
Nenhum assassinato por vingança se seguiu.
A primeira violência que se encaixa no padrão de uma
disputa familiar adequada ocorreu em 1882. Durante uma luta
no dia da eleição, Ellison Hatfield foi gravemente ferido —
baleado e esfaqueado — por três dos McCoys. Os três foram
presos e a caminho da prisão de Pikeville, Kentucky, quando seu
grupo foi interceptado por um grupo maior liderado por Anse
Hatfield e os prisioneiros apreendidos. Os captores, sem saber se
os ferimentos de Ellison eram mortais, esperaram até que ele
morresse e então, no lado do rio em Kentucky, mataram os três
McCoys.
Isso deveria, é claro, ter gerado violência da parte dos
McCoys. O que realmente aconteceu foi que eles levaram o caso
a um tribunal de Kentucky, que emitiu mandados para 21 dos
envolvidos no assassinato, mas não fez mais nada. Cinco anos se
passaram sem mais violência.
Nesse ponto, um novo governador de Kentucky foi eleito,
que por acaso era amigo de Perry Cline, advogado, amigo e
parente distante de Ranel McCoy, que havia perdido para Anse
Hatfield em uma ação judicial por terras alguns anos antes.

361
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Cline persuadiu o governador a anunciar recompensas para Anse


Hatfield e seus companheiros assassinos e iniciar o processo de
extradição. Enquanto o governador da West Virginia ainda
considerava o pedido de extradição, um pelotão do Kentucky
cruzou a fronteira do estado com a West Virginia e capturou
Selkirk McCoy, apesar de seu nome ser considerado um
apoiador de Hatfield.
Isso desencadeou a segunda instância de assassinato
retaliatório. Um grupo de apoiadores de Hatfield atacou a casa
de Ranel McCoy, queimou-a e matou dois de seus filhos
adultos. Esse foi o ponto em que o conflito começou a chamar a
atenção nacional, com os jornais descrevendo-o em termos
dramáticos e extremamente exagerados. Pouco depois, novos
ataques à West Virginia mataram Vance Hatfield, tio de Anse
Hatfield, e capturaram mais sete apoiadores de Hatfield,
enquanto outro se rendeu voluntariamente. O tribunal da West
Virginia respondeu emitindo mandados de prisão dos vinte
membros do pelotão responsável pela morte de Vance Hatfield.
Os esforços contínuos dos caçadores de recompensas do
Kentucky, a maioria dos quais não tinha ligação com os
McCoys, levaram a uma batalha entre um pelotão do Kentucky
e um pelotão da West Virginia e o assassinato pelo líder do
primeiro de um membro do último. Nesse ponto, o conflito
acabou, pelo menos para as duas famílias.
Não, porém, para os advogados. O governador da West
Virginia exigiu o retorno dos cidadãos de seu estado
sequestrados em Kentucky para serem julgados em um tribunal
de Kentucky. O caso acabou chegando à Suprema Corte, que
sustentou que, embora o sequestro fosse ilegal, não havia
recurso; assim que os nove estivessem em Kentucky, o tribunal
de Kentucky poderia julgá-los.

362
Direito de Disputas

Duas coisas são dignas de nota sobre a história. A primeira


é que apenas seis assassinatos foram diretamente devidos a
conflitos entre as famílias — cinco assassinatos por vingança de
McCoys, um o assassinato de Ellison Hatfield que inspirou a
primeira vingança.15 Um Hatfield e um membro do pelotão da
West Virginia foram mortos por posses de Kentucky e um
Hatfield condenado à forca por um tribunal de Kentucky.
A outra é que, tanto quanto podemos dizer, a disputa teria
terminado com um total de apenas quatro assassinatos — pois
há cinco anos havia terminado — se o governador de Kentucky
não tivesse decidido revivê-la.

15De acordo com Waller 1988. Veja também Rice 1978; fontes variam em
detalhes.

363
15
Inglaterra no Século
XVIII1
O sistema de justiça criminal da Inglaterra do século
XVIII apresenta um espetáculo curioso para um observador
mais familiarizado com as instituições modernas. As duas
anomalias mais marcantes são as instituições para processar os
infratores e a gama de punições. A acusação de quase todos os
crimes graves era privada, geralmente pela vítima.2 As punições
intermediárias para crimes graves estavam notavelmente
ausentes. É apenas um modesto exagero dizer que, nos
primeiros anos do século, os tribunais ingleses impuseram
apenas duas sentenças a criminosos condenados. Ou eles os
soltaram ou os condenaram a serem pendurados pelo pescoço
até a morte.
As partes I e II deste capítulo descrevem as instituições de
acusação e as formas de punição. Na parte III, ofereço

1Uma versão anterior deste capítulo foi publicada como Friedman 1995.
2Alguns crimes menos graves foram processados por policiais ou
magistrados, um padrão que se tornou cada vez mais comum no final do
século e posteriormente. (Smith 2006). “A parte prejudicada é geralmente a
pessoa obrigada a processar; mas, nas Delegacias de Polícia, não havendo
outra pessoa declarada para esse fim, mandamos sempre um dos policiais, ou
um comissário, para o fazer;” (Sir Nathaniel Conant, Magistrado Chefe em
Bow Street, em Report 1816, 5). Os crimes realmente cometidos contra o
governo eram processados às custas do governo. Assim, “as ofensas contra a
moeda de ouro e prata eram distintas, pois o financiamento e a direção eram
fornecidos para os processos pela Casa da Moeda”. (Brewer e Styles 1980,
183).

365
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

explicações possíveis para várias características do sistema


jurídico, argumentando que, ao contrário da visão de muitos
comentadores da época e de agora, elas podem ter feito bastante
sentido.

Parte I: A Acusação Privada de Crime


A Inglaterra do século XVIII não tinha funcionários
públicos correspondentes à polícia ou aos procuradores
públicos. Os guardas não eram pagos3 e desempenhavam apenas
um papel menor na aplicação da lei. Esperava-se que uma
vítima de crime que desejasse que um policial realizasse
qualquer esforço substancial para prender o perpetrador pagasse
as despesas de fazê-lo. As tentativas de criar procuradores
públicos falharam em 1855 e novamente em 1871. Quando o
cargo de Diretor do Ministério Público foi finalmente
estabelecido em 1879, suas responsabilidades eram muito
menores do que as de um procurador distrital americano de
então ou de agora. Na Inglaterra do século XVIII, um sistema de
policiais e procuradores profissionais, pagos e nomeados pelo

3A partir de 1792, alguns policiais associados aos gabinetes dos magistrados


em Londres recebiam um pequeno salário, enquanto se sustentavam em parte
com o dinheiro da recompensa e, em alguns casos, uma segunda profissão:
“Um é comerciante de carvão, outro vidraceiro e outro merceeiro verde.
(Report 1816, 109).

366
Inglaterra no Século XVIII

governo, era visto como potencialmente tirânico — pior ainda,


francês.4
Qualquer inglês poderia processar qualquer crime; na
prática, o procurador geralmente era a vítima. Cabia a ele
apresentar as acusações a um magistrado local, apresentar
provas ao grande júri e, se o grande júri considerasse o projeto
de lei verdadeiro, fornecer provas para o julgamento.
Seu sistema de processar crimes era semelhante ao nosso
(e deles) sistema de processar torts. Em ambos, a vítima inicia e
controla o processo pelo qual o ofensor é levado à justiça. Uma
diferença é que, se o queixoso do tort prevalecer, o autor do tort
é obrigado a pagar-lhe uma indenização. Se a vítima de um
crime ganhasse o caso, o criminoso era enforcado ou perdoado.
O pagamento de danos no direito civil fornece à vítima um

4“Tenho tanta aversão pelo próprio nome de um acusador público, desde sua
existência na época da revolução francesa, que não aproveitei nenhuma
oportunidade e não tive inclinação para cogitar tal assunto [...]” (William
Fielding, Magistrado e filho do mais famoso William Fielding, magistrado e
romancista, Relatório 1816, 191). “Já em 1863, ao refletir sobre a ‘ausência
de um procurador público’ na Inglaterra, James Fitzjames Stephen proclamou
que o sistema francês de processo, que se baseava em ‘inquéritos elaborados’
por policiais profissionais e magistrados antes do julgamento, ‘nunca seria
suportado’ pelos ingleses. Escrevendo em 1983, Douglas Hay supôs que o
apego das elites políticas inglesas ao processo privado ‘provavelmente
derivava acima de tudo de sua aversão à alternativa’ — a saber, ‘processo
estatal’. Mais recentemente, Allyson May afirmou que ‘[uma] desconfiança
histórica e profundamente enraizada em um estado autoritário e medo de
abusos do poder do estado [...] explicam por que os processos criminais [na
Inglaterra] permaneceram nas mãos de indivíduos privados até o século
XIX’.” (Smith 2006, 30-31). Uma possível explicação é que a experiência
inglesa no século XVII — duas guerras civis, um golpe militar (Expurgo de
Pride), uma ditadura militar, a Restauração e a Revolução Gloriosa — fez
muitos desconfiarem de poderes que poderiam ser usados por aqueles no
poder contra seus oponentes.

367
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

incentivo para processar. Que incentivos para processar havia no


direito penal do século XVIII?
Os historiadores modernos não foram os primeiros a
considerar essa questão. Uma preocupação central dos escritores
jurídicos do século XVIII era a dificuldade de induzir as pessoas
a processar. Uma solução era estabelecer recompensas
substanciais para a condenação de criminosos acusados de
crimes particularmente graves. Em 1692, o Parlamento ofereceu
uma recompensa de £40 pela apreensão e condenação de ladrões
de estradas. Nas décadas posteriores, a gama de crimes aos quais
a recompensa se aplicava gradualmente se expandiu.5 Em 1720,
uma proclamação real acrescentou uma recompensa adicional de
£100 para o processo e condenação de ladrões de rua em
Londres e arredores. A recompensa combinada de £140
correspondia a cerca de três anos de renda para um artesão,
muito mais para um trabalhador braçal. A recompensa real
manteve-se em vigor, com um breve intervalo, até 1745.
As recompensas aumentaram o incentivo para as vítimas
processarem. O efeito combinado de recompensas e um indulto
gratuito para um criminoso cujo testemunho resultou na
condenação de outros dois incentiva um membro de uma gangue
criminosa a trair seus associados. As recompensas também
encorajavam pegadores de ladrões, investigadores particulares
que se sustentavam com recompensas públicas por condenar
ladrões, recompensas privadas oferecidas pelas vítimas e
recompensas pela recuperação de propriedade roubada. Jonathan

5“Nas décadas seguintes, outras legislações estenderam tais ofertas a roubos e


assaltos de casas, cunhagem de moedas, roubo de certos animais e outros
delitos.” O estatuto era vago sobre exatamente quem recebia as recompensas;
o promotor frequentemente os compartilhava com testemunhas e
informantes. (Paley 1989, 316-322).

368
Inglaterra no Século XVIII

Wild, autodenominado Pegador de Ladrões Geral, sustentou-se


por uma década com uma combinação de receitas de pega de
ladrões, recompensas pela recuperação de propriedade roubada e
renda do emprego em larga escala de ladrões. Ele foi condenado
e enforcado em 1725, mas viveu com fama como a figura
central de um livro de Defoe e, na persona do Sr. Peachum, da
Beggar's Opera de Gay.
As recompensas forneciam um incentivo para a acusação,
mas levavam a novas dificuldades. Em alguns casos, foi alegado
que o acusado havia sido enquadrado por um crime que nunca
havia ocorrido. Outros casos foram considerados resultado de
cilada; os perpetradores foram persuadidos a cometer os crimes
por cúmplices cujo verdadeiro propósito era traí-los em troca da
recompensa.6 O mais famoso dos escândalos resultantes
envolveu a gangue McDaniel que, quando um de seus planos
fracassou e eles próprios foram julgados, acabou sendo
responsável por um período de cerca de seis anos pelo transporte
de dois homens e pelo enforcamento de seis e ter recebido um
total de £1.200 em recompensas estaduais.

Os pegadores de ladrões constantemente compareciam


aos procedimentos de Old Bailey para se familiarizar
com as pessoas que apareciam regularmente no banco
dos réus, de quem escolhiam pessoas para dar
informações falsas. Havia um ditado comum de que
6Em um caso de armadilha, os procuradores que haviam organizado o crime
ganharam recompensas que totalizaram £120 (Paley 1989, 302). Para um
relato vívido dos crimes da Gangue McDaniel, incluindo armação e
armadilhas, veja Jackson 1795, 91-99. Veja também Norton 2003, 18. Os
escritores contemporâneos parecem ter dado como certo que a armadilha era
uma coisa ruim. Eles podem não ter considerado que poderiam reduzir o
crime tornando os criminosos menos dispostos a confiar em potenciais
cúmplices.

369
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

qualquer pessoa dispensada de Old Bailey estava fadada


a reaparecer após uma ou duas sessões. Essas pessoas
faziam amizade com o cúmplice do pegador de ladrões e
eram induzidas a mais crimes (ou, na verdade, o próprio
cúmplice cometeria o roubo), pelo que seriam
posteriormente juradas contra. Após o roubo, o cúmplice
e seu companheiro se encontravam em algum pub em
Black Boy Alley ou Chick Lane, onde o pegador de
ladrões com mais alguns assistentes chegava e prendia os
dois. Quando fossem levados a um juiz, o pegador de
ladrões conseguiria que seu cúmplice secreto fosse
admitido como prova e o pobre tolo seria condenado; a
recompensa seria dividida entre o pegador de ladrões e o
cúmplice. Subsequentemente, o cúmplice se tornaria um
pegador de ladrões, por sua vez, usando outro cúmplice
para enredar outro ingênuo inocente.7

Casanova, visitando Londres de 1763 a 1764, observou


placas nas janelas anunciando a disponibilidade de testemunhas
falsas.8 Os jurados, sabendo que as testemunhas esperavam
compartilhar a recompensa da condenação, desconsideraram seu
depoimento de acordo.
John Townsend, um dos mais famosos dos Bow Street
Runners, comparecendo perante uma comissão parlamentar em
1816, argumentou que os pagamentos aos oficiais não deveriam
depender de condenação, pois se dependessem, o oficial teria

7Norton 2003, 17.


8“A facilidade com que falsas testemunhas podem ser encontradas em
Londres é realmente escandalosa. Um dia, vi um aviso colocado em uma
janela com a palavra 'testemunha' em letras maiúsculas. Isso significava que
a pessoa que morava no apartamento era uma testemunha profissional.”
(Casanova 1970, 9:341).

370
Inglaterra no Século XVIII

um incentivo para condenar um réu, quer ele fosse ou não


culpado:

Tenho, com toda a atenção que o homem pode conceder,


observado a conduta de várias pessoas que deram provas
contra seus semelhantes para a vida ou morte, não apenas
em Old Bailey, mas nos circuitos, e sempre fui
perfeitamente convencido de que [recompensas não
dependentes de condenação] seria a melhor forma que
possivelmente poderia ser adotada para pagar oficiais,
especialmente porque eles são criaturas perigosas; eles
frequentemente têm o poder (sem dúvida) de virar aquela
balança, quando o feixe está nivelado, do outro lado; digo
contra o pobre coitado do bar: por quê? Essa coisa
chamada natureza diz que o lucro está na balança; e,
melancólico relatar, mas não posso deixar de estar
perfeitamente satisfeito, que frequentemente esse tem
sido o meio de condenar muitos e muitos homens.9

Talvez por causa de tais problemas, o sistema de


recompensas foi reduzido em meados do século XVIII. Foi
complementado em 1752 por um dispositivo que permitia ao
tribunal reembolsar os procuradores, especialmente os pobres,

9Report 1816, 204. De acordo com um magistrado que testemunhou perante


uma comissão parlamentar em 1816, “é muito comum para um indivíduo que
sofreu um grande dano oferecer recompensas de uma quantia muito grande;
um banqueiro às vezes oferece £500 pela apreensão de seu caixa, que pode
ter fugido com milhares.” (Report 1816, 204.) Argumentou-se que os júris
relutavam em confiar no testemunho de oficiais cuja recompensa dependia de
persuadir o júri a condenar (Report 1816, 179 e outros). Em 1818, o ato de
Bennet substituiu as recompensas por condenação por um reembolso mais
generoso dos custos (Beattie 1986, 58-9).

371
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

pelas despesas da acusação.10 Embora esse reembolso reduzisse


o desincentivo ao processo, não o eliminava. Mesmo que o réu
fosse condenado, as despesas nem sempre eram reembolsadas
ou integralmente reembolsadas. Somente em 1778 tornou-se
possível para um procurador ser reembolsado por uma acusação
mal sucedida.
A insatisfação com os problemas percebidos do processo
privado e a preocupação com o que era percebido como uma
taxa de criminalidade alta e crescente acabou levando à
introdução de forças policiais pagas, primeiro em Londres em

10Isso não eliminou totalmente o problema. No século XIX, houve acusações


de que a polícia às vezes conspirava com advogados para condenar os réus.
Os advogados seriam reembolsados pelo tribunal por seus serviços e
devolveriam parte do dinheiro à polícia. Tal esquema dependia do tribunal
estar disposto a pagar mais em despesas do que o custo real para o advogado
dos serviços prestados.

372
Inglaterra no Século XVIII

1829 e depois em outras partes da Inglaterra.11 A polícia


substituiu os procuradores privados grande parte do custo de
localizar e condenar criminosos. O resultado, durante o final do
século XIX, foi um sistema em que a maior parte da acusação
era nominalmente privada, mas em que o procurador privado
geralmente era um policial.
É bastante fácil agora, foi bastante fácil antes, ver por que
um sistema de acusação privada não poderia funcionar. O
enigma é que funcionou. Não está claro se funcionou melhor ou
pior do que as instituições alternativas. Mas sabemos que,
durante o século XVIII, muitos criminosos ingleses foram
11O processo foi mais gradual do que sugere uma única data. A partir da
década de 1750, foram estabelecidos “escritórios rotativos” em Londres, nos
quais um magistrado podia ser encontrado rotineiramente. Com o tempo,
grupos de policiais se formaram associados a escritórios rotativos
específicos, especialmente o escritório de Bow Street ocupado primeiro por
Henry Fielding e depois por seu irmão cego John. Os policiais eram
coordenados pelos magistrados, mas se sustentavam com recompensas por
processos bem-sucedidos e pela devolução de bens roubados. Em 1785,
houve uma tentativa mal sucedida de estabelecer uma organização policial
em Londres (Beattie 1986, 66). Em 1792, os escritórios rotativos recebiam
até seis policiais assalariados cada, embora se esperasse que eles ganhassem
grande parte de sua renda com recompensas. A mudança não eliminou
totalmente os problemas associados aos pegadores de ladrões amadores.
Policiais pagos, um deles um mensageiro de Bow Street, estiveram
envolvidos em um escândalo de armadilhas em 1816 e vários mensageiros de
Bow Street parecem ter acumulado fortunas substanciais, presumivelmente
de alguma combinação de recompensas e pagamentos por acordo
(Radzinowics 1957, 2: 268, 333 -337). Os júris desconfiavam do depoimento
da polícia no início do século XIX pela mesma razão que haviam
desconfiado dos procuradores particulares e de suas testemunhas em meados
do século XVIII, a suspeita de que era dado na esperança de receber uma
recompensa pela condenação. (Radzinowicz 1957, 2:344-346.) Problemas
semelhantes de armadilhas e perjúrio oficial não são desconhecidos hoje,
embora as recompensas policiais assumam formas mais indiretas.

373
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

acusados, processados e condenados. Embora a propriedade


possa não ter sido tão segura quanto seus proprietários
desejavam, ela era suficientemente segura para permitir uma
economia florescente e uma quantidade impressionante de
crescimento econômico. No final do século, foi o estado francês,
com seu moderno sistema de polícia e procuradores, que
sucumbiu no caos da Revolução Francesa, enquanto a Inglaterra
prosseguiu rumo às glórias do império e da revolução industrial.

Parte II: Punição nos Extremos


É uma verdade melancólica que, entre a variedade de
ações que os homens estão diariamente sujeitos a
cometer, nada menos que cento e sessenta foram
declarados por ato do parlamento como crimes sem o
benefício do clero; ou, em outras palavras, ser digno de
morte instantânea. Uma lista tão terrível, em vez de
diminuir, aumenta o número de infratores. Os feridos, por
compaixão, muitas vezes deixarão de processar: os júris,
por compaixão, às vezes esquecerão seus juramentos e
absolverão o culpado ou atenuarão a natureza da ofensa;
e recomendá-los à misericórdia real. Entre tantas
possibilidades de fuga, o necessitado ou o ofensor
empedernido se descuida da multidão que sofre; ele
corajosamente se envolve em alguma tentativa
desesperada de aliviar seus desejos ou suprir seus vícios;
e, se inesperadamente a mão da justiça o alcança, ele se
considera particularmente infeliz, ao cair finalmente
como um sacrifício àquelas leis, que a longa impunidade
o ensinou a desprezar.
(Blackstone 1884, livro 4, capítulo 1)

374
Inglaterra no Século XVIII

As ofensas caíam em três categorias de acordo com sua


possível punição: ofensas menores (principalmente
contravenções ), crimes clerigáveis e crimes não clerigáveis.
12

Ofensas menores, como pequenos furtos, roubo de mercadorias


com valor inferior a um shilling, geralmente recebiam punições
destinadas em grande parte a envergonhar o infrator, como
açoitamento público ou exposição no estoque. Os acusados de
tais crimes estavam sujeitos a julgamento antecipado por um
magistrado, em vez de receber um julgamento por júri.13
Além dos crimes que se poderia esperar que fossem
processados pela vítima, havia o que poderíamos classificar
como crimes sem vítimas, em particular vadiagem, prostituição
e mendicância. Os policiais ou membros da guarda noturna
deveriam prender os culpados de tais crimes, levá-los a um
magistrado e receber uma pequena recompensa por isso. A
penalidade usual era um breve período de confinamento em
trabalhos forçados.

12Blackstone (livro IV, capítulo 7) classifica o furto como um crime não


capital em vez de uma contravenção, afirmando que “CRIME GRAVE, na
aceitação geral de nossa lei inglesa, compreende todas as espécies de crime,
que ocasionava no common law o confisco de terras ou bens”. Mas ele
também escreve “A ideia de crime grave é de fato tão geralmente conectada
com a de pena capital, que achamos difícil separá-las; e a esse uso as
interpretações da lei agora se conformam. E, portanto, se um estatuto torna
qualquer novo crime grave, a lei implica que deve ser punido com a morte,
viz. por enforcamento, bem como com confisco: a menos que o ofensor rogue
pelo benefício de clero; que todos os criminosos têm o direito de ter, a menos
que o mesmo seja expressamente retirado por lei.”
13Às vezes, essas punições se tornavam mais do que insignificantes; um

condenado suficientemente impopular pode ser atacado no pelourinho, às


vezes até morto (Beattie 1986, 466-468).

375
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Benefício de Clero
O benefício de clero originou-se como uma regra legal que
permitia que os clérigos acusados de crimes capitais tivessem
seus casos transferidos para um tribunal da igreja, que não
impunha a pena capital. “Clérigo” passou a ser definido como
qualquer um que soubesse ler, geralmente testado fazendo-o ler
um versículo específico da Bíblia, conhecido por esse motivo
como o “verso do pescoço” — memorizá-lo poderia salvar o
pescoço de um réu.
Durante o século XVIII, a regra havia mudado de forma a
torná-la inteiramente secular.14 Os estatutos de 1623 e 1691
estenderam o privilégio de alguns crimes às mulheres, sem
exigência de alfabetização. Depois de 1706, os homens não
eram mais obrigados a demonstrar alfabetização.
De acordo com o estatuto Tudor, um réu que declarasse
ser clero poderia ser preso por até um ano, mas isso parece ter
sido feito apenas raramente.15 Os réus que não eram realmente
clérigos tinham o direito de alegar clero apenas uma vez; a
marca no polegar pode ter se originado como um dispositivo
para identificar aqueles que se apelaram ao clero uma vez e,
portanto, não poderiam fazê-lo novamente. Mas essa restrição
não parece ter sido aplicada com muita frequência. Em teoria,
ser condenado por um crime deveria resultar em confisco de
propriedade e terra, com a terra sendo devolvida a um criminoso

14Em 1576 “foi abolida a exigência de que o criminoso clerigáveis fosse


entregue ao ordinário para sofrer a purgação. Dali em diante, o apelo bem-
sucedido de clero seria seguido de dispensa imediata.” (Beattie, 142). Os
tribunais da igreja ainda desempenhavam um papel em “testamentos e
casamentos e casos ocasionais de calúnia”. (Hay 1975a, 30.)
15Beattie 1986, 492.

376
Inglaterra no Século XVIII

que apelou clero e foi marcado,16 mas isso também não parece
ter sido aplicado. Presumivelmente, a marca teve algum efeito
estigmatizante. Isso, mais os custos suportados pelo réu antes de
sua condenação,17 parece ter sido em alguns períodos a única
pena realmente imposta à maioria dos condenados por um delito
clerigável.18 Isso deixou de ser verdade quando o ato de
transporte de 1718 tornou possível condenar alguns réus que
apelaram clero (mas não nobres, clérigos reais ou aqueles cujo
crime foi homicídio culposo) ao transporte para a América por
sete anos de servidão contratada.
Crimes clerigáveis eram crimes pelos quais, sem o
benefício do clero, a punição era a morte. Homicídio culposo,
por exemplo, era um crime clerigável. Sua definição incluía
muitos crimes que definiríamos como assassinato. Um

16Blackstone (livro IV, capítulo 14): “o crime de homicídio culposo equivale


a crime grave, mas dentro do benefício do clero; e o ofensor será queimado
na mão e perderá todos os seus bens e bens móveis.” Mas “E, podemos
observar, 1. Que por sua convicção ele perde todos os seus bens para o rei;
que, uma vez investido na coroa, não será posteriormente restaurado ao
criminoso. […] Que pela queima ou perdão dela, ele é restaurado a todas as
capacidades e créditos e à posse de suas terras, como se nunca tivesse sido
condenado.” (Livro IV, cap. 28.) Mathew Hale (1800, 388-9), a quem
Blackstone faz referência, parece claro: “3. Que por sua condenação ele
perde todos os seus bens que possuía no momento da condenação, apesar de
sua mão ser queimada. […] 5. Que logo após a queimadura na mão, ele deve
ser restaurado à posse de suas terras […].”
17Um réu pode passar até seis meses na prisão esperando para ser julgado. As

prisões eram desagradáveis e insalubres; veja Beattie 1986, 298-309. “De


fato, 1750 viu o surto mais memorável (de febre carcerária) do século,
porque levou não apenas dezenas de prisioneiros, mas, após a sessão de abril
em Old Bailey, mais de cinquenta pessoas que estiveram no tribunal, entre
elas o Lord Mayor de Londres, dois juízes, um vereador, um advogado,
vários funcionários do tribunal e vários membros do júri.” (Ibid 304.)
18Beattie 1986, 88, 471.

377
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

assassinato em uma briga de taverna, mesmo que feito com uma


arma mortal, era homicídio culposo, desde que não houvesse
evidência de premeditação ou inimizade anterior. O assassino
foi autorizado a apelar seu clero, marcado no polegar e
liberado.19

Transporte
O uso em larga escala de transporte como punição
criminal começou por volta de 1663. Foi imposto tanto a réus
condenados por crimes capitais não clerigáveis e perdoados sob
a condição de transporte quanto a alguns réus condenados por
crimes clerigáveis. Até que a exigência de alfabetização fosse
abolida, um juiz que desejasse transportar tal criminoso poderia
optar por testá-lo rigorosamente e descobrir que o réu não era
alfabetizado e, portanto, não tinha direito ao benefício de clero
ou, se o réu já havia sido marcado por um crime anterior, o juiz
poderia aplicar a regra que proíbe os não clérigos de apelarem
clero mais de uma vez.
O transporte era feito por comerciantes privados. Um
comerciante que desejasse transportar um criminoso era
obrigado a pagar ao xerife “um preço por cabeça que incluía
taxas de prisão, honorários do escrivão do tribunal apropriado,
taxas para redigir o indulto e assim por diante”.20 Depois de
transportar o criminoso para o Novo Mundo, o comerciante
poderia vendê-lo como servo contratado por um período
dependendo do seu crime. Esta era uma transação lucrativa se o
criminoso fosse jovem e saudável ou tivesse habilidades úteis,
mas muitos criminosos não traziam retorno suficiente para pagar
19A partir da década de 1760, porém, houve algum uso de prisão por
homicídio culposo. Beatie 1986, 88.
20Beattie 1986, 479.

378
Inglaterra no Século XVIII

o custo do comerciante. O resultado foi que criminosos que


haviam sido condenados à deportação, mas que ninguém estava
disposto a transportar, acumulavam-se em prisões destinadas a
locais de detenção temporária.
Outro problema era com as colônias para onde os
criminosos eram enviados; na década de 1670, Virgínia e
Maryland aprovaram leis proibindo o transporte. John Beattie,
um importante historiador do período, conclui que “o transporte
para as colônias continentais estava sendo seriamente
restringido na década de 1670”.21 Embora alguns transportes
continuassem, parece ter se tornado uma punição incomum no
final do século XVII.
O segundo período de transporte começou em 1718. Desta
vez, o governo não fez nenhuma tentativa de cobrar dos
comerciantes pelo privilégio de transportar criminosos
condenados, em vez disso, ofereceu um subsídio de £3 por
transportado. Nesses termos, o transporte era lucrativo. O
sistema continuou até que a Revolução Americana removeu a
maioria dos lugares para os quais os transportados eram
enviados pela autoridade da coroa.22
Depois de 1776, várias medidas temporárias foram usadas
para lidar com prisioneiros que, de outra forma, teriam sido
transportados. Alguns, confinados em cascos ancorados no
Tâmisa, foram usados como mão-de-obra forçada para obras de
21Beattie1986, 480.
22Beattiesugere que o transporte começou a cair em desuso alguns anos antes
da revolução. Sua explicação é que não se acreditava mais que fornecesse
punição adequada ou incapacitação adequada. As viagens transatlânticas
tornaram-se substancialmente mais seguras e menos caras durante os
cinquenta anos após 1720. Um deportado poderia escapar de seu contrato de
trabalho ou (se tivesse dinheiro) evitá-lo pagando o capitão que o transportou
e voltando para a Inglaterra ilegalmente.

379
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

melhoria do rio. Outros foram mantidos em prisões. Nenhum


desses expedientes se mostrou satisfatório e acabaram sendo
substituídos pelo transporte para a Austrália. Mais ou menos ao
mesmo tempo, houve tentativas de expandir e regularizar o uso
de prisões de longo prazo. Embora inicialmente frustrados pela
relutância dos governos locais em construir as instalações
necessárias, tais tentativas acabaram sendo bem-sucedidas.

O Escopo das Punições


Junto com a ampliação da classe de réus com benefício
permitido de clero, veio um estreitamento da gama de crimes
clerigáveis. Sob os Tudors, uma variedade de crimes graves23
foram tornadas não clerigáveis. A partir do final do século XVII,
muitos outros foram adicionados.24 O resultado foi um sistema
jurídico no qual a única punição para alguns crimes capitais era
um polegar marcado, enquanto para muitos outros a única
punição que um juiz poderia impor era a forca.
23Até o final do século XVI, o clero havia sido removido de, entre outros
delitos, de pequena traição (matar seu “senhor, mestre ou soberano
imediato”), assassinato, invasão de domicílio (quando havia alguém na casa
que era “colocado intimidado”), roubo em rodovias, roubo de cavalos, roubo
de igrejas, furtos e invasão domiciliar. A maioria das formas de furto
permaneceu clerigável. (Beattie 1986, 144.)
24Tirar mercadorias de uma casa quando o proprietário estava presente e

intimidar e invadir casas, lojas e armazéns e roubar no valor de cinco


shillings (1691), furtar em lojas no valor de cinco shillings e furtos no mesmo
valor de estábulos e armazéns (1699), furto de casa ou telheiro no valor de
quarenta shillings, mesmo sem arrombamento e mesmo sem a presença de
alguém (1713), furto de ovelhas (1741), furto de gado (1742), furto de
branqueamento fundo de linho ou tecido de algodão no valor de dez shillings
ou mais (1731, 1745), roubo de um navio em um rio navegável ou de um cais
de mercadorias avaliadas em quarenta shillings ou mais (1751), roubo dos
correios (1765). (Beattie 1986, 144-145.)

380
Inglaterra no Século XVIII

Embora o enforcamento tenha sido, durante grande parte


do século, a única punição que um juiz poderia impor para
crimes graves não clerigáveis, isso não significava que todos os
acusados de tais crimes, ou mesmo todos os condenados, fossem
realmente enforcados. Algumas acusações foram rejeitadas pelo
fracasso do grande júri em indiciar.25 Uma fração substancial
dos réus foi absolvida. Dos condenados, muitos foram
condenados por um delito menor. Um júri pode considerar um
réu culpado de um delito punível com chicotadas ou pelourinho,
seja para impedir que o ofensor apele a seu clero e seja libertado
ou para evitar que seja condenado por um delito capital e
enforcado. Depois de 1717, eles podem considerá-lo culpado de
um crime clerigável em vez de não clerigável, a fim de
converter a punição de enforcamento em transporte.
Em alguns casos, o veredicto foi claramente um ato de
“perjúrio piedoso” do júri. A ficção ficou clara quando um júri
considerou um réu culpado de roubar bens de uma casa no valor
de 39 shillings, embora os bens incluíssem mais do que isso em
dinheiro; 40 shillings era o valor que tornaria o roubo não
clerigável.26 Em outros casos, o júri não incluiu em seu
veredicto características do crime, como o fato de que o roubo
foi de uma casa à noite ou envolveu arrombamento e entrada,
isso o tornaria não clerigável. O efeito combinado de

25Beattie calculou, para o período de 1660-1800, que 11,5% dos projetos de


lei submetidos ao grande júri de Surrey por crimes graves contra a
propriedade capital e 14,9% daqueles por assassinato foram rejeitados.
(Beattie 1986, 402).
26Exemplos citados por Beattie (1986, 424) incluem “roubo de vinte e três

guinéus de uma casa [...]; rendas avaliadas em mais de cem libras na


acusação [...]; anéis e joias de ouro [...] avaliados pelos proprietários em mais
de trezentas libras [...]”. Todos estes foram "considerados pelo júri no valor
de trinta e nove shillings".

381
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

absolvições e condenações por um delito menor (não capital) foi


que, na amostra examinada por Beattie,27 menos de 40% dos
acusados de crimes contra propriedade capital e menos de 25%
dos acusados de assassinato eram realmente condenados por
esses crimes graves.
A condenação não resultava necessariamente em
enforcamento. Era bastante comum que um réu fosse condenado
e depois perdoado. Em alguns casos, o motivo pode ter sido que
o juiz discordou do veredicto do júri e recomendou um indulto
para evitar a execução de uma pessoa inocente. Em muitos
outros casos, o indulto foi o resultado de petições de parentes,
amigos, empregadores e qualquer pessoa disposta a fazer uma
petição à coroa em seu nome.
Alguns indultos resultaram na libertação do condenado.
Outros eram um dispositivo para substituir uma punição menor,
mas ainda séria. O criminoso condenado foi perdoado sob
condição de concordar em ser transportado ou alistar-se no
exército ou na marinha. Multiplicando a fração dos indiciados
por crimes capitais que foram condenados por eles pela fração
dos condenados que foram enforcados, na amostra de Beattie, a
fração de réus acusados de crimes capitais que foram realmente
enforcados foi inferior a 16%.
O quadro geral de punição para ofensas graves era
bastante simples. Para crimes clerigáveis, o infrator condenado
era marcado no polegar e enviado para casa ou, especialmente
depois de 1718, transportado. Para crimes capitais não

27Os números citados aqui são baseados nos arquivos do inquérito judicial do
Home Circuit e nas listas de sessões trimestrais de Surrey e limitados aos
anos de 1660 a 1800, um total de cerca de cem, para os quais evidências de
acusação completas estavam disponíveis. A amostra é descrita em detalhes
por Beattie em seu Apêndice, Beattie 1986, 639-643.

382
Inglaterra no Século XVIII

clerigáveis, dos quais havia muitos, o infrator condenado era


perdoado, perdoado e transportado, perdoado sob condição de
alistamento ou enforcado. As cadeias eram usadas para confinar
réus aguardando julgamento ou condenados aguardando
punição.28 Ocasionalmente, algo dava errado com o sistema e
prisioneiros condenados começaram a se acumular no sistema
prisional. Rumo ao final do século, surgiram propostas para
expandir o uso do confinamento como punição e alguns esforços
começaram nesse sentido.

Parte III: Três Quebra-Cabeças


Enquanto os contemporâneos, antes como agora, se
preocupavam com o aumento das taxas de criminalidade, parece
haver pouca evidência de que as taxas de criminalidade
estivessem realmente aumentando. Os números de Beattie,
baseados em acusações de homicídio per capita, sugerem que as
taxas de homicídios rurais caíram mais de quatro vezes e as
urbanas cerca de nove vezes entre 1660 e 1800. Combinando
essas informações com dados do século XIX,29 parece provável
que grande parte, talvez a maior parte, da queda na taxa de

28Não estou considerando aqui o uso de casas de trabalho e outras formas de


confinamento para aqueles que não são culpados de delitos graves, como
vagabundos. Além disso, um juiz que quisesse punir um delito menor com
prisão poderia impor uma multa que o réu não pudesse pagar, manter o réu na
prisão por não pagar a multa e retirar a multa após o que o juiz considerasse
uma pena de prisão adequada.
29A taxa de homicídios conhecida pela polícia na Inglaterra de 1906-1910 foi

de 0,8 por 100.000 (Gurr 1981). As taxas de indiciamento por homicídio


relatadas por Beattie caíram de 8,1 por 100.000 (1660-1679) para 0,9 (1780-
1802) nas paróquias urbanas de Surrey, de 4,3 para 0,9 nas paróquias rurais
de Surrey e de 2,6 para 0,6 em Sussex (rural).

383
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

criminalidade entre 1660 e 1900 ocorreu antes da introdução da


polícia paga.30
Tais conclusões devem ser qualificadas pelo fato de que os
dados dos séculos XVII e XVIII refletem acusações de
homicídio, não homicídios. Se a fração de homicídios resultando
em indiciamentos caiu acentuadamente de 1660 a 1800, isso
poderia explicar os dados sem qualquer diminuição na taxa de
homicídios. Mas parece não haver evidências de um declínio
nessa escala. Beattie conclui que, embora parte do declínio na
taxa de indiciamento possa refletir uma mudança em quais
eventos foram processados como homicídio, pelo menos parte
se deve a uma queda real na taxa de homicídios.31
Para entender como e por que o sistema funcionava
daquela forma, há pelo menos três quebra-cabeças a serem
resolvidos. A primeira é por que os particulares optaram por
arcar com o custo do processo, mesmo quando não havia
perspectiva de uma recompensa. A segunda é a razão pela qual o
sistema legal usou o leque limitado de punições que fez, com
muito pouco uso da prisão. A terceira é por que o sistema legal

30Koyama (2014, 281-282) oferece evidências de que as taxas de crimes não


violentos aumentaram de 1807 a 1838, conforme refletido no aumento de
internações. Dados de internação não estão disponíveis antes, mas “estudos
locais certamente sugerem que os crimes contra a propriedade estavam
aumentando no final do século XVIII”.
31Beattie 1986, 108-109. Um projeto interessante, que até onde sei não foi

feito, seria examinar as estatísticas de acusações de homicídio durante o


período imediatamente anterior e durante a introdução da polícia profissional,
na tentativa de determinar se houve uma mudança significativa na proporção
de acusações de homicídios.

384
Inglaterra no Século XVIII

impôs punições altas com baixa probabilidade.32 Se a execução


era a punição correta para qualquer um que roubasse
mercadorias no valor de quarenta shillings ou mais de uma casa,
por que apenas uma pequena minoria dos flagrados cometendo
esse crime era enforcada? Se era muito alto, por que o sistema
legal não estabeleceu uma punição mais baixa e a infligiu
consistentemente?

O Incentivo para Processar


Duas características do sistema podem ajudar a resolver o
primeiro quebra-cabeça: a dissuasão como um bem privado e a
combinação de acordos extrajudiciais.

Dissuasão como um Bem Privado


Considere a situação do ponto de vista de uma potencial
vítima de crime. Ele gostaria que ladrões em potencial
acreditassem que, se fossem pegos roubando dele, seriam
processados em toda a extensão da lei. Mas se ele realmente
pegasse um ladrão, ele ficaria fortemente tentado a não
apresentar queixa. Levar o caso até o fim como procurador
privado pode custar muitas vezes o valor dos bens roubados.33 O
32A probabilidade aqui é para indivíduos que foram presos e acusados. Não
sabemos que fração de crimes resultou na prisão do criminoso, mas há
evidências que sugerem que foi baixa. Fontes contemporâneas descrevem o
furto como comum, mas “em 61 anos, apenas 92 acusações por furto foram
apresentadas aos magistrados de Surrey”. (Beattie 1986, 180). Relatos
contemporâneos descrevem alguns criminosos como praticantes por muitos
anos antes de serem finalmente capturados e julgados.
33Philips (1989, 116) cita o caso do Sr. James Bailey, membro de uma

associação para a acusação de criminosos, que conseguiu recuperar seu


cavalo roubado e processar o ladrão. Seu gasto total no caso chegou a
£66.9s.7d. Philips, 115. Um cavalo valia “de £10 a £50”.

385
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

procurador não só teve que pagar honorários advocatícios, mas


também teve que pagar despesas de transporte e hospedagem
para que suas testemunhas comparecerem ao tribunal, muitas
vezes à distância de um dia de viagem ou mais de suas casas.
Um procurador bem-sucedido pode ser reembolsado pelas
despesas pelo tribunal, mas é improvável que tal reembolso
cubra todas as despesas.34 Se o criminoso tiver que ser
localizado e preso antes de ser processado, haverá custos
adicionais, possivelmente incluindo o custo de publicidade e
pagamento de recompensa. Vítimas potenciais desejavam que
criminosos potenciais fossem dissuadidos. Mas, para alcançar
esse resultado, deveria ser do interesse das vítimas verdadeiras
processar criminosos verdadeiros.
Uma solução era a reputação.
Um comerciante que esperava ser um
alvo frequente de roubo pode
processar um ladrão para assegurar a
sua determinação a outros. Mas a
maioria das vítimas potenciais teria
sorte se pegasse um ladrão na vida.
Como elas poderiam se comprometer
antecipadamente para que os ladrões
potenciais soubessem que seriam
processados?
A solução foi entrar para uma associação de processo de
criminosos. A maioria dessas associações consistia de vinte a

34Das £66.9s.7d disponibilizadas por James Bailey, £38.8s.6d foram


reembolsados pelo tribunal.

386
Inglaterra no Século XVIII

cem membros, todos vivendo na mesma área geral.35 Cada uma


contribuía com um pagamento fixo para um fundo comum,
dinheiro que poderia ser usado para pagar o custo de processar
um crime cometido contra qualquer membro. A lista dos
membros era publicada no jornal local.
Milhares de associações de processo foram estabelecidas
no século XVIII e no início do
século XIX.36 Interpreto sua função
principal não como seguro, mas
como compromisso. Ao ingressar
em tal associação, uma vítima em
potencial se comprometeu a
processar. O dinheiro já havia sido
pago. Foi por isso que a lista de
membros foi publicada no jornal
local — para os criminosos lerem.37
Nem todos aderiram a tal
associação. Embora seja impossível
fazer estimativas muito exatas, os membros e suas famílias eram
certamente uma minoria, possivelmente uma pequena minoria,
da população. Houve pelo menos duas razões diferentes para

35Minha descrição aqui é baseada em Philips 1989 e King 1989 e ignora


variações consideráveis nas instituições reais. Alguns cobriam mais do que
uma área local. Alguns cobravam valores diferentes de membros de
diferentes status. Informações adicionais sobre a associação de acusação
podem ser encontradas em Koyama 2014.
36Philips 1989 oferece estimativas do número de tais associações que chegam

a 4.000 associações por volta de 1839 e acredita que “pelo menos 1.000” é
um bom número de trabalho.
37Um incentivo adicional era que o secretário da associação provavelmente

seria um advogado com alguma experiência em capturar e processar


criminosos.

387
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

não aderir, correspondendo a dois grupos diferentes de não


membros. A primeira consistia em vítimas potenciais para quem
a dissuasão já era um bem privado. Indivíduos ricos, empresas
que eram grandes ou particularmente sujeitas a roubo, eram
jogadores reincidentes com um incentivo de reputação adequado
para cumprir seu compromisso de processar. A segunda
consistia naqueles para quem a dissuasão privada não valia seu
preço: vítimas potenciais cujos custos esperados do crime eram
baixos o suficiente para tornar o valor da dissuasão menor do
que seu custo.38
A dissuasão privada não pode ser a explicação completa
de por que os crimes graves foram processados, uma vez que os
registros judiciais sobreviventes revelam muitos casos em que o
procurador não era associado a uma associação de processo,
ricos ou representante de uma empresa. Qual foi, nesses casos, o
incentivo para processar?
Uma resposta popular na época era que os procuradores
eram motivados por um desejo de vingança. Outra resposta
possível é que a acusação às vezes era um passo necessário para
recuperar propriedade roubada.39 Outra é que os procuradores

38Uma razão relacionada para não ingressar seria a privatização imperfeita da


dissuasão. Quanto menos proeminente fosse uma vítima em potencial, menos
provável era que um ladrão em potencial soubesse o suficiente sobre seus
compromissos para ser dissuadido por eles. E a dissuasão privada seria inútil
contra crimes, como a maioria dos roubos em rodovias, cometidos por
criminosos que não sabiam quem eram suas vítimas.
39"Ela voltou na segunda-feira quando veio e pediu seu vestido, e ela o teria

onde o encontrasse, mas eu não o faria, a menos que ela processasse o


prisioneiro." (testemunho de Francis Smith, penhorista). (Ryder Old Bailey
Notes, 33: R. v. Ann White). “Na condenação por furto, em particular, o
promotor terá a restituição de seus bens, em virtude do estatuto 21 Hen. VIII,
c. 11.” Blackstone, livro IV, capítulo 27, 362.

388
Inglaterra no Século XVIII

começaram as ações na esperança de serem pagos para não as


concluir.

Em Defesa do Acordo de Crimes


Uma forma de resolver um processo civil é por meio de
um acordo extrajudicial. O equivalente em um sistema de direito
penal privadamente processado é o procurador agravar o crime,
concordando em troca de compensação para não apresentar
queixa. Acordar uma contravenção era legal na Inglaterra do
século XVIII. Os magistrados parecem ter sentido que parte de
seu trabalho era encorajar acordos privados entre o ofensor e a
parte lesada, mantendo assim as disputas fora dos tribunais.

Não é incomum, quando uma pessoa é condenada por


uma contravenção, que afeta principal e mais
imediatamente algum indivíduo, como um ataque […]
que o tribunal permita que o réu fale com o procurador,
antes que qualquer sentença seja proferida; e se o
procurador se declarar satisfeito, infligir apenas uma
punição trivial. Isso é feito para reembolsar o procurador
por suas despesas e fazer algumas reparações
particulares, sem os problemas e circuitos de uma ação
civil. Mas certamente é uma prática perigosa [...] os
processos por agressões são iniciados por esses meios

389
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

com muita frequência, mais para lucro privado do que


para os grandes fins de justiça pública.40

Acordar um crime era ilegal depois que as acusações


foram feitas, mas parece ter sido comum. Um procurador
potencial poderia concordar em não apresentar queixa em troca
de compensação, até mesmo um pedido de desculpas. Depois de
apresentar suas acusações, ele estava sujeito a uma multa se não
levasse o caso a julgamento.41 Ele poderia, no entanto,
comparecer e oferecer uma acusação deliberadamente fraca ou
não comparecer e esperar ser dispensado da multa. Uma das

40Blackstone, capítulo 27. Beattie (1986, 457) argumenta que as multas por
delitos menores eram em grande parte pagamentos simbólicos para mostrar
que as duas partes haviam chegado a um acordo. “Uma multa maior poderia
resultar quando tal acordo não fosse feito, e sua ameaça, juntamente com a
ameaça adicional de que o não pagamento de uma multa alta poderia resultar
em um período de prisão, foi claramente usada pelos tribunais como uma
forma de persuadir um prisioneiro recalcitrante chegar a um acordo com o
queixoso.” Beattie (1986, 457-458) cita o Recorder of London em 1729,...
“Ao discutir um assalto e uma agressão, ele disse que era 'normal nesses
casos o Réu dar satisfação ao Procurador por seus ferimentos, e custos e
encargos — antes do Tribunal definir a multa [...] que normalmente é maior
se o Réu não facilitar o processo ao Procurador, conforme determinado pelo
Tribunal.' [...] '[...] e então se ele se abster de comparecer e processar [o réu]
será dispensado e todas as acusações de um julgamento serão salvas, o que
seria uma grande despesa.” “Em contraste, para a maioria dos processos por
crimes graves contra a pessoa em Sessões Trimestrais, Sessões Trimestrais
são uma mera presença nominal. A ação decisiva — o acordo do caso —
ocorre fora do alcance da audiência dos juízes e geralmente fora dos muros
de seu tribunal. Sob esse prisma, as Sessões Trimestrais são apenas uma
instituição estruturada de forma a estimular que as disputas sejam resolvidas
extra-institucionalmente.” (Landau 1999, 533).
41“O acordo de ações penais, originalmente permitida, foi tornada ilegal por

18 Eliz. c. 5, tornado perpétuo por 27 Eliz. c. 10.” (Radzinowicz, 2:138n2.)


Veja também Blackstone, livro IV, capítulo 10 partes 10 e 14.

390
Inglaterra no Século XVIII

críticas ao sistema de acusação privada, especialmente durante


as tentativas do século XIX de estabelecer um sistema de
procuradores públicos, foi que muitos casos foram arquivados
por causa de acordos entre o procurador e o réu.42
O que os comentaristas modernos e contemporâneos
parecem ter perdido é que, por mais corruptos que tais acordos
possam ser do ponto de vista legal, eles ajudaram a resolver um
problema fundamental do processo privado. A possibilidade de
acordo fornecia um incentivo para processar. Ela converteu um
processo criminal em algo mais parecido com um processo civil,
em que a vítima processa na esperança de receber uma
indenização em dinheiro. E embora o acordo possa salvar o
criminoso do laço, ele não saía impune, pois acabava pagando
ao procurador o que na verdade era um pagamento por danos. O
apêndice oferece evidências de que o mesmo mecanismo
fornecia parte do incentivo para o processo privado na forma de
recursos de crimes cinco séculos antes.
Visto desse ponto de vista, os casos que foram a
julgamento representam falhas, não sucessos, do sistema. Em
regra, a perda para o criminoso de ser enforcado ou transportado
era consideravelmente maior do que o ganho resultante para o
procurador. Entre os dois valores havia uma margem de
barganha. Às vezes, a barganha falhava, talvez por causa de
opiniões divergentes sobre a probabilidade de condenação ou os
bens disponíveis para o réu, talvez devido à teimosia mútua em
tentar obter o resultado mais favorável possível. Mas, em
circunstâncias normais, se minha conjectura sobre como o
sistema funcionava estiver correta, algum pagamento em
dinheiro ou bens, oferecido pelo próprio réu ou por outros em

42Kurland Waters 1959, 512.

391
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

seu nome, seria acordado.43 Esse pagamento puniria o réu,


recompensaria o procurador, e indenizaria a vítima se, como
geralmente acontecia, a vítima era o procurador.
Não sabemos quão comuns eram tais arranjos. Um estudo
de casos do século XVIII descobriu que “28 dos 227
procuradores obrigados por fianças a comparecer às sessões
trimestrais de Essex falharam em indiciar, mas apenas dois
tiveram suas fianças confirmadas”.44 O fato de que a pena para
um promotor que falhou em indiciar raramente foi aplicada é
consistente com a visão de que acordar um crime era uma opção
prática para um procurador. A pequena porcentagem de casos
43A seguir, alguns exemplos que encontrei:
“Ainsworth foi pego roubando, implorou repetidamente a
Blundell para não processar e entrou em negociações para trabalhar
em uma das casas de seu mestre em troca de perdão.” (Hay et al.
1975, 41).
“Sra. Woodb. perguntou Ann Wh. para pagar o dinheiro e ela
disse que o faria, desde que não houvesse mais problemas depois.”
(Ryder Old Bailey Notes, 34, R. v. Ann White). Isso foi do testemunho
de Francis Smith, penhorista. A Sra. Woodburn era a dona do vestido
roubado; Ann White era a mãe da ladra acusada, também chamada
Ann White. O dinheiro estava sendo pago a Smith para resgatar o
vestido, para que pudesse ser devolvido à sua dona. A Ann White
mais velha pagou o dinheiro, mas mesmo assim sua filha foi acusada e
condenada.
Jo. Watkins, pai do prisioneiro. “O promotor esteve comigo e
queria dinheiro para interromper o processo, tendo feito grandes
despesas. Mas eu recusei. [...] Ele disse, eu não daria nada para salvar
meu filho? (Ryder Old Bailey Notes, 53). A menina, que foi acusada
de ter roubado e penhorado um colete rendado, foi absolvida,
aparentemente porque era muito jovem (11) para ter discrição
suficiente para ser considerada culpada de um crime.
44King 1984, 27. Beattie (1986, 401) afirma que “a grande maioria daqueles

cometidos por magistrados para serem julgados por crimes foram acusados e
levados a tribunal, [...]” mas não fornece números reais.

392
Inglaterra no Século XVIII

descartados, por outro lado, é uma evidência contra. Não inclui,


no entanto, os promotores que foram subornados antes de
apresentar as acusações ou os que apresentaram uma acusação,
talvez para evitar o risco de penalidades legais por não o fazer,
mas deliberadamente perderam o caso, talvez por deixar claro ao
júri que agora se consideravam satisfeitos ou, se o júri
condenou, persuadiu o juiz de que o réu merecia o perdão.
Um dos motivos pelos quais um caso poderia ir a
julgamento era uma falha na negociação. Outra era que o
objetivo do procurador era a dissuasão e não a compensação. A
execução ou transporte imporia um custo maior para a maioria
dos criminosos do que o maior pagamento que eles poderiam
fazer. Um procurador em busca de dissuasão teria que equilibrar
esse benefício com o que quer que o criminoso estivesse
disposto e pudesse pagar.
Uma vantagem dessas instituições, em comparação com o
direito civil ou multas criminais, era sua flexibilidade superior.
A multa era determinada não pela estimativa do tribunal do que
o réu deveria ou poderia pagar, mas pela negociação entre as
partes mais imediatamente envolvidas. Os réus podem estar
menos ansiosos para parecer à prova de julgamento se a
consequência desse status for o enforcamento. Claro, um
sistema criminal também poderia oferecer ao réu a escolha entre
o enforcamento e o pagamento de uma multa. Como veremos na
Parte VI abaixo, tal transação pode ter estado implícita no
sistema de indulto, embora o pagamento tenha ocorrido de
forma não pecuniária. Mas o tribunal pode ser menos
competente em encontrar a multa certa — a mais alta que o
criminoso (e, possivelmente, seus amigos e familiares) está
disposto a pagar — do que um procurador privado perseguindo
seu interesse particular.

393
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Controlar atos indesejáveis tratando-os como crimes sob


um sistema de processo privado tem outra vantagem sobre a
abordagem alternativa de tratá-los como torts. Para muitos
crimes graves, a vítima também é a melhor testemunha. Em um
sistema civil, onde o sucesso legal produz um pagamento de
indenização do autor do tort para a vítima, a vítima tem um
incentivo para cometer perjúrio, um problema bastante familiar
no direito de tort moderno. Um júri, reconhecendo esse
incentivo, pode ser cético em relação às evidências oferecidas
pelo queixoso por conta própria ou por testemunhas fornecidas
pelo queixoso.
Uma vítima que espera ser paga para retirar as acusações
antes do julgamento tem um incentivo para ameaçar cometer
perjúrio a fim de garantir uma condenação. Mas, a menos que
ele tenha alguma forma de se comprometer a realizar tal
ameaça, não será crível.45 Paradoxalmente, o resultado pode ser
tornar o processo mais lucrativo do que seria sob um sistema
civil. Se o caso for a julgamento, o procurador não ganha nada,
então seu preço de reserva, o preço mais baixo pelo qual o
acordo o torna melhor do que o julgamento, é menor do que sob
o sistema civil. Mas o preço de reserva do réu será maior sob o
sistema criminal, uma vez que a maior credibilidade do
testemunho da acusação sob tal sistema torna a condenação mais
provável. E tal sistema, ao reduzir o incentivo da vítima para
cometer perjúrio, pode fazer um trabalho melhor em distinguir
culpados de inocentes.

45Issopode ou não ser verdade se o principal objetivo do procurador for a


dissuasão. Usar perjúrio para condenar um réu que os criminosos em
potencial acreditam ser inocentes não impede. Usar perjúrio para condenar
uma parte que criminosos em potencial acreditam ser culpados, sim.

394
Inglaterra no Século XVIII

Preocupações com o perjúrio lucrativo e seu efeito


potencial na disposição dos júris de acreditar nas testemunhas
não são inteiramente teóricas, nem são baseadas apenas na
experiência moderna com demandantes que abandonam suas
cadeiras de rodas imediatamente após receberem grandes
indenizações por danos incapacitantes permanentes. O problema
foi discutido no século XVIII no contexto das recompensas pela
condenação de criminosos culpados de determinados crimes.
Como mencionado anteriormente, acreditava-se amplamente
que tais recompensas levavam a armadilhas e tentativas de
incriminar partes inocentes e que tais preocupações se refletiam
no ceticismo de júris. Essas foram algumas das razões do
abandono parcial, em meados do século, do sistema de
recompensas públicas.46
A conjectura que ofereci é relevante não apenas para
explicar por que os crimes eram processados, mas também para
outra questão levantada nas discussões modernas do direito
inglês do século XVIII: sua relação com o sistema de classe e
autoridade. Alguns autores veem a lei como um instrumento
neutro de classe empregado tanto por ricos quanto por pobres
para se protegerem contra a pequena minoria criminosa.47
Outros argumentam que era principalmente um dispositivo pelo

46O problema também foi reconhecido pela lei no contexto relacionado aos
delatores que tinham direito a uma parte da multa paga pelos denunciados.
“Ao processar uma penalidade, um informante foi considerado uma
testemunha incompetente, a menos que seja competente por lei.”
(Radzinowicz 1957, 2:139.)
47Langbein 1983.

395
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

qual os ricos se protegiam dos pobres ou pelo qual a classe


dominante estabelecia e mantinha sua legitimidade.48
Um argumento para o último ponto de vista é que aqueles
com mais recursos eram mais capazes de processar crimes
cometidos contra si mesmos. Isso é certamente verdade, embora
escritores do outro lado do argumento tenham oferecido
evidências de que muitos promotores privados eram membros
comuns da classe trabalhadora. Mas o que ambos os lados não
perceberam foi a tendência do sistema de discriminar em favor
dos criminosos pobres e contra os ricos.
A tática de iniciar um processo a fim de ser pago para
retirá-lo é familiar na literatura sobre processos maliciosos.49
Uma implicação é que o incentivo para processar criminosos é
maior quanto maior for sua capacidade de pagar para que as
acusações sejam retiradas. Uma vítima que pega um ladrão
obviamente sem um tostão é provavelmente melhor dar-lhe uma
surra e soltá-lo, no máximo insistindo em um pedido público de
desculpas. Uma vítima que pega um ladrão bem vestido tem
mais a ganhar processando. O eventual acordo extrajudicial
deixa o ladrão em melhor situação do que se ele tivesse sido
julgado e condenado, mas pior do que se a vítima não tivesse se
dado ao trabalho de processar porque não valeu a pena o custo.
Assim, o processo privado adicionou ao sistema um incentivo
para o processo seletivo daqueles que poderiam pagar para
evitar o risco de julgamento.50
48Este argumento é feito repetidamente em Hay et. al. 1975, em particular em
Hay 1975b. É persuasivamente refutado por John Langbein em Langbein
1983. Para uma re-refutação, veja Linebaugh 1985. Apresento uma versão
diferente do argumento mais adiante neste capítulo.
49Veja Hay 1989.
50O mesmo fenômeno no direito civil moderno é descrito como a procura de

réus em potencial com bolsos cheios.

396
Inglaterra no Século XVIII

Uma questão com a qual um sistema de processo privado


deve lidar é a alocação de direitos de propriedade para processar
crimes específicos. Isso não é um problema se o único incentivo
for a dissuasão — fico feliz por você arcar com o custo de
processar e, assim, dissuadir os criminosos que me prejudicam.
Mas pode ser um problema se o incentivo para o processo for a
oportunidade de ser pago para retirar as acusações ou se um
possível promotor for um cúmplice do criminoso que deseja
controlar a acusação para garantir que ela falhe. Conspirações
entre caçadores ilegais e informantes alegadamente ocorreram
na aplicação das leis de caça.

Se um amigo desse uma informação antes que os guardas


pudessem, isso os impediria de processá-los, pois o
delator tinha direito à multa. Cinco libras esterlinas foram
do caçador ilegal para o JP, depois para o amigo (como
informante) e de volta para o caçador ilegal tomando uma
cerveja na cervejaria.51

As recompensas evitavam esse problema, pois sua


distribuição era determinada pelo juiz, dividida entre aqueles
que ele acreditava ter contribuído para garantir a condenação.
Para obter um acordo extrajudicial ou proteger um
confederado, um promotor que retira as acusações deve ser
capaz de impedir que outro procurador assuma o caso. Uma
vítima que fosse a testemunha principal ou que pudesse
controlar outras testemunhas essenciais estava em posição de
fazê-lo. Outros potenciais procuradores não eram. A única
maneira de fornecer ao infrator uma segurança razoável contra a

51Hay 1975a, 198. Hay afirma que esse era um truque comum, citando Anon
1753, 26. Não conheço nenhum exemplo semelhante no contexto de ofensas
mais sérias.

397
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

acusação era levar o processo adiante o suficiente para tornar as


acusações res judicata e, assim, invocar a proteção de dupla
incriminação.52 Isso pode ser arriscado, pois, uma vez iniciado o
julgamento, ele é controlado pelo juiz, não o procurador.
Se duas pessoas desejassem processar o mesmo crime, o
que aconteceria? Uma possibilidade é que o conflito seja
resolvido pelo magistrado. A primeira etapa usual da acusação,
apresentar acusações ao magistrado, exigia sua aprovação,
embora um promotor tivesse a opção de proceder diretamente ao
grande júri. Outra possibilidade é que a regra “primeiro no
tempo, primeiro no direito” teria se aplicado a tais casos, como
parece ter se aplicado ao caso relacionado de informantes com
direito a receber uma parcela da pena prevista nos estatutos
penais.53

52Um réu poderia se defender contra um processo por pleito de autrefoits


acquit ou autrefoits convict — tendo sido absolvido ou condenado em um
julgamento, ele não poderia ser julgado novamente (4 Blackstone 1884, 335-
336). Não está claro se existia alguma defesa semelhante para um réu que
havia sido acusado, mas não julgado devido ao fato de o promotor não ter
comparecido ao julgamento. A situação equivalente em um processo civil
resultou em um non prosiquiter sendo inserido; o queixoso devia custas ao
réu e uma multa à coroa, mas poderia restabelecer seu processo depois de
pagá-los (3 Blackstone 1884, 296).
53De acordo com Blackstone 1884, 2 Comm. 437, onde um estatuto prevê

uma penalidade devida ao informante, a primeira pessoa que instaura uma


ação “obtém um grau incipiente e imperfeito de propriedade ao iniciar seu
processo: mas não é consumado até o julgamento; pois, se aparecer algum
conluio, ele perde a prioridade que havia conquistado”. Conforme discutido
no apêndice, Klerman encontrou evidências no contexto do século XIII de
que quanto mais provável era que uma acusação arquivada pelo procurador
fosse transferida para o júri pelo juiz, menos processos privados ocorriam.

398
Inglaterra no Século XVIII

Punição e Custo da Punição


Chegamos a seguir ao enigma de por que o sistema legal
usou execução, transporte e, para ofensas menores, humilhação
por açoitamento ou exposição no tronco, mas não, com algumas
exceções, prisão.
Ao considerar a escolha entre punições alternativas, um
conceito útil é a ineficiência da punição: a razão entre o custo da
punição e a quantia da punição.54 Uma multa ou indenização
cobrada sem custo tem uma ineficiência de 0; o que uma pessoa
perde outra ganha, então não há custo líquido. A execução tem
uma ineficiência de cerca de 1; o criminoso perde a vida e
ninguém ganha.55 A prisão praticada nas sociedades modernas
tem uma ineficiência consideravelmente maior que 1. O
criminoso perde a liberdade, ninguém a obtém, e o estado deve
pagar pela prisão.
Uma explicação para o padrão de punições criminais na
Inglaterra do século XVIII é que a prisão de criminosos
condenados era pouco usada porque era muito cara. Isso se
encaixa no padrão semelhante do sistema jurídico chinês.56 A
mudança posterior para o uso extensivo de prisão pode ser
interpretada como, em parte, uma consequência do crescimento
54Para discussões mais detalhadas sobre a ineficiência da punição e sua
relevância para a escolha da punição, veja Friedman 1981 e Friedman 1993.
55A ineficiência é um pouco maior que um se incluirmos o custo de

contratação do carrasco. Pode ser menor que um se o estado obtiver algum


benefício direto da execução, como um cadáver a ser vendido para
dissecação.
56“Como as penas de exílio e servidão penal na dinastia Yuan enfatizavam a

utilização do trabalho, a função da prisão durante Yuan não era privar um


infrator da liberdade per se, mas sim colocar um suspeito sob custódia antes
ou durante um julgamento formal ou deter uma pessoa condenada antes da
imposição final de uma sentença.” (Ch'en 1979, 73.)

399
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

econômico. Uma punição muito cara para um país pobre pode


ser apropriada para um país rico.
Esta conjectura sugere várias questões. A primeira é se a
encarceração no século XVIII era necessariamente mais
ineficiente do que a execução; um sistema penal que estava
disposto a enforcar ladrões de ovelhas não tinha escrúpulos
morais em colocá-los em trabalhos forçados. Se a produção que
pudesse ser extraída dos prisioneiros fosse maior do que o custo
de guardá-los e mantê-los, então a prisão, embora ainda menos
eficiente do que uma multa, seria mais eficiente do que a
execução.
Aparentemente não era. Uma evidência é a tentativa de
usar mão-de-obra prisional para melhorias no Tâmisa quando o
transporte foi interrompido pela Revolução Americana. A
conclusão dos historiadores modernos57 é que o valor do
trabalho realizado era muito menor do que o custo de
manutenção dos prisioneiros.
Uma tentativa mais interessante ocorreu do outro lado do
canal. Criminosos franceses condenados às galés tornaram-se
parte de um elaborado sistema de escravidão administrado pelo
estado.58 Até 1748, eles eram enviados para o arsenal de
Marselha, onde ficava a base da frota de galés. Aqueles em
condições suficientemente boas foram designados para galés
como remadores. O resto foi usado no arsenal para produzir
bens para uso do governo sob a direção de empregadores
privados. Os empregadores privados pagavam um pequeno
57“Duncan Campbell recebia cerca de trinta e oito libras por ano para cada
prisioneiro a bordo de seus navios. O governo obteve o benefício de seu
trabalho, mas não chegou nem perto desse valor. Beattie 1986, 593, citando
Johnson 1970, 9.
58Minha descrição do sistema de escravos de galés é baseada em Andrews

1994.

400
Inglaterra no Século XVIII

salário aos escravos das galés, presumivelmente para fins de


incentivo, e recebiam um subsídio do estado. De acordo com
Andrews, o sistema fornecia ao estado bens abaixo dos preços
de mercado.59
Durante os meses de inverno, as galés eram mantidas no
cais. Seus remadores eram alugados, com guardas, a
empregadores em Marselha. Outros prisioneiros dirigiam
pequenos negócios em barracos no cais, pagando os oficiais de
sua galé com uma parte dos lucros.
Em 1748, as galés foram abolidas; os escravos das galés
foram transferidos para outro lugar, muitos para Brest, a
principal base da frota atlântica. Em Brest, uma elaborada prisão
foi construída para os escravos das galés, implementando as
últimas ideias da penologia do século XVIII. Cada escravo
trabalhava oito dias fora da prisão e oito dias dentro da prisão. O
trabalho externo era principalmente pesado para a frota, mas
prisioneiros com habilidades úteis podiam usá-los. Os oito dias
de prisão foram dedicados a uma mistura de manutenção da
prisão e produção de bens e serviços. Estes últimos eram
vendidos ao público no pátio da prisão, que funcionava como
uma espécie de bazar, com vendedores de mercadorias e
prestadores de serviços acorrentados no local.
A questão interessante para nossos propósitos é se esse
elaborado sistema de trabalho escravo deu lucro ou pelo menos
cobriu seus custos. Ninguém parece ter elaborado as contas
relevantes, mas há evidências indiretas. Enquanto o estado
francês explorava o trabalho de seus escravos de galé, ele fazia
poucas tentativas de explorar o trabalho de um número muito

59Andrews 1994, 326. Ele não oferece evidências para essa conclusão ou
dados que possam ser usados para comparar os ganhos com os custos
associados.

401
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

maior de prisioneiros não condenados às galés. Se o sistema de


escravos nas galés tivesse sido um sucesso claro, é difícil
acreditar que o estado francês do século XVIII, sempre sem
dinheiro, não teria aplicado uma abordagem semelhante ao
restante de sua população carcerária ou pelo menos à mesma
quantidade dela como estava em condições físicas adequadas.
Uma segunda evidência vem do papel desempenhado pela
escravidão das galés na história do encarceramento.60 Por volta
do final do século XV, os estados mediterrâneos com frotas de
galés começaram a usar prisioneiros condenados como
remadores.61 Em alguns casos, os estados sem frotas de galés
comutaram as penas capitais para fornecer remadores para as
frotas de seus aliados mediterrâneos. O resultado foi uma
mudança substancial da pena de morte em favor da escravidão
nas galés.
Essa sequência de eventos sugere que remar uma galé era
um trabalho suficientemente adequado para o trabalho escravo
para mais do que pagar seu custo, convertendo a prisão de uma
punição menos eficiente do que a execução em uma mais
60Langbein 1976.
61Langbein afirma em uma nota de rodapé que “o uso de cativos nas galés era
conhecido na antiguidade e pode ter sido um processo mais ou menos
contínuo no Mediterrâneo Oriental até a Renascença”, e cita Masson 1938,
72 ff nota 24 em 8-10. De acordo com Casson (1971, 322-328), isso é um
equívoco. Em uma discussão cuidadosa e convincente, ele argumenta que, na
antiguidade clássica, nem escravos nem condenados eram usados para remar
navios de guerra, exceto em raras emergências. O uso militar de galés a remo
de escravos pode ter sido uma inovação devido ao uso crescente de canhões
na guerra naval. Enquanto a forma usual de combate envolvia embarque e
combate corpo a corpo, como parece ter sido o caso tanto para combates
navais clássicos quanto durante o período viking, um navio cujos remadores
não eram confiáveis com armas estava em séria desvantagem.

402
Inglaterra no Século XVIII

eficiente do que a execução. Há pelo menos duas razões pelas


quais isso poderia ter acontecido. Uma delas é que o trabalho da
galé é relativamente fácil de supervisionar. Como os remadores
estão todos remando juntos sob a observação de um oficial livre,
qualquer folga será imediatamente óbvia e pode ser
imediatamente punida.62 A outra é que é difícil para um
prisioneiro acorrentado escapar de uma galé no mar.
Concluo que os escravos das galés, numa época em que as
galés ainda eram militarmente úteis, provavelmente produziam
serviços que valiam mais do que o custo de guardar e manter os
escravos, mas que em outros empregos a França, como a
Inglaterra, descobriu que o trabalho prisional custava mais do
que valia.
Se a prisão teve um custo positivo, a próxima pergunta a
fazer é como isso se compara com o que o governo britânico
estava disposto a pagar por outras punições. Podemos obter
algumas evidências sobre isso a partir da história do transporte.
Uma das razões pelas quais o experimento do século XVII com
transporte falhou foi que o governo não estava disposto a pagar
por isso. A segunda experiência, iniciada em 1718, teve sucesso
em parte devido a um subsídio de três libras por condenado. Isso
sugere que o valor que o governo estava disposto a pagar pelo

62Considerações semelhantes aparecem na literatura sobre a escravidão nas


plantações no novo mundo; ali também foi argumentado que atividades
específicas eram adequadas à escravidão porque envolviam grupos de
trabalhadores trabalhando juntos em tarefas que eram facilmente
padronizadas e supervisionadas (o “sistema de gangues”) (Foley 1994, 21-45,
72-80).

403
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

transporte chegou a três libras por transportado em cerca de


1718.63
Três libras por transportado era um custo único em troca
do qual o transportado era removido da Inglaterra por pelo
menos 7, em muitos casos pelo menos 14 anos.64 Não tenho
números para o custo das prisões na Inglaterra, exceto os muito
altos números para confinamento de prisioneiros em navios
durante a Revolução Americana. Mas o custo por prisioneiro em
uma das prisões francesas contemporâneas era o equivalente a
cerca de quatro libras esterlinas (75-79 livres tournois) por
ano.65 Isso sugere que a prisão custava substancialmente mais do
que o estado inglês estava disposto a pagar.
Uma exceção era a prisão por dívidas, mas era um tipo
estranho de prisão. Os devedores, ao contrário dos criminosos,
dificilmente fugiriam. A prisão de King's Bench em Londres
permitia que seus ocupantes entrassem e saíssem livremente,
com uma considerável minoria vivendo fora dos muros na
vizinhança da prisão. O custo para o governo era próximo de
zero, já que os presos eram responsáveis pelo pagamento de
suas próprias despesas.66

63Beattie (1986, 504) sugere que a razão para a mudança na política foi que a
situação financeira do governo inglês havia melhorado consideravelmente em
1718.
64Isso ignora os transportados que retornaram ilegalmente antes de suas

sentenças terminarem. Segundo Beattie (1986, 540-541), isso se tornou um


problema significativo durante a segunda metade do século. Sete anos era a
sentença usual de transporte (e termo de contrato) para crimes clerigáveis,
quatorze para crimes não clerigáveis perdoados sob a condição de transporte.
Presumivelmente, muitos dos transportados morreram antes de completar
seus mandatos ou optaram por permanecer no novo mundo.
65Andrews 1994, 354-5.
66Innes 1980.

404
Inglaterra no Século XVIII

Um elemento adicional no padrão de punição na Inglaterra


no século XVIII está implícito nas conclusões da Parte III
acima. As punições para crimes graves não se limitavam à
execução e transporte. Havia também a possibilidade de
pagamento, em dinheiro ou bens, acertado entre criminoso e
procurador. As punições previstas em lei eram resultados
omissos que forneciam o pano de fundo no qual tais negociações
ocorreram. A multa é uma punição eficiente, pois o que uma
parte perde a outra ganha. As punições legais de transporte e
enforcamento eram menos eficientes do que multas, mas ainda
mais eficientes e menos dispendiosas para o estado do que a
prisão.
E também havia pagamentos de um tipo diferente…

Indultos
Outra estranheza no padrão de punições na Inglaterra do
século XVIII era o uso extensivo de indultos. No estudo de
Beattie sobre Surrey entre 1660 e 1800, ele descobriu que
apenas cerca de 40% dos condenados por crimes capitais foram
realmente executados. Para muitos dos demais, especialmente
depois de 1718, o indulto estava condicionado ao transporte.
Mas para alguns os perdões eram incondicionais. Tendo sido
acusados, presos, julgados, condenados e presos novamente
enquanto aguardavam a execução, eles foram libertados. “Vá
para casa e não faça isso de novo.”
Os indultos podiam ser usados para corrigir o que o juiz
considerava um veredicto errôneo, mas a culpa geralmente não
era o problema. O perdão foi baseado em evidências de caráter
sobre o réu, oferecidas durante o julgamento ou em petições
posteriores. Em alguns casos, as petições vieram de pessoas que
conheciam o réu e poderiam fornecer informações sobre a

405
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

probabilidade de ele se reformar, se perdoado. Em outros, a


qualificação do peticionário não era seu conhecimento pessoal
do réu, mas sua influência sobre os oficiais que decidiam quais
réus deveriam receber indultos reais.67
Além de corrigir veredictos errôneos, há pelo menos três
funções diferentes que o sistema de indultos pode ter servido. O
mais óbvio é evitar custos de punição desnecessários. Se a
experiência de ser preso, julgado, condenado e quase enforcado
é suficiente para desencorajar esse réu em particular de qualquer
crime futuro, então a execução não tem função incapacitante. Se
é improvável que o réu se reforme na Inglaterra, mas tem
melhores perspectivas no ambiente mais severo do Novo
Mundo, o transporte pode ser uma punição melhor do que a
execução. E se a maioria dos criminosos em potencial que são
semelhantes a este réu pode ser dissuadida por algo menos do
que uma certeza de serem executados se condenados, então, ao
perdoar alguns deles, com ou sem transporte, o estado reduz
substancialmente o custo da punição por apenas um pequeno
preço em dissuasão.68 Argumentos semelhantes podem ser
usados para justificar a discricionariedade judicial na sentença
em um sistema judicial moderno.
Uma segunda função é levar em consideração as
externalidades negativas impostas pela execução. O
enforcamento quase sempre impõe um grande custo à pessoa
mais diretamente afetada — essa é uma das razões para enforcar
as pessoas. Também pode impor custos substanciais a terceiros:

67Para uma análise detalhada dos argumentos que os juízes ofereciam a favor
e contra os indultos e a fonte do testemunho de caráter a favor dos indultos,
veja King 1984.
68Para uma discussão mais detalhada sobre a discriminação de preços na

punição, veja Friedman 1981.

406
Inglaterra no Século XVIII

amigos, parentes, empregadores e contribuintes potencialmente


responsáveis por sustentar os dependentes do criminoso
condenado. Esses custos têm pouca função de dissuasão. Se
muitas dessas pessoas estão dispostas a testemunhar em favor do
criminoso no julgamento ou pedir perdão, isso é evidência de
que tais custos são substanciais e, portanto, uma razão para
evitá-los perdoando o condenado.
Há pelo menos mais uma função que o sistema de indultos
poderia ter servido. Imagine que você é um inglês comum que
deseja salvar a vida de um amigo condenado por um crime
capital — digamos, roubo de ovelhas. Você vai até uma pessoa
de alto status que conhece, talvez o senhor local, e pede a ele
para intervir em nome de seu amigo. Se o fizer, será como parte
de uma troca de favores. Pessoas de baixo status às vezes têm
oportunidades de beneficiar pessoas de alto status e você se
comprometeu implicitamente a fazê-lo, seja por ser devidamente
deferente ao senhor em público ou por apoiar o candidato
parlamentar que ele recomenda.
O senhor local tem mais influência com as autoridades do
que você, mas não o suficiente para salvar um condenado da
forca. Ele, portanto, escreve a um nobre local politicamente
influente, solicitando-lhe que intervenha em nome de um dos
homens do senhor, um jovem digno desencaminhado por más
companhias. Aqui, novamente, a troca não é de informações,
mas de serviços. Uma das coisas que torna os nobres locais
politicamente influentes é o apoio dos senhores locais.
O sistema legal, ao considerar e agir sobre tais petições,
está implicitamente oferecendo ao criminoso condenado a
escolha entre multa e execução. A multa não é paga pelo
criminoso, mas por seus amigos e não assume a forma de
dinheiro, mas de favores. É pago, possivelmente através de

407
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

intermediários, a pessoas que podem influenciar a concessão de


indultos. Na medida em que aqueles que pagam a multa estão
em posição de impedir que seus amigos cometam crimes, esse
sistema os incentiva a fazê-lo. Funciona então como uma
punição coletiva semelhante àquelas observadas em alguns
sistemas jurídicos primitivos, onde as multas são pagas em parte
pelo infrator, em parte por outros membros de seu grupo de
parentesco.69
Os indulos obtidos dessa maneira substituem uma punição
eficiente — uma multa — por uma punição menos eficiente — a
execução. Ao fazê-lo, fornecem recursos ao estado e aos que o
controlam. Funcionários que concedem indultos estão
vendendo-os por pagamentos não pecuniários. Assim, o sistema
jurídico, além de fornecer um mecanismo para reduzir o crime,
também aumenta a capacidade do estado de manter sua
autoridade. Considerado do ponto de vista das relações públicas,
é uma maneira elegante de fazê-lo. Ninguém é ameaçado,
exceto o condenado culpado. O senhor não está oprimindo seus
inquilinos, mas fazendo-lhes um favor a pedido deles. O
conhecimento de que tais favores podem ocasionalmente ser
necessários dá a todos na aldeia um incentivo para serem
educados com o senhor.70

Em Busca de um Indulto: Uma História Real71


James Boswell, mais conhecido por sua biografia de
Samuel Johnson, foi um advogado escocês que praticou
longamente nos tribunais escoceses e mais brevemente nos

69Posner 1981, 193-195. Por exemplo, considere o grupo pagante de dia no


sistema somali.
70Este ponto é feito em Hay et. al. 1975b, 48-49.
71Wimsatt e Pottle 1959, 276-338.

408
Inglaterra no Século XVIII

ingleses. Ele manteve um diário durante grande parte de sua


vida, a maioria dos quais sobreviveu. Ele contém, entre muitas
outras coisas, um relato em primeira mão de sua tentativa de
obter o perdão de um cliente condenado.72
John Reid, encontrado em posse de ovelhas roubadas e
acusado de roubá-las, foi o primeiro cliente de Boswell. Vários
meses depois de ter sido absolvido, o Lord Justice-Clerk, chefe
da Suprema Corte Escocesa para questões criminais, proferindo
um julgamento em outro caso, mencionou o caso Reid como
aquele em que um homem obviamente culpado havia sido
libertado por um advogado inteligente.
Oito anos depois, Reid foi novamente encontrado em
posse de ovelhas roubadas, novamente julgado por roubá-las.
Boswell novamente o defendeu, desta vez sem sucesso. Reid foi
condenado à forca. Boswell pediu perdão ao rei para converter a
sentença de execução em transporte — sem dúvida uma
sentença apropriada se Reid, como ele alegou, tivesse recebido
as ovelhas roubadas, mas não as roubou.
Ao buscar apoio de pessoas que pudessem influenciar a
decisão do rei, Boswell apresentou argumentos, mas não muito
persuasivos. Com alguns, como o Earl de Pembroke, um velho
amigo de Boswell e Lord of the Bedchamber de George III, ele
pediu apoio como um favor. O coronel Webster, amigo de
Boswell e também crente na inocência de Reid, conhecia Lord
Cornwallis, outro íntimo do rei, então Boswell conseguiu que
Webster escrevesse para Cornwallis. Em uma carta a Lord
72O sistema jurídico escocês não se baseava no common law inglês, mas na
interpretação holandesa do direito romano — Boswell, seu pai e seu avô
estudaram direito na Holanda. Perdões reais, no entanto, vieram do rei inglês,
sendo a Escócia parte do Reino Unido. Portanto, ao tentar obter um, Boswell
fazia parte do mesmo sistema que um advogado inglês agindo em nome de
um cliente inglês.

409
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Richford, Secretário de Estado do Departamento do Sul e uma


figura importante na corte, Boswell apelou para sua
preocupação comum sobre a repressão francesa da rebelião da
córsega73 — que, é claro, não tinha nada a ver com a culpa de
John Reid ou inocência. Sua carta planejada para o Lord
Advocate — ele acabou falando com ele em vez disso, sem
sucesso — incluía a frase "eu pediria a ele um perdão de
transporte como um favor que eu deveria considerar como uma
obrigação séria para a vida", uma oferta clara de um quid pro
quo. O sogro de Reid era inquilino do conde de Errol, então
Boswell escreveu ao conde pedindo sua ajuda. A resposta: “Eu
deveria estar muito disposto a mostrar qualquer favor em meu
poder a um cliente seu, mas […].”74 A petição ao rei incluía o
argumento de que Reid recebeu as ovelhas, mas não as roubou,
mas apelou principalmente para a ideia de que um ato de
misericórdia impressionaria favoravelmente os súditos
escoceses do rei.

A prerrogativa de dispensar misericórdia é a joia mais


brilhante da coroa britânica, e vários casos recentes nesta
parte do Reino Unido tornaram Vossa Majestade
cativado por seus súditos mais ao norte. Vosso
peticionário lisonjeia-se de que também terá motivos para
abençoar a bondade do Rei e não será apontado como
uma exceção miserável à benevolente clemência de
Vossa Majestade.75
73Boswell visitou a Córsega durante a revolta contra o domínio genovês,
tornou-se amigo e admirador do general Paoli, líder da revolta, e escreveu um
livro popular em apoio a ela. Rochford, como embaixador britânico em Paris,
tentou, sem sucesso, impedir o acordo pelo qual a França assumiu o controle
da Córsega de Gênova, levando à supressão da revolta.
74Wimsatt e Pottle 1959, 303-4.
75Ibid 290.

410
Inglaterra no Século XVIII

Apesar do esforço de Boswell, Reid foi enforcado. O


motivo, segundo Pembroke, foi a oposição do Lord Justice-
Clerk. Pembroke e Cornwallis falaram por Reid, mas não
conseguiram superar a forte oposição do juiz. Em uma carta
posterior, Pembroke escreveu: “Lord Rochford teria pedido
misericórdia se pudesse fazê-lo, mas ele e o rei também acham
que o juiz deve renunciar se, após seu relatório, qualquer
mitigação da sentença ocorrer.”76

O Mercado por Misericórdia


Ficamos com um quebra-cabeça final: por que o sistema
legal estabeleceu um alto nível de punição e o impôs apenas a
uma minoria de infratores, provavelmente até mesmo de
infratores condenados?77
Uma resposta é sugerida por parte de minha explicação
sobre perdoar — um mercado de misericórdia. A análise se
aplica além da questão dos indultos. A probabilidade de
resultados favoráveis para um réu dependia em grande parte de
sua capacidade de fazer com que as pessoas falassem a seu favor
— seu empregador, seus vizinhos, seu senhorio, sua
vítima/procurador. A vítima tinha a opção de não processar,
aceitando, em vez disso, um pedido de desculpas. Ela teve a
opção, no decorrer do julgamento, de recomendar misericórdia
ao juiz e ao júri. O mesmo fez outros que poderiam falar como
testemunhas de caráter para o réu. Isso deu a qualquer um que
um dia pudesse ser acusado de um crime um incentivo para

76Ibid337.
77“Não parece que em qualquer época do século XVIII, em qualquer parte do
país, mais de sessenta por cento dos condenados à morte tenham sido
realmente executados, e durante grande parte do século e em muitos lugares
o valor de um terço é mais típico.” (Tobias 1979, 140.)

411
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

manter boas relações com aqueles com quem interagia; sua boa
opinião sobre ele pode literalmente salvar sua vida.78
Portanto, uma possível interpretação do sistema é que ele
foi projetado para dar aos réus em potencial um incentivo para
manter boas relações com aqueles com quem estão associados,
especialmente os superiores de status cuja palavra
provavelmente teria mais peso com o juiz e o júri e, assim,
reforçar a estrutura social existente.

Economia Comportamental do Século XVIII


Há pelo menos uma outra explicação possível. Do ponto
de vista de um economista moderno, o que importa para a
dissuasão é a punição esperada, grosso modo a probabilidade de
um crime resultar em punição multiplicada pelo tamanho da
punição. Isso não parece ser o que os comentadores
contemporâneos do sistema legal tinham em mente. O que
importava era que a punição fosse forte o suficiente para
impressionar os potenciais infratores e imposta com frequência
suficiente para mantê-los cientes disso.
Bastava enforcar um criminoso de vez em quando, de
preferência um criminoso particularmente perverso. Uma vez
enforcados o suficiente para causar uma impressão pública
adequada, os menos merecedores de punição podiam receber
transporte ou até mesmo um indulto gratuito. Enforcar dez
homens pode não ter mais efeito na punição esperada do que
transportar cinquenta ou açoitar quinhentos, mas era um

78O perdão foi do rei, mas quase garantido por um pedido do juiz.

412
Inglaterra no Século XVIII

espetáculo muito mais memorável.79 Enforcar muitos pode até


enfraquecer o efeito, reduzindo o impacto emocional de
qualquer execução.
Essa abordagem não se encaixa na análise econômica
convencional do direito, mas faz algum sentido em termos de
economia comportamental.80 Uma conclusão da pesquisa nesse
campo é que os indivíduos fazem um trabalho ruim ao avaliar
probabilidades baixas e resultados de golpes de grande peso,
temem mais que o avião caia do que acidentes de carro, embora
a mortalidade esperada por quilômetro seja muito maior para o
último. Uma possível explicação do padrão de punição na
Inglaterra do século XVIII é que os homens responsáveis pela
construção desse sistema tinham uma boa percepção intuitiva da
racionalidade imperfeita daqueles que ele deveria controlar.

Mudança ao longo do Século


O sistema jurídico existente no final do século XVII
apresentava uma série de problemas óbvios tanto para os
contemporâneos quanto para nós. A história jurídica do século
XVIII é, em parte, uma história de tentativas de lidar com esses
problemas, com graus variados de sucesso.
A primeira era a falta de punições intermediárias para
qualquer coisa que se aproximasse de um crime grave. Crimes
79Ao longo de uma linha relacionada… Tem sido bem observado que é de
grande importância que a punição deve seguir o crime o mais cedo possível;
que a perspectiva de gratificação ou vantagem, que tenta um homem a
cometer o crime, desperte instantaneamente a ideia de punição. A demora na
execução serve apenas para separar essas ideias; e então a própria execução
afeta as mentes dos espectadores mais como uma visão terrível do que como
a consequência necessária da transgressão. (Blackstone, livro IV, capítulo
32).
80Para uma apresentação fascinante da abordagem, consulte Kahneman 2011.

413
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

menores, que não exigiam julgamento por júri, podiam ser


punidos com chicotadas, exposição no pelourinho ou uma
semana na casa de trabalho. Para qualquer coisa mais séria, era
enforcamento ou nada. A solução óbvia era o encarceramento de
longo prazo em trabalhos forçados, visto tanto como uma
punição intermediária quanto como uma forma de reformar os
criminosos, ensinando-os a trabalhar. Mas o encarceramento
exigia prisões e, até o final do século, nem o governo central
nem os locais estavam dispostos a arcar com o custo de criá-los
em escala suficiente.
Um segundo problema era dar às vítimas um incentivo
adequado para processar. Uma alternativa, do ponto de vista da
vítima, era comprar de volta sua propriedade por meio de um
intermediário com contatos adequados. Fazer isso foi
considerado ilegal, mas continuou sendo uma prática comum.
As recompensas criaram um incentivo para a acusação, mas
também problemas adicionais, conforme já discutido.
Uma abordagem diferente foi mudar a responsabilidade de
processar da vítima, para algo como um sistema moderno de
polícia e processo público. Uma parte da aplicação da lei,
lidando com crimes sem vítimas, como vadiagem ou
prostituição, já era em grande parte aplicada publicamente. Os
executores, policiais e, em Londres, membros da vigília noturna,
eram chefes de família comuns recrutados pelo governo local
para um ano de serviço não remunerado e recebiam uma
pequena recompensa por cada infrator que traziam. No início do
século, houve também um esforço substancial pelas Sociedades
para a Reforma dos Costumes, organizações privadas que
tentam limpar Londres e várias outras cidades reunindo
informações incriminatórias sobre infratores, especialmente
casas obscenas e prostitutas, e relatando-as aos magistrados para

414
Inglaterra no Século XVIII

julgamento antecipado.81 Reformadores do século XVIII via


crimes menores, geralmente cometidos por jovens, como a
droga de entrada que levava a crimes mais sérios, acreditava que
a bebida, a prostituição e o jogo produziam jovens levados ao
roubo porque desperdiçavam seu tempo e dinheiro.
Os magistrados responsáveis por lidar com os infratores,
tanto os infratores menores quanto os criminosos acusados,
eram membros não remunerados da elite local que ofereciam
seu tempo para um papel de prestígio no sistema legal. Com o
tempo, essa abordagem tendeu a falhar, com menos pessoas
dispostas a preencher as funções necessárias.
Para policiais e vigilantes a solução foi contratar
substitutos, criando um grupo de semiprofissionais. No final do
século, pelo menos na cidade de Londres, isso havia se
desenvolvido em um sistema de policiais e vigias pagos com
impostos locais.82 O problema para o sistema de magistrados era
que quanto menos voluntários, mais onerosa a tarefa passou a
ser para aqueles que ficaram para fazer o trabalho. Um dos
resultados foi o desenvolvimento de “juízes mercantis”,
magistrados que tratavam o cargo como fonte de renda, pelo
menos em parte por meio da corrupção. E mesmo os
magistrados honestos, sendo voluntários não remunerados, não
tinham o compromisso de estar à disposição do público em
horários e locais regulares. No final do século, esses problemas
estavam sendo resolvidos em Londres com a criação de
magistrados remunerados e organizados pelo governo central,
comprometidos com horários regulares, providos de um

81Para obter detalhes, consulte Norton 2003. A condenação pelas acusações


relevantes não exigia um julgamento por júri.
82O processo é descrito em detalhes em Beattie 2001, que limita sua

descrição quase inteiramente a Londres.

415
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

pequeno quadro de policiais também pagos, um sistema


parcialmente modelado no sistema que os Fieldings haviam
desenvolvido anteriormente com a ajuda de um modesto
subsídio do governo central.
Após o colapso do transporte para a América do Norte, as
autoridades enfrentaram um problema difícil ao lidar com o
aumento da taxa de criminalidade. Para impedir mais crimes, era
necessário prender, processar e condenar mais criminosos. A
menos que eles estivessem dispostos a enforcá-los todos — e
eles não estavam — condenar mais criminosos significava mais
criminosos condenados se acumulando em um sistema que não
tinha um lugar adequado para colocá-los. A solução final foi
dupla: mais prisões e a Austrália.

416
Inglaterra no Século XVIII

Conclusões
Tentei mostrar que as instituições usadas na Inglaterra do
século XVIII para desencorajar crimes graves podem ter sido
bem adaptadas tanto para esse propósito quanto para outros. A
preferência pela execução e transporte refletia o maior custo da
prisão e foi afrouxado à medida que a sociedade se tornava mais
rica. O sistema de imposição privada funcionou tanto porque a
dissuasão poderia ser produzida como um bem privado quanto
porque a composição fornecia um incentivo para os promotores
e uma punição para os criminosos. O sistema de punições
severas ameaçadas, mas muitas vezes não impostas, fornecia um
incentivo para manter sistemas de deferência e boa reputação,
talvez também uma forma de assustar criminosos potenciais
para que não se tornassem criminosos atuais. Não sabemos o
suficiente para dizer se as instituições escolhidas foram as
melhores possíveis. Mas elas funcionaram melhor do que se
poderia esperar dos argumentos apresentados contra elas tanto
na época quanto agora.

Apêndice: Mil Anos para Frente e para Trás


O direito anglo-saxônico no século VII era um sistema
jurídico processado privadamente, de acordo com linhas
semelhantes ao sistema jurídico da Islândia do período das
sagas, discutido no Capítulo 10. A vítima ou, no caso de um
assassinato, seu parente processava o criminoso e, se bem
sucedido, coletava os danos. A partir do final do século X, esse
sistema foi substituído por um de direito penal processado
publicamente, no qual os danos iam para a coroa. No século
XIII, tornou-se novamente em grande parte processado

417
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

privadamente, desta vez na forma de apelo de crime, um


processo criminal privado. No final daquele século, o apelo de
crime havia praticamente desaparecido. Mas, no século XVIII, o
processo criminal voltou a ser quase inteiramente privado,
geralmente pela vítima, desta vez na forma de uma acusação de
crime, um processo nominalmente público. A melhor explicação
que encontrei para a parte intermediária dessa história é de
Daniel Klerman, um historiador do direito que escreveu
extensivamente sobre as instituições jurídicas do século XIII.83
No início do século XIII havia duas formas diferentes de
processo privado, a apresentação pelo júri e a apelação por parte
de um particular.84 Se o procurador privado retirasse a acusação
ou nunca aparecesse, os juízes poderiam absolver o réu ou
entregar o caso ao júri para julgamento. Se fosse esperado que
eles escolhessem a primeira alternativa, o promotor poderia
negociar com o réu um acordo extrajudicial, oferecendo o
arquivamento da acusação em troca de uma indenização. Quanto
mais provável a última alternativa, menos o réu estaria disposto
a fazer um acordo e, portanto, mais fraco o incentivo para iniciar
o processo.
No início do século, os juízes quase sempre libertavam
réus não processados, possivelmente porque perceberam que
isso tornava o acordo mais provável e, portanto, fornecia um
incentivo para o processo privado. No final do século, os juízes
quase nunca libertavam réus não processados, possivelmente
83Para o relato completo da história feito por Klerman, veja Klerman 2001, 5-
8.
84“Na verdade, até a virada do século XIV, as denúncias se limitavam quase

exclusivamente a homicídio e roubo, e quase todas as acusações de estupro,


mutilação, ferimentos, cárcere privado, agressão e ataque eram apresentadas
como recurso, assim como um grande número de casos de homicídios e
roubo.” (Klerman 2001, 7.)

418
Inglaterra no Século XVIII

porque a introdução de uma nova forma legal, a transgressão, o


ancestral do direito de tort moderno, forneceu um substituto para
um recurso, com danos por tort como incentivo. No final do
século, a taxa de apelos caiu para cerca de um quinto do nível do
início do século. A partir do século XIV, a maioria dos
processos criminais foi por acusação, normalmente pelo júri de
apresentação, o ancestral do grande júri moderno.
Até o final do século XIII, o julgamento por júri dependia
de um júri em grande parte auto informado, um grupo de
vizinhos que presumia já conhecer os fatos dos casos
apresentados a eles ou capazes de aprender os fatos por si
mesmos. Isso mudou durante os séculos XIV e XV para algo
mais parecido com o sistema moderno, onde os júris de
julgamento confiavam nas evidências apresentadas pelas partes
no tribunal.85 Isso, por sua vez, levou a um retorno ao processo
privado de casos criminais nominalmente públicos, não havendo
corpo adequado de funcionários públicos para fazer o trabalho,
embora legistas e, mais tarde, juízes de paz, desempenhassem
algum papel no processo.
Isso nos traz de volta ao sistema discutido neste capítulo, o
processo privado motivada em parte, como a apelação do crime
quinhentos anos antes, pelo potencial de acordo extrajudicial.
Klerman oferece dados para apoiar a ligação entre o
potencial de acordo extrajudicial e o processo privado. A figura
abaixo, de Klerman 2001, representa graficamente ao longo do
século XIII o número de recursos de crimes e a porcentagem de
réus não processados que foram absolvidos em vez de julgados.
O ajuste não é perfeito,86 mas a relação é razoavelmente clara.

85Klerman oferece evidências para o júri autoinformador no período inicial e


uma explicação da mudança em Klerman 2003.
86Para possíveis explicações das divergências, veja Klerman 2001, 41-42.

419
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Quanto menos os juízes estivessem dispostos a absolver um réu


quando o procurador privado retirasse as acusações ou não
comparecesse, menos os réus estariam dispostos a pagar aos
promotores para não processar, portanto, menos processos
privados.

420
16
Direito Ateniense: A
Obra de um
Economista Louco
A cidade-estado de Atenas nos séculos IV e V a.C., da
época de Péricles à época de Demóstenes, é famosa por dois
motivos: como fonte de uma grande quantidade de literatura que
ainda sobrevive e como o primeiro exemplo proeminente de
democracia. Para a maioria dos modernos, a democracia implica
um sistema em que os funcionários do governo são escolhidos
por maioria de votos ou nomeados por políticos assim
escolhidos. Os atenienses tinham uma abordagem bastante
diferente. As leis eram feitas por maioria de votos da
Assembleia (Ekklesia), que consistia em todos os cidadãos
adultos do sexo masculino que escolheram comparecer. Mas os
funcionários — magistrados — eram selecionados por sorteio,
cada um para servir por um período de um ano; os únicos
funcionários aos quais isso não se aplicava eram os generais. O
resultado foi um governo de amadores e um sistema legal e
político projetado para acomodá-lo. Era um sistema legal
contendo várias ideias inteligentes de pessoas inteligentes,
algumas das quais provavelmente funcionaram e outras
provavelmente não.

421
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A População Ateniense
A população era dividida em três grandes grupos:
cidadãos, metecos e escravos. Era cidadão se fosse filho
reconhecido de pais cidadãos casados,1 devidamente registados
como tal, embora fosse possível, em circunstâncias
excepcionais, conceder a cidadania a um não cidadão. Ser
cidadão dava a você um conjunto de direitos políticos e
econômicos, incluindo o direito de se casar com um cidadão
ateniense e, se fosse homem, o direito de votar na assembléia,
servir como magistrado, ser voluntário como jurado, servir
como árbitro pago em seu sexagésimo ano e possuir propriedade
na Ática.
Os metecos eram estrangeiros residentes, às vezes
residentes por várias gerações. Eles não podiam ser escolhidos
como magistrados ou votar na assembleia, podiam processar
alguns, mas não todos os tipos de casos legais. Seus direitos
econômicos eram mais limitados do que os de um cidadão; eles
não podiam, exceto por dispensa especial, possuir terras na
Ática. Um meteco tinha que ter um patrocinador cidadão que
fosse até certo ponto responsável por ele. Um meteco pode
receber cidadania ou alguns dos direitos de cidadania como
recompensa por algum serviço particularmente valioso.
A escravidão por dívida foi abolida como parte das
reformas de Sólon cerca de duzentos anos antes do início do
período em discussão, de modo que a maioria dos escravos eram
prisioneiros feitos na guerra ou seus descendentes. Eles podem

1Ao mesmo tempo, era suficiente que um dos pais fosse cidadão.

422
Direito Ateniense

muito bem ter constituído a maioria da população.2 O dono de


um escravo poderia processar para cobrar indenização por um
ferimento a seu escravo e poderia ser processado por danos
causados por seu escravo. Ele não era livre para matar seu
escravo, mas era livre para espancá-lo. O filho de pais escravos
era um escravo; não está claro qual era o status do filho de um
escravo e de um homem ou mulher livre. Enquanto muitos
escravos eram servos domésticos, trabalhadores agrícolas ou
trabalhadores nas minas de prata de onde Atenas obtinha grande
parte de sua riqueza, alguns eram trabalhadores independentes
que pagavam uma parte de seus ganhos ou uma quantia fixa
anual a seus proprietários.3
Se um mestre escolhesse libertar um escravo, o escravo
poderia retornar à sua cidade natal ou se tornar um meteco,
desde que seu mestre anterior estivesse disposto a ser seu
patrocinador; ele não poderia ter outro patrocinador. Parece
provável que, como em muitas outras sociedades, um escravo
pudesse comprar sua liberdade, seja com dinheiro emprestado
ou em troca de um compromisso de pagar seu proprietário
anterior com seus ganhos como liberto. Além de ser liberto, um
escravo tinha um meio legal de deixar seu mestre; ele poderia
pedir asilo no Theseion4 e pedir a outra pessoa que o comprasse.

2Freeman 1963 estima que a população masculina adulta livre consistia em


cerca de 30.000 cidadãos e 15.000 metecos; permitir mulheres e crianças
traria a população livre total para algo entre 100 e 200 mil. Ela supõe uma
população escrava de 200.000 a 400.000. Gomme 1933 estima para 431 a.C.
uma população total de cerca de 315.000 habitantes, dos quais 40.000 eram
cidadãos adultos do sexo masculino e 115.000 escravos.
3O mesmo acontecia com os escravos no Sul ante-bellum; havia pelo menos

um que era capitão de navio a vapor.


4Um templo na Acrópole, mais tarde conhecido como Hephaisteion.

423
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Leis e Tribunais
Por volta do século V, a assembleia havia se separado do
trabalho de julgar casos e funcionava principalmente como uma
legislatura. Os casos eram julgados por júris em um dos vários
tribunais, dependendo da lei em que as acusações eram feitas. O
procedimento era supervisionado pelo magistrado associado a
essa categoria de crime. Ele recebia as acusações que iniciavam
o processo e presidia o julgamento, mas o veredito cabia ao júri.
A cada ano, 6.000 jurados eram selecionados por sorteio
entre os voluntários; a única qualificação era ser cidadão do
sexo masculino e ter pelo menos 30 anos. O tamanho do júri
para um caso variou ao longo do tempo e de acordo com a
natureza do caso, mas geralmente parece ter sido de 200 a 500.
Os jurados recebiam ½ dracma para cada dia que serviam, cerca
de metade do salário de um remador, então o serviço do júri
fornecia uma espécie de bem-estar de baixo custo. Se aceitarmos
uma estimativa de 30.000 para o número total de cidadãos
adultos do sexo masculino, a qualquer momento cerca de um
quinto deles estava no conselho do júri. Mesmo admitindo o fato
de que um jurado pode não servir todos os dias, isso sugere que
os julgamentos absorveram a atenção de uma fração substancial
da população cidadã.
Os jurados davam seu veredicto por maioria de votos. As
quantias em jogo no litígio podiam ser substanciais e os jurados
provavelmente eram pobres, o que levantava um risco óbvio de
suborno. Para evitar isso, os atenienses criaram procedimentos
elaborados destinados a garantir que nenhum jurado soubesse
para qual caso seria designado até o último minuto.
Nenhum texto completo das leis sobreviveu, apenas
trechos citados nos discursos escritos por redatores de discursos

424
Direito Ateniense

profissionais para serem memorizados pelo procurador ou réu e


fragmentos de leis registrados em inscrições sobreviventes. Não
podemos ter certeza de que mesmo o que temos é preciso; um
orador pode deliberadamente deturpar a lei para torná-la mais
favorável ao seu caso. Parece, no entanto, que cada lei incluía,
explícita ou implicitamente, uma descrição do tribunal em que
os casos decorrentes dela seriam julgados e o procedimento para
iniciar um caso; o magistrado responsável pelo caso seria o
magistrado associado àquela categoria de crime. A maioria dos
casos deveria ser iniciada pelo queixoso convocando o réu para
uma audiência inicial perante o magistrado relevante, alguns
poucos levando o réu ao magistrado para ser preso. Ao contrário
dos estatutos chineses, as leis muitas vezes não especificavam a
penalidade, deixando-a para o júri.
Uma vez instaurado o processo, cabia ao queixoso
recolher as provas e ao magistrado conduzir o julgamento. As
partes não tinham permissão de um representante legal para
apresentar seu caso, como em um julgamento moderno; cada um
tinha que falar por si mesmo, embora fosse permitido a uma
parte ceder parte de seu tempo a um amigo para falar por ele
sem remuneração. Não havia limites para os tipos de
argumentos que poderiam ser introduzidos; foi alegado que um
réu às vezes trazia seus filhos para ficar ao seu lado na
esperança de inspirar piedade nos jurados. Os litigantes
poderiam empregar redatores de discursos para escrever
discursos para eles, os quais o litigante memorizaria e
proferiria.5 Um número considerável desses discursos foi
preservado por seu valor literário, razão pela qual sabemos tanto
quanto sabemos sobre o sistema jurídico.
5Os leitores interessados em ver como são os discursos encontrarão dezesseis
deles em Freeman 1963.

425
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

As testemunhas davam seu testemunho por escrito com


antecedência; durante o julgamento, sua única contribuição foi
confirmar que era realmente deles. As testemunhas não podiam
ser interrogadas, mas as partes podiam, se quisessem, questionar
uma à outra.
O testemunho de escravos era admissível apenas se dado
sob tortura e somente se o proprietário permitisse.6 O motivo
pode ter sido a crença de que um escravo não poderia ser
confiável para dizer a verdade, pelo menos em testemunho
contra seu mestre. Existem orações sobreviventes argumentando
que o testemunho do escravo sob tortura era totalmente
confiável, nunca tendo se provado falso, outros argumentando
que era totalmente não confiável, já que o escravo diria tudo o
que o torturador exigisse. Um redator de discursos escreveu um
de cada — para clientes diferentes. Torturar homens livres não
era permitido pela lei.
Uma testemunha poderia ser solicitada a testemunhar
sobre um determinado fato ou evento, mas poderia jurar que não
tinha conhecimento disso. Embora um proprietário de escravos
não pudesse ser obrigado a permitir que seu escravo prestasse
depoimento, sua recusa em fazê-lo poderia ser apresentada
como prova contra ele.

Casos Públicos e Privados


A maioria dos casos legais eram públicos ou privados. Um
caso público correspondia aproximadamente aos nossos casos
criminais; era para ser por um crime que prejudicou não apenas

6Essa também era a regra no direito romano.

426
Direito Ateniense

uma única pessoa, mas toda a comunidade.7 O procedimento


ordinário era que o caso fosse processado em particular por
qualquer cidadão do sexo masculino que optasse por fazê-lo. O
procurador receberia, em muitos casos, mas não em todos os
tipos, uma fração substancial de qualquer multa resultante, às
vezes até a metade, como sua recompensa. Se o caso fosse
baseado na alegação de que o réu estava de posse de
propriedade que pertencia ao estado, um processo bem-sucedido
resultaria na perda de metade da propriedade para o estado,
metade para o procurador.
Tal sistema aumenta o risco de processos contra réus
inocentes considerados ricos, impopulares ou ambos. Uma
solução foi uma disposição da lei segundo a qual, em muitos
casos públicos, um procurador que não conseguisse que pelo
menos um quinto dos jurados votasse pela condenação era
multado e impedido de qualquer processo futuro do mesmo tipo.
A multa era de 1.000 dracmas, cerca de dois anos de salário para
um artesão comum. Também era possível acusar um procurador
do crime de bajulação, acusação abusiva, embora tais acusações
fossem limitadas a um máximo de três cidadãos e três metecos
por ano.8
Em alguns casos, o procurador e o réu condenado podem
propor uma penalidade; o júri votava em qual aceitar. As
penalidades possíveis incluíam multas, execução, exílio,
confisco, cassação de direitos de descendentes, perda de alguns

7Como em alguns dos outros sistemas — a lei islâmica, por exemplo —


alguns delitos que consideramos crimes, como assassinato, foram tratadas
como casos particulares.
8Não sabemos de nenhum caso real em que a bajulação foi acusada, então é

possível que a acusação existisse apenas na retórica.

427
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

privilégios de cidadania e, para um meteco ou outro estrangeiro,


escravidão.
O equivalente ao nosso processo de tort era um caso
privado, um caso baseado na alegação de que o queixoso ou
alguém que o queixoso estava representando, como uma mulher
ou criança por quem ele era responsável, havia sido ferido pelo
réu. Algumas categorias de casos privados eram obrigadas a ir
primeiro para a arbitragem, o árbitro sendo selecionado de um
grupo de cidadãos em seu sexagésimo ano. Se ambas as partes
aceitassem o veredito do árbitro, o caso estava encerrado.
Qualquer um poderia apelar, caso em que haveria um
julgamento por júri. Nenhuma nova evidência poderia ser
introduzida; apenas a prova que havia sido apresentada ao
árbitro era admissível. Também era possível que as partes
levassem seu caso a um árbitro privado mutuamente acordado,
cujo veredito seria vinculativo.
Os casos de assassinato estavam sob uma parte especial da
lei que se acredita ser anterior às reformas de Sólon. O processo
era normalmente feito por parentes da vítima em analogia a um
caso privado, mas pode ter havido exceções para alguém não
aparentado que tinha um relacionamento próximo com a vítima.
Para homicídio doloso, a pena era execução com confisco de
bens, para homicídio culposo, exílio sem confisco. Um réu que
esperava perder tinha a opção, após seu primeiro discurso no
julgamento, de ir para o exílio em vez de prosseguir com sua
defesa.
Ao olhar para qualquer sistema jurídico, uma questão, à
qual retornaremos em um capítulo posterior, é qual incentivo
aqueles que aplicam a lei têm para fazê-lo. Se não houver
benefício para o promotor em processar os crimes, é improvável
que isso aconteça. Se houver muito benefício, os réus podem ser

428
Direito Ateniense

processados mesmo que não tenham feito nada de errado. No


caso ateniense, o incentivo óbvio era uma parte da multa ou
propriedade confiscada em um caso público, um pagamento por
danos em um caso privado. Um incentivo adicional pode ser
prejudicar um inimigo político.
A vítima de roubo tinha direito a receber de volta os bens
roubados e uma quantia igual ao dobro do seu valor.
Preocupamo-nos com a polícia plantando drogas em um
suspeito no processo de busca; os atenienses temiam que um
particular plantasse sua própria propriedade em alguém para
acusá-lo de roubá-la. Eles tinham uma solução simples. O
acusador era autorizado a revistar a casa onde suspeitava que
sua propriedade roubada estava escondida. Mas ele tinha que
fazer isso nu.9

Miasma
Os atenienses, como os ciganos e os índios cheienes,
acreditavam que certos atos resultavam em poluição; seu
equivalente a marimé era o miasma. Era contagioso e trazia má
sorte.10 Uma das consequências era que um julgamento de
assassinato tinha de ser feito a céu aberto, por medo de que, em
um espaço fechado, o miasma se espalhasse do réu para outros
presentes. Outra era que alguém acusado de assassinato não
tinha permissão para estar presente em templos ou tribunais. Em

9Ou possivelmente despojado até ficar só de cueca.


10“Você sabe que, antes de agora, muitos homens cujas mãos estão impuras,
ou que têm qualquer outro tipo de poluição, embarcaram em navios e, ao
fazê-lo, destruíram as almas inocentes que navegaram com eles ou os
trouxeram em grave perigo.” Helos, defendendo-se contra a acusação de ter
assassinado Herodes, oferece o fato de que ele e seus companheiros não
tiveram má sorte como prova de sua inocência (Freeman 1963, 81).

429
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

um caso que conhecemos, um réu acusado de assassinato alegou


que a única razão para a acusação era impedi-lo de comparecer a
outro tribunal para processar um caso diferente.11
Em outro caso, a crença no miasma pode ter sido usada
para contornar uma anistia. O réu, foi acusado, havia cometido
assassinato durante o breve período em que Atenas, tendo sido
derrotada por Esparta, estava sob o domínio de uma oligarquia.
O assassino não poderia ser processado por assassinato porque a
restauração da democracia fora acompanhada por uma anistia
geral para os crimes cometidos durante os Trinta. Em vez disso,
de acordo com pelo menos uma fonte,12 ele foi acusado de entrar
em templos e tribunais, embora, sendo um assassino, estivesse
poluído e, portanto, não fosse permitido em tais lugares.
O miasma aparece em pelo menos uma outra estranheza
da lei: um objeto responsável pela morte de um ateniense tinha
que ser exilado cerimonialmente, removido para além dos
limites da Ática. Isso lembra o deodand na antiga lei inglesa, um
objeto que, tendo sido responsável pela morte de alguém,
entregue a Deus por meio da Coroa para ser vendido, com o
dinheiro aplicado a algum uso piedoso. Também se assemelha
ao confisco civil no direito moderno. Julgar uma pedra por
assassinato parece estranho, mas estamos em uma posição ruim
para zombar da prática, visto que nosso sistema legal produz
casos de confisco civil como “The State of California vs 88
Ford Truck”.

11A mesma questão aparece na lei islandesa conforme relatado em Gragas I,


K§99, 175.
12MacDowell 1978, 121-2. Michael Gagarin sugere uma possibilidade

diferente de como a anistia era evitada (comunicação pessoal).

430
Direito Ateniense

Casamento e Herança
Como resultado de uma lei introduzida por Péricles, para
que alguém fosse um cidadão ateniense, ambos os pais deveriam
ser cidadãos.13 O casamento era monogâmico, embora o marido
também pudesse ter uma concubina, uma posição reconhecida
com menos status do que a de esposa; a concubina podia ser
uma escrava ou uma não cidadã livre, como uma meteca. Uma
mulher livre, esposa, concubina ou não casada, deveria ter um
senhor, um kyrios,14 um homem responsável por sustentá-la. Ele
também era responsável por representá-la em juízo, já que uma
mulher cidadã não poderia processar em seu próprio nome.
Antes do casamento, o kyrios de uma mulher era seu pai,15
depois do casamento, seu marido. Se seu marido morresse e ela
voltasse para sua própria família, seu kyrios era novamente seu
pai. Se ela permanecesse no que tinha sido a casa de seu marido,
seria o chefe dessa casa, geralmente seu próprio filho ou outro
filho de seu marido.
Para uma mulher ficar primeiro noiva e depois casada
exigia o consentimento não da mulher, mas de seu kyrios,
geralmente seu pai. O divórcio era permitido por iniciativa de
ambos os lados, com o dote da mulher voltando para o homem
que o havia fornecido, novamente geralmente seu pai. Um
moribundo poderia atribuir esposa e dote a outro ou especificar
em seu testamento a quem eles deveriam ir.

13Não está claro se o casamento foi alguma vez proibido entre cidadãos e não
cidadãos, mas pode ter sido no século IV.
14O mesmo título foi usado para o chefe de família. Se uma mulher fosse

casada com um homem que vivia na casa de seu pai, seu kyrios seria seu
marido, mas o kyrios da casa da qual ela fazia parte seria o pai de seu marido.
15Ou irmão ou, em algumas circunstâncias, tio, se o pai dela não estivesse

mais vivo.

431
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Quando um homem morria, sua propriedade era dividida


entre seus filhos, que eram obrigados a sustentar sua viúva e
fornecer dotes para suas filhas. Embora tivesse algum controle
sobre os detalhes da divisão, não poderia deserdar nenhum
deles, exceto negando sua legitimidade. A única maneira pela
qual ele poderia deixar a propriedade para alguém que não fosse
seus filhos era por adoção, caso em que o filho adotivo perdia
qualquer direito que pudesse ter herdado de seus pais
verdadeiros. Se um homem morresse com uma filha, mas sem
descendentes do sexo masculino, ela seria obrigada a se casar
com o parente masculino mais próximo, fora dos limites
estreitos das regras de incesto, que a teria. Se já fosse casada, ela
era obrigada a se divorciar do marido. Um motivo para essas
regras pode ter sido manter a existência da família para que
houvesse alguém para cuidar dos túmulos da família e fazer as
cerimônias necessárias em nome dos ancestrais falecidos.
A legitimidade era uma questão séria, pois afetava não
apenas a herança, mas também a cidadania. Os cidadãos
tomavam precauções para proteger suas esposas, permitindo-
lhes apenas oportunidades muito limitadas de sair da casa. Se
um homem pegasse outro em adultério com sua esposa, ele era
obrigado a se divorciar da esposa, com o direito de matar o
sedutor ou detê-lo para resgate. A sedução foi tratada como
crime mais grave do que o estupro, sendo esta última punida
com multa, inicialmente de 100 dracmas, posteriormente fixada
pelo júri. Do ponto de vista do marido, isso fazia sentido; a
sedução implicava a perda não apenas da confiança de que os
filhos de sua esposa eram dele, mas também de sua futura
confiança nela.

432
Direito Ateniense

Liturgias: A Produção de Bens Públicos


Os atenienses tinham uma solução direta para o problema
da produção de bens públicos, como a manutenção de um navio
de guerra ou a organização de um festival público. Se você fosse
um dos atenienses mais ricos, a cada dois anos seria obrigado a
produzir um bem público. O magistrado competente lhe diria
qual.
“Como você sabe, estamos enviando uma equipe para as
Olimpíadas este ano. Parabéns, você é o patrocinador.”
Ou
“Olhe para aquela linda trirreme lá no cais. Adivinha
quem vai ser capitão e tesoureiro este ano.”
Tal obrigação era chamada de liturgia. Havia duas
maneiras de sair disso. Uma era para mostrar que você já estava
fazendo outra liturgia este ano ou tinha feito uma no ano
passado. A outra era para provar que havia outro ateniense, mais
rico que você, que não havia feito ano passado e não estava
fazendo este ano.
Como, em um mundo sem contadores, imposto de renda,
registros públicos do que as pessoas possuíam e quanto valia,
posso provar que você é mais rico do que eu? A resposta não é
de um contador, mas de um economista — fique à vontade para
gastar alguns minutos tentando descobrir antes de virar a página.

433
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Eu me ofereço para trocar tudo o que possuo por tudo o


que você possui. Se você recusar, você admitiu que é mais rico
do que eu; você tem que fazer a liturgia que deveria ser imposta
a mim.

434
17
Aplicando Regras
Existem muitas maneiras diferentes de aplicar as regras.
Se alguém quebrar seu braço, chame um policial. Se ele quebrar
sua janela, chame um advogado. Direito penal e direito de torts
são mecanismos diferentes para fazer o mesmo trabalho.
Alguém faz algo ruim a alguém, o sistema legal é acionado, algo
ruim acontece com ele; essa é uma razão para não fazer coisas
ruins para as pessoas. Em um caso o agressor é encontrado e
processado pela polícia e Ministério Público, no outro pela
vítima e seus agentes, mas a lógica em ambos os casos é a
mesma. Às vezes, uma ou ambas as abordagens podem ser
usadas; O.J. Simpson foi primeiro absolvido do crime de matar
sua esposa e depois condenado pelo tort de matar sua esposa.
O direito penal e o de tort são partes familiares dos
sistemas jurídicos sob os quais vivemos, mas agora examinamos
várias abordagens menos familiares à aplicação da lei.

Maneiras Diferentes de Fazer Isso


Como estamos analisando uma ampla variedade de
sociedades, tentarei neste capítulo listar todos os mecanismos de
imposição que conheço e considerar os problemas de cada um.
Como um primeiro corte na classificação, é útil pensar na tarefa
a ser realizada como tendo três partes, correspondendo, no
direito penal moderno, aos trabalhos realizados por:
1. Polícia e procuradores públicos — encontrando o
infrator e as provas de sua culpa

435
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

2. Juiz e júri — decidindo a culpa


3. Polícia e prisões — aplicando a punição.

Direito Penal
No direito penal, todos os três trabalhos são feitos por
profissionais contratados por um governo para fazê-los. O ideal
é que todos os envolvidos no projeto, desde guardas
penitenciários e policiais até os políticos responsáveis por
selecionar e controlar todos os demais, atuem no interesse geral
da população que atendem, fazendo o possível para condenar os
culpados e absolver os inocentes enquanto minimizando os
custos líquidos do processo.
Esse é um resultado desejável, mas difícil de alcançar.
Políticos e policiais, como todos nós, estão mais interessados em
servir aos seus próprios objetivos do que aos de outras pessoas.
Se o verdadeiro criminoso não puder ser encontrado, pode haver
muito a ser dito para encontrar outra pessoa que possa ser
condenada; o que os eleitores não sabem não os prejudicará. Se
forem necessárias contribuições de campanha, grupos
organizados de funcionários do governo, como policiais e
guardas prisionais, são um dos lugares para obtê-los, o que dá ao
político um incentivo para seguir as políticas que esses grupos
de interesse apoiam. Na Califórnia, o sindicato dos guardas
penitenciários rotineiramente, e muitas vezes com sucesso, faz
lobby contra as políticas que reduziriam o número de
prisioneiros e, portanto, a demanda por seus serviços.
Alguns custos de aplicação do direito penal são pagos pela
agência de aplicação da lei que os incorre, dando-lhe um
incentivo para controlá-los. Outros custos são impostos a outras
pessoas sem compensação e, portanto, podem ser ignorados com
segurança, desde que essas pessoas tenham influência política

436
Aplicando Regras

insuficiente para fazer com que suas reclamações sejam


importantes. O direito penal na China imperial fornece vários
exemplos. Torturar uma testemunha ou um réu inocente impõe
um custo a ele, mas não àqueles que impõem a tortura, de modo
que há poucos motivos para que eles levem em consideração
esse custo ao decidir quando empregar a tortura e quando abster-
se de fazê-la.
A mesma lógica se aplica aos sistemas modernos. Manter
um suspeito na cadeia impõe um custo a ele. Fechar um
restaurante onde ocorreu um crime até que todas as evidências
relevantes sejam coletadas impõe um custo ao proprietário, seus
funcionários e clientes. A apreensão de computadores contendo
todas as cópias de informações importantes — o único rascunho
de um livro ou de uma tese de doutorado, digamos (casos reais1)
— e mantê-los até que as autoridades tenham certeza de que não
contêm mais nada de seu interesse impõe custos, possivelmente
custos muito grandes, para o proprietário, mas não custa nada
para a polícia. Se a polícia arrombar minha porta, atirar em meu
cachorro, assustar meus filhos quase até a morte e só então
descobrir que eles vieram para o endereço errado, eles não têm
obrigação de me indenizar pelos danos que causaram, portanto,
não há razão para aceitar cuidado extra para evitar erros tão
caros (para mim, não para eles).
Eles não apenas têm a opção de ignorar os custos que
impõem aos outros, como também têm a opção de impor
deliberadamente esses custos como forma de punir as pessoas
que fazem coisas que desaprovam, mesmo que não sejam
ilegais. Em uma viagem alguns anos atrás, minha mala
despachada continha fermento semilíquido para uma aula que eu
daria sobre culinária medieval, guardada com segurança em um
1Sterling 1993, 133-139.

437
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

recipiente fechado dentro de outro recipiente fechado. A mala


saiu da esteira de bagagens com os dois contêineres abertos e a
massa fermentada espalhada sobre o restante do conteúdo da
mala. Meu palpite é que foi assim que os inspetores da TSA
expressaram seu ressentimento por terem que se dar ao trabalho
de verificar contêineres com material semilíquido
desconhecido.2 Quarenta e poucos anos antes, perdi um voo de
avião e tive uma visão em primeira mão de uma prisão da
Louisiana como resultado de ser cúmplice, no aeroporto de
Nova Orleans, do crime de pedir a um policial o número de seu
distintivo.
Um problema relacionado é a aplicação seletiva. Em um
caso recente, o prefeito de uma cidade quis reconstruir parte
dela demolindo as casas e transferindo toda a propriedade para
um incorporador de sua escolha. Incapaz de satisfazer os
requisitos do estado para confiscar as casas sob domínio
eminente, ele providenciou a emissão de citações de
cumprimento de código aos proprietários da área, muitas vezes
por infrações triviais, como grama alta ou ervas daninhas em
seus quintais. Um proprietário de quatro propriedades recebeu
multas acumuladas no valor de três mil dólares por dia. Os
proprietários foram informados de que, se vendessem para o
incorporador escolhido pelo prefeito, o incorporador arcaria com
as multas. O incorporador comprou as propriedades por um
preço bem abaixo do valor de mercado e foi informado pelo
prefeito que, assim que demolissem as propriedades, as multas
desapareceriam.3

2Detalhes e evidências em: http://daviddfriedman.blogspot.com/2012/05/tsa-


vandalism.html.
3Detalhes de um escritório de advocacia de interesse público sem fins

lucrativos envolvido no caso: http://ij.org/action/hands-off-pleasant-ridge/

438
Aplicando Regras

Mesmo em casos que não envolvam qualquer prevaricação


deliberada, está longe de ser claro como fazer um sistema
jurídico ter em conta um dos custos mais graves que impõe a
outras pessoas, o custo dos réus que acabam punidos por crimes
que não cometeram. Para uma discussão desse problema, veja o
próximo capítulo.
Um tipo diferente de problema de incentivo foi apontado
no artigo de George Stigler e Gary Becker que discuti no
capítulo 10.4 Quando um policial condena um criminoso, o
custo para o último provavelmente será maior do que o
benefício para o primeiro, tornando possível uma troca em
benefício mútuo — o criminoso suborna o policial para queimar
as evidências. Prevenir isso requer camadas adicionais de
fiscalização. A solução sugerida por eles foi indenizar o
executor com a multa paga pelo infrator condenado. Becker e
Stigler, sem perceber, reinventaram o direito de torts, embora
não precisamente na forma atual.
O que nos leva ao nosso próximo tópico.

Direito de Torts
O direito de torts é a lei criminal com a polícia e o
promotor público substituídos pela vítima e seus agentes. É seu
trabalho descobrir quem cometeu o delito, reunir provas e
convencer o tribunal. A polícia e os procuradores públicos são
profissionais que fazem isso porque são contratados para isso. A
vítima do tort o faz para receber indenização; o que o autor do
tort paga como penalidade, a vítima bem-sucedida recebe como
recompensa. A vítima pode ter o incentivo adicional de

4Becker e Stigler 1974.

439
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

dissuasão privada, estabelecendo a reputação de ser uma má


pessoa contra quem cometer torts.
O direito de torts privatiza parte do trabalho de aplicar as
regras legais. Isso resolve alguns, mas não todos, os problemas
levantados pelo direito penal. Um queixoso de tort pode impor
custos ao réu sem compensação, como o custo de pagar um
advogado para se defender contra o processo ou de responder a
uma demanda de descoberta, mas, não sendo protegido por
imunidade soberana, ele é menos capaz de fazê-lo do que um
departamento de polícia. O advogado que representa o queixoso
pode, como o policial corrupto, vender para o outro lado, mas há
alguém diretamente envolvido no caso com interesse em
garantir que isso não aconteça — o queixoso. Muitos dos
argumentos que sugerem que um mercado privado competitivo
faz um trabalho melhor na produção de bens e serviços do que
um monopólio governamental se aplicam aqui, onde o serviço
que está sendo produzido é o de detectar e provar violações de
regras legais. A maioria das pessoas não pensa na aplicação do
direito penal pelo governo como uma forma de socialismo, mas,
economicamente falando, é isso que é — donidade e controle do
governo sobre os meios de produção. Os argumentos familiares
para a ineficiência do socialismo se aplicam.
O direito de torts tem seus próprios problemas de
incentivo. O pagamento de danos concedido por um tribunal é
tanto a penalidade para o autor do tort condenado por cometer o
tort quanto a recompensa para o autor e seu advogado por
condená-lo por isso. Não há razão para esperar que o mesmo
pagamento dê tanto o incentivo certo para evitar cometer o
delito quanto o incentivo certo para processá-lo.5 Tampouco há
5Para uma solução para o problema de fornecer o incentivo ideal tanto para o
infrator quanto para o promotor, veja Friedman 1984.

440
Aplicando Regras

razão para esperar que a quantia concedida em nosso sistema de


torts, suficiente para “tornar a vítima inteira”, seja ideal para
ambos.
Considere um tort que é difícil de detectar e provar, com o
resultado de que metade dos infratores escapa impune. O dano
causado é (digamos) dez mil dólares, de modo que é isso que os
autores de tort condenados pagam, perfazendo a pena média de
cinco mil — metade do tempo dez, metade do tempo zero. Se o
custo para mim das precauções para evitar cometê-lo é de sete
mil dólares, em média é melhor não me preocupar em tomá-las.
O que me economiza sete mil dólares custa dez para você,
tornando-nos, liquidamente, prejudicados em três mil dólares.
Um tort que deveria ser dissuadido não o é.6
Em seguida, considere os incentivos da vítima. Se gastar
seis mil dólares em uma ação judicial dá a ele apenas cinquenta
por cento de chance de receber uma indenização de dez mil
dólares, me processar o torna mais pobre, não mais rico, então
ele não o faz. E se ele não vai me processar, a pena que pago por
cometer o tort não é cinco mil dólares, mas zero.
Uma solução pode ser um multiplicador de probabilidade
para prêmios de danos. Se o dano causado for de dez mil, mas a
probabilidade de êxito for de apenas cinquenta por cento, defina
a indenização em vinte mil. Agora, a punição média é igual ao

6Não estou oferecendo aqui nada que se aproxime de uma teoria completa de
punição ideal ou aplicação ideal; os leitores interessados no assunto o
encontrarão no capítulo 15 de Friedman 2000. A regra simples “estabeleça
uma punição média igual ao dano causado, de modo a dissuadir qualquer
delito que beneficie o infrator em menos do que custa à vítima” é suficiente
para meus propósitos aqui embora, como demonstro lá, não seja estritamente
correto. Uma abordagem semelhante aplicada à forma como as regras são
aplicadas sugere evitar ações de execução que custem mais do que o valor da
dissuasão que fornecem.

441
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

dano causado, dando aos potenciais infratores um incentivo para


prevenir qualquer tort cuja prevenção custe menos do que o
dano causado. Alguns estudiosos, incluindo Landes e Posner,
sugeriram que as indenizações punitivas, indenizações por danos
maiores que os danos causados, servem exatamente a esse
propósito.7
Embora isso possa ser uma solução atraente em alguns
casos, também apresenta problemas. Por um lado, a indenização
por danos é limitada ao que o autor do tort pode pagar. No caso
de um delito grave com apenas uma baixa probabilidade de
êxito no processo, o que o autor do tort pode pagar pode ser
menor, talvez muito menor, do que o dano causado aumentado
para permitir a baixa probabilidade de condenação.
Um segundo problema é que um multiplicador de
probabilidade pode tornar rentável a criação de torts sintéticos.
Tarde da noite, quando seu carro faz a curva, empurro o meu
para a estrada e me afasto apressadamente. Quando a poeira
baixou e você se livrou dos destroços — eu consideravelmente
formulei meu acidente falso em uma estrada lenta para que você
sobrevivesse para ser processado — eu inicio uma ação legal,
reivindicando cinco vezes o valor do meu carro no terreno que
foi apenas por muita sorte que você não conseguiu escapar
depois de bater no meu carro e que quatro amigos meus estavam
à espreita no mato para testemunhar o acidente e testemunhar
contra você. Para incriminar você, tive que criar um acidente
real que realmente destruiu meu carro, então ele foi
rentabilizado apenas pela existência de um multiplicador de
probabilidade.

7Uma discussão sobre danos punitivos, incluindo argumentos contra essa


interpretação e a favor e contra outras, pode ser encontrada em Friedman
2000, capítulo 18.

442
Aplicando Regras

Até agora, presumi que a vítima do tort processa apenas


para receber indenização e, portanto, não processará se os danos
forem menores do que o custo do processo. Sob a suposição
correspondente para o direito penal, o direito penal processado
privadamente sem recompensas, como existia para alguns
crimes na Inglaterra durante partes do século XVIII, não poderia
ter funcionado, uma vez que não havia pagamento de danos para
compensar até mesmo custos modestos de processo.
Parte da explicação de por que os crimes foram
processados sob esse sistema é que o autor e o réu juntos
poderiam converter uma punição criminal, como o
enforcamento, em uma punição por tort por meio de um acordo
extrajudicial secreto. Parte é que as vítimas em potencial
poderiam se comprometer publicamente a processar, juntando-
se a uma associação de acusação, tornando a dissuasão um bem
privado pelo qual eles estavam dispostos a pagar.
Outra suposição que tenho feito é que a vítima do tort tem
recursos suficientes para processar se assim o desejar. Isso pode
não ser sempre o caso. Se mudarmos nossa história da América
do século XXI para a Islândia do século X, o homem cujo filho
ou irmão foi morto pode ser velho e fraco, sem nenhum parente
disposto a ajudá-lo a processar um criminoso preparado para
espancá-lo. quando ele tenta passar pelos procedimentos legais
necessários para um processo judicial.
A solução islandesa foi tornar as reivindicações de
responsabilidade civil transferíveis. Posso não ter recursos para
fazer minha reivindicação, mas um de meus vizinhos tem.
Processar minha reclamação com sucesso resultará na coleta de
cem onças de prata como wergeld, indenização de tort pelo
assassinato. Eu transfiro a reclamação para ele, ele a processa

443
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

com sucesso, fica com qualquer parte dos lucros que


concordamos e me dá o resto.

Direito Penal Processado Privadamente: Atenas e


Inglaterra
O direito penal processado privadamente era intermediário
entre nosso sistema criminal e nosso sistema de tort. A acusação
era feita por uma parte privada, não necessariamente pela
vítima; nos sistemas inglês e ateniense, qualquer cidadão adulto
(em Atenas, qualquer cidadão adulto do sexo masculino)
poderia processar qualquer crime. Em Atenas, um incentivo era
uma parte da multa que o réu criminal pagava se fosse
condenado. O processo também podia ser motivado por
hostilidade pessoal ou rivalidade política.8 Na Inglaterra do
século XVIII, os incentivos incluíam recompensas, dissuasão
privada, a recuperação de propriedade roubada e a possibilidade
de extorquir um acordo extrajudicial.
A vantagem mais óbvia do direito penal processado
privadamente sobre o direito penal processado publicamente é a
redução do poder do Estado. O processo público permite que os
executores ignorem tanto as ofensas criminais que aprovam
quanto os custos que impõem a terceiros inocentes. Nem é
possível em um sistema onde o processo é privado. Essa pode
ter sido uma das razões pelas quais a Inglaterra falhou em
desenvolver um sistema de direito penal aplicado publicamente
8Como quando Aiskhines processou Ktesiphon por ter proposto um decreto
conferindo uma coroa de ouro a Demóstenes “em homenagem a seu mérito e
virtude e porque ele continua dizendo e fazendo o que é melhor para o povo”.
Parte do argumento de Aiskhines era que era ilegal incluir uma declaração
falsa em um decreto e era falso dizer que os discursos e políticas de
Demóstenes eram bons para Atenas. (MacDowell 1978).

444
Aplicando Regras

até o século XIX. A desvantagem mais óbvia do processo


privado é que às vezes não compensa a nenhum indivíduo,
incluindo a vítima, processar um crime, um problema levantado
pelos críticos do sistema no século XVIII. A versão ateniense
resolvia esse problema dando ao procurador vencedor uma parte
da multa, uma recompensa automática ajustada ao valor da
multa e, portanto, à gravidade do delito. O equivalente no
sistema inglês, para alguns crimes em alguns momentos, era
uma recompensa por um processo bem-sucedido.
Isso sugere a possibilidade de substituir o direito criminal
inteiramente pelo direito de torts, o sistema islandês combinado
com a aplicação de vereditos pelo estado. Um argumento contra
isso é que o direito penal é necessário para lidar com delitos que
afetam a sociedade em geral, e não uma vítima específica. Mas
isso não descreve a maioria dos crimes nos sistemas jurídicos
modernos; me assaltar ou me roubar é um delito contra mim
tanto quanto amassar meu carro, mesmo que o sistema legal
trate isso como um crime contra o estado em que vivo. Outro
argumento é que o direito de torts não pode lidar com delitos em
que o custo de capturar e condenar o infrator é maior do que o
infrator pode pagar pelos danos. Discuti esses e outros
problemas com a proposta e sugeri maneiras pelas quais pode
ser possível modificar o direito de torts para lidar com eles em
detalhes em outro lugar.9

Direito de Disputas
Todas essas três abordagens para a aplicação da lei — tort,
penal processado publicamente e penal processado
privadamente — são amplamente semelhantes. Alguém viola

9Friedman 2000, capítulo 18.

445
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

uma regra, alguém — policial, vítima de tort ou procurador


privado — convence um tribunal de que uma regra foi violada e
mostra por quem, o tribunal profere um veredito e o estado o
aplica.
Para uma abordagem muito diferente para alcançar o
mesmo objetivo, considere um sistema de disputa primitivo
como o dos romanichals. Jerry viola uma regra, prejudicando
Larry. Larry ameaça Jerry com violência se ele não compensar
Larry pelo dano. A vítima é simultaneamente policial,
procurador, juiz, júri e carrasco.
Isso parece mais provável de produzir derramamento de
sangue do que aplicação da lei, mas a capacidade de Larry de
usar a força contra Jerry é limitada pela existência de Cary,
Gary, Harry,... aliados em potencial de ambas as partes. Se eles
acreditarem que a demanda de Larry não é razoável e Jerry
justificou em recusá-la, eles não estarão dispostos a apoiar Larry
e provavelmente apoiarão Jerry, tornando a tentativa de Larry de
cumprir sua ameaça perigosa ao extremo. Assim, um sistema de
disputa pode impor com sucesso um conjunto de regras
compreendidas e aceitas pelos participantes. A imposição
depende da ameaça de violência, mas isso é igualmente
verdadeiro em relação à nossa forma de aplicação da lei. A
violência de uma parte privada contra outra é limitada pela
simetria da situação. Ao contrário do estado, o iniciador de uma
disputa não tem acesso a recursos muito maiores do que o réu.
O mecanismo depende de terceiros interessados
conhecerem o conflito o suficiente para julgar quem está agindo
de forma razoável ou não. Em uma sociedade pequena, todos se
conhecem. Uma maior requer um mecanismo como os
procedimentos judiciais da Islândia ou da Somália para reduzir o
custo de descobrir quem é o malfeitor. A mesma questão surge

446
Aplicando Regras

com um sistema legal mais convencional. Para saber se a polícia


está prendendo pessoas porque infringiram a lei, porque
resistiram à extorsão policial ou porque apoiaram o candidato
errado ou são da raça errada, terceiros interessados exigem
informações semelhantes.
A informação não resolve o problema a menos que haja
um incentivo para agir sobre ela. Alguém que tenta extorquir
dinheiro de pessoas inocentes acusando-as de violar seus
direitos pode fazer a mesma coisa comigo, o que me dá um
incentivo para evitar lidar com ele, possivelmente para apoiar
sua vítima na resistência às suas exigências. Em um sistema de
aplicação estatal da lei em uma democracia, é do mesmo
interesse meu eliminar políticos que nomeiam agentes da lei que
se comportaram mal com outra pessoa e podem se comportar
mal comigo, mas, a menos que a entidade política seja pequena,
meu voto tem pouco efeito sobre o resultado, então o incentivo
para obter informações e agir sobre elas é fraco. Para obter
evidências de quão fraco é o incentivo para obter informações
sobre como o sistema funciona, considere a grande diferença
entre a percepção popular da condenação criminal nos Estados
Unidos — por um julgamento por júri — e a realidade de um
sistema no qual quase todas as condenações ocorrem acordos de
delação premiada sem júri e sem julgamento.10
Na Islândia do período das sagas, como em um sistema
jurídico moderno, havia um corpo explícito de leis e um sistema
de tribunais para julgar se havia sido violado e com quais
consequências legais. Mas a etapa final de execução do
veredicto era feita em particular pela vítima e seus aliados. Ela

10“De acordo com a U.S. Sentencing Commission, mais de 97% das


condenações no sistema federal decorrem de confissões de culpa; os sistemas
estaduais não estão muito atrás, com cerca de 95%.” (Dervan, 2015).

447
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

tinha a opção de exigir uma indenização do infrator com a


ameaça de processo ou violência. Se o réu se recusasse a fazer
um acordo, perdesse o caso e não pagasse a multa resultante, o
queixoso poderia proscrevê-lo e ficar livre para caçá-lo e matá-
lo.
Quais são alguns dos problemas com esse sistema?
Uma delas é que requer mecanismos de compromisso. O
benefício de saber que se eu for ferido me vingarei custe o que
custar pode ser muito grande, pois, ao dissuadir atos contra
mim, reduz o risco tanto de ser ferido quanto de ter que arcar
com os custos da vingança. Mas depois de ter sofrido um
ferimento grave de um oponente formidável, o custo de me
vingar pode ser mais do que o benefício vale a pena — melhor
um covarde vivo do que um herói morto. A solução, como no
caso paralelo com o processo privado, é encontrar alguma forma
de me comprometer antecipadamente. Na Inglaterra do século
XVIII, isso era feito mediante pagamento antecipado a uma
associação de processo. Em uma sociedade menos desenvolvida,
dependia de alguma combinação de normas sociais e incentivos
internos.
Visto desse ponto de vista, o traço humano de vingança
não é uma paixão irracional, mas uma estratégia de
compromisso inata. É irracional depois do fato, quando tenho
que fazer o meu melhor para caçar o assassino de meu parente
com um risco considerável para mim, mas racional ex ante,
quando o conhecimento de que vou caçar qualquer um que mate
meu parente é uma das razões pelas quais meus parentes não são
mortos.
Parte da hostilidade moderna à disputa é baseada na
crença de que sua violência é ilimitada em tempo e magnitude,
que um conflito menor poderia gerar um ciclo contínuo de

448
Aplicando Regras

assassinatos por vingança, como na lenda da disputa


Hatfield/McCoy. Em um capítulo anterior, esbocei a história
real. A disputa consistiu em uma troca em que três membros de
uma família mataram um membro da outra e foram eles próprios
mortos em vingança e uma segunda, cinco anos depois, em que
uma renovação do conflito desencadeada pela intervenção do
governador de Kentucky resultou em mais cinco mortes, três
delas pela aplicação da lei de Kentucky. O resto da famosa
disputa existe em filmes e histórias de jornais, mas não no
trabalho de historiadores cuidadosos. Isso ilustra minha regra
prática para a leitura da história: veja com desconfiança
qualquer anedota que seja boa o suficiente para ter sobrevivido
por seus méritos literários.
Os modernos estão menos familiarizados com o registro
muito mais extenso de sociedades como a Islândia do período
das sagas. Uma leitura descuidada das sagas faz com que pareça
uma sociedade violenta. Um exame mais cuidadoso sugere que a
maioria das disputas terminava no primeiro turno, quando o
infrator concordava em pagar a penalidade estabelecida pelo
tribunal ou pelo árbitro, ou no segundo, depois que a vítima do
primeiro confronto havia trocado de papéis no segundo. Apenas
alguns continuaram além disso para múltiplas trocas — e assim,
com as partes chatas removidas, forneceram o material para
sagas.
Se eu honestamente acredito que a compensação que você
está me oferecendo é absurdamente baixa enquanto você a
considera generosa, podemos ter dificuldade em encontrar um
acordo que não deixe pelo menos um de nós sentindo como se
tivesse abandonado sua própria estratégia de compromisso,
tornando-o um jogo justo para qualquer futuro agressor.
Portanto, um sistema de disputa que funcione bem pode exigir

449
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

comunalidade suficiente entre os participantes para possibilitar


que os dois lados cheguem a um acordo sobre os termos, sejam
eles negociados entre eles ou arranjados por um terceiro árbitro.
Uma alternativa pode ser um mecanismo cuja autoridade seja
comumente reconhecida, como o sistema judiciário islandês.
Mesmo que eu acredite que o que o tribunal me concedeu foi
excessivamente pouco, ainda assim posso aceitá-lo sem sinalizar
minha relutância em defender meus direitos contra futuros
agressores, pois eles não terão motivos para esperar que o
tribunal em casos gerados por confrontos futuros erre em seu
favor.

Aplicação Reputacional
Todas as formas de aplicação da lei até agora descritas
dependem da força ou da ameaça de força. Para um mecanismo
bem diferente, imagine que você comprou uma jaqueta em uma
loja de departamentos que garante a devolução do seu dinheiro
caso você não fique satisfeito com o que comprou. Você
descobre que a jaqueta que comprou é do tamanho errado e sua
esposa diz que a cor roxa não lhe agrada. Se a loja se recusar a
reembolsá-lo, é improvável que você os processe — o valor em
jogo não é suficiente para compensar o tempo e o trabalho. No
entanto, as lojas nessa situação provavelmente aceitarão a
jaqueta de volta — porque querem a reputação, com você e com
os outros, de cumprir suas promessas.
Um exemplo mais elaborado da mesma abordagem é
fornecido pela indústria de diamantes de Nova York, conforme
descrito em um artigo clássico de Lisa Bernstein.11 A certa
altura, um pouco antes da época em que ela estudou, a indústria

11Bernstein 1992.

450
Aplicando Regras

estava principalmente nas mãos de judeus ortodoxos, proibidos


por suas crenças religiosas de processar uns aos outros. Em vez
disso, resolveram as disputas por meio de um sistema de árbitros
confiáveis — rabinos — e sanções reputacionais. Se uma das
partes em uma disputa se recusasse a aceitar o veredito do
árbitro, a informação se espalharia rapidamente pela
comunidade, fazendo com que outras pessoas do setor não
estivessem dispostas a negociar com ele. O sistema sobreviveu
depois que a participação no setor se tornou mais diversificada,
com organizações como o New York Diamond Dealer's Club
fornecendo arbitragem confiável e divulgação de informações.
A aplicação reputacional funciona bem para partes
envolvidas em transações voluntárias repetidas; depois de obter
a reputação de não fazer o que prometeu, as pessoas ficam
relutantes em negociar com você. Antecipando isso, você
cumpre suas obrigações. Não funciona para uma transação
única, um vigarista que pretende enganar sua vítima em uma
fortuna e depois se aposentar. Também não funciona para
transações involuntárias; um assaltante não exige o
consentimento de suas vítimas. E mesmo no caso de transações
voluntárias repetidas, existe o risco de traição no jogo final, o
comerciante que, tendo construído uma reputação de
confiabilidade por vinte anos de negociação honesta, passa o
último ano antes de sua aposentadoria planejada, mas não
anunciada, pedindo dinheiro emprestado que ele não tem
intenção de pagar e receber o pagamento de pedidos que não
planeja atender.
Mesmo alguém que é apenas um participante ocasional em
um determinado mercado se envolve rotineiramente em outras
transações, sociais, econômicas, políticas. Se eu vender a você
um carro que para de rodar dois dias depois, haverá uma

451
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

penalidade de reputação, mesmo que eu nunca planeje vender


outro carro; o fato de eu ter enganado você por causa de um
carro será visto como evidência de que provavelmente enganarei
outras pessoas de outras maneiras. Uma maneira de dar sentido
aos nossos julgamentos morais é colocarmos dois atos diferentes
na mesma categoria moral precisamente porque acreditamos que
a vontade de fazer um se correlaciona positivamente com a
vontade de fazer o outro.12 Uma vez que um número suficiente
de pessoas tenha ouvido sua história e olhado seu carro,
encontro proprietários que não queriam me alugar um quarto,
empregadores relutantes em me contratar, pais se recusando a
permitir que eu namorasse suas filhas. Em uma sociedade onde
as pessoas se conhecem bem o suficiente para que o
cumprimento da reputação funcione bem, um assaltante, mesmo
que nunca tenha sido condenado, mesmo que sua sociedade não
tenha tribunais para condená-lo, pode descobrir que sua perda de
reputação lhe custa em as partes de sua vida que não consistem
em assaltar pessoas.
O argumento pode ser expandido para além da perda de
oportunidades comerciais. Os humanos são animais sociais; a
maioria de nós quer ser querida, admirado, visto como um status
elevado. Ser visto como alguém em quem não se pode confiar
custa em todas essas dimensões. Esse pode ser um motivo para
ser confiável, mesmo para alguém que planeja não repetir
transações que dependam de confiança.
Os seres humanos revelam seus sentimentos, valores,
pensamentos em expressões faciais, tons de voz, gestos. Isso
torna difícil, embora nem sempre impossível, manter a
reputação de pessoa honesta, confiável e generosa enquanto
12Esseinsight, óbvio uma vez declarado, mas não tão óbvio antes, devo a
James Donald.

452
Aplicando Regras

espera uma boa oportunidade para enganar alguém. Vigaristas


hábeis existem, mas são raros. A aplicação reputacional pode ser
mais difícil no caso de empresas, que não têm rostos para
mostrar suas emoções e podem descartar uma má reputação
arquivando um novo conjunto de documentos constitutivos sob
um novo nome. Uma solução é a empresa publicar um título de
reputação — uma campanha publicitária cara cujos benefícios
serão perdidos se a empresa desaparecer, um prédio de banco
com fachada de mármore e valor de revenda limitado.13
Há um outro problema com a aplicação reputacional que
se torna mais sério quanto maior for a sociedade. Quando você
me engana falhando em cumprir sua parte de um contrato e eu
reclamo, você responde explicando a qualquer um que pergunte
que você só rescindiu o contrato porque eu não cumpri minha
parte do trato. Um terceiro interessado, sem uma maneira fácil
de saber qual de nós está mentindo, pode concluir que seria
prudente não confiar em nenhum dos dois. Antecipando essa
resposta, concluo que a reclamação pública só piorará uma
situação ruim — é melhor assumir minhas perdas e manter
minha boca fechada. Este é um problema para um sistema onde
a dissuasão é produzida não por pessoas contratadas para
produzi-la, mas como um efeito colateral de indivíduos agindo
para sua própria proteção.14
Portanto, um requisito para a aplicação reputacional
funcionar é que o custo de informação para terceiros
interessados em descobrir quem foi o culpado seja baixo o
suficiente para valer a pena fazê-lo. Uma maneira de cumprir

13Para uma discussão mais extensa dessas questões, incluindo sua relevância
para transações on-line anônimas, consulte Friedman 2005.
14Friedman 2002 inclui um modelo simples de aplicação reputacional

mostrando a ligação entre o custo para terceiros e a quantidade de trapaça.

453
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

essa condição é uma pequena sociedade onde todos se


conhecem e têm uma boa ideia de qual conta pode ou não ser
confiável. Outra é o uso da arbitragem, idealmente uma
arbitragem pré-arranjada. Se você e eu concordamos
publicamente com antecedência que qualquer disputa sobre
nossos negócios com pedras preciosas será resolvida pela New
York Diamond Dealers' Association, tudo o que um terceiro
precisa saber é seu veredito, que exige muito menos esforço do
que investigar os detalhes da própria controvérsia.15
Uma terceira abordagem é demonstrada pelas negociações
de comerciantes chineses em Taiwan em um ambiente
amplamente dependente da aplicação reputacional, conforme
descrito no Capítulo 1. Estruture seus contratos de maneira que
torne o mais fácil possível para terceiros identificar quem foi o
culpado. Se minhas mercadorias estiverem armazenadas em seu
depósito e eu reclamar que você as deixou danificadas ou que
algumas delas estão faltando, será difícil para um terceiro julgar
a disputa, então siga a regra simples de que a donidade
acompanha a posse física. Responsabilize o comprador pela
inspeção das mercadorias antes de aceitá-las e proíba-o, exceto
nos casos mais extremos, de exigir compensação se mais tarde
descobrir que a qualidade delas é inferior à que ele esperava —
a regra do caveat emptor. É mais fácil demonstrar se entreguei
ou não as mercadorias a ele do que o que aconteceu com elas
depois ou em que condições foram entregues.

15O mecanismo funciona melhor se os árbitros forem escolhidos com


antecedência, pois assim terceiros não precisam ter informações
independentes sobre a honestidade ou competência do árbitro. Eles precisam
apenas saber que uma parte concordou em cumprir o veredicto do árbitro e
depois renegou esse acordo.

454
Aplicando Regras

A aplicação reputacional é mais eficaz para alguns do que


para outros. Portanto, elabore contratos para colocar a tentação
de inadimplência naqueles em quem se pode confiar que não
cederão a ela. Se você é confiável e eu não, pago adiantado;
você poderia pegar meu dinheiro e deixar de entregar o que
comprou, mas não vai. Esses são os termos em que eu costumo
comprar coisas da Amazon.com.

Ostracismo
Em seguida, considere o mesmo tipo de imposição, desta
vez usado como uma punição explícita.16 Uma comunidade
considera um de seus membros culpado de violar suas regras e
pronuncia uma sentença de ostracismo — marimé cigano ou
meidung amish. Outros membros se recusam a se associar com o
réu condenado. Se o ostracismo impõe grandes custos ao seu
alvo, a ameaça fornece uma razão para não violar as regras da
comunidade.
A razão para não se associar com o réu condenado não é,
como no caso anterior, evitar ser enganado, mas aplicar as
regras da comunidade. Isso cria um problema. Um indivíduo
que concorda com o ostracismo arca com o custo de desistir de
qualquer negociação mutuamente lucrativa que de outra forma
poderia ter com o réu. Ele compartilha o benefício de aplicar as
regras com todos os membros da comunidade, tornando
ostracismo o que os economistas descrevem como um bem
público, um bem cujo produtor não pode controlar quem o
16Pode-se interpretar os Tribunais de Feiras da Europa medieval como uma
mistura desta e da abordagem anterior. Se um comerciante se recusasse a
aceitar um veredito contra ele, outros se recusariam a negociar com ele, em
parte por medo de serem enganados, em parte para ajudar a aplicar as regras
da feira comercial.

455
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

obtém.17 Isso torna menos provável que a parcela individual do


benefício seja maior do que seu custo, o que pode dificultar a
adesão de indivíduos à decisão.
Uma solução é a regra: você não deve se associar com
ninguém que tenha violado uma regra comunitária — incluindo
esta.18
Comece em um momento em que todos aceitem e sigam
todas as regras comunitárias. Bill viola uma delas e é condenado
ao ostracismo. Um segundo membro da comunidade, John,
precisa decidir se ajudará a aplicar a sentença recusando-se a
negociar com Bill. Agora há um motivo adicional para fazer isso
— continuar a se associar com Bill será uma violação das regras
e sujeitará John ao ostracismo. Esse custo faz com que seja do
interesse de John recusar-se a negociar com Bill. Os membros
da comunidade (não incluindo mais Bill) estão no que é descrito
na teoria dos jogos como um equilíbrio de Nash; cada um está
seguindo a melhor estratégia para si mesmo (recusando-se a
associar-se com violadores de regras), dada a forma como os
outros estão agindo (recusando-se a associar-se com violadores
de regras, incluindo violadores da regra que você não associa a
violadores de regras). Volte nosso filme para antes de Bill violar
nossa regra e toda a comunidade está em um equilíbrio de Nash:
considerando como todos estão agindo, é do interesse de todos,
incluindo Bill, não violar as regras.
Até agora, tenho assumido um mecanismo formal para
impor o ostracismo. A imposição informal de normas é uma

17Para uma discussão mais extensa do problema do bem público e abordagens


para resolvê-lo, veja Friedman 1996, 262-5.
18“Os membros da igreja que se recusam a ostracizar os culpados morais são

eles próprios expulsos e evitados.” Kraybill (1989, 117), descrevendo o


meidung amish.

456
Aplicando Regras

versão mais familiar da mesma lógica. Não há nenhuma norma


legal que me proíba de dar aulas despojado até a cintura, mas
seria uma imprudência fazê-lo. Muitos de meus colegas
concluíam que eu não era o tipo de pessoa com quem eles
gostariam de se associar, em parte porque, se continuassem se
associando a mim, seus colegas poderiam chegar a uma
conclusão semelhante sobre eles.
Além do problema do bem público, há pelo menos dois
outros problemas com o ostracismo como forma de aplicar as
regras. A primeira é que alguém tem que decidir quem colocar
no ostracismo, o que requer um processo de tomada de decisão
cujos resultados praticamente todos aceitam. Se não houver tal
procedimento, uma tentativa de ostracismo pode dividir a
comunidade entre aqueles que aceitam o veredito e permitem e
aqueles que não aceitam nenhum dos dois. A segunda é que as
pessoas que participam do ostracismo devem incluir uma
proporção grande o suficiente daqueles com quem o alvo
gostaria de interagir, de modo que sua recusa em interagir
imponha um custo sério a ele.
Em uma grande sociedade, isso é difícil de conseguir, pois
apenas uma pequena proporção de seus membros precisa
desertar para fornecer ao alvo um número adequado de parceiros
comerciais. Em uma pequena comunidade inserida em uma
sociedade maior, o caso romani (e amish e mórmon e…),
funciona apenas se as barreiras para um membro da comunidade
interagir fora dela forem suficientemente altas. Essa condição
pode ser atendida, mas a um custo considerável, e pode deixar
de ser atendida, indiscutivelmente, para os vlach rom na
América, devido a mudanças que tornam a comunidade
incorporada ou a sociedade circundante menos intolerante uma
com a outra. Se as barreiras forem baixas, a ameaça de

457
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

ostracismo é apenas um impedimento leve, limitando a


capacidade da comunidade de impor suas regras a seus
membros.
Isso sugere que o ostracismo será mais eficaz para uma
pequena comunidade totalmente isolada, inserida em uma
sociedade mais ampla e muito hostil, ou ela mesma muito hostil
em relação à sociedade mais ampla. Fora de uma dessas
situações, pode ser usado para impor regras, mas apenas regras
que ninguém tem fortes motivos para violar.

O Sistema de Responsabilidade Comunitária


O sistema de responsabilidade comunitária descrito no
Capítulo 8 demonstra ainda outra abordagem para a aplicação da
lei. Uma sociedade é dividida em vários grupos — nesse caso,
gangues de prisioneiros — com membros conhecidos. É do
interesse de cada grupo impor as regras a seus próprios
membros, em parte para evitar conflitos dispendiosos com
outros grupos, em parte para manter uma reputação de grupo
que possibilite aos membros interagir com membros de outros
grupos de forma pacífica e de maneiras mutuamente lucrativas.
As gangues prisionais não são o único exemplo. Os vlach
rom americanos descritos por Sutherland são divididos em vitsa,
grupos de parentes. Um indivíduo pode se identificar com o
vitsa de seu pai ou de sua mãe e uma esposa pode se identificar
com o vitsa de seu marido. Mas a maioria das pessoas, na
maioria das vezes, pode ser identificada como membro de um
vitsa ou outro.
Cada vitsa tem uma reputação aos olhos dos membros de
outros vitsa. Essa reputação afeta o quanto os membros de
outros vitsa estão ansiosos para comprar filhas deles ou vender
filhas para eles e a que preço. Afeta a vontade daqueles que

458
Aplicando Regras

estão fora daquele vitsa de aceitar seu líder como o Rom Baro, o
grande homem, a figura dominante em uma kumpania. Dessas e
de outras maneiras, a reputação é importante.
Um resultado de um romani individual violar as regras da
romania é que ele se torna marimé, poluído e, assim,
ostracizado. Outro é que seu vitsa perde status:

Comportamento vergonhoso (lashav) ou pior ainda,


marimé, cria uma reputação para um indivíduo e sua
família (uma vez que a família é considerada responsável
pelo comportamento de seus membros) que, em última
análise, deve ser suportada pelo vitsa e possivelmente
pela kumpania como um todo.19

Essa é uma razão para cada vitsa usar a pressão social para
impedir que seus membros violem as regras e puni-los se o
fizerem.
Os grupos somalis que pagam dia fornecem outro
exemplo. Se um membro de tal grupo cometer um crime contra
um estranho, os outros serão obrigados a compartilhar o
pagamento dos danos ou a ajudar na disputa resultante. Essa é
uma razão para eles controlarem seus membros — por exemplo,
proibindo alguém muito inclinado a matar de carregar um fuzil.
O ‘akila da lei islâmica e o derbfine da lei irlandesa são
instituições semelhantes com funções semelhantes.
O sistema de responsabilidade comunitária é, como
sugerem esses exemplos, uma instituição antiga. Assim como o
reconhecimento acadêmico de sua função. Considere a resposta
de Adam Smith ao argumento de David Hume em favor de uma
religião estabelecida.

19Sutherland 1975, 148.

459
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Hume argumentou que se cada seita religiosa tivesse que


se sustentar com as contribuições de seus membros, os ministros
teriam um incentivo para atiçar as paixões religiosas, levando ao
conflito.20

E, no final, o magistrado civil descobrirá que […] a


composição mais decente e vantajosa que ele pode fazer
com os guias espirituais é subornar sua indolência
atribuindo salários declarados à sua profissão e tornando
supérfluo que eles estejam mais ativos do que apenas
impedir que seu rebanho se perca em busca de novos
pastos.

O que explica porque Hume, amplamente considerado


ateu, era a favor de uma igreja estabelecida.
A resposta de Smith foi que várias seitas concorrentes
serviam a uma função útil, uma vez que era do interesse de cada
uma manter sua reputação controlando o comportamento de seus
membros.

Todos os seus irmãos sectários estão, para o crédito da


seita, interessados em observar sua conduta, e se ele der
ocasião a algum escândalo, se ele se desviar muito
daquela moral austera que eles quase sempre exigem um
do outro, para puni-lo com o que é sempre uma punição
muito severa, mesmo quando não há efeitos civis,
expulsão ou excomunhão da seita.21

Praticamente o mesmo sistema que David Skarbek


descobriu operando nas prisões da Califórnia mais de duzentos
anos depois que Smith o descreveu.

20Hume 1762, 2:501-2.


21Smith 1976, livro V, capítulo 1, parte 3, artigo III, 317.

460
Aplicando Regras

Nos sistemas descritos por Skarbek e Smith, diferentes


mecanismos de imposição são possíveis, incluindo força
violenta (gangues prisionais) e ostracismo (pequenas seitas
religiosas). Como quer que as regras sejam aplicadas, o grupo
precisa de algum mecanismo de decisão, um líder religioso ou o
mandante de uma gangue. O que há de especial no sistema é o
incentivo do grupo — manter a reputação dos membros do
grupo controlando seu comportamento. A vantagem sobre um
sistema de reputação comum é que, mesmo que um membro
individual não seja um agente recorrente, o grupo do qual ele é
membro provavelmente é, portanto, tem um incentivo para se
preocupar com sua reputação com aqueles com quem seus
membros lidam.

Aplicação Divina: In Foro Interno


A aplicação divina fornece não apenas um mecanismo
independente para a imposição de regras, mas também uma
maneira de facilitar outros mecanismos. O objetivo de jurar
dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade, que
Deus me ajude, é que o juramento torna mais provável que você
realmente o faça, por medo de punição divina ou por acreditar
em sua obrigação de agir como Deus deseja. A razão para
permitir que o réu em um processo sob a lei judaica jure e seja
absolvido, derrotando o processo (capítulo 4), ou o queixoso, em
um caso onde a evidência é mais forte, jure e aceite, é que o
queixoso e o réu, como judeus crentes, relutarão em jurar
falsamente. Tanto os mecanismos penais quanto os civis para
aplicação de regras dependem de um tribunal ser capaz de julgar
culpa ou inocência. Fazer isso é mais fácil com o equivalente a
um detector de mentiras. A prática de exigir juramentos de
crentes relutantes em jurar falsamente fornece um.

461
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

A intervenção divina também pode substituir


completamente um julgamento no tribunal. Se Deus apóia o
direito, o julgamento por combate ou provação vindica o
inocente e condena o culpado. Mesmo que a intervenção divina
seja apenas mítica, a crença nela dá uma vantagem à parte que
sabe que é inocente sobre a parte que sabe que é culpada.22
Considere um judeu ortodoxo que mantém o kosher
mesmo quando tem certeza de que ninguém está olhando ou um
muçulmano convertido que reprime seu gosto lembrado por
carne de porco. Isso pode ser visto como imposição de regras
pela ameaça de sanções divinas, um raio ou uma década extra no
Purgatório. Ou pode ser visto como obediência não por medo de
punição, mas porque a obediência é o que se deve fazer. Há um
continuum de variantes, de um lado o crente no castigo divino,
do outro o ateu de C. S. Lewis criado para acreditar que os
cavalheiros não trapaceiam nas cartas.23
Para outro exemplo do mesmo padrão, considere o
mecanismo pelo qual os índios cheiene limitavam o nível de
violência física dentro da tribo.24 Lutas, mesmo lutas bastante
violentas, eram permitidas. Mas um cheiene que matava outro
membro da tribo, por qualquer motivo, era banido da tribo, pelo
menos por vários anos — porque agora cheirava a morte e o
cheiro, e suas consequências na má sorte, eram contagiosos. Da
mesma forma para os marimé entre os romani.

22Para uma discussão sobre o uso de sanções divinas na Europa Ocidental na


Idade Média, veja Leeson 2012b.
23“Prefiro jogar cartas contra um homem bastante cético em relação à ética,

mas criado para acreditar que 'um cavalheiro não trapaceia', do que contra um
filósofo moral irrepreensível que foi criado entre vigaristas.” (Lewis 1947,
15).
24Llewellyn e Hoebel 1983.

462
Aplicando Regras

Existem três razões diferentes para um indivíduo obedecer


a regras religiosas, e nem sempre fica claro qual é a responsável:
Porque ele acredita que elas estão certas.
Porque ele acredita que a violação resultará em punição
sobrenatural.
Porque ele acredita que a violação resultará em sanções
sociais.
Existe um teste simples para distinguir as duas primeiras
razões da terceira: ele obedece à regra quando tem certeza de
que ninguém está olhando?
Considere o caso dos romani. Até agora, tenho como certo
que eles obedecem às regras marimé porque acreditam que a
poluição resulta em doença e má sorte, bem como no
ostracismo. Nesse caso, as regras são autoaplicáveis.
Não está claro que seja inteiramente verdade:

A esposa é responsável pela pureza de seu marido, e ela


não pode permitir que ele se polua pisando em suas
roupas ou misturando-as com roupas femininas ao lavá-
las. Uma esposa disse desafiadoramente: “Posso pisar nas
roupas dele a qualquer momento em casa, mas nunca
poderia fazer isso na frente do meu sogro”, enfatizando a
diferença entre comportamento público e privado.25

Isso sugere que nesse sistema, e possivelmente em outros,


a aplicação é em parte sobrenatural, em parte social.
A forma pura de aplicação divina depende de todos
acreditarem na divindade e de sua vontade de impor. Essa
crença pode ser abalada se os infratores das regras escaparem
impunes. Uma maneira de evitar isso é começar com crenças
suficientemente fortes para tornar raras as violações detectadas.

25Sutherland 1975, 168. Veja também um comentário semelhante na p. 266.

463
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Outra é incorporar no sistema de crenças formas de punição


divina que não são observáveis de fora, como a punição post
mortem na lei islâmica, ou difíceis de observar, como a má
sorte. Praticamente todo mundo tem azar em alguma coisa.26
Mesmo que a imposição divina não seja um substituto
completo para mais. Para fazer uso dos juramentos como um
detector de mentiras, não é necessário que todos sejam crentes,
apenas que haja algum teste para identificar os incrédulos.
Práticas religiosas caras e não impostas, portanto, praticadas
apenas por crentes, fornecem um desses testes. Uma função das
regras kosher e restrições semelhantes pode ser identificar os
crentes cujos juramentos são confiáveis.27
A versão extrema disso é uma situação em que ser um
membro do grupo é tão caro que ninguém escolheria se juntar a
menos que realmente acreditasse na religião. Indiscutivelmente,
isso descreve aqueles que participaram da igreja mórmon em
seus primeiros anos, quando os fiéis estavam fugindo da maior
parte do resto da humanidade para se refugiar no que se tornaria
Utah. Também o núcleo de crentes que aceitou a expulsão de
Meca para se juntar a Maomé em Medina.
Isso sugere que religiões como o Islã ou a Igreja dos
Santos dos Últimos Dias, pelo menos em seus estágios iniciais,
têm uma vantagem significativa sobre rivais menos

26Peter Leeson, em um artigo sobre o uso de maldições por monges


medievais para proteger sua propriedade, aponta que um requisito para que
funcione é que a maldição assuma uma forma que não seja facilmente
falsificada. Se eu amaldiçoar você a cair morto amanhã e você não cair, você
e outros concluirão que minhas maldições não funcionam. Se eu amaldiçoar
você para não ter sorte, qualquer coisa ruim que aconteça com você pode ser
interpretada como evidência de que elas funcionam. (Leeson 2012b).
27Leeson faz o mesmo argumento para os ciganos obedecerem à romania.

Leeson 2013.

464
Aplicando Regras

controversos; eles sabem em quem se pode confiar, porque


ninguém que não pode se juntará. Indiscutivelmente, uma
situação análoga existe para os movimentos políticos. Estar no
poder tem vantagens, mas também uma importante
desvantagem. Como a identificação com o partido no poder
compensa, não há maneira fácil de distinguir os crentes
dedicados em quem se pode confiar do equivalente político dos
cristãos do arroz, chineses que se converteram porque os
missionários tinham arroz.

Conclusão
Esbocei agora todas as abordagens para impor regras
jurídicas que observamos nos sistemas jurídicos discutidos aqui.
Todos têm problemas, mas não os mesmos problemas. Isso
sugere que qual sistema funciona melhor depende, pelo menos
em parte, da sociedade cujas regras devem ser aplicadas. Essa é
uma das razões pelas quais este livro é uma tentativa de
entender diferentes sistemas jurídicos, não para decidir qual é o
melhor.

465
18
O Problema do Erro
Se ninguém se beneficia com a imposição de uma regra
legal, a regra não será imposta. Se alguém se beneficia demais
ao condenar alguém por violar uma regra legal, podemos gastar
mais na aplicação da lei do que vale a melhoria resultante. Obter
o incentivo correto envolve o equilíbrio entre os benefícios da
aplicação da lei e seus custos. Poderíamos obter uma aplicação
quase perfeita dos limites de velocidade se cada estrada tivesse
um carro da polícia a cada poucos quilômetros, mas seria
necessário um número muito grande de policiais e carros.
Um segundo custo de condenar mais culpados é também
condenar mais os que não são. Se aumentarmos as condenações
reduzindo a quantidade de provas necessárias para condenar,
absolveremos menos réus culpados, mas condenaremos mais
inocentes. Se aumentarmos as condenações através do aumento
da recompensa para os policiais que prendem os apressadinhos,
aumentaremos o incentivo para que os policiais prendam os
motoristas que eles falsamente afirmam estarem em excesso de
velocidade e para que as localidades instalarem armadilhas de
velocidade projetados não para reduzir acidentes, mas para
aumentar as receitas. Trata-se de um problema quase tão antigo
quanto os automóveis.

Enquanto esperávamos do lado de fora, o homem gordo


no cavalo cinza subiu e entrou em uma conversa
barulhenta com seus magistrados irmãos. Ele disse a um
deles — pois eu me dei ao trabalho de anotar —: “Cai
dos portões da minha cabana, direto, três quartos de

467
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

milha. Eu desafio qualquer um a resistir. No mês


passado, pegamos setenta libras deles. Nenhum carro
consegue resistir à tentação. Você deveria ter um do seu
lado do condado, Mike. Eles simplesmente não podem
resistir.” (Kipling 1918, 191)

Um exemplo diferente do mesmo problema foi descrito no


capítulo 15. Na Inglaterra, em meados do século XVIII, tanto o
Parlamento quanto a Coroa estabeleceram recompensas pela
condenação de criminosos por delitos pelos quais se temia que a
acusação privada fosse inadequada.1 O resultado foi uma série
de escândalos nos quais alguém foi instigado a cometer um
delito ou incriminado por um delito que não cometeu.
Eventualmente, recompensas por condenação foram substituídas
por uma compensação parcial pelas despesas de um processo
bem-sucedido — não o suficiente para tornar o processo
lucrativo, apenas menos dispendioso.2

Prevenindo Falsos Vereditos


A abordagem direta é usar regras legais que dificultam a
condenação de réus inocentes. As regras de evidência e a
exigência de prova além de uma dúvida razoável no direito
penal anglo-americano supostamente são capazes disso. Não
está claro como eles são bem-sucedidos em um sistema legal
onde a esmagadora maioria das condenações não são por
1
A certa altura, as recompensas reais e parlamentares combinadas para a
condenação de um crime grave em ou perto de Londres chegaram a £140,
três anos de renda para um jornaleiro.
2
O Bennet’s act, aprovado em 1818 em resposta a preocupações com o efeito
perverso de recompensas por condenação, incluindo júris que não confiam
em promotores e testemunhas, substituiu recompensas pelo pagamento de
custos avaliados pelo juiz. (Beattie 1986, 58-59).

468
O Problema do Erro

julgamento, mas por meio de plea bargaining.3,4 Não temos uma


boa medida de qual fração dos condenados por crimes são
inocentes, mas tentativas de medição indireta para ofensas
graves sugerem que é de pelo menos 3% a 5%, talvez mais.5
Dada a lógica do plea bargaining, as taxas para ofensas mais
leves podem ser consideravelmente mais altas.
Mesmo se soubéssemos como elaborar regras que
fizessem um melhor trabalho de separação entre inocentes e
culpados, não está claro que seria do interesse daqueles que as
criam. Quando alguém é condenado por um crime que não
cometeu, não é o juiz ou o legislador que paga a pena. E mesmo
com regras legais bem elaboradas, muitas vezes é possível
encontrar, do universo de todos os potenciais suspeitos, alguém
mais fácil de condenar do que o verdadeiro infrator. Assim,
mesmo com regras bem projetadas, pode-se esperar que o

3
De acordo com o National Registry of Exonerations, mantido pelas
faculdades de direito da Universidade de Michigan e da Northwestern
University, 15% dos exonerados se declararam culpados.
4
N.T.: “Plea bargaining” (lit. pleito de barganha) é no common law um
acordo em processo penal, por meio do qual o promotor oferece uma
concessão ao réu em troca de uma confissão de culpa ou nolo contendere.
5
Gross et. al. 2014 dão 4,1% como uma estimativa conservadora para a
fração de réus condenados à morte que eram inocentes. A conclusão deles é
baseada em dados sobre exonerações. Um réu pode ser exonerado com base
no fato de que as provas pelas quais ele foi condenado não eram fortes o
suficiente para satisfazer o requisito “além de uma dúvida razoável” para
prova criminal e ainda assim ser culpado, mas os autores acreditavam que o
viés de contar todas as exonerações como implicando inocência foi mais do
que superado por outros preconceitos na direção oposta. Roman et. al. 2012
fizeram uso de uma coorte de 634 casos da Virgínia datados de 1973 a 1987
para os quais a evidência de tecido sobreviveu. Seus resultados sugerem que
em cerca de 16% dos casos as provas, se analisadas, teriam reduzido a
probabilidade de condenação (minha análise de seus resultados).

469
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

aumento do incentivo para condenar aumente o número de


condenações falsas.
O problema é o mesmo se o incentivo é uma recompensa
por pegar um criminoso, evitar a punição por não pegar um
criminoso,6 danos por tort, avanço na carreira de um policial que
pega seu criminoso ou publicidade favorável para um
procurador politicamente ambicioso. No direito americano
moderno, a questão do incentivo demasiado para condenar
aparece como preocupação com confisco civil,7 ações coletivas
e danos punitivos. No direito de disputas, o problema
correspondente é a extorsão disfarçada de aplicação dos direitos.

6
“Por não prender um ladrão ou assaltante dentro de um mês, ele deveria ser
punido com sete ou dezessete golpes com um bastão leve, respectivamente;
por dois meses, dezessete ou 27 golpes, respectivamente; e por três meses, 27
ou 37 golpes, respectivamente. Por outro lado, ele seria recompensado por
prender um ladrão ou assaltante dentro do prazo.” Ch'en 1979 sobre as regras
para "arqueiros", policiais recrutados, sob a dinastia Yuan. “Se os policiais de
prisão não capturarem os ladrões forçosos dentro de um mês, eles serão
punidos com 20 golpes de espancamento com o bastão leve. Por dois meses a
pena […]” (artigo 418 do código Ming, Jiang 2005, 225). “Sempre que, pela
autoridade de um tribunal de justiça, consistindo de funcionários regulares do
governo e de funcionários oficiais, uma sentença injusta é proferida e
executada deliberada e intencionalmente, […] em todos esses casos, o
membro do tribunal que estiver em primeiro lugar no ponto de
responsabilidade, sofrerá punição em grau igual ao que foi, quando não
deveria ter sido, ou não foi, quando deveria ter sido infligido. Sempre que a
sentença injusta não tiver sido proferida voluntariamente, mas por erro,
haverá redução em cada caso, de três graus na pena, se a injustiça consistir
em agravamento; e de cinco graus, se consistisse em atenuante da pena.”
(Staunton 1810, 466-468).
7
Mastro et. al. 2000, Benson et. al. 1995. Veja também:
https://fee.org/articles/highway-robbery/. O problema também pode aparecer
em casos de alto perfil em que o procurador precisa de uma condenação para
promover suas ambições políticas.

470
O Problema do Erro

Blackstone famosamente escreveu: “É melhor que dez


culpados escapem do que um inocente sofra.” Benjamin
Franklin elevou de cem para um.8 Nenhum deles ofereceu
qualquer base para seus números.
Se ao menos tivéssemos um sistema legal que nunca
condenasse um réu inocente...

A Origem da Lei da Tortura: Um Conto de Advertência


No passado, as pessoas também se preocupavam com a
condenação de inocentes. No início da Idade Média, elas tinham
uma solução — deixe Deus julgar. Um réu podia ser submetido
a uma provação, como mergulhar sua mão em água fervente,
carregar uma barra de ferro em brasa ou ser jogado amarrado na
água. Várias passagens da Bíblia eram interpretadas para
implicar que Deus revelaria a culpa (mão ferida ou corpo
flutuando) ou inocência (não ferida, corpo afundando, retirado).
Como Deus era onisciente, um veredicto correto era garantido.
O uso de provações foi eventualmente abandonado por
motivos teológicos; em 1215, o Quarto Concílio de Latrão
rejeitou a legitimidade religiosa das provações judiciais e
proibiu os padres de participar delas. Durante as décadas
seguintes, a maioria dos países europeus abandonou seu uso.9
Isso deixou os sistemas judiciais medievais à procura de
outra forma de ter certeza da culpa do réu antes de sua
condenação. A solução foi um alto padrão de prova, evidência
“clara como o Sol do meio-dia”. A condenação exigia ou duas
testemunhas oculares incontestáveis do crime, ou uma confissão

8
Volokh 1997 fornece um histórico detalhado de várias versões da regra.
9
Para detalhes veja Leeson 2012 e Langbein 1978.

471
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

voluntária. As provas circunstanciais, por mais fortes que


fossem, eram insuficientes.

Na história da cultura ocidental, nenhum sistema jurídico


jamais realizou esforço mais corajoso para aperfeiçoar
suas salvaguardas e, assim, excluir completamente a
possibilidade de condenação equivocada.10 Mas os
europeus aprenderam no devido tempo a lição inevitável.
Eles tinham colocado o nível de proteção alto demais.
Eles haviam construído um sistema de provas que
poderia, como questão prática, ser eficaz apenas em casos
que envolvessem crimes explícitos ou criminosos
arrependidos. Como a sociedade não pode por muito
tempo tolerar um sistema legal que não possua a
capacidade de condenar pessoas não arrependidas que
cometem crimes clandestinos, algo tinha que ser feito [...]
(Langbein 1978, 4-5)

A solução foi a lei da tortura. Uma vez que o tribunal


tivesse meia prova, uma testemunha ocular ou o equivalente em
provas circunstanciais, o réu poderia ser torturado. Uma
confissão sob tortura não era voluntária, mas esse problema
podia ser resolvido. Pare a tortura e, no dia seguinte, pergunte ao
réu se ele está disposto a confessar. Como agora ele não está
sendo torturado, a confissão é voluntária. Se ele não confessar,
torture-o novamente.
John Langbein, minha fonte para esta explicação, oferece
uma história paralela no direito moderno. Há duzentos anos, os
julgamentos por júri eram curtos:

10
Pace Langbein, os judeus fizeram uma tentativa ainda mais extrema,
exigindo não apenas duas testemunhas, mas duas testemunhas que avisaram
o ofensor com antecedência.

472
O Problema do Erro

No Old Bailey, nos anos 1730, sabemos que o tribunal


processava rotineiramente entre doze e vinte julgamentos
por júri de delitos em um único dia. Um único júri ficaria
encarregado e ouviria provas em numerosos casos não
relacionados antes de se recolher para formular vereditos
para todos. Os advogados não eram empregados na
condução de julgamentos criminais comuns, nem para a
acusação, nem para a defesa. O juiz de julgamento
chamava as testemunhas (a quem o juiz local de paz
estava obrigado a comparecer), e o processo se revelava
como uma “discussão” relativamente não-estruturada
entre as testemunhas e o acusado. Na década de 1790,
quando os americanos estavam constitucionalizando o
julgamento por júri inglês, este ainda era rápido e
eficiente. “O julgamento de Hardy por alta traição em
1794 foi o primeiro que durou mais de um dia, e o
tribunal considerou seriamente se tinha algum poder para
adiá-lo [...].”

Ao longo dos anos, os julgamentos se tornaram mais


longos e muito mais complicados, pelo menos em parte como
tentativa de reduzir o risco de condenar a pessoa errada. O
julgamento de Patricia Hearst, em 1976, por roubo a bancos
durou quarenta dias. Foi excepcionalmente longo, mas o
julgamento médio para crimes mais graves na Los Angeles de
1968 levava 7,2 dias, mais de cem vezes a duração do
julgamento médio para esse tipo de crime no Old Bailey dos
anos 1730. Se cada julgamento por crimes graves nos Estados
Unidos levasse tanto tempo, só esse tipo de julgamento exigiria
os esforços em tempo integral de mais juízes do que os
existentes atualmente, estaduais e federais combinados, e perto

473
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

de um milhão de jurados, assistentes judiciais e afins.11 Não


impossível, mas muito caro.
O sistema jurídico americano encontrou uma alternativa
mais barata. Como seu predecessor medieval, ele substituiu a
confissão por julgamento. A confissão medieval era motivada
pela ameaça de tortura. A versão moderna, um plea bargain, é
motivada pela ameaça de uma sentença mais severa se o réu
insistir em um julgamento e for condenado. Como a versão
medieval, ela preserva a forma — todo acusado de crime tem
direito a um julgamento por júri, um advogado e toda a
parafernália da lei moderna de defesa criminal — enquanto
abandona a substância. A condenação após um longo e
cuidadoso julgamento por júri é, sem dúvida, prova de culpa
além de uma dúvida razoável. A disposição de aceitar uma
sentença de um ano, possivelmente um ano já cumprido
enquanto se aguardou o julgamento, em vez do risco de dez
anos, caso não seja condenado.
Problemas semelhantes surgem em outros sistemas
jurídicos. Segundo a lei judaica descrita por Maimônides, a
condenação por um delito capital exigia que duas testemunhas

11
Nos Estados Unidos, em 2006, cerca de 1,2 milhão de pessoas foram
condenadas por um crime. Se cada um deles tivesse um julgamento com júri
de 7,2 dias, o total seria de 8,6 milhões de dias de julgamento. Supondo que
os tribunais funcionem cinco dias por semana, 52 semanas por ano, apenas os
casos criminais exigiriam o esforço em tempo integral de 33.000 juízes.
Adicione mais alguns para os julgamentos dos réus que foram absolvidos.
São cerca de 30.000 juízes nos sistemas judiciários estaduais e outros 1.700
no sistema federal. Para cada juiz, o processo precisaria de doze jurados e um
número ainda maior de advogados, testemunhas, oficiais de justiça, membros
adicionais do júri e assim por diante. Vale a pena notar, no entanto, que a
Atenas de Péricles empregava como jurados uma fração substancialmente
maior de sua população.

474
O Problema do Erro

testemunhassem que, imediatamente antes do infrator cometer o


crime, ambas o tivessem advertido que o mesmo estava sujeito à
pena capital e ele cometesse mesmo assim. E as testemunhas
precisam ter visto o crime cometido:

Mesmo que as testemunhas o tenham visto (o agressor)


perseguindo o outro, o tenham avisado e depois perdido
de vista, ou o tenham seguido até a ruína e encontrado a
vítima contorcendo-se (em agonia de morte), enquanto a
espada pingando com sangue estava nas mãos do
assassino, o tribunal não condena o acusado à morte, já
que as testemunhas não o viram no momento do
assassinato.

Essa era a teoria. A prática:

Todo tribunal […] se vê que o crime é desenfreado entre


o povo […] pode impor a pena de morte, penas
monetárias ou outras punições, mesmo que não haja
provas absolutas.12

Sob a lei islâmica, a condenação por uma ofensa Hadd,


baseada em teoria diretamente do Alcorão, exigia duas
testemunhas oculares do mesmo ato, ambos homens adultos
muçulmanos competentes e de boa reputação. No caso de Zina,
relação sexual ilegal, exigia quatro testemunhas do mesmo ato,
não sendo uma condição provável de ser cumprida. Os crimes
Hadd poderiam, entretanto, ser processados como crimes Ta'zir,
com padrões de prova mais fracos e, de acordo com algumas,
mas não todas as escolas de direito, punições mais fracas. Se
mesmo isso fosse muito difícil, existiam os tribunais shurta e

12
Citado em Elon 1994 por Joseph Caro, Shulhan Arukh HM cap. 2.

475
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

mazalim, criados pelo governante e não vinculados às regras da


jurisprudência alcorânica.

Padrões de Prova
Ao estabelecer o padrão probatório, um sistema jurídico
está equilibrando o benefício de condenar mais réus culpados
contra o custo da condenação de mais réus inocentes. A
condenação dos inocentes pode ser menos importante ou a
dissuasão ser mais importante para algumas ofensas do que para
outras. Isso seria um motivo para usar diferentes padrões de
prova para diferentes ofensas.
No common law anglo-americano, o padrão de prova para
um caso civil é uma preponderância da prova, comumente
interpretada como uma probabilidade de culpa acima de
cinquenta por cento. O padrão em um caso criminal é uma prova
além da dúvida razoável. Por que a diferença? Não pode ser
apenas uma questão de padrões mais elevados quando há mais
em jogo, uma vez que o padrão criminal se aplica tanto a crimes
menores quanto a crimes maiores, o padrão civil para processos
que envolvem dezenas de milhões de dólares em indenizações,
assim como processos por pequenas quantias.
Uma resposta possível é que um erro no caso civil
significa que alguém paga dinheiro, que outra pessoa recebe.
Isso pode ser injusto, mas o custo da penalidade rende zero. No
caso criminal, ninguém recebe a vida ou a liberdade que o réu
inocente perde. Portanto, condenar o inocente é mais caro no
caso criminal, sendo uma razão para um padrão de prova mais
elevado.
O argumento pode ser generalizado tanto para padrões de
prova em outros sistemas legais quanto para outras formas de
conter os custos da punição. Na lei islâmica, dar à vítima ou a

476
O Problema do Erro

seu herdeiro a escolha entre retaliação e diya, dinheiro de


sangue, possibilita a substituição de uma punição eficiente por
uma ineficiente. Assim como os acordos extrajudiciais no
direito penal inglês, legais e incentivados para crimes mais
leves, ilegais, mas, tenho argumentado, comuns para crimes
mais graves.
Um sistema legal poderia compensar um padrão de prova
mais elevado com punições mais severas para os condenados,
mantendo assim o mesmo nível de dissuasão. Um custo dessa
abordagem é que ela pode exigir uma mudança de uma punição
eficiente, uma multa, para alternativas menos eficientes, como
prisão, punição corporal ou execução, havendo um limite para o
valor de uma multa que um réu pode pagar.

Tecnologias para Revelar a Verdade


Uma maneira de evitar a condenação de inocentes é exigir
um alto padrão de prova. Outra é mudar as regras, de forma a
fazer um melhor trabalho de julgamento da culpa. Isso pode
significar julgamentos mais longos, maiores gastos pelo tribunal
e pelas partes para provar ou refutar as acusações. Pode também
significar mudanças na forma como os casos são julgados. Que
mudanças melhoram o desempenho, que mudanças o pioram,
podem depender de detalhes do sistema legal e da sociedade.
Considere a seleção do júri. No início da Inglaterra
medieval, era utilizado um júri informado, jurados locais para o
réu, portanto, com provável conhecimento de muitas das
informações relevantes para a sua culpa ou inocência. Essa
vantagem era contrabalançada pelo risco de que eles pudessem
ser tendenciosos a favor ou contra um réu que conhecessem. O
sistema moderno dos EUA adota a abordagem oposta, fazendo

477
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

seu melhor para excluir do júri qualquer pessoa com alguma


conexão com o réu e confiando no processo de julgamento para
informar um júri inicialmente desinformado. Qual abordagem é
melhor depende, em parte, de qual é mais provável que seja
parcial, os vizinhos ou o aparato de julgamento, em outra, de
quão rica é a sociedade. Uma sociedade pobre pode se
beneficiar ao confiar nas informações que os jurados já
possuem, em vez de jogar essas informações fora e pagar
alguém para substituí-las.
Outra questão é a escolha entre um sistema inquisitorial,
no qual o aparelho judiciário descobre e apresenta provas para o
juiz ou júri, e um sistema acusatório, onde a acusação oferece
provas de culpa; a defesa, de inocência. Uma desvantagem deste
último é que alguém que procura provas de um lado pode
ignorar qualquer prova que apareça do outro. Uma vantagem é
que, com um partidarismo de cada lado, há menos risco de que o
partidarismo por parte do investigador produza uma seleção
tendenciosa de provas.
Há outra vantagem menos óbvia no sistema contraditório.
A recompensa por procurar algo é maior quanto mais provável
for encontrá-lo. Um réu inocente pode esperar que os fatos, em
média, sustentem sua inocência e, portanto, tem mais incentivo
para pagar os custos de uma extensa busca por evidências do
que um réu culpado. Assim, o comportamento de interesse
próprio do réu revela sua informação privada de culpa ou
inocência de uma forma, evidência de inocência produzida, que
alimenta o processo de julgamento. O sistema inquisitorial não
possui esse mecanismo, uma vez que a busca de provas está
sendo feita por oficiais de justiça sem acesso às informações
privadas de culpa ou inocência do réu.

478
O Problema do Erro

Um argumento do outro lado é que, sob o sistema


acusatório, quanto é gasto na busca de provas de inocência
depende em parte de quão rico é o réu. O sistema inquisitorial
pode optar por gastar a mesma quantia investigando a inocência
de ricos e pobres.13
Outra forma de melhorar a precisão dos resultados dos
julgamentos é reduzindo as restrições sobre como as provas
podem ser obtidas. Um exemplo moderno é a vigilância. Escutas
telefônicas, instalação de câmeras de vídeo em locais públicos,
exigências para que as companhias telefônicas mantenham
registros de quem ligou para quem e os disponibilizem para as
autoridades, monitoramento de atividades na internet, busca em
residências e computadores, são todas tecnologias que podem
ser usadas para reunir provas para ajudar a identificar os
culpados. Tais tecnologias também possuem custos: elas
reduzem a privacidade e oferecem oportunidades para
chantagem feita por agentes aplicadores da lei, agências ou os
políticos que elas servem. Essas são razões para restringir tais
atividades.
Uma abordagem para fazer isso o direito moderno dos
EUA é a regra de exclusão: as provas obtidas por busca ilegal
não podem ser usadas em julgamento. Isso reduz, mas não
elimina, o incentivo para conduzir uma busca ilegal; as
informações produzidas podem ser utilizadas sem que sua
origem seja revelada. De acordo com notícias publicadas em
13
John Lott (1987) argumentou que o fato de réus mais ricos obterem
sentenças mais leves por terem melhores advogados é uma evidência a favor
da eficiência do sistema jurídico, uma vez que sentenças iguais
corresponderiam a uma multa mais alta para infratores com maior custo de
oportunidade para o tempo deles. Por outro lado, mostrei que, em algumas
circunstâncias, é eficiente para infratores mais ricos pagarem multas mais
altas. (Friedman 1981).

479
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

2013, provas produzidas pela vigilância justificada na segurança


nacional estavam sendo encaminhadas para agências de
aplicação da lei que atuam contra crimes domésticos. Os
destinatários eram instruídos, uma vez que tivessem os dados, a
reconstruí-los por técnicas normais de investigação e, no
julgamento, ocultar sua origem.14
Eu já mencionei uma tecnologia de investigação mais
antiga ainda não totalmente abandonada: a tortura. Um
argumento contra ela é que um réu que é torturado, mas
absolvido, foi punido com tortura, talvez permanentemente
ferido, por um crime que não cometeu. Outro, observado pelo
menos desde a Atenas de Péricles, é que, sob tortura, até mesmo
um réu inocente pode confessar.
A lei dos visigodos,15 o mais antigo código de lei
germânica a ter sobrevivido, ofereceu uma solução para o
segundo problema. A tortura de um réu só era permitida se
houvesse fatos do crime que um réu inocente não soubesse.
Uma confissão só era aceita se incluísse tais fatos. A mesma
abordagem é às vezes utilizada no direito moderno para decidir
se uma confissão deve ser acreditada.
Tanto a regra antiga quanto a moderna têm a mesma
fraqueza. O interrogador conhece os fatos relevantes. Se ele

14
“O documento orienta especificamente os agentes a omitir o envolvimento
do SOD em relatórios investigativos, depoimentos, discussões com
procuradores e depoimentos em tribunal. Os agentes são instruídos a usar
‘técnicas normais de investigação para recriar as informações fornecidas pelo
SOD.’” (De uma história da Reuters publicada em 05/07/13:
http://www.reuters.com/article/us-dea-sod-idUSBRE97409R20130805) O
SOD é a Divisão de Operações Especiais (Special Operations Division) da
DEA (Drug Enforcement Agency) que canalizava as informações obtidas da
NSA e de outras fontes para os agentes da lei.
15
Scott 1910.

480
O Problema do Erro

deseja condenar o réu, tudo o que ele precisa fazer é divulgar os


fatos a ele quando ninguém mais está por perto e depois usar a
tortura para obrigá-lo a incluí-los em sua confissão.
Suponha que houvesse um substituto sem esses problemas,
uma droga da verdade que produzisse informações confiáveis
sem prejudicar o réu. Os argumentos contra a tortura não se
aplicariam então. Deveríamos usá-la?
Uma resposta possível é que queremos realizar um bom
trabalho de aplicar a lei, mas não um demasiadamente bom. Até
agora, tomei como certo que as leis que estão sendo aplicadas
são as que deveriam ser aplicadas. Isso pode nem sempre ser o
caso. Uma forma confiável de condenar todos os criminosos é
também uma forma de aplicar as leis tirânicas. Os limites às
tecnologias de aplicação da lei podem ser justificados como
limites ao poder de quem está fazendo e aplicando as leis.

Mudando Incentivos
Outra abordagem ao problema de proteger os inocentes da
condenação é fazer com que seja do interesse dos procuradores
de justiça evitar processar os réus inocentes. Um exemplo é
dado pela lei ateniense. Seu equivalente em casos criminais
poderia, como em casos criminais na Inglaterra do século XVIII,
ser processado privadamente por qualquer cidadão adulto do
sexo masculino (no caso inglês, também do sexo feminino). A
condenação geralmente levava a uma grande multa, uma parte
da qual ia para o procurador bem-sucedido. Para reduzir o risco
de que um procurador pudesse deliberadamente visar um réu
inocente, a lei ateniense previa que caso um promotor não
conseguisse que pelo menos 20% do júri votasse a favor da
condenação fosse, ele próprio, multado e proibido de participar
em qualquer processo futuro de casos semelhantes. Isso deu aos

481
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

procuradores potenciais um incentivo para evitar processar os


réus que tinham uma chance substancial de provar sua
inocência. No Guta Lag, um código de lei sueco do século XIII,
uma mulher considerada culpada de matar seu filho devia pagar
uma multa de três marcos. Se ela fosse considerada inocente,
seus acusadores deviam-lhe pagar três marcos.16
A abordagem ateniense poderia ser aplicada a um sistema
jurídico moderno penalizando um queixoso de tort ou
procurador público que não conseguisse obter mais do que um
número mínimo de jurados para votar a favor da condenação.
Alternativamente, poder-se-ia impor uma pena aos procuradores
responsáveis pelas condenações que mais tarde se mostrassem
equivocados, como nos casos de reversões por DNA.
O problema com a primeira versão é que ela dá aos
procuradores que suspeitam que o réu possa ser inocente um
incentivo para ocultar o máximo possível das provas do júri. O
problema com o segundo é que ele dá a um procurador que
suspeita ter condenado um réu inocente um incentivo para evitar
que o erro seja descoberto.
Essa não é uma questão puramente teórica. Não há
nenhuma penalidade legal no direito moderno dos EUA para um
procurador que se revela ter condenado um réu inocente, mas há
custos para a sua reputação. Lendo relatos sobre tentativas por
projetos de inocência de usar testes de DNA para verificar os
resultados de casos antigos, nota-se a relutância de muitas das
autoridades que controlavam o acesso às provas em
disponibilizá-las.17
Para uma abordagem diferente com o intuito de proteger
os inocentes, considere a acusação motivada pela dissuasão
16
Peel 2009, 6.
17
Scheck et. al. 2000.

482
O Problema do Erro

privada. Prender o primeiro mendigo de mente fraca encontrado


perto do local de um crime e levá-lo para a forca funciona tão
bem quanto caçar o verdadeiro criminoso do ponto de vista de
um promotor particular motivado por uma recompensa ou um
policial que está procurando uma promoção — e pode dar muito
menos trabalho. Mas se os criminosos em potencial sabem que a
pessoa condenada é a que cometeu o crime, como o verdadeiro
criminoso certamente sabe, a dissuasão privada depende da
condenação da pessoa certa. Portanto, é um mecanismo de
acusação, talvez o único, que vem com um incentivo embutido
para condenar a pessoa certa.
Os executores não são as únicas pessoas cujos incentivos
são importantes. Os criminosos e as testemunhas também são.
Em muitos sistemas legais, a punição é reduzida para um
infrator que se entrega, ou aumentada para um infrator que toma
ações, como esconder o corpo de sua vítima, que dificultam
descobrir o crime e atribuir a culpa.18 Isso também é um
mecanismo para facilitar a condenação seletiva do culpado. Em
muitos sistemas legais, o testemunho perjúrio é em si criminoso,
tornando menos provável que réus inocentes sejam condenados,
ou os culpados absolvidos. Em vários sistemas, incluindo a lei
judaica e o sistema legal da Atenas de Péricles, o falso
testemunho que levou à execução de um réu inocente era uma
ofensa capital.

18
Verdadeiro para o sistema jurídico galês (Ireland 2015, 3-4, 14, 16), o
sistema jurídico islandês e o sistema jurídico somali. Na lei judaica, furto,
tomada secreta, era punido com mais severidade do que assalto, tomada
aberta.

483
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Os Sistemas Legais e os Incentivos que


Fornecem
Até agora, analisamos o problema do incentivo à execução
e o problema associado à condenação de réus inocentes a partir
de uma perspectiva que atravessa os sistemas jurídicos. Como a
lógica se aplica aos diferentes mecanismos de aplicação da lei?

Disputa
Alguém que decide se deve exigir uma indenização por
danos possui dois incentivos: a compensação e a dissuasão. Ele
tem um incentivo contrário — a violência que pode resultar,
incluindo tanto o choque imediato se ele tentar levar a cabo sua
ameaça e os conflitos subsequentes se a outra parte retaliar.
Quanto mais claro for que ele está certo e o outro errado, como
julgado por potenciais aliados de ambos, mais provável é que o
outro ceda à sua demanda e mais baixos os custos esperados do
conflito. A probabilidade de um sistema de pura contenda punir
as pessoas certas depende, portanto, do grau de precisão com
que outros na comunidade podem julgar a culpa, o que explica
por que tais sistemas tipicamente incluem algum mecanismo de
arbitragem de terceiros. O veredito de um árbitro ou tribunal de
confiança fornece a terceiros interessados as informações sobre
quem é culpado, sem exigir que eles mesmos investiguem as
reivindicações das partes.
As mesmas considerações entram no lado do benefício do
cálculo. Iniciar uma rixa só proporciona dissuasão contra futuros
erros se aqueles que possam cometê-los acreditarem que você
foi realmente injustiçado, portanto, encarem sua resposta como
prova de que seria prudente que eles não o futuramente te

484
O Problema do Erro

prejudiquem. Quanto menos clara for a evidência de sua


posição, menor será o benefício de exigir indenização ou, se ela
não for apresentada, levar a cabo a ameaça de violência. Se seus
vizinhos considerarem sua ação totalmente injustificada, eles
podem concluir que não é arriscado enganá-lo, mas é arriscado
ter algo a ver com você, talvez até mesmo que você seja um
perigo público com o qual se deveria lidar.

Aplicação Reputacional
O direito de torts, o direito penal e a disputa desencorajam
os delitos impondo penas aos infratores; o infrator é punido
devido a ações de alguém que tenta puni-lo. A aplicação
reputacional também impõe custos ao infrator, mas esses custos
são um efeito indireto de indivíduos que optam por se proteger,
não lidando com partes que acreditam não serem confiáveis.
Se seu julgamento estiver correto, sua ação os beneficia;
se estiverem errados, estão renunciando a oportunidades para
transações potencialmente benéficas. Isso lhes dá um incentivo
para distinguir inocentes de culpados e, ao contrário de
promotores que serão recompensados por uma condenação,
nenhum incentivo para condenar os inocentes. Mas embora não
haja benefício em condenar os inocentes, geralmente há apenas
um pequeno custo para fazê-lo, já que na maioria das vezes há
outras lojas de departamento e outros comerciantes de diamantes
para com os quais negociar. Por isso, os terceiros cujos atos
proporcionam a aplicação reputacional possuem apenas um
fraco incentivo para evitar a condenação de inocentes.
A gravidade deste problema depende da facilidade com
que os terceiros podem determinar quem é o culpado em uma
disputa. Se isso for difícil e o benefício for pequeno, eles
podem, em vez disso, atribuir alguma probabilidade de culpa ao

485
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

infrator, alguma à vítima reclamante, e evitar lidar com o ambos


— nesse caso, como apontado no capítulo anterior, a reclamação
se torna uma estratégia perdedora e a aplicação reputacional se
quebra. Isto é novamente um argumento para mecanismos,
como a arbitragem, que fornecem informações a terceiros sem
exigir que eles julguem independentemente os méritos de uma
controvérsia.

Ostracismo
Punir os infratores pelo ostracismo possui uma
característica atraente em comum com a aplicação reputacional:
a punição é cara tanto para aqueles que a impõem quanto para
aqueles a quem é imposta, dando aos primeiros algum incentivo
para acertar. Por outro lado, é fácil imaginar circunstâncias nas
quais um membro de uma comunidade possa se beneficiar
expulsando outro, talvez um rival no amor ou na política
comunitária. Se o primeiro é influente ou muito persuasivo e o
segundo impopular, há um incentivo, e um risco, de falsa
condenação.

Aplicação Divina
Se os infratores em potencial acreditam em um poder
sobrenatural que pune aqueles que violam a lei divina, eles têm
um incentivo para não fazer. A religião fornece o mecanismo
perfeito para punir os culpados, e somente os culpados, desde
que a religião seja verdadeira e a divindade onisciente. Funciona
razoavelmente bem, mesmo que a religião não seja verdadeira,
desde que infratores potenciais acreditem nela. Um cigano
tradicional possui um incentivo para evitar a poluição, mesmo
que ele tenha certeza de que ninguém o está observando, embora
menos do que quando sanções sobrenaturais são reforçadas por

486
O Problema do Erro

sanções sociais, e do mesmo modo, mutatis mutandis, para um


judeu ou muçulmano crente.
Há problemas com esta abordagem se implementada sem
a ajuda de uma divindade real. A lei religiosa deve ser
interpretada por alguém. Se a interpretação for feita pelo crente
individual, ele pode cometer ações que não devia cometer se
puder se convencer de que o que ele quer fazer não é
pecaminoso — e cada homem é um juiz tendencioso em seu
próprio caso. Se a interpretação for feita por outros, eles podem
usar a ameaça do castigo divino para servir a objetivos
mundanos.
Peter Leeson, em um artigo sobre provações medievais,19
descreve um mecanismo engenhoso para aproveitar a crença
religiosa a serviço da aplicação humana. O sistema legal foi
estruturado de forma a dar aos réus acusados a oportunidade de
passar ou evitar uma provação. Como os réus acreditavam que
Deus revelaria culpa ou inocência, os réus culpados eram
relutantes em passar por provações. Os padres, percebendo que
a maioria daqueles que escolheram as provações eram inocentes,
manipulavam as provações para absolver a maioria dos réus. Em
apoio a essa interpretação, Leeson oferece provas de um número
implausivelmente grande de criminosos acusados que
conseguiram pegar ferro em brasa ou mergulhar suas mãos em
água fervente sem ferimentos. Ele também aponta para uma
coleção de casos em que a provação de submersão foi dada
apenas a homens — porque, argumentou ele, as mulheres eram
mais propensas a flutuar e assim serem condenadas.

19
Leeson 2012a.

487
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Corrigindo Erros
Uma última questão é o que pode ser feito para corrigir os
erros quando e se eles forem descobertos. A resposta depende,
em parte, da forma de punição. Se for uma multa ou um
pagamento por danos, o dinheiro pode, pelo menos em
princípio, ser devolvido. Se for uma punição contínua, como
prisão ou ostracismo, o inocente condenado pode, pelo menos,
ser liberto do restante de sua sentença. Quando se descobre que
alguém que foi punido era inocente, ele pode ser compensado
com dinheiro, desde que ainda esteja vivo, e alguns sistemas
legais modernos tentam fazê-lo.20 Se um réu é descoberto
inocente somente após ter sido executado, por outro lado, não há
muito o que possa ser feito para compensá-lo.
Outra possibilidade, caso se demonstre que um veredito
foi equivocado, é punir os responsáveis pelo erro. Se a falsa
condenação for devida a delitos cometidos pelo aparelho
jurídico, por um procurador que ocultou provas aliviadores de
culpa ou por um policial que prestou falso testemunho, parece
justo punir os responsáveis. O problema com esta abordagem,
como mencionado anteriormente, é que estabelecer a inocência
de alguém que foi condenado por um crime que não cometeu
provavelmente precisará da cooperação do sistema legal que o
condenou, o que é menos provável quanto maior for o risco para
os membros desse sistema legal.

20
Nos EUA, 32 estados, o governo federal e o distrito de Columbia têm
algum tipo de estatuto de compensação. Existem regras semelhantes em
muitos, mas não em todos os outros países.

488
19
Fazendo o Direito
Os sistemas jurídicos que examinamos demonstram
algumas das maneiras pelas quais as regras passam a existir e se
alteram ao longo do tempo. Este capítulo é sobre as implicações
de cada um. Como veremos, não há relação simples de um para
um entre sistemas jurídicos e maneiras de criar leis. O atual
sistema estadunidense foi possivelmente criado e mudado pelo
menos de três diferentes maneiras, a lei judaica e muçulmana
em quatro.

Inspiração Divina
Ao menos dois dos sistemas jurídicos que nós
examinamos são vistos pelos crentes como baseados em
mandamentos divinos — direito judaica na Torá, escrita e oral,
direito muçulmano no Alcorão e no hadith. Isso levanta vários
problemas.
Um deles é o risco de inconsistência decorrente de versões
inconsistentes do texto autoritativo. No caso do Alcorão, um
texto oficial foi estabelecido sob Abd al-Malik (65/685—
86/7051) e todas as demais versões foram destruídas. Um
processo similar pode ter ocorrido com a Torá escrita em
umadata anterior.2 O problema permaneceu com a Torá oral,
que consiste em instruções que se acredita terem sido dadas por

1
Datas dadas primeiro como A.H., o calendário muçulmano, e depois A.D.
2
As versões variantes nos pergaminhos do Mar Morto são evidências de que
o texto do Antigo Testamento era fluido até cerca de 100 d.C.

489
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Deus para Moisés no Monte Sinai e passadas adiante por ele


numa cadeia de transmissão oral. O risco de diferentes
estudiosos terem visões diferentes sobre seu conteúdo foi tratado
pela doutrina, baseada na Torá escrita, que em caso de incerteza
deveria-se seguir a opinião da maioria, interpretada como a
maioria do Grande Sinédrio.
O Grande Sinédrio deu sua última decisão obrigatória em
358 d.C. Seu papelfoi eventualmente assumido pelos Geonim,
os chefes das duas academias babilônicas, que eram na época, os
principais órgãos de erudição judaica. Eles receberam perguntas
sobre questões jurídicas e religiosas e enviaram respostas,
respostas aceitas como autoritativas. Sua autoridade se
enfraqueceu no século X e cessou, bem como os próprios
Geonim, no século XI. Daí em diante não houve uma única
autoridade aceita em todo o mundo judeu, embora as opiniões
de um importante estudioso pudessem ser aceitas ao longo de
várias comunidades. Dentro de qualquer comunidade as
autoridades comunais determinavam a lei, se possível com o
auxílio de um ou mais estudiosos religiosos. Tendo em vista que
a maioria das disputas eram intracomunais, a uniformidade
dentro da comunidade geralmente era o suficiente.
Um segundo problema é o risco de que alguém
reivindique autoridade jurídica ao persuadir os demais alegando
ter um canal de comunicação pessoal com Deus. A história do
forno de Akhnai, discutida no capítulo 4, pode ser lida como
uma rejeição de todas essas reivindicações. O rabino Eliezer
fornece a mais forte prova possível do apoio divino, uma série
de milagres acompanhada por uma voz do céu. Os sábios
permanecem não convencidos, mantendo suas crenças de que a
lei é determinada pela opinião da maioria. Tomada literalmente,
a história é intrigante; poderia-se esperar que os sábios, após

490
Fazendo do Direito

escutarem a opinião de Deus sobre a questão, mudariam seus


votos. Mas faz sentido como uma forte rejeição contra as
alegações dos supostos milagreiros. Deus transferiu a
responsabilidade de determinar a lei às autoridades humanas.
A solução para a lei sunita foi a doutrina de que Maomé
era o último profeta, portanto não poderia haver mais nenhuma
revelação alcorânica. Figuras posteriores tentaram reivindicar a
condição de ser um profeta, incluindo pelo menos um caso de
revindicação de autoridade para um novo Alcorão,3 mas elas
foram rejeitadas pela maior parte da comunidade islâmica.
Muçulmanos xiitas acreditavam seus imãs eram, tal como
Maomé, divinamente inspirados, suas práticas como evidências
da vontade de Deus. A fonte da lei cessou para os xiitas
duodecimanos, o maior grupo, no século X, quando o imã final
entrou em oclusão para reaparecer somente nos dias finais.4
Embora a criação de um texto autoritativo do Alcorão
tenha eliminado uma fonte de divergência, uma outra
permaneceu. A lei islâmica era também baseada na Suna de
Maomé, na prática do profeta registrada no hadith, nas
tradições. Diferentes estudiosos poderiam discordar,
discordaram, e discordam sobre o que era genuíno e o que era
duvidoso. Eventualmente, várias coleções autoritativas foram
criadas, coleções do hadith amplamente consideradas bem

3
O Alcorão berbere. (Von Grunebaum1997, 118. Hodgson1844, 40).
4
Quem foi o imam final e quando é uma das questões sobre as quais
diferentes seitas xiitas divergem. As seitas xiitas ismaili setimanas
reconheceram uma dinastia contínua de imams divinamente inspirados e, no
caso dos nizari, ainda o fazem na pessoa de Aga Khan. De acordo com a
doutrina duodecimana, o imam final iniciou sua ocultação menor em 874,
continuando a interagir com os fiéis por meio de deputados até 941, o início
de sua ocultação maior.

491
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

embasadas, reduzindo, mas não eliminando, a fonte de


divergência.

Interpretação
Deus nunca responde todas as perguntas que importam. A
lei divinamente inspirada, assim como a lei legislada, exige
interpretação; não há fronteira nítida entre a interpretação que
preenche lacunas ou esclarece ambiguidades na lei religiosa e a
interpretação que produz uma nova lei. No caso dos judeus, as
interpretações ocorreram primeiro pelo voto do Grande
Sinédrio, e mais tarde como decisões e tratados de eruditos cuja
autoridade era baseada em suas reputações. A oportunidade para
mais interpretações foi mantida aberta pela doutrina de hilkheta
ke-vatra'ei, “a lei está de acordo com as opiniões das últimas
autoridades”.5 Eventualmente o Bet Yosef e o Shulhan Arukh de
Joseph Caro, juntamente com comentários associados, passaram
a ser aceitos na maior parte da diáspora.
Estudiosos islâmicos divergiam quanto as regras para
interpretar o Alcorão e o Hadith, divergindo, assim, sobre suas
conclusões jurídicas. O processo, para os muçulmanos sunitas,
era conduzido através das escolas ortodoxas de direito,
eventualmente reduzidas a quatro. Diferentes muçulmanos
poderiam escolher aceitar a interpretação de diferentes escolas,
apesar de frequentemente uma escola ser dominante em uma
região. Dentro de uma escola pode haver discordância sobre
alguns pontos entre as diferentes autoridades, levando a regras
dentro de cada escola para escolher entre as interpretações
baseadas no status relativo dos diferentes estudiosos. Todas as
quatro escolas aceitavam a doutrina do consenso, segundo a qual
5
“Jefté em sua geração tem tanta autoridade quanto Samuel em sua geração.”

492
Fazendo do Direito

uma interpretação que numa determinada época era aceita por


todos os estudiosos jurídicos é dali em diante considerada como
certa, com base nos hadiths que relatam Maomé como tendo
dito, de uma forma ou de outra, que seu povo nunca concordaria
com um erro.
Tanto a lei judaica quanto a islâmica, em suas formas
originais, permitiam um marido se divorciar de sua esposa, mas
não permitiam uma esposa se divorciar de seu marido. A lei
judaica eventualmente mudou pra dar à esposa a possibilidade
de facto, embora não de jure, de se divorciar: se ela pudesse
persuadir o tribunal que ela tem um motivo apropriado, o
tribunal poderia obrigar o marido a se divorciar dela. A lei
islâmica permite um marido delegue à esposa o poder de se
divorciar dele como parte do contrato de casamento ou de um
acordo posterior. Também é possível que a esposa exija um
divórcio em troca de compensação. Os detalhes variam
dependendo da escola

Legislação
O mecanismo de produção de lei mais familiar aos
modernos é a legislação. Na China Imperial a autoridade era o
Imperador, em Atenas era a assembleia, na lei judaica as
autoridades comunais. Na legislação amish, a mudança no
conteúdo do Ordnung de uma congregação é proposta pelo
bispo, mas requer a aceitação unânime da congregação.
O caso mais estranho daqueles que examinamos pode ser
o dos cheienes. Em pelo menos um caso, as regras acrescentadas
ao direito consuetudinário pela declaração de uma única
sociedade de soldados após a resolução de uma disputa eram
vistas como obrigatórias no futuro para todos os cheienes. Um

493
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

padrão um tanto semelhante entre os ciganos, especificamente


os vlach rom na América, era a posse de um diwano ou kris para
concordar com uma modificação da Romania.6
Embora a legislação possa ser usada para resolver
ambiguidades na lei, nem sempre ela é o bastante, nem mesmo
no direito chinês, concebido como um completo mapeamento do
delito à punição. Alguém tem que decidir como lidar com casos
que não se enquadram exatamente nas regras. A fronteira entre
resolver ambiguidades e criar leis raramente é nítida, como
ilustrado pela expansão, no direito constitucional dos Estados
Unidos, da autoridade do Congresso na regulação do comércio
interestadual em algo próximo a um cheque em branco para
regular toda a atividade econômica.

Precedente
Outra abordagem para criar leis é o precedente vinculante.
Uma decisão de um tribunal é obrigatória para os futuros
tribunais abaixo de seu nível, determinando leis não apenas para
o caso sendo interpretado, mas também para casos futuros.
O precedente tem várias vantagens sobre a legislação.
Uma vez que surge da resolução de um grande número de casos,

6
Sutherland (1975, 131-2) descreve um diwano, uma reunião de discussão
menos formal que um kris, onde “os líderes dos vitsi da Costa Oeste se
reuniam para decidir novas políticas […]. […] foi decidido que, se um
casamento fracassar, metade do preço da noiva deve ser devolvido, […].”
“Em outro desenvolvimento recente, mais de duzentos ciganos se reuniram
para um kris consultivo em Houston para discutir a melhoria dos direitos das
mulheres divorciadas sob o sistema jurídico cigano, para acompanhar os
desenvolvimentos na lei americana e remover o incentivo para as mulheres
ciganas apelarem para o sistema legal americano para um remédio mais
forte.” (Weyrauch 2001, 46).

494
Fazendo do Direito

ele gera um conjunto mais detalhado de regras jurídicas do que é


provável de ser produzido tanto por um governante quanto por
uma legislatura. Pelo motivo de ser originado de casos reais, ele
mapeia mais detalhadamente os problemas reais que as regras
criadas abstratamente. E como as regras que cria mudam à
medida que novos casos são resolvidos, com os tribunais
capazes de anular seus próprios precedentes anteriores e os
tribunais superiores livres para anular os precedentes dos
inferiores, cria um sistema jurídico que se ajusta às mudanças
nas circunstâncias.
O precedente vinculante tem desvantagens também. Visto
que ele é desenvolvido simultaneamente por múltiplos juízes,
pode produzir regras inconsistentes. Até e a menos que a
inconsistência seja resolvida por um tribunal superior, os
litigantes descobrem que o resultado de um litígio depende da
escolha de qual tribunal litigar. Nos sistemas em que é do
próprio interesse dos juízes que os casos cheguem até eles, o
resultado é o enviesamento das regras jurídicas em favor de
qualquer uma das partes que controla a escolha do fórum.
Daniel Klerman tem argumentado que a commmon law inglesa
tinha uma inclinação favorável ao queixoso até o século XIX,
porque os juízes recebiam honorários para cada caso e era o
queixoso quem decidia a qual dos vários tribunais alternativos o
caso iria. Os estatutos de 1799 e 1825 eliminaram os honorários
como uma fonte de renda judicial. O resultado, de acordo com
Klerman, foi o deslocamento das regras da common law na
direção do réu.7
Algo que alguns verão como um defeito e outros como
uma característica é a lenta resposta à mudança de um sistema
de precedente. Juízes atingem um alto nível tardiamente em suas
7
Klerman 2007, 1179-1226.

495
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

carreiras e permanecem lá até serem forçados a se aposentar por


causa da idade ou morte. Velhos juízes podem fundamentar suas
decisões sobre as opiniões e valores de sua juventude. Os
legisladores, mesmo legisladores mais velhos, estão sob pressão
para apoiar posicionamentos populares com o atual eleitorado.

Direito Consuetudinário e Precedente Não


Autoritativo
Para uma abordagem diferente, considere a lei somali
como descrita por Van Notten ou a lei beduína pré-islâmica
como descrita por Schacht. Juízes são árbitros, seus vereditos
são opiniões sobre a lei, não decisões que a cria. O fato de
múltiplos árbitros verem o direito consuetudinário como
implicando uma resolução específica para alguma questão
jurídica é uma evidência de que isso implica que a resolução,
especialmente se os vereditos daqueles árbitros forem vistos
como justos e se aqueles que os produzem continuarem a ser
escolhidos como árbitros. Decisões passadas influenciam as
decisões futuras, mas não como precedente vinculante.
Para um exemplo moderno da mesma lógica, considere
Annie Lee Turner et al. v. Big Lake Oil Company et al. A
Suprema Corte do Texas teve que determinar qual a
compensação, se houvesse, a Big Lake Oil Company devia a
Annie Lee Turner e seus vizinhos por danos feitos a suas
propriedades provocados pelo escapamento de água poluída das
piscinas de armazenamento da Big Lake. Uma questão central
era se a Big Lake era responsável apenas se fosse negligente.
Os juízes do Texas examinaram primeiro não o direito
estatutário do Texas, mas um caso decidido em outro país quase
um século antes: Rylands v. Fletcher, decidiu por um comitê da

496
Fazendo do Direito

Câmara dos Lordes britânica em 1868. Eles dedicaram uma


parte considerável de seus escritos explicando por que chegaram
em um resultado diferente.
Os lordes do direito que decidiram o caso Rylands v.
Fletcher eram tanto um tribunal decidindo o resultado de um
caso particular quanto um corpo de especialistas interpretando a
common law da Inglaterra. Nesse segundo papel, a conclusão a
que chegaram era relevante, embora não determinante, para as
deliberações de um tribunal do Texas que decidiu um caso
similar baseado no mesmo sistema jurídico subjacente. Um juíz
inglês tem autoridade sobre o caso americano precisamente no
mesmo sentido em que um estudioso inglês tem autoridade
sobre uma disputa em seu campo realizada por estudiosos
americanos; ele é um especialista cuja opinião é relevante para
decidir uma questão de fato disputada. Vista desse ponto, as
funções da common law como um sistema de precedente
vinculante dentro de um único sistema jurídico nacional e um
sistema de precedente informativo mais amplo.
Para mais outro sistema misto, considere o direito amish.
A decisão final que determina o conteúdo do Ordnung de uma
congregação é a legislação, proposta pelo bispo e aceita pelo
consenso unânime da congregação. Mas o processo que muda o
Ordnung parece mais como o processo pelo qual o direito
consuetudinário é alterado. Alguém faz algo provavelmente em
violação do Ordnung como atualmente interpretado. Se outros
fazem objeção, a congregação irá provavelmente achar que o
que ele fez é proibido. Ele pode ter que confessar publicamente
um delito. Mas se poucos ou ninguém faz objeção e outros o
imitam, a opinião é que o que é permitido pode mudar e a
opinião alterada é incorporada na próxima revisão do Ordnung.

497
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Obras tal como a Mishné Torá de Maimônides afirmavam


não criar a lei, mas descobri-la e descrevê-la. As autoridades
haláquicas estavam oferecendo sua interpretação de um corpo de
lei que reivindicava origem divina. Suas opiniões não eram
obrigatórias como precedentes — isso seria inconsistente com a
regra de que o direito estava de acordo com a opinião das
autoridades posteriores e com a prática atual dos estudiosos
jurídicos. Umas das críticas às obras de Maimônides era que,
por causa que a cada questão jurídica ele deu apenas uma
resposta, ele falhou em fornecer a um juíz as opiniões e
argumentos de estudiosos do passado necessários para chegar à
sua própria conclusão.
Nós sabemos de onde vem uma lei legislada, de onde vem
a lei feita pelo juiz em um sistema de precedente vinculante, de
onde vem a lei baseada na revelação divina. É menos claro
quem cria o direito consuetudinário ou como cria. Como disse o
juiz Stewart sobre a obscenidade, você reconhece quando a vê.
Considere uma forma de direito consuetudinário que
estamos todos familiarizados. Enquanto me vestia antes de ir
para a aula ontem, fui em busca de uma calça limpa, pois a
anterior tinha acabado de ir para a máquina de lavar. Pendurado
no meu armário estava um jeans azul. Não pensei seriamente em
usá-la, embora provavelmente fosse mais confortável, talvez
também mais quente, do que a calça que acabei usando.
O raciocínio é que fazer isso violaria as normas
consuetudinárias de comportamento para os professores
lecionando cursos. Normas são uma forma de direito
consuetudinário. Ninguém legislou essas regras, ninguém legisla
suas mudanças, e ainda assim elas existem. O mecanismo de
mudança é praticamente o mesmo entre os amish. Um professor
particularmente corajoso e autoconfiante escolhe ultrapassar os

498
Fazendo do Direito

limites, para aparecer de bermuda e chinelos perante sua classe


— eu tenho um exemplo real em mente. Se os estudantes e os
colegas desse professor o olham de modo estranho, se ele
perceber que na próxima reunião da faculdade suas opiniões
carregam menos peso que no passado, se sua esposa menciona
que a esposa de um colega perguntou se seu marido estava a
caminho de algum tipo de palco, é provável que ele abandone
seu comportamento violador de normas. Se ninguém aprece
particularmente chocado, se os seus colegas reagem, se reagem,
com divertimento amigável, ele continua. Após um tempo —
uma semana, um mês, talvez um ano — outro professor apareça
de bermuda, possivelmente após descobrir no último minuto que
sua calça também estava na máquina ou deveria estar. A norma
muda.
Normas sociais são uma forma de direito consuetudinário
com que todos nós tivemos experiência em primeira mão. É
provável que elas sejam a fonte original de todo direito
consuetudinário. Os indivíduos se comportam de uma certa
maneira, limitados pelas expectativas dos outros. Quando uma
disputa emerge, um árbitro decide com base em que
comportamento é ou não aceito naquela sociedade. As normas,
implementadas em sua maior parte pela pressão social, evoluem
para o direito consuetudinário aplicável pela violência ou pela
ameaça de violência.

Misturar e Combinar
Como alguns desses exemplos mostram, sistemas reais
misturam múltiplas abordagens para fazer as leis. O Ordnung de
uma congregação amish pode ser visto como uma legislação por
consentimento unânime, mas o processo pelo qual ele muda se
parece mais como o direito consuetudinário. O sistema jurídico

499
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

anglo-americano consiste tanto de legislação quanto de common


law, sendo o último um sistema de precedente, mas com
decisões grandemente baseadas na percepção dos juízes do
direito consuetudinário. O direito somali era em sua maior parte
consuetudinário, mas em parte direito islâmico, visto como
fundamentado na revelação divina. O direito islâmico era
baseado na revelação, mas a revelação era interpretada pelos
mujtahids, eruditos religiosos, e suplementado pela legislação
tal como o kanun otomano.

Flexibilidade: Solução e Problema


Todos os sistemas que eu descrevi são até certo ponto
flexíveis, sejam pela legislação ou pela interpretação. Isso
fornece uma solução em potencial para dois problemas — erros
descobertos no código jurídico original e mudanças nas
circunstâncias relevantes para o que as regras jurídicas devem
ser. Mas a flexibilidade também levanta problemas adicionais.
Um desses problemas é o de tornar a lei menos previsível.
Quanto mais flexível for o sistema jurídico, menos certeza
alguém que toma decisões hoje pode ter sobre quais regras serão
aplicadas sobre ele amanhã. Outro problema é que aqueles que
esperam ganhar ou perder com uma mudança tem um incentivo
em gastar recursos apoiando ou se opondo. No sistema
estadunidense moderno, esses gastos assumem a forma de lobby
contra e a favor da legislação, litigando na esperança de
estabelecer um precedente favorável, e esforços em influenciar a
nomeação dos juízes, especialmente na Suprema Corte. No
direito islâmico, onde regras jurídicas foram, em parte, baseadas

500
Fazendo do Direito

no hadith, “em nada mais nós vemos os homens eruditos mais


propensos a mentira do que na fabricação de tradições”.8

Fazendo Boas Leis


Até então eu tenho ignorado a mais importante questão de
todas: Até que ponto podemos esperar que um ou outro desses
mecanismos produzam boas leis, leis que promovam o bem-
estar daqueles aos quais elas se aplicam?9
Se uma lei divinamente inspirada é obra de uma deidade
benevolente, o resultado deve ser uma boa lei, mas eu tenho
minhas dúvidas. Da mesma forma se a lei legislada é criada por
um governante sábio e benevolente, mas também não conheço
nenhum motivo para esperar isso. Crentes na democracia
poderiam argumentar que a lei legislada será elaborada no
interesse dos eleitores uma vez que, do contrário, os legisladores
serão votados para fora do poder, mas eu acho essa afirmação
igualmente não convincente. Distinguir a boa lei da má não é
fácil. Eleitores individuais, sabendo que seus votos tem pouco
efeito sobre os resultados políticos, empregam poucos esforços
para colher a informação necessária para votar sabiamente.
Políticos raramente ajudam rotulando a si mesmo como
malfeitores ou seus projetos de lei como ruins. O resultado,
como discutimos em outro lugar, é um sistema que
frequentemente produz leis ruins, uma conclusão teórica para a
qual eu encontro uma grande quantidade de apoio empírico.

8
Schroeder 1955, 242.
9
No contexto da análise econômica do direito, isso geralmente é colocado em
termos de lei economicamente eficiente ou maximizadora de riqueza. Para os
propósitos deste livro, prefiro ser mais vago do que isso.

501
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Considere o caso de restrições comerciais.10 Os


economistas tem sabido por cerca de duzentos anos que um país
que impõe tarifas sobre importações irá, na maior parte das
vezes, piorar as condições de seus habitantes ao fazê-lo. Por
todo aquele período, a maioria dos países, incluindo a maioria
das democracias, tem imposto tarifas. Embora existam
argumentos teóricos que sob certas circunstâncias especiais o
resultado geral não se sustenta, as tarifas realmente impostas não
se ajustam ao padrão que esses argumentos implicam; a
proteção é geralmente fornecida não para indústrias nascentes,
mas para as senis.
E quanto a lei feita por juizes? Richard Posner tem
argumentado que o common law tende a ser economicamente
eficiente, apoiando esse argumento com extensa análise
econômica da eficiência das regras do common law.11 Na minha
opinião, nem a evidência nem os argumentos teóricos oferecidos
por ele e outros bastam para estabelecer a verdade de sua
afirmação; leitores interessados encontrarão a questão discutida
extensamente em meu Law's Order.12
Assim nos resta o direito consuetudinário.
Considere uma norma que, se adotada por um grupo de
indivíduos para as interações entre seus membros, os deixa em
melhor condição — digamos uma norma de negociação honesta.
Uma vez que o grupo tenha adotado a norma e os demais
tenham observado os resultados, esperaríamos que eles entrem
no grupo ou o imitem. Assim, as normas desejáveis poderiam se
espalhar através de uma sociedade. Uma vez estabelecidas, elas
10
Para uma análise mais detalhada dessas questões, consulte Friedman 1990,
capítulo 19.
11
Posner 2014.
12
Friedman 2000.

502
Fazendo do Direito

poderiam se tornar o fundamento sobre as quais o direito


consuetudinário se desenvolve.
Há uma importante limitação para esse argumento. Em
Order Without Law, Robert Ellickson descreveu como baleeiros
do século XIX desenvolveram um conjunto de normas eficientes
concernente aos problemas que ocorriam quando uma
embarcação arpoava uma baleia e outra embarcação
eventualmente a matava, normas que eficientemente mudavam
quando os baleeiros passaram da caça de uma espécie de baleia
para outra.
A razão de eles mudarem de uma espécie para outra era
que espécie após espécie estava sendo caçada próxima à
extinção. Isso sugere que eles estariam numa melhor situação se
eles também tivessem uma norma que restringia o número de
baleias mortas numa quantidade que não reduziria gravemente a
população. Tal norma não existia.
Uma norma de caça restrita às baleias beneficia todos os
baleeiros se todos a seguirem, mas o benefício da minha
restrição vai para outros baleeiros, quer ajam ou não de maneira
semelhante. A regra correta para todos é restringir. A regra
correta para cada indivíduo é pegar carona nas restrições dos
outros. O problema é estritamente análogo ao caso familiar do
dilema do prisioneiro, mais conhecido como falha de mercado,13
situações onde a racionalidade individual não leva à
racionalidade de grupo.
Segue-se que o direito consuetudinário baseado em
normas sociais deve fazer um bom trabalho de gerar os tipos de
regras que beneficiam os membros de um grupo cujos membros

13
Friedman 2014, capítulo 53.

503
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

as adotam, mas não o tipo de regras que nos torna melhores se


todos as seguirmos.14

Competição na Lei
Depois de ter assinado um contrato com você, eu iria
preferir uma lei que me favorecesse em qualquer disputa
resultante. Mas antes de termos assinado o contrato, nós temos
um interesse em comum na lei que maximiza nosso benefício
combinado, que aumenta o tamanho da torta a ser dividida entre
nós. Isso sugere que um sistema jurídico em que indivíduos
tenham que escolher de antemão o juiz, o árbitro, ou o tribunal
que irá interpretar seus contratos tenderá a produzir boas leis, ao
menos para as partes contratantes. Até certo ponto, esse era o
caso do sistema islâmico tradicional, em que as partes podiam
optar por estabelecer seu contrato com um tribunal seguindo a
escola de direito cuja visão do direito contratual eles preferiam.
É, até certo ponto, o caso do direito societário moderno dos
Estados Unidos, que é em parte uma definição dos termos de um
contrato entre os acionistas de uma corporação, uma vez que os
criadores originais de uma corporação podem escolher em que
estado estabelecê-la. E isso é verdadeiro para o direito não
estatal criado por mecanismos de arbitragem obrigatória.
O mesmo princípio também se aplica em uma escala
menor. Um contrato é em si mesmo um sistema jurídico em
miniatura, um conjunto de regras concordadas por ambas as
partes contratantes para controlar sua interação. É do interesse
das partes contratantes escolher regras que maximizem seus
ganhos totais advindos dessa interação.

14
Para uma explicação mais detalhada deste ponto, veja Friedman 1992,
minha crítica do livro de Ellickson.

504
Fazendo do Direito

Os artigos dos navios piratas descritos no capítulo 7


fornecem outro exemplo de boas leis — bom para os piratas e
não para suas vítimas — gerados pelo mesmo mecanismo.

505
20
Vigiando o Vigia
Quis custodiet ipsos custodes?1

Os poderes usados para aplicar as regras também podem


ser usados para outros fins — extorsão, intimidação de
oponentes políticos, facilitação de crimes comuns, como roubo.
Quem deve impor as regras aos aplicadores?
A solução mais simples é não ter aplicadores com direitos
ou poderes especiais. Considere um sistema de normas sociais.
O que me impede de dar aulas de jeans não é o medo de ser
preso, mas a expectativa de que isso diminuiria minha reputação
social e profissional, mudaria em meu prejuízo o
comportamento das pessoas com quem me relaciono. As normas
são aplicadas contra mim por todos com quem interajo, por mim
contra todos com quem interajo. Isso descreve não apenas as
normas sociais que enfrento, mas também as normas de
comportamento de vizinhança em Shasta County, Califórnia,
conforme descrito por Robert Ellickson em Order Without Law,
1O contexto original da frase não era o problema político de controlar os
executores, mas o problema doméstico de um marido tentando garantir a
fidelidade de sua esposa.

O plano que meus amigos sempre me aconselham a adotar


“Prenda-a, prenda-a!” Mas quem pode vigiar
os vigias? Eles ficam quietos sobre os segredos
da menina e a obtêm como pagamento; todos se calam.
(Juvenal, Sátira VI, versos 346-8, O29-33, possivelmente
interpolado)

Para uma versão posterior do problema, com solução, consulte “The English
Padlock” de Mathew Prior.

507
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

aplicadas por atos legais e levemente ilegais contra vizinhos que


violam as normas.
Um sistema de disputas como o direito tradicional da
Somália ou o sistema legal da Islândia do período das sagas
também carece de executores especializados. As regras são
aplicadas pela ameaça do uso privado da força por qualquer um
contra qualquer um. Alguns indivíduos são mais formidáveis ou
têm mais aliados do que outros, mas ninguém tem direitos
especiais ou status legal associado ao trabalho de aplicar as
regras. Alguém que usa seus pontos fortes para tentar abusar do
sistema corre o risco de criar uma coalizão mais forte para
bloqueá-lo.2
Para um terceiro exemplo, considere a Inglaterra no século
XVIII. Como qualquer inglês poderia processar um caso
criminal, o fato de um crime ser aprovado pelas autoridades não
era garantia de que não seria processado. O ponto foi
demonstrado quando uma manifestação a favor do radical preso
John Wilkes terminou com tropas atirando contra a multidão e
matando várias pessoas. Os wilkitas responderam acusando
vários dos soldados, o magistrado que ordenou que as tropas
atirassem e os outros magistrados presentes de assassinato.
O rei tinha o poder de perdoar um criminoso condenado,
mas fazê-lo de uma forma muito obviamente partidária poderia
provocar indignação pública. Em um caso notório, dois
assassinos condenados foram perdoados, aparentemente porque
os amantes aristocráticos de sua irmã aplicaram pressão política
em seu nome ("a misericórdia de um príncipe casto e piedoso
estendeu-se alegremente a um assassino deliberado, porque esse

2Muito provavelmente, foi o colapso gradual dessa restrição que levou ao


colapso final do sistema durante o período de Sturlung.

508
Vigiando o Vigia

assassino é irmão de uma prostituta comum").3 Os wilkitas


responderam levantando dinheiro para financiar um apelo de
assassinato, um caso criminal privado. Um apelo era um
procedimento complexo, caro e difícil que estava quase
totalmente fora de uso. Tinha, no entanto, uma grande
vantagem:

Se o apelado for considerado culpado, ele sofrerá o


mesmo julgamento como se tivesse sido condenado por
acusação: mas com esta notável diferença; que na
acusação, que está no processo do Rei, o Rei pode
perdoar e dispensar a execução; em um apelo, que é a
ação de um sujeito privado, para fazer expiação por um
erro privado, o Rei não pode perdoá-lo mais do que ele
pode remediar os danos recuperados em uma ação de
agressão. (Blackstone 1884, livro 4, cap. 23)

O apelo falhou, assim como os processos criminais


anteriores dos soldados e magistrados, mas, como eles,
demonstrou a possibilidade de usar o direito penal processado
privadamente contra malfeitores apoiados pelo governo.4
Uma abordagem diferente é ter uma segunda camada de
aplicadores encarregados de fazer cumprir as regras na primeira
camada. No moderno Estados Unidos, isso pode significar um
conselho de revisão civil para examinar as acusações contra
policiais. Na lei islâmica, o nazar fil-mazalim, “investigação de
queixas”, era uma prerrogativa dos califas por meio da qual eles

3Brewer 1980, 140. A citação é de Junius, o pseudônimo do autor de uma


série de cartas ao Public Advertiser.
4Gillam, o magistrado acusado de assassinato por ordenar que as tropas

disparassem, “ficou apavorado com a possibilidade de o júri de Londres


considerá-lo culpado e, antes de ser absolvido, desmaiou duas vezes durante
o processo”. Ibid, 132.

509
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

“ou, por delegação, ministros ou funcionários especiais e


posteriormente os sultões, ouviam queixas relativas a erro ou
negação de justiça ou outras atividades ilegais dos kadis,
dificuldades em garantir a execução de julgamentos, erros
cometidos por funcionários do governo ou por indivíduos
poderosos […] e assuntos semelhantes. Muito em breve,
tribunais formais de queixas foram estabelecidos.”5 Na China
imperial, a censura “tinha como objetivo geral primário
investigar e acusar irregularidades governamentais ou corrupção
sempre que descobertas.”6 Embora essa abordagem possa limitar
a capacidade dos executores comuns de abusar de seus poderes,
aumenta o risco de abuso por parte da camada de fiscalização
acima deles.
Uma variante é usar uma categoria de aplicadores
especializados contra outra, como quando o FBI ou a polícia
estadual investigam a corrupção da polícia local. Uma versão
mais descentralizada usa a lei de torts para punir o abuso dos
poderes dos aplicadores da lei penal. Os textos modernos de
direito descrevem o que a polícia deve fazer para que as provas
que obtêm sejam admissíveis. Os livros-texto do século XIX
descreviam o que a polícia tinha de fazer para não ser
processada.7 Essa abordagem não está totalmente morta. Em
vários casos proeminentes nas últimas décadas, como o tiroteio
dos Panteras Negras Fred Hampton e Mark Clark em Chicago
em 1969 e o caso de Steve Jackson no Texas em 1990,8 vítimas

5Schacht 1986, 51.


6Bodde e Morris, 121.
7Orfield 1947, 14-23, que também contém (nas notas de rodapé) uma lista de

artigos de crítica de direito sobre o tema. Também Hall 1936 e Foote 1955.
8O caso Steve Jackson é descrito em Sterling 1993, 133-139.

510
Vigiando o Vigia

de abuso da aplicação da lei processaram e foram


recompensados.
Um exemplo famoso do século XVIII do uso da lei de
torts para restringir os aplicadores da lei penal foi Hinkle v.
Money, um dos primeiros casos de danos punitivos na lei
inglesa. A edição 45 de The North Britain, uma publicação
antigoverno anônima, continha um artigo atacando em termos
fortes um discurso régio.9 O governo respondeu enviando
Mensageiros do Rei, o equivalente do século XVIII aos agentes
do Serviço Secreto, com um mandado geral autorizando-os a
prender qualquer pessoa e apreender quaisquer papéis que
acreditassem estar relacionados com a publicação. Eles
prenderam quarenta e nove pessoas. Uma delas, um impressor
jornaleiro, processou-o, alegando que mantê-lo prisioneiro por
seis horas enquanto revistava seus papéis com base em um
mandado que não o identificava era ilegal. Ele ganhou a causa e
recebeu trezentas libras do Secretário de Estado.
O prêmio foi contra o Secretário de Estado, mas foi pago
em seu nome por seu governo. Os prêmios nos casos do Pantera
Negra e de Steve Jackson foram pagos pelos governos para os
quais os aplicadores da lei consideraram que trabalhavam.
Embora esse padrão se mantenha, o direito de torts fornece um
incentivo para processar na forma de um possível pagamento
por danos e um incentivo para os governos tentarem controlar os
9Um ministro despótico sempre se esforçará para deslumbrar o príncipe com
idéias exageradas sobre a prerrogativa e a honra da coroa. Desejo tanto
quanto qualquer homem no reino ver a honra da coroa mantida de uma
maneira verdadeiramente digna da Realeza. Lamento vê-lo afundado até na
prostituição. Uma edição anterior, n.º 5, havia sugerido fortemente que Lord
Bute, primeiro-ministro e favorito do rei (cujo tutor ele havia sido) era o
amante da mãe viúva do rei. A publicação fazia parte do movimento wilkita
mencionado anteriormente.

511
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

aplicadores da lei, mas não fornece um incentivo direto para que


os próprios aplicadores não façam uso indevido de seus poderes.
Um outro problema com o uso do direito de torts ou do
direito penal processado privadamente para processar crimes
cometidos por aplicadores é que o governo que emprega os
aplicadores tem, e pode usar, o poder de veto. Quando foi
descoberto que a AT&T estava fornecendo informações para a
National Security Agency, possivelmente em violação de suas
obrigações para com seus clientes, os clientes entraram com
uma ação. O Congresso respondeu alterando a lei para imunizar
as companhias telefônicas de tais processos. Se os wilkitas
tivessem conseguido condenar um magistrado por assassinato
por instruir as tropas a atirar contra uma multidão, o rei poderia,
e muito provavelmente o teria perdoado.
Esse problema não existe com um sistema de disputas. Em
Egilsaga, uma das minhas sagas islandesas favoritas, o filho de
Kveldulf, Thorolf, um servo do rei Harald, é atacado e morto
pelo rei, preocupado com a crescente riqueza e poder de
Thorolf. Skallagrim, o outro filho de Kveldulf, pede ao rei
wergeld por matar Thorolf e é recusado. Kveldulf e Skallagrim
partem para a Islândia, onde então se estabelecem. No caminho,
eles param o tempo suficiente para interceptar e atacar um navio
que transportava dois dos sobrinhos do rei, um navio que o rei
havia anteriormente tomado de Thorolf. Eles matam os
sobrinhos e a maior parte da tripulação e enviam um
sobrevivente de volta a Harald para dizer quem foi o
responsável. Isso desencadeia uma disputa de três gerações entre
uma família de fazendeiros islandeses e a família real da
Noruega.

A leste da Ilha de Kveldulf havia um mundo governado


por seu inimigo;

512
Vigiando o Vigia

A oeste dela, uma terra onde os homens eram livres.


A morte é o preço da vida e as Nornas nunca são
enganadas;
Ele viu o navio roubado passar e o seguiu até o mar.
Ele nunca olharia para a Islândia, mas guiou o orgulhoso
Harald a saber
Que até os reis pagam wergeld, embora não queiram,
Ele os fez se apoiar e dobrar as costas e remar, remar,
remar.10

Uma abordagem final para controlar os executores é


sugerida por David Brin.11 Ele prevê que as melhorias na
tecnologia de vigilância produzirão uma sociedade onde tudo o
que acontece em qualquer lugar público será registrado e
encontrado, colocando um enorme poder potencial nas mãos da
aplicação da lei. Ele argumenta que a melhor maneira de
controlar esse poder é a transparência correr em ambas as
direções, a capacidade da polícia de vigiar os cidadãos
equilibrada pela capacidade dos cidadãos de vigiar a polícia.
A solução de Brin depende de os funcionários que
controlam a vigilância fornecerem ao público acesso aos dados
resultantes. Também depende da vigilância que cobre coisas que
as autoridades podem não querer que sejam cobertas; pode-se
facilmente imaginar a polícia, antes de espancar um suspeito,
certificando-se de que a câmera de vídeo da sala estava
desligada. Mas casos recentes de alto nível em que agentes da
lei tiveram sérios problemas como resultado de espectadores
gravando seus crimes sugerem que algo parecido com o que
Brin sugeriu pode estar ocorrendo. A tecnologia é nova, mas a
teoria subjacente não é. Uma abordagem muito antiga para

10Um verso para a canção de remo de Silverlock, Myers 2004.


11Brin 1998.

513
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

controlar as más ações dos agentes do governo é o governante


manter um tribunal aberto no qual qualquer um de seus súditos
pode abordá-lo para reclamar dos atos de seus funcionários.12
Tanto a versão antiga quanto a nova sofrem da mesma
limitação. A polícia pode nos vigiar, nós podemos vigiar a
polícia. A polícia pode nos prender, encarcerar ou executar; não
podemos fazer o mesmo com eles.13 A abordagem de Brin
depende da disposição dos governantes de punir os delitos dos
aplicadores. Assim como a versão mais antiga.
H.L. Mencken, em uma discussão satírica sobre o
problema de controlar más ações por funcionários do governo,14
descreve duas soluções. A solução alemã foi um tribunal
especial para julgar funcionários errantes. Funcionou porque
“um oficial prussiano era treinado em ferocidade desde a
infância e considerava todos os homens denunciados perante
ele, quer fossem oficiais ou não, culpados ipso facto; na
verdade, qualquer pensamento sobre a possível inocência de um
prisioneiro era abominável para ele como uma reflexão sobre a
Polizei e, por inferência, sobre o Trono, toda a ideia monárquica
e Deus.”
Essa abordagem nunca funcionaria nos Estados Unidos,
pois “mesmo que não tivessem nenhum outro sentimento em

12“Espera-se que os reis muçulmanos, como os antigos monarcas de Guebre,


realizem “Darbar” (ou seja, dêem audiência pública) pelo menos duas vezes
por dia, de manhã e à noite. A negligência dessa prática causou a ruína do
califado e dos impérios persa e mongol: os grandes senhores ficaram
descontrolados e os suseranos se revoltaram para obter justiça.” (Burton
1885, 29n2).
13Para uma discussão mais longa sobre os problemas produzidos pela

tecnologia de vigilância e os limites da transparência como solução, veja o


Capítulo 5 de Friedman 2008.
14Mencken 1924.

514
Vigiando o Vigia

comum, o que raramente aconteceria, juiz e prisioneiro muitas


vezes seriam democratas ou republicanos e, portanto,
interessados em proteger seu partido contra escândalos e seus
membros contra a perda de seus empregos”. Mencken, portanto,
propõe uma alternativa mais adequada às condições americanas:
“[…] qualquer [cidadão americano], tendo examinado os atos de
um titular do emprego e o considerado delinquente, pode puni-lo
instantaneamente e no local, e de qualquer maneira que pareça
apropriada e conveniente ― e que, no caso desta punição
envolver danos físicos ao titular do emprego, o inquérito
subsequente por um grande júri ou médico-legista deve limitar-
se estritamente à questão de saber se o titular do emprego
mereceu o que recebeu.”
Pense nisso como uma versão modificada da abordagem
da lei de torts — ações iniciadas em particular para controlar as
autoridades públicas. Ou talvez uma forma moderna de lei de
disputas.

515
21
Ideias que Podemos
Usar
Não escrevi esse livro na esperança de encontrar o sistema
legal ideal. Eu duvido que haja algum. Meu propósito é
entender alguns dos diferentes modos como diferentes
sociedades têm lidado com problemas que um sistema legal é
projetado para resolver. Um benefício dessa tentativa é o
descobrir ideias que valeria a pena copiar.

Torts Comercializáveis
Na lei de tort moderna, fica por conta da vítima o ato de
identificar e processar o autor do tort. No sistema Islandês,
também cabia a vítima, assim que obtivesse um veredito do
tribunal, aplicá-lo. Isso poderia ser um problema para uma
vítima com recursos insuficientes, definido basicamente em
termos da capacidade de usar a força, dele mesmo ou com
auxílio de aliados, para processar o caso e aplicar o veredito. A
solução descrita no capítulo 10 foi a de tornar as reivindicações
comercializáveis, permitindo à vítima transferir sua
reivindicação para alguém mais capaz de executá-la. Ele poderia
ou não terminar com uma parte do pagamento por danos — mas
então, as vítimas de crimes geralmente não arrecadam nada sob
nosso sistema. Ao menos o criminoso pagaria, dando aos
potenciais criminosos uma razão para não violar os direitos das
vítimas fracas.

517
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Considere a aplicação da mesma abordagem ao direito de


tort moderno, onde a vítima necessita de recursos para vencer o
caso, mesmo que não seja para aplicar o veredito. Um motorista
descuidado causa danos ao seu carro e talvez também a você.
Você não tem condições de pagar um advogado. Você pode ser
capaz de fazer com que um escritório de advocacia assuma o
caso em caráter de contingência, em troca de uma parte dos
danos que arrecadar. Mas você acha difícil julgar qual escritório
de advocacia fará o melhor trabalho, que arrecadará mais. Ainda
que possa contratar um advogado, você não sabe qual deles fará
o melhor trabalho por você. Se reivindicações de tort fossem
completamente comercializáveis você poderia simplesmente
leiloar a reivindicação para o maior licitante.
Essa não é a única vantagem das reivindicações de tort
comercializáveis. Considere um tort que faz uma pequena
quantidade de dano para cada um de um grande número de
pessoas. O mecanismo atual para lidar com tal questão é uma
ação coletiva. Um advogado empreendedor persuade algumas
das vítimas a apontá-lo como seu advogado, um juiz o autoriza a
assumir o caso em nome de todas as outras vítimas também.
Enquanto o advogado tem um incentivo de tentar vencer o
caso e arrecadar os danos, ele também tem um incentivo de
direcionar o máximo possível do pagamento para si mesmo em
vez dos seus supostos clientes. Idealmente o juiz o mantém
honesto. Caso contrário, o advogado concorda com o réu em um
acordo multimilionário que consiste em um milhão de dólares
em dinheiro real para ele, dez milhões para as vítimas do tort na
forma de uma oferta de descontos em compras futuras.
Suponha que as reivindicações de torts fossem
comercializáveis. Uma empresa tal como uma companhia de
segurança que rotineiramente lida com um grande número de

518
Ideias que Podemos Usar

clientes oferece um desconto para qualquer um disposto a


aceitar todas as reivindicações de tort que possa ter no próximo
ano por menos de cem dólares. Um advogado empreendedor
conclui que dez milhões de pessoas ficaram levemente doentes
devido a algo errado com uma marca de feijão enlatado, dando a
cada uma uma reivindicação legítima de dez dólares em
indenização.
O advogado vai para a companhia de segurança e se
oferece para comprar todas as suas reivindicações pelos danos
dos feijões enlatados. Ele faz a mesma oferta para as outras
formas que tem, da mesma forma, comprado as pequenas
reivindicações de seus clientes. Quando ele termina, ele possui
três milhões de reivindicações de dez dólares cada. Ele vai até a
fábrica de feijão e se oferece para pagar oitenta centavos de
dólar, vinte e quatro milhões de dólares. Se eles recusarem, ele
processa — não em nome das vítimas, que venderam suas
reivindicações a ele por meio de intermediários, mas em nome
de si mesmo. Não há necessidade de um advogado fingir
representar milhões de pessoas que nunca ouviram falar dele,
não há necessidade de um juiz monitorar o acordo feito para se
certificar que é justo para as vítimas. As vítimas foram pagas
adiantado.
A Islândia teve reivindicações comercializáveis no século
X. Os EUA ainda não as obtiveram. Nosso sistema legal está
mais de mil anos atrás da tecnologia legal de ponta.1

1
Para uma descrição mais detalhada de como tal sistema legal poderia
funcionar, veja Friedman 2000, 99-100, 266, 282.

519
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Disputa
Eu não espero que os EUA se convertam para um sistema
legal que seja descentralizado e privadamente aplicado tão cedo,
embora eu tenha esboçado como algo nesse sentido poderia
parecer em meu primeiro livro, quarenta e poucos anos atrás.2
Mas um entendimento da lógica da direito de disputas pode nos
ajudar a compreender os conflitos legais no mundo moderno.

Disputa na Tecnologia de Ponta


Considere um litígio sobre patente entre companhias de
alta tecnologia. Imagine que a Apple está considerando
processar a Samsung por uma violação de patente em que a
Samsung não é, de fato, culpada — o equivalente, no contexto
moderno, de um cigano romnichal ou islandês medieval
exigindo compensação por uma injustiça que não ocorreu. Há
pelo menos duas razões pelas quais a Apple poderia fazer isso.
A primeira é que o tribunal poderá decidir equivocadamente a
favor da Apple, sendo a lei de patentes um assunto complicado.
A outra é que o litígio impõe custos consideráveis sobre um
rival. A percepção pública de que a Samsung poderia ter que
recolher produtos do mercado ou modificá-los irá custar
algumas vendas da Samsung, algumas das quais iriam para a
Apple.
Um argumento contra o processo é o risco de retaliação da
Samsung. Mesmo que nenhuma das companhias tenha
realmente violado a patente da outra, o contraprocesso pode
ainda ser lucrativo pelos mesmos motivos do processo inicial. E
mesmo se o contraprocesso não seja lucrativo como uma aposta

2
Friedman 1973.

520
Ideias que Podemos Usar

no erro judicial ou uma forma de reduzir as vendas da Apple em


favor da Samsung, comprometer-se com tal contraprocesso é
uma forma de dissuadir a ação inicial, assim como
comprometer-se com a vingança contra qualquer um que mate
seus parentes é uma forma de evitar que seus parentes sejam
mortos. O sistema de disputas implícito no litígio de patentes
moderno fornece um mecanismo para dissuadir processos sem
mérito que poderiam, por sua vez, ser lucrativos, assim como o
sistema de disputas explícito impede outras formas de erros
lucrativos.
E se os processos que não são sem mérito — e se a
Samsung realmente infringiu as patentes da Apple? A ameaça
de contraprocesso ainda é um custo de processar para a Apple.
Se os tribunais chegassem a seus vereditos aleatoriamente, a
situação seria a mesma do caso sem mérito e o sistema de
disputas impediria igualmente os processos em ambos os casos.
Mas os tribunais não tomam suas decisões ao acaso, nem
mesmo na lei de patentes. Se a Samsung for culpada, isso
aumenta substancialmente, espera-se, a chance da Apple vencer,
aumentando a vantagem para a Apple em processar. Se a Apple
não infringiu as patentes da Samsung, isso reduz o benefício da
Samsung de contraprocessar. O mecanismo pelo qual o certo faz
o poder no mundo da alta tecnologia, como na Islândia há mil
anos, é o sistema judiciário.
Contanto que seja mais provável que a parte queixosa
prevaleça quando estiver certa do que quando estiver errada,
processar alguém por infringir suas patentes produz um
benefício maior para o queixoso e um custo maior para o réu
quando este realmente infrigiu as patentes do queixoso do que
quando não. Desde que o custo imposto pela ameaça de um
contraprocesso é maior que os ganhos de um processo sem

521
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

mérito, porém menos que os ganhos de um processo legítimo, o


resultado é o de dissuadir o primeiro, mas não o último.
A evidência anedótica mais clara de que o que tenho
descrito é como o sistema realmente funciona é a prática de
empresas de alta tecnologia acumulando grandes estoques de
patentes, muitas das quais provavelmente não usarão. É o
equivalente moderno do islandês medieval acumulando armas e
aliados, caso precise deles para processar sua parte em uma
disputa. Como naquele caso — e a versão de alto risco jogada
por grandes potências sob o nome de Destruição Mútua
Assegurada — se a estratégia funcionar, as armas nunca
precisarão ser usadas.
Permanece aí, no entretanto, um buraco no sistema.

O Queixoso Invulnerável
Tanto a Samsung quanto a Apple produzem telefones
celulares, e isso as tornam vulneráveis à ameaças de retaliação.
Uma empresa que não produz nada não é. Uma entidade não
praticante, referida pelos críticos como um troll de patentes,
possui uma coleção de patentes, não põe nenhuma delas em
prática, processa entidades praticantes por suposta infração, mas
não enfrenta o risco de um contraprocesso por infração. É
invulnerável à retaliação, como um islandês com uma armadura
tão boa que nenhuma espada pode cortá-la.
A entidade não praticante, como a Apple, tem a
possibilidade de lucrar com o erro judicial, ganhando uma causa
que deveria ter perdido e cobrando indenização. E embora a
imposição de custos à Samsung não forneça nenhum benefício
direto à entidade não praticante, ela dá à Samsung um incentivo
para fazer um acordo em vez de deixar o caso ir a julgamento.

522
Ideias que Podemos Usar

No caso da Samsung, há uma razão óbvia para não fazer


um acordo — pagar um queixoso com um caso fraco encorajará
outros.3 Esse incentivo é mais fraco no caso de uma empresa
muito menor, que provavelmente não será alvo de várias
tentativas de extorsão e corre o risco de ser destruída por um
único processo judicial. Portanto, obtemos o que os críticos de
entidades não praticantes alegam ser sua tática usual, processar
pequenas empresas para serem pagas para desistir do processo.
Segue-se que, mesmo que o sistema de disputas seja
adequado como forma de controlar ações de patentes entre
empresas produtoras, é impotente para controlar ações de
patentes fraudulentas por entidades não praticantes. O que
sugere que podemos precisar de algo mais. Para uma possível
solução...

A Lei Ateniense: Uma Proposta Modesta


para Revisar a Lei de Torts
Sob a lei americana, cada parte em um processo de tort
paga suas próprias despesas legais. Sob a lei inglesa, a parte
vencida em um processo de tort deve à parte vencedora uma
compensação por seus custos legais.4 Isso fornece um
impedimento para um processo suficientemente sem mérito, de
modo que o queixoso está praticamente certo de perder. Mas um

3
Uma observação feita em verso, em um contexto um pouco anterior, por
Rudyard Kipling.
4
Na lei vigente do direito inglês, a compensação é pelo quanto o tribunal
acredita que deveria ter sido, não pelo quanto os custos realmente foram. E
sob o direito americano a parte prevalecente pode, às vezes, receber seus
custos pagos se o tribunal enxergar a posição da parte perdedora como
suficientemente sem mérito.

523
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

queixoso que tem alguma chance de vencer, por erro judicial ou


insegurança efetiva, ainda tem uma ameaça efetiva. Se o réu
ganhar, ele empata, se perder, ele paga não apenas os danos,
mas também os custos legais de ambos os lados. Essa pode ser
uma boa razão para o réu concordar em pagar uma fração do que
o queixoso alega que deve, mesmo que esteja razoavelmente
convicto de que está certo. Os réus que são players reincidentes,
como uma empresa do tamanho da Apple ou Samsung, podem
se comprometer a nunca fazer um acordo. O problema é mais
grave para os réus que não esperam ser players reincidentes e,
portanto, não estão em condições de se comprometer.
O problema fundamental, não limitado a processos sobre
propriedade intelectual, é que um queixoso que processa um réu
inocente em um sistema com erro legal impõe sobre ele um
custo além dos custos legais — o risco de perder o caso e ser
considerado responsável por danos. Não podemos compensar o
réu por esse risco quando ele perde porque, se ele perder, não
sabemos que ele é inocente. Mas a lei de tort trata um réu que é
considerado culpado pela preponderância da evidência como se
fosse culpado com certeza, então parece natural tratar um réu
que é considerado inocente pela preponderância da evidência
como se fosse inocente com certeza, tornando o queixoso
culpado de processar um réu inocente. Podemos usar a
indenização devida pelo queixoso perdedor ao réu vencedor
como um substituto para danos pelos custos impostos por um
queixoso que processa um réu inocente e vence. A lógica é
análoga ao caso de punir tentativas criminosas mal sucedidas.
Atirar em alguém e errar não causa ferimento. Punir alguém que
atira e erra serve como uma punição substituta por impor um

524
Ideias que Podemos Usar

risco de morte, cobrado, como indenizações sob a lei de tort que


estou propondo, quando o risco não se concretiza.5
Esses argumentos sugerem que o queixoso de tort
perdedor deve ser responsável perante o réu por danos,
possivelmente com base no valor que o queixoso reivindicou e,
portanto, no tamanho do risco imposto, possivelmente também
em alguma medida de quanto o queixoso perdeu e, portanto,
quão forte é a evidência que ele era inocente. Fazer os danos
dependerem de quanto o queixoso perdeu corresponderia à lei
para processos privados da maioria das categorias de delitos
criminais na Atenas de Péricles; um procurador que não
conseguisse que pelo menos 20% de um grande júri votasse pela
condenação era multado. Fazer a indenização depender do valor
reclamado corresponderia à lei em Atenas, pelo menos para
alguns de seus equivalentes em nossos casos de tort; o queixoso
perdedor devia ao réu um sexto da quantia que ele alegou que o
réu lhe devia. Não se sabe se essa pena dependia de menos de
20% do júri para votar pela condenação, como o equivalente em
processos criminais.
Ao definir adequadamente os danos devidos pelo queixoso
perdedor e os devidos pelo réu perdedor, deveria ser possível o
sistema jurídico impedir que pretensos queixosos processassem
réus que eles acreditam serem inocentes, ao mesmo tempo em
que fornece aos potenciais autores de torts o nível desejado de
dissuasão.
Eu esbocei a ideia da lei ateniense, a saber, a de que danos
devidos a um réu de tort prevalecente para para compensá-lo
pelo risco de ser considerado responsável injustamente, no
contexto do problema do troll de patentes, mas o argumento é
5
Essa explicação da punição pelas tentativas é elaborada em mais detalhes
em Friedman 1991, capítulo 7.

525
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

geral. Processar um réu inocente em um sistema legal que às


vezes considera réus inocentes como culpados impõe custos
além do custo do litígio, custos pelos quais o queixoso deve ser
responsabilizado. A lei é particularmente importante no caso do
troll de patentes somente porque é uma situação em que
processar deliberadamente réus inocentes e depois propor um
acordo é considerado um problema sério. Pode muito bem haver
outros.

Outra Ideia Proveniente de Atenas


A solução ateniense para o problema de determinar quem
era o ateniense mais rico a fim de decidir quem era obrigado a
produzir um bem público pode ser relevância aos problemas
análogos na sociedade moderna. Uma versão que tem sido
proposta é o imposto autoavaliado sobre propriedade. Cada
proprietário deve estabelecer um valor por sua propriedade e ser
cobrado sobre esse valor. Se alguém se oferece para comprar
sua propriedade por este preço ele é obrigado a aceitar.
O proprietário gostaria de fixar o valor de sua propriedade
o mais baixo possível para reduzir o imposto, mas alto o
suficiente para não ser forçado a vendê-lo contra sua vontade.
Mirar um pouco acima do preço de mercado pode não ser
suficiente, pois ele pode estar subestimando o preço de mercado.
E mesmo que acerte o preço de mercado, existe a oportunidade
de extorsão, um comprador que reconhece o alto valor da
propriedade para o atual proprietário, se oferece para comprar a
casa e exige um pagamento para desistir da oferta. Portanto, o
preço que esperaríamos que um proprietário prudente
estabelecesse estaria em algum lugar entre o que ele acredita

526
Ideias que Podemos Usar

que vale a pena no mercado e o preço mais baixo pelo qual ele
ficaria feliz em vendê-la.
A vantagem do imposto autoavaliado sobre propriedade é
que nos dá um mecanismo de estabelecimento do valor a ser
taxado que não dependa da existência de avaliadores honestos e
competentes. Um argumento contrário que pode ocorrer a
alguns é que é injusto tributar o valor subjetivo em vez do valor
de mercado, para me fazer pagar pelo valor emocional especial
para mim da casa em que meus filhos cresceram, das árvores
frutíferas que plantei. Outro é que a insegurança da donidade da
minha casa é um preço muito alto a pagar pela vantagem de um
valor automaticamente avaliado.
Na minha experiência, é a última questão que faz com que
muitas pessoas considerem a proposta não apenas indesejável,
mas ultrajante. Uma modificação possível seria ter a
propriedade avaliada para fins de tributação na maneira mais
convencional, mas permitir que um proprietário revise o valor
tributável de sua propriedade, se desejar, declarando sua vontade
de vender a um preço mais baixo.
O argumento usual para o domínio eminente, a regra legal
que permite um governo obrigar um proprietário vender a um
preço estabelecido pelo comprador do governo, é que é
necessário impedir que o proprietário de uma propriedade que
bloqueie um projeto como uma nova rodovia aproveite a
situação para cobrar um preço excessivamente alto. Com um
imposto sobre propriedade autoavaliado a propriedade já tem
um preço definido pelo proprietário, eliminando o problema e,
assim, eliminando o argumento de dar aos governos o poder de
forçar um proprietário a vender a um preço definido pelo
comprador.

527
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Uma versão moderna da abordagem ateniense é usada


rotineiramente nas corridas de cavalos para construir uma
corrida competitiva. Inscrever um cavalo em uma corrida
reivindicada constitui uma oferta para vender o cavalo pelo
preço declarado, digamos $20.000. Variar o preço fornece uma
maneira simples de criar corridas em vários níveis. O dono de
um cavalo veloz poderia obter uma vitória fácil inscrevendo-o
em uma corrida fácil, mas apenas à custa de perder o cavalo.
Um exemplo ainda mais simples e familiar da mesma
abordagem é a regra para dividir algo uniformemente: você
corta, eu escolho.
Existem outros contextos em que a abordagem poderia ser
usada e não é? Nenhum me ocorre, mas talvez um dos meus
leitores possa sugerir alguns.

Lições Chinesas sobre Contratos


A prática contratual chinesa fornece evidência de como
realizar contratos com mínima ajuda do direito contratual. Isso
é relevante mesmo em locais com direito contratual muito mais
detalhado do que a China antiga, uma vez que sob a maioria das
circunstâncias o que ambas as partes querem não é vencer um
caso judicial, mas pelo contrário, evitar um.
As pessoas construindo contratos provavelmente não
precisam de ajuda da China Imperial para encontrar soluções
para o problema de como estruturar um contrato a fim de torná-
lo do interesse de ambas as partes mantê-lo.6 Mas a questão
também é relevante para as pessoas que constroem o direito
contratual, uma vez que as regras legais podem dificultar

6
Para uma discussão moderna da questão, veja o capítulo 3 de Jackson et. al.
2010.

528
Ideias que Podemos Usar

algumas soluções privadas. Caveat emptor, “deixe o comprador


tomar cuidado”, a regra segundo a qual um comprador aceita as
mercadorias como as encontra, a menos que o vendedor garanta
explicitamente suas qualidades, pode ser útil em alguns
contextos como forma de evitar litígios. Também pode ser
descartada por algumas formas de direito contratual moderno.
De modo mais geral, a observação de que as partes podem achar
de seu interesse estruturar contratos de forma a mantê-los fora
do tribunal fornece um argumento para a doutrina da liberdade
contratual, segundo a qual os termos contratuais são executáveis
mesmo que o tribunal que os aplica considere tais contratos
imprudentes.

Plea Bargaining e a Lei da Tortura


John Langbein arugumentou que a prática moderna de
plea bargaining, assim como a lei medieval da tortura, surgiu
como uma maneira de contornar os problemas levantados por
um padrão de prova impraticavelmente alto. Sua conclusão foi
que os EUA deveriam mudar para algo parecido com o sistema
moderno alemão de julgamento, mantendo a júris para ofensas
graves, mas eliminando o sistema contraditório. Seja essa a
resposta certa ou não, seu artigo aponta o risco de que, se
proteções adicionais para réus tornarem os julgamentos mais
longos e caros, o resultado pode ser não menos condenações de
inocentes, porém mais.

529
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

Plea Bargaining, Overcharging7 e Lei


Ateniense
Parte do problema com o sistema moderno de plea
bargaining é que um procurador pode acumular acusações.
Considere um réu indiscutivelmente culpado de um assalto
punido com um ano de prisão. O procurador o acusa não apenas
disso, mas também de tentativa de homicídio. Enfrentando
apenas uma acusação de agressão da qual acredita ser inocente,
o réu pode optar por ir a julgamento com uma esperança
razoável de ser absolvido. Acusado também de assassinato,
enfrentando uma chance significativa de um ano de prisão e uma
chance muito menor, mas diferente de zero, de vinte anos, ele
concorda em se declarar culpado da acusação menor. Existe uma
maneira de mudar os incentivos do procurador e do réu para
desencorajar essa abordagem?
Em Atenas, um procurador privado que não conseguisse
obter 20% do júri para votar pela condenação poderia ser
multado. Nos sistemas jurídicos modernos, o procurador não é
um cidadão privado, mas um funcionário do governo, o que
torna essa abordagem menos provável. Mas pode haver outros.
Pode-se, por exemplo, estabelecer que se, em três casos
diferentes ao longo de um ano, houver pelo menos uma
acusação na qual menos quatro jurados votaram pela
condenação, o procurador será removido — uma regra de três
golpes. Isso dá ao procurador uma razão para não apresentar
acusações que ele não pode apoiar no julgamento.

7
N.T.: “Overcharging”, no common law, refere-se a uma prática processual
que envolve "aplicar" acusações adicionais que o promotor sabe que não
pode provar. É usado para colocar o promotor em uma melhor posição para
plea bargaining.

530
Ideias que Podemos Usar

Se ele apresentar tais acusações de qualquer maneira, a


regra não oferece proteção ao réu, portanto, não há razão para
ele não ceder à ameaça; se ele ceder, as acusações nunca serão
julgadas. Considere, em vez disso, ou além disso, uma regra que
estabelece que um réu que seja absolvido de qualquer acusação
deve receber a pena legal mais baixa em quaisquer acusações
pelas quais seja condenado. Isso reduz o poder da ameaça do
procurador, dando-lhe um incentivo para acusar o réu apenas de
crimes pelos quais o procurador pensa que pode condená-lo e
barganhar com isso.
Eu duvido que essa variante poderia ser adotada na
jurisdição dos EUA no presente, mas há outros locais e haverá
outros tempos.

Alcançando a Inglaterra do Século XVIII


De tempos em tempos alguém comete um crime que o seu
governo aprova. Exemplos no tempo em que vivo incluem
assassinato (dos Panteres Negras Fred Hampton e Mark Clark
pela polícia de Chicago em 1969) e perjúrio (pelo Diretor de
Inteligência Nacional James Clapper testemunhando ao
Congresso em 2013). O processo criminal em nosso sistema
legal é feito pelo governo, então é provável que crimes que o
governo aprova não serão processados, como não foram nenhum
desses acima. Mas o tiroteio dos Panteras Negras gerou um
processo civil que acabou chegando a $1,85 milhão, pagos por
Chicago, Cook County e o governo federal.
Um processo civil é uma forma de lidar com um crime que
o governo optou por não processar, mas nem todos os crimes
fundamentam tal processo. Na Inglaterra do século XVIII, a

531
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso

solução era muito mais simples: qualquer inglês poderia


processar qualquer crime.
Suponha que quiséssemos mudar nosso sistema para lidar
com o problema de o governo se recusar a processar crimes que
aprova. Poderíamos fazer isso alterando nossa lei para permitir
que um cidadão comum instaurasse um processo criminal contra
um réu que o estado não processou. Isso soa como uma proposta
radical, mas uma versão dela já existe no direito americano
moderno. Alguns estatutos fornecem a opção de um procurador-
geral privado, um processo por um cidadão privado. Como no
direito inglês do final do século XVIII, o promotor bem-
sucedido pode, a critério do juiz, receber honorários
advocatícios para cobrir seus custos. Estou propondo uma
modesta expansão da regra existente — cobrir todos os crimes.
Um questionamento permanece — o resultado é bom?
Visto de um lado, é uma precaução contra governos
assassinando pessoas que os desagradam. Visto pelo outro lado,
reduz a capacidade do sistema jurídico de ignorar atos ilícitos
que não merecem ser punidos.
Atualmente, nos Estados Unidos, é ilegal que estudantes
universitários com menos de 21 anos comprem, possuam ou
consumam bebidas alcoólicas ou que outros forneçam bebidas
alcoólicas a eles.8 Seria uma boa coisa para um aluno com
ressentimento contra sua ex-namorada ou seu novo namorado
poder ter um ou ambos presos, acusados (dependendo do estado

8
Na Flórida, a posse é uma contravenção punível com até sessenta dias de
prisão mais suspensão de privilégios de condução. Em Illinois, fornecer
álcool a um menor de idade é uma contravenção com multa de até $2.500 e
um ano de prisão ou um crime com pena de um ano ou mais de prisão e
multa de até $25.000.

532
Ideias que Podemos Usar

e das circunstâncias) de contravenção ou crime e, se condenado,


preso por vários meses, possivelmente vários anos?
Aqui, novamente, evidências de sistemas jurídicos
anteriores são relevantes. De acordo com as leis de caça
inglesas, alguns animais selvagens eram considerados
propriedade da Coroa e a caça deles era restrita ao rei ou a quem
ele havia autorizado. O resultado, no início do século XIX, foi
que o direito de caçar esses animais nem sempre pertencia ao
dono da terra em que eram caçados. A restrição foi amplamente
ignorada, abrindo oportunidades para que a ameaça de processo
fosse usada para extorquir dinheiro de proprietários de terras
culpados pelo crime de caça aos cervos em suas próprias terras.9
Um possível compromisso seria permitir a ação penal
privada apenas contra funcionários do governo. Pense nisso
como uma versão atualizada da proposta de Mencken.

9
Hay 1989.

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