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LEGAIS MUITO
DIFERENTES
DO NOSSO
Sistemas Legais
Muito Diferentes do Nosso
David Friedman
Peter T. Leeson
David Skarbek
1ª Edição
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
David Friedman | Peter T. Leeson | David Skarbek
Editora Konkin, 1ª Edição
Email: contato@editorakonkin.com.br
Título Original: Legal Systems Very Different From Ours
Coordenação Editorial
Alex Pereira de Souza
Tradução e Revisão
Alex Pereira de Souza, Erick Kerbes, Gabriel Camargo, Gabriel Rezende,
Hiel Estevão, José Aldemar, Rafael Jesus.
Capa
Gabriel Teixeira Pereira
Diagramação
Alex Pereira de Souza
Licença
Os direitos autorais da edição em inglês pertencem aos autores. Todos os
direitos reservados. Todos os direitos de publicação deste livro, em língua
portuguesa, que pertencem à Editora Konkin, na forma da lei estão sendo, por
intermédio deste, cedidos publicamente, inclusive para venda, impressão e
eventuais alterações.
ISBN
978-65-999192-8-2 (versão impressa) | 978-65-999192-9-9 (versão digital)
Até que ponto, na formação das leis dos chineses, os fins da justiça
substancial são consultados, também deve haver, sem dúvida, alguma
variedade de sentimentos. Há certamente muitos pontos sobre os
quais essas leis são totalmente indefensáveis. Procuraremos em vão,
por exemplo, aqueles excelentes princípios do direito inglês, pelos
quais todo homem é presumido inocente até que seja provado
culpado; e nenhum homem é obrigado a se incriminar. Tais máximas
o sistema chinês não reconhece nem poderia reconhecer. Mas
dificilmente escapará à observação que existem outras partes do
código que, em um grau considerável, compensam esses e outros
defeitos semelhantes, são totalmente diferentes e talvez não sejam
indignos de imitação, mesmo entre as nações afortunadas e
esclarecidas do Ocidente. É suficientemente óbvio, de fato, que os
méritos intrínsecos de qualquer código de leis, que não se professa
ser o resultado das meditações de um filósofo, ou a teoria não testada
de um legislador, mas que, ao contrário, na verdade está em vigor,
forma a base do governo de uma nação e, como tal, foi devidamente
submetido ao importante teste da experiência, não devem ser
estimados por nenhum padrão imaginário de perfeição.
(Staunton, 1828)
Sumário
Introdução........................................................................ 9
1. Direito Imperial Chinês................................................. 11
2. Direito Cigano ............................................................... 53
3. Os Amish....................................................................... 77
4. Direito Judaico: Uma Breve Explicação ....................... 99
5. Direito Islâmico........................................................... 145
6. Quando Deus é o Legislador ....................................... 179
7. Direito Pirata ............................................................... 191
8. Direito dos Prisioneiros............................................... 211
9. Sistemas Integrados e Polilegais ................................. 225
10. Islândia do Período das Sagas ..................................... 243
11. Direito Somali ............................................................. 279
12. Direito Irlandês Antigo................................................ 301
13. Comanches, Kiowa e Cheienes ................................... 323
14. Direito de Disputas...................................................... 349
15. Inglaterra no Século XVIII.......................................... 365
16. Direito Ateniense: A Obra de um Economista Louco 421
17. Aplicando Regras ........................................................ 435
18. O Problema do Erro..................................................... 467
19. Fazendo o Direito ........................................................ 489
20. Vigiando o Vigia ......................................................... 507
21. Ideias que Podemos Usar ............................................ 517
Bibliografia.................................................................. 535
Introdução
Quase quarenta anos atrás eu me interessei pelo sistema
legal da Islândia do período das sagas, uma sociedade em que se
você matasse alguém, os parentes dele processavam você.
Tentar entender isso me ensinou coisas interessantes não apenas
sobre o sistema jurídico, mas também sobre a aplicação da lei
em geral. Cerca de quinze anos depois me interessei pelo direito
penal na Inglaterra do século XVIII, um sistema em que a
prossecução do crime era privada, geralmente exercida pela
vítima, onde todos os crimes graves eram capitais, mas apenas
uma minoria dos condenados por crimes capitais e uma pequena
minoria dos acusados foram realmente executados. Tais fatos
também foram interessantes.
Depois de mais ou menos dez anos, ocorreu-me que
valeria a pena fazer mais trabalhos em linhas semelhantes, então
inventei um seminário sobre sistemas jurídicos muito diferentes
dos nossos. Isso significava que eu tinha que aprender sobre
mais sistemas jurídicos. Com a ajuda dos bibliotecários da
minha universidade, consegui. Ao longo dos anos, expandi meu
conhecimento com a ajuda do Google, Amazon.com e os
trabalhos de meus alunos. Este livro é o resultado. A maior parte
é minha, mas inclui dois capítulos de outros autores, cada um
sobre o assunto da pesquisa do autor.
A ideia subjacente é simples. Todas as sociedades
humanas enfrentam os mesmos problemas. Elas lidam com eles
com uma interessante variedade de maneiras diferentes. Todas
elas são maduras — há poucas razões para acreditar que as
pessoas que criaram os sistemas jurídicos da China imperial, da
Atenas de Péricles ou da Islândia do período das sagas fossem
9
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Direito Imperial Chinês
1
Direito Imperial
Chinês
O sistema jurídico chinês se originou há mais de 2.000
anos no conflito entre duas visões do direito, legalista e
confucionista. Os legalistas, que acreditavam em usar o interesse
próprio racional daqueles sujeitos à lei para fazê-los se
comportar da maneira desejada por aqueles que fazem a lei,
foram acusados por escritores posteriores de defender penas
severas para levar a taxa de criminalidade a quase zero.2 Eles
apoiavam um governo central forte e igualdade de tratamento
perante a lei. Os confucionistas defendiam a modificação do
comportamento não por recompensa e punição, mas pelo ensino
da virtude. Eles apoiavam o tratamento desigual com base tanto
no status desigual daqueles a quem a lei se aplicava quanto em
seus diferentes relacionamentos.
O conflito foi brevemente resolvido em favor dos
legalistas em 221 a.C. quando o reino de Qin derrotou todos os
rivais, criando o primeiro império chinês unido. A dinastia
entrou em colapso em 208 a.C. após a morte de seu fundador.
Foi sucedida pela dinastia Han, cujo sistema legal era
nominalmente confucionista, mas na prática um híbrido das
duas abordagens. O direito positivo continuou a ser aplicado por
meio de penalidades, mas a penalidade por uma transgressão
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Direito Imperial Chinês
O Código Legal4
As leis originaram-se como estatutos proclamados pelos
imperadores e transmitidos de dinastia em dinastia; uma fonte
estima que quarenta por cento do código Qing veio do código
Tang, criado cerca de mil anos antes.5 Eles foram expandidos
pela adição de subestatutos baseados em decretos imperiais ou
em precedentes estabelecidos por funcionários de alto nível,
expandidos ainda mais por comentários oficiais impressos junto
com os estatutos, expandidos ainda mais por comentários não
oficiais. Embora alguns dos primeiros escritores tenham
argumentado contra a disponibilização pública do código legal,
essa política não parece ter sido seguida, exceto possivelmente
durante a dinastia Song.6 Mas em uma sociedade onde a maioria
das pessoas era analfabeta e onde qualquer pessoa que prestasse
aconselhamento ou assistência jurídica sem autorização oficial
corria o risco de sofrer penalidades severas, as pessoas comuns
dependiam em grande parte dos funcionários do governo e de
seus empregados para obter informações sobre regras legais.
Uma característica marcante dos casos em Bodde e
Morris, registros oficiais do equivalente a tribunais de apelação
de alto nível, é que eles não eram sobre se o réu era culpado —
os fatos de quem fez o que eram geralmente considerados
4Uma tradução em inglês dos estatutos, mas não dos subestatutos do código
Qing, publicada em 1810 por George Staunton, está na rede em
https://archive.org/details/TaTsingLeuLeeCode01. Há também duas
traduções francesas, uma de Philastre e outra, mais completa, de Boulais.
5Informações sobre códigos anteriores podem ser encontradas em fontes
como Van Gulik 2007, uma tradução com comentários de uma coleção de
casos do século XIII, Johnson 1979, uma tradução de parte do código Tang, e
Jiang 2005, uma tradução de todos os estatutos (mas não subestatutos) do
código Ming.
6Head e Wang 2005, 146.
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Punindo Delitos
Nem a prisão nem as multas
faziam parte da lista normal de
7Os casos muito anteriores e possivelmente fictícios em van Gulik 2007 são
em grande parte relatos de como magistrados inteligentes deduziram com
sucesso o que realmente aconteceu.
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Direito Imperial Chinês
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por volta de 1459 de acordo com Bodde e Morris (1967, 135). Isso explica o
motivo da distinção entre punições antes e depois dos assizes não aparecer no
Grande Código Ming (Jiang 2005), criado no início do período Ming, mas
aparece no código Qing (Staunton 1810).
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Ligando os Pontos
O código da lei foi concebido para fornecer uma punição
específica para cada delito possível — a missão da comissão de
condenação dos EUA levada ao enésimo grau. Apesar do
tamanho e dos detalhes do código, ele falhou em fazê-lo. As
lacunas poderiam ser preenchidas por interpolação, com
veredictos do tribunal assumindo uma forma como “o crime é
semelhante a XYZ, para o qual a punição especificada no
código é o exílio perpétuo a uma distância de 2.500 Li da
província natal do infrator, mas um pouco menos grave. O réu é
condenado por analogia ao exílio a uma distância de 2.000 li.”25
Onde o delito não pudesse ser enquadrado em nenhuma
categoria do código, o tribunal poderia considerar o réu culpado
de fazer o que não deveria ser feito26 ou de violar um decreto
imperial — não um decreto real, mas um que o imperador teria
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A Estrutura da Autoridade
A figura-chave na burocracia que governava a China era o
magistrado distrital. A população de seu distrito podia variar de
80.000 a mais de 250.000; o magistrado funcionava como o
único representante da autoridade imperial, uma combinação de
prefeito, chefe de polícia e juiz. Ele se qualificou para o cargo
com bom desempenho primeiro no teste para o serviço público e
depois em cargos administrativos de nível inferior. Ele era
auxiliado por uma equipe de funcionários, alguns de seus
próprios funcionários que se mudaram com ele de um lugar para
outro, alguns permanentemente localizados no distrito.
Um risco de colocar tanto poder em um par de mãos era
que os magistrados poderiam tirar proveito de sua posição para
construir apoio local e, assim, converter o império, em teoria
uma burocracia centralizada, em um sistema feudal de facto,
como tendia a acontecer na períodos de ruptura entre dinastias.
As precauções para evitar isso incluíam proibir um magistrado
de ser designado para qualquer distrito dentro de sua província
natal ou dentro de 165 milhas de seu distrito natal,29 mudar
magistrados de distrito para distrito a cada poucos anos e proibir
um magistrado de se casar com uma mulher de seu distrito ou
possuir terras nele. Além disso, o fato de o código legal
especificar em detalhes a punição devida para cada delito
restringia o arbítrio do magistrado e, portanto, limitava seu
poder.30
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Direito Imperial Chinês
Isso levanta uma questão óbvia: por quê? Por que exigir
que os homens mais capazes da sociedade passem um longo
período de tempo, muitas vezes décadas, estudando para passar
nos testes, em vez de aplicar suas habilidades para administrar o
império? Por que testar um conjunto de habilidades com pouca
conexão óbvia com os trabalhos que esses homens deveriam
fazer?
Uma explicação possível é que os exames eram
equivalentes a testes de QI, projetados para selecionar os
membros mais intelectualmente capazes (e diligentes) da
população para o serviço do governo. Mas é difícil acreditar que
não houvesse uma maneira menos dispendiosa de fazê-lo ou
nenhuma abordagem semelhante que tivesse testado habilidades
mais relevantes.
Uma explicação mais interessante enfoca o conteúdo do
que eles estavam estudando — literatura e filosofia
confucionista. Há duas características que se gostaria que os
funcionários tivessem. Uma delas é a capacidade de fazer um
bom trabalho. A outra é o desejo de fazer um bom trabalho —
em vez de encher os bolsos com subornos ou negligenciar os
deveres públicos em favor de prazeres privados. Pode-se
interpretar o sistema de testes como um exercício maciço de
doutrinação, treinando as pessoas em um conjunto de crenças
que implicava que o trabalho dos funcionários do governo era
cuidar bem das pessoas para as quais foram designados, ao
mesmo tempo em que eram adequadamente obedientes às
pessoas que os supervisionavam. Aqueles que internalizaram
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Direito Imperial Chinês
Vivo e Bem
Pode ter ocorrido a você que a China Imperial não é a
única sociedade cujos membros de elite são esperados a se
qualificar para cargos de alto status estudando e passando em
exames sobre assuntos que têm pouco ou nada a ver com os
cargos para os quais estão se qualificando. Pode até ter ocorrido
a você que você mesmo fez, talvez esteja fazendo atualmente,
quase exatamente a mesma coisa.
Na América moderna, um requisito a ser considerado para
a maioria dos melhores empregos, tanto no governo quanto no
setor privado, é um diploma universitário. Parte do que um
estudante universitário estuda e é testado pode ser relevante para
o trabalho para o qual ele se candidata, mas muito disso, no caso
de muitos empregos, não é. Nem a história americana, nem
Shakespeare, nem a geometria têm muita utilidade no trabalho
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Direito Imperial Chinês
Apelações e Acusações
Uma sentença de bambu poderia ser imposta pelo
magistrado distrital, mas deveria ser relatada um nível acima à
prefeitura e poderia ser apelada ao governador provincial. Os
casos que levaram a uma sentença de servidão penal eram
investigados pelo magistrado distrital, relatados à prefeitura,
decididos em nível provincial com o veredicto confirmado pelo
governador provincial e, em seguida, relatados em outro nível
até o conselho de punições em Pequim que, se insatisfeito com o
veredicto, poderia enviar o caso de volta para novo julgamento.
35Os leitores interessados no enigma da educação americana podem encontrar
uma breve introdução, com links úteis, em
https://www.econlib.org/archives/2015/04/educational_sig_1.html, uma
apresentação mais longa em Caplan 2018.
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curso normal, e uma área foi aberta na qual apenas os altos funcionários da
província e do governo central gozavam de poderes mais amplos de arbítrio
por meio de classificação e poderiam aconselhar legalmente o imperador
sobre como reduzir a punição de forma rotineira. Aparentemente, a face da
lei foi salva dessa maneira, e os princípios sobre os quais o sistema foi
construído não foram infringidos.” (Meijer 1984, 15). “Mas deve-se sempre
ter em mente que poucas dessas sentenças são realmente executadas, pois em
quase todos os casos uma sentença capital deve, antes de ser executada, ser
submetida ao Conselho de Pequim para revisão.” (Alabaster 1899, LXVI).
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mesmo nome, mas não dentro dos graus para os quais o luto é imposto, uma
distinção deve ser feita entre o júnior e o sênior; e o golpe desferido por um
júnior deve, portanto, ser punido um grau a mais, e aquele desferido por um
sênior um grau menos severo, do que um mesmo delito teria sido em casos
comuns entre iguais.” (Staunton 1810, 343).
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homem apelidado de Corpo Correto. Quando seu pai roubou uma ovelha, ele
testemunhou contra ele.” Mestre Kong disse: “Na minha terra natal, as
pessoas corretas são diferentes deste homem: o pai esconde o filho e o filho
esconde o pai. A retidão está aí.” (Confúcio 1997 13:18, 136).
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golpes.
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Direito Imperial Chinês
Para o equivalente Ming, veja Jiang 2005, 40. Exemplos onde a punição é
reduzida porque o ofensor estava agindo sob a autoridade de um superior são
dados em Alabaster 1899, 33 e 37-8. Bodde e Morris (1967, 385-388)
descrevem um caso em que dois membros de uma família afogam um
terceiro sob as ordens de um membro sênior e são condenados à decapitação
após os assizes. Isso viria sob a exceção que eu coloquei em itálico.
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Direito Imperial Chinês
70Leitores
interessados podem encontrar um relato mais detalhado em
Brockman 1980.
51
Direito Cigano
2
Direito Cigano
O número total de romani, mais comumente conhecidos
como ciganos, é estimado em torno de três a quinze milhões.1 Se
os estudos atuais estiverem corretos, eles são descendentes de
uma população que deixou o norte da Índia há cerca de mil
anos.2 Eles aparecem pela primeira vez na história da Europa
Ocidental no século XV, na corte do Sacro Imperador Romano
Sigismundo, alegando serem do Pequeno Egito, na Grécia, em
peregrinação como penitência pelo abandono temporário do
cristianismo por seus antepassados.3 Vários relatos os
1
Weyrauch 2001, 28.
2
Ian Hancock (2010, capítulo 5) ofereceu uma engenhosa, embora um tanto
especulativa, história de detetive linguístico, deduzindo a história anterior à
chegada à Europa Ocidental do vocabulário cigano. Ele argumenta que o
grupo que originalmente deixou a Índia não eram agricultores e tinham
alguma conexão militar, uma vez que as palavras de relevância militar são
derivadas de línguas indianas, enquanto as palavras relevantes para a
agricultura são emprestadas de outras línguas, presumivelmente pegas no
caminho. Ele data sua partida da Índia em não antes do século XI, quando as
línguas indianas perderam seu gênero neutro, uma vez que os dialetos
ciganos não têm neutro e atribuem gênero a palavras que anteriormente eram
neutras no mesmo padrão que as línguas indianas. Mendizbata et. (2012), no
entanto, argumentam sobre a base de evidências genéticas para uma partida
da Índia por volta de 500 d.C.
3
Possivelmente a origem de "egípcio" e, portanto, "cigano [gypsy]" como
rótulos para os rom, embora outras explicações também tenham sido
oferecidas. "Pequeno Egito" pode ter sido uma região no Peloponeso
chamada Modon, governada por Veneza, onde havia uma comunidade
cigana. Alternativamente, poderia ter sido uma referência à Ásia Menor.
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Direito Cigano
Vlach Rom
Depois que a servidão foi abolida na Romênia no século
XIX, muitos dos vlach rom emigraram. Seus descendentes estão
agora espalhados por todo o mundo, compondo a maior
população cigana. Minha principal fonte de informação sobre
eles é um livro de Anne Sutherland baseado em suas interações
com vlach rom americanos durante um período que terminou em
outubro de 1970, durante nove meses nos quais ela foi diretora
de uma escola cigana em Richmond, Califórnia. Embora suas
observações fossem de rom americanos, grande parte de sua
descrição provavelmente se aplica a grupos de vlach rom em
outros lugares; e uma parte dela, a outros grupos ciganos.5
Estrutura Social
A unidade básica é a familia: um casal, seus filhos adultos,
noras, filhas solteiras e netos. Acima da familia está a vitsa, um
grupo de parentesco maior, descendente de um ancestral de
algumas gerações atrás. Um indivíduo pode optar por ser
5
Outra fonte valiosa é Ronald Lee, um autor e ativista cigano canadense. A
imagem que ele dá dos ciganos canadenses é amplamente consistente com a
de Sutherland dos ciganos da Califórnia.
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Direito Cigano
Sistema Legal
Romania, o sistema de regras, pode ser agrupado em duas
categorias. Uma consiste em regras jurídicas ordinárias que
abrangem as obrigações dos ciganos uns para com os outros,
incluindo extensas obrigações de ajuda mútua; especialmente,
mas não exclusivamente, entre parentes. Se um membro da
kumpania precisar de cuidados médicos e não puder pagar,
espera-se que outros membros façam uma arrecadação para isso.
Se houver uma festa para um dia de santos, um funeral, ou
alguma ocasião semelhante, é provável que seja financiado por
uma arrecadação semelhante. Se uma família empobrecida
chega a uma kumpania, presume-se que alguém irá alimentá-los
e fornecer-lhes um lugar para ficar.
As obrigações se aplicam aos companheiros rom, e não
aos de fora, os Gaje. Enganar ou roubar de um companheiro
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6
De acordo com relatos de observadores, os ciganos raramente trapaceiam ou
roubam de seus companheiros ciganos. Veja fontes citadas em Leeson (2013,
284).
7
Sutherland (1975, 200), relatando sobre a visão de alto status que Vlach
Rom tinha de um grupo de baixo status. “Staley e Janet [uma funcionária do
bem-estar local] trabalharam juntas para que a comunidade parasse de furtar.
Eles haviam encontrado um lugar onde queriam ficar, e Staley e os outros
dois líderes, John Davis e George Lee, garantiram que ninguém infringisse a
lei. Qualquer um que o fizesse tinha que deixar a cidade.” (Sutherland 2017,
6). Para uma abordagem semelhante dos muçulmanos xiitas modernos:
“Q197: É permitido a um muçulmano roubar dos incrédulos em seu país
[Europa] ou enganá-los ao tomar suas propriedades, empregando meios que
são conhecidos por eles (os incrédulos)?" A: “Não é permitido roubar de suas
propriedades privadas e públicas, e da mesma forma danificá-las ou destruí-
las (propriedades), se isso manchar a reputação do Islã e dos muçulmanos em
geral.” (al-Seestani 2014). A resposta continua com restrições adicionais.
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Aplicação
Os mecanismos pelos quais as regras são aplicadas são a
disputa e a ameaça de ostracismo. Sutherland relata o caso de
uma rivalidade de John Marks, um de seus informantes:
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11
“Em geral, a maneira mais aceita e comum de resolver qualquer problema
que surja entre duas famílias é que as famílias deixem a kumpania até que
possam voltar em paz.” (Sutherland 1975, 50).
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Status
13
Sutherland 1975, 98.
14
Sutherland 1975, 150.
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Legislação
Romania é uma combinação de lei, religião e crença
médica — a violação traz sanções sociais, mas também má sorte
e problemas de saúde. Não está escrito, existindo na memória do
indivíduo cigano, especialmente na do velho — uma das fontes
de seu status. Não há legislatura. Mas é possível, embora
incomum, que uma grande reunião de ciganos concorde com
uma mudança e que o acordo seja geralmente aceito.
Romnichals
Os romnichals, a maior das comunidades ciganas
britânicas, falam um dialeto do inglês com muitas palavras
15
Sutherland 1975, 203.
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Kaale
Os kaale, os ciganos finlandeses, uma pequena população
isolada durante séculos, levam a atitude vlach rom em relação à
metade inferior do corpo ainda mais longe do que outros
ciganos, recusando-se a admitir abertamente os fatos da
16
O casamento por fuga ocasionalmente ocorre entre os vlach rom, mas é
fortemente reprovado. Sutherland 1975, 230-234.
17
Este relato é baseado no capítulo 3 de Weyrauch 2001, escrito por Thomas
Acton, Susan Caffrey e Gary Mundy. Para o sistema de disputas islandês,
veja o capítulo 10.
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Direito Cigano
vlach rom, mas a fuga também existe para eles como uma opção
desfavorecida.19
Explicando as Diferenças
Quais são as razões para as diferenças entre os diferentes
grupos ciganos, todos provenientes da mesma população e
cultura originais? Vários estudiosos propuseram teorias; não
está claro quais, se alguma, estão corretas.
Thomas Acton, Susan Caffrey e Gary Mundy, os autores
do Capítulo 3 de Gypsy Law, cujo relato do sistema romnichal é
refletido na minha descrição acima, oferecem uma explicação
conjectural das diferenças entre os romnichals e os vlach rom.
Eles argumentam que o sistema de disputas depende em parte da
capacidade, quando tudo o mais falha, de uma parte de se afastar
do outro e da questão deles; na ausência da possibilidade de
evitação, o risco de violência grave torna-se demasiado grande.
Os ciganos foram, durante a maior parte de sua história, uma
população migratória. Mas, eles argumentam, houve pelo menos
uma grande exceção, o período de quatro séculos durante o qual
os vlach rom foram feitos de servos na Romênia. A servidão
significava a perda de mobilidade. Eles concluem que o sistema
de disputas representa a instituição original, o kris e as
instituições associadas uma adaptação às circunstâncias
19
“Se o sogro o quebrar, não há muito que as crianças possam fazer sobre
isso, exceto alguns casos no passado, em que os filhos fugiram para se casar,
fugiram umas com as outras e se perderam por um ano de ambos os pais de
ambos os lados e fizeram um casamento.” “Eles podem ter que desaparecer
por um tempo até que as coisas esfriem e eles tenham tido um bebê. Quando
o primeiro bebê nasce, os Xanamik [pais e avós do casal] fazem um esforço
maior para aceitar o casamento." (Sutherland 2017, 14, 61. A primeira
citação é de cigano John Marks, a segunda de Sutherland).
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20
Marushiakova e Popov (2007, 72), discutindo a observação dos grupos da
Europa Central e Oriental.
70
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Marushiakova e Popov 2007, 75-77. Veja também Fraser (1995, 50-51)
para instituições em outros lugares em que um senhor feudal tinha direito a
receitas dos ciganos locais.
22
“Considere, por exemplo, o decreto real do príncipe moldavo Michael
Sutsu, datado de 25 de março de 1793: ‘[...] todo tipo de briga entre eles [os
ciganos, os escravos do príncipe] e seu julgamento para dar e executar a
sentença está no poder de seus líderes, que devem encontrar a justiça de
acordo com seus próprios velhos costumes [sic], e os governadores e outros
dignitários não devem interferir, a menos que haja um caso de morte.’ (Potra
1939: 327—31).” (Marushiakova e Popov 2007, 76).
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Estratégia Defensiva
Uma maneira pela qual um sistema integrado pode se
defender contra o sistema em que está integrado é usar o
24
Sutherland 1975, 266.
25
Orwell 1944, 122.
73
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26
Para uma discussão muito mais extensa desta questão no contexto dos
problemas enfrentados pelos governos que tentam controlar as suas
populações, veja Scott 1998.
27
Para uma descrição mais detalhada das maneiras pelas quais as
comunidades ciganas restringem as informações sobre si mesmas e controle
sobre elas pelos estados em que vivem, veja Weyrauch 2001, 52-3. Para um
exemplo diferente de uma comunidade que aplica suas regras em violação da
lei estadual, às vezes por força letal, veja o relato de como os Khap
Panchayet, autoridades comunais, impõem regras conjugais restritivas entre
os Jat em Haryana, na Índia moderna, em Chaudhry 2014.
28
A Enciclopédia do Holocausto contém um relato detalhado do holocausto
cigano.
74
Direito Cigano
29
Sutherland 1975, 21.
30
Sutherland 1975, 26.
31
Sutherland 2017, 31.
75
3
Os Amish1
As comunidades amish não são relíquias de uma época
passada. Em vez disso, são demonstrações de uma forma
diferente de modernidade. (Hostetler 1980)
1Este capítulo foi inspirado por um artigo sobre o assunto de Kelly Baxter,
escrito para meu seminário.
2Os números são para os amish da antiga ordem, da Wikipédia.
77
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
A Congregação
A unidade básica de uma comunidade amish é a
congregação, composta geralmente de vinte e cinco a quarenta
famílias; não há nível superior dentre tais congregações que
tenha autoridade sobre a congregação individual. Uma vez que
os amish não estão dispostos a construir igrejas ou casas de
reunião, o número de famílias em uma congregação é limitado
ao número que caberá em uma grande casa de fazenda ou num
celeiro.4 Cada congregação tem sua própria versão do Ordnung.
Algumas congregações adotam versões mais rígidas do Ordnung
e outras adotam versões menos rigorosas. As congregações
cujos Ordnungen são quase similarmente rigorosos podem estar
em comunhão entre si, tornando-as parte de uma única afiliação.
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Os Amish
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
O Ordnung
O Ordnung especifica as regras que os membros da
congregação devem cumprir. Normalmente, eles incluem
proibições de atividades como entrar com uma ação judicial,
servir em um júri ou ingressar em uma organização política,
juntamente com o uso de tecnologias modernas vistas como
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Os Amish
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
13Um ano para uma morte na familiares próximos, seis meses para um avô,
três meses para um tio ou tia, seis semanas para a morte de um primo.
Compare com os períodos semelhantes, além dos requisitos de luto mais
severos existentes sob a lei imperial chinesa.
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Os Amish
Aplicação
Se o bispo ou os ministros souberem que um membro está
violando o Ordnung, o primeiro passo é visitá-lo. Se ele
expressar arrependimento, a ofensa será ignorada; isso é o que
Kraybill descreve como uma punição de “nível um”.
Se a violação continuar, os ministros realizam uma
reunião no próximo culto de domingo — os cultos são
realizados em domingos alternados — no qual o bispo
recomenda uma punição. Isso é seguido por uma audiência
pública na presença dos membros da congregação na qual o réu
pode apresentar sua versão da controvérsia. Ele é então
convidado a sair e, se sua defesa não mudou a conclusão do
bispo, o bispo propõe a punição à congregação, que, por sua
vez, vota.14 Para que a punição seja imposta, ela deve ser aceita
por unanimidade pela congregação — e geralmente assim
ocorre.
14Em alguns grupos amish, o ministro pode tomar a decisão sem primeiro
colocá-la à congregação, mas essa é a prática da minoria. (Nolt e Meyers
2007, 69).
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Os Amish
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Juventude
Espera-se que as crianças Amish ajudem o resto da família
com as tarefas dentro de sua capacidade — sendo babá dos
irmãos mais novos, ajudando a capinar, ordenhando — desde
tenra idade. Elas vão à escola, mas apenas até a oitava série,
tendo os amish persuadido primeiro as autoridades estaduais e
depois a Suprema Corte a conceder-lhes uma isenção parcial das
leis de escolaridade obrigatória. Após a oitava série, eles são, na
verdade, aprendizes de adultos da comunidade, mais comumente
de seus pais, aprendendo a administrar uma fazenda e uma casa
e, em alguns casos, aprendendo um ofício.
O Ordnung só se torna aceito e obrigatório pelos membros
da congregação quando, como adultos, eles são batizados. Há,
portanto, um período de cerca de dezesseis até vinte anos ou
mais quando um jovem adulto é, até certo ponto, dependendo da
congregação, livre para agir de maneiras normalmente
proibidas, um período referido como Rumspringa. Isso pode
incluir ir à cidade para ver um filme, frequentar festas, trabalhar
na cidade em empregos que de outra forma seriam vistos como
inadequados, até mesmo (disfarçadamente) obter uma carteira
de motorista e dirigir um carro.17 Isso oferece uma oportunidade
para os jovens compararem a vida fora da comunidade amish
com a vida dentro da comunidade antes de tomar sua decisão
final. Na maioria das vezes, no entanto, os jovens amish em
Rumspringa estão interagindo apenas com outros jovens amish.
Essa decisão final é aceitar o batismo e se submeter ao
Ordnung. Antes da cerimônia, os ministros oferecem ao jovem a
oportunidade de desistir, dizendo-lhe que “é melhor não fazer
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4
Direito Judaico: Uma
Breve Explicação
O direito judaico pode ser o sistema legal mais bem
registrado na história do mundo; existem centenas de milhares,
talvez milhões, de páginas de fontes primárias sobreviventes
cobrindo cerca de dois mil e quinhentos anos. Elas incluem
escrituras, compilações de regras legais, tratados e responsa —
o equivalente a casos.1 Este capítulo fornece apenas uma breve
explicação, baseada principalmente em uma fonte medieval, a
Mishné Torá de Maimônides, e uma fonte moderna, Jewish
Law: History, Sources, Principles de Menachem Elon.
História
A dinastia dos reis de Israel, dos quais Salomão e Davi são
os mais famosos, terminou e o primeiro Templo foi destruído
pelos babilônios em 586 a.C. Após o fim do cativeiro
babilônico, Israel estava sob domínio persa e depois grego
(selêucida), com o poder local nas mãos de sucessivos pares de
autoridades religiosas. A revolta dos macabeus contra os
selêucidas, 167-160 a.C., restabeleceu Israel como um reino
independente com seu próprio rei.
Após a conquista romana em 63 a.C. o reino de Israel
deixou de existir como um estado independente, tornando-se
1Responsa eram respostas de juristas, inicialmente os geonim, os chefes das
academias babilônicas, a perguntas enviadas a eles. Elon cita uma estimativa
de que várias centenas de milhares sobreviveram.
99
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2Uma exceção pode ser o reino de Khazar, onde se diz que a realeza e a
nobreza se converteram ao judaísmo em algum momento entre 740 e 920
d.C.
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Direito Judaico
8Precisamente qual é a implicação desta parte da história não está claro, pelo
menos para este leitor. Uma explicação mais detalhada e discussão pode ser
encontrada em http://daviddfriedman.blogspot.com/2010/07/furnace-of-
akhnai-story-and-puzzle.html.
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Direito Judaico
Maimônides:
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13“Em poucos anos, Bet Yosef, juntamente com o Shulhan Arukh, tornou-se o
código oficial e obrigatório da Halakhah em toda a diáspora oriental, exceto
no Iêmen, onde a comunidade judaica geralmente seguia a lei estabelecida
por Maimônides.” (Elon 1994, 3:1373)
14Elon 1994, 3:1282-3.
15William Gelley, comunicação pessoal.
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Direito Judaico
O Problema da Legislação
Um segundo problema enfrentado por um sistema baseado
em um texto legal fixo e autoritário é como alterar regras
inadequadas às condições atuais ou adicionar novas regras para
lidar com questões não contempladas no original. A resposta
bíblica é clara: nenhum mandamento deve ser removido,
nenhum mandamento deve ser adicionado,16 a lei deve
permanecer como Deus a fez.
A primeira e mais simples solução para este problema foi
a interpretação (Midrash). Muito do texto era indiscutivelmente
ambíguo, então os estudiosos podiam interpretá-lo e o
interpretaram para se adequar ao que eles acreditavam que devia
dizer. Uma vez que o próprio texto autorizava os estudiosos a
resolver a ambiguidade por maioria de votos, eles poderiam
razoavelmente alegar que não estavam modificando a Torá, mas
obedecendo-a. Com o tempo, desenvolveram-se regras
elaboradas de interpretação, algumas das quais tornaram
possível ler em detalhes o texto das ordens adicionais dos
versículos bíblicos.
O apoio para esta prática foi fornecido pela doutrina da
Torá oral. Afirmava-se que isso era um suplemento da Torá
escrita transmitida por Deus a Moisés no Monte Sinai e de
Moisés em uma cadeia de transmissão oral até estudiosos
16Bal tigra (“não tirarás”), a proibição de tirar, Bal tosif (“você adicionarás”)
a proibição de acrescentar aos mandamentos (mizvot) estabelecidos na Torá.
Ambos em Deut. 4:2, 13:1.
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17Os saduceus rejeitaram a ideia da Torá oral, sustentando que a lei era
derivada apenas do texto escrito. Eles perderam para os fariseus,
desaparecendo por volta de 70 d.C. Sua posição foi posteriormente revivida
pelos caraítas.
18Maimônides 1949b, Tratado 3, capítulo 7, 157-161.
19“Nunca houve um menino declarado filho desobediente e rebelde, e nunca
haverá. Por que então a lei foi escrita? Para que você possa estudá-lo e
receber uma recompensa [...].” (Talmude da Babilônia: Sinédrio 71A).
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Direito Judaico
temporária que permite uma conduta proibida pela Torá quando tal legislação
é uma precaução necessária para restaurar as pessoas à observância da fé.
Algumas legislações originalmente adotadas ou justificadas como medida
temporária tornaram-se parte estabelecida da lei judaica.
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116
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26Por exemplo: “É hora de agir para o Senhor, pois eles violaram sua Torá”.
(Salmos 119:126) foi interpretado como autorizando a violação da Torá
quando era necessário agir para o senhor. A melhor defesa de tal
interpretação que já vi, de dentro do sistema de crenças, foi fornecida por um
correspondente online: “O Perfeito que fez a Lei também fez as brechas”.
27Muito disso é paralelo aos desenvolvimentos posteriores no direito
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Direito Judaico
Autoridade Comunal
Com o tempo, uma outra questão surgiu nas comunidades
da diáspora — a legislação comunal. Tanto a lei bíblica quanto a
rabínica se aplicavam a todos os judeus em todos os lugares. Se
as circunstâncias especiais de uma comunidade exigissem regras
legais especiais, como elas deveriam ser produzidas? Se a
comunidade não contivesse um número suficiente de indivíduos
instruídos na lei, quem as produziria?
A solução foi sustentar que as autoridades comunais
poderiam funcionar tanto como um tribunal quanto como uma
legislatura. Uma base para isso foi o ditado talmúdico
sustentando que o judiciário tem o direito absoluto de transferir
e anular a donidade e outros direitos monetários.31 Embora isso
fosse limitado ao tribunal superior ou à maior autoridade da
geração, argumentava-se que cada comunidade era seu próprio
tribunal superior para as questões pertinentes a si mesma. Outra
base era a ideia de que a comunidade poderia ser considerada
como uma parceria legal, portanto, poderia determinar as
questões, assim como as disputas entre os parceiros poderiam
ser resolvidas por maioria de votos.32
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para que ele prevaleça — desde que a outra parte está disposta a
jurar.44
Isso sugere uma maneira pela qual requisitos como as
regras kashrut, regras que determinam o que um judeu religioso
pode ou não comer, podem servir a um propósito secular. A
observância cuidadosa de tais regras é prova de que o
observador acredita na religião, uma vez que está disposto a
arcar com custos substanciais para se conformar a seus
requisitos. O fato de ele acreditar na religião significa que ele
estará relutante em jurar falsamente, por medo de punição
sobrenatural. Portanto, os requisitos fornecem aos tribunais um
detector de mentiras, muito útil para resolver disputas.
O tratamento desses casos em Maimônides sugere duas
coisas. Primeiro, as partes relutam em jurar falsamente, então a
disposição de jurar fornece alguma evidência da veracidade do
que juram. Segundo, as partes podem relutar em jurar até
mesmo o que acreditam ser verdade, talvez porque temam que,
se cometerem um erro, estarão sujeitas a punição sobrenatural
ou que, se o tribunal concluir erroneamente que eles estavam
mentindo, eles não terão a opção de jurar em algum caso
posterior e mais importante.45 Os juramentos também
desempenham um papel semelhante em outros sistemas
do nome de Deus.
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Direito Judaico
Substância Legal
Este capítulo até agora concentrou-se quase inteiramente
em como a lei se desenvolveu e foi justificada. Os leitores
interessados na substância da lei podem encontrar um relato
detalhado na Mishné Torá de Maimônides. O volume 4 cobre a
lei do casamento, os volumes 11 a 14 cobrem outros tópicos de
um código de direito moderno, incluindo direito de torts,
criminal, contratual e de propriedade, evidências e punições. A
maior parte dos outros volumes lida com a lei religiosa. As
seções a seguir esboçam algumas partes da lei.
Momsers e Bastardos
O hebraico “momser” às vezes é traduzido como
“bastardo” e tem esse significado em alguns contextos
modernos. Na lei judaica, entretanto, significava alguém cujos
pais não apenas não eram casados, mas também não podiam ser.
Um exemplo seria o filho de uma união incestuosa. Outro seria
uma criança produzida pelo adultério de sua mãe. Seu pai não
poderia ter se casado com sua mãe porque ela já era casada; a lei
judaica permitia várias esposas, mas não vários maridos. Um
terceiro seria filho de um homem com a irmã de sua esposa; a
lei não permitia que um homem se casasse com duas irmãs. Um
bastardo que não era um momser, filho de um casal que não era
46Minha descrição simplifica e mescla elementos de duas versões da fraude,
uma inicialmente relatada no blog Volokh Conspiracy, a outra objeto de uma
ação judicial contra os perpetradores.
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Direito Judaico
Tort
A lei judaica classifica os torts por analogia a quatro
exemplos: o boi escornador, o boi pastando, o buraco, o fogo.49
Considere um boi que escorna outro animal. Em
circunstâncias normais, o dono do boi deve metade dos danos
causados ao animal ferido até ao valor do animal que escornou;
a suposição é que o proprietário não poderia ter antecipado o ato
e, portanto, não é totalmente responsável. Se, no entanto, o boi
escornou repetidamente no passado, o proprietário foi avisado
do perigo e, portanto, é responsável pelo valor total dos danos
— o equivalente a negligência no common law anglo-
americano. E há cinco espécies, entre as quais o lobo e o leão,
para as quais o proprietário é considerado automaticamente
advertido, pelo que é sempre responsável pela totalidade dos
danos. O equivalente moderno é a responsabilidade estrita por
atividades ultraperigosas — como manter um leão de estimação.
Se o boi causar dano ao pastar na plantação de outra
pessoa ou pisar na propriedade de outra pessoa e feri-la, o
proprietário é responsável pelo valor total do dano; essas são
49Em cada um desses casos, Maimônides fornece uma discussão detalhada
cobrindo uma ampla gama de situações variantes; estou relatando apenas a
versão mais simples das regras relevantes.
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Furto e Assalto
A lei judaica distingue entre furto (tomada discreta) e
assalto (tomada flagrante). O ladrão deve à vítima o dobro do
valor do que foi levado,50 salvo se confessar voluntariamente,
caso em que apenas é obrigado a pagar o valor.
50A menos que seja uma ovelha, tomada e abatida, pela qual ele deve quatro
vezes o valor, ou um boi, pelo qual ele deve cinco vezes — em ambos os
casos devido ao texto da Torá. O menor de idade ou o escravo que rouba
deve apenas o valor do que roubou e o menor que rouba alguma coisa e a
perde não deve nada. Tanto o menor quanto o escravo, porém, estão sujeitos
a castigos corporais.
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Direito Judaico
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Ferir
Maimônides inicia o capítulo “Sobre Ferimentos e Danos”
listando cinco efeitos de uma lesão que requerem compensação:
dano, dor, tratamento médico, ociosidade forçada e humilhação.
Ele então explica em que circunstâncias a pessoa responsável
pelo ferimento deve uma compensação por algumas ou todas
essas categorias e como a compensação deve ser calculada. Por
exemplo:
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Direito Judaico
Assassinato
O assassinato comum é um crime capital não remissível
por um pagamento em dinheiro, mas há possíveis complicações.
Alguém que mata indiretamente, por exemplo, contratando um
assassino, não está sujeito à pena de morte sob a lei religiosa,
embora um rei de Israel possa condená-lo à morte por decreto
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53O tratado contém uma extensa discussão sobre os direitos do (na época de
Maimônides e inexistente no milênio anterior) rei de Israel. Maimônides
escreve: “[…] para que este compêndio inclua todas as leis da Torá de
Moisés, nosso professor, tenham ou não relevância prática neste tempo de
exílio.” (Maimônides 1971, Introdução, 1b). “Maimônides aspirava restaurar
o alcance da Halakhah à sua antiga glória — como na Mishná — e incluiu
em seu código (a Mishné Torá) todo o corpus juris do direito judaico. Seu
trabalho, no entanto, continua sendo um esforço isolado; tanto antes quanto
depois dele, a codificação foi limitada às partes da lei que têm relevância
prática.” (Elon 1994, 3:1095). Algumas passagens antecipam explicitamente
o reavivamento do reino de Israel. (Maimônides 1949b, tratado 5, capítulo
11, 238-40).
54Maimônides 1954, 199-200.
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Direito Islâmico
5
Direito Islâmico
A primeira e mais importante coisa a perceber sobre a lei
islâmica é que, vista em seus próprios termos, é a lei de Deus,
não do homem. Nenhuma sociedade desde a morte de Maomé
poderia impor a Shari'a porque, estando ausente a inspiração
divina, nenhum ser humano tinha conhecimento completo e
correto de seu conteúdo. Estritamente falando, o que os tribunais
islâmicos tradicionais impunham não era a Shari'a, a lei de
Deus, mas fiqh, jurisprudência, a imperfeita tentativa humana de
deduzir de fontes religiosas o que a lei humana deveria ser.1
Esse fato ajuda a explicar como o islamismo sunita foi capaz de
manter quatro diferentes, mas mutuamente ortodoxas, escolas de
direito. Só poderia haver uma resposta correta para o que Deus
queria que os humanos fizessem, entretanto, poderia haver mais
de um palpite razoável. De acordo com uma tradição
amplamente aceita, um Mujtahid, um estudioso do direito que
deduziu a lei do Alcorão e as tradições a partir do que Maomé
fez e disse, recebia duas recompensas no céu se acertasse, uma
se errasse.
Isso também explica a natureza da divisão quíntupla dos
atos na lei islâmica. Um ato obrigatório é um ato que Deus
1“Alguns, em particular os estudiosos muçulmanos mais jovens, tendem a
usar 'Shari'a' como um nome para a vontade divina como só Deus a conhece;
uma lei divina abstrata apenas percebida por Ele. […] o que os juristas
formularam com base nesta Revelação, embora sua razão seja apenas ‘lei’
como ciência, fiqh.” (Vikør 2005, 2). É assim que uso os termos neste
capítulo, já que me parece a melhor maneira de entendê-los. Como Vikør
deixa claro, nem todos os estudiosos muçulmanos concordam.
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Direito Islâmico
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3Schacht (1986, capítulo 10, 69-75) defende o fechamento dos portões, mas
sua posição foi contestada por Wael Hallaq em Hallaq 1984 e sua visão de
que o fechamento completo nunca aconteceu parece agora ser geralmente
aceita. Pelo relato de Hallaq, era geralmente aceito em algum momento do
século IV/X que não seriam fundadas mais escolas de direito, não havendo
mais mujtahids com a habilidade dos fundadores de mesmo nome, mas
restaram muitos mujtahids capazes de fazer ijtihad dentro das quatro escolas
existentes. Em algum momento no final do século V/XI, início do século
VI/XI, começou a ser debatido se os mujtahids poderiam ser extintos e o
ijtihad, portanto, impossível, e nos séculos posteriores alguns estudiosos
argumentaram que isso aconteceu, enquanto outros o negaram.
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9Assim, Wael Hallaq critica Schacht enquanto defende uma posição que
parece, pelo menos para este observador não especialista, diferir da dele
apenas em detalhes:
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Direito Islâmico
As Escolas de Direito
As escolas de direito nas quais os estudiosos jurídicos
sunitas se dividiram foram associadas a obra de um único
estudioso de quem tiraram seu nome: Maliki, Hanbali, Shafi'i e
Hanafi.10 Eles concordaram com o esboço geral da lei, porém
discordaram quanto aos detalhes. Assim, por exemplo, a
punição por beber vinho era de oitenta chicotadas de acordo
com três das escolas, quarenta de acordo com a quarta (Shafi'i).
Três escolas interpretam a regra como proibindo o consumo de
qualquer embriagante, uma (Hanafi) como proibindo apenas o
consumo de vinho e embriaguez. A escola Shafi'i exige que o
zakāt, o imposto religioso, seja distribuído igualmente entre as
oito categorias de destinatários, enquanto a escola Hanafi
permite que seja distribuído para todos, alguns ou apenas uma
categoria.11
Embora as escolas diferissem em detalhes, elas se
consideravam mutuamente ortodoxas.12 Nesse aspecto, como em
outros, a história da lei islâmica tanto se assemelha quanto
difere daquela da lei judaica. As escolas de Hillel e Shammai
toleraram uma à outra por várias gerações, mas eventualmente a
escola majoritária suprimiu a minoritária. No caso islâmico
paralelo, as quatro escolas da lei sunita continuaram sua
tolerância mútua até os dias atuais.
Os dois grandes ramos do Islã são os sunitas e os xiitas,
divisão que remonta a uma disputa pela sucessão do califado
10Houve várias outras escolas sunitas que acabaram extintas.
11Para obter detalhes, veja Donaldson 2000, 60-63.
12A situação em relação às escolas de direito xiitas é mais complicada.
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Gerber 1994.
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O Conteúdo do Fiqh
As partes da lei religiosa islâmica que lidam com delitos
criminais reconhecem três categorias, definidas pela natureza da
punição. Os delitos Hadd, principalmente derivados das regras
do Alcorão, têm punições fixas. Os delitos Ta'zir têm punições
definidos a critério do juiz. Os delitos Jinayat, homicídio e
lesões corporais, têm resultados determinados em parte por lei,
em parte por decisões tomadas pela vítima ou seus parentes, e
parecem basear-se nas regras da disputa de sangue árabe pré-
islâmica.
Hadd
Há cinco delitos hadd: relação sexual ilegal (zina), falsa
acusação de relação sexual ilegal (kadhf), beber vinho (shurb),
roubo (sariqa) e roubo na estrada (qat'al-tariq), que inclui
assalto à mão armada de uma casa. Todos são considerados
ofensas contra Deus, embora em alguns casos também contra
uma vítima humana, e por isso não podem ser perdoados.
19Não estou oferecendo nenhuma resposta para a interessante questão de
quais foram essas causas.
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Ta’zir
Para delitos ta'zir, a punição cabia ao juiz, com opções
que iam desde uma repreensão particular até a morte, mas
limitada, na visão da maioria das escolas, a menos do que a
punição que seria imposta (de acordo com alguns em um
escravo, para alguns em um homem livre) pelo delito hadd
correspondente. A prova é pelo depoimento de duas
testemunhas, uma das quais pode ser mulher, ou por confissão
não retratável; alguns estudiosos do direito sustentaram que o
juiz poderia agir com base em seu próprio conhecimento,
mesmo sem tal prova.
A maior parte dos delitos criminais no fiqh são tratados
como delitos ta’zir, incluindo delitos não-hadd e delitos hadd
que, por uma razão ou outra, não atendem aos padrões rígidos
de hadd. Kadhf é apenas um crime hadd se cometido contra um
muçulmano, mas ta'zir pode ser usado para proteger não-
muçulmanos contra acusações não comprovadas de relações
sexuais ilegais.
Jinayat
A parte do fiqh que se aplica ao homicídio ou lesão
corporal é chamada de jinayat e parece ser baseada nas regras
pré-islâmicas da disputa de sangue árabe. A acusação é
apresentada pela vítima, se estiver viva, ou pelo parente mais
próximo, se estiver morta. A punição é retaliação ou dinheiro de
166
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dez anos de renda em um nível médio, não muito longe de minha estimativa
para o wergeld islandês no capítulo 10 (Vikør 2005, 289). Na Arábia Saudita
moderna, o diya por um assassinato deliberado custa mais de cem mil
dólares.
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Ridda
Há um crime que não se encaixa claramente nas categorias
que listei — ridda, apostasia, o crime de abandono da religião
Islã. Alguns vêem isso como um crime hadd, outros como um
crime a ser tratado sob siyasa, regulamentos administrativos
criados pelo estado.
A visão usual é que a apostasia é um crime capital, uma
posição baseada na suposta prática de Maomé. Algumas
autoridades sustentam que pode ser punido sem julgamento,
outros que o apóstata tem direito a um julgamento e uma escola
que o apóstata deve ter três dias para se arrepender e retornar ao
Islã. Mulheres apóstatas devem ser presas e, de acordo com
algumas escolas, espancadas até que se retratem.
O Alcorão condena o apóstata ao inferno, mas não
prescreve nenhuma punição. Alguns estudiosos argumentam que
a pena de morte era uma punição não por abandonar o Islã, mas
pelo crime (historicamente intimamente relacionado) de se
rebelar contra ele, e que a crença por si só não deveria ser
punida. Por outro lado, uma escola afirma que não apenas a
apostasia do Islã é proibida, mas também a apostasia de
qualquer uma das outras religiões do livro.33
Lei do Casamento
Sob a lei islâmica, o casamento é tratado como um
contrato. Marido e mulher são legalmente distintos, cada um
com o direito de possuir propriedades. A propriedade da esposa
inclui o dote acordado como parte do contrato de casamento.
33“Paraa escola Shafi’i mais casuística, qualquer ato de apostasia era fatal,
mesmo, digamos, do judaísmo ao cristianismo.” (Forte 1999, 161). Mas isso
claramente não se aplica à conversão ao Islã.
170
Direito Islâmico
Tributação
Os dois impostos do Alcorão são jizya, um imposto anual
por cabeça pago por não-muçulmanos sob domínio muçulmano,
e zakāt, um imposto sobre propriedades produtivas pertencentes
a muçulmanos.34 Supõe-se que este último vá para um conjunto
específico de categorias de destinatários. O pagador de imposto
pode pagá-lo ao governante para distribuir por ele, a um
intermediário que recebe uma parte para lhe pagar pelo trabalho
de distribuir o dinheiro ou às próprias categorias de destinatários
designadas. Na lei do xiismo duodecimano, o pagamento vai
34O zakāt consiste principalmente em um imposto sobre a riqueza de 2,5%
sobre o ouro, prata e mercadorias para comércio, um imposto de renda de
10% sobre as culturas cultivadas em terras naturalmente irrigadas e de 5%
sobre as culturas cultivadas em terras irrigadas. (Al-Nawawi 2009, Capítulo
4).
171
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
172
Direito Islâmico
esposa recusar relações sexuais com seu marido, os parentes do marido têm o
direito de devolvê-la a seus parentes e exigir o reembolso do dote de
casamento pago por ela. “[…] ela não dormiria com ele como esposa, apenas
como irmã. […] Então, entrei em contato com o pai dela e disse que queria
meu dinheiro de volta.” (Sutherland 1975, 293).
39Ambos, por exemplo, assumem que o casamento e as relações sexuais às
173
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
174
Direito Islâmico
175
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
176
Direito Islâmico
177
6
Quando Deus é o
Legislador
Dois dos sistemas jurídicos que examinamos afirmam ser
baseados em regras estabelecidas por Deus — a lei judaica na
Torá, a lei islâmica no Alcorão e a prática divinamente inspirada
do profeta Maomé. Essa afirmação levanta problemas menos
graves em sistemas jurídicos baseados nas decisões de um
governante ou legislador. Problemas semelhantes ocorrem com
um sistema como o direito constitucional dos Estados Unidos. A
Constituição não afirma ser divinamente inspirada, mas é
frequentemente tratada na cultura jurídica como se fosse.
Embora seja possível alterá-la por meio da ação humana, o
processo é complicado.
Um problema ocorre quando Deus erra, quando os
humanos que implementam o sistema legal relutam ou não
querem seguir alguns de seus mandamentos. Considere as
instruções em Deuteronômio (21:18-21) para lidar com um filho
desobediente:
179
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
McDonald v. Chicago, 561 U.S. 3025, 130 S.Ct. 3020 (2010) foi o primeiro
caso em que a Suprema Corte considerou que a Segunda Emenda foi
incorporada por meio da 14ª Emenda e, portanto, aplicada aos governos
estaduais, bem como ao governo federal.
180
Quando Deus é o Legislador
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
5Esta
é apenas uma lista parcial das condições exigidas fornecidas em
Maimônides 1949b, Tratado 3, Capítulo 7.
182
Quando Deus é o Legislador
183
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
7Uma exceção foi United States v. Lopez, que sustentou que a cláusula de
comércio interestadual não era base suficiente para uma lei federal que
tornava ilegal para qualquer indivíduo possuir intencionalmente uma arma de
fogo em um local que ele soubesse ou tivesse motivos razoáveis para
acreditar que era uma zona escolar.
184
Quando Deus é o Legislador
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
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Quando Deus é o Legislador
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
190
7
Direito Pirata
Os piratas caribenhos do início do século XVIII (c. 1716-
1726) são os criminosos mais notórios da história. Suas fileiras
incluíam Barba Negra, cujo nome verdadeiro era Edward Teach,
Black Bart Roberts, que conquistou mais prêmios do que
qualquer outro pirata da era de ouro, e Calico Jack Rackam, que
inspirou o personagem de Johnny Depp, Jack Sparrow, na
franquia de filmes Piratas do Caribe de Walt Disney. Apenas a
máfia se aproxima da celebridade criminosa dos piratas
caribenhos, mas um grande número de crianças não se veste de
mafioso para coletar doces no Halloween.
A pirataria do Caribe era conjuntamente produzida. Um
navio pirata de um homem teria dificuldade em desatracar, sem
falar um sufocante navio mercante armado. A pirataria bem-
sucedida necessitava da cooperação de uma tripulação pirata
considerável. O navio pirata do Caribe era tripulado por 80
homens, e as maiores tripulações consistiam em muitas
centenas. Isso levanta a questão de como piratas, que, como
criminosos, não podiam depender do governo para prover a lei e
ordem de sua tripulação e não havia compunção em matar e
roubar por ganho próprio, conseguiram cooperar um com o
outro para envolver-se na pirataria.1
191
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
192
Direito Pirata
Problemas Piráticos
Os piratas eram foras da lei. Os governos os rotularam de
hostes humani generis — inimigos de toda a humanidade — e
negaram-lhes as proteções legais à vida e à propriedade de que
gozavam os cidadãos legítimos. Um pirata “não pode reivindicar
a Proteção de nenhum Príncipe, o privilégio de nenhum País, o
benefício de nenhuma Lei”, declarou um oficial colonial
britânico. “A ele é negada a humanidade comum e os próprios
direitos da natureza, com quem nenhuma fé, promessa ou
juramento deve ser observado, nem deve ser tratado de outra
forma, do que uma besta feroz & selvagem, que todo Homem
pode legalmente destruir” (The Trials of Eight Persons 1718, 6).
A inabilidade dos piratas em depender da lei criada pelo
governo apresentava um problema crucial para suas tripulações,
do qual a capacidade de pilhar embarcações mercantes dependia
da habilidade de seus membros para viver e trabalhar juntos por
períodos estendidos no mar. Se a inclinação dos piratas para o
roubo e violência se estendesse para suas interações um com o
outro, a cooperação entre suas tripulações seria impossível,
fazendo a pirataria bem-sucedida impossível também.
A natureza dos lugares de vivência e trabalho dos piratas
— navios piratas — exacerbavam esse problema. Navios piratas
eram navios mercantes convertidos, que se diferenciavam de
suas prévias encarnações em dois aspectos importantes: eles
carregavam aproximadamente seis vezes mais homens e
quantidades vastamente maiores de armas e pólvora. Portanto,
navios piratas eram altamente explosivos, dentro dos quais
velhos marujos eram apertados como sardinhas. Nesse
ambiente, um conflito a bordo entre dois piratas que terminasse
193
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
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Direito Pirata
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Direito Pirata
4I.e., libras.
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202
Direito Pirata
1735, 42). A ideia dos piratas era agora familiar: para restringir
a autoridade, é útil dividir a autoridade, permitindo que um
cargo “pese e contrapese” o outro.
Preocupados em evitar quaisquer invasões que pudessem
privá-los de sua autoridade, os quartéis-mestres tinham um forte
incentivo para monitorar o comportamento dos capitães e resistir
aos abusos ilegais dos capitães. Como resultado, observou
Johnson, “o Capitão não pode empreender nada que o Quartel-
mestre não aprove. Podemos dizer que o Quartel-mestre é uma
humilde imitação do Tribuno Romano do Povo; ele fala e cuida
do Interesse da Tripulação” (Johnson 1726-1728, 423).
O papel do quartel-mestre a esse respeito era realmente
uma abordagem de melhor prevenir do que remediar, pois a lei
pirata fornecia aos tripulantes um mecanismo mais direto para
controlar seus capitães — o mesmo que fornecia para controlar
seus quartéis-mestres: eleições democráticas. Os tripulantes
elegiam popularmente seus capitães e podiam, e o fizeram,
depô-los popularmente “conforme Interesse ou Humor
adequado” (Johnson 1726-1728, 194). Portanto, cabia aos
capitães piratas cumprir as promessas feitas a suas tripulações,
como a que o capitão pirata Nathanial North fez após sua
eleição para fazer “Tudo o que pode conduzir ao Bem público”
(Johnson 1726-1728, 525).
Dizer que os capitães piratas enfrentavam limites severos
em sua autoridade não é dizer que eles eram membros sem
importância das tripulações piratas. Os capitães eram de vital
importância. Sua importância, no entanto, derivava da
necessidade de um comandante militar habilidoso para uma
pirataria bem-sucedida, e não de qualquer tipo de status real.
Um capitão pirata excessivamente tímido correria muito pouco
risco ao atacar prêmios em potencial; um excessivamente
203
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
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Direito Pirata
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Estratagemas Piráticos
Não é de surpreender que criminosos espertos o suficiente
para antecipar o sistema de governo americano fossem espertos
de outras maneiras. Veja, por exemplo, a chamada “imprensa
pirata”. Como a maioria dos fãs de ficção sobre piratas sabe, as
tripulações piratas eram compostas predominantemente por
marinheiros pressionados — recrutas piratas. Exceto que elas
não eram. Como muitos outros mitos de piratas, a percepção
popular de que as tripulações de piratas pressionavam a maioria
de seus membros para seu serviço é resultado de um ardil pirata
— uma campanha astuta de imagem pública para melhorar a
lucratividade da pirataria.
Os governos do século XVIII puniam a pirataria com
enforcamento. Interessados em evitar esse destino se capturados,
os piratas descobriram uma brecha legal: os tribunais não
condenariam as pessoas que os piratas forçassem a se juntar às
suas tripulações. O banditismo em alto mar era criminoso, mas
ser feito prisioneiro por pessoas que praticavam banditismo em
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Direito Pirata
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8
Direito dos
Prisioneiros
Como você ficaria seguro na prisão? Você pode esperar
que os funcionários da prisão garantiriam sua segurança.
Certamente é o trabalho deles fazer isso, e muitos homens e
mulheres trabalham muito duro para fazer exatamente isso. Os
procedimentos formais, vigilância e arquitetura da prisão
fornecem alguma segurança. As mesmas barras que o
manteriam trancado em sua cela à noite também impediriam a
entrada de prisioneiros predadores. No entanto, em todos os
períodos da vida na prisão que conhecemos, descobrimos
consistentemente que os funcionários fornecem apenas parte —
e às vezes muito pouco — da segurança que os prisioneiros
desejam. Na verdade, os prisioneiros desenvolveram um sistema
legal próprio para ordenar a sociedade dos cativos.
Existem três razões pelas quais os presos não dependem
apenas dos funcionários da prisão para fazer isso. A primeira é
que muitos presos se sentem fisicamente inseguros. Isso é,
talvez, compreensível. Como você se sentiria vivendo cada hora
do dia cercado por estupradores e assassinos? Na margem, você
provavelmente gostaria de gastar algum tempo e energia para
tornar-se menos suscetível de ser vítima de roubo ou violência
de outros prisioneiros.
Em segundo lugar, a natureza das prisões da Califórnia é
que há muitos recursos que são mantidos em comum. As barras
de pull-up, mesas e bancos, quadras de handebol e de basquete
211
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
212
Direito dos Prisioneiros
213
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214
Direito dos Prisioneiros
O Código Desaba
Para que o Código funcionasse de forma eficaz, os presos
tinham que saber a reputação de outros presos. Se os
7
Bunker 2000, 132, 145.
215
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
216
Direito dos Prisioneiros
217
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218
Direito dos Prisioneiros
219
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
9
Trammell 2009, 755.
10
Trammell 2009, 766.
220
Direito dos Prisioneiros
11
Bunker 2000, 56.
221
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Figura 1
Parece que o declínio do preconceito racial no mundo
exterior corresponderia a um declínio do preconceito racial
dentro da prisão, mas não é o caso. O quebra-cabeça se explica
quando se considera o aumento da população carcerária. Em
uma sociedade de estranhos, a maneira menos custosa de
identificar a qual grupo uma pessoa se afilia é a cor de sua pele.
Ver uma pessoa é o suficiente para ter uma boa ideia sobre a
quem reclamar sobre seu comportamento. Essa capacidade de
saber qual grupo é responsável pelas ações de um preso sem
saber que ele facilita o sistema de responsabilidade comunitária.
Em uma época de pequenas populações carcerárias, era muito
mais fácil conhecer outros presos, então a segregação estrita não
era necessária como forma de economizar nos custos de
informação.
Conclusão
As gangues não fornecem esses serviços jurídicos por
causa de suas boas intenções. As gangues impõem sua própria
222
Direito dos Prisioneiros
12
Trammell 2009, 763.
223
9
Sistemas Integrados e
Polilegais
A maioria dos sistemas jurídicos com os quais nós
estamos familiarizados foram aplicados pelos governos, mas
não todos. O direito cigano, o direito amish e, na maior parte
dos últimos dois mil anos, o direito judaico, são sistemas
jurídicos integrados. Sistemas que impõem suas próprias
regras sobre seu próprio povo apesar de estar sob o sistema
jurídico de um governo com muito mais acesso à força.1
Outros exemplos seriam os sistemas jurídicos da igreja dos
Santos dos Últimos Dias (mórmons) e a Nação do Islã
(muçulmanos negros) na América dos dias atuais, a Máfia
Siciliana, e as gangues da prisão descritas no capítulo 8.
Um sistema jurídico integrado enfrenta os mesmos
problemas dos outros sistemas jurídicos, mas alguns
adicionais também. Ele precisa encontrar maneiras de
implementar regras sobre sua população apesar do fato de que
as maneiras pelas quais as regras jurídicas são geralmente
aplicadas, seja pela força ou pela ameaça de força, podem
violar as regras do sobregoverno. Se deseja dar permissão
para atividades proibidas pelas regras do sobregoverno, ele
deve, de alguma forma, impedir que o último conjunto de
regras seja imposto contra sua população. Se os indivíduos
são livres para sair da população controlada pelo sistema
integrado, deve encontrar alguma maneira de dificultar sua
saída ou torná-la indesejável.
1
Alguns sistemas jurídicos, como o da Somália, são não governamentais, mas
não integrados, uma vez que não há nenhum governo acima deles com o
poder de impor suas regras.
225
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
226
Sistemas Integrados e Polilegais
3
Sutherland 1975, pp. 259-260. “Quando devem estar em locais não ciganos,
os ciganos geralmente evitam tocar o máximo possível de superfícies
impuras, mas, é claro, a ocupação prolongada de um local não cigano, como
um hospital ou prisão, significa certa impureza. Nesse caso, a pessoa tenta
diminuir o risco usando copos, pratos e toalhas de papel descartáveis — ou
seja, coisas não usadas por não ciganos.” (Sutherland 2017, 72).
227
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
4
Para a versão moderna, consulte Sutherland 2017, 51. Para evidências de
que a visão não é totalmente injustificada, 86-94.
5
Sutherland 1975, 99.
228
Sistemas Integrados e Polilegais
6
As regras não se aplicam a crianças antes da puberdade, então isso seria um
problema principalmente para crianças mais velhas.
7
Para obter detalhes, veja Hancock 2010, 134-5. Para o colapso gradual das
instituições vlach rom, veja Sutherland 2017.
229
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
8
Hancock (2010, 128-129) estima um milhão no total, cerca de dois terços
deles vlach rom, mais rígidos em manter distância social de outros do que
outros grupos ciganos, portanto menos dispostos a arriscar poluição ou
aculturação enviando seus filhos para escolas não ciganas. Os principais
dialetos vlach rom são mutuamente inteligíveis, ao contrário de alguns outros
dialetos do romani, então o vlach rom parece ser o grupo mais capaz de
imitar a solução amish para o problema. Os romnichals, o próximo maior
grupo, falam uma língua que não é mutuamente inteligível com os dialetos
vlach, inglês com muitas palavras emprestadas do romani. Os grupos ciganos
menores estão, em grande parte, geograficamente concentrados, o que deve
facilitar o estabelecimento de escolas (Hancock 2010, 130-131).
9
Hancock 2010, capítulo 9.
230
Sistemas Integrados e Polilegais
10
Os amish suíços falam um dialeto alemão relacionado ao
Schweizerdeutsch, enquanto os amish alto-alemães falam o alemão da
Pensilvânia, um dialeto alemão que se desenvolveu na Pensilvânia a partir de
vários dialetos de imigrantes.
231
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
11
“Embora muito poucos em número, jovens amish desertores nas fileiras
“mais baixas” tendem a fazer mudanças abruptas, como ingressar no
exército.” (Hostetler 1980, 290). O contexto é uma discussão de grupos que
variam de baixo a alto em uma única comunidade na Pensilvânia.
232
Sistemas Integrados e Polilegais
233
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
16
Sutherland 2017, 105.
17
Sutherland 2017, 8. Sete anos antes da publicação do segundo livro de
Sutherland, publiquei uma postagem no blog argumentando que a tolerância
das sociedades norte-americanas era uma ameaça à manutenção da cultura
cigana: http://daviddfriedman.blogspot.com/2009/12/toleration-vs-
diversity.html
234
Sistemas Integrados e Polilegais
235
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
236
Sistemas Integrados e Polilegais
23
Sutherland 1975, 12, 110-113.
24
“Anteriormente, durante nosso trabalho de campo na década de 1980 na
Eslováquia (entre os lovari e bougešti), testemunhamos tentativas de tal
institucionalização quando os respeitados líderes de clãs regionais tentaram
governar suas comunidades aceitando o papel de representantes roma diante
das autoridades majoritárias […].” (Marushiakova e Popov 207, 86-87).
25
Sijercic 1999, uma entrevista com Ronald Lee, Diretor de Advocacy na
Comunidade Roma e Advocacy Centre, Toronto.
237
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Sistemas Polilegais
Até agora estive considerando os sistemas jurídicos
inequivocamente sob a autoridade de um sobregoverno.
Questões um tanto diferentes são levantadas por sistemas
polilegais em sociedades onde diferentes pessoas estão sob
diferentes regimes jurídicos, nenhum dos quais tem status
superior aos outros. Um exemplo seria o islamismo sunita,
com quatro diferentes e, em alguns momentos e lugares,
escolas de direito coiguais existindo na mesma cidade. Outros
exemplos existiram na Idade Média. Durante a Reconquista
na Espanha, não era incomum que uma vila muçulmana
passasse para o domínio cristão, mas fosse permitida
permanecer por um tempo considerável sob a lei muçulmana.
Durante o período em que os comerciantes alemães estavam
expandindo suas atividades para as áreas eslavas ao longo da
costa do Báltico, os governantes locais às vezes permitiam
que os alemães sob seu domínio estivessem sob a lei alemã.
Sob o sistema de millet do Império Otomano, diferentes
comunidades étnicas, não apenas judeus, mas também vários
grupos cristãos, receberam poderes de autogoverno, sujeitos a
quaisquer requisitos que o Império lhes impusesse.26
O País de Gales durante os séculos antes de sua união
com a Inglaterra fornece um caso interessante. Desde os
períodos anglo-saxões, os príncipes galeses viam o rei inglês
como o rei supremo a quem deviam lealdade, mas não
homenagem.27 Os normandos que detinham terras no País de
Gales por direito de conquista reivindicavam um semelhante
status quase-régio, devendo a lealdade ao rei da Inglaterra,
mas livres para aplicar uma mistura de leis e costumes galeses
26
Como este exemplo sugere, a linha entre sistemas integrados e polilegais é
difusa; as comunidades judaicas da diáspora com autoridade legal delegada
poderiam ser classificadas de ambas maneiras.
27
Isso significava que, enquanto os príncipes eram leais ao rei, suas terras não
eram retiradas dele, portanto, não sob a lei inglesa.
238
Sistemas Integrados e Polilegais
28
“[…] a divisão racial entre os galeses e os ingleses permaneceu
significativa em relação a qual procedimento deveria ser usado em certas
ações pessoais, em relação a se a propriedade deveria ser herdada e em
relação a se as terras eram livremente alienáveis, […].” (Watkins 2007, 113).
29
“As áreas sob a jurisdição das leis normandas eram frequentemente
divididas em Englishries, onde os costumes normandos eram obtidos, e
Welshries, onde a população continuava a viver de acordo com suas leis
nativas, pelo menos no que diz respeito aos direitos e deveres de direito
privado, como os relacionados a assuntos fundiários, sucessórios e familiares,
estavam em causa.” (Watkins 2007, 81).
30
Watkin 2007, 118-119, 121-2.
239
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
240
Sistemas Integrados e Polilegais
241
10
Islândia do Período
das Sagas1
A Islândia é conhecida pelos homens como uma terra de
vulcões, gêiseres e geleiras. Mas não deve ser menos
interessante para o estudante de história como o berço de
uma brilhante literatura em poesia e prosa, e como o lar
de um povo que manteve por muitos séculos um alto
nível de cultivo intelectual. É um exemplo quase único de
uma comunidade cuja cultura e poder criativo
floresceram independentemente de quaisquer condições
materiais favoráveis e, na verdade, sob condições no mais
alto grau desfavoráveis. Tampouco deve ser menos
interessante para o estudante de política e leis por ter
produzido uma Constituição diferente de qualquer outra
da qual existem registros e um corpo de leis tão
elaborado e complexo que é difícil acreditar que existiu
entre os homens cuja ocupação principal era para matar
um ao outro.
(Bryce 1901, 263)
243
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
244
Islândia do Período das Sagas
O Problema de Fontes
Nosso conhecimento do sistema jurídico islandês é
baseado em fontes de dois tipos: as sagas, histórias e romances
históricos escritos nos séculos XIII e XIV, muitos dos quais são
3Landes & Posner 1975.
4Isso levou à interessante questão de por que, em nosso sistema jurídico,
alguns delitos são tratados como torts, a serem processados pela vítima,
outros como crimes, a serem processados pelo estado. Os leitores
interessados em meus pontos de vista sobre essa questão os encontrarão no
capítulo 18 de Friedman 2000.
5Friedman 1984.
245
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
6Friedman 1979.
7Algumas sagas são recontagens de material de outros lugares, como
Volsungasaga, a versão islandesa do alemão Niebelungenlied. Outros são
relatos de eventos na Noruega, como Heimskringla, a história da saga de
Snorri Sturluson sobre os reis noruegueses. Como eles fornecem poucas
informações sobre o direito islandês, não os incluí. Isso deixou cerca de
2.500 páginas de The Complete Sagas of Icelanders, ambientadas
principalmente na Islândia, cobrindo eventos desde o assentamento em 870
até o século XI, além de quase mil páginas de Sturlungasaga, a coleção de
sagas focada no período final de colapso no século XIII e os eventos que o
levaram.
246
Islândia do Período das Sagas
muitos dos eventos que descreve. Prestssaga Guðmundar góða foi escrito
por Lambkár Þorgilsson, amigo e secretário do Bispo Guðmund, sua figura
central.
247
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
forma como foram resolvidos e descobriu que apenas cerca de dez por cento
foram resolvidos no tribunal (Sigurðsson 160-161). Ele cita um cálculo de
Andreas Heusler cobrindo todos os casos nas sagas dos islandeses com um
resultado semelhante (Sigurðsson 1999, 154).
12Gragas I K§86, 145, 148, 149; K§99, 174-5; K§105, 181. De acordo com
outra regra, alguém acusado de uma ofensa que compareça a uma assembleia
pode escapar da punição mostrando que foi acusado não porque era culpado,
mas para mantê-lo fora da assembleia (Gragas I K§99, 175). Isso é paralelo a
um caso ateniense mencionado no capítulo 16.
248
Islândia do Período das Sagas
249
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Saga, III 286 The Saga of the People of Floi. A história árabe pré-islâmica
fornece um exemplo paralelo. A guerra entre as tribos de 'Abs e Dhubyân
terminou quando dois chefes de Dhubyân concordaram em pagar dinheiro de
sangue em camelos pela diferença entre o número de mortos por seu lado e
por seus oponentes. A história é registrada no século XX c. d.C. Book of
Songs de Abu ’l-Faraj al Isbahānī.
250
Islândia do Período das Sagas
18De acordo com Gragas II K§156, 70, “Se um homem se deitar com uma
escrava, ele está sob pena de três marcos por isso, […]”
19O pai era um importante proprietário de terras. O casal vivia junto
se ele nascer como herdeiro legítimo. Então o pai dela. Então um filho
nascido como herdeiro legítimo, com dezesseis invernos ou mais. […]”
(Gragas II K§156, 70). Portanto, possivelmente o pai poderia ter processado,
mas optou por não fazê-lo, pois sua filha se tornou amante com seu
consentimento.
251
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
252
Islândia do Período das Sagas
253
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
254
Islândia do Período das Sagas
pensou que era e o que a pessoa para quem foi escrito queria que
fosse.29
A terceira alternativa, que a lei mudou ao longo do tempo,
é verdadeira em pelo menos um aspecto. A Islândia tornou-se
cristã no ano 1000. Gragas contém uma longa seção que trata de
igrejas, coisas que você é proibido de fazer em um dia sagrado e
as penalidades por fazê-las e questões relacionadas. Mas a
comparação das sagas de Sturlung com as sagas familiares
sugere que, embora a lei na prática mudasse à medida que o
sistema se desintegrava, a lei em teoria, com exceção dos
acréscimos cristãos, permanecia praticamente a mesma.
A quarta alternativa me parece uma explicação plausível
no caso de ofensas sexuais. Mesmo que a sedução fosse um
crime que o pai da mulher pudesse processar, seria mais
prudente não fazê-lo, especialmente se não houvesse gravidez.
Em um caso, somos informados de que o sedutor respondeu à
reclamação do pai oferecendo-se para casar com sua amante —
29“É duvidoso que Gragas represente uma coleção oficial de leis. Em vez
disso, deve ser considerado uma coleção privada de leis adotadas pelo
Conselho Jurídico e escritas por indivíduos, ou um 'livro de direitos'
contendo notas sobre disposições legais que podem não ter sido
necessariamente adotadas por lei. Não há indicação de que Gragas tenha sido
consultado como uma autoridade na assembleia geral”. (Karlsson 2001).
Gragas inclui uma fórmula elaborada para pagamentos de vários parentes de
um ofensor aos parentes correspondentes da vítima. Não aparece nas sagas,
aparece no direito galês mais ou menos contemporâneo: “A compensação a
pagar, na verdade o crime de homicídio ilegal, foi denominada galanas. Era
pagável pela família do assassino à do morto, e havia regras elaboradas
relativas à distribuição da responsabilidade e benefício entre os dois grupos,
respectivamente. […] Os dois terços restantes das galanas tiveram que ser
pagos pelos parentes mais remotos do assassino, estendendo-se até os bisavós
e colateralmente até os primos de quinto grau; ao todo, nove graus de
relacionamento.” (Watkin 2007, 66-67).
255
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
256
Islândia do Período das Sagas
História e Instituições
Na segunda metade do século IX, o rei Haroldo Cabelo
Belo unificou a Noruega sob seu governo. Um número
substancial de habitantes, descontentes com a mudança, partiu;32
muitos foram diretamente para a Islândia, que havia sido
descoberta pelos nórdicos alguns anos antes, ou indiretamente
por meio de colônias nórdicas na Inglaterra, Irlanda, Orkney, as
Hébridas e as Ilhas Shetland. O sistema político que
desenvolveram ali era baseado nas tradições norueguesas33 com
uma importante inovação: não havia rei.
Na base do sistema ficavam o goði (pl. goðar) e o goðorð
(pl. goðorð). Os goðar originais parecem ter sido líderes locais
que construíram templos pagãos e serviram como seus
sacerdotes. Um goði recebia as taxas do templo e fornecia em
troca serviços religiosos e políticos. O goðorð era sua
congregação. A relação entre o goði e seus thingmen
(thingmenn) era contratual e não territorial. O goði não tinha
direito à terra do thingman e o thingman era livre para transferir
sua lealdade.
Sob o sistema de leis estabelecido em 930 d.C., esses
líderes locais foram combinados em um sistema nacional. Em
960, a Islândia foi dividida em quatro quarteirões, cada um
contendo nove goðorð agrupados em grupos de três chamados
de things. Em 965 mais três goðar foram adicionados no
Quarteirão Norte e em 1005 mais três “novos goðar” cada um
nos bairros sul, leste e oeste. Os novos goðar tinham assentos no
257
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
34Os doze goðar no Quarteirão Norte nomearam apenas nove juízes para os
tribunais do quarteirão. Minha descrição do sistema é aceita pela maioria dos
estudiosos. Jón Viðar Sigurðsson argumenta que é uma retroprojeção de
contas posteriores, que o sistema real no período inicial era
consideravelmente menos organizado.
35Os juízes islandeses correspondem mais de perto aos jurados do nosso
sistema, uma vez que cabia a eles determinar a culpa ou a inocência. Não
havia equivalente ao nosso juiz, embora especialistas em direito pudessem
ser consultados pelo tribunal.
36Conybeare 1877, 48.
258
Islândia do Período das Sagas
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Islândia do Período das Sagas
261
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
42“Þorkel Flosason, declarado fora da lei no verão anterior, fez uma visita a
Þorvarð e, colocando a cabeça na mesa diante dele, aguardou sua decisão.
Þorvarð concedeu-lhe o perdão e disse-lhe para ir em paz para onde
quisesse.” (Sturlungasaga II, 100).
43“Está prescrito que se um homem matar outro homem, a pena é proscrição.
262
Islândia do Período das Sagas
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Hreppur
Além do sistema jurídico baseado em goði e goðorð, havia
um sistema que consistia em grupos de famílias chamado
Hreppur. Ao contrário do sistema legal, era baseado
geograficamente, consistindo em grupos de vizinhos, pelo
menos vinte domicílios em cada um. Suas funções incluíam
coordenar o pastoreio de verão, fornecer um sistema de seguro
mútuo para os membros, atribuir responsabilidades aos órfãos e
indigentes locais e fornecer um fórum para disputas locais. Os
Hreppur eram autônomos. Não se sabe muito sobre sua estrutura
interna.46
Análise
Uma possível objeção a um sistema de aplicação privada
da lei é que os pobres ou fracos seriam incapazes de fazer valer
seus direitos. O sistema islandês lidou com esse problema
tornando transferível o direito da vítima à indenização. A vítima
poderia entregar seu caso a outra pessoa, gratuitamente ou em
troca de um pagamento.47 Um homem que não tivesse recursos
suficientes, em riqueza ou aliados, para processar um caso ou
impor um veredicto poderia vendê-lo a outro que esperasse
lucrar tanto em dinheiro quanto em reputação ao vencer o caso e
receber a multa. Isso significava que um ataque até mesmo à
vítima mais pobre poderia levar a uma eventual punição. Um
homem pode se oferecer para assumir um caso não por dinheiro,
264
Islândia do Período das Sagas
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
49Sagas III, 177, Njal’s Saga. Em uma passagem anterior na mesma saga, 84,
Gunnar responde à sugestão de seu irmão Kolskegg de que eles persigam
seus atacantes derrotados: “Nossos bolsos estarão vazios o suficiente quando
os que já estão mortos forem compensados.”
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Islândia do Período das Sagas
50SturlungasagaII, 184.
51Uma vez que ocultar o crime era considerado vergonhoso e, se
malsucedido, impunha consequências legais adicionais.
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Islândia do Período das Sagas
o título.
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Conclusão
As sagas são percebidas por muitos como retratando uma
sociedade violenta e injusta atormentada por rixas constantes. É
difícil dizer se tais julgamentos estão corretos. As sagas foram
escritas durante ou após o período de Sturlung, o violento
colapso final do sistema islandês no século XIII, e seus autores
podem ter projetado elementos do que viram ao seu redor nos
períodos anteriores que descreveram. Além disso, a violência
sempre foi um bom entretenimento, e os escritores da saga
podem ter selecionado seu material de acordo. Mesmo em uma
sociedade relativamente pacífica, os romancistas podem
encontrar, ao longo de trezentos anos, conflito suficiente para
um corpo considerável de literatura.
A qualidade da violência, em contraste com outras
literaturas medievais, é de pequena escala, intensamente pessoal
(cada vítima geralmente é nomeada) e relativamente direta. Nos
raros casos em que um atacante incendeia a casa do defensor,
mulheres, crianças e empregados têm a oportunidade de sair.
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Islândia do Período das Sagas
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Tabela 1
Onças Ells Produçã Salários Fonte
o Anual Anuais s
de
Waðmal
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Islândia do Período das Sagas
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
278
11
Direito Somali
Poucas sociedades podem carecer tão visivelmente dos
procedimentos judiciais, administrativos e políticos que
estão no cerne da concepção ocidental de governo. O
sistema político tradicional do norte da Somália não tem
chefes para administrá-lo e nenhum judiciário formal
para controlá-lo. Os homens são divididos entre unidades
políticas sem qualquer hierarquia administrativa de
funcionários e sem cargos de liderança instituídos para
dirigir seus negócios. (Lewis 1961, vii)
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
1Um breve período de paz no sul foi criado por uma aliança de tribunais
islâmicos (a UTI, “União dos Tribunais Islâmicos”) apoiados por milícias de
clãs locais. No final de 2006, esse período terminou quando as tropas etíopes,
agindo com o apoio dos EUA e da ONU em aliança com a ONU, criaram um
“Governo Federal de Transição”, invadiram a Somália e finalmente tomaram
Mogadíscio. Lewis 2008, 87-91. Para a visão de Lewis sobre a situação na
Somália nos últimos anos, veja Lewis 2004. Leeson 2007a oferece evidências
de que a Somália estava, em geral, melhor como resultado do colapso do
governo de Barre, que após um breve período de violência generalizada a
situação em grande parte do país tornou-se razoavelmente pacífica.
2Não incluindo a Puntlândia no canto nordeste, cujo governo se considera
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Direito Somali
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Direito Somali
Estrutura Política
As instituições por meio das quais os somalis impõem
direitos e resolvem disputas são baseadas em dois princípios:
parentesco, principalmente parentesco agnático (definido pela
linha paterna) e contrato. Todo somali memoriza quando criança
sua genealogia através da linha paterna de muitas gerações, uma
informação importante, pois define seu relacionamento com
todos os outros somalis. Um clã, que pode chegar a centenas de
milhares, consiste em indivíduos que se acredita serem todos
descendentes de um ancestral comum na linha paterna,
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
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Direito Somali
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por um ferimento, desde que o valor seja mais de um terço do pagamento que
seria devido por um assassinato.
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Direito Somali
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
“Os juízes nos tribunais ciganos da região são nomeados ad hoc para cada
nova sessão do tribunal”; (Marushiakova e Popov 2007, 80).
18Os juízes têm o dever especial de cumprir a lei e, portanto, estão sujeitos a
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Direito Somali
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Mecânica
A mecânica do julgamento e da aplicação da lei, conforme
descrita por Van Notten, é direta. Quando surge uma disputa
entre membros de diferentes grupos de pagantes de dia, os
21No caso do clã Samaron, com o qual Von Notten se casou, o último chefe
titular morreu em 1954 e não havia sido substituído até 2002, quando Von
Notten morreu.
22Segundo Van Notten as decisões são por consenso, fazendo com que as
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Direito Somali
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
para o que Lewis chama de grupo pagador de jiffo) e jilib (grupo pagador de
dia). A certa altura, o primeiro é definido como todos os descendentes na
linha paterna de um bisavô comum e o último como um grupo de juffos cujos
membros são parentes. Em outro ponto, o jilib é definido como “todos os
descendentes vivos de um determinado bisavô paterno ou ancestral distante”.
A fine no direito irlandês antigo, discutida no Capítulo 12, é composta por
todos os descendentes na linha paterna de um bisavô comum. Pela descrição
de Lewis, soa como se o juffo (seu grupo pagador de jiffo ou “seção
terciária”) fosse definido por parentesco paterno, o jilib (grupo pagador de
dia ou “seção secundária”) por contrato entre os juffos membros, geralmente,
mas não sempre aqueles que têm um ancestral paterno comum. Descrevendo
a lógica das alianças de parentesco, ele escreve: “As seções terciárias se
apoiam contra as secundárias, as secundárias contra as primárias, e todas se
unem na solidariedade da tribo quando esta é ameaçada ou atacada de fora.”
(Lewis 1955, 108).
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Direito Somali
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Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Conteúdo da Lei
Se o réu condenado se recusar a pagar no prazo estipulado,
ele está sujeito a penalidades que vão desde multa em mel até
ter um de seus animais abatido, cozido e comido pelos aldeões
todos os dias.
Assim como no jinayat árabe, as penalidades são
calculadas em camelos — no caso da Somália, camelos fêmeas
saudáveis com idade entre três e seis anos. Pode ser pago em
outros animais a uma taxa fixa habitual ou em dinheiro por
acordo entre as partes. O pagamento vai para a vítima se viva,
sua família se ele estiver morto, e pode ser compartilhado por
outros membros de seu grupo de pagantes de dia.27 Existe uma
tabela padrão de multas para lesões corporais não intencionais.
A família da vítima pode, e muitas vezes aceitará, aceitar
menos, possivelmente como um gesto de boa vontade. Para uma
lesão intencional, as multas são dobradas.
Para homicídio doloso, a pena é de uma vida por uma
vida; se o assassino conseguir fugir para o exterior, um membro
de sua família de status igual pode ser condenado à morte em
seu lugar, uma regra que dá à família um forte incentivo para
não o ajudar a escapar. Na maioria dos casos, a família da vítima
pode optar por aceitar dinheiro de sangue em uma taxa de 100
camelos para um homem e 50 para uma mulher, embora se o
assassinato for suficientemente ultrajante, o tribunal pode
insistir na execução do assassino. Se o assassino e a vítima são
de clãs diferentes, é menos provável que a família da vítima
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Direito Somali
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296
Direito Somali
Apêndice:
Lidando com Forasteiros: Um Caso
O estado da Etiópia tratado como um clã: em 1992, um
ano depois que os tigrínios assumiram o controle do governo
etíope, alguns soldados federais mataram arbitrariamente um
comerciante somali perto da aldeia de Sheddher. A razão deles
era que ele havia se recusado a dar-lhes algumas de suas
mercadorias, que por acaso eram qhat. Uma hora depois, a
família da vítima matou dois soldados federais que passavam
pela vila. O comandante militar da região da Somália então
ordenou uma expedição punitiva e enviou um pelotão inteiro
para Sheddher. Em sua chegada, os soldados souberam que os
aldeões poderiam ter matado vários outros soldados federais
naquele dia, mas não o fizeram. Eles agiram de acordo com sua
lei consuetudinária, que estipula que quando alguém de outro clã
assassinar um membro do clã, dois membros desse outro clã
serão mortos. Pouco tempo depois, um incidente semelhante
aconteceu no mesmo território, na aldeia de Lafaissa, onde um
soldado federal havia buscado refúgio em um acampamento
militar após matar arbitrariamente um somali. A família da
vítima foi a um acampamento militar na aldeia vizinha de
Herigel e matou dois soldados federais. O comandante militar
em Harar optou por não tomar nenhuma ação contra o clã e
informou a seus soldados que doravante eles deveriam respeitar
a lei consuetudinária. Como resultado, não ocorreram mais
assassinatos no território. (Van Notten, 181-182)
297
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Direito Somali
299
12
Direito Irlandês
Antigo
O direito irlandês, em particular, pode parecer estranho e
inacessível para aqueles que a abordam recém-saídos da
leitura de um código civil moderno. O que sobrevive hoje
é um desconcertante conglomerado de velho e novo,
texto e comentário, prosa simples e verso ofuscante.
(Stacey 1994, 15)
301
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Direito Irlandês Antigo
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Direito Irlandês Antigo
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5Variando do casamento onde a esposa foi prometida por seus parentes até o
casamento proibido por seus parentes.
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Direito Irlandês Antigo
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Direito Irlandês Antigo
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Direito Privado
As fontes legais descrevem mecanismos para fazer e
impor contratos que não parecem depender dos tribunais reais
ou de qualquer mecanismo centralizado de julgamento e
imposição. Mas também há referências ao que parece ser ao
direito curial, lei aplicada na corte de um rei.
dívida] pela qual ele é invocado como fiador, para que nada seja acrescentado
ou subtraído dela, jurando-a sem reservas e executando-a sem negligência'”
(Binchy 1972, 361).
310
Direito Irlandês Antigo
disputas inter-túath e poderia ter sido uma pessoa importante como o tanist, o
herdeiro do rei, e que o papel exato do aitire não é claro. Se ele era fiador de
contratos privados, pode ter sido como fiador permanente, não nomeado para
a transação específica, talvez para lidar com coisas como processos de tort
por ferimentos. (Stacey 1994, 82-111).
311
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
312
Direito Irlandês Antigo
12Não está claro como as decisões para o grupo de parentes foram tomadas,
possivelmente por um indivíduo selecionado de alguma forma para
representar os outros membros.
13Stacey 1994, 67.
313
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314
Direito Irlandês Antigo
fora dos parentes cuja assistência havia sido necessária para cobrar a
reivindicação, como um senhor intervindo em nome de um cliente incapaz de
fazer valer sua reivindicação por conta própria.
315
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
316
Direito Irlandês Antigo
Justiça Curial
A discussão até agora tem se concentrado no sistema de
direito privado. Fica claro pelas referências no texto que os reis
tinham tribunais e que alguns casos iam para esses tribunais,
embora não esteja claro quais casos foram para lá ou em que
grau a divisão de autoridade mudou ao longo do tempo. É
possível que o tribunal do rei fosse apenas para casos em que o
rei era parte ou que fosse o tribunal de um rei superior
resolvendo disputas entre os reis súditos a ele ou entre seus
súditos. Alternativamente, as referências podem refletir uma
mudança ao longo do tempo de mecanismos privados para
curiais para a aplicação da lei.
A partir de fontes não jurídicas, parece que, na época em
que os livros de direito foram escritos, houve uma mudança
substancial de autoridade dos reis locais do túath para os reis
provinciais, uma mudança amplamente ignorada no material
jurídico. O material de direito privado pode ser um resquício de
um período anterior retido devido à natureza conservadora da
erudição jurídica, que frequentemente incluía no texto versos
mais antigos sobre a lei. Robin Stacey sugeriu que as
declarações sobre procedimentos judiciais podem ter
representado uma tentativa de colocar os procedimentos de
direito privado existentes sob a autoridade da classe jurista,
possivelmente associados ao aumento do poder real.18
Procedimento do Tribunal
Havia juízes profissionais e advogados profissionais,
ambos desempenhando um papel em um julgamento. De acordo
317
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
318
Direito Irlandês Antigo
319
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
320
Direito Irlandês Antigo
Conclusão
Como espero que este breve relato deixe claro, a
legislação irlandesa antiga era um sistema elaborado e
sofisticado sobre o qual temos informações muito imperfeitas.
Seu principal interesse para mim é a forma como os contratos
foram executados e os delitos tratados em um sistema de justiça
descentralizado e privado. Um de seus enigmas é a relação entre
esse sistema e o sistema de justiça curial, administrado sob a
autoridade de pelo menos reis locais.
321
13
Comanches, Kiowa e
Cheienes: Os Índios
das Planícies
Os modernos costumam ver as sociedades primitivas
como tendo seguido o mesmo padrão de vida século após
século. Se eles fossem capazes de mudar, certamente teriam
progredido, se tornado mais parecidos conosco, deixado de ser
primitivos. Os índios das planícies fornecem um notável
contraexemplo. Seu estilo de vida imemorial era uma invenção
totalmente nova quando os europeus entraram em contato
substancial com eles.
A razão pela qual foi uma nova invenção é que caçar
búfalos a cavalo requer cavalos. Não havia cavalos na América1
até que os espanhóis os trouxessem e nenhum disponível para os
índios norte-americanos até que tivesse passado tempo
suficiente para que os cavalos que escaparam dos espanhóis se
multiplicassem na selva e se espalhassem pelo Norte.
Diante de uma súbita oportunidade de progresso, a chance
de parar de cavar a terra como agricultores primitivos e se
transformar em nobres selvagens caçando búfalos, vivendo em
tipis e provando sua masculinidade fazendo guerra umas contra
as outras, as tribos indígenas que vivem nas ou perto das
Grandes Planícies aproveitaram a oportunidade. O resultado foi
1Os cavalos foram extintos junto com uma série de outras megafaunas do
Novo Mundo há cerca de 10.000 anos, possivelmente devido à caça
excessiva por humanos.
323
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Comanches
“Uma vez havia um bando de comanches procurando
encrenca.”7
Hoebel.
324
Comanches, Kiowa e Cheienes
325
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
10“Nenhuma ação individual é considerada crime, mas todo homem age por
si mesmo de acordo com seu próprio julgamento, a menos que algum poder
superior, por exemplo, o de um chefe popular, exerça autoridade sobre ele.”
(Neighbors 1853, 131). “O homem cujo conselho foi seguido com mais
consistência era um chefe de paz de seu grupo.” Como disse um informante
comanche, em resposta à questão de como os chefes de paz foram escolhidos:
“Ninguém o nomeou como tal; ele simplesmente assumiu tal posição.”
(Wallace e Hoebel 1952, 211). Lee, que foi cativo por três anos, descreve um
sistema um tanto mais organizado, escrevendo (1859, 70) sobre seu primeiro
dono: “Ele era o chefe civil distinto do chefe guerreiro e, consequentemente,
o cabeça da tribo. Essa dignidade trazia consigo o privilégio de possuir
quatro esposas, sendo permitido ao índio comum apenas uma, aos oficiais
subordinados duas e ao chefe de guerra três.” Mas Neighbors escreve que “a
poligamia é praticada em grande escala, alguns chefes tendo mais de dez
esposas, […].” Presumivelmente, Lee estava generalizando a partir de suas
observações de um ou mais dos bandos em que participou. Não está claro se
ele aprendeu a língua comanche; ele pode ter se comunicado com seus
captores em espanhol, um idioma que alguns deles provavelmente sabiam.
11O problema é discutido em Friedman 2014, capítulos 34 e 56.
326
Comanches, Kiowa e Cheienes
327
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
13“Os laços de consanguinidade são muito fortes, não apenas no que diz
respeito às suas relações de sangue, mas estende-se às relações por
casamento, etc., que são considerados e geralmente chamados de ‘irmãos’ —
todas as ofensas cometidas contra qualquer membro, são vingadas por todos,
ou qualquer membro relacionado com a família.” (Neighbors 1853, 131).
328
Comanches, Kiowa e Cheienes
329
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
330
Comanches, Kiowa e Cheienes
Os Kiowa
Os kiowa, embora em alguns aspectos semelhantes aos
comanches, tinham algo um pouco mais próximo de um governo
e muito mais próximo de um sistema de classe/ranque bem
definido. Este último consistia em quatro classes. Os onde eram
os guerreiros de alto status, suficientemente altos para não
331
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
332
Comanches, Kiowa e Cheienes
Os Cheienes
Das três tribos, talvez de todos os índios das planícies, os
cheienes foram os que mais se aproximaram de um governo —
parte do ano. A tribo inteira, possivelmente até quatro mil
pessoas, reunia-se em um único acampamento no verão, quando
a comida era abundante. Durante o inverno, a tribo se separava
em bandos muito menores e se dispersava em busca de caça.
O acampamento de verão era o local do Conselho dos
Quarenta e Quatro, o governo, ou talvez o governo nascente, da
tribo. Era um corpo que se autoperpetuava; como os membros
originais foram escolhidos não é conhecido. A cada dez anos, o
Concílio era renovado. Cada membro existente escolhia um
sucessor, geralmente de seu próprio bando. Um chefe não
poderia suceder a si mesmo, mas poderia ser mantido no
Conselho se outro chefe estivesse disposto a nomeá-lo como seu
sucessor.
Havia quatro chefes sacerdotes entre os quarenta e quatro,
cada um associado a um poder sobrenatural, e além dos quarenta
e quatro havia um guardião do doce remédio, o mais importante
333
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Comanches, Kiowa e Cheienes
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Comanches, Kiowa e Cheienes
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23Coiote Vagante matou Cavalo Branco, que havia roubado sua esposa, e não
parece ter sido exilado como resultado. Mais tarde, ele foi morto por
Winnebago, que não é descrito como exilado, mas aparece na conta oito anos
depois, momento em que ele mata outro homem, desta vez em legítima
defesa. O exílio não é mencionado, mas quando Winnebago é mencionado
novamente, ele está vivendo com outra tribo. Ele acaba sendo morto por
Fogo Ascendente, que novamente não é descrito como sofrendo exílio. Cada
matança parece ter sido seguida por uma cerimônia para renovar as flechas,
no entanto.
342
Comanches, Kiowa e Cheienes
343
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344
Comanches, Kiowa e Cheienes
345
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27As crianças cativas, por outro lado, parecem ter sido criadas como
comanches e adotadas pela tribo.
28“Embora não fosse seu costume torturar inimigos desafortunados, às vezes,
346
Comanches, Kiowa e Cheienes
29Lee foi capturado em um local que ele descreve como cerca de 350 milhas
a noroeste de Eagle Pass, o que o colocaria no canto sudeste do que hoje é o
Novo México. Chaco Canyon, no noroeste do Novo México, contém uma
coleção impressionante de ruínas Pueblo, das quais esta pode ser uma
descrição um tanto distorcida. Vi, com infinito espanto e surpresa, as ruínas
dilapidadas de uma grande cidade. No meio das paredes desmoronadas de um
grande número de edifícios, que, em alguma época remota, sem dúvida,
ladeavam ruas espaçosas, estava o que parecia ter sido uma igreja ou
catedral. Suas paredes de pedra talhada, com sessenta centímetros de
espessura e, em alguns lugares, quinze pés de altura, incluíam um espaço
medindo duzentos pés de comprimento e, talvez, cem de largura. A superfície
interna das paredes em muitos lugares era adornada com trabalhos esculpidos
elaborados, evidentemente o trabalho de uma mão de mestre, e no extremo
leste havia uma enorme plataforma de pedra que parecia ter sido usada como
palco ou púlpito. (Lee 1859, 141).
347
14
Direito de Disputas
Como veremos, o que geralmente acontece em nossas
primeiras fontes medievais é que, quando um grupo
social, geralmente uma família ou parente, mas
ocasionalmente uma instituição como um mosteiro, é
prejudicado, ele faz uma grande exibição de sua raiva, do
fato de que foi injustiçado e do fato de que tem o direito
de se vingar dos malfeitores. A pressão é assim exercida
sobre os agressores originais para que façam reparações,
seja informalmente ou por meio dos oficiais da lei locais,
ou às vezes por meio da mediação da igreja. Quando a
compensação não é paga, a parte prejudicada às vezes
realiza um ataque de retaliação. Se os procedimentos
corretos forem seguidos, uma morte por vingança bem-
sucedida é considerada bastante legal e encerra a disputa.
Há pouca concepção de que os destinatários do ataque de
retaliação tenham qualquer direito de se sentir lesados, ou
que eles estariam justificados em responder
violentamente a ele.
(Halsall 1999, 10)
349
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
350
Direito de Disputas
351
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
4Sutherland 1986.
5“O objetivo principal é aproximar as partes opostas e, por meio de um
compromisso, permitir que o consenso seja alcançado. Depois que os juízes
decidem que uma posição comum foi estabelecida até certo ponto, eles
realizam consultas (eles também podem se aposentar), formulam uma
decisão no caso que seja aceitável para todos os envolvidos e a declaram
publicamente.” Marushiakova e Popov 2007, 87, descrevendo o kris na
Europa Oriental e Central.
352
Direito de Disputas
2. Compromisso
Quando ameaço feri-lo, você responde que, se eu o fizer,
retaliará, tornando a troca uma perda para nós dois. Para que o
sistema funcione, preciso de alguma forma de me comprometer,
fazendo com que seja do meu interesse cumprir minha ameaça
apesar do risco, do seu interesse recuar e me compensar.
Uma solução é anterior à nossa espécie — o
comportamento territorial.6 Um membro de uma espécie
territorial, geralmente pássaros ou peixes, de alguma forma
marca o território que está reivindicando. Fazer isso ativa uma
mudança metafórica em seu cérebro, obrigando-o a lutar cada
vez mais desesperadamente contra um invasor quanto mais
longe em seu território o invasor chega. A menos que o agressor
seja muito mais forte que o defensor, uma luta até a morte é uma
perda para ambos. Assim, uma vez claro o compromisso, é do
interesse do transgressor recuar.
O mecanismo correspondente em humanos é a vingança.
Quando alguém o prejudica, você deseja muito se vingar dele,
mesmo com algum risco para si mesmo. Considerada ex post,
após o fato, parece uma paixão irracional, que pode facilmente
levar você à morte. Considerada ex ante, pode muito bem ser
uma estratégia de compromisso racional, incutida em nós pela
evolução. O fato de você se vingar de qualquer um que o
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Direito de Disputas
3. Protegendo os Fracos
Uma luta até a morte entre dois pássaros pode ser uma
perda para ambos, mas uma luta até a morte entre um homem
idoso sem aliados e um agressor apoiado por meia dúzia de
amigos provavelmente será uma perda para apenas um. Para que
a disputa faça um trabalho adequado de proteção de direitos, ela
precisa de algum mecanismo que funcione tanto para os fracos
quanto para os fortes.
Os islandeses resolveram esse problema tornando os
pedidos de indenização transferíveis. O homem idoso que sabe
que, se tentar processar sua reivindicação sozinho,
provavelmente será espancado no caminho para o tribunal,
transfere a reivindicação para um amigo ou vizinho que pode
aplicá-la. Se aplicá-lo não for muito difícil, eles dividem o
dinheiro. E por mais que a indenização seja dividida, pelo
menos o agressor pagou pelo seu crime.
Os somalis tinham um sistema diferente. O indivíduo é
membro de um grupo de pagantes de dia, uma coalizão formada
antecipadamente. Se ele for prejudicado, os demais membros do
grupo têm direito a parte da indenização. Assim como acontece
com o grupo de parentes islandeses, isso lhes dá um duplo
incentivo, dinheiro e reputação, para garantir que sejam pagos.
4. Terminando a Disputa
A maneira mais simples de acabar com uma disputa é um
lado compensar o outro pelo dano causado, de preferência na
primeira etapa. Uma razão para não fazer isso é a crença do
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Direito de Disputas
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9“Uma pessoa pode fazer justiça com as próprias mãos, se tiver força para
fazê-lo. Como ele está agindo legalmente, ele não precisa se preocupar em
comparecer a um tribunal, mesmo que não haja perda se seu processo for
adiado.” (Maimônides, Sinédrio 2:12). “Se uma pessoa vê sua propriedade
nas mãos de outra, ela pode tirá-la dela, e se a outra parte estiver em seu
caminho, ela pode espancá-la até que ela ceda […]” (Shulchan Arukh,
Choshen Mishpat 4).
10Friedman a seguir.
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15De acordo com Waller 1988. Veja também Rice 1978; fontes variam em
detalhes.
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15
Inglaterra no Século
XVIII1
O sistema de justiça criminal da Inglaterra do século
XVIII apresenta um espetáculo curioso para um observador
mais familiarizado com as instituições modernas. As duas
anomalias mais marcantes são as instituições para processar os
infratores e a gama de punições. A acusação de quase todos os
crimes graves era privada, geralmente pela vítima.2 As punições
intermediárias para crimes graves estavam notavelmente
ausentes. É apenas um modesto exagero dizer que, nos
primeiros anos do século, os tribunais ingleses impuseram
apenas duas sentenças a criminosos condenados. Ou eles os
soltaram ou os condenaram a serem pendurados pelo pescoço
até a morte.
As partes I e II deste capítulo descrevem as instituições de
acusação e as formas de punição. Na parte III, ofereço
1Uma versão anterior deste capítulo foi publicada como Friedman 1995.
2Alguns crimes menos graves foram processados por policiais ou
magistrados, um padrão que se tornou cada vez mais comum no final do
século e posteriormente. (Smith 2006). “A parte prejudicada é geralmente a
pessoa obrigada a processar; mas, nas Delegacias de Polícia, não havendo
outra pessoa declarada para esse fim, mandamos sempre um dos policiais, ou
um comissário, para o fazer;” (Sir Nathaniel Conant, Magistrado Chefe em
Bow Street, em Report 1816, 5). Os crimes realmente cometidos contra o
governo eram processados às custas do governo. Assim, “as ofensas contra a
moeda de ouro e prata eram distintas, pois o financiamento e a direção eram
fornecidos para os processos pela Casa da Moeda”. (Brewer e Styles 1980,
183).
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Inglaterra no Século XVIII
4“Tenho tanta aversão pelo próprio nome de um acusador público, desde sua
existência na época da revolução francesa, que não aproveitei nenhuma
oportunidade e não tive inclinação para cogitar tal assunto [...]” (William
Fielding, Magistrado e filho do mais famoso William Fielding, magistrado e
romancista, Relatório 1816, 191). “Já em 1863, ao refletir sobre a ‘ausência
de um procurador público’ na Inglaterra, James Fitzjames Stephen proclamou
que o sistema francês de processo, que se baseava em ‘inquéritos elaborados’
por policiais profissionais e magistrados antes do julgamento, ‘nunca seria
suportado’ pelos ingleses. Escrevendo em 1983, Douglas Hay supôs que o
apego das elites políticas inglesas ao processo privado ‘provavelmente
derivava acima de tudo de sua aversão à alternativa’ — a saber, ‘processo
estatal’. Mais recentemente, Allyson May afirmou que ‘[uma] desconfiança
histórica e profundamente enraizada em um estado autoritário e medo de
abusos do poder do estado [...] explicam por que os processos criminais [na
Inglaterra] permaneceram nas mãos de indivíduos privados até o século
XIX’.” (Smith 2006, 30-31). Uma possível explicação é que a experiência
inglesa no século XVII — duas guerras civis, um golpe militar (Expurgo de
Pride), uma ditadura militar, a Restauração e a Revolução Gloriosa — fez
muitos desconfiarem de poderes que poderiam ser usados por aqueles no
poder contra seus oponentes.
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Benefício de Clero
O benefício de clero originou-se como uma regra legal que
permitia que os clérigos acusados de crimes capitais tivessem
seus casos transferidos para um tribunal da igreja, que não
impunha a pena capital. “Clérigo” passou a ser definido como
qualquer um que soubesse ler, geralmente testado fazendo-o ler
um versículo específico da Bíblia, conhecido por esse motivo
como o “verso do pescoço” — memorizá-lo poderia salvar o
pescoço de um réu.
Durante o século XVIII, a regra havia mudado de forma a
torná-la inteiramente secular.14 Os estatutos de 1623 e 1691
estenderam o privilégio de alguns crimes às mulheres, sem
exigência de alfabetização. Depois de 1706, os homens não
eram mais obrigados a demonstrar alfabetização.
De acordo com o estatuto Tudor, um réu que declarasse
ser clero poderia ser preso por até um ano, mas isso parece ter
sido feito apenas raramente.15 Os réus que não eram realmente
clérigos tinham o direito de alegar clero apenas uma vez; a
marca no polegar pode ter se originado como um dispositivo
para identificar aqueles que se apelaram ao clero uma vez e,
portanto, não poderiam fazê-lo novamente. Mas essa restrição
não parece ter sido aplicada com muita frequência. Em teoria,
ser condenado por um crime deveria resultar em confisco de
propriedade e terra, com a terra sendo devolvida a um criminoso
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Inglaterra no Século XVIII
que apelou clero e foi marcado,16 mas isso também não parece
ter sido aplicado. Presumivelmente, a marca teve algum efeito
estigmatizante. Isso, mais os custos suportados pelo réu antes de
sua condenação,17 parece ter sido em alguns períodos a única
pena realmente imposta à maioria dos condenados por um delito
clerigável.18 Isso deixou de ser verdade quando o ato de
transporte de 1718 tornou possível condenar alguns réus que
apelaram clero (mas não nobres, clérigos reais ou aqueles cujo
crime foi homicídio culposo) ao transporte para a América por
sete anos de servidão contratada.
Crimes clerigáveis eram crimes pelos quais, sem o
benefício do clero, a punição era a morte. Homicídio culposo,
por exemplo, era um crime clerigável. Sua definição incluía
muitos crimes que definiríamos como assassinato. Um
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Transporte
O uso em larga escala de transporte como punição
criminal começou por volta de 1663. Foi imposto tanto a réus
condenados por crimes capitais não clerigáveis e perdoados sob
a condição de transporte quanto a alguns réus condenados por
crimes clerigáveis. Até que a exigência de alfabetização fosse
abolida, um juiz que desejasse transportar tal criminoso poderia
optar por testá-lo rigorosamente e descobrir que o réu não era
alfabetizado e, portanto, não tinha direito ao benefício de clero
ou, se o réu já havia sido marcado por um crime anterior, o juiz
poderia aplicar a regra que proíbe os não clérigos de apelarem
clero mais de uma vez.
O transporte era feito por comerciantes privados. Um
comerciante que desejasse transportar um criminoso era
obrigado a pagar ao xerife “um preço por cabeça que incluía
taxas de prisão, honorários do escrivão do tribunal apropriado,
taxas para redigir o indulto e assim por diante”.20 Depois de
transportar o criminoso para o Novo Mundo, o comerciante
poderia vendê-lo como servo contratado por um período
dependendo do seu crime. Esta era uma transação lucrativa se o
criminoso fosse jovem e saudável ou tivesse habilidades úteis,
mas muitos criminosos não traziam retorno suficiente para pagar
19A partir da década de 1760, porém, houve algum uso de prisão por
homicídio culposo. Beatie 1986, 88.
20Beattie 1986, 479.
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27Os números citados aqui são baseados nos arquivos do inquérito judicial do
Home Circuit e nas listas de sessões trimestrais de Surrey e limitados aos
anos de 1660 a 1800, um total de cerca de cem, para os quais evidências de
acusação completas estavam disponíveis. A amostra é descrita em detalhes
por Beattie em seu Apêndice, Beattie 1986, 639-643.
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a 4.000 associações por volta de 1839 e acredita que “pelo menos 1.000” é
um bom número de trabalho.
37Um incentivo adicional era que o secretário da associação provavelmente
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40Blackstone, capítulo 27. Beattie (1986, 457) argumenta que as multas por
delitos menores eram em grande parte pagamentos simbólicos para mostrar
que as duas partes haviam chegado a um acordo. “Uma multa maior poderia
resultar quando tal acordo não fosse feito, e sua ameaça, juntamente com a
ameaça adicional de que o não pagamento de uma multa alta poderia resultar
em um período de prisão, foi claramente usada pelos tribunais como uma
forma de persuadir um prisioneiro recalcitrante chegar a um acordo com o
queixoso.” Beattie (1986, 457-458) cita o Recorder of London em 1729,...
“Ao discutir um assalto e uma agressão, ele disse que era 'normal nesses
casos o Réu dar satisfação ao Procurador por seus ferimentos, e custos e
encargos — antes do Tribunal definir a multa [...] que normalmente é maior
se o Réu não facilitar o processo ao Procurador, conforme determinado pelo
Tribunal.' [...] '[...] e então se ele se abster de comparecer e processar [o réu]
será dispensado e todas as acusações de um julgamento serão salvas, o que
seria uma grande despesa.” “Em contraste, para a maioria dos processos por
crimes graves contra a pessoa em Sessões Trimestrais, Sessões Trimestrais
são uma mera presença nominal. A ação decisiva — o acordo do caso —
ocorre fora do alcance da audiência dos juízes e geralmente fora dos muros
de seu tribunal. Sob esse prisma, as Sessões Trimestrais são apenas uma
instituição estruturada de forma a estimular que as disputas sejam resolvidas
extra-institucionalmente.” (Landau 1999, 533).
41“O acordo de ações penais, originalmente permitida, foi tornada ilegal por
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cometidos por magistrados para serem julgados por crimes foram acusados e
levados a tribunal, [...]” mas não fornece números reais.
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46O problema também foi reconhecido pela lei no contexto relacionado aos
delatores que tinham direito a uma parte da multa paga pelos denunciados.
“Ao processar uma penalidade, um informante foi considerado uma
testemunha incompetente, a menos que seja competente por lei.”
(Radzinowicz 1957, 2:139.)
47Langbein 1983.
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51Hay 1975a, 198. Hay afirma que esse era um truque comum, citando Anon
1753, 26. Não conheço nenhum exemplo semelhante no contexto de ofensas
mais sérias.
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1994.
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59Andrews 1994, 326. Ele não oferece evidências para essa conclusão ou
dados que possam ser usados para comparar os ganhos com os custos
associados.
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63Beattie (1986, 504) sugere que a razão para a mudança na política foi que a
situação financeira do governo inglês havia melhorado consideravelmente em
1718.
64Isso ignora os transportados que retornaram ilegalmente antes de suas
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Indultos
Outra estranheza no padrão de punições na Inglaterra do
século XVIII era o uso extensivo de indultos. No estudo de
Beattie sobre Surrey entre 1660 e 1800, ele descobriu que
apenas cerca de 40% dos condenados por crimes capitais foram
realmente executados. Para muitos dos demais, especialmente
depois de 1718, o indulto estava condicionado ao transporte.
Mas para alguns os perdões eram incondicionais. Tendo sido
acusados, presos, julgados, condenados e presos novamente
enquanto aguardavam a execução, eles foram libertados. “Vá
para casa e não faça isso de novo.”
Os indultos podiam ser usados para corrigir o que o juiz
considerava um veredicto errôneo, mas a culpa geralmente não
era o problema. O perdão foi baseado em evidências de caráter
sobre o réu, oferecidas durante o julgamento ou em petições
posteriores. Em alguns casos, as petições vieram de pessoas que
conheciam o réu e poderiam fornecer informações sobre a
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67Para uma análise detalhada dos argumentos que os juízes ofereciam a favor
e contra os indultos e a fonte do testemunho de caráter a favor dos indultos,
veja King 1984.
68Para uma discussão mais detalhada sobre a discriminação de preços na
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76Ibid337.
77“Não parece que em qualquer época do século XVIII, em qualquer parte do
país, mais de sessenta por cento dos condenados à morte tenham sido
realmente executados, e durante grande parte do século e em muitos lugares
o valor de um terço é mais típico.” (Tobias 1979, 140.)
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manter boas relações com aqueles com quem interagia; sua boa
opinião sobre ele pode literalmente salvar sua vida.78
Portanto, uma possível interpretação do sistema é que ele
foi projetado para dar aos réus em potencial um incentivo para
manter boas relações com aqueles com quem estão associados,
especialmente os superiores de status cuja palavra
provavelmente teria mais peso com o juiz e o júri e, assim,
reforçar a estrutura social existente.
78O perdão foi do rei, mas quase garantido por um pedido do juiz.
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Conclusões
Tentei mostrar que as instituições usadas na Inglaterra do
século XVIII para desencorajar crimes graves podem ter sido
bem adaptadas tanto para esse propósito quanto para outros. A
preferência pela execução e transporte refletia o maior custo da
prisão e foi afrouxado à medida que a sociedade se tornava mais
rica. O sistema de imposição privada funcionou tanto porque a
dissuasão poderia ser produzida como um bem privado quanto
porque a composição fornecia um incentivo para os promotores
e uma punição para os criminosos. O sistema de punições
severas ameaçadas, mas muitas vezes não impostas, fornecia um
incentivo para manter sistemas de deferência e boa reputação,
talvez também uma forma de assustar criminosos potenciais
para que não se tornassem criminosos atuais. Não sabemos o
suficiente para dizer se as instituições escolhidas foram as
melhores possíveis. Mas elas funcionaram melhor do que se
poderia esperar dos argumentos apresentados contra elas tanto
na época quanto agora.
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16
Direito Ateniense: A
Obra de um
Economista Louco
A cidade-estado de Atenas nos séculos IV e V a.C., da
época de Péricles à época de Demóstenes, é famosa por dois
motivos: como fonte de uma grande quantidade de literatura que
ainda sobrevive e como o primeiro exemplo proeminente de
democracia. Para a maioria dos modernos, a democracia implica
um sistema em que os funcionários do governo são escolhidos
por maioria de votos ou nomeados por políticos assim
escolhidos. Os atenienses tinham uma abordagem bastante
diferente. As leis eram feitas por maioria de votos da
Assembleia (Ekklesia), que consistia em todos os cidadãos
adultos do sexo masculino que escolheram comparecer. Mas os
funcionários — magistrados — eram selecionados por sorteio,
cada um para servir por um período de um ano; os únicos
funcionários aos quais isso não se aplicava eram os generais. O
resultado foi um governo de amadores e um sistema legal e
político projetado para acomodá-lo. Era um sistema legal
contendo várias ideias inteligentes de pessoas inteligentes,
algumas das quais provavelmente funcionaram e outras
provavelmente não.
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A População Ateniense
A população era dividida em três grandes grupos:
cidadãos, metecos e escravos. Era cidadão se fosse filho
reconhecido de pais cidadãos casados,1 devidamente registados
como tal, embora fosse possível, em circunstâncias
excepcionais, conceder a cidadania a um não cidadão. Ser
cidadão dava a você um conjunto de direitos políticos e
econômicos, incluindo o direito de se casar com um cidadão
ateniense e, se fosse homem, o direito de votar na assembléia,
servir como magistrado, ser voluntário como jurado, servir
como árbitro pago em seu sexagésimo ano e possuir propriedade
na Ática.
Os metecos eram estrangeiros residentes, às vezes
residentes por várias gerações. Eles não podiam ser escolhidos
como magistrados ou votar na assembleia, podiam processar
alguns, mas não todos os tipos de casos legais. Seus direitos
econômicos eram mais limitados do que os de um cidadão; eles
não podiam, exceto por dispensa especial, possuir terras na
Ática. Um meteco tinha que ter um patrocinador cidadão que
fosse até certo ponto responsável por ele. Um meteco pode
receber cidadania ou alguns dos direitos de cidadania como
recompensa por algum serviço particularmente valioso.
A escravidão por dívida foi abolida como parte das
reformas de Sólon cerca de duzentos anos antes do início do
período em discussão, de modo que a maioria dos escravos eram
prisioneiros feitos na guerra ou seus descendentes. Eles podem
1Ao mesmo tempo, era suficiente que um dos pais fosse cidadão.
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Direito Ateniense
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Leis e Tribunais
Por volta do século V, a assembleia havia se separado do
trabalho de julgar casos e funcionava principalmente como uma
legislatura. Os casos eram julgados por júris em um dos vários
tribunais, dependendo da lei em que as acusações eram feitas. O
procedimento era supervisionado pelo magistrado associado a
essa categoria de crime. Ele recebia as acusações que iniciavam
o processo e presidia o julgamento, mas o veredito cabia ao júri.
A cada ano, 6.000 jurados eram selecionados por sorteio
entre os voluntários; a única qualificação era ser cidadão do
sexo masculino e ter pelo menos 30 anos. O tamanho do júri
para um caso variou ao longo do tempo e de acordo com a
natureza do caso, mas geralmente parece ter sido de 200 a 500.
Os jurados recebiam ½ dracma para cada dia que serviam, cerca
de metade do salário de um remador, então o serviço do júri
fornecia uma espécie de bem-estar de baixo custo. Se aceitarmos
uma estimativa de 30.000 para o número total de cidadãos
adultos do sexo masculino, a qualquer momento cerca de um
quinto deles estava no conselho do júri. Mesmo admitindo o fato
de que um jurado pode não servir todos os dias, isso sugere que
os julgamentos absorveram a atenção de uma fração substancial
da população cidadã.
Os jurados davam seu veredicto por maioria de votos. As
quantias em jogo no litígio podiam ser substanciais e os jurados
provavelmente eram pobres, o que levantava um risco óbvio de
suborno. Para evitar isso, os atenienses criaram procedimentos
elaborados destinados a garantir que nenhum jurado soubesse
para qual caso seria designado até o último minuto.
Nenhum texto completo das leis sobreviveu, apenas
trechos citados nos discursos escritos por redatores de discursos
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Miasma
Os atenienses, como os ciganos e os índios cheienes,
acreditavam que certos atos resultavam em poluição; seu
equivalente a marimé era o miasma. Era contagioso e trazia má
sorte.10 Uma das consequências era que um julgamento de
assassinato tinha de ser feito a céu aberto, por medo de que, em
um espaço fechado, o miasma se espalhasse do réu para outros
presentes. Outra era que alguém acusado de assassinato não
tinha permissão para estar presente em templos ou tribunais. Em
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Direito Ateniense
Casamento e Herança
Como resultado de uma lei introduzida por Péricles, para
que alguém fosse um cidadão ateniense, ambos os pais deveriam
ser cidadãos.13 O casamento era monogâmico, embora o marido
também pudesse ter uma concubina, uma posição reconhecida
com menos status do que a de esposa; a concubina podia ser
uma escrava ou uma não cidadã livre, como uma meteca. Uma
mulher livre, esposa, concubina ou não casada, deveria ter um
senhor, um kyrios,14 um homem responsável por sustentá-la. Ele
também era responsável por representá-la em juízo, já que uma
mulher cidadã não poderia processar em seu próprio nome.
Antes do casamento, o kyrios de uma mulher era seu pai,15
depois do casamento, seu marido. Se seu marido morresse e ela
voltasse para sua própria família, seu kyrios era novamente seu
pai. Se ela permanecesse no que tinha sido a casa de seu marido,
seria o chefe dessa casa, geralmente seu próprio filho ou outro
filho de seu marido.
Para uma mulher ficar primeiro noiva e depois casada
exigia o consentimento não da mulher, mas de seu kyrios,
geralmente seu pai. O divórcio era permitido por iniciativa de
ambos os lados, com o dote da mulher voltando para o homem
que o havia fornecido, novamente geralmente seu pai. Um
moribundo poderia atribuir esposa e dote a outro ou especificar
em seu testamento a quem eles deveriam ir.
13Não está claro se o casamento foi alguma vez proibido entre cidadãos e não
cidadãos, mas pode ter sido no século IV.
14O mesmo título foi usado para o chefe de família. Se uma mulher fosse
casada com um homem que vivia na casa de seu pai, seu kyrios seria seu
marido, mas o kyrios da casa da qual ela fazia parte seria o pai de seu marido.
15Ou irmão ou, em algumas circunstâncias, tio, se o pai dela não estivesse
mais vivo.
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Aplicando Regras
Existem muitas maneiras diferentes de aplicar as regras.
Se alguém quebrar seu braço, chame um policial. Se ele quebrar
sua janela, chame um advogado. Direito penal e direito de torts
são mecanismos diferentes para fazer o mesmo trabalho.
Alguém faz algo ruim a alguém, o sistema legal é acionado, algo
ruim acontece com ele; essa é uma razão para não fazer coisas
ruins para as pessoas. Em um caso o agressor é encontrado e
processado pela polícia e Ministério Público, no outro pela
vítima e seus agentes, mas a lógica em ambos os casos é a
mesma. Às vezes, uma ou ambas as abordagens podem ser
usadas; O.J. Simpson foi primeiro absolvido do crime de matar
sua esposa e depois condenado pelo tort de matar sua esposa.
O direito penal e o de tort são partes familiares dos
sistemas jurídicos sob os quais vivemos, mas agora examinamos
várias abordagens menos familiares à aplicação da lei.
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Direito Penal
No direito penal, todos os três trabalhos são feitos por
profissionais contratados por um governo para fazê-los. O ideal
é que todos os envolvidos no projeto, desde guardas
penitenciários e policiais até os políticos responsáveis por
selecionar e controlar todos os demais, atuem no interesse geral
da população que atendem, fazendo o possível para condenar os
culpados e absolver os inocentes enquanto minimizando os
custos líquidos do processo.
Esse é um resultado desejável, mas difícil de alcançar.
Políticos e policiais, como todos nós, estão mais interessados em
servir aos seus próprios objetivos do que aos de outras pessoas.
Se o verdadeiro criminoso não puder ser encontrado, pode haver
muito a ser dito para encontrar outra pessoa que possa ser
condenada; o que os eleitores não sabem não os prejudicará. Se
forem necessárias contribuições de campanha, grupos
organizados de funcionários do governo, como policiais e
guardas prisionais, são um dos lugares para obtê-los, o que dá ao
político um incentivo para seguir as políticas que esses grupos
de interesse apoiam. Na Califórnia, o sindicato dos guardas
penitenciários rotineiramente, e muitas vezes com sucesso, faz
lobby contra as políticas que reduziriam o número de
prisioneiros e, portanto, a demanda por seus serviços.
Alguns custos de aplicação do direito penal são pagos pela
agência de aplicação da lei que os incorre, dando-lhe um
incentivo para controlá-los. Outros custos são impostos a outras
pessoas sem compensação e, portanto, podem ser ignorados com
segurança, desde que essas pessoas tenham influência política
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Aplicando Regras
Direito de Torts
O direito de torts é a lei criminal com a polícia e o
promotor público substituídos pela vítima e seus agentes. É seu
trabalho descobrir quem cometeu o delito, reunir provas e
convencer o tribunal. A polícia e os procuradores públicos são
profissionais que fazem isso porque são contratados para isso. A
vítima do tort o faz para receber indenização; o que o autor do
tort paga como penalidade, a vítima bem-sucedida recebe como
recompensa. A vítima pode ter o incentivo adicional de
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Aplicando Regras
6Não estou oferecendo aqui nada que se aproxime de uma teoria completa de
punição ideal ou aplicação ideal; os leitores interessados no assunto o
encontrarão no capítulo 15 de Friedman 2000. A regra simples “estabeleça
uma punição média igual ao dano causado, de modo a dissuadir qualquer
delito que beneficie o infrator em menos do que custa à vítima” é suficiente
para meus propósitos aqui embora, como demonstro lá, não seja estritamente
correto. Uma abordagem semelhante aplicada à forma como as regras são
aplicadas sugere evitar ações de execução que custem mais do que o valor da
dissuasão que fornecem.
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Aplicando Regras
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Aplicando Regras
Direito de Disputas
Todas essas três abordagens para a aplicação da lei — tort,
penal processado publicamente e penal processado
privadamente — são amplamente semelhantes. Alguém viola
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Aplicando Regras
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Aplicando Regras
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Aplicação Reputacional
Todas as formas de aplicação da lei até agora descritas
dependem da força ou da ameaça de força. Para um mecanismo
bem diferente, imagine que você comprou uma jaqueta em uma
loja de departamentos que garante a devolução do seu dinheiro
caso você não fique satisfeito com o que comprou. Você
descobre que a jaqueta que comprou é do tamanho errado e sua
esposa diz que a cor roxa não lhe agrada. Se a loja se recusar a
reembolsá-lo, é improvável que você os processe — o valor em
jogo não é suficiente para compensar o tempo e o trabalho. No
entanto, as lojas nessa situação provavelmente aceitarão a
jaqueta de volta — porque querem a reputação, com você e com
os outros, de cumprir suas promessas.
Um exemplo mais elaborado da mesma abordagem é
fornecido pela indústria de diamantes de Nova York, conforme
descrito em um artigo clássico de Lisa Bernstein.11 A certa
altura, um pouco antes da época em que ela estudou, a indústria
11Bernstein 1992.
450
Aplicando Regras
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Aplicando Regras
13Para uma discussão mais extensa dessas questões, incluindo sua relevância
para transações on-line anônimas, consulte Friedman 2005.
14Friedman 2002 inclui um modelo simples de aplicação reputacional
453
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Aplicando Regras
Ostracismo
Em seguida, considere o mesmo tipo de imposição, desta
vez usado como uma punição explícita.16 Uma comunidade
considera um de seus membros culpado de violar suas regras e
pronuncia uma sentença de ostracismo — marimé cigano ou
meidung amish. Outros membros se recusam a se associar com o
réu condenado. Se o ostracismo impõe grandes custos ao seu
alvo, a ameaça fornece uma razão para não violar as regras da
comunidade.
A razão para não se associar com o réu condenado não é,
como no caso anterior, evitar ser enganado, mas aplicar as
regras da comunidade. Isso cria um problema. Um indivíduo
que concorda com o ostracismo arca com o custo de desistir de
qualquer negociação mutuamente lucrativa que de outra forma
poderia ter com o réu. Ele compartilha o benefício de aplicar as
regras com todos os membros da comunidade, tornando
ostracismo o que os economistas descrevem como um bem
público, um bem cujo produtor não pode controlar quem o
16Pode-se interpretar os Tribunais de Feiras da Europa medieval como uma
mistura desta e da abordagem anterior. Se um comerciante se recusasse a
aceitar um veredito contra ele, outros se recusariam a negociar com ele, em
parte por medo de serem enganados, em parte para ajudar a aplicar as regras
da feira comercial.
455
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Aplicando Regras
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Aplicando Regras
estão fora daquele vitsa de aceitar seu líder como o Rom Baro, o
grande homem, a figura dominante em uma kumpania. Dessas e
de outras maneiras, a reputação é importante.
Um resultado de um romani individual violar as regras da
romania é que ele se torna marimé, poluído e, assim,
ostracizado. Outro é que seu vitsa perde status:
Essa é uma razão para cada vitsa usar a pressão social para
impedir que seus membros violem as regras e puni-los se o
fizerem.
Os grupos somalis que pagam dia fornecem outro
exemplo. Se um membro de tal grupo cometer um crime contra
um estranho, os outros serão obrigados a compartilhar o
pagamento dos danos ou a ajudar na disputa resultante. Essa é
uma razão para eles controlarem seus membros — por exemplo,
proibindo alguém muito inclinado a matar de carregar um fuzil.
O ‘akila da lei islâmica e o derbfine da lei irlandesa são
instituições semelhantes com funções semelhantes.
O sistema de responsabilidade comunitária é, como
sugerem esses exemplos, uma instituição antiga. Assim como o
reconhecimento acadêmico de sua função. Considere a resposta
de Adam Smith ao argumento de David Hume em favor de uma
religião estabelecida.
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Aplicando Regras
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mas criado para acreditar que 'um cavalheiro não trapaceia', do que contra um
filósofo moral irrepreensível que foi criado entre vigaristas.” (Lewis 1947,
15).
24Llewellyn e Hoebel 1983.
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Aplicando Regras
463
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Leeson 2013.
464
Aplicando Regras
Conclusão
Esbocei agora todas as abordagens para impor regras
jurídicas que observamos nos sistemas jurídicos discutidos aqui.
Todos têm problemas, mas não os mesmos problemas. Isso
sugere que qual sistema funciona melhor depende, pelo menos
em parte, da sociedade cujas regras devem ser aplicadas. Essa é
uma das razões pelas quais este livro é uma tentativa de
entender diferentes sistemas jurídicos, não para decidir qual é o
melhor.
465
18
O Problema do Erro
Se ninguém se beneficia com a imposição de uma regra
legal, a regra não será imposta. Se alguém se beneficia demais
ao condenar alguém por violar uma regra legal, podemos gastar
mais na aplicação da lei do que vale a melhoria resultante. Obter
o incentivo correto envolve o equilíbrio entre os benefícios da
aplicação da lei e seus custos. Poderíamos obter uma aplicação
quase perfeita dos limites de velocidade se cada estrada tivesse
um carro da polícia a cada poucos quilômetros, mas seria
necessário um número muito grande de policiais e carros.
Um segundo custo de condenar mais culpados é também
condenar mais os que não são. Se aumentarmos as condenações
reduzindo a quantidade de provas necessárias para condenar,
absolveremos menos réus culpados, mas condenaremos mais
inocentes. Se aumentarmos as condenações através do aumento
da recompensa para os policiais que prendem os apressadinhos,
aumentaremos o incentivo para que os policiais prendam os
motoristas que eles falsamente afirmam estarem em excesso de
velocidade e para que as localidades instalarem armadilhas de
velocidade projetados não para reduzir acidentes, mas para
aumentar as receitas. Trata-se de um problema quase tão antigo
quanto os automóveis.
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468
O Problema do Erro
3
De acordo com o National Registry of Exonerations, mantido pelas
faculdades de direito da Universidade de Michigan e da Northwestern
University, 15% dos exonerados se declararam culpados.
4
N.T.: “Plea bargaining” (lit. pleito de barganha) é no common law um
acordo em processo penal, por meio do qual o promotor oferece uma
concessão ao réu em troca de uma confissão de culpa ou nolo contendere.
5
Gross et. al. 2014 dão 4,1% como uma estimativa conservadora para a
fração de réus condenados à morte que eram inocentes. A conclusão deles é
baseada em dados sobre exonerações. Um réu pode ser exonerado com base
no fato de que as provas pelas quais ele foi condenado não eram fortes o
suficiente para satisfazer o requisito “além de uma dúvida razoável” para
prova criminal e ainda assim ser culpado, mas os autores acreditavam que o
viés de contar todas as exonerações como implicando inocência foi mais do
que superado por outros preconceitos na direção oposta. Roman et. al. 2012
fizeram uso de uma coorte de 634 casos da Virgínia datados de 1973 a 1987
para os quais a evidência de tecido sobreviveu. Seus resultados sugerem que
em cerca de 16% dos casos as provas, se analisadas, teriam reduzido a
probabilidade de condenação (minha análise de seus resultados).
469
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
6
“Por não prender um ladrão ou assaltante dentro de um mês, ele deveria ser
punido com sete ou dezessete golpes com um bastão leve, respectivamente;
por dois meses, dezessete ou 27 golpes, respectivamente; e por três meses, 27
ou 37 golpes, respectivamente. Por outro lado, ele seria recompensado por
prender um ladrão ou assaltante dentro do prazo.” Ch'en 1979 sobre as regras
para "arqueiros", policiais recrutados, sob a dinastia Yuan. “Se os policiais de
prisão não capturarem os ladrões forçosos dentro de um mês, eles serão
punidos com 20 golpes de espancamento com o bastão leve. Por dois meses a
pena […]” (artigo 418 do código Ming, Jiang 2005, 225). “Sempre que, pela
autoridade de um tribunal de justiça, consistindo de funcionários regulares do
governo e de funcionários oficiais, uma sentença injusta é proferida e
executada deliberada e intencionalmente, […] em todos esses casos, o
membro do tribunal que estiver em primeiro lugar no ponto de
responsabilidade, sofrerá punição em grau igual ao que foi, quando não
deveria ter sido, ou não foi, quando deveria ter sido infligido. Sempre que a
sentença injusta não tiver sido proferida voluntariamente, mas por erro,
haverá redução em cada caso, de três graus na pena, se a injustiça consistir
em agravamento; e de cinco graus, se consistisse em atenuante da pena.”
(Staunton 1810, 466-468).
7
Mastro et. al. 2000, Benson et. al. 1995. Veja também:
https://fee.org/articles/highway-robbery/. O problema também pode aparecer
em casos de alto perfil em que o procurador precisa de uma condenação para
promover suas ambições políticas.
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O Problema do Erro
8
Volokh 1997 fornece um histórico detalhado de várias versões da regra.
9
Para detalhes veja Leeson 2012 e Langbein 1978.
471
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10
Pace Langbein, os judeus fizeram uma tentativa ainda mais extrema,
exigindo não apenas duas testemunhas, mas duas testemunhas que avisaram
o ofensor com antecedência.
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O Problema do Erro
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11
Nos Estados Unidos, em 2006, cerca de 1,2 milhão de pessoas foram
condenadas por um crime. Se cada um deles tivesse um julgamento com júri
de 7,2 dias, o total seria de 8,6 milhões de dias de julgamento. Supondo que
os tribunais funcionem cinco dias por semana, 52 semanas por ano, apenas os
casos criminais exigiriam o esforço em tempo integral de 33.000 juízes.
Adicione mais alguns para os julgamentos dos réus que foram absolvidos.
São cerca de 30.000 juízes nos sistemas judiciários estaduais e outros 1.700
no sistema federal. Para cada juiz, o processo precisaria de doze jurados e um
número ainda maior de advogados, testemunhas, oficiais de justiça, membros
adicionais do júri e assim por diante. Vale a pena notar, no entanto, que a
Atenas de Péricles empregava como jurados uma fração substancialmente
maior de sua população.
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O Problema do Erro
12
Citado em Elon 1994 por Joseph Caro, Shulhan Arukh HM cap. 2.
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Padrões de Prova
Ao estabelecer o padrão probatório, um sistema jurídico
está equilibrando o benefício de condenar mais réus culpados
contra o custo da condenação de mais réus inocentes. A
condenação dos inocentes pode ser menos importante ou a
dissuasão ser mais importante para algumas ofensas do que para
outras. Isso seria um motivo para usar diferentes padrões de
prova para diferentes ofensas.
No common law anglo-americano, o padrão de prova para
um caso civil é uma preponderância da prova, comumente
interpretada como uma probabilidade de culpa acima de
cinquenta por cento. O padrão em um caso criminal é uma prova
além da dúvida razoável. Por que a diferença? Não pode ser
apenas uma questão de padrões mais elevados quando há mais
em jogo, uma vez que o padrão criminal se aplica tanto a crimes
menores quanto a crimes maiores, o padrão civil para processos
que envolvem dezenas de milhões de dólares em indenizações,
assim como processos por pequenas quantias.
Uma resposta possível é que um erro no caso civil
significa que alguém paga dinheiro, que outra pessoa recebe.
Isso pode ser injusto, mas o custo da penalidade rende zero. No
caso criminal, ninguém recebe a vida ou a liberdade que o réu
inocente perde. Portanto, condenar o inocente é mais caro no
caso criminal, sendo uma razão para um padrão de prova mais
elevado.
O argumento pode ser generalizado tanto para padrões de
prova em outros sistemas legais quanto para outras formas de
conter os custos da punição. Na lei islâmica, dar à vítima ou a
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14
“O documento orienta especificamente os agentes a omitir o envolvimento
do SOD em relatórios investigativos, depoimentos, discussões com
procuradores e depoimentos em tribunal. Os agentes são instruídos a usar
‘técnicas normais de investigação para recriar as informações fornecidas pelo
SOD.’” (De uma história da Reuters publicada em 05/07/13:
http://www.reuters.com/article/us-dea-sod-idUSBRE97409R20130805) O
SOD é a Divisão de Operações Especiais (Special Operations Division) da
DEA (Drug Enforcement Agency) que canalizava as informações obtidas da
NSA e de outras fontes para os agentes da lei.
15
Scott 1910.
480
O Problema do Erro
Mudando Incentivos
Outra abordagem ao problema de proteger os inocentes da
condenação é fazer com que seja do interesse dos procuradores
de justiça evitar processar os réus inocentes. Um exemplo é
dado pela lei ateniense. Seu equivalente em casos criminais
poderia, como em casos criminais na Inglaterra do século XVIII,
ser processado privadamente por qualquer cidadão adulto do
sexo masculino (no caso inglês, também do sexo feminino). A
condenação geralmente levava a uma grande multa, uma parte
da qual ia para o procurador bem-sucedido. Para reduzir o risco
de que um procurador pudesse deliberadamente visar um réu
inocente, a lei ateniense previa que caso um promotor não
conseguisse que pelo menos 20% do júri votasse a favor da
condenação fosse, ele próprio, multado e proibido de participar
em qualquer processo futuro de casos semelhantes. Isso deu aos
481
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
482
O Problema do Erro
18
Verdadeiro para o sistema jurídico galês (Ireland 2015, 3-4, 14, 16), o
sistema jurídico islandês e o sistema jurídico somali. Na lei judaica, furto,
tomada secreta, era punido com mais severidade do que assalto, tomada
aberta.
483
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Disputa
Alguém que decide se deve exigir uma indenização por
danos possui dois incentivos: a compensação e a dissuasão. Ele
tem um incentivo contrário — a violência que pode resultar,
incluindo tanto o choque imediato se ele tentar levar a cabo sua
ameaça e os conflitos subsequentes se a outra parte retaliar.
Quanto mais claro for que ele está certo e o outro errado, como
julgado por potenciais aliados de ambos, mais provável é que o
outro ceda à sua demanda e mais baixos os custos esperados do
conflito. A probabilidade de um sistema de pura contenda punir
as pessoas certas depende, portanto, do grau de precisão com
que outros na comunidade podem julgar a culpa, o que explica
por que tais sistemas tipicamente incluem algum mecanismo de
arbitragem de terceiros. O veredito de um árbitro ou tribunal de
confiança fornece a terceiros interessados as informações sobre
quem é culpado, sem exigir que eles mesmos investiguem as
reivindicações das partes.
As mesmas considerações entram no lado do benefício do
cálculo. Iniciar uma rixa só proporciona dissuasão contra futuros
erros se aqueles que possam cometê-los acreditarem que você
foi realmente injustiçado, portanto, encarem sua resposta como
prova de que seria prudente que eles não o futuramente te
484
O Problema do Erro
Aplicação Reputacional
O direito de torts, o direito penal e a disputa desencorajam
os delitos impondo penas aos infratores; o infrator é punido
devido a ações de alguém que tenta puni-lo. A aplicação
reputacional também impõe custos ao infrator, mas esses custos
são um efeito indireto de indivíduos que optam por se proteger,
não lidando com partes que acreditam não serem confiáveis.
Se seu julgamento estiver correto, sua ação os beneficia;
se estiverem errados, estão renunciando a oportunidades para
transações potencialmente benéficas. Isso lhes dá um incentivo
para distinguir inocentes de culpados e, ao contrário de
promotores que serão recompensados por uma condenação,
nenhum incentivo para condenar os inocentes. Mas embora não
haja benefício em condenar os inocentes, geralmente há apenas
um pequeno custo para fazê-lo, já que na maioria das vezes há
outras lojas de departamento e outros comerciantes de diamantes
para com os quais negociar. Por isso, os terceiros cujos atos
proporcionam a aplicação reputacional possuem apenas um
fraco incentivo para evitar a condenação de inocentes.
A gravidade deste problema depende da facilidade com
que os terceiros podem determinar quem é o culpado em uma
disputa. Se isso for difícil e o benefício for pequeno, eles
podem, em vez disso, atribuir alguma probabilidade de culpa ao
485
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Ostracismo
Punir os infratores pelo ostracismo possui uma
característica atraente em comum com a aplicação reputacional:
a punição é cara tanto para aqueles que a impõem quanto para
aqueles a quem é imposta, dando aos primeiros algum incentivo
para acertar. Por outro lado, é fácil imaginar circunstâncias nas
quais um membro de uma comunidade possa se beneficiar
expulsando outro, talvez um rival no amor ou na política
comunitária. Se o primeiro é influente ou muito persuasivo e o
segundo impopular, há um incentivo, e um risco, de falsa
condenação.
Aplicação Divina
Se os infratores em potencial acreditam em um poder
sobrenatural que pune aqueles que violam a lei divina, eles têm
um incentivo para não fazer. A religião fornece o mecanismo
perfeito para punir os culpados, e somente os culpados, desde
que a religião seja verdadeira e a divindade onisciente. Funciona
razoavelmente bem, mesmo que a religião não seja verdadeira,
desde que infratores potenciais acreditem nela. Um cigano
tradicional possui um incentivo para evitar a poluição, mesmo
que ele tenha certeza de que ninguém o está observando, embora
menos do que quando sanções sobrenaturais são reforçadas por
486
O Problema do Erro
19
Leeson 2012a.
487
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Corrigindo Erros
Uma última questão é o que pode ser feito para corrigir os
erros quando e se eles forem descobertos. A resposta depende,
em parte, da forma de punição. Se for uma multa ou um
pagamento por danos, o dinheiro pode, pelo menos em
princípio, ser devolvido. Se for uma punição contínua, como
prisão ou ostracismo, o inocente condenado pode, pelo menos,
ser liberto do restante de sua sentença. Quando se descobre que
alguém que foi punido era inocente, ele pode ser compensado
com dinheiro, desde que ainda esteja vivo, e alguns sistemas
legais modernos tentam fazê-lo.20 Se um réu é descoberto
inocente somente após ter sido executado, por outro lado, não há
muito o que possa ser feito para compensá-lo.
Outra possibilidade, caso se demonstre que um veredito
foi equivocado, é punir os responsáveis pelo erro. Se a falsa
condenação for devida a delitos cometidos pelo aparelho
jurídico, por um procurador que ocultou provas aliviadores de
culpa ou por um policial que prestou falso testemunho, parece
justo punir os responsáveis. O problema com esta abordagem,
como mencionado anteriormente, é que estabelecer a inocência
de alguém que foi condenado por um crime que não cometeu
provavelmente precisará da cooperação do sistema legal que o
condenou, o que é menos provável quanto maior for o risco para
os membros desse sistema legal.
20
Nos EUA, 32 estados, o governo federal e o distrito de Columbia têm
algum tipo de estatuto de compensação. Existem regras semelhantes em
muitos, mas não em todos os outros países.
488
19
Fazendo o Direito
Os sistemas jurídicos que examinamos demonstram
algumas das maneiras pelas quais as regras passam a existir e se
alteram ao longo do tempo. Este capítulo é sobre as implicações
de cada um. Como veremos, não há relação simples de um para
um entre sistemas jurídicos e maneiras de criar leis. O atual
sistema estadunidense foi possivelmente criado e mudado pelo
menos de três diferentes maneiras, a lei judaica e muçulmana
em quatro.
Inspiração Divina
Ao menos dois dos sistemas jurídicos que nós
examinamos são vistos pelos crentes como baseados em
mandamentos divinos — direito judaica na Torá, escrita e oral,
direito muçulmano no Alcorão e no hadith. Isso levanta vários
problemas.
Um deles é o risco de inconsistência decorrente de versões
inconsistentes do texto autoritativo. No caso do Alcorão, um
texto oficial foi estabelecido sob Abd al-Malik (65/685—
86/7051) e todas as demais versões foram destruídas. Um
processo similar pode ter ocorrido com a Torá escrita em
umadata anterior.2 O problema permaneceu com a Torá oral,
que consiste em instruções que se acredita terem sido dadas por
1
Datas dadas primeiro como A.H., o calendário muçulmano, e depois A.D.
2
As versões variantes nos pergaminhos do Mar Morto são evidências de que
o texto do Antigo Testamento era fluido até cerca de 100 d.C.
489
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
490
Fazendo do Direito
3
O Alcorão berbere. (Von Grunebaum1997, 118. Hodgson1844, 40).
4
Quem foi o imam final e quando é uma das questões sobre as quais
diferentes seitas xiitas divergem. As seitas xiitas ismaili setimanas
reconheceram uma dinastia contínua de imams divinamente inspirados e, no
caso dos nizari, ainda o fazem na pessoa de Aga Khan. De acordo com a
doutrina duodecimana, o imam final iniciou sua ocultação menor em 874,
continuando a interagir com os fiéis por meio de deputados até 941, o início
de sua ocultação maior.
491
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Interpretação
Deus nunca responde todas as perguntas que importam. A
lei divinamente inspirada, assim como a lei legislada, exige
interpretação; não há fronteira nítida entre a interpretação que
preenche lacunas ou esclarece ambiguidades na lei religiosa e a
interpretação que produz uma nova lei. No caso dos judeus, as
interpretações ocorreram primeiro pelo voto do Grande
Sinédrio, e mais tarde como decisões e tratados de eruditos cuja
autoridade era baseada em suas reputações. A oportunidade para
mais interpretações foi mantida aberta pela doutrina de hilkheta
ke-vatra'ei, “a lei está de acordo com as opiniões das últimas
autoridades”.5 Eventualmente o Bet Yosef e o Shulhan Arukh de
Joseph Caro, juntamente com comentários associados, passaram
a ser aceitos na maior parte da diáspora.
Estudiosos islâmicos divergiam quanto as regras para
interpretar o Alcorão e o Hadith, divergindo, assim, sobre suas
conclusões jurídicas. O processo, para os muçulmanos sunitas,
era conduzido através das escolas ortodoxas de direito,
eventualmente reduzidas a quatro. Diferentes muçulmanos
poderiam escolher aceitar a interpretação de diferentes escolas,
apesar de frequentemente uma escola ser dominante em uma
região. Dentro de uma escola pode haver discordância sobre
alguns pontos entre as diferentes autoridades, levando a regras
dentro de cada escola para escolher entre as interpretações
baseadas no status relativo dos diferentes estudiosos. Todas as
quatro escolas aceitavam a doutrina do consenso, segundo a qual
5
“Jefté em sua geração tem tanta autoridade quanto Samuel em sua geração.”
492
Fazendo do Direito
Legislação
O mecanismo de produção de lei mais familiar aos
modernos é a legislação. Na China Imperial a autoridade era o
Imperador, em Atenas era a assembleia, na lei judaica as
autoridades comunais. Na legislação amish, a mudança no
conteúdo do Ordnung de uma congregação é proposta pelo
bispo, mas requer a aceitação unânime da congregação.
O caso mais estranho daqueles que examinamos pode ser
o dos cheienes. Em pelo menos um caso, as regras acrescentadas
ao direito consuetudinário pela declaração de uma única
sociedade de soldados após a resolução de uma disputa eram
vistas como obrigatórias no futuro para todos os cheienes. Um
493
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Precedente
Outra abordagem para criar leis é o precedente vinculante.
Uma decisão de um tribunal é obrigatória para os futuros
tribunais abaixo de seu nível, determinando leis não apenas para
o caso sendo interpretado, mas também para casos futuros.
O precedente tem várias vantagens sobre a legislação.
Uma vez que surge da resolução de um grande número de casos,
6
Sutherland (1975, 131-2) descreve um diwano, uma reunião de discussão
menos formal que um kris, onde “os líderes dos vitsi da Costa Oeste se
reuniam para decidir novas políticas […]. […] foi decidido que, se um
casamento fracassar, metade do preço da noiva deve ser devolvido, […].”
“Em outro desenvolvimento recente, mais de duzentos ciganos se reuniram
para um kris consultivo em Houston para discutir a melhoria dos direitos das
mulheres divorciadas sob o sistema jurídico cigano, para acompanhar os
desenvolvimentos na lei americana e remover o incentivo para as mulheres
ciganas apelarem para o sistema legal americano para um remédio mais
forte.” (Weyrauch 2001, 46).
494
Fazendo do Direito
495
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496
Fazendo do Direito
497
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498
Fazendo do Direito
Misturar e Combinar
Como alguns desses exemplos mostram, sistemas reais
misturam múltiplas abordagens para fazer as leis. O Ordnung de
uma congregação amish pode ser visto como uma legislação por
consentimento unânime, mas o processo pelo qual ele muda se
parece mais como o direito consuetudinário. O sistema jurídico
499
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500
Fazendo do Direito
8
Schroeder 1955, 242.
9
No contexto da análise econômica do direito, isso geralmente é colocado em
termos de lei economicamente eficiente ou maximizadora de riqueza. Para os
propósitos deste livro, prefiro ser mais vago do que isso.
501
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502
Fazendo do Direito
13
Friedman 2014, capítulo 53.
503
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
Competição na Lei
Depois de ter assinado um contrato com você, eu iria
preferir uma lei que me favorecesse em qualquer disputa
resultante. Mas antes de termos assinado o contrato, nós temos
um interesse em comum na lei que maximiza nosso benefício
combinado, que aumenta o tamanho da torta a ser dividida entre
nós. Isso sugere que um sistema jurídico em que indivíduos
tenham que escolher de antemão o juiz, o árbitro, ou o tribunal
que irá interpretar seus contratos tenderá a produzir boas leis, ao
menos para as partes contratantes. Até certo ponto, esse era o
caso do sistema islâmico tradicional, em que as partes podiam
optar por estabelecer seu contrato com um tribunal seguindo a
escola de direito cuja visão do direito contratual eles preferiam.
É, até certo ponto, o caso do direito societário moderno dos
Estados Unidos, que é em parte uma definição dos termos de um
contrato entre os acionistas de uma corporação, uma vez que os
criadores originais de uma corporação podem escolher em que
estado estabelecê-la. E isso é verdadeiro para o direito não
estatal criado por mecanismos de arbitragem obrigatória.
O mesmo princípio também se aplica em uma escala
menor. Um contrato é em si mesmo um sistema jurídico em
miniatura, um conjunto de regras concordadas por ambas as
partes contratantes para controlar sua interação. É do interesse
das partes contratantes escolher regras que maximizem seus
ganhos totais advindos dessa interação.
14
Para uma explicação mais detalhada deste ponto, veja Friedman 1992,
minha crítica do livro de Ellickson.
504
Fazendo do Direito
505
20
Vigiando o Vigia
Quis custodiet ipsos custodes?1
Para uma versão posterior do problema, com solução, consulte “The English
Padlock” de Mathew Prior.
507
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
508
Vigiando o Vigia
509
Sistemas Legais Muito Diferentes do Nosso
artigos de crítica de direito sobre o tema. Também Hall 1936 e Foote 1955.
8O caso Steve Jackson é descrito em Sterling 1993, 133-139.
510
Vigiando o Vigia
511
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512
Vigiando o Vigia
513
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514
Vigiando o Vigia
515
21
Ideias que Podemos
Usar
Não escrevi esse livro na esperança de encontrar o sistema
legal ideal. Eu duvido que haja algum. Meu propósito é
entender alguns dos diferentes modos como diferentes
sociedades têm lidado com problemas que um sistema legal é
projetado para resolver. Um benefício dessa tentativa é o
descobrir ideias que valeria a pena copiar.
Torts Comercializáveis
Na lei de tort moderna, fica por conta da vítima o ato de
identificar e processar o autor do tort. No sistema Islandês,
também cabia a vítima, assim que obtivesse um veredito do
tribunal, aplicá-lo. Isso poderia ser um problema para uma
vítima com recursos insuficientes, definido basicamente em
termos da capacidade de usar a força, dele mesmo ou com
auxílio de aliados, para processar o caso e aplicar o veredito. A
solução descrita no capítulo 10 foi a de tornar as reivindicações
comercializáveis, permitindo à vítima transferir sua
reivindicação para alguém mais capaz de executá-la. Ele poderia
ou não terminar com uma parte do pagamento por danos — mas
então, as vítimas de crimes geralmente não arrecadam nada sob
nosso sistema. Ao menos o criminoso pagaria, dando aos
potenciais criminosos uma razão para não violar os direitos das
vítimas fracas.
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1
Para uma descrição mais detalhada de como tal sistema legal poderia
funcionar, veja Friedman 2000, 99-100, 266, 282.
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Disputa
Eu não espero que os EUA se convertam para um sistema
legal que seja descentralizado e privadamente aplicado tão cedo,
embora eu tenha esboçado como algo nesse sentido poderia
parecer em meu primeiro livro, quarenta e poucos anos atrás.2
Mas um entendimento da lógica da direito de disputas pode nos
ajudar a compreender os conflitos legais no mundo moderno.
2
Friedman 1973.
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O Queixoso Invulnerável
Tanto a Samsung quanto a Apple produzem telefones
celulares, e isso as tornam vulneráveis à ameaças de retaliação.
Uma empresa que não produz nada não é. Uma entidade não
praticante, referida pelos críticos como um troll de patentes,
possui uma coleção de patentes, não põe nenhuma delas em
prática, processa entidades praticantes por suposta infração, mas
não enfrenta o risco de um contraprocesso por infração. É
invulnerável à retaliação, como um islandês com uma armadura
tão boa que nenhuma espada pode cortá-la.
A entidade não praticante, como a Apple, tem a
possibilidade de lucrar com o erro judicial, ganhando uma causa
que deveria ter perdido e cobrando indenização. E embora a
imposição de custos à Samsung não forneça nenhum benefício
direto à entidade não praticante, ela dá à Samsung um incentivo
para fazer um acordo em vez de deixar o caso ir a julgamento.
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3
Uma observação feita em verso, em um contexto um pouco anterior, por
Rudyard Kipling.
4
Na lei vigente do direito inglês, a compensação é pelo quanto o tribunal
acredita que deveria ter sido, não pelo quanto os custos realmente foram. E
sob o direito americano a parte prevalecente pode, às vezes, receber seus
custos pagos se o tribunal enxergar a posição da parte perdedora como
suficientemente sem mérito.
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que vale a pena no mercado e o preço mais baixo pelo qual ele
ficaria feliz em vendê-la.
A vantagem do imposto autoavaliado sobre propriedade é
que nos dá um mecanismo de estabelecimento do valor a ser
taxado que não dependa da existência de avaliadores honestos e
competentes. Um argumento contrário que pode ocorrer a
alguns é que é injusto tributar o valor subjetivo em vez do valor
de mercado, para me fazer pagar pelo valor emocional especial
para mim da casa em que meus filhos cresceram, das árvores
frutíferas que plantei. Outro é que a insegurança da donidade da
minha casa é um preço muito alto a pagar pela vantagem de um
valor automaticamente avaliado.
Na minha experiência, é a última questão que faz com que
muitas pessoas considerem a proposta não apenas indesejável,
mas ultrajante. Uma modificação possível seria ter a
propriedade avaliada para fins de tributação na maneira mais
convencional, mas permitir que um proprietário revise o valor
tributável de sua propriedade, se desejar, declarando sua vontade
de vender a um preço mais baixo.
O argumento usual para o domínio eminente, a regra legal
que permite um governo obrigar um proprietário vender a um
preço estabelecido pelo comprador do governo, é que é
necessário impedir que o proprietário de uma propriedade que
bloqueie um projeto como uma nova rodovia aproveite a
situação para cobrar um preço excessivamente alto. Com um
imposto sobre propriedade autoavaliado a propriedade já tem
um preço definido pelo proprietário, eliminando o problema e,
assim, eliminando o argumento de dar aos governos o poder de
forçar um proprietário a vender a um preço definido pelo
comprador.
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6
Para uma discussão moderna da questão, veja o capítulo 3 de Jackson et. al.
2010.
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7
N.T.: “Overcharging”, no common law, refere-se a uma prática processual
que envolve "aplicar" acusações adicionais que o promotor sabe que não
pode provar. É usado para colocar o promotor em uma melhor posição para
plea bargaining.
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8
Na Flórida, a posse é uma contravenção punível com até sessenta dias de
prisão mais suspensão de privilégios de condução. Em Illinois, fornecer
álcool a um menor de idade é uma contravenção com multa de até $2.500 e
um ano de prisão ou um crime com pena de um ano ou mais de prisão e
multa de até $25.000.
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9
Hay 1989.
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1
Duas pessoas diferentes assumem a responsabilidade pela mesma tradução,
cada uma com uma versão na rede.
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