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\ Setho Gr & RICHARD DAWKINS O capelao do Diabo Ensaios escolhidos ‘Tradusao Rejane Rubino Ba reimpressto (Copyright © 0 by Richard Dawkins ta da Costs Aguiar Revisao teenie’ Mavia Guinardes Rafael Mantovani Revisdo Ciudia Cantarin Renato Potenza Rodtigues 2010] ‘Todas oF direitos desta edicto reservados 3 ua Bandeira Pat 4532-002 — Sio Ps ‘elefone Fax (a weorwecompanbiadasletres.com.br Para Juliet, em seu décimo oitavo aniversério 2. O que é verdade?" Um pouco de conhecimento ¢ uma coisa perigosa. Essa ob- servagdo nunca me pareceu particularmente sibia ou profunda,* mas ¢la se mostra muito apropriada no caso especifico de um pouco de conhecimento em filosofia (como ocorre com fre- qiéncia). Um cientista que cometa a temeridade de pronunciar a palavra comegada com “v” (“verdade”) provavelmente ir se deparar com uma modalidade de importunagio filoséfica que tem mais ou menos o seguinte teor: A verdade absoluta nao existe. Cometemos um ato de fé pessoal quando afirmamos que o métod fico, incluindo a matemé- tica e a l6gica, € 0 caminho privilegiado para a verdade. Outras culturas talvez acreditem que a verdade deve ser buscada nas entranhas de um coelho, ou nos delirios de um profeta no alto de lum mastro. f somente a nossa fé pessoal na ciéncia que nos leva a favorecer nosso tipo particular de verdade. * 0 original de Pope é maravilhoso, mas 0 aforismo nfo sobrevive isolado de Essa vertente de filosofia delirante é conhecida como relati- vismo cultural. Ela é uma das Fashionable nonsense da moda] detectadas por Alan Sokal e Jean Bricm das formas de Higher superstition (Alta supers 40] de que falam 2 € engenhosa- mente apresentada por Daphne Patai e Noretta Koertge, autoras, de Professing feminism: cautionary tales from the strange world of ‘women's studies [Preconizando o feminismo: historias exes res do estranho mundo dos estudos da mulher]: ‘No campo dos Estudos da Mulher, os alunos aprendem hoje em dia que a logica € um instramento de dominagio (..] as normas € 08 métodos padrio da investigagio ci fica sio sexistas, pois intuis3o como uma abordagem mais segura ¢ mais fecunda da verdade”: De que maneira deveriam os cientistas responder A alegago de que a nossa “fé” na légica e na verdade cientffica nao é nada além disso — f¢ — e nfo conta com nenhum “pr (pala- vra da moda favorita) em relagdo a outras verdades alternativas? © minimo que se pode responder é que a ciéncia produz resul- tados. Como eu disse em O rio que sata do Eden, ‘Mostre-me um relativista cultural voando a 10 mil metros de altura ¢ eu Ihe mostrarei um hip6crita[...] Se voct esté viajando de avizo para um congresso de antropélogos ou de criticos literé- ros, a razio pela qual provavelmente chegaré ao seu destino — a0 invés de despencar num campo cultivado — é que uma porgio de 35 engenheiros ocidentais cientificamente teeinados acertaram nas cont A reivindicagao da verdade por parte da ciéncia é fortaleci- da por sua espetacular capacidade de fazer com que a matéria ¢ a energia pulem dentro das argolas de acordo com os comandos, ede prever 0 que acontecera e quando. Mas sera que é por um vies cientifico ocidental que nos im- Pressionamos com as previsdes exatas, com o poder de langar foguetes capazes de dar a volta em Jupiter para chegar a Saturno ou de interceptar ¢ consertar o telescépio Hubble, ou mesmo com a l6gica propriamente dita? Levemos em conta esse ponto de vista ¢ raciocinemos sociologicamente, ou até democratica- mente. Suponha que concordemos, por um momento, em tratar a verdade cientifica apenas como uma verdade entre varias ou- tas, ea coloquemos lado a lado com todas as suas competido- ras: a verdade trobriandesa, a verdade kikuyu, a verdade maori, a verdade inuite, a verdade navajo, a verdade ianomami, a verdade Kung San, a verdade feminista, a verdade islamica, a verdade hin- dufsta. A lista é intermindvel — e isso, por si s6, ja € uma obser- vagiio reveladora. ‘Teoricamente, as pessoas poderiam abrir mao de sua fide- lidade a uma “verdade” e mudar para uma outra qualquer cujo mérito considerassem maior. Mas com base em que clas 0 fa- jam? Por que razio alguém abandonaria, por exemplo, a verda- de kikuyu, para abragar a verdade navajo? Mudangas movidas por mérito sio raras. Com uma excegao, de crucial importincia, O tinico membro da lista que ¢ capaz de regularmente persuadir 05 ne6fitos quanto & sua superioridade é a verdade cientifica. As pessoas sio leais a outros sistemas de crenga pela simples razio de que foram criadas daquela maneira e nunca chegaram a co- nhecer uma alternativa melhor. Quando elas tém a sorte de po- 36 der escolher, 0s médicos e outros profissionais do genero prospe- ram, ao passo que os feiticeiros entram em declinio, Mesmo aqueles que ndo tém, ou nao podem ter, uma educagao cientifi- ca optam por se beneficiar da tecnologia que a educagao cienti- fica de outras pessoas tornou disponivel. £ fato reconhecido que 05 missionarios religiosos converteram um enorme contingente de pessoas em todo o mundo subdesenvolvido. Mas, se eles fo- ram bem-sucedidos, nao foi pelos méritos de sua religido, e sim devido a tecnologia de base cienitifica que, compreensivelmente, porém ainda assim de maneira injustificdvel, trouxe reconheci- mento a religiio. Seguramente o Deus dos cristios deve ser superior a0 nosso Juju, ‘uma vez que 0s representantes de Cristo chegam trazendo rifles, telesc6pios, serrotes, rédios, almanaques capazes de prever os eclip- ses com precisio de minutos e remédios que curam. Basta de relativismo cultural. Um outro tipo de questiona- dor enfadonho prefere deixar escapar 0 nome de Karl Popper ou (como est mais na moda) 0 de Thomas Kuhn: Nao hé verdade absoluta. Nossas verdades cientificas nao passam de hip6teses que ainda ndo foram refutadas, que acabardo por ser substituldas. No pior dos casos, as “verdades” de hoje, depois da proxima revolusio cienttfica, nos parecerio pitorescas ¢ absurdas, se no realmente falsas. O melhor que os cientistas podem alme- jar € uma série de aproximagoes que progressivamente reduzem (8 erros, sem nunca chegar a eliminé-los. A importunagéo popperiana resulta em parte do fato aci- dental de que os filésofos da citncia sio tradicionalmente obce- cados por um episédio da historia cientifica: a comparacio entre 7 as teorias da gravidade de Newton e de Einstein, & verdade que a Iei do inverso do quadrado de Newton mostrou ser uma aproxi- magig, um caso especial da fSrmula mais geral de Einstein, Se conhecermos somente essa passagem da hist6ria da ciéncia, ébem possivel que acabemos por concluir que todas as verdades aparen- tes so meras aproximagées cujo destino é a substituisio, Num certo sentido, bastante interessante, aliés, todas as nossas percep- g0es sensoriais — as coisas “reais” que “vemos com os nossos pré- prios olhos” — podem ser consideradas “hipéteses” nfo refutadas sobre o mundo, e suscetiveis de mudanga, Essa é uma boa manei- ra de refletir sobre ilusdes tais como a do cubo de Necker. © desenho plano da tinta no papel ¢ compativel com duas ““hipoteses” alternativas de objetos s6lidos. Enxergamos um cubo apés alguns segundos, “converte-se” num “converter-se” no primeiro cubo outra vez, em trés dimensées qu outro cubo, para enti assim sucessivamente. Talvez os dados sensoriais apenas confit- mem ou rejeitem “hipéteses” mentais acerca do mundo externo.* ‘Bem, trata-sé de uma teoria’ interessante; também ¢ inte ressante a idéia filoséfica de que a ciéncia procede por conjectu- rae refutagdo, assim como ¢ interessante a analogia entre as duas. Essa linha de pensamento — os contetidos de nossas percepgdes existem como modelos hipotéticos no nosso cérebro — poderia 38 nos levar a temer uma dissolugio futura da distingéo entre rac. lidade ¢ ilusao em nossos descendentes, cujas existéncias serio ainda mais dominadas por computadores capazes de gerar seus préprios e nftidos modelos. Sem nos aventurarmos nos univer- sos high-tech da realidade virtual, j& sabemos que os nossos sentidos siio fadilisiente éngandveis. Os prestidigitadores — ilu- sionistas profissionais — so capazes de nos convencet, se nio contarmos com um cético pé na realidade, de que eles tém pode- res sobrenaturais. Pessoas que no passado foram notérios presti- digitadores hoje ganham muito dinheiro alardeando seus pode- res sobrenaturais, e levam uma vida muito mais préspera do que quando se assumiam abertamente como mégicos.* Os cientistas, infelizmente, nao se encontram muito bem equipados para des- mascarar telepatas, médiuns e charlataes entortadores de colhe- res, Esse é um trabalho para profissionais, e isso quer dizer para outros prestidigitadores. A ligio que 0s ilusionistas, tanto os ho- nestos como 0s impostores, nos ensinam € que a {€ indiscrimi- nada em nossos proprios sentidos ndo constitui um guia infali- vel em diregao A verdade. ‘Mas nada disso parece abalar nossa idéia usual sobre o que significa uma coisa verdadeira. Se eu estivesse sentado no banco das testemunhas ¢ 0 promotor, apontando seu dedo austero na minha diregio, perguntasse “f ou nao é verdade que voct esta- ‘va em Chicago na noite do crime?”, seguramente no perderiam * Médiuns e misticos, qu se exibem de bom grado diante de uma platéia de cientistas,alegario uma conveniente dor de cabega e interromperdo sua apre- sentagdo se forem informados de que um contingente de migicos profssionais std sentado na primeira fila do auditério. E por essa mesma razfo que John ‘Maddox, quando era editor da revista Nature, sempre e fia acompanhar por James “O Inerivel” ao investigar uma suspeita de fraude no campo

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