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O QUILOMBISMO: UMA ALTERNATIVA POLITICA AFRO-BRASILEIRA* Vbsteas shee Naseem Memoria: 4 antiguidade do saber negro-atricano E urgente a nevessidade do negro brasileiro recuperar sua memoria. sis- tematicamente agredida pela estrutura de dominagao ocidental-curopéia ha quase $00 anos. Um processo andlogo se registra com a historia dos africanos no continente © de seus descendentes espalhados pelas Américas A memoria dos afros-brasileiros, a0 conurario do que afirmam certs his- toriadores convencionais de visio curta ¢ superficial cntendimento, no se inicia com o ttafico negreto © nem nos primordios da cscravizagdo day aftica- nos no século XV. Em nasso pais. a clite dominante sempte desenvalveu cs- forgos para evitar ou impedir que o negro brasileiro. apos a chamada abc «ao da escravatura (1888). pes se identificar ¢ ativamente assumir suas raizes Etnicas, historicas ¢ culturais. com esta operacgde tentando secciona-lo do seu tronco familial afticano. A nao ser em fungdo de recente interesse do expansionismo industrial manipulado pela elite ccondmica. 0 Brasil. como norma tradicional. ignorou © continente africano. Volrou suas costas a Africa logo que nao conseguiu mais burlar a proibicao do comércio de came attica- na imposta pela Inglaterra. por volta de 1850. A imigragdo massiva de curo- us, subsidiada pelos cofres publicos, ocorrida daquela data cm diante. undamentou-se nao s6 na intencdo das classes dominantes em tornar a po- pulacdo do pais cada vez mats branca. como também no propésity de erradi- cart da mente ¢ do afeto dos descendentes escravos a imagem da Africa como lembranca positiva de nagao, de patria, de terra nativa. Por isso, no sistema educativo brasileiro nunca houve qualquer disciplina ensinando apreso. in- leresse ou respeito as culturas, artes. linguas. religides. sistemas politicos, eco- némicos ou sociais de origem africana. E 0 proprio contato directo do afro- brasileiro com seus itmavs no continence ¢ na diaspora. foi continuamente impedido ou dificultado, entre outros obsticulos, pela negacio de mcios evo- némicos que lhe permitissem v para fora do pais. Entretanto, nenhum empecilho teve o poder de obliterar completamente de nosso espirito © da nossa lembranga a presenca viva da mic Africa As estratégias © 08 © nics utilizudos contra a memoria do negro- africano ultimamente vém sofrendo profunda eros: reparavel descrédi- to. Este fato se deve a dedicagao ¢ competéncia de alguns africanos preocu- pados com a destituigao que a nagio negro-atricana tem softido de parte da civilizagdo capitalista euro-norte-americana. Esse grupo de afficanos, a um tempo estudiosos, cientistas, fildsofos. © criadores de arte ¢ literatura, englo- ba personalidades do continente ¢ da didspora africana. Qucro mencionar alguns desses nomes: Cheikh Anta Diop. do Senegal: Chancellor Williams. Molefi K. Asante, Shawna Maglangbayan Moore, Hal: Madhubut. ¢ Mau- lana Ron Karenga. dos Estados Unidos: George M. James, da Guiana; Yosef Ben-Jochannan. da Etipia: Theophile Obenga. do Congo-Brazzaville: Wo- rae Pt vayerense de tbtuns Naces dhes Aiinetn.as Pancstnia 18401 Seas gatee ¢ sleresees © tenis she IPE APROD eke paseanke Beebe tal AFRODIASPOR, Ano 30 Ge > le Soyinka, Ola Balogun «© Wande Abimbola. da Nigeria Todos extio produzinde obras fundamentar parca Altice contemporines cfurura Anuar em campos diferentes © sub perypectivas diversas elect nentes irmaos abinganes se funde © canaliza e a exorazacio dis falsida des, distoroes © negagoes que hd Lante tempo se vém tecondo em tore dit Africa com intuito de velar efou apagar a memora do saber conhec mento cientitice ¢ filosolico. enfim, is realizagoes dos poves de origem negro africana. A memoria de nex silcire «¢ parte © participe NESE ipaMtesccr estore de reconstrucie de ann pasado ae qual todas os afo-brasileiros est ligados. Ter um pasad consequente responsabilidad nos © no futuro da nage neprosatnicana. meymo engual condigao de edificadores deste pais ¢ de cidaddes ger Considero oportune fazer algumas observagdes, ainda que breves. a cer tos trechos da obra fundamental de Cheikhy Anta Diop. principalmente st seu hvto. A origem afticana da avilizacio. orginalmente publicado em frame em 1974. Sepa dito de inic » volume apresenta uma confrontagie radi- calc um desafio inteypondivel ao inn o ocidental © a sua arte gincia intelectual, desonestidade cientifica ¢ catencia Eticr no ttatamenty dis- pensado aos povos, civilizagdes ¢ culturas da Africa, Diop € quimico. diretor do laboratd de radiocarbono do HAN (insite Fundamental da Attica Negra). em Dacar. alem de egiptologo, historiador. linguista © antropaley Unihzando-se dos recursos cientificos ocidentats, este sibio esnd reygatan a significacdo c us valores das amigas civilizagdes crigidas pelos negtu-alticanas. hi longo tempo obnubiladas pelas manipulagdes, tlsidades. distor gies ¢ rou bas dos chamados cientistas ocidentais. Sao os bens de cultura ctiados pelos nowor antepassados no Egito antigo. Esscs cgipeies cram negtos. © 1 a pove de origem branca ou vermelho-cs uns conforme extudiosos curopeus di século XIX proclamavam com énfase cio mentirosa quanto interessada. Eis como a esse fespeito se manifesta Diop cston Hota sist sel Nos arnt « m Os ens srtagers be Glo Gra para ser contd yes de se apresentar a hist mundo negro co proprio iniciador da cin tentada hoje duante dos nesses hos. Matematic pi teoria dos quatro clementos de ‘Thales de Miletw, matersalisme cpicurcano. idealismo platonic, judaismo, tslamisme ia moderna, esta enraizados na cosmogonia © i Chis, So temes que meditir sobre Osiris, deusredentor, que sc Matitics, notte, © € resuscitado. uma figure esencialmente iden Lifieavel a Cristo dome NIN tne rosa pesquisa. derru if : universal” a respeito ats tenn As afirmagdes de Diop se basciam ¢ estruturas supostamente definitivas do conhe idadle CRipe La e gre OU nd gostem, os oeade quatro séculos antes dat publicagdo de “A mentalidade prin tiva’’ de Lewy-Brubl, a Aftica negra muculmana comentasa so Ane $n% 6 > ~ AFRODIASPORA bre a logica formal de Aristoteles (a qual cle plagiou do Egite nese coc eypecialisna om dialer a thuos 34 Endo exquecamos, isso ate ou Marx L fa quase 500 anos do mscimento de Hegel op resolve toda a mistificagao que (ransformou um E negro cm pais beanco. por artes da magia curopéia dos cgiptilopos talon oodentas. Fle demonstra quc. apos cempanhac militar de Boi Egito, em 1799. © a decitracae dos hicroglitos dia Pedra Rosetta pe pollion. ¢ jovem. em 1822. 0s cgipréloges se desarticubiram atonites diame da grandiosidade das descobertas reveladas Eles geralmente a reconheceram come a mais anupa civilizac aque tinha engendrade todas tras. Mase imperialisme sen do o qu ¢. sc tornou cresentemente “inadmissivel” continua accitande a teoria evidente até entae: de um Egito negro. O tas- cimento da Egiptologia for assim marcado pela necessidade de des- truira memoria de um Egito negro. a qualquer custo, em todas as mentes. Dai em diante. o denominador comum de todas as ieewate 2BOS. sust felacde imum © p vl: pode ser cariterizado tiva desesperada de retu Lar essa opine (de um Epato negro). Quase todos os cgiprilog. cnfauzatam sua falsidade como uma questio fechada (1974: 45) A pretensiosidade curocentr ta nese episddio se expdc de corpo inte: fo: os cpiptologos prose guinum obstinadamente o uo esfotce de provar “cen tiflamente”” uma origem brim pata a anuga cvilizacie do Egito negr Por mais precaria que fosse a base dessas teoriay nes fatos hi ». clas cram aceitas pelo mundo “‘civilizado”” come uma pedra fundamental do supre macismo branco. qusnte a Diop. compassivo ¢ humano diante do teroz dogmatismo desses egiptologos ocidentais. demonstrou pacicnei ¢ genuleza exphicando-thes que cle, Diop. nao alegava nenhuma supenoridade racial ou qualquer genio es pecificamente negro naqucla constatade cientifica de que a civilizagae de Egito antigo fora ctigida © governada por um pove negro, O sucesso devia-se a fatores histéricos. explicou-lhes Diop, devia-se a condigdes mesoligicas («li- ma, recursos naturals, ete.) somados a outros elementos nado ricicos. Mesmo. tendo-sc expandide por toda a Afriea negra. do centr ocste di nemc. # Uvilizagio cgipeta. ao embate de outras influcnctas © diversa stu (do histotica, entrou num proceso de desintegracdo francamente rettocessi- vo. O importante € sabermos alguns daqueles fatores que contribuiram pars a edificacao da civilizacao cgipcia. entre os quais Diop cnumera estes: resul- tado de acidente geografico que condicionou o desenvolvimento politica-social dos povos que viviam ds margens de vale do Nilo: as mundiacoes que tora vam providencias coletivas de defest ¢ sobrevivencia. situate que Eavorc a unidade e excluia o egoismo individual ou pessoal, Nesse contexto. surgiu a necessidade de uma autoridade central coordenadora da vida ¢ dis ativida- des em comum. A invencao da geometria nasceu da necessidade da divisde AFRODIASPORA inv be veogritica. © todos os demats avangos toram obtidos no esforgo de atender uma vareneia tequerida pel »de uma sociedade viavel. Jam pormenor que interes particularmente 4 meméria do negro baw sileize: aquele onde Diep menciona as relagdes do antigo Egito com a Attica Negra. especifiaamente com o povo Yoruba. Parece que cits relacdes foram Lio intumas a ponto de se poder 'considerar como um ato histérico a posses- 40 conjunta do mesmo habitat primitives pelos yorubas ¢ egipcios. “Diop levanta a hipotese de que a latinizagdo de Horus, litho de Osins ¢ Isis, cenha reltade no apelauvo orind. Segundo essa pista de estudo comparativo em Linguitia © outtas disciplinas. J. Olumide Lucas (1978: 18) traca_ os lacos cgipcies do seu pove voruba. conduinde que tude leva a verificagde do se- gute: 4) uma similaridade ou identidade de linguagem: b) uma similar dade ou identidade de crengas religiosas: ©) uma similaridade ou identidade dle dens © pr rohginas. d) uma sobrevivencta de costumes. lugares, nos +s de pessoas, abjetos. etc Meu objective aqui é ode apenas chamara wWwengie para esta signiticativa dimensie da anuguidade de asfeira, Sera tareta pata os pes- qguisadores afticanos ¢ atro-brasileiros do futuro complementat os detalhes desse ponte fundamental de nossa historia Memoria: A Atro-América pré-Colombians Entretante. nao € sone Eguo antigo ou na Africa ocidental que encon- trams os antecedentes hitoricos do atro-brasileiro. Existe outra dimens de nossa memoria na presenga de atticanos cm varias partes das Améncas muito antes da chegada de Colombo. E nao se deve considerar esse um fendmeno pussigeito © superticial: trata-se de uma presenca profunda que deixou raizes © marcas indeléveis no rosto de varias culturas pré-colombianas. Diversos his- rortaderes © pesquisadores rem se referide a esse tendmene, Entre outros, os pars tlustrar o histortador mexicano Orozco y Berra, que em 1862 ja menconavat a felagdo intima. Ho mundo antigo, que os mexicanos cull vam com os afficanos, Visitantes ¢ imigeamtes. (1880: 109). Atwalmente. a contribuigao mais importante nese sentido € a de Ivan Van Sertima. cuje liveo Ther Came Betore Columbus (1976) registra a defi- nitiva contabuide attr ana as Calta ombianas nas Américas. prin- sipalmente no Mexico. Outros autores. tats como Leo Weiner (1922). Nico- Jas Leon. J. A. Jairazbhoy (1974). Lopes de Gomara (1554). Alexander Von Wurthenau (1975). Dr Andreze} Wiercinski (em Sertima 1976). cada qual em sia espocialidade © €posa respectivas, ém contribuido para a fecomnposi- ado da presenca dos atticanes nas Américas antes de Colombo. Em seu livro Pan-Atticamsme na Américas do Sul: emergénia de uma rebeltio negra (lust). Elisa Larkin Nascomento também assinala o desenvolvimento dessas investigagoes. Ela sugere a tclagdo entre as esculturas de San Agustin ¢ Tier radentro, na Colémbia. assim como outros simbolos. tragos, técnicas artis «as ¢ funerifrias. caracteres somaticos africanos em obras plisticas de cerca de 600 anos antes de Cristo. com sua contraparte egipcia ¢ africana-ocidental. Tais comparacdes podem ser observadas © respeito da cultura tana. da Co- lombra, ¢ dis crvilizagses inca, do Peru, Bolivia ¢ Equador. ¢ tolteca, olme- aa. azteca. «€ maya do México. + pre : Ane $9 G © > — AFRODIASPORA Além do extraordinario processo de retratar faces ¢ figuras em cerimicas © esculturas, essas civilizagdes compartilham também técnicas de mumifica- », tradigdes funerarias, engenhana ¢ construgio de piramides, temas misti- tose artisticos. simbolos como exemplifica a serpente emplumada, identida- des lingdisticas incontaveis, Todos esses elementos compdem um eloqucnte © visivel testemunho do ativo intercambio que ¢: ju entre a América ¢ as civilizagoes afticanas da época. Mas conforme nos adverte Elisa Nascimento, assinalat a presenga pré-colombiana dos africanos nas Américas de nenhu- ma forma subestima as enormes capacidades de dese nho © engenharia dos povos onginais americanos, que foram os autores ¢ construtores das formi- daveis cidades pré-colombianas. (1981; 139) Esse intercambio afro-americano estabeleceu uma relagdo ampla ¢ leg uma cour povos afraanos ¢ poves indigenas americanos gue ré-data com uma anterioridade de varios seculos o trafico negreiro esabelecido pelos curo- peus. A base historica para a solidariedade cntre os povos originais de ambos os continentes for muito mais profunda ¢ auténtica do que tem sido geral- mente reconhecido. Assim sendo, se o quilombismo busca no presente o fu- turo. € atua por um mundo melhor para os africanos nas Américas, ele reco- nhece ¢ proclama que sua luta nJo pode se separar da libertagdo dos povos indigenas destas terras, que foram ¢ sao igualmente vitimas do racismo ¢ da destruigao desumana introduzida pelos eurepeus. Consciéncia negra ¢ sentimento quilombista Numa perspectiva mais restrita, a memoria do negro brasileiro atinge uma ctapa historica decisiva no periodo escravocrata iniciado de forma siste- matica por volta de 1500, logo apés a chamada ‘‘descoberta’” do territério € 0 inicio da colonizacdo do pais. Excetuando os indios, progressivamente exterminados, o africano escravizado foi o primciro ¢ o Gnico trabalhador durante trés séculos em meio. a erguer as estruturas ccondmicas deste gigan- te chamado Brasil. Creio ser dispensivel evocar neste instante o chao regado pelo suor do africano, os canaviais. os algodoais. a mineracao de ouro, dia- mante e€ prata. os cafezais. ¢ todos os demais elementos formadores da eco- nomia nacional, nutridos do sangue martirizado do escravo. Longe de ser um arrivista ou um corpo estranho. o negro € o proprio corpo ¢ alma deste Pais. A despeito dessa realidade histérica, entretanto, os africanos € seus descen- dentes nunca foram e nao sio tratados como iguais pelos segmentos minori- tarios brancos gue complementam o quadro demografico nacional ¢ que tem. mantido a cxclusividade do poder, ig bem estar ¢ da renda nacional. Porgdes significativas da pone brasileira de origem européia come- garam a chegar ao Barsil nos tins do século passado como imigrantes pobres ¢ necessitados . Imediatamente passaram a Acraiar de privilégios que a so- ciedade dominante. essencialmente racista, Ihes concedeu como parceiros de raga ¢ do supremacismo curocentrista. Tais imigrantes nao demonstraram nem escriapulo nem dificuldades em assumirt os preconceitos raciais vigentes aqui ¢ na Europa contra o negro africano, se beneficiando deles ¢ preenchendo as vagas no mercado de trabalho que Se negava aos ex-cscravos ¢ seus descen- AFRODIASPORA — Ano Sn” 67 23 denies. Estes foram literalmente expulsos do sistema de trabalho “‘livre" da estrutura de produgdo 4 medida em que se aproximava a data “‘abolicio- nista”” de 15 de maio de 1888. Levando-se em conta a condicio atual do negro, 4 margem do sistema cempregaticio ou degradado no semi-emprege ¢ no subemprego; tendo-se em CBA’ CogIC Raa jealclenetal urbane awe Ine & imposta pelo duplo mouve de raga ¢ pobreza. destinando-Ihe como areas de moradias os guetas de ras dcnominacdes: favelas. Mmocambos. porcOes, alagados. invasdes. vilas e/ou sonjuntos populares ou “residenciais’’; considerando-se a permanente bru- talidade polical © as prisocs arbitrarias motivadas pelo fato de ser negro. compreende-se por que todo afto-brasileito consciente ndo tem a menor es- peranga de que uma mudanca progressista possa corer espontaneamente em beneficio da comunidade afto-brasilcira. De modo geral, ao redor de 95% da populagio favelada do pais € de origem africana. Detathe que caracteriza uma irrefutavel segregagdo racial de faro. Isto mo que concerne & populagio negra urbana, No entanto, cumpre ressaltat que € nas zonas rurais que a maio- ria dos descendentes escravos ainda vegeta uma existéncia parasitaria e wigi- cano seu total desamparo, Pode-se dizer que quem vivem uma vida de sees humanos. Este € 0 esbogo imperfeito de uma situacio mais grave, a qual tem sido realidade cm todo o decorter de nossa historia. Desta realidade € que nasce 4 necessidade urgente de assegurar a propria existéncia do negro como ser humano. Os quilombos resultaram dessa exigéncia vital dos afticanos escra- vizados, de resgatar sua liberdade ¢ dignidade fugindo ao cativeire ¢ organi- BAGS Seiad Iietee 16 Ketni lone Bragleite A alll placate 404 qureti: bos no espago ¢ no tempo fez deles um auténtico movimento sécio-politico © ccondémico amplo ¢ permanente. Aparentemente acidental ¢ esporadico no comego, rapidamente transformou-se de improvisagao de emergéncia em me- t6dica ¢ constante vivéncia das massas africanas que se recusavam a submis- sao, a exploragdo, 4 humilhagdo € a violéncia do sistema escravista. O qui- lombismo estruturava-se em formas associativas que tanto podiam estar loca- lizadas no scio de florestas de dificil acesso, o que facilitava sua defesa ¢ orga- nizacao ccondmico-social propria, como também assumia modelos de orga- nizagdo permitidos ou tolerados pela classe dominante, frequentemente com ostensivas finalidades rcligiosas (catélicas), tecteativas, bencficentes, esporti- vas. culturais ou de auxilio-mutuo. Nao importam as aparéncias € os objet vos declarados: fundamentalmente todas elas preencheram uma importante fungdo social pa lade negra. desempenhando um papel relevante na sustentagdo da continuidade africana. Genuinos focos de resistencia fisica € cultural. Objetivamente, essa rede de associacdes. itmandades, confrarias, clubes, grémios, terreiros, centros, tendas, afochés. escolas de samba, gafiei- tas, foram € sio os quilombos “‘Iegalizados'* pela soctedade dominante. Do outro lado da lei se ergucram € se erguem os quilombos tadicalmente con- frontadores ¢ desafiadores da opressdo sistematica praticadas pelas lites no poder. Mas os quilombos *‘legalizados’’ ¢ os fora-da-lei formam uma unida- de, uma tnica afirmagao humana, étnica, cultural a um tempo integrando uma priuca de libertagao ¢ assumindo 0 comando da propria histéria. A este complexe de situagdes ¢ significacdes. a esta praxis afto-brasilcira de resistén- cia 4 opressdo ¢ de auto-afirmagio politica, cu denomino de quilombismo. u Ano sn @ © > ~ AFRODIASPORA Importante € destiacar que esta tredigio de luta quilombista existiu © existe wraves de todas as Americas. Desde as primeiras decadas de 1500. atienios livres recusanam-s¢ ase submeter aos horrores da escravidie curopéia. © for tam compastas comunidades que desataram comtinuas © vitoriosas lutas atmadas contra os colonizadores. isto durante séculos. No México, por exem- lo. essas sxiedades africanas livres se chamaram cimurrones: em Cuba ¢ Co- Mbit seu nome tor palengue: na Veneucla denominavam-se cumbe Jamaica ¢ Estados Unidos, sociedades maroons (Moura 197>: Price 1973). Pes quisando a historia dessas comunidades afriganas livres nas Américas. bem como suas bases cultural. econdmica. politica ¢ social. os afto-americanos de todo 0 hemisfério consolidario sua heranga de solidariedade ¢ luca comum O quilombisme c seus varios equivalentes em todas as Américas — cimarro- nome, palenquisme. cumbisme. maroonisme — significam hoje uma alter | para a organizagio politica popular das massas negeas A constatagai il de enorme mero de organizacdes afto-brasileiras uc se inuitularam no paysado c se inuitulam no presente de Quilombo e/ ou almares. testemunha quanto o exemplo quilombista significa como valor dindmico na cstratégia ¢ na titiva de sobrevivencia © progresse das coletivida- des de origem africana. Com eleito. o quilombismo tem-se revelade um fate © capaz de mobilizar dis iplinadamente as massas negras devido ac seu pro: fundo apelo psicossoctal cujas raizes estado entranhadas oa historia. na cule fa. no sangue ¢ na vivéneia dos afro-brasileiros, O Movimento Negro Uniti- ado Contra o Racismo © a Discriminagao Racial assim registra seu conccite mbola ao definir o Dia da Consiéncia Negra. em manifesto pablico Ws: Nos. negros brasileires. orgulhosos por descendermos de Zumbi. lider da Republica Negra dos Palmares. qu Estado de Alagoas. de 1595 a 1695. desafiando o dominio portugués ¢ até holandeés. nos reunimos hoje. apés 283 anos, para declarar a todo 0 povo brasilciro nossa verdadeira ¢ cfetiva data: 20 de novem: bro, Dia Nacional da Consiéncia Negra! Dia da morte do gran- de lider negro nacional, Zumbi, responsavel pela primeira ¢ ini- ca tentativa brasileira de estabalecer uma sociedade democratica, ou seja. livre. ¢ em que todos — negros, indios ¢ brancos — tea- izaram um grande avanco politico, econdmico ¢ social. Tentati- va esta que sempre esteve presente em todos os quilombos. A continuidade dessa consciéncia de luta politico-social estende-se por todos os estados onde existe significativa populacao de origem africana. O modelo mbista ver atuando como idéia-forga. energia que inspira es- wruturas Srpanies ae desde 0 século XV. Nessa dinamica repleta de he- roismo, 0 quilombismo se mantém em constante reatualizacdo, atendendo as exigéncias do tempo histrico € as situacdes do meio geogrifico. A essas cinunstancias se devem as diferencas nas formas superficiais das organizacocs. quilombistus. No essencial todos os quilombos se igualaram. Foram, ¢ 40, nas palavras da historiadora Beatriz Nascimento, ‘um local onde a liberdade era praticada. onde os lacos étnicos ¢ ancestrais etam revigorados’’. Esta mu- ther ae estudiosa do nosso passado afirma ter o quilombo exercido “‘um papel fundamental na consciéncia Orica dos negros”’ (1979: 17). AFRODIASPORA — Ano 3 Ge > 3 Percebe-se 0 ideal quilombista difuse, porém consistente ¢ perseveran- te, permeando todos os niveis da vida negra. infiltrando-se até os mats inti- mos retolhos da petsonalidade afro-brasileira. Um ideal forte © denso que normalmente petmanece reprimido pelas estruturas dominantes; outtas ve- zes cle € sublimado através dos varios mecantsmos de defesa fornecidos pelo inconsciente individual ou coletivo. Mas também acontece que o negro se apropria as vezes dos mecanismos que a sociedade dominante maliciosamen- te Ihe concedcu com © propssito oculto de assim melhor conttolé-lo. Nessa revenao do alvo, o negro utiliza habilmente desses propdaites ado contessa- dos de domesticacao. transformando-os numa espécie de bumerangue étni- co. Nese tipo de estrategia Candeia, o compositor de sambas ¢ negro inteli- gente dedicado 2 redencdo do seu povo. nos deixou um exemplo ilustre. Ele organizou_a Escola de Samba Quilombo, nos suburbios do Rio de janeiro. obedecende um profundo senso do valor politico-social do samba. Este im- portante membro da familia quilombista faleceu tecentemente, mas. até o instante dertadeito. manteve uma lacida visio dos objetivos da Escola fundou ¢ presidiu. no rumo dos interesses mais legitimos do povo afro- brasileiro. No livre que cle © Isnard excreveram, ha trechos como este: Quilombo — Gremio Recreativo Arte Negra (...) nasceu da ne- cessidade de se preservar toda a influéncia do afto na cultura bra- sileira. Precendemos chamar a atencdo do povo brasileito para as taizes da arte negra brasileira. (...) A posigdo do “*Quilombe™ € principalmenie contraria a importagao de produtos culturais prontos ¢ acabados produzidos no exterior. (1978: 87 € 88) Neste tiltime trecho. os autores tocam num ponto bisico do quilombismo: © carater nacionalista do movimento. Nacionalismo aqui nao deve ser con- fundido com xcnofobisme. Sendo o quilombismo uma luta ant-imperialista, ele se articula a0 pan-africanismo € sustenta uma tadical solidariedade com todos os povos em luta contra a exploragdo, a optessdo, o racismo, ¢ as desi- gualdades motivadas por razOcs de raga. cor. teligiao. sexo ou ideologia. O nacionalismo negro € universalista ¢ intemacionalista, conseqdentemente cle ve a luta de libertagio de todos os povos, respeitando suas respectivas cultu- fas nacionals ¢ integridade politica. como um imperativo da libertagdo mun- dial. Uniformidade sem roto em nome da “‘unidade’* ou da “*solidarieda- de*", condicionada ao ditado de qualquer modelo politico-social do ociden- ke, nao est linha de interesse das lutas de libertac4o dos povos oprimidos. O quilombismo, como uma filosofia nacionalista. nos ensina que a luca de qualquer ¢ todos os povos deve se enraizar na sua propria identidade cultural © experiéncia historica Num folheto entitulado 90 anos de abolrcio. publicado pela Escola de Samba Quilombo, Candeta registra que ‘For através do Quilombo, ¢ nao doimolimenns abolicionigta. que se desenvolveu a haa dos begios conte & escravatura."” (1978: 7). A luta contra os escravocratas ainda nao terminou © o movimento quilombista esta longe de haver esgotado seu papel histérico. O sentido do quilombismo esta tae vive hoje quanto no passado. pois a si- ary Ano $9? 6 © 7 — AFRODIASPORA tuacdo de pendria ¢ destituicdo das camadas negras continua inalteravel. ou com minimas alteracées de superficie. Mais uma transcricao de Candeta Os quilombos cram violentamente reprimidos, nao s6 pela forca do governo. mas também por individuos interessados no lucro que tcriam devolvendo os fugitivos a scus donos. Esses especialis tas em cacar escravos fugidos ganharam o nome de triste memé- fla: capitaes de mato (1978: 5) A citag3o do capitao de mato € pertinente ¢ oportuna: via de regra foram cles mulatos. isto €. negros de pele clara, assimilades pela classe dominance Ainda podemos encontrar centenas. milharcs. desses negros que vivem uma existéncia ambigua. Nio pelo fato de possuirem o sangue do branco opres. sor, mas porque interalizando como positiva a ideologia do embranqueci- ‘mento ( 0 branco € o superior € o negro o inferior) se distanciam das realida- des do secu povo ¢ se prestam ao papel de auxiliares das forgas repressivas do supremacismo branco. E tanto ontem quanto hoje. os servigos que se pres- tam a repressdo se traduzem em lucto social ¢ lucto pecuniario. Em nossos dias nao devemos permitir que nos dividam em categorias pigmemtocraticas adversas de negros, mulatos, morenos, trigucires, crioulos, etc., divisdo con- cel ee enfraquecer nossa identidade fundamental de afro-brasileiros, isto €, de negros-africanos na diaspora Neste Brasil to vasto. existem inGmeras comunidades negras vivendo isoladas, que denominamos de quilombes contemporancos. Desligadas do fluxo da vida do pais. muitas delas mantém estilos ¢ habitos de existéncia africana, ou quase. Em alguns casos, ainda se uulizando idioma original tra- zido da Africa, estropiado. porém assim mesmo um linguagem africana man- tida e conservada na espécie de quilombismo em que vivem. Ocasionalmen- te, essas comunidades ganham noticias cxtemas na grande imprensa, como aconteceu a comarkade do Cafund®, situada nas imediagdes do Salto de Pirapora, no estado de Sao Paulo. Os membros da comunidade herdaram uma fazenda de grande extensdo deixada pelo antigo senhor. Nas ultimas décadas as terras do Cafundé comecaram a ser invadidas por latifundidrios das vizinhancas. Obviamente brancos, esses latifundiarios de mentalidade es- cravocrata no podem accitar que um grupo de desendentes africanos pos- sua uma propriedade imobilidtia, ¢ estio determinados a destruir Cafunds, avangando criminosamente em suas terras (0 caso de Cafund6 € ilustrativo da situagao genérica dessas comunida- des. constantemente ameacadas pela violéncia dos poderosos que cobicam suas terras. O Instituto de Pesquisa ¢ Estudos Afro- Brasileiros (IPEAFRO) es- td engajado numa pesquisa investigando esse realidade. Na qualidade de di- retor do IPEAFRO e¢ professor responsavel pela execucio da pesquisa. tive oportunidade de visitar varias dessas comunidade negras, ¢ de constatar a cxis- téncia de muitas outras espalhadas pelo pais afora. Citando apenas alguns exemplos, evocamos nossas visitas a Jacarai dos Pretos, Cajucitos ¢ Bom Je- sus, no Maranhdo; o quilombo do Marmelo em Goias; Droga ¢ Sao Mateus no Espirito Santo: Campinho, municipio de Paraty, Rio de Janeiro. A medi: da em que desenvolviamos a pesquisa, foram surgindo noticias de outros qui lombos, em quase todos os estados ¢ territénios do Brasil. O naimero enorme AFRODIASPORA — Ano 5 a" 6 ¢ 7 nr de exemplos aumentou tanto o universe de pesquisa que o IPEAFRO se en- controu sem os meios adequados para cobri-lo suficientememe. Entretanto, aieevtsra rldseclegsesora /edavaala plete lseiwu tol ana dedicar sen tidrneto lace re sultados dese comego de pesquisa stre-se que, depots que o IPEAFRO ME Sua pesquisa em L981, to- nto de outtas pesquisas documentando a mesma realida de. Entre os exemplos estao os trabalhos incentivados pelo Departamento de Ciéncias Sociais da USP. através do Professor Jodo Baptista Borges Pereira, pu blicados nos livros Negros de Cedro. de Mari de Nasaré Baiocchi (Atica, 1983) © Caipiras Negros no Vale do Riberra, de Renato $. Queiroz (USP. 1983), O avanyo de lauifundiatios ¢ de especuladores de iméveis nas terras da gente negra esti pedindo uma investigacdo mais ampla ¢ profunds. E fend- meno frequente tanto nas zonas rurais quanto nas zonas urbanas. Vale a pe- na ranscrever a esse respeito trechos de uma nota estampada em Veja. scedo “Cidades™”, 10 de dezembre de 1975, pagina $2 Desde sua remota aparicdo em Salvador, ha dois séculos. os ter- rcitos do Camdomble foram sempre fustigados por severas restrt- s6es policiais. E, pelo menos nos tiltimes vinte anos, 0 cerca mo- sido pela policia for sensivelmente fortalecide por um podcroso aliado: a expansio imobiliétia. que se estendeu as Areas distantes do centro da cidade onde tessoavam os atabaques. Mais ainda, em nenhum momento a Prefeitura esbocou batticadas leg ra proteger esse redutos da cultura afro-brasilcira — embora a pital batana atrecadasse gordas divisas com a exploracdo do turis- mo fomentado pela magia dos ofixis... (...) E nunca se soube da aplicacdo de sancdes para os inescrupulosos proprietarios de ter- renos vizinhos as casas de culto, que se apossam impunemente de areas dos terreiros. Foi assim que. em poucos anos, a Socieda- de Beneticente Sie Jon ¢ do Engenho Velho. ou cerrciro da Casa Branca, acabou perdendo metade de sua antiga atea de 7.500 me- tros quadrados. Mais infeliz ainda. a Sociedade Sio Bartolomeu do Engenho Velho da Fedcracio. ou Candomblé de Bogum, as- siste imponente a veloz reducdo do terreno sagrado onde se er- Bue a mitica ‘‘arvore de Azaudonor'* — trazida da Africa ha 150 anos © periodicamente agredida por um vizinho que insiste em podar scus galhos mais frondosos Com todo fundamento nesses antecedentes, o cineasta Rubem Confete denunciou numa mesa redonda patrocinada pelo Pasquim (14-9-1979, p-4): fs nto for roubado dos negros! Conhego cinco fami deram todas suas terras pata o Governo © para a Igreja Catolica. Jurandir Santos Melo cra proprictirio das tertas desde 0 atual ac roporto de Salvador até a cidade. Hoje € um simples motorista. vivendo de pequenos cachés. A familia de Ofélia Pittman pos- suia toda a parte que hoje é o Mackenzie. A coisa foi mais séria do que se pensa. porque houve época em que o negro tinha re- presentatividade © uma forca econdmica as que per- 2 Ana Sine @ © > ~ AFRODIASPORA Temos aqui uta pequena amostra de corce de desutuioes levantade pela sociedade dominante em tomo do des endente ateane. A destituigio das terms do negro. segucmese a desxemprege. a tome, o genocidio. Nao e capam implacivel nem mesmo ats insuuigoes rcligiosas secula- Tes, as quan de outna SCen) secu Espace Sygrade invadide © usue pado por representantes das clites dominantes Quilombismo: um conceite cicmitico hiséricu-social Conscientes da extensio © profundidade dos problemas que tém de en- diariamente, os negros sahem. que a sua Gposicae do que ai GL VE tendo se espout com pequenus reivindicacdes de carter empregaticio ou de dircitos civis, no ambito da dominante sociedade capitalista- burguesa € sua classe média organizada. Verio de derrotar today as componenies do sis- tema soctal existente, inclusive a sua intchigentsia texponsavel pela cobertura ideoldgica da opressao do afto-brasileiro através ¢ orizacao. seja de sua in- ferioridade bio-social. da miscigenaqio sucilmente compulsoria, ou do mito. da “democracia rectal” Essa “inecligentyia®”. aliada a mentores cu So americanos, fabricou uma “créncia™ de crime através de sua desumanizagio. Prova-se dessa forma que a ciéncia eu- ropéia ¢/ou euro-brasileira ndo € apropriada para o pove negro. Uma hist6- fia que nao serve ay necewidades historias do pove ao qual s¢ refere nega-se a si mesma. tre OF stGrica ow humana que aju- massactat © explorat os afticanos ¢ seus descendentes. justificando ese Como poderiam as chamadas ciéncias humanas (ctnologia. economia. histéria, antropologia, sociologia. psicologia, ct.) nascidas, cultivadas ¢ de- finidas por ¢ pata povos ¢ contextos socio-ccondmices diferentes, prestar atil colaboracao ao povo negro-afticano, em sua realizacao existencial, em seus problemas. aspiracées € projetos? Seria a ciéncia social claborada na Europa ou nos Estado Unidos tao universal em sua aplicagao? A raga negra conhece na prépria carne a falaciosidade do “‘universalismo"' ¢ da “‘iscngdo" dessa “ciencia’’ curocentrisia. Alias a idéia de uma ciéncia hist6rica puta univer- sal est@ ultrapassada. até mesmo nos circulos cientificos responsiveis curo- IS OU Norte-americanos. O conhecimento que os negros necessitam E aquele capaz de ajuda-los a formular tcoricamente — de forma sistematica ¢ consis- tente — sua experiéncia de cinco séculos de opressdo, resisténcia ¢ uta criati- va. Havera erros ¢ equivocos inevitaveis em busca de sistematizacao dos nos- sos valores, em nosso esforco de autodefinigdo € autogoverno rumo aos cami- nhos do futuro. Nao importa. Durante séculos temos carregado o peso dos crimes € dos erros do curocentrismo *‘cientifico'’. os seus dogmas impostos sobre nds como marcas igneas da verdade difinitiva. Agora devolvemos ao obstinado segmento ‘‘branco'’ da sociedade brasileira as suas mentiras, a sua ideologia de supremacismo curopeu, a lavagem cerebral com que pretendia roubar a nossa humanidadc, a nossa identidade. a nossa ae aiede: liberda- de ¢ auto-estima. Proclamando a faléncia da colonizagao mental curacentris- ta, celebramos o advento da libertacdo quilombista. Nés, os negros brasileiros. temos como projeto coletivo € erecao de uma sociedade fundada na justica, na igualdade e no respeito a todos os seres hu- AFRODIASPORA — Ano 3 97° 6 © ~ 2» dada na liberdade. cuja natureza intrinseca torne co ruimo. Uma democracia auténtica, crigida pe- ws destituides © desetdados deste pais. Ndo nus interessa a restauraglo de formas Giducas de instituigdes politicas, sociais © econdmicas; isto serviria ur Camente para procrastinar o advento de nossa emancipagdo total que exige 4 transformagdo radical das estruturas vigentes. Nao nos interessa a proposta de uma adaptagie aos moldes da aaricdle capitalista ¢ de «lasses. Confia- mos na idoncidade mental do povo negro. ¢ acteditamos na teinvencao de nos mesmos ¢ de Nossa histéria, Reimvengao de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiéncia historica. na utilizacio do conhecimen: to critico ¢ Inventive de nossas proprias instituigées sécio-ccondmicas, gol- peadas pelo colonialismo € o rxismo Enfim, reconstruit no presente uma ¢ ditigida ao futuro, mas levando em conta aquilo que ainda for Geil vo no acerve do nosso passado. ) InstcuMeNnto conceitual operativo se coloca, pois, na pauta das ne- cessidades imediatas da gente negra brasileira. Ele nao deve ¢ nao pode ser © fruto de uma maquinagdo cerebral arbitraria, falsa ¢ abstrata. Nem tam- pouco pode ser um elenco de principios importados, elaborados a partir de contextos ¢ de realidades diferentes. A cristalizagdo dos nossos conceitos, de- finigoes © principtos deve exprimir a vivencia de cultura da colctividade ne- gra. Sé assim estaremos incorporande nossa integridade de ser total. em nos- so tempo histérico, enriquecendo ¢ aumentando nossa capacidade de luta. Onde poderemos encontrar essa vivencia de cultura coletiva? Nos qui- lombos. Quilombo nao significa escravo fugido conforme nos ensinam as de- finigoes convencionais. Significa reunido fraterna € livre; encontro em solida- niedade, convivéncia, comunhio existencial. A sociedade quilombola ou qui- lombista representa uma ctapa avangada no progresso humane ¢ sécio-politico em termos de igualitarismo econémico. Os precedentes histéricos conheci- dos confirmam esta afirmagdo. Como sistema econdmico, o quilombismo tem sido a adequacdo, a0 meio brasileiro, do comunitarismo ¢/ou_ujamaaismo da irae africana, Em tal sistema, as relagdes de produgao diferem basica- mente daquelas prevalecentes na economia espoliativa de degradacio social do trabalho, fundada na razdo do lucro a qualquer custo, principalmente no lucro obtido com o suor ¢ o sangue do africano escravizado. O quilombismo articula os diversos niveis da nai comuni © na dialética interacdo social propoc c assegura a realizagdo completa do ser humano. Nessa dinamica, to- dos os farores ¢ elementos Aasas la economia slo de propriedade ¢ uso cu- letivo. Disso resulta gite 0 trabalho ndo de define como uma forma de casti- fe opressio ou exploracao; ele € primatiamente uma forma de libertacao ae a qual todo o cidadao desfruta como um direito e uma obrigacio social. Os quilombolas dos séculos XVI, XVII, XVIII ¢ XIX nos legaram um Patrimonio de pritica quilombista. Cumpre aos negros comtemporancos man- ter ¢ ampliar essa cultura afro-brasileira de resisténcia e de afirmacao da nos- sa verdade. Um método de anilise social, compreensio ¢ definicdo de uma aeperiee concreta, 0 quilombisme expressa uma tor! ntifica inextrica- velmente fundida 4 nossa pratica histérica. Condenada a sobreviver cercada ¢ permeada pela hostilidade oculta ou mascarada das classes dominantes, a sociedade afro-brasileira tem existido nes- nos: uma sociedade imposivel a exploraya 30 Ano 3 n° 6 © ~ ~ AFRODIASPORA ses 500 anos sob o signo de tensio permanente. E esta tensio, a tensdo da luta — repressio € resisténcia — que consubstancia a esséncia ¢ 0 proceso do quilombismo Assegurat a completa condigio humana das massas afro-brasileiras € © fundamento ético do quilombismo. O quilombismo t2m seu ponto focal ¢ seu pivé no ser humano. como ator ¢ sujeito, dentro de uma visto de mundo em que a ciéncia constitul apenas uma entre outras vias de conhecimento. A BC do quilombismo Na trajetoria histérica que esquematizamos nestas paginas. 0 quilom- bismo tem nos fornecido varias ligdes. Tentaremos resumi-las num A BC fundamental que nos ensina que a) Afto-Brasilciro € 0 termo que devemos adotar para evitar a exploracdo das diferengas de cor, feitas com o intuito de dividir a populagao negra ©M categorias como “*mulato™”, “'cafuso’”, "'moreno’’, “escurinho”™ ¢ assim por diante. Esses cufemismos. sempre valotizando o que esta mais préximo do ideal racista da beleza. isto €, 0 modelo louro curopeu. s6 seryem para co fundir nossa comunidade, que precisa de unidade para enfrentar o racismo que discrimina tanto o mulate quanto o mais retinto. Autoritarismo de quase 500 anos j4 basta. Nao podemos, no devemos. € nao queremos mabran por mais tempo. Uma das praticas basicas des- se autoritarismo € 0 desreipeito brutal da policia as familias negras. To- da sorte de arbitrariedade policial aciona as batidas que a policia faz ro- tineifamente pata Manter atertorizada ¢ desmoralizada a comunidade afro-brasileira. Assim fica confirmada para os préprios negros. sua con- digdo de impoténcia: so incapazcs até mesmo de defender suas familias ¢ os membros de sua comunidade. Trata-se de manter os afro-brasilciros num estado de permanente frus- tracao ¢ humilhacio. b) Banro denomina-se um povo ao qual pertenceram os primeiros africanos escravizados que vieram para o Brasil, procedentes de paises que hoje se chamam Angola, Congo, Zaire, Mogambiquc, ¢ outros. Foram os ban- tos os primeifos quilombolas a confrontar em tetras brasileiras o poder militar do branco escravizador. ©) Comunialismo africana, a exemplo do Ujamaa exposto pelo grande lider Julius Nyerere. da Tanzania, € um clemento inspirador do quilombis- mo. Nao devemos aceitar certas definigdes “*cientificas’’ do comunalis- mo africano € 0 Ujamaaismo como formas arcaicas € obsoletas de organi- zagao sécio-econémica. Refletindo a arrogancia curocentrista, essa posi- sao implicitamente nega as instituigdes nascidas da realidade historica africana sua capacidade intrinseca de desenvolvimento auténomo relati- vo, de progresso ¢ atualizacdo. Assim essa teoria endossa 0 pressuposto de que a ocupacao colonial da Africa determinasse o desaparecimento AFRODIASPORA — Ano sm 66 > un d) ©) g) h) ys valores © instituigdcs africanas. marcando o ponto de partida do sew desenvolvimento’. isto €, de sua ovidentalizagio. Na perspectiva da airogamia mencronada. as formas de vida afticanas sio vistas como ndo- dinamicas. quietistas ¢ imobilizadas diance da hist6ria Tal visdo pectrifi- Africa © suas culturas nao passa de uma ficgio. O quilombisme te prepoe a resgatar o sentido de organizacio sécie-econdmica concebido pata servir c cnriquccer a existencia humana, organizagio que existiu na Afaca ¢ vcie para © Brasil com os atricanos escravizados. A sociedade bra- Sileita contemporanea pode se beneficiar com o modelo quilombista. uma Iterativa nacional que se oferece em substituicdo ao desumano sistema dhe capitalismo selvagem Cundar em orgamizar nossa luta por nds mesmos é um imperative de nossa sobrevivencia come um pove. Devemas, por isso. set muito criteriosos » fazer aliancas com outras forcas politicas. Toda alianga deve obedecer UM proposito Latico ou estrafégico. ¢.0 Negro precisa ter poder de deci- so. a tim de nae permitir que nosso pove seja manipulado por interes- ses estranhos a sua causa propria Devemes ampliat sempre nossa frente de luta, tendo em vista, primeito. objetive de longo alcance. da transformacdo radical das estruturas sécio- coondmicas ¢ culturais da sociedade brasileira; segundo, os alvos citicos imediatos. Nesta categoria s¢ inelut em ampla campanha de registro do analfabero para volar. © a anistia aos prisioneitos politicos negros. Desde 4 proclamacdo da Republica. em N89, se tem negado o dircito de voro av analfabeto como meio de cxcluir o negro do processo politico do pais Agora que tinalmente estabeleceu-se esse direito, precisamos organizar nossa gente para vorar. Os prisionciros politicos negros sdo maliciosamente fichados pela polica come desocupados. vadios. malandros, marginais. © scus lares freqiientemente invadidos. Uma vez fichados na policia. cs- ses cidadios afro-brasileiros ficam & mercé de toda ¢ qualquer arbitrari dade policial Ewe ou Gége. povo africuno de Gana. Togo ¢ Daomei (Benin). de onde vieram milhoes de africans escravizados para o Brasil, Os Ewes sdo parte do nose pore ¢ de nossa heranga afro-brasileita. Formar os quadros do quilombismo é fundamental, isto significando a mobilizacdo € a organizagdo do povo negro. Garantir a nossa gente © seu lugar na hierarquia de poder ¢ decisio, man- tendo sua integridade étno-cultural. € a motivagio basica do quilombismo Humithados que fomos ¢ somos todos nés. negro-africanos. com todos cles devemos manter intimo contato ¢ relagdo. Assim também com as organizacdes africanas independents, tanto da diaspora quanto do con- tinente. desenvolvendo instrumentos de alianca e solidariedade. Ao mes- ~ AFRODIASPORA Ano nm Ge > mo tempo, desenvolver relasdes estreitas com a ONU € scus Srgios cn- gajados no combate ao racismo. i) Infalivel como um fenémeno da natureza sera a perseguicio do poder branco ao quilombismo. Est4 na légica inflexivel do racismo brasileiro jamais permitir a cxisténcia de qualquer movimento politico-libertario dos negros, a forga popular majoritaria. j) Jamais as organizacdes politicas afro-brasileiras deve permitir 0 acesso a brancos ou negros nao quilombistas a posigdes de fe com autori- dade para obstruir a acdo ou influenciat os posicionamentos tcéricos ¢ praticos em face da luta. k) Kimbundo, lingua do povo banto, chegou ao Brasil com os esctavos de Angola, Congo ¢ Zaire, principalmente. Essa lingua exerceu notavel in- fluencia sobre o portugués falado no pais. |) Livear o Brasil dessa industrializacao artificial, tipo “‘milagre econémi- co", esta mas metas do quilombismo. Nesse esquema o negro é explora- do ao mesmo tempo pelo capitalista ¢ pela classe trabalhadora *‘qualifi cada’*. O negro como trabalhador *‘desqualificado”’ é duplamente viti ma: da raga (branca) ¢ da classe (trabalhadora ‘‘qualificada"’ ¢ burguesia de qualquer raga). O quilombismo propo para o Brasil um conhecimento cientifico ¢ técnico que possibilice uma genuina industrializagdo dina- mizando um novo avango da autonomia nacional. O quilombismo con- dena a entrega da nossa reserva mineral ¢ da nossa economia as corpora- gO¢s monopolistas internacionais; porém, tampouco defende os interes- sede uma clite nacional. O negro-africano foi o primeiro ¢ o principal artifice da formagio econémica do pais: a riqueza nacional pertence a cle € a todo o povo brasileiro que a produz. m) poten €uma balcla da *‘democracia racial’”, a maior mentira na+ cional do Brasil. A miscigenacdo, ¢ a politica imigrat6ria proibindo a ra- dicagdo de africanos no Brasil, foram promovidas como meio de embran- quecer o povo brasileiro, eliminando dele o elemento negro (inferior) para atender ao critério racista de “‘preservar'’ a ascendéncia europé: ida como superior. A miscigenacdo nunca se deu massivamente a base do intercasamento, ¢ sim da exploracio sexual da mulher negra. O in- tercasamento foi promovido na medida em que existe socialmente como fruto de uma compulsao social racista de “‘melhorar a raga’’, isto €, torna- la mais branca, numa nitida expressdo de cultura racista. A miscigena- gao, ou mistura de ragas, quai Jo ocorre espontancamente ¢ nao como imposigdo social de valores racistas, € dos mais louvaveis fenémenos humanos. (Aviso aos intrigantes, aos maliciosos, aos pheceescict de julgamento: o vocabulo raga, no sentido aqui empregado, define-se em termos de his- téria ¢ cultura, ¢ mao em pureza biolégica, que nunca existiu). n) Nada de mais confusdes: se no Brasil efetivamente houvesse igualdade de tratamento, de oportunidades concretas, de respeito, de ler politi- AFRODIASPORA — Ano 3 foe 7 33 °) P) cy ‘) co € econdmico; se o encontro entre pessoas € racas diferentes ocorresse espontineo ¢ livre da pressio do status sécio-ccondmico do branco; se nio houvesse outros condicionamentos repressivos, embora sutis, de ca- réter moral, estético, religioso, etc., entdo, sim, a miscegenacdo seria um acontecimento positivo, capaz de enriquecer a sociedade brasileira, a cul- tura e « humanidade Obstar o ensinamento € a pritica genocidas do supremacismo branco é © fator substantiyo do quilombismo. Poder quilombista quer dizer: a raga negra no pons Os descendentes africanos somam a maioria de nossa populacdo. Portanto, o poder negro sera um poder essencialmente democratic. (Reitero mais uma vez a ad- verténcia 20s intrigantes aos maliciosos, aos ignorantes, aos racistas: nes- te texto a palavra raga tem uma acepcdo histérico-cultural. Raca biologi- camente puta nao existe ¢ nunca ¢xistiu). Quebrar a eficicia de cettos slogans que atravessam a hist6ria de nossa lluta contra o racismo € um dever do quilombista. Entre esses s/ogans cs- td aquele dizendo gue a dnica luca peter € a de todo o proletariado, de todo o povo ou de todos os oprimidos. Os privilégios raciais vem sen- do conferidos ao branco em detrimento do negro desde o mundo anti- go. A luta ““Gnica’’ ou “‘unida’’ que pregam mao consegue ocultar o des- Pfezo que nos votam, nao respeitando nossa identidade nem a especifi- cidade da nossa luta ¢ da opressio que nos atinge. Raga: acteditamos que todos os seres humanos pertencem 4 mesma espé- ie. Para o quilombismo. raca significa um grupo humano que poswii ‘em comum, nio somente algumas caracteristicas somaticas, mas sobre- tudo um complexo de fatores histéricos, culturais ¢ ambientais. Tanto a aparéncia fisica, como os tracos psicolégicos, de personalidade, de ca- rater ¢ emotividade, sofrem a influéncia da cultura, da sociedade, da ge- nética, do meio geografico ¢ da hist6ria, que se somam ¢ se completam O cruzamento de grupos raciais diferentes ¢/ou de pessoas de identida- de racial diversas, esta na linha dos mais legitimos ¢ nobres interesses de sobrevivéncia da espécie humana. Racismo: € a crenca na inerente superioridade de uma raca sobre a outra. Tal superioridade € concebida em termos biolégicos ¢ na dimensao psico- sécio-cultural. Este € um aspecto normalmente negiesneac ou omiti- do nas definigdes tradicionais do racismo, que focalizam a cor epidérmi- ca. A elaboracio teérico-cientifica produzida pela cultura européia justi- ficando a esctavizacio, desumanizacao ¢ inferiorizagao dos povos africa- nos, constitui um nivel de racismo depravado ¢ cruel jamais conhecido na histdria dos seres humanos. O racismo € a primeira contradicao que o negro enfrenta na moderna sociedade industrial multi-étnica. A esta contradicao se juntam outras, como a de classes ¢ de sexo. Ano 3.n° Ge 7 — AFRODIASPORA s) u) vy) x) 2) Swafili é uma lingua de origem banto, influenciada por outros idiomas, especialmente o arabe. Avualmente é falada por mais de 20 milhdes de africanos da Tanzania. do Quénia. de Uganda. do Burundi, do Zaire. etc. O swahili tem sido escolhide em varias reunides internacionais de professores ¢ escritores como a lingua franca internacional africana, meio de transcender as barreiras coloniais criadas pelo uso do francés, do in- fe do portugués. do cspanhol, entre os povos africanos. Os afro- rasileiros necessitam aprender o swahili com urgéncia Todo negro ou mulato (afro-brasileiro) que accita a ‘*democracia racial’ como uma tealidade, ¢ considera iva a miscigenacdo na forma vi- gente, isto €. uma compulsao. acca Exanneadsrs ditada pela sociedade dominante, esta traindo a si mesmo e€ se considerando inferior. Unanimidade € algo impossivel na dinamica jal e politica. Por isso nao devemos perder tempo ¢ energia com as cas vindas de fora do movimento quilombista. A dialética do nosso progresso aconsclha que desenvolvamos uma construtiva autoctitica para ampliar nossa consci¢n- cia ee rumo ao objetivo final: a ascensio do povo afto-brasileiro ao poder Vadiagem. contravengao segundo nosso Cédigo Penal. Desde 0 século passado. essa configuracao visa impor um estado de cerror permanente sobre as familias negras. Sem emprego, ¢ muitas vezes sem moradia, o Negro estd automaticamente sujeito a ser enquadrado, mesmo sem co- meter nenhum ato criminoso. A policia invade os lares € violenta as co- munidades negras impunemente, amy la nesse dispositive legal. fu prioridade do quilombismo revoga-lo imediatamente. Voto 20 analfabero, negado durante toda a nossa histéria, agora consti- tui uma conquista do povo brasileiro. Organizar nossa gente para exer- cer este direito ¢ votar constitui uma tarefa urgente do quilombismo. Xingar nao basta. Precisamos € mobilizar a gente negra, mantendo a luca antiga energicamente, sem descanso ¢ sem pausa, contra as destitui- g6es. a humilhacio, € a pobreza. Até que ponto vamos continuar assis- tindo impotentes a nossa propria exterminagdo pela fome, moléstia, assassinio policial, ¢ miséria dos nossos irmaos ¢ irmas afro-brasileiros, principalmence das criangas negras deste pais? Yoruba (nago) somos também cm nossa africanidade brasileira. Os yo- tubas sao parte fundamental do nosso povo, da nossa cultura, da reli- giao afro-brasileira, de nossa luta ¢ de nosso futuro. Zumbi: o fundador do mbismo ¢ zénite desta hora histérica, zéni- te deste povo afro-brasileiro. Alguns principios ¢ propésitos do quilombismo 1. O quilombismo € um movimento politico dos negros brasilciros, vi- sando a implantagao de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no mo- AFRODIASPORA Ano 3 n° 67 35 delo da Repablica dos Palmares, no século XVI. ¢ em outros quilombos que existiram ¢ cxistem. Dessa forma, 0 quilombismo representa uma proposta de organizacio politica ¢ social inspitado na experiéncia hist6rica afro: brasileira Nio se trata, conforme o entendimento cquivoco de algumas pessoas. de um separaticsmo do negro brasileiro. Apenas advoga-sc 0 poder politico realmen- te democratico, que implica a presenga da maioria afro-brasileiro em todos os niveis desse poder 2. O Estado Nacional Quilombista tem sua base numa sociedade livre. justa ¢ soberana. O igualitarismo democritico quilombista € compreendido ho tocante a faca, economia, sexo, sociedadc, religido, politica. justiga. edu- Cacdo, cultura, enfim, em todas as expressdes da vida em sociedade. O mes- mo igualitarismo se aplica a todos os niveis de poder ¢ de instituicdes publica © ptivadas 3. A finalidade basica do Estado Nacional Quilombista € a de promo- vera felicidade do set humano. O quilombismo actedita numa economia de base comunitiria-cooperativista nos sctores de produgao. distribuigde ¢ divi- sao da riqueza nacional. 4. O quilombismo considera a terra uma-propricdade nacional de uso coletivo. As fabricas ¢ outras instalagdes industriais, os bens ¢ instrumentos de produsdo, da mesma forma que a terra. s40 de proptiedade ¢ uso coletivo da sociedade. Os trabalhadores rurais ou camponeses trabalham a terra ¢ S40 os dirigentes das instituicdes agropecuatias. rarios de modo geral sio 0 tinicos responsaveis pela orientacao ¢ geréncia de suas respectivas unidades de producio 5. No quilombismo o trabalho um direito ¢ uma obrigacio social. ¢ 0s trabalhadores, que criam a riqueza agricola ¢ industrial da sociedade. sto 0s Gnicos donos do produto do scu trabalho. 6. A ctianga negra tem sido a vitima predileta ¢ indcfesa da miséria ma- terial ¢ moral imposta 4 comunidade afro-brasileira. Por isso, cla constitut a prcocupacio urgente ¢ priontaria do quilombismo. Cuidado pré. natal, am- paro a maternidade, creches. alimentacao adequada. moradia higiénica ¢ hu- mana, sdo alguns dos itens relacionados a crianca negra dentro do programa de ago do movimento quilombista. 7. A cducagdo ¢ o ensino em todos os graus — clementar, médio ¢ su- perior — scrio completamente gratuitos ¢ abertos, sem distinc4o a todos os membros da sociedade quilombista. A hist6ria da Africa. suas culturas, civi- lizacdes, sistemas politico-econdmicos. ¢ artes terio um lugar eminente nos curriculos escolares. Criar uma universidade afro-brasileira € uma necessida- de a realizacao do programa quilombista. 8. Visando o quilombismo a fundacdo de uma sociedade criativa. ele procurara estimular todas as potencialidades do ser humano 4 sua plena rea- 36 Ano $n G ¢ 7 — AFRODIASPORA lizagio. Combater o embrutecimento ¢ a apatia forgada. impostos pela misé- ria, pela mecanizacao da existéncia c pela barocrattracto das relac6es huma- nas ¢ sociais, € um ponto fundamental da politica quilombista. As artes em a ocupario um espago basico no sistema educativo € no contexto de ai lades sociais da coletividade quilombola. 9. No quilombismo nao havera religides cultas ¢ religides populares, is- to €, as religides da elites endossadas como verdadeiras, ¢ as meee do po- vo, desprezadas ¢ ridicularizadas. Da mesma fotma, ndo existiré “cultura eru- dita’ e **cultura popular’’, uma elevada ¢ outra folclorizada ¢ menospreza- da. Todas as religides merecem as mesmas garantias de culto, ¢ toda mani- festacdo cultural merece igual respcito ¢ tratamento pelas autoridades publicas. 10. O Estado quilombista proibe a existéncia de um aparato burocrati- co estatal que perturbe ou interfira com a mobilidade vertical das massas em sua relagao ¢ comunicacao direta com os dirigentes. Nessa relacao dialética Jos membros da sociedade com as suas instituigdes, repousa o sentido pro- gressista ¢ dinamico do quilombismo. _ 11. A proposta quilombista € fundamental anti-racista, anti-capitalista, anti-latifundiaria ¢ anti-neo-colonialista. 12. Em todos os drgaos de poder do estado quilombista — legislativo, executivo e judicidrio — a metade dos cargos eletivos, de confianca ou no- meados, deverio ser ocupados por mulheres, como norma constitucional. O Cac se aplica a todo ¢ qualquer setor ou instituicdo privada ou de servico pablico 13. O quilombismo considera a transformacao das relacgdes de produ- a0, ¢ da sociedade de modo geral. por mcios nao violentos ¢ democraticos, uma via possivel. 14. £ matéria urgente para o quilombismo a organizacao de uma insti- tuigao econdédmico-financeira em moldes cooperativos, capaz de assegurar a manutengdo ¢ a cxpansao da luta quilombista a salvo das interferéncias con- troladoras do paternalismo ou das pressdes do poder econdmico. 15. Basicamente 0 quilombismo € um defensor da existéncia humana, ¢ como tal cle se coloca contra a poluicdo ccolégica ¢ favorece todas formas de melhoramento ambiental que possam assegurar uma vida saudavel para as criangas, os adultos, os animais, as criatutas do mar, as plantas, as selvas, as pedras e.todas as manifestagdes da natureza. 16, O Brasil € signatario da **Convencao Internacional para a Elimina- ga0 de Todas as Formas de Discriminasao Racial’’, adotada 4 Assembléia Geral das Nagées Unidas em 1965. No sentido de cooperar para a concretiza- 40 de objetivos tao elevados € generosos, ¢ tendo em vista o artigo 9, para- grafos 1 ¢ 2 da referida Convengio, o quilombismo contribuira para a pes- AFRODIASPORA — Ano 3 0” 6 ¢ 7 7 quixa ¢ a claboracio de um relatério bianual. abrangendo todos os faros rela- vos a discriminagdo racial ocortidos no pais. a fim de auxiliar o trabalho do Comne pata a Eliminago da Discriminagdo Racial, érgao das Naxdes Unidas. Semana da Memoria Afro-Beasileira Em 1980. ao formular a proposta politica do quilombismo. € no intuito de atender a urgente necessidade d » recupetat sua memoria historica. sugeri a comunidade negra a instituicdo de uma Semana da Memoria Afro Brasileira. Nela. seriam focalizados os fatos histéricos que tiveram come pro- tagonistas os 300 milhdes de afticanos retitados, sob violéncia hedionda, de suas terras. ¢ trazidos acorrentados para o continente das Américas. Por in- termédio dessas celebraydes anuais. a comunidade negra ndo s6 honraria os seus antepassados. como reforcaria a sua propria cocsao c identidade, trans- mutindo as novas geraxécs um exemplo Me ahr A pease hieGea@ Gned per: cepaio mais clara do papel fundamental desempenhando pelos escravos afri- canos na construcdo do nosso pais. A Semana da Meméria Afro- Brasileira in- fundiria aos jovens um metecido auto-respeito coletivo, substituindo o senti- mento de vergonha € frusteagdes que a sociedade dominance instala na cons: ciéncia dos negros como tinica heranca deixada por seus ancestrais. Segundo a proposta tetta cm 1980, a Semana deve aliar aos aspectos ce- lebratives o exercicio de uma constante pesqdisa. critica € reflexdo sobre o pasado c o presente da populacdo de origem afticana no Brasil. Isto contri- ii para ampliar ¢ fortalecer 0 quilombismo em sua filosofia, tcoria ¢ pra- tia. A Semana implica também um cstimulo tanto as organizacdes negras tecreativas ou beneficentes. quanto as de cardter cultural, soctal ou politico, igualadas no interesse basico de melhorar o destino da familia afro-brasileira. Todas clas se insetem na perspectiva quilombista que estamos sistematizando. Essa Semana deve ser um exercicio de emancipacio. nunca uma come- moracdo convencional. estatica ¢ retérica. propondo unicamente a evocacao: de fatos. datas. nomes. ¢ coisas do passado. Estudar os feitos dos antepassa- dos deverd estimular a imaginacao ¢ a acdo transformadoras do presente, a0 conteirio da contemplagdo saudosista do pretérito, insinuando ou cultivando. a autoflagelacdo coletiva. Resgatar a nossa memoria significa resgatarmos a nds mesmos das arma- dilhas da negacao ¢ do esquecimento; significa cstarmos reafirmando a nossa pres ativa na histéria pan-africana ¢ ma realidade universal dos seres umanos. A Semana deve ser promovida. ainda segundo a proposta original, por organizacdes negras. Entrecanto. ela podera também ser realizada por escolas xiblicas ou privadas com interesse no progresso civico da comunidade afro- Feailea Neste caso, levando-se em conta que de modo gertal as escolas no sio dirigidas por negros. os afto-brasileiros presentes devem estar bem alertas para impedir que os fatos histéricos ¢ os sucessos da vida negea sejam mani- pulados ou distorcidos. seja por malicia, ignorincia ou negligencia. Onde nao existir organizacao afro-brasileira ou escola interessada na Semana. as fami- lias negras deverio preencher a funcio de seus realizadores. _ A prtoposta original. publicada no liveo O Quilombismo (1980). especi- fica para a realizagdo da Semana um calenddrio comecando no dia 14 de no- 3x Ano 3 nt 6 ¢ > — AFRODIASPORA vembro € culminando no dia 20, Dia Nacional da Consciéncia Negra. Hoje tenho a grande satisfagio de constatar que. em quase todo o pais, cxistem programacoes da mesma natureza dessa Semana, em torno exatamente do dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciéncia Negra idero esse fa- to uma vitria da luta quilombista desenvolvida pela coletividade afro- brasileira durante as Gltimas décadas. A sociedade dominante nao pode mais ignorar a imporcancia desse dia, ao redor do qual a comunidade negra esta sc esforcando para pér em pratica uma celebracao de sua experiéncia no pas- sado ¢ de sua movimentagdo no presente. Essas comemoragdes em muitos casos sdo realizadas com o apoio de Secretarias estaduais ou municipais de cultura ¢/ou de educagio, dentro do contexto democritico da chamada No- va Republica, Sie Gas ilustra o éxito que © Movimento negro alcancou na i ica do Dia Nacional da Consciéncia Negra como fawo cultural naci nal. Um camp € o Projecto Zumbi dos Palmares, da Secretaria de Educa- 40 € Cultura do municipio do Rio de Janeiro, engajado no desenvolvimento de um trabalho pioneito dentro dos propésitos dessa Semana da Memoria. Na Serra da Barriga, no dia 20 de novembro deste ano, celebraremos mais uma vez o Dia Nacional da Consciéncia Negra, no proprio local de sua ori- gem histérica, com a feliz dimensio adicional de seu histérico tombamento como patriménio nacional do Brasil. Axé Zumbi! AFRODIASPORA — Ano 3 n° 6 7 3” Bibliogratia Candeia & Ismard (1978) Escola de Samba — Arvore que esqueceu a raz Rio de Janciro: Editora Lidador/SEEC-RJ Candeia {1978a) *'90 Anos de Aboligao”’. Rio de Janeiro: GRAN Escola de Samba Quilombo. Diop. Cheikh Anta (1963) The Cultural Unity of Black Africa, translation by Présence Africaine. Republished by Third World Press. Chicago. 1978. Diop. Cheikh Anta (1974) The African Origin of Civilizacion: Mych or Rea- lity, translated by Mercer Cook. 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Da mesma forma que se deu com o territétio de origem do. povo negro, a Hist6ria deste s6 0 € se tiver sido marcada por acontecimentos significantes da Historia da civilizacao ocidental. O risco maior de tal proce- dimento de historiadores desta parte do mundo repousa na ruptura da iden- tidade dos negros ¢ seus descendentes, tanto em relagdo ao seu passado afri- cano quanto 4 sua trajetéria na prépria histéria dos paises em que foram alo- cados apés 0 trifego negreiro. Numerosas foram as formas de resisténcia que o negro manteve ou in- corporou na luta ardua pela manutengao da sua erate pessoal e histéri- ca. No Brasil, poderemos citar uma lista destes movimentos que no ambito “‘doméstico’” ou social tornam-se mais fascinantes quanto mais se apresenta a variedade de manifestagdes: de caratcr lingilistico, religioso, artistico, so- cial, politico, ¢ de habitos, gestos, etc. Nao nos cabe aqui, porém, discorrer sobre estes movimentos. Um movimento de ambito social e politico é 0 obje- tivo do nosso estudo. Trata-se do Quilombo (kilombo), que representou na histéria do nosso pore um marco na sua capacidade de resisténcta ¢ organiza- sao. Todas estas formas de resistencia podem ser compreendidas como a his- téria do negro no Brasil. O Quilombo como instituigio africana Dois incentivos iniciais fizeram com que os portugueses, ao contrario dos demais curopeus, se internassem_no continente africano ¢ procurassem conquistar uma colénia em Angola. O primeiro seria repetit o caso brasilei- TO, ou seja, saquin terras préprias para se fixar como naquela colénia ameri- cana. O segundo objetivava encontrar minério precioso em Angola, objetivo logo frustrado. * Beatriz Naximento € historiadara. profewors da UFRJ © militame do movimento negeo. 40 Ano 3 n° 6 ¢ 7 — AFRODIASPORA AFRODIASPORA — Ano 3 n°" 6 ¢7 4

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