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DOI: 10.1590/1413-81232014194.

15202013 1053

ARTIGO ARTICLE
O ensino das ciências sociais em saúde: entre o aplicado e o teórico

The teaching of social sciences in health:


between practice and theory

Nelson Filice de Barros 1

Abstract The models of teaching social sciences Resumo Os modelos de ensino de ciências sociais
and clinical practice are insufficient for the needs e da clínica são insuficientes para as necessidades
of practical-reflective teaching of social sciences prático-reflexivas quando aplicados à saúde. O
applied to health. The scope of this article is to objetivo deste artigo é refletir sobre os desafios e as
reflect on the challenges and perspectives of social perspectivas do ensino de ciências sociais para
science education for health professionals. In the profissionais da saúde. Na década de 1950 ini-
1950s the important movement bringing together ciou-se o importante movimento de aproxima-
social sciences and the field of health began, how- ção das ciências sociais com o campo da saúde, no
ever weak credentials still prevail. This is due to entanto prevalecem relações de fraca credencial,
the low professional status of social scientists in devido: baixo status profissional dos cientistas so-
health and the ill-defined position of the social ciais na área da saúde; localização pouco clara
sciences professionals in the health field. It is also dos profissionais de ciências sociais no campo da
due to the scant importance attributed by stu- saúde; pequena importância atribuída pelos es-
dents to the social sciences, the small number of tudantes às ciências sociais; reduzido número de
professionals and the colonization of the social sci- profissionais e a colonização das ciências sociais
ences by the biomedical culture in the health field. pela cultura biomédica no campo da saúde. Dessa
Thus, the professionals of social sciences applied to maneira, aos profissionais das ciências sociais
health are also faced with the need to build an aplicadas à saúde ainda é colocada a necessidade
identity, even after six decades of their presence in de construir uma identidade, mesmo após seis
the field of health. This is because their ambiva- décadas de presença neste campo, pois sua condi-
lent status has established them as a partial, in- ção ambivalente os tem fixado como presença par-
complete and virtual presence, requiring a com- cial, incompleta e virtual, exigindo estratégia
plex survival strategy in the nebulous area between complexa de sobrevivência na fronteira entre as
social sciences and health. ciências sociais e a saúde.
1
Departamento de Saúde Key words Social sciences, Sociology of health, Palavras-chave Ciências sociais, Sociologia da
Coletiva, Faculdade de
Teaching, Identity, Integration saúde, Ensino, Identidade, Integração
Ciências Médicas,
Universidade Estadual de
Campinas. R. Tessália
Vieira de Camargo 126,
Barão Geraldo. 13.083-887
Campinas SP Brasil.
filice@fcm.unicamp.br

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Introdução tações legais e simbólicas, referentes a cada con-


texto e cultura. Para concluir, abro o diálogo apro-
Este artigo resulta de uma “sociologia da práti- fundando sobre as implicações de usar conceitos
ca”1-6 situada em uma “ambivalência”7,8. Em ou- e teorias sociais como insumo, ou sobre os efeitos
tras palavras, é um trabalho de apreensão do de tratar uma ação social como algodão, uma
senso prático da docência na ação de teorização vida como uma mercadoria. Porém, é necessário
na interface entre o campo das Ciências Sociais e como cientistas sociais ensinando profissionais
da Saúde. de saúde, também, perguntar: como garantir que
Os modelos conhecidos de ensino de ciências o processo sócio-histórico dos insumos utiliza-
sociais e da clínica são insuficientes para nossas dos na saúde seja possível de ser construído mes-
necessidades, uma vez que priorizam exclusiva- mo por quem faz curativo?
mente ou o polo reflexivo ou o prático e nossa O objetivo deste artigo é refletir sobre os de-
praxis exige métodos prático-reflexivos em dife- safios e as perspectivas tematizados nas questões
rente cenários formativos. De outra maneira, a anteriores sobre o ensino de ciências sociais para
questão que se coloca é: como garantir que um profissionais da saúde, a partir de um conjunto
conceito sócio-historicamente construído não de constatações observadas na literatura especi-
seja utilizado por profissionais de saúde como se alizada e pela experiência da docência para estu-
fosse um insumo da sala de curativos? dantes dos anos iniciais do curso médico e de
Tenho colocado esta pergunta pedagogica- enfermagem em diferentes universidades.
mente para diferentes grupos de estudantes e
profissionais de saúde para situar a diferença Ciências sociais no campo da saúde:
entre o conhecimento no campo das ciências so- credencial e conhecimento
ciais e da saúde. Parto das reflexões de Cangui-
lhem, repetindo que a medicina não é uma ciên- O meu exercício de identificar defasagens en-
cia, mas um campo de aplicação de conhecimen- tre o ideal e as várias formas de existência concreta
to científico, que incorpora práticas, procedimen- compõe a ambivalência, das ciências sociais no
tos, conceitos e teorias. Segundo Zingerevit9, Can- campo da saúde, afinada com a perspectiva des-
guilhem começou a cursar a medicina em 1936, construtora de Bhabha7. Em outras palavras, mes-
quando já era professor de filosofia, e para o mo apontando hora por um, hora por outro, dos
segundo “a medicina nos parecia e nos parece polos deste par formado pelas ciências sociais e as
ainda uma técnica ou uma arte situada na con- ciências da saúde, o foco é a ambivalência como
fluência de várias ciências, mais do que uma ci- “terceiro espaço” de enunciações, que acompanha
ência propriamente dita”. Deste modo, afirma que a “assimilação de contrários” e pressagia a forma-
a medicina não pode ser considerada uma ciên- ção de uma cultura dos entre espaços. Porém, alerta
cia (epistéme), pois não existiria ou mesmo en- Bhabha7, é preciso lembrar que o “inter” é o fio
contraríamos um real conhecimento conceitual cortante da tradução e da negociação, o entre-
de “ciência médica”. Ainda segundo Zingerevit9, lugar, o terceiro espaço, que permite evitar a polí-
em 1985 Canguilhem afirma em num colóquio tica da polaridade e emergir como os outros de
internacional em Perúgia, Itália, que a racional nós mesmos. Assim, o entendimento da contra-
“máquina de curar” pode ser pensada como une dição vai distante e chega onde deve alcançar as
somme évolutive de sciences appliquées (uma ciências sociais na saúde, nenhum outro, senão o
soma evolutiva de ciências aplicadas). lugar insubstituível das relações sociais.
Sigo a reflexão sobre a questão anterior apre- Para auxiliar a visualização das ambivalên-
sentando uma imagem bastante presente para cias das ciências sociais no campo da saúde apre-
profissionais de saúde, situando-os em uma sala sento o Quadro 1, tomando as noções de cre-
de curativos em que uma pessoa precisa ser trata- dencial e conhecimento. A credencial, neste texto,
da. Naquele instante, tomam-se os insumos ne- não está associada às abordagens que ressaltam
cessários, como: álcool, algodão, anestésico etc., e a “estratégia de fechamento social por parte das
realiza-se a intervenção sem a preocupação de profissões, princípio monopolizador do merca-
construir o processo sócio-histórico relativo ao do de trabalho, e responsável pelos privilégios
insumo. Porém, em um exercício compreensivo que possuem na hierarquia ocupacional”10. Mas,
ou analítico de base social, cada um daqueles pro- como potência de existência ou um habitus em
dutos faz parte de uma cadeia produtiva, poden- um campo de disputas, no sentido bourdiano1-4.
do, portanto, ser tratado como uma mercadoria, Portanto, a credencial, neste caso, são as caracte-
que implica em relações de trabalho, regulamen- rísticas dos cientistas sociais que habitam o cam-

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Quadro 1. Tipologias formadas a partir da credencial e do conhecimento das ciências sociais aplicadas à
saúde.

Conhecimento
Credencial
Muito Pouco
Forte Forte credencial com muito conhecimento Forte credencial com pouco conhecimento
Graduação de Saúde Coletiva

Fraca credencial com muito conhecimento Fraca credencial com pouco conhecimento
Fraca
Graduações de cursos da saúde Gestão do Sistema Único de Saúde
Pós-Graduação em Saúde Coletiva

po da saúde com determinado quantum de capi- Na célula que situa forte credencial e pouco
tal técnico, cultural, simbólico e político. Por co- conhecimento habitam os cientistas sociais que
nhecimento entendo a produção de conceitos ensinam nos cursos de graduação de saúde cole-
dentro de matrizes teóricas, bem como a produ- tiva e seus correlatos, criados a partir do inicio
ção de métodos e técnicas voltados para a pes- da década de 2000. Caracterizam-se com forte
quisa em saúde. credencial, por oferecerem disciplinas específicas
A célula que situa forte credencial e muito co- de ciências sociais em dois ou três semestres dos
nhecimento representa um tipo ideal11 de inser- cursos, porém com pouca produção de conheci-
ção de cientistas sociais no campo da saúde. Des- mento, uma vez que não foi produzido, ainda,
sa maneira, o ideal racionalmente esperado, após material específico de ciências sociais, com a for-
passadas mais de cinco décadas de trabalho e ça de um manual, segundo Kuhn13, voltada para
com uma tradição bem estabelecida internacio- as análises desse corpo no campo da saúde.
nalmente no ensino, pesquisa e extensão acadê- Por fim, a célula que apresenta fraca credencial
mica, é que o corpo de profissionais de ciências e pouco conhecimento é habitada por homens e
sociais exista com uma credencial forte – que se mulheres invisíveis, tanto do ponto de vista da le-
reproduza em relação aos valores e perspectivas galidade quanto da legitimidade de sua participa-
– e com muito conhecimento – do ponto de vista ção no campo da saúde e contribuição técno-teó-
da construção de matrizes teórico-conceituais –, rico-conceitual para o trabalho neste âmbito14.
criando uma tradição de pensamento. Portanto, A primeira tipologia dos profissionais da so-
muito conhecimento e forte credencial seriam os ciologia que trabalhavam com o tema da saúde
elementos da consagração dos cientistas sociais foi criada em 1957 e ainda é bastante operativa,
no campo da saúde em termos do complexo pois dividiu aqueles que se inseriram no campo
político-científico, porém esse lugar existe ape- da saúde e os que tomaram a saúde como objeto
nas no plano ideal. de pesquisa. Straus15 identificou-os como os pro-
Uma vez estabelecido este tipo ideal e a ope- fissionais “in” e “of ”, mostrando que assim se
ração comparativa ideal-concreto pode-se com- constituem visões e identidades de “insiders” e
preender como os cientistas sociais se inserem, “outsiders”. Uma consequência desta distinção,
produzem e vivem a ambivalência no campo da segundo o autor, é que o mesmo problema ga-
saúde. Assim, a inserção destes profissionais no nha dimensão e abordagem distintas conforme
ensino de cursos de graduação e pós-graduação a inserção profissional.
em saúde pode ser considerada de fraca creden- Turner16 revisitou a classificação de Straus15 e
cial, sobretudo pela pequena participação em concluiu que analisar questões de saúde estando
números absolutos nas instituições de ensino e inserido no campo produz não só análises dife-
pesquisa, e com muito conhecimento, principal- rentes, mas preocupações temáticas distintas nos
mente pela quantidade das produções e potência níveis individual, social e societal. Assim, por
desta produção12. Como se pode ver, esta célula exemplo, no primeiro nível, enquanto cientistas
traz duas formas de inserção e representa o mai- sociais no campo da saúde investigam comporta-
or número de cientistas sociais na saúde, pois o mentos e crenças associados ao processo saúde-
ensino é o lugar privilegiado de ingresso. doença, aqueles que tomam temas do campo da

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saúde analisam o conhecimento médico. No ní- de cada um dos tipos de sociologia em relação a
vel social, os primeiros tendem a focar as causas diferentes categorias do conhecimento e da par-
sociais das doenças, enquanto os de fora do cam- ticipação social. Apresento o Quadro 2, constru-
po tendem a debater a dominância médica e a ído por Braga e Burawoy19, cruzando tipos de
rivalidade interprofissional. No nível societal os conhecimento e tipos de sociologia.
cientistas sociais inseridos em instituições da saúde Para o autor, o pensamento social tem duas
trabalham para melhorar a efetividade e eficiên- matrizes orientadas para projetos distintos, pois
cia de políticas de saúde, enquanto os que se in- aqueles que adotam a reforma social assumem o
serem no campo das ciências humanas interes- conhecimento em uma perspectiva instrumental,
sam-se mais pelo debate sobre a globalização e orientando-o para resolução de problemas sociais
os sistemas nacionais de saúde. e, às vezes, sociológicos. Por outro lado, os profis-
A análise mais recente e bastante contundente sionais que procuram compreender a ordem so-
da sociologia aplicada à saúde foi realizada por cial, no seu jogo de oficialização e ocultamento
Michael Burawoy17. Seu propósito principal é dos fatos sociais, adotam a perspectiva reflexiva,
construir o que chama de Sociologia Pública e para orientada para o entendimento dos fins, tanto das
isso toma diferentes tipos de conhecimento soci- premissas valorativas, como técnicas17-19.
ológico, destacando: o conhecimento produzido Os dois tipos de sociologia identificada com
por diferentes perspectivas do fazer sociológico; a o conhecimento reflexivo são a Sociologia Críti-
coexistência dessas diferentes formas; e a orienta- ca e a Sociologia Pública, a primeira acadêmica,
ção ético-política das diferentes “sociologias”. cumpre o papel de examinar as fundações explí-
Não irei reproduzir todo o debate sobre a citas-implícitas e normativas-descritivas dos pro-
Sociologia Pública de Burawoy, mas apenas os gramas de pesquisa da sociologia profissional,
aspectos fundamentais para as ciências sociais de forma que se define amplamente por sua opo-
no campo da saúde. O autor desenvolveu 11 te- sição à sociologia profissional hegemônica (ma-
ses em favor do que denomina “sociologia pú- instream). Em cada caso, a sociologia crítica ten-
blica”, conforme Schwartzman18, imitando Marx ta alertar a sociologia profissional dos vieses e
e gerando uma grande polêmica que ainda per- silêncios através da construção de novos progra-
dura. Considera-se que a mais importante e con- mas de pesquisa construídos em bases alternati-
tenciosa é a décima primeira, pois recupera ques- vas, colocando duas questões fundamentais: So-
tões fundamentais da participação orgânica do ciologia para quem? e Sociologia para que?.
intelectual na sociedade civil. No entanto, as ou- A Sociologia Pública, segundo Braga e Santa-
tras teses também disparam importantes consi- na20, é extra-acadêmica e compreende generica-
derações para explicitar o potencial e os limites mente um “estilo” de se fazer sociologia “engaja-

Quadro 2. Tipos de Conhecimento Sociológico e Tipos de Sociologia.


Tipos de conhecimento Tipos de Sociologia

Instrumental Sociologia Profissional Sociologia Para Políticas Públicas (Aplicada)


Conhecimento Teórico/empírico Concreto
Verificação Correspondência Pragmática
Legitimidade Normas científicas Efetividade
Prestação de contas Aos pares Aos clientes
Política Interesse profissional Intervenção pública
Patologia Autorreferencialidade Servilismo

Reflexivo Sociologia Crítica Sociologia Pública


Conhecimento Fundacional Comunicativo
Verificação Normativa Consensual
Legitimidade Visão moral Relevância
Prestação de contas Aos intelectuais críticos Aos públicos designados
Política Debate interno Diálogo público
Patologia Dogmatismo Modismo passageiro
Fonte: Braga e Burawoy19.

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da”, que procura iluminar os elos existentes entre ência social. Em relação à influência da guerra
os problemas privados e os desafios públicos, a para a introdução das ciências sociais no campo
partir da centralidade axiológica dos conhecimen- da saúde nos Estados Unidos, Bloom21 afirma
tos dos subalternos. Trata-se, antes de tudo, de que foi um processo em cadeia: a medicina tor-
um “estilo”, na medida em que supõe uma manei- nou-se mais interessada em psiquiatria; a psi-
ra de escrever e de se comunicar com diferentes quiatria desenvolveu crescente colaboração com
públicos, além de supor, também, uma modali- as ciências sociais; as ciências sociais desenvolve-
dade determinada de engajamento intelectual. ram métodos de investigação e novos conheci-
A Sociologia Profissional e a Sociologia para mentos que permitiram uma convergência de seu
Políticas Públicas (ou Aplicada) orientam-se para trabalho com a psiquiatria e as profissões de saú-
resolver problemas sociológicos e/ou sociais, sen- de como um todo.
do a primeira considerada acadêmica e desen- Sabe-se, também, que na mesma década de
volvida principalmente na interseção de progra- 1950 teve início o debate sobre o ensino da medi-
mas de pesquisa com suas pressuposições, mo- cina preventiva e social e nela a participação das
delos, questões próprias, aparatos conceituais e ciências sociais, ampliando-se o campo da pes-
teorias em desenvolvimento, voltadas para solu- quisa destas aplicadas à saúde, principalmente
cionar problemas característicos que vêm de ano- com investigações sobre o estudante de medicina
malias externas ou de contradições internas19. em relação ao seu papel social e processo de pro-
A Sociologia para Políticas Públicas, também fissionalização22-24.
compreendida como Aplicada, compreende o Nos anos de 1960 iniciou-se o importante
subcampo das ciências sociais aplicadas à saúde movimento de aproximação das linhas de pes-
como um exemplo. O autor vê pouca importân- quisa da educação médica e ciências sociais apli-
cia nesse ramo da sociologia e, como afirma cadas à saúde25. No entanto, desde aquele perío-
Schwartzman18, não há dúvida que ele vê a soci- do sabe-se, também, que existem algumas difi-
ologia aplicada como menos digna que as ou- culdades de aceitação das ciências sociais, como
tras. Trata-se, portanto, segundo Burawoy17-19, mostrou Garcia26 em relação: ao baixo status
de uma sociologia extra-acadêmica, a serviço de profissional em que os médicos vêm os cientistas
objetivos definidos por um cliente, com forte sociais; localização pouco clara dos cientistas so-
dependência da Sociologia Profissional, porém ciais na estrutura administrativa; e pequena im-
produzindo conhecimento “prático” e “útil”, legi- portância atribuída pelos estudantes. Para Peters
timado pela sua eficácia, potencial de interven- e Litva27, porém, apenas nos últimos anos ocor-
ção e satisfação dos clientes. Por fim, salienta que reu uma mudança de status do ensino das ciênci-
a Sociologia Aplicada é facilmente capturada por as sociais nos cursos da área da saúde, e esta
estes últimos, os clientes, que impõem obriga- valorização recente sinaliza, por um lado, o pro-
ções contratuais rígidas nos seus financiamen- cesso intenso de mudanças sociais associadas ao
tos, distorcendo o seu alcance. processo de saúde-doença-cuidado, mas, por
outro, deixa ver um atraso histórico de décadas
O ensino das ciências sociais no campo ao longo do século XX, uma vez que o Relatório
da saúde: desafios e perspectivas Flexner, em 1910, já anunciava a necessidade de
uma perspectiva socialmente orientada para a
De acordo com Bloom21, enquanto no início formação e trabalho médico12,28.
do século XX, principalmente devido à influência A necessidade das ciências sociais na educa-
do Relatório Flexner, ocorreu a introdução das ção em saúde é justificável pela relação de confi-
ciências biológicas básicas no currículo médico, ança entre cientistas sociais e médicos, construí-
nas décadas de 1940 e 50, respectivamente, foram da ao longo do século XX, de forma que estes
introduzidas as ciências do comportamento psi- últimos passaram a encaminhar questões dos
cológico e as ciências do social. Ainda segundo problemas sociais relativos à prestação dos ser-
Bloom21 a emergência das ciências sociais no cam- viços de saúde aos primeiros, considerados ca-
po da saúde ocorreram pelo: desenvolvimento pazes de “prescrever” soluções científicas para
geral da ciência e necessidade de compreensão problemas associados à prática da medicina ci-
mais integral dos eventos da saúde; desenvolvi- entífica12. Ao mesmo tempo, mudanças popula-
mento de mais controle sobre os aspectos bioló- cionais intensificaram a necessidade de compre-
gicos da doença; a crescente maturidade das ciên- ensão do impacto dos determinantes sociais na
cias sociais; e a Segunda Guerra Mundial que dis- saúde, entre eles, principalmente, a mudança do
parou interesse intensificado da medicina na ci- perfil demográfico e epidemiológico das diversas

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populações mundiais. Com base nesta relação lhantes em relação aos conceitos de ciências so-
de confiança, intensas transformações demográ- ciais que devem ser ensinados a estudantes de
ficas e movimento de valorização recente, é pos- medicina. No entanto, apontaram, enfaticamen-
sível visualizar elementos específicos da contra- te, a importante diferença em relação à perspec-
dição do ensino das ciências sociais na educação tiva do ensino deste conteúdo e o reconhecimen-
no campo da saúde na atualidade. to do valor da teoria, maior para especialistas
que para não especialistas. Fato que para as au-
As ciências sociais são uma área toras revela falta de conhecimento de base teóri-
tradicionalmente difícil de ser ensinada ca e necessidade pragmática de conteúdo com
nos cursos de graduação da saúde aplicação prática explícita por parte dos “não es-
Para Cockeham29, a década de 1950 é consi- pecialistas”28. As autoras não definiram exata-
derada a “Fase de Ouro” da sociologia da saúde, mente o que identificaram como “aplicação prá-
na qual cientistas sociais passam a ensinar e pes- tica explicita”, no entanto é bastante provável que
quisar temas relativos ao campo da saúde. Se- seja da ordem da relação entre “algodão e con-
gundo Straus15 houve dois tipos de contratações ceito”, que tratamos anteriormente.
de cientistas sociais pelas escolas médicas: uma Além disso, as autoras concluíram que as ci-
que trazia o profissional para se integrar ao cor- ências sociais na educação médica, que generali-
po de docentes de maneira integral e permanente zo para outras carreiras do campo da saúde, são
e outra que “contatava” cientistas sociais de ou- relativamente recentes e que os profissionais que
tros departamentos ou instituições para minis- as realizam sofrem com o pequeno desenvolvi-
trar disciplinas ou tópicos no curso médico. mento de redes sociais formais da categoria. So-
Muitas escolas médicas ainda optam pela “con- bretudo, quando esta falta implica em trabalho
tatação” e mesmo as que “contratam” priorizam extra, em relação ao que o profissional tem que
pouco este profissional, como relata Peters e Li- dominar de maneira especializada no campo das
tva27, para quem não é pouco raro encontrar es- ciências sociais e da saúde. Há, também, sobre-
colas médicas e de outras categorias da saúde carga de trabalho produzida pelas demandas
empregando apenas um ou menos que um pro- complexas de suporte para a prática clínica, que
fessor em tempo integral para ser o responsável exige competência e habilidade do cientista social
por desenvolver, oferecer e avaliar disciplinas de para comunicar a relevância das ciências sociais
ciências sociais em todos os anos do currículo. para estudantes, professores e administradores.
Benbasant et al.30 concordam e afirmam que as Explica Sennet31 que existem dois tipos de li-
consequências são muitas e persistentes, inclusi- mites, o de fronteira e o de divisa. A diferença
ve levando à extinção de disciplinas quando o entre eles é que “a divisa é um limite relativamen-
responsável aposenta-se ou muda de instituição. te inerte; a população se rarefaz e é pequeno o
Outro fenômeno associado à contratação nível de trocas; uma fronteira é um limite mais
precária é o ensino de ciências sociais por profis- ativo (...) uma zona de intensa atividade”. Para
sionais com pequena formação. Para compreen- Santos32 habitar uma fronteira significa: fazer uso
der o processo de trabalho de especialistas e não seletivo e instrumental das tradições trazidas por
especialistas em ciências sociais no campo da saú- diferentes agentes; inventar novas formas de so-
de, Litva e Peters28 conduziram investigação em ciabilidade; lidar com hierarquias fracas e uma
31 escolas de medicina do Reino Unido, em mea- pluralidade de poderes e ordens jurídicas; man-
dos da década de 2000. Obtiveram retorno de ter a fluidez das relações sociais; e misturar he-
profissionais de 29 escolas, sendo 41 especialistas ranças e invenções. Portanto, a sobrecarga a que
em ciências sociais (31 sociólogos e 10 antropó- se referem Litva e Peters28 é da ordem da condi-
logos), 22 especialista em ciências do comporta- ção fronteiriça.
mento (psicólogos) e 28 não especialistas que O princípio de que é preciso ensinar ciências
ensinam ciências sociais. Em relação ao vínculo sociais (‘need-to-know principle”), também uti-
institucional, concluíram que dos 91 profissio- lizado para compor documentos brasileiros,
nais participantes, 52 eram contratados por de- como as Diretrizes Curriculares Nacional33, foi
partamentos de psiquiatria e atenção primária, 8 tomado por Satterfield et al.34 para analisar a
por departamentos de educação médica, 23 de- implementação das ciências sociais em cursos de
partamentos de psicologia e sociologia, 7 depar- medicina nos Estados Unidos. Ao concluírem que
tamentos de enfermagem e 1 contratado do “Na- se trata de uma participação ainda pouco con-
tional Health Service”. sistente, buscaram identificar o currículo míni-
As autoras concluíram, ainda, que especialis- mo de ciências sociais para a educação médica, o
tas e não especialistas têm visões muito seme- que também pode ser generalizado para outras

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carreiras do campo da saúde. Os autores cons- XX, que persistem inalteradas em uma estrutura
truíram o “currículo ideal” e identificaram qua- que passou por intensas transformações ao lon-
tro principais dificuldades para desenvolve-lo: a) go do período.
dificuldade de inserir conteúdo “novo” no currí-
culo completamente lotado; b) dominação da O contexto sociomédico é sempre
cultura biomédica, cujo questionamento ameaça subdesenvolvido e sua implementação
a própria instituição; c) inadequação de suporte é frequentemente impedida
e desenvolvimento de especialistas em ciências so- A diferença entre a perspectiva sociomédica e
ciais pelas instituições; e, d) inserção das ciências a médico-social mostra que a ordem dos fatores
sociais entre as chamadas “ciências básicas”, quan- altera o produto. A primeira tem sido construí-
do é melhor compreendida por estudantes em da por cientistas sociais e humanos “na” e “da”
treinamento clínico. medicina em busca de desenvolver explicações
Também, a partir do princípio da necessidade multicausais em suas análises, historicizando os
das ciências sociais na educação médica, Barros e eventos para delinear as forças sociais no pro-
Spadacio35 analisam desafios no Brasil, discutin- cesso de construção social da realidade em foco.
do as contradições entre um campo do conheci- Por outro lado, a abordagem médico-social, ain-
mento que pretende alcançar “a todos os povos, a da que avance muito em relação às reduções pro-
todos os tempos”, por meio de um diálogo que movidas pelo modelo biomédico, tem base lógi-
promova a construção de autonomia e sentidos ca intervencionista e prescritiva, mesmo sob a
universalizantes, e outro campo que “consome” orientação do discurso de prevenção e promo-
conhecimento, para intervir e controlar a vida in- ção da saúde. De outra maneira, o que se identi-
dividual e coletiva, também em sentido universa- fica é a diferença entre a compreensão e a análise,
lizante. Montagner36 também discute o potencial na medida em que compreender é ir além da iden-
e as dificuldades da posição de interface das ciên- tificação das estruturas, para historicizar refe-
cias sociais na saúde e conclui que elas têm um rências socioculturais que constituem os fenô-
largo caminho, pois “se a saúde pública é relativa menos e que não se reduzem às exterioridades
à saúde do povo, então há muito mais coisas en- materiais e simbólicas39,40.
volvidas além da medicina”. Para Minayo et al.41, o problema parece ser
Briceño-Léon et al.37 analisaram o desenvol- da ordem da dificuldade de integração de conhe-
vimento das ciências sociais a partir da medicina cimentos e a cisão entre natureza e cultura pro-
social na Venezuela e encontraram muitas difi- duzida na raiz do desenvolvimento da ciência
culdades, principalmente relacionadas ao com- moderna42. Esta separação foi responsável pela
partilhamento do conhecimento básico e geral redução da importância das condições históri-
das ciências sociais com pessoas formadas em cas, geográficas e sociais do processo saúde-do-
outras áreas. Os autores afirmam sumarizando ença-cuidado para o pensamento epidemiológi-
que a incorporação teve caráter marginal em co, levando à incorporação das categorias das
todo o currículo acadêmico e tendência teoricista ciências sociais de maneira ideológica, no sentido
com pouco vínculo com atividades de campo ou de tomar a vertente marxista como a totalidade
estágios para os alunos, além de uma reputação da “ciência social”, ou instrumentalizada, de for-
pobre entre os estudantes e professores. ma que as categorias sociais aparecem reificadas
O caráter marginal das ciências sociais no cur- e como entidades com existência em si mesmas.
rículo é discutido por Beagan38 que salienta que, Por outro lado, a incorporação de conceitos e
ainda que os temas sejam introduzidos não há categorias da epidemiologia pelas ciências sociais
garantia da incorporação dos seus conteúdos pe- tem tornado a segunda refém da quantificação,
los estudantes. O autor comparou os resultados sem torná-la mais científica, e sim pífia, na medi-
da investigação realizada com alunos de diferen- da em que realiza estudos tecnicamente corretos,
tes turmas do terceiro ano do curso de medicina e porém socialmente irrelevantes41. Concluem as
concluiu que, em sua maioria, eles não reconhe- autoras que existem potencialidades na interfer-
cem e, às vezes, até negam, a importância da etnia, tilização da epidemiologia pelas ciências sociais e
classe, gênero e orientação sexual para a compre- vice-versa e, também, dificuldades de ordem con-
ensão do processo saúde-doença-cuidado. ceitual, metodológica, histórica, cultural e até
Observa-se que são várias as dificuldades de emocional.
integrar e ensinar ciências sociais nos cursos da Outro aspecto significativo que dimensiona
área da saúde. No entanto, é mais espantoso o o menor desenvolvimento da perspectiva sócio-
fato de que se trata de um conjunto de questões médica é a avaliação negativa dos estudantes que
antigas, identificadas nos anos 50 e 60 do século normalmente afirmam não perceber a relevância

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das ciências sociais para a prática clínica. Para a tas sociais e profissionais de saúde em desenvol-
maior parte deles a forma autorreflexiva de abor- verem integração horizontal e vertical no currí-
dagens das ciências sociais entra muitas vezes em culo. No entanto, para Benbasant et al.30, o que
conflito com protocolos técnicos de outras disci- ocorre desde o início do ensino de ciências sociais
plinas, que em geral são prescritivos e reproduzi- na medicina é um distanciamento que cria, além
dos “acriticamente”40,43. Por isso, aponta Terva- dos conflitos entre “nós e eles”, certos posiciona-
lon39, que existe grande potencial conflitivo do mentos que dificultam a integração. Para ilus-
ensino de temas associados ao conceito de cultu- trar, os autores citam o trecho de uma das entre-
ra na escola médica: primeiro, quando encoraja vistas, realizada em 1981 com chefes de Departa-
os estudantes a identificar a influência da sua mento de Clínica e Medicina de Família de esco-
identidade cultural na formação do seu sistema las médicas norte-americanas, que declara: “é
de crenças e observar o potencial de conflito que perigoso deixar sociólogos nas escolas médicas...
suas crenças disparam nos serviços de saúde; se- eles causam divisões, enfatizando as diferenças
gundo, ao estimular os estudantes a identificar nos cuidados ao invés de pontos em comum”30.
potenciais vieses, preconceitos e discriminação nas Discursos de médicos que mostram menosprezo
suas interações com colegas, profissionais e usu- pelas ciências sociais não parecem ser incomuns
ários, em diferentes cenários de práticas; e tercei- e Briceño-Leon et al.37 também trazem seu exem-
ro, quando os alunos são impulsionados a man- plar venezuelano, “em medicina há muitas situa-
ter sua perspectiva crítica e reflexiva, como parte ções em que o social, que embora nunca deixe de
de seu compromisso ético-político, para a cons- ter importância, em um determinado momento
trução de um cuidado mais humanizado, inte- não constitui o fato fundamental que o médico
gral e universal. deve cuidar, porque a cura é, então, o que real-
Também para Benbasant et al.30 a avaliação mente importa”.
dos estudantes é uma das maiores barreiras para Portanto, desenvolver o contexto sociomédi-
a perspectiva sociomédica no curso de medicina, co em instituições do campo da saúde não é fácil,
pois os estudantes identificam a relação entre os sobretudo porque, na maioria das vezes, como
determinantes sociais e psicológicos na saúde destacam Litva e Peters28, os entraves são repro-
como óbvios e, por isso, afirmam não necessitar duzidos de maneira “invisível” no currículo ocul-
aprofundamento. Os autores discutem como os to das escolas, moldando símbolos e valores nos
alunos demonstram-se desinteressados pelas in- discursos e nas ações das novas gerações, estabe-
formações que acreditam importantes e rejeitam lecendo fronteiras, limites e grande dificuldade
“preconceituosamente” as informações que jul- de legitimidade.
gam irrelevantes. O efeito do posicionamento dos
estudantes leva a dois fenômenos: um mais re-
cente e referente à reinstalação dos profissionais Considerações Finais
das ciências sociais em instituições de ensino e
pesquisa de ciências sociais e humanas, fazendo Embora reconheça as importantes contribuições
crescer a sociologia “da” saúde em detrimento da de Buroway17,19 em sua análise sobre os tipos de
sociologia “na” saúde. Sobre este êxodo, Benba- sociologia, considero que seu olhar é de um ana-
sant et al.30 discutem que os cursos de ciências lista externo ao que se coloca centralmente sobre
sociais nas faculdades de medicina de Israel fo- as ciências sociais no campo da saúde. Sobretu-
ram iniciados e desenvolvidos por sociólogos e do, pelo fato de que ele opera polarizando co-
antropólogos, que aos poucos foram sendo subs- nhecimentos, quando o que mais nos permite
tituídos por não especialistas. O outro fenômeno compreender os desafios e as perspectivas das
relaciona-se à mudança permanente dos conteú- ciências sociais em sua aproximação com as ci-
dos e técnicas pedagógicas das disciplinas de ciên- ências da saúde é a ambivalência de pertencer a
cias sociais. A revisão constante dos conteúdos é um campo do conhecimento sem existir em seu
parte do exercício de ajustamento ao interesse dos núcleo estrutural e ocupacional.
estudantes e necessidades da prática clínica, por Certamente as ciências sociais aplicadas à saú-
outro lado, cria uma dificuldade relativa à multi- de aproximam-se em muito da chamada “Socio-
plicação de abordagens e temas, que confundem logia Pública”, que busca engajar múltiplos pú-
as prioridades do que deve ser ensinado. blicos e caminhos no debate de questões sociais.
Assim, a dificuldade da perspectiva sociomé- Porém, o interesse da maior parte dos profissio-
dica no ensino no campo da saúde deve-se, além nais de saúde de incrementar o ensino das ciênci-
da diversidade de temas, à dificuldade de cientis- as sociais parece estar mais relacionado às suas

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dimensões pragmáticas e interventoras, e menos de Bhabha7 trata-se de um exercício de mímica,
à sua potência de aplicação “pública”, isto é, de que, muitas vezes, corre o risco de se perder no
incrementar o diálogo público e comunicativo arremedo alienado e inoperante. Segundo o au-
com diferentes atores envolvidos no processo tor, a mímica emerge como a representação de
saúde-doença-cuidado. uma diferença que é ela mesma um processo de
Assim, aos profissionais das ciências sociais recusa, sendo o signo de uma articulação dupla,
aplicadas à saúde ainda é colocada a necessidade uma estratégia complexa de reforma do inapro-
de explorar a sua identidade ambivalente, tanto priado, onde o excesso ou o deslocamento pro-
entre cientistas sociais, quanto entre profissio- duzido pela ambivalência da mímica (quase o
nais da saúde, embora o campo das ciências so- mesmo, mas não exatamente) não apenas rom-
ciais aplicadas à saúde já tenha se especializado, pe o discurso, mas se transforma em uma incer-
por exemplo tornando-se sociologia da saúde e teza que fixa o sujeito colonizado como uma pre-
antropologia da saúde, e exista há mais de seis sença parcial, incompleta e virtual7.
décadas. A construção das profissões da saúde como
Para Straus15, que fez o primeiro levantamen- ciência do social está apontada há mais de um
to do ofício dos sociólogos na saúde, os profissi- século e meio por Rudolf Virchow46. No entanto,
onais, ao se disporem a trabalhar no campo da Monrouxe e Rees47 mostram que este debate ain-
saúde, deveriam adotar as estratégias de um ca- da não foi adequadamente desenvolvido e a pers-
maleão, pintando-se das cores predominantes no pectiva natural predomina sobre a social, de
ambiente para aumentar suas chances de sobre- maneira hegemônica, porém não homogênea, na
vivência. Em suas palavras, os cientistas sociais educação de profissionais de saúde. Para os au-
no campo da saúde “como o camaleão, [que] tem tores, esta é uma barreira estrutural para a inte-
uma estrutura de base e uma integridade básica gração temática e pedagógica das ciências sociais
que não variará”, devem saber que a “sua adapta- no campo da saúde, uma vez que elas são consi-
ção ao ambiente pode depender de uma capaci- deradas “ciências soft” frente aos requisitos das
dade para alterar certas manifestações externas “ciências hard”. Todavia, estamos seguros de que
em conformidade com o meio ambiente”15. não se trata de escolher uma perspectiva em de-
Nos anos de 1980 esse debate volta à carga trimento da outra, mas garantir que ambas co-
com Hans Mauksch44,45, quando toma a diantei- laborem para desenvolver conhecimento menos
ra do processo de criação da rede de professores parcial e incompleto.
de ciências sociais da Associação Americana de Além disso, é preciso construir valores e sím-
Sociologia, agregando valor e legitimidade para bolos positivos para o conhecimento que se con-
o trabalho pedagógico no campo da saúde. A sidera fruitfull unrelated and irrelevant na edu-
centralidade do pensamento de Mauksch está nas cação de profissionais de saúde, que são, segun-
premissas que criou para orientar o ensino das do Borleffs48,49, disciplinas das ciências sociais que
ciências sociais para profissionais de saúde: pri- tratam da filosofia da ciência, história da medici-
meira, os cientistas sociais devem garantir clare- na, literatura e sociologia. De acordo com o au-
za conceitual e organizacional sobre as fronteiras tor, estes são conhecimentos considerados não
do campo da saúde e das humanidades, para relevantes para problemas práticos do campo da
conseguir priorizar as ciências sociais incluindo saúde e de interesse teórico apenas; considera,
outros saberes; segunda, a valorização do ensino ainda, que não existem e possivelmente não exis-
das ciências sociais no campo da saúde depende tirão estudos controlados que mostrem evidên-
de ampliar o conteúdo do campo para incorpo- cias científicas da adição de valores com o ensino
rar o maior número possível de forças sociais das ciências sociais.
relevantes; terceira, é preciso diversificar as técni- No entanto, a sociedade como um todo pede,
cas e os métodos de ensino e pesquisa, para ma- com urgência, a humanização das interações e,
ximizar a perspectiva social do processo de saú- mais ainda, o fim do projeto colonizador de sa-
de-doença-cuidado44,45. beres no campo da saúde, com sua estratégia de
O que ambos os autores mostram é que a nomear a diferença como uma proliferação de
sobrevivência em um ambiente socialmente ina- objetos inapropriados. Por isso, nosso propósi-
propriado ou “não natural” exige estratégias es- to neste artigo não buscou trazer respostas dire-
pecíficas, as quais, como se viu anteriormente, tas sobre como solucionar as contradições entre
muitas vezes, apresentam-se de forma invisível e o aplicado e o teórico no ensino das ciências so-
quase sempre sobrecarregam os profissionais ciais em saúde. Mas apontar algumas dificulda-
submetidos a elas. Na perspectiva pós-colonial des que tendem a se dissipar, na medida em que

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ocorra a redução e a substituição do processo


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atual como resultado da naturalização do “reino
social”, pela apreensão do processo de saúde-
doença-cuidado como produto sócio-historica-
mente construído.

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