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Diregio Benjamin Abdale Junior Samira Youssef Campodel Proparacio de texto José Pessoa de Figueiredo ‘Arte Goordenacso © projeto gréfico (miolo) “Antonio do Amaral Roche Artesinal René Etiene Ardanuy Joseval Souza Fernandes ey Nenana ‘ira. Catsanc-n Piet "Gat rien Cry Dimas, Aataig, 1902- Denie PTBinse Home J Antonio Dims: — 1 ed, — Sto * Ste princi) Bisoe siits 3 RGeance Wesco" Hittin € ctica Ti. Indies arn cxlogo siemico: 1. Bspago mo omance + intela «erin 9.999 17.) 2. Rom lc. Tea err $1,953 (Te 18.) 3: Roman Ue Geis Winn «ida 1985, Todos 08 diteltos reservados Editora Atica SA. — Rua Barao de Iguape, 110 Tal: (PABX) 2189520 Calxa Postal 3856 End, Telegrifico "Bomiivro” — Sio Paulo Sumario. 1. Quem 6 quem no pedago?___s Tocaias no texto. © verismo fotogrificon A obsessio geogrifica ‘A pretensio sem folego. 12 exemplo convincente________13 Timidez setorizada as 2. Rumo aos conceitos—________19 Espago e ambientagfo__——— 19 A fusio desejavel 22 Paixdes reprimidas, Vozes supressas___27 Cabaca vazia taco de ferro___ 30 3. Sejamos docemente teéricos__33 Um pouco de Tomachévski_ Ti ‘Uma borboletd reversive 35 Beleza cansada__* 38 Mais um pouco de Lukécs______42 Bachelard, finalmente__ 43 4, Um jantar na pensfo____47 Gentinha sem modos____ a7 Bolhas de tensio, 55 5. Uma viagem no sertado. 37 Um coragio entrevado. 37 Claridade. Descontorto 6s 6. Vocabulario critico. 72 7. Bibliografia comentada. 78 1 Quem é quem no pedago Tocaias no texto Indmeras armadilhas se escondem em um texto a tocaia do leitor. 'A qualidade delas dependerd, antes de mais nada, de quem as espalhou ao longo do caminho. Alguns prefe- rem disseminé-las em quantidade, de forma abusiva e repe- titiva, deixando-as expostas demais, o que podera provocar 1 adesdo do leitor facil ou a repulsa do leitor inteligente. ‘Outros, optando pelo, camuflamento, tornam-nas quase imperceptiveis, excitam a curiosidade do leitor preparado e aborrecem aqueles cuja curiosidade se satisfaz com 0 mero desenrolar de uma est6ria. A estes néo importa 0 como se monta um relato, mas sim o processo de encadea- mento até o final. Saciada esta curiosidade bésica, este Ieitor atira de lado 0 livro, escolhe outro bombom na ccaixa e 0 préximo volume na estante. Entre as virias armadithas virtuais de um texto, o ‘espaco pode aleancar estatuto to importante quanto outros ‘componentes da narrativa, tais como foco nafrativo, perso- nagem, tempo, estrutura etc. E bem verdade que, reconhe- ‘amos logo, em certas narragdes esse componente pode: estar severamente diluido e, por esse motivo, sua impor- tincia toma-se secundaria. Em outras, a0 contrario, ele poderd ser prioritério e fundamental no desenvolvimento. da ago, quando nao determinante. Uma terceira hipétese ainda, esta bem mais fascinante!, & a de ir-se descobrindo- -Ihe a funcionalidade e organicidade gradativamente, uma vez. que 0 escritor soube dissimuli-lo tao bem a ponto de ‘harmonizar-se com os demais elementos narrativos, nio Ihe concedendo, portanto, nenhuma prioridade. Em resumo: abe ao leitor descobrir onde se passa uma ago narrativa, quais os ingredientes desse espago ¢ qual sua eventual funcdo no desenvolvimento do enredo, © verismo fotografico No quadro da sofisticagio critica a que chegaram os estudos sobre o romance, é fécil perceber que alguns aspectos ganharam preferéncia sobre outros ¢ que 0 estudo do espaco ainda no encontrou receptividade sistemiética Nio cabe discutir aqui as razées dessa retragéo, mas sim apontar as linhas gerais que fluem para esse tipo de reocupagio, desde as mais singelas e de mérito simples ‘mente ilustrativo até as mais elaboradas e, portanto, anali tico-interpretativas. Como exemplo de obra que se encaixa a yontade na primeira tendéncia, podem-se citar as Imagens de Portugal queirosiano de Campos Matos, cujo objetivo primeiro ¢ © de “fixar fotograficamente as paisagens naturais e urba- ‘Para ter uma ii! da msn bibiogrétea sobre“o assuno, pestis’ dos mais iveros Angulo, basta pecoree @ Ivo" de cir Sota ce tare to te Sao ihe. Nove Foreword by W. Soha” Gent, Wetenscho igor ‘Story-Scientia P.V.B.A., 1965. ops gels has © 0$ edificios descritos na novelistica de ca de Queirés, respeitantes a Portugal, sobrepondo a essas vistas os textos que Ihes correspondem” #. Com intuito to claro, Campos Matos dedica 2/3 de seu trabalho @ constatacao © recuperagio fotogritica das passagens ficcionais do eseritor portugués, trazendo para © Ieitor @ imagem visual daquilo que fora verbalizado nas hnarrativas. Assim sendo, sob uma fotografia estende-se lum texto curto retirado de Os maias, A capital, O primo Basilio ou de qualquer outro romance. esse tipo de geografia literéria, o que esté em pauta nio é a visio de mundo transfigurada e remodelada pelo artista, capaz de dotar a realidade hist6rica de atributos ‘outros que ndo os simplesmente exteriores, mas, antes, a insisténcia em localizar 0 modelo que funcionou como ponto de partida, Em certo sentido, quem se propde uma geografia literéria pouco acrescenta ao estudo da literatura, ‘uma vez que incorre numa espécie de reducionismo realista paralelo ao do escritor. A obsessio do detalhe, tio caro a0 Realismo do fim do século 19, junta-se 0 empenho documental apoiado no virtuosismo téenico da cimara fotografica, agora empregada de modo também realista. Isto é uma cimara que fixa o instante de uma rua, um beco, uma praca, uma ponte, uma porta comercial ou um outro incidente urbano qualquer. E a fotografia compro- vando um dado ficcional e a ele submissa, como que dando respaldo de veracidade a0 texto que, por sua vez, preo- cupava-se com 0 verossimil. Evidéncia desse zelo que persegue 0 veraz ¢ nio 0 vverossimil literério emerge na bem-estruturada e bem-do- FMaros, Campos, Imagens do Portugal queirosiano. Lisboa, Terra Livre, 1976. p. 13. (Colegio Portugal Ontem, Portugal, Hoje.) Para ndo sobrecartegar a exposigio com nolas de rodapé, mencio- hharemos a fonte no corpo do Texto, sempre que utlizada. mais de uma ver, cumentada nota introdutéria a0 livro, Nela, 0 autor insite ‘em salientar “a precisio com que sio descritos e assinala- dos os ambientes em que se movem” (C, Matos, 13) 0s personagens de Ega. E, ao lado dessa precisao, alinham- se outras variantes seminticas sempre a reforgar o caréter verdadeiro do escritor: Pormenor descritivo, realismo de situagdo ambiental, observagao exata etc. . ‘Trabalhos dessa natureza pouco ou nada tém a ver com a especificidade dos estudos sobre literatura. Quando ‘muito, funcionam como subsidio longinquo, aos quais se reeorre como mero suporte ilustrativo. Nao se trata, no entanto, de desmerecé-los pura simplesmente, mas de enquadré-los numa perspectiva correta, a fim de se evitar uma valorizagio inadequada. Na medida em que seu objeto & a fotografia suscitada por um texto, este jé perdeu sua autonomia, restando-lhe, pois, a fungao apendicular de legendar uma composigéo visual Menos distantes da critica literéria, mas nem por esse ‘motivo mais pertinentes, estio estudos como o de André Ferré sobre a Géographie de Marcel Proust A obsessao geografica © objetivo nico de Ferré & 0 de verificar 0 grau de ‘xatidio espacial ou geogrfica que o escritor frances con- feriu aos seus romances, Comprometido com a averiguagao da fidelidade toponimica ou topogritiea de A procura do tempo perdido, Ferté desdobra-se num caminho que, de anteméo, reconhece modesto € parcial, pois, a seu ver, 4 geografia literéria no vai além de situar “os lugares, Fal, André. Géographie de Marcel Proust. Avec index des roms de eux et des termes péographiques, Paris, Sapittaie [1999], ° ficticios ou reais, onde se desenvolvem as ayenturas dos hersis dos romances e do teatro, ressaltando 0 senso geo- {rifico inconsciente do autor e o alcance geogréfico de seus escritos” (Ferré, 16). Mesmo admitindo a liberdade de transfiguragio cabi- vel (e desejavel!) a0 escritor, André Ferré como que lastima a inquietude de Proust que nfo soube se com- portar dentro dos limites impostos pela realidade exterior f se pergunta se isso deriva de uma tendéncia premeditada 4 mentira: “O trabalho de localizagio se complica nao s6 porque estas refeténcias a0 real so, na maioria das vezes, Inconciliéveis geograficamente, mas também porque os locais ficticios carregam nomes que nem sempre 0 sio, rnomes emprestados de diversas regides por onde 0 autor viajou, muitas vezes inalterados. (Proust) brinca de juntar rnomes de lugares que flutuam em sua meméria, bem como de atribuir a determinado personagem de suas lembrancas reais © nome de um outro. Gosto pela mistificacao?” (Ferré, 89). Emibora nos previna, logo em seguida, de que sua pes- ‘quisa visa apenas detectar as “fontes” geogrdficas esparsas que pontilham a obra de Proust, Ferré trilha uma viela ‘que nada acrescenta a exegética proustiana, porque também objetiva 0 veraz ¢ no o verossimil. Aliés, essa desimpor- tineia de seu livro reconhece-a ele logo no inicio quando © apresenta como “simples divertimento para os curiosos ce entusiastas de Proust” (Ferré, 17). Exemplo brasileiro dessa abordagem periférica que no ultrapassa a constatagdo € o arrolamento de incidentes geograticos 6 O mundo de Machado de Assis, que se presta apresentacao de um “panorama da cidade do Rio de Janeiro — suas paisagens e seus costumes —, na época fem que transcorrem os enredos dos romances € contos de 10 0 Machado de Assis, geralmente datados dos dois ltimos decénios do segundo reinado, ¢ de suas comédias” « Se Ferré se norteia pela fidelidade absoluta ¢ inalean- sével, Miécio Tati se orienta pela reconstrucdo paisagi 1 partir do texto machadiano, Nessa linha, 0 capitulos de seu livro reordenam a narrativa de Machado, atendendo ‘a0 principio da distribuicao geogréfica do Rio em fins do século 19. Longe de pretender especular sobre a eventual funcionalidade desses espacos, Miécio Tati compartimen- ta-os em ruas, bairros, locais de comércio ou de entrete- nimento, escolas, meios de transporte e a isso tudo adiciona, ainda certos hébitos sociais como o vestuério, a alimen- tagio, as formas de tratamento pessoal e de lazer etc. Com base nesse pressuposto do autor, no seria depreciativo, portant, enquadré-lo numa perspectiva preparatéria que vise 0 aprofundamento de um tema tdo discutivel como © da auséncia ou presenga de marcas geograficas ostensivas ‘na obra machadiana, ‘Um passo adiante da fotografia que imobiliza, da veracidade que se esvai ou do arrolamento que dicionariza, © texto literario, esto aquelas andlises que procuram pene- triclo de maneira mais contundente, dele extraindo um significado oculto que dificilmente se mostra a primeira leitura E bem verdade que alguns romancistas oferecem ‘exemplos modelares para 0 estudo do espaco. Penso, sobre- tudo, em Zola (1840-1902) ¢ em Aluisio Azevedo (1857- =1913), cujos romances, produtos rigorosos de uma esté- tica em curso, deram precedéncia & ambientagio, a ponto de converter muitos de seus personagens em puros objetos submetidos tirania do meio. 7a Mikio. © mundo de Machado de Assis. (0 Rio de 3a ta obra de Machado de Assis.) Estado da Guanabars, Secretaria de Estado da Educasio e Cultura (1961). (Colegio Cidade do. Rio ‘Se Jancira.) Inabalavel na conviego de que 0 ambiente modela fe determina a conduta humana, Zola coneebeu e executou lum vasto painel romanesco, no qual desenhava a “histéria natural e social de uma familia sob o Segundo Império” francés, entre 1852 e 1870, sob o governo de Napoledo IIL A trajetéria dos Rougon-Macquart, como ficou conhecida ‘série de seus romances, serviu de inspiragao, em Portugal, para Eea de Queirés, e, no Brasil, para Aluisio Azevedo, ue idealizaram, respectivamente, as “Cenas da vida portu- guesa” © “Brasileiros antigos e ‘modernos”, projetos.nio levados a termo. Na fala de um personagem de L’argent (1891) — “Nao se vive impunemente em determinados lugares” * — sumaria-se, talvez, o pensamento estético de Zola, reconhe- cido hoje como o perscrutador enfatico do elemento urbano na ficgio. modema, assim como os romanticos haviam sido com relagZo paisagem natural. No conforto de sua casa, em pleno vigor criativo, Zola proclamava seu amor conflitivo pela cidade, a0 mesmo tempo que zombava daqueles que buscavam motivos lite- ririos e artisticos em lugares distantes tempos remotos: “Afastei-me da lareira ¢, abrindo a janela, encarei minha grande, minha querida Paris, atribulada nas cinzas do cre- pasculo. & ela que me fala da arte nova, com suas ruas buligosas, seus horizontes.pontilhados de anincios e de cartazes, suas casas terriveis onde se ama e onde se morre. E seu drama imenso que me prende ao drama moderno, A existéncia de seus burgueses e de seus operirios, a todo esse tumulto flutuante cuja dor ¢ cuja alegria eu gostaria de anotar uma a uma, Ela é minha irma, minha grande irma, cujas paixdes me tocam ¢ que no pode chorar sem que me venham légrimas aos olhos também. is dans les romans d-Emile 5 Zola, ctado por Nathan Kranowski: "a Presses Universitaires de Zola. Préface ‘de Jean-Albert Beds. Par France, 1968. p. 132 2 ——— ae Sinto-a sacudida pelo imenso labor do século, empan- turrada de gente ¢ se eu tivesse algum orgulho supremo, eu gostaria de jogar todo o calor ¢ todo o impeto de seu trabalho gigante em alguma obra gigantesca. E quando vejo os poetas, os romancistas, os pintores que desdenham sta cidade cheia de vida, para buscarem uma originalidade ‘timida em paises épocas distantes, sou tomado de des- dém” (Zola citado por Kranowski, 151). Nessa derramada declaragio de amor pela sua cidade, Zola enfeixa uma visio do presente, um repidio ao pas sado € um projeto para o futuro. Aos 32 anos, 0 autor francés solidariza-se com 0 espaco urbano, irmana-se a le © manifesta 0 desejo de exploré-lo microscopicamente, fem sua face mais externa, bem como em sua intimidade. © projeto vingou e gracas a isso ampliou-se ainda ‘mais 0 mito de Paris, chegando a “proporgées épicas”, segundo Nathan Kranowski, um dos seus comentaristas, 1no ensaio que dedica ao autor de Germinal. Em Paris dans {es romans d'Emile Zola, Kranowski propde-se examinar © papel que a cidade desempenhou no conjunto da obra narrativa do romancista, A pretensao sem félego Embora de maior pertinéncia a0 estudo do. espaco, © livro de Kranowski ainda se ressente de certa timidez interpretativa, seja porque se apéia demais na critica alheia i estabelecida, seja porque se contenta com a metafori- zagio intensa do romancista, sem exploré-la mais a fundo, No apego caudatério a tradi&o critica jé existente ou as rOprias imagens do autor, 0 ensaista redunda no jé dito © conclui sua andlise de forma pobre, para ndo dizer Sbvia: fais uma vez Zola demonstra que via Paris como set dindmico, capaz de gozar e de sofrer, ¢ cujo traco essencial 13 4 vida, mas uma vida imensa e agitadiga” (Kranowski, 152) (© tom genérico e inespecifico do estudo de Kranowski cntedia porque reitera, parafraseia e compila. Entre a am- bigko da proposta inicial, que sugeria “uma visio de con- junto da obra de Zola” (Kranowski, 1), ¢ 0 resultado final, 0 alcance é mofino. © exemplo convincente Nio € esse 0 caso, entretanto, de outra anélise, bem mais curta © menos ambiciosa © que, por isso mesmo, ‘opera como fator de alargamento ¢ de adensamento de Lassomoir (1877), iluminando seus significados ocultes, ‘ampliando-os e acrescentando-os. O ensaio de Antonio Can- ido * ndo-se limita a veriticago esquemética da transpo- }o do plano geo-hisérico para o literério, mas, antes, lenta apreendero significado novo que brota desses mesmos espagos, a partir da manipulagio pessoal e artstica da palavra, Depois de apontar os espacos gerais ¢ amplos (a pra- «a, a igre, cart6rio, a rua e 0 museu), Antonio Candido vistoria os partculares © restritos (os quartos, as escadas, 4 lavanderia, © cortigo, 0s botecos, as oficinas, os pitios), destacando neles alguns atributos que os caracterizam de forma espectica (0 cheiro, a umidade, os vapores, as roupas, os colehées, o siléncio, a escuriddo, a sujcira, a comida, 0$ focos de luz e de calor, as tinas ¢ as méquinas etc.) "Gaxpipe, Antonio, Degradagfo do espago. (Estudo sobre a cor- relagio funcional dos ambiemes, das coisas e do comportamento fm Lasromoin) Revisia de Leas. Assis, Faculdade de Filostia, (Gidocias © Letras, 1972. v. 14, p. 736. 1“ Na medida em que tamanha disparidade de locais e de coisas se articula por intermédio da linguagem, o cerne mesmo da literatura, 0 ensaista trabalha-a no nivel prefe- rencial_ das imagens (metéforas, paradoxos, hipérboles, antteses), da semantica, da etimologia e das homofonias, arrancando desse conjunto um sistema de artculagio onde tudo se toca ese transforma, num processo de contaminagio recfproca intermindvel. Uma ou outra passagem breve do ensaio exemplifica melhor esse amélgama, que se delineia por uma insistente polaridade metaforizada, a da fluidez € estagnagio Xo movimento € a inércia: “Gervaise, dourada e solar, era lavadeira no rio da cidade natal, Plassans, mas n6s ‘a conhecemos jé inserida ‘no uso urbano e quase industralizado da égua. Uma espé- cie de ndiade presa nas malhas da civilizagao urbana, suspensa entre mundus e immundus. Pobre mediadora, fard tum esforgo para se agarrar a0 primeiro térmo, & sua pro- fissio simbolica de limpar, no meio da sujeira fisica e ‘moral do subirbio operdrio. Mas acabaré largando profissio, o trabalho, para cair na perdigio dos ambientes {que a prinefpio evitou. [...] poder-se-ia dizer que o seu destino constitui em passar de um liquido a outro, isto é dda gua para o 4lcool, e assim, do trabalho para a vadi gem, da virtude para 0 vicio, da vida para a morte, pois 4 dgua (ligada de mancira profunda a idéia de fertlidade) 4 vida; € 0 dlcool (gua negativa) dé morte” (Candido, 15. Grifo do A.). “A roupa suja desvenda a miséria geral do. cortigo © do Bairro, bem como as misérias particulares de cada um — decifradas pelo olhar perito das lavadeiras, que mergulham as mios nos trapos imundos, habituadas a0 cheiro forte do corpo alheio e & mensagem das manchas, rasgdes, dobras enxovalhadas. Ao mesmo tempo, corres- ponde & depradagio, & baixeza dos costumes ¢ sentimentos, constituindo ume primeiea referéncia ao avacalhamento de perros ee a roupa suja” (Candido, 20). ee Seabee ees eee eee eee pee ee eae prea eed eae ee eo perme a een Beene wee a pee ee ae ee pes ee Timidez setorizada Como jé foi dito paginas atrés, ¢ minguada a biblio- ‘rafia te6rica do assunto de que tratamos, tanto no émbito nacional, quanto no estrangeiro, FOssemos discutir outros 16 ‘t6picos referentes & narrativa, o problema seria diferent (© da abundancia de teoria, Apesar da forte adesio do romance brasileiro ao espa- 0, seja urbano, rural ou selvitico, a nossa critica pouca atengio tem dedicado a0 assunto, preferindo deter-se ora nas formas narrativas, ora em seus temas. Causa estra- heza essa rarefagio critica, responsével ‘pela dificuldade em se organizar um repertério bibliogratico extenso e siste- ‘miético, mormente num pafs cuja literatura respondeu e esponde de pronto aos estimulos mesolégicos. Seria a cespacialidade do nosso romance um fator de intimidagio, dado o yulto da pesquisa, ou, simplesmente, um ponto de irelevincia critica? Talvez seja precoce responder, mas 0 fato € que nunca fomos indiferentes aquilo que nos rodei € do nosso meio tem saido muita matéria ficcional que se farta no puramente descritivo ou persegue o integrativo © 0 organico. Num certo sentido, frente & tradicional carén- cia de estudos especializados, o romancista brasileiro como que toma para si a incumbéncia de vasculhar o pais, em sua geografia, sua hist6ria e suas instituigdes. “Por isso ‘mesmo”, afirma Antonio Candido, “o nosso romance tem fome de espaco © uma Ansia topogrética de apalpar todo © pais. Talvez 0 seu legado consista menos em ti personagens ¢ peripécias do que em certas regies tornadas Titerdrias, a seqUiéncia narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele. Assim, o que se vai formando permanecendo na imaginacio do leitor é um Brasil colo- ido e multiforme, que a eriagio artistica sobrepde a reali- dade geogratica e social. Esta vocacio ecolégica se mani- festa por uma conquista progressiva do territério. Primeito, as pequenas vilas fluminenses de Teixeira e Sousa, cer- cando o Rio familiar e sala-de-visitas, de Macedo e Alencar, ‘ou 0 Rio popular picaro de Manuel Antonio, depois, as fazendas, os garimpos, os cerrados de Minas ¢ Goids,'com ” Bernardo Guimaraes. Alencar incorpora 0 Ceara dos cam- pos ¢ das praias, os pampas do extremo sul: Franklin Tivora, 0 Pernambuco canavieiro, se estendendo pela Paraiba. Taunay revela 0 Mato Grosso, Alencar ¢ Bernar- do tragam o Sio Paulo rural e urbano, enquanto 0 natu- ralismo acrescenta 0 Maranhio de Aluisio e a Amazinia de Inglés de Sousa.” * ‘Aos poucos, porém, essa timidez setorizada da critica, em flagrante contraste com a generosidade dos romancistas, vai sendo superada. Nos meios académicos jé comecam surgir investigagdes direcionadas para o problema, ressen- tindo-se uma delas da precocidade de quem pretende uma visio de conjunto, quando nem a das partes ja foi reali- zada, sendo de modo fragmentirio e descontinuo. Em tese recente, defendida na PUC carioca, Roberto Reis ensaia uma andlise extensiva do romance brasileiro dos séculos 19 e 20, tomando como base a ficgio de Alencar, Cyro dos Anjos, Licio Cardoso e Autran Dourado © como suporte te6rico os estudos de Goldmann, Caio Prado Jr. e Octavio Ianni. Do primeiro ele retira 0 “pres- Suposto de que hé uma homologia entre as séries social & literéria” *; do segundo e do terceiro, absorve ele as meti- foras de nticleo e nebulosa © centro e circulo, respecti- vamente, e com elas hierarquiza os personagens. A. rigor, ‘© mérito do trabalho & apenas o de configurar em meté- foras aquilo que jé vinha expresso no corpo dos textos ficcionais: “No centro ou nicleo esté a figura do senhor € patriarea, junto com os que habitam a casa-grande, Na nebulosa ou periferia, a bem dizer, todos os restantes Precisando mais: na nebulosa circulam o indio, 0 sertanejo, *Cxxoio, Antonio, Formacio da literatura brasileira; momentos decisivos. (Sto Paulo] Martins (1959). v. 2, p. 114 "Reis, Roberto. 4. permanéncia do cireuio; hierarauia 10 ror brasileira. Rio de Janeiro, Pontificia Universidade Catolica, 1983. p22. (Minos) © jagungo, 0 gaticho € 0 negro, Ow seja: nela alinhamos ‘eategorias étnicas (0 negro € 0 indio) e sociais (0 jagungo, © sertancjo © © gaticho), aglutinéveis na medida em que rio figuram no niicleo, sendo subjugados na base de uma relago de dominasdo, hierirquica. Eletivamente, os figu- rantes do niicleo senhorial exercem dominio sobre os da nebulosa” (Reis, 22. Grifo do A.). 4 ‘Ao hierarquizar os personagens por meio de met foras espaciais, com 0 apoio adicional dos esquemas teéri- ‘cos de Goldmann, Roberto Reis esquece-se, todavia, de responder a uma questo crucial: se realmente existe homo- Togia entre a série literéria e a série social, da manei G0 rigorosa como sua tese deixa & mostra, nio seria natural que 0 romance brasileiro contemporiineo se modi ficasse num nivel tao-somente epidérmico, uma vez que nossa estrutura de poder social nunca passou por trans- formagées radicais, sendo por simples remanejamentos de superficie? 2 Rumo aos conceitos Espaco e ambientacéo Deve-se a um romancista brasileiro. precocemente falecido, uma das contribuigdes mais concretas ¢ especula- tivas para o nosso assunto. Com Lima Barreto e 0 espace romanesco*, Osman Lins (1924-1978) deu um passo importante para aclarar o problema, pois além de tocar ‘num ponto virgem da bibliografia sobre Lima Barreto, ela~ borou alguns capitulos tedricos que melhor situam essa preocupagio com 0 espaco na narrativa. Duas so, a nosso ver, as passagens mais louviveis ‘desse ensaio de Osman Lins, em nivel teérico, A primeira TEINS, Osman, Lima Barreto ¢ 0 espago romanesco, {S50 Paulo} ‘Atica {1976}. (Colecio Ensaios, 20.) fm 1983, 0 Instituto Municipal de Arte © Cultura do Rio de Janeiro pablicon O Rio de Janeiro de Lima Barreto, trabalho real- ado por ums equipe coordenada por Afonso Carlos Marques dos Santo, (Os dois volumes que compsem essa obra repartem a ficgio de Lima Barreto em ens temticos ("Os miseravels da cidade”, “O. teatro na cidade", “Os barros do Rio e sua gene” et.), cumprindo fssim uma fonglo também diconarisica e aplainando, portanto, fo caminho do futero anaiste iteriio distingue esparo © ambientagdo: “Por ambientagao, enten-

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